PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Salussolia... · da família na Umbanda, ... de Registro 27/01/1984 ... este processo de forma geral no indivíduo e na sociedade da

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  • PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO PUC/SP

    Solange Salussolia Vaini

    O Sagrado ganha Espao:

    Um estudo de caso sobre a Umbanda

    DOUTORADO EM CINCIAS SOCIAIS

    SO PAULO 2008

  • PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO PUC/SP

    Solange Salussolia Vaini

    O Sagrado ganha Espao:

    Um estudo de caso sobre a Umbanda

    Tese apresentada Banca Examinadora da Pontifcia

    Universidade Catlica de So Paulo, como exigncia

    parcial para obteno do ttulo de Doutor(a) em

    Cincias Sociais sob a orientao da Professora

    Doutora Maria Helena Vilas Boas Concone.

    DOUTORADO EM CINCIAS SOCIAIS

    SO PAULO 2008

  • Banca Examinadora

    ________________________________________________

    ________________________________________________

    ________________________________________________

    ________________________________________________

    ________________________________________________

  • Dedicatria

    Aos meus pais Iridia e Flavio

    Exemplos de seriedade, compromisso, dedicao

    E amor a Umbanda!

    Aos meus Pais Espirituais

    Caboclos Trs Penas e Pena Azul

    Exemplos de humildade, pacincia e determinao!

  • Agradecimentos

    Ao CNPq e ao Programa de Ps- Graduao em Cincias Sociais da PUC/SP

    por ter me proporcionado uma bolsa de estudos, sem a qual no teria

    condies de realizar esta pesquisa;

    Maria Helena Vilas Boas Concone, minha orientadora, por ter aceito

    novamente o desafio de falar sobre a Umbanda, numa poca em que falar de

    religio parecia estar fora de moda!

    s entidades Caboclo Trs Penas e Pena Azul pela autorizao em utilizar os

    Cadernos de Registros, com os quais foi possvel reconstruir a memria do

    grupo e da Umbanda!

    Ao Caboclo Cacipor (especialmente) e a todas as entidades que me ajudaram

    durante estes cinco anos de pesquisa a conquistar a tranqilidade necessria

    para poder escrever!

    Aos meus pais Flavio e Iridia Vaini pelas longas conversas aos ps da mesa

    tomando caf, conversando, brigando e recordando os momentos vividos na

    Umbanda!

    A cada mdium, filho(a) do terreiro, que de alguma forma contribuiu para que

    esta pesquisa fosse concluda, como Ilia Ruiz, pelas fotos cedidas, Swamir

    Salussolia pelas conversas no stio, Nelza Fedalto que relembrou a trajetria

    da famlia na Umbanda, ao Rene Ruiz pelos constantes questionamentos sobre

  • o grupo, ao Marcelo Oliveira pelas longas conversas sobre outras prticas da

    Umbanda, a minha irm Dbora Vaini por ter se reencontrado com a Umbanda,

    ao Vinicius Carneiro pela traduo do resumo e a todos e todas que

    participaram da construo da memria do grupo e da Umbanda!

    toda minha famlia pelo esforo de tentar compreender o que escrever uma

    tese... e de aceitar meus longos distanciamentos!

    todos os(as) amigos(as), que de alguma forma me auxiliaram a fincar os

    ps no cho, com suas sugestes, crticas, alegrias...

    Gosto de acreditar, como dizem os umbandistas, que nenhuma folha cai por

    acaso..., creio ento que durante estes cinco anos de pesquisa todas as

    folhinhas que apareceram no meu caminho contriburam para que eu pudesse

    atravessar o caminho... se mais fcil ou mais difcil, no sei... mas foi o meu

    caminho!!

  • Resumo

    Esta pesquisa teve como objetivo identificar a partir da memria de indivduos

    umbandistas, de um terreiro especfico, situaes de aprendizagens e se estas

    poderiam ser consideradas prticas emancipadoras e humanizadoras do

    sujeito umbandista. A partir dos Cadernos de Registro existentes no Terreiro

    objeto desta pesquisa, foi possvel reconstruir a memria da Umbanda e do

    grupo que a pratica, bem como os processos de aprendizagem prprios da

    Umbanda. As primeiras hipteses levantadas relacionavam-se com a prpria

    religio, ou seja, de que a Umbanda como movimento religioso que agrega

    indivduos das mais diferentes origens em um mesmo espao, posiciona-se

    frente realidade de forma crtica e transformadora, levando mdiuns e

    consulentes a constantes reflexes.

    Palavras-chave: Umbanda memria aprendizagem

  • Abstract1

    The objective of this project was to collect and analyses memories of

    umbanda persons, from as specific terreiro. We focused on leave and

    learning situations of that space, and if these experiences could be considered

    emancipative and human being practices of this umbandista unique person.

    Based on the written books of this specific terreiro, we were able to rebuild the

    memories of Umbanda and its group, moreover its umbanda learning

    processes. Some initial hypothesis were related with religion, which means that

    Umbanda as a religious movement is able to put together too different people

    in the same place. The reality that this group shares, is to create a criticism and

    individual reformations, around mediuns and patients, in order to personal

    reflections.

    Key-words: Umbanda memories learning process

    1 Alguns termos em portugus, que so especficos sobre a Umbanda, no encontram

    correspondncia no ingls.

  • 1

    SUMRIO

    SUMRIO ____________________________________________________ 1

    ndice de Fotografias ___________________________________________ 6

    ndice de Figuras ______________________________________________ 8

    INTRODUO _________________________________________________ 9

    Motivao _________________________________________________________ 9

    Arquitetando o itinerrio ____________________________________________ 17

    Imagens do itinerrio ______________________________________________ 20

    Construindo o roteiro ______________________________________________ 24

    Meu Olhar ________________________________________________________ 30

    Para a Educao _____________________________________________________ 30

    Para a Humanizao e a Emancipao ___________________________________ 33

    Para a Prxis e a Prxis Umbandista ____________________________________ 34

    E A UMBANDA ISSO... _______________________________________ 36

    Organizao da Umbanda ___________________________________________ 43

  • 2

    A estrutura fsica de um terreiro _____________________________________ 49

    A estrutura administrativa do terreiro _________________________________ 55

    A estrutura espiritual ______________________________________________ 56

    Desenvolvimento da Gira ___________________________________________ 57

    A vestimenta a roupa na Umbanda __________________________________ 60

    Os dias da Gira ___________________________________________________ 62

    Entidades e Orixs As linhas da Umbanda ___________________________ 66

    Pontos cantados __________________________________________________ 78

    Pontos riscados ___________________________________________________ 80

    As Obrigaes na Umbanda _________________________________________ 82

    ALGUMAS CONTRIBUIES TERICAS __________________________ 86

    Sobre a Memria __________________________________________________ 86

    Sobre a Aprendizagem e o Terreiro ___________________________________ 93

    Sobre os Cadernos de Registro: oralidade e a escrita __________________ 103

    A oralidade e a escrita ___________________________________________________ 110

    Sobre a prxis medinica: a aprendizagem na Umbanda ________________ 117

    Sobre o conceito de Trabalho na Umbanda ___________________________ 121

  • 3

    SOBRE O TERREIRO: Um Pouco da Histria _____________________ 126

    Consideraes preliminares ________________________________________ 126

    Localizao do Terreiro ___________________________________________ 128

    Imigrantes e Benzedeiras __________________________________________ 130

    A Tenda Esprita Caboclo Pena Branca e Joozinho das Sete Encruzilhadas _______ 139

    As Giras Pblicas e Particulares ____________________________________ 143

    As Aulas ________________________________________________________ 143

    As Obrigaes ___________________________________________________ 145

    As Festas _______________________________________________________ 147

    As Funes no TUCTPB ___________________________________________ 148

    Os Mdiuns ___________________________________________________________ 149

    Os Cambonos _________________________________________________________ 150

    Ogs e Curimba ________________________________________________________ 151

    O TUCTPB, o Bazar da Pechincha e a Comunidade Local _______________ 153

    Legalidade ou Clandestinidade _____________________________________ 158

    O SAGRADO DE CASA EM CASA _______________________________ 161

    Giras Pblicas e Particulares _______________________________________ 166

  • 4

    As Festas _______________________________________________________ 178

    As Obrigaes ___________________________________________________ 187

    As Reunies _____________________________________________________ 195

    As aulas ________________________________________________________ 204

    O SAGRADO NA VARANDA ___________________________________ 208

    Giras Pblicas e Particulares _______________________________________ 209

    As Festas _______________________________________________________ 234

    As Obrigaes ___________________________________________________ 244

    As Aulas ________________________________________________________ 249

    As Reunies _____________________________________________________ 256

    O SAGRADO GANHA ESPAO _________________________________ 266

    Algumas consideraes sobre o grupo neste perodo __________________________ 272

    Giras Pblicas e Particulares _______________________________________ 279

    Primeiro momento ______________________________________________________ 279

    Segundo Momento _____________________________________________________ 295

    As Festas _______________________________________________________ 301

    As Obrigaes ___________________________________________________ 308

  • 5

    As Aulas e Reunies ______________________________________________ 312

    Estatuto e Regimento Interno: elaborao ___________________________________ 322

    CONSIDERAES... __________________________________________ 328

    BIBLIOGRAFIA ______________________________________________ 345

  • 6

    ndice de Fotografias

    Fotografia 1 Espao da Assistncia do TUCTPB 50

    Fotografia 2 - Terreiro de Umbanda Caboclo Sete Cachoeiras/Guaianazes 51

    Fotografia 3 - Cong TUCTPB 52

    Fotografia 4 TUCTPB 61

    Fotografia 5 - Oferenda Para Exu - Santurio Nacional de Umbanda 28/12/2007 83

    Fotografia 6 - Santurio Nacional de Umbanda 84

    Fotografia 7 - Convite de Inaugurao da Tenda de Oxal, amor e Caridade - 1958 135

    Fotografia 8 Trabalho na Praia Grande 1958 135

    Fotografia 9 - Festa de Cosme e Damio 1975 148

    Fotografia 10 - Escola Estadual P. G. Joo Domingues de Oliveira - Embu-Guau 153

    Fotografia 11 - Sala de aula da Escola - foto de Solange Vaini 156

    Fotografia 12 - Trabalho na Praia de Perube 1988 Imagem cedida por Iridia Vaini e

    Digitalizada em 28/11/2007 por Solange Vaini 180

    Fotografia 13 - Trabalho na Praia de Perube 1988 184

    Fotografia 14 - Festa de Oxossi na Varanda 1989 209

    Fotografia 15 - Escola de Curimba Felix Nascentes Pinto 1989 212

  • 7

    Fotografia 16 - Festa de Oxossi na Varanda 1991 Imagem cedida por Ilia Ruiz 234

    Fotografia 17 - Festa de Cosme e Damio na Varanda 1992 Foto de Solange Vaini 240

    Fotografia 18 - Festa de Cosme e Damio na Varanda 1997 241

    Fotografia 19 - Incio da construo do Terreiro 1998 Filhos(as) tentando carpir o mato, com a

    participao das crianas. 266

    Fotografia 20 - Terreiro em construo - 1998 270

    Fotografia 21 - Operao realizada em dia de trabalho 2006 297

    Fotografia 22 - Trabalho na Praia de Perube 2000 302

    Fotografia 23 - Aps os trabalhos o Lanche coletivo! 303

    Fotografia 24 Oferenda Oxossi 2004 304

    Fotografia 25 Festa em Homenagem a Cosme e Damio. 305

    Fotografia 26 - Festa de Cosme e Damio 2006 306

    Fotografia 27 Homenagem ao Caboclo Trs Penas 308

  • 8

    ndice de Figuras

    Figura 1 Caderno de Registro de 24/10/1976 161

    Figura 2 Caderno de Registro 27/01/1984 170

    Figura 3 Caderno de Registro 18/12/1981 182

    Figura 4 Caderno de Registro 26/06/1985 198

    Figura 5 Caderno de Registro14/06/1997 228

    Figura 6 Caderno de Registro de 24/04/1993 237

    Figura 7 Caderno de Registro de 03/10/1992 238

    Figura 8 Caderno de Registro de 02 maro de 1999 246

    Figura 9 Caderno de Registro de maro 2003 285

    Figura 10 Caderno de Registro de 11/02/2000 Relao das ervas colhidas para o Banho 311

  • 9

    INTRODUO

    Tomemos cuidado para no misturar demais a cincia com o

    que dizem os textos religiosos. reconfortante e satisfatrio

    que haja convergncia. Mas no penso que seja preciso

    argumentos cientficos para provar uma doutrina religiosa. As

    religies no precisam disso.

    Trinh Xuan Thuan

    (THUAN, 2002)

    E a Umbanda isso, a Umbanda no uma religio

    acadmica, no uma religio codificada; ela feita do povo e

    para o povo, dentro da sua prpria crena, sua prpria cultura,

    dentro de seus prprios anseios e do seu prprio nvel de

    espiritualidade.

    Painho (Chico Ansio)1

    Motivao

    inevitvel para mim2 falar da Umbanda sem pensar ou me referir a um

    passado recente, mais especificamente a minha infncia e adolescncia. Todas

    as vezes que falo sobre ela, as recordaes sobre as noites vividas nos

    1 (LIGIRO, 2000, p. 78)

    2 Tomei a liberdade de utilizar a primeira pessoa do singular para explicar um pouco o processo de

    construo da memria, mas devemos pensar este processo de forma geral no indivduo e na

    sociedade da qual faz parte.

  • 10

    terreiros me acompanham. Antes mesmo da escola, acho que o terreiro foi

    primeira forma de socializao externa por que passei.

    Meus pais so umbandistas desde moos, embora a famlia venha de uma

    tradio catlica, misturada verdade com o kardecismo, mas umbandistas

    mesmo foram meus pais que iniciaram a trajetria.

    Por parte da famlia paterna, minha av j freqentava reunies de mesa

    branca e reunies em casa de conhecidos com a prtica da incorporao de

    caboclos, pretos velhos e crianas, mas sem a denominao de Umbanda.

    Minha av tambm era uma tima benzedeira, procurada por muitos

    moradores dos arredores onde morava No bairro da Vila Mariana, em So

    Paulo.

    J a famlia de minha me, seguia a tradio catlica, por parte de minha av.

    Meu av dizia-se comunista e ateu. Um fato curioso que quando os filhos

    nasciam ia biblioteca procurar um nome para ele nas enciclopdias, para

    fugir aos nomes de santos que eram comuns poca.

    O resultado foi curioso. Os nomes diferentes3 e realmente incomuns

    produziram uma histria interessante: quando minha av resolve batizar as trs

    primeiras filhas (escondida do marido, que no permitiu que as crianas fossem

    3 Os nomes por ordem de nascimento: Ilia, Ilithya, Iridia, Swamir, Ileonisa.

  • 11

    batizadas) o padre da igreja local, recusa-se dizendo que os nomes eram

    pagos e s realizaria o batismo trocando os nomes das meninas por nomes

    de santas da igreja catlica. As meninas hoje uma delas minha me foram

    ento batizadas com os nomes de: Terezinha, Maria Aparecida....

    Muitos anos mais tarde que a famlia de minha me adota tambm o

    kardecismo como prtica religiosa, mas sem deixar de se dizerem catlicos,

    praticando um kardecismo de mesa, pois faziam as sesses em casa com a

    incorporao de guias, como caboclos, preto-velhos e crianas, que vinham

    para conversar, dar passes e fazer curas. Nesta poca meu av j havia

    deixado de ser ateu e comunista, participando ativamente das reunies,

    cedendo inclusive sua casa para os encontros.

    Meus pais acabam se conhecendo em um terreiro de Umbanda. Casam e

    quando nascemos eu e minha irm afastam-se durante alguns poucos anos

    das prticas umbandistas, pois achavam que ir ao terreiro assiduamente

    poderia ser penoso para as filhas pequenas.

    Voltam a freqentar a Umbanda quando minha irm, ainda pequena comea a

    apresentar alguns problemas de sade, que so logo atribudos ao

    afastamento do casal de suas obrigaes espirituais.

    Assim, retornam a Umbanda. E aqui comeam minhas lembranas sobre os

    terreiros que freqentamos, ou melhor, sobre a Umbanda e o presente projeto

  • 12

    de pesquisa. Por isso, disse que difcil falar sobre a Umbanda, sem falar

    tambm da minha prpria trajetria e das lembranas que tenho sobre ela.

    Minha memria construda a partir de minhas experincias pessoais,

    auxiliada por uma memria social. Se estou inserida na sociedade, se fao

    parte de diferentes grupos sociais, construo a partir deles e nas experincias

    vivenciadas neles uma existncia social. Quando evoco estas experincias, no

    caso minha experincia na Umbanda, vividas em espao e tempo nicos, estas

    surgem em forma de lembranas ou memrias que s podero ser

    compreendidas se pensadas e analisadas, em relao ao contexto do

    cotidiano.

    As lembranas que tenho sobre este cotidiano, me dizem que tanto fui

    influenciada como influenciei este espao e tempo nicos. Quando penso nas

    experincias que tive ao conviver com as pessoas nos terreiros desde muito

    cedo aos oito anos dormia nos bancos do terreiro que meus pais

    freqentavam, esperando a gira terminar! percebo o quanto estas

    experincias ainda esto vivas em minha memria, e o quanto ainda me

    recordo de homens, mulheres, crianas, cambonos, mdiuns, guias... que

    construram parte de minha histria pessoal e social.

    Assim, falar sobre a Umbanda, tendo como objeto de pesquisa a histria do

    prprio grupo, um dos aspectos que diferenciam este trabalho de muitos

    outros, ou seja, uma umbandista falando da prpria religio, tendo como objeto

    de pesquisa o grupo do qual faz parte.

  • 13

    Mas, mais do que falar de um grupo especfico ou da prpria famlia, este

    trabalho pretende refletir, analisar e identificar quem o sujeito umbandista a

    partir de sua formao na Umbanda, ou seja, do processo de ensino

    aprendizagem por que passa este indivduo, como atua na sociedade, na

    comunidade em que vive e de que forma a Umbanda contribui para a formao

    de uma identidade crtica e transformadora.

    Para este percurso vou utilizar dois recursos

    bsicos de obteno de dados: registros

    escritos e eventualmente entrevistas com

    pessoas que fazem parte do terreiro, tanto os que vestem o branco, como da

    assistncia.

    A escolha deste terreiro se deu por motivos muito especficos: em primeiro

    lugar pela facilidade de acesso, afinal de contas fao parte do grupo, e no

    podemos esquecer que o acesso fcil ao objeto de pesquisa essencial para

    sua realizao, portanto uma escolha razovel; em segundo lugar pelos

    registros escritos existentes que podem resultar em material riqussimo de

    anlise sobre a prtica da Umbanda, mesmo que estes registros tenham sido

    feitos por minha me e durante muitos anos por mim mesma. Isto no significa

    que ficarei isenta de problemas. Embora estar prxima ao grupo do qual

    pretendo desenvolver a pesquisa se apresente como uma facilidade, pode

    tambm representar um fator de complicao.

    Estes registros so feitos desde

    1970, ou seja, trs dcadas de

    registros disposio para

    consulta e anlise.

  • 14

    Complicao, pois os sujeitos, ao conhecerem a pesquisadora, podem se sentir

    constrangidos a dar depoimentos pessoais sobre a Umbanda e sobre o terreiro,

    por exemplo, como tambm os sujeitos escolhidos para as entrevistas

    apresentarem-se inadequados do ponto de vista de informantes, por no se

    lembrarem, por serem tmidos demais ou por no possurem as informaes

    necessrias pesquisa.

    Posso ainda correr o risco de no ser imparcial nas reflexes e anlises

    elaboradas, por se tratar de um grupo o qual conheo muito bem, mas, acredito

    que a objetividade cientfica to cobrada no meio acadmico, no ficar

    jamais isenta desta pesquisa, pois at mesmo na escolha do tema estar l

    subjetividade. Acredito que uma pesquisa deva primar pela objetividade do

    pesquisador e ser este, o mais rigoroso possvel com os dados colhidos, mas a

    pesquisa no estar totalmente isenta de sua subjetividade.

    Portanto, ter a Umbanda como objeto de pesquisa apresenta-se como uma

    tarefa desafiadora, visto a familiaridade que tenho com ela. So dcadas

    vividas no interior da religio, e torn-la um objeto de estudo, ainda causa-me

    certo estranhamento.

    Mas, justamente por esta familiaridade que venho, cada vez mais, afirmando

    a necessidade de falar dela, descortinando nas suas intrincadas redes de

    relaes, sua histria, que a histria de indivduos que fazem parte desta

    cidade e que a tem como espao religioso, social e educacional.

  • 15

    Embora acredite que minha experincia nos terreiros tenha sido minha primeira

    forma de socializao, minha existncia social se deu tambm a partir de

    outras experincias. Como a de ser professora. Atuei durante muitos anos em

    escolas Pblicas Municipais de So Paulo e em diferentes espaos, como

    professora, coordenadora pedaggica, pedagoga... Meu mestrado na rea

    educacional, aliado ao trabalho na escola, contribui para a construo de um

    conhecimento ancorado na pesquisa e na reflexo da realidade que me

    cercava.

    A consolidao de um pensamento crtico, voltado perspectiva de

    humanizao e emancipao dos sujeitos, motivou a elaborao desta

    pesquisa. Ter como hiptese que a Umbanda pode ser propiciadora de

    momentos de reflexo, de construo de conhecimento atravs de processos

    de educao dentro dos terreiros estimulou-me a juntar estes dois mundos.

    Os conceitos de emancipao, humanizao e transformao social

    construdos no espao e tempo vividos na escola, ou melhor, na educao,

    propiciou a reflexo sobre os processos educacionais acontecidos e vividos

    dentro de minha experincia na Umbanda. Portanto, ao falar sobre estes

    processos de aprendizagem, de ensino dentro do terreiro, estarei utilizando os

    referenciais de construo do conhecimento para a emancipao do sujeito,

    construdo na minha experincia com a educao.

    A utilizao destes conceitos marca alm da posio epistemolgica, uma

    posio poltica, tomada a partir do olhar de quem est inserida no grupo social

  • 16

    e do olhar da pesquisadora (papis como atora social), pois explicitam meu

    compromisso com a prxis transformadora, por isso histrico-social, tanto na

    Educao como na Umbanda, enquanto possibilidades reais de aes de

    interveno social que constri sujeitos humanos.

    Concordo com Geertz, (2006, pg. 10) que aponta as mudanas sociais

    ocorridas nos ltimos anos, lembrando que a religio na verdade nunca

    desapareceu, mas sim que as Cincias Sociais desviaram seus estudos para

    outros campos de anlise.

    As transformaes sociais, diz ainda, tm modificado as formas de relaes e

    as religies hoje possuem novas configuraes, perdendo o sentido os estudos

    voltados para indicadores e estatsticas, como freqncia a cultos, muitas

    vezes numa repetio exagerada do que j foi dito, com produo exacerbada

    de teorias distanciadas da prtica (cotidiana) e que os pesquisadores deveriam

    se preocupar hoje em desvendar a qualidade do esprito: quadros de

    percepo, formas simblicas, horizontes morais.

    A nova situao exige uma nova conceituao da religio e de seu papel na

    sociedade como tal. Bem ou mal, a construo de vises de mundo com

    base na coliso de sensibilidades (e a construo de sensibilidades a partir do

    choque de vises de mundo o processo circular) que preciso apresentar e

    compreender, no momento atual.

  • 17

    Arquitetando o itinerrio

    Geralmente a etapa inicial de um projeto de pesquisa diz respeito verificao

    do que j foi escrito sobre o tema pretendido, ou seja, procede-se pesquisa

    bibliogrfica para que o pesquisador tenha uma idia do que existe produzido e

    identificar as possibilidades de sua prpria pesquisa. Para minha surpresa,

    esta dificuldade surgiu, quando iniciei a pesquisa bibliogrfica em livrarias e

    sebos. Encontrar e/ou localizar o tema procurado tornou-se uma tarefa rdua,

    para no dizer quase impossvel.

    Tente ir a uma livraria e buscar na prateleira dedicada ao tema religio algum

    livro que fale sobre a Umbanda. Com certeza voc ir achar tudo ou quase

    tudo sobre catolicismo, islamismo, budismo, taosmo... Kardecismo? Voc

    encontra uma diviso especfica intitulada Espiritismo. Nos sebos a situao

    no diferente.

    E sobre a Umbanda, onde encontramos? No ser difcil imaginar onde

    encontraremos alguma coisa. V prateleira intitulada misticismo,

    esoterismo, magia... L encontrar muita coisa sobre a Umbanda. No s

    livros escritos por umbandistas, mas tambm por intelectuais e pesquisadores,

    como Ivone Maggie (Guerra de Orix) e Reginaldo Prandi (os Candombls de

    So Paulo entre outros) e outros.

    Entre um sebo e outro e vrias caminhadas entre as prateleiras garimpando

    ttulos, as perguntas iam surgindo. Por que a consideram magia e no religio?

  • 18

    um Culto? Uma Seita? Afinal de contas o que a magia? O que religio? E

    a Umbanda, como podemos defini-la? Identific-la? Quais so suas

    caractersticas? Aprende-se a ser umbandista? Quais so as prticas

    desenvolvidas nos terreiros de Umbanda e que proporcionam ao indivduo

    construir saberes, como tambm apropriar-se deles?

    Sobre a bibliografia encontrada4 posso dizer que to diversificada quanto s

    prticas encontradas. Muitas vezes o termo Umbanda utilizado como ttulo

    para descrever uma srie de simpatias ou magias das mais diferentes

    naturezas. Voc poder encontrar nas prateleiras e nos contedos das

    publicaes, receitas mgicas que vo desde curar uma diarria at encontrar

    ou amarrar o homem/mulher de sua vida.

    Estes manuais utilitrios encontrados em grande quantidade aparecem em

    maior nmero nas ultimas dcadas, suprindo necessidades que surgem com a

    modernidade, como por exemplo, solues rpidas e eficientes e que voc

    mesmo pessoa comum pode realizar, sem a interferncia ou a mediao de

    outra pessoa com o sobrenatural.

    As publicaes mais antigas diferem consideravelmente das mais novas, pois

    trazem um contedo voltado histria da Umbanda, da organizao do ritual, e

    4 Estou me referindo aqui, as publicaes escritas por umbandistas e no produes acadmicas

    frutos de pesquisas sistematizadas nas universidades.

  • 19

    principalmente da conduta moral/espiritual dos umbandistas... Tenta de alguma

    forma convencer o leitor dos seus dogmas, como o livro Catecismo de

    Umbanda: tudo sobre a doutrina da f de Umbanda (Legtimo e Completo)5,

    produzido em forma de perguntas e respostas simples, informando o leitor

    sobre diferentes aspectos da religio.

    Mas nenhuma publicao encontrei, tanto acadmica quanto umbandista que

    tratasse diretamente da questo por mim levantada: de que forma se aprende a

    ser umbandista? Existe um processo educacional que forme o sujeito

    umbandista? Este processo contribui para a formao de um sujeito

    humanizado, emancipado, que pense sua realidade criando e recriando-a?

    Embora existam muitas publicaes umbandistas, que descrevem seus rituais,

    sua organizao espiritual (orixs/guias/entidades), e do orientaes morais,

    estes escritos influenciam as prticas cotidianas dos terreiros, marcados por

    forte tradio oral? Considerando que os saberes sagrados so transmitidos

    aos iniciados oralmente, na prtica costuma no ser permitido o registro

    escrito, tendo como orientao guardar tudo de cabea, me pergunto: de que

    forma estes conhecimentos so criados e recriados? Como estes

    5 Encontrei este livro em um sebo no centro de So Paulo. No traz a data de sua publicao. O autor

    ou organizador como diz a Editora Clepatra, ficou a cargo do escritor M. A. Camacho (...) isto

    porque, conhecendo a fundo os mais intricados problemas de Umbanda, Camacho era o mais

    indicado para tal realizao. Segundo consta na contra capa esta edio, a 8, foram editadas 60 mil

    cpias.

  • 20

    conhecimentos produzem uma prxis umbandista, capaz de criar e recriar no

    s a prpria religio, mas os sujeitos que a praticam, de forma que estes

    possam dialogar com sua realidade criativamente?

    A sociedade tem se modificado ao longo das ltimas dcadas, e os adeptos da

    Umbanda tambm. Hoje as pessoas que freqentam os terreiros, possuem um

    grau de escolarizao que no comeo do sculo passado no existia,

    entretanto, os ensinamentos transmitidos oralmente, continuam hoje. Dentro

    dos terreiros se privilegia a transmisso dos conhecimentos pela prtica

    emprica e a oralidade.

    O umbandista convive com dois mundos, o da oralidade e o da escrita, mas no

    espao sagrado dos terreiros, o que prevalece o mundo da oralidade, da

    transmisso oral dos saberes e estes so independentes, quase no dialogam

    quando se trata da transmisso destes saberes. A aprendizagem se d a

    partir da observao e da prtica.

    Estas prticas, que acontecem dentro dos terreiros e que ensinam o sujeito a

    ser um umbandista que me interessam enquanto objeto de pesquisa, de

    conhecimento. O confronto entre estes dois mundos, que vo constituindo o

    sujeito, e esta constituio que me interessa do ponto de vista da pesquisa.

    Imagens do itinerrio

    Como podemos perceber, a diversidade acaba por produzir uma

    heterogeneidade de entendimentos e de conceitos sobre a Umbanda que os

  • 21

    prprios umbandistas esto longe de conciliar. H uma srie de ramificaes

    ou denominaes, como mstica, esotrica, branca, lisa, quimbanda,

    cabalstica, popular, inicitica, filosfica, kardecista, cruzada, racional,

    carismtica...

    Como movimento religioso nos aspectos sociolgicos, antropolgicos e

    psicolgicos j foi explorado e existem diferentes pesquisas sob diferentes

    olhares para o fenmeno. A educao vista sob as concepes religiosas,

    principalmente a catlica, tambm foi explorada em diferentes ocasies e reas

    do conhecimento, mas pouca coisa h sobre as relaes dos processos

    educativos (formais e no formais) com as religies afro-brasileiras.

    Ao iniciar as primeiras incurses sobre o tema, buscando conhecer o que j

    havia sido produzido sobre Educao e Umbanda como apontei antes,

    nada encontrei. Hoje, quase cinco anos aps estas primeiras investidas, ainda

    encontramos poucas pesquisas sobre o tema, embora j comecem a aparecer.

    Uma delas Educao em terreiros e como a escola se relaciona com as

    crianas que praticam candombl, de Maristela Gomes, pela Pontifcia

    Universidade Catlica do Rio de Janeiro, sob a orientao de Vera Candau,

  • 22

    uma das poucas de que tomei conhecimento.6 A autora fala das crianas e de

    sua relao com candombl, e da relao que estas tm com a escola.

    A pesquisadora que entra em contato com o mundo religioso do Candombl

    atravs de uma reportagem, tece um registro sobre as relaes destas crianas

    com a religio de modo sensvel e belo, denunciando o despreparo e o

    preconceito da escola (e dos professores7) para lidar com o diferente e no caso

    com as religies afro-brasileiras.

    Embora a pesquisadora se debruce sobre as relaes estabelecidas no campo

    religioso do Candombl, no pode deixar de ser citada, j que seu tema se

    aproxima pelo menos em ttulo daquilo que pretendemos desvendar. Outros

    trabalhos com a mesma temtica no foram encontrados.

    As primeiras hipteses levantadas sobre a questo da educao na

    perspectiva umbandista relacionam-se com a prpria religio, ou seja, de que a

    Umbanda como movimento religioso que agrega indivduos das mais diferentes

    6 A autora faz referncia dificuldade de encontrar pesquisas e/ou trabalhos que tenham como

    tema a questo da educao e das religies afro-brasileiras; em sua pesquisa tambm encontrou

    apenas um trabalho, na Bahia, que tem como tema a educao e o currculo na perspectiva da

    educao pluricultural e foi realizada na comunidade Oba Biyi.

    7 Stela Caputto entrevistou apenas professores da disciplina de Religio, que no Rio de Janeiro est

    inserida no currculo escolar.

  • 23

    origens em um mesmo espao, posiciona-se frente realidade de forma crtica

    e transformadora, levando mdiuns e consulentes a constantes reflexes.

    Neste sentido a Umbanda poderia caracterizar-se como uma prtica religiosa

    para a transformao social, uma vez que as constantes reflexes

    desencadeadas aos seus freqentadores sejam mdiuns e/ou consulentes

    podem proporcionar rupturas das vises de mundo do indivduo, levando-o a

    re-constru-lo.

    Considerar a Umbanda como prtica transformadora que trabalha para a

    humanizao e emancipao dos sujeitos sociais em aes coletivas supe

    que, se estas prticas participam da constituio do sujeito, podem contribuir

    para a efetivao de relaes tambm transformadoras da realidade.

    Objetivos

    Assim, os objetivos desta pesquisa, so:

    Identificar a partir da memria de indivduos umbandistas, de um terreiro

    especfico, situaes de aprendizagens, que possam ser consideradas

    como uma prxis umbandista;

    Analisar a natureza destas prticas sob a perspectiva da emancipao e

    humanizao do sujeito;

    Identificar se a prxis umbandista pode ser considerada uma prxis

    transformadora do indivduo, tendo como perspectiva sua humanizao;

  • 24

    Construindo o roteiro

    Ter o conhecimento como produto das prticas humanas, construdo na

    interao do sujeito com o mundo, implica pensar a Umbanda como face desta

    prtica, possibilitando pens-la como prxis constitutiva e transformadora.

    Pens-la estimuladora de uma educao crtica, que promova esta

    transformao uma tarefa desafiadora e instigante, pois como foi dito

    anteriormente, este aspecto, dentro dos estudos sobre as religies afro-

    brasileiras e tambm da educao, ainda no foi refletida e sistematizada.

    Dizer que a educao se d em diferentes instncias e de diferentes formas,

    fazendo parte das esferas social, cultural, poltica, econmica e religiosa,

    falar da educao como um processo de formao do indivduo, historicamente

    datado individual e coletivamente construdo na interao com outros

    sujeitos. Assim, a abordagem dos processos educacionais umbandistas, pode

    ser pensada como movimento dinmico, considerando a diferena e o conflito

    como faces da constituio do sujeito social.

    Para pensar o processo educacional dentro do terreiro, devo pensar o conceito

    de educao como processo, considerando que o currculo entendido aqui

    como uma ao, uma prtica social e cultural que constri conhecimento/s

    possu dinamicidade, interatividade, construo coletiva de pressupostos

    comuns ao grupo, que o constri e o pe em prtica.

  • 25

    Falar em currculo na rea religiosa pode parecer estranho num primeiro

    momento, mas o conceito pode auxiliar a reflexo sobre os processos de

    aprendizagem que ocorrem dentro do terreiro. Para esta reflexo tomarei como

    uma das referncias o educador espanhol J. Gimeno Sacristn que tem como

    objeto de estudo o currculo e suas prticas. Em seu livro Currculo, uma

    reflexo sobre a prtica, coloca que o currculo uma prxis antes que um

    objeto esttico emanado de um modelo coerente de pensar a educao ou as

    aprendizagens. (SACRISTN, 2000) Se temos a educao como processo,

    em constante movimento, podemos aceitar a definio que Sacristn nos

    oferece sobre o currculo e utiliz-la como uma construo social que facilita o

    acesso ao conhecimento e como uma forma particular de entrar em contato

    com cultura, no caso a umbandista.

    A idia de que existem processos educacionais nos terreiros e que estes

    podem propiciar a reflexo crtica, orientar meu olhar para o papel da

    oralidade e da escrita neste processo e de que forma estes dois mundos se

    encontram e se articulam no espao sagrado do terreiro e conseqentemente

    dos umbandistas. Portanto, aspectos como a possesso, o transe, a

    historicizao da Umbanda, que j foram amplamente abordados, com maior

    propriedade at, por autores como Maria Helena Vilas Boas Concone, no

    primeiro caso, e de Lisias Negro no segundo, entre outros, no sero temas

    centrais deste trabalho, embora presentes.

  • 26

    O caminho pretendido para refletir sobre as questes apontadas partir da

    identificao da cultura umbandista, atravs de dois instrumentos bsicos, a

    pesquisa participante e o trabalho com memria (o papel da oralidade e do

    registro escrito), como formas de construo desta cultura e identificao dos

    processos de aprendizagem para esta construo.

    Acredito que a partir de minha participao ativa no terreiro, das entrevistas e

    da leitura e anlise dos cadernos de registro, poderei levantar categorias,

    identificando aspectos nicos da cultura umbandista, como construda e se

    esta construo aponta para a idia inicial da humanizao e da emancipao

    do sujeito.

    Quando penso no caminho a ser percorrido, penso tambm nas vrias

    escolhas que terei que fazer, para chegar ao lugar desejado. As escolhas no

    so fceis! Neste processo sempre temos a impresso de que alguma coisa

    muito importante est sendo deixada de lado.

    Estas escolhas, portanto, se deram no caminhar. Vrias situaes contriburam

    para a construo desta pesquisa, sejam com os colegas de classe e seus

    questionamentos, nas conversas com minha orientadora, que com seu modo

    sereno, ia escutando e interferindo de modo delicado nas construes

    apresentadas, no grupo de estudo sobre memria que formamos e nas

    inmeras circunstncias cotidianas que envolviam a religio. Nas tentativas de

    esclarec-los e na inquietao do recorte a fazer, re-organizei este caminho.

  • 27

    No meu caso, a inquietao aparece quando percebo que dos vrios itinerrios

    que posso traar dois em particular me chamam, e de certa forma o caminho

    que percorri at aqui como pessoa: como articular dois mundos aparentemente

    to diferentes de forma que ambos possam dialogar, e como umbandistas e

    no umbandistas, podem se apropriar dos conceitos aqui utilizados de forma a

    compreenderem este universo, e v-lo como espao propiciador da

    humanizao e da emancipao do sujeito?

    Estas duas questes aparentemente to simples envolvem escolhas, que

    foram se fazendo no caminhar. O trabalho com os registros escritos, que

    trazem a memria do grupo, foi uma delas. Os cadernos que durante dcadas

    foram sendo escritos, sero utilizados como documentos memorialistas e

    atravs deles re-construir a histria do grupo e da Umbanda, identificando

    momentos de aprendizagem, de transmisso de conhecimentos, que vo

    construindo a cultura da Umbanda. O aparente paradoxo entre a afirmao do

    aprendizado prtico e o ensinamento oral e trabalhar com os textos escritos,

    ser retomado adiante.

    Ao reler os cadernos, verifico elementos desta aprendizagem e desta cultura,

    ainda hoje existentes no terreiro, como o Ritual de Sacodimento8, descrito no

    caderno de 1975, quando o terreiro que meus pais freqentavam na Mooca, foi

    8 O caderno citado de 1975, quando meus pais freqentavam a Tenda de Umbanda Caboclo Pena

    Branca e Joozinho das 7 Encruzilhadas, na Mooca.

  • 28

    ao stio para as obrigaes, com todos os filhos.

    Assim est descrito uma parte destas obrigaes:

    Foi dado o banho de sacudimento que jogado no filho pelas costas, feito isso o

    filho cobre a cabea deita esteira, colocando ao lado uma vela de 7 dias, que j esta

    acesa, fica deitado pelo menos 3 horas. A toalha da cabea no pode ser tirada mais,

    s tirada no fim da engira pelo Pai de Santo. O banho para afastar todos os maus

    fludos que a pessoa tem.

    Cerca de vinte anos depois, lemos:

    Ervas para o banho, colhidas em 15.04.1995. saia branca (flor), saia branca (folha),

    manjerico, alecrim, folha de amora, confrei, balsamo folha larga, melicia, assa peixe,

    hortel, folha gengibre, samambaia, pico preto, sap, folha de maracuj, novalgina,

    arruda, samambaia de bugre, folha de pitanga, alecrim do campo, pinho roxo,

    balsamo, carobinha, folha de goiaba, louro, erva de bicho, so Gonalo, eucalipto,

    carqueja, gervo, balsamo, tansagem, hortel, dente de leo, erva de santa maria,

    folha de laranja, folha de zeduaria, balsamo folha pequena, espada de so Jorge, ch

    de estrada e marcelinha. (1995)

    Este ritual embora ressignificado, ainda existe. feito uma vez por ano, e j

    passou por algumas modificaes, como ficar menos tempo deitado na esteira

    (1h somente) e no ser obrigatrio. O modo de preparo do banho continua

    basicamente o mesmo, o que muda a diversidade de ervas utilizada e a

    retirada de alguns ingredientes que foram considerados ofensivos, como o

    estrume e as vsceras.

  • 29

    Para o banho de sacudimento vai as seguintes ervas que posta em fuso dias antes

    do banho. Carqueja, arruda, guanchuma, alecrim do campo, erva de bicho, catinga de

    mulata, carrapichinho, urtiga, cip abre corpo, cip abre caminho, cip de trabalho,

    carobinha, esterco de vaca, esterco de cavalo, vsceras de galinha com pena, espada

    de so jorge, palha de alho. (1975)

    Ao reler os cadernos dvidas foram surgindo e os questionamentos foram se

    acumulando. O que fazer com o volume de informaes que iam aparecendo

    diante de meus olhos? De que forma identificar se aqueles registros possuam

    as informaes pretendidas? Muita coisa est registrada, mas uma grande

    parte de acontecimentos no o foi. Seja por falta de agilidade em registrar no

    ato dos acontecimentos tudo o que ocorria ou pela seleo do que registrar.

    Ento como poderia trabalhar estas informaes?

    A meu ver pelo caminho das entrevistas, da observao e principalmente da

    prpria participao no terreiro. Atravs da oralidade destes sujeitos eu

    inclusive confrontar este mundo com a cultura identificada nos cadernos de

    registro e com o prprio discurso dos sujeitos umbandistas.

    Mas antes de pensar no caminho a seguir, necessrio saber a partir de que

    bases este caminho ser construdo. Ou seja, quando falo em educao,

    aprendizagem, humanizao, emancipao e na prpria Umbanda, falo a partir

    de que olhar? A partir de qual estrada estou falando?

  • 30

    Meu Olhar

    Para a Educao

    Penso que a educao um processo que acontece ao longo da vida,

    preparando os membros da sociedade para a participao na vida social,

    sendo assim, um fenmeno social, universal, cultural e existencial todas as

    sociedades dependem dela para se manter, para funcionar. (PINTO, 2000)

    Nas relaes entre o Homem e o Homem e deste com a natureza, o

    conhecimento9 produzido. Portanto, podemos dizer que a educao um

    processo de prover os indivduos dos conhecimentos e experincias culturais10

    que os tornam aptos a atuar no meio social e a transform-lo em funo de

    necessidades econmicas, sociais e polticas da coletividade.

    Neste processo de produzir conhecimento, o homem transforma o mundo

    social em que vive e transforma a si mesmo. Este duplo processo que Marx

    chama de prxis.

    9 lvaro Vieira Pinto, em Cincia e Existncia define o conhecimento como um processo de extrema

    amplitude e complexidade pelo qual o homem realiza sua suprema possibilidade existencial, aquela

    que d contedo sua essncia de animal que conquistou a racionalidade: a possibilidade de

    dominar a natureza, transform-la, adapt-la s suas necessidades.

    10 Cultura: conjunto de prticas, de representaes, de comportamentos, relacionado a um grupo

    humano.

  • 31

    Charlot (2001) ao falar sobre educao, e a relao desta com a cultura,

    acrescenta outro aspecto a questo: diz que educao cultura e o em

    (...)trs sentidos que no devem ser dissociados. Ela cultura porque

    humanizao. Ela introduo na cultura, isto , no universo de signos, de smbolos,

    da construo de sentidos. (...) socializao porque (sem ela) no possvel

    introduzir-se na totalidade do que a espcie humana produziu. Introduzir-se na cultura

    s possvel introduzindo-se em uma cultura, a de um grupo social determinado, em

    um momento de sua histria.

    Neste sentido, minha relao com outros indivduos e outras culturas, a partir

    de um grupo, faz e refaz minha cultura, me constituindo. Esta construo de

    sentidos me permite tomar conscincia das relaes com o mundo, com os

    outros e comigo mesma.

    A cultura, portanto, essencial para compreender em escala menor, meu

    grupo e na maior, a sociedade da qual fao parte. Nestas relaes o

    conhecimento vai sendo produzido e reproduzido, a partir das significaes que

    lhe atribuo, privilegiando ou no conhecimentos para a transmisso s novas

    geraes. Geralmente este processo pensado a partir de uma educao

    escolarizada, sistematizada, planificada.

  • 32

    Meu olhar para a educao, e para a educao dentro do terreiro, ser a no

    escolarizada, no sistematizada, no planificada11. O que me interessa aqui o

    processo de construo do conhecimento, do saber, impresso na cultura do

    grupo, visto a partir da educao no formal.

    Almerindo Janela Afonso faz uma distino entre educao formal, informal e

    no-formal, dizendo:

    Educao formal: educao organizada com uma determinada seqncia e

    proporcionada pelas escolas; Educao informal: abrange todas as possibilidades

    educativas no decurso da vida do indivduo; Educao no-formal: embora tenha uma

    estrutura e uma organizao, no se prende a fixao de tempos e locais e flexibiliza

    os contedos.

    A preferncia por trabalhar com o conceito de educao no-formal, ainda que

    esta preveja uma organizao e uma estrutura, se d pelo fato de acreditar que

    estes elementos podem ser encontrados no terreiro, inclusive no que diz

    respeito a um contedo12 selecionado a ser transmitido aos filhos/mdiuns.

    11 No sentido escolar.

    12 Conjunto de conhecimentos socialmente acumulados, mas selecionados, pr-determinados e

    sistematizados que so transmitidos ao grupo social geralmente atravs da escola formal.

  • 33

    Para a Humanizao e a Emancipao

    O conceito utilizado por mim proposto por Paulo Freire, principalmente a

    partir de seu livro Pedagogia do Oprimido. Este texto que j completou trinta

    anos de existncia, a cada dia torna-se mais atual. Sua leitura deve ser feita

    com o olhar no presente, para as relaes hoje estabelecidas na sociedade.

    Diversas so as anlises feitas da nossa sociedade e de como as relaes

    esto sendo modificadas e ressignificadas, a partir da lgica do mercado, da

    economia e do dinheiro como principal fonte de prazer e de delimitao das

    relaes.

    O que mais ouvimos, seja na rua, em casa, no terreiro ou na televiso de

    como as pessoas esto mudando, os jovens principalmente, que no tm mais

    respeito pelos mais velhos, pelos bons costumes, a famosa expresso

    inverso de valores. Os noticirios televisivos a todo instante informam isso,

    de maneira determinista, como se estas aes e valores no pudessem ser

    modificadas ou transformadas. As pessoas sentem-se acuadas e com seus

    valores, crenas, moral, conhecimentos e experincias descartados como os

    produtos vendidos nas lojas de departamentos e constantemente lembrados de

    sua descartabilidade.

    O que gosto em Freire como vai descrevendo nossa sociedade a partir das

    relaes sociais, de como homens e mulheres constroem seus espaos e

    tempos a partir dos mecanismos de opresso existentes e ao mesmo tempo

  • 34

    mostra as possibilidades de rompimento com estas prticas. E a maior

    possibilidade a educao. Muitas vezes refere-se educao formal,

    escolarizada, mas quando faz a anlise destas relaes no da escola que

    fala, mas sim da educao como possibilidade humana, como prtica da

    liberdade, que tem no ato de conhecer, uma aproximao crtica da realidade.

    Para se pensar a educao como possibilidade da prxis libertadora,

    necessria a crena em homens e mulheres, na sua histria e na sua

    inconcluso humana. sabermo-nos seres inacabados, inconclusos, mas no

    determinados no sentido da paralisao da ao. confiar, crer que o outro

    tem o poder de deciso, da assuno da liberdade, e a esperana inabalvel

    na possibilidade do estar-sendo no mundo.

    Para a Prxis e a Prxis Umbandista

    Na educao utiliza-se muito o termo prxis como referncia a prtica

    pedaggica, ou seja, aquilo que os educadores realizam em sala de aula. Mas

    este conceito prev duas formas de pensar sobre ele: em primeiro lugar

    apenas como a coisa prtica, a ao em si mesma, uma ao concreta, que

    parte do conhecimento adquirido para a realizao de uma ao especifica;

    outra forma de pens-la pode ser como um movimento em que o conhecimento

    utilizado pelo homem na sua relao com a natureza, transformando-a e

    transformando a si mesmo, em diferentes esferas como a cultural, a social e a

    poltica.

  • 35

    A maior dificuldade quando pensamos em mudana, em mudana social e/ou

    transformao social, est justamente na ruptura da conscincia comum, na

    ruptura do pensamento que acredita que a prtica est desvinculada de

    qualquer tipo de reflexo, da reflexo sobre seu ato, seja ele construir uma

    cadeira ou ensinar uma criana os pontos cantados no terreiro, como se estas

    aes estivessem desvinculadas do seu pensar, da sua reflexo, de seu estar

    no mundo.

    Essa atitude natural se baseia no fato do indivduo ver a atividade prtica

    como um simples dado que no exige explicao. Com tal atitude, este acredita

    estar numa relao direta e imediata com o mundo dos atos e objetos prticos.

    Suas conexes com esse mundo e consigo mesmo aparecem diante dele num

    plano a - terico13. No sente necessidade de rasgar a cortina de preconceitos,

    hbitos mentais e lugares-comuns na qual projeta seus atos prticos.

    (VAZQUEZ, 1977)

    A definio trabalhada aqui aquela que tem por concepo o Homem como

    um ser ativo, criador e prtico, capaz de refletir criticamente sobre as condies

    objetivas da realidade a qual pertence e compreender que se encontra inserido

    num tempo e espao nicos.

    13 Vazquez define este indivduo como possuidor de uma conscincia comum.

  • 36

    E A UMBANDA ISSO...

    A Umbanda e o Candombl, religies afro-brasileiras, aparecem no imaginrio

    da sociedade nacional, em amplos segmentos, como prticas mgicas ou de

    feitio ligadas ao desconhecido, ao sobrenatural, a espritos e a coisas que no

    podem compreender, portanto, desconfortveis.

    Vrios so os exemplos que podemos obter conversando e observando as

    reaes das pessoas quando se deparam com estas prticas. Estas vo desde

    o escrnio rejeio quase total de convvio com os adeptos destas religies e

    das prprias religies. Uma matria publicada no Jornal Folha de So Paulo,

    no caderno Cotidiano, intitulada Trfico acusado de vetar umbanda no Rio.

    (MONKEN, 2006), pode ser utilizada como exemplo.

    A matria descreve a ao de traficantes no Rio de Janeiro, em diferentes

    bairros, proibindo a prtica da Umbanda e do Candombl com ameaas e

    represlias, fechando terreiros e impedindo que seus adeptos usem adereos,

    como guias e turbantes, prprios destas religies. Segundo a matria, foram

    ouvidos lderes de associaes de moradores e religiosos, que confirmam o

    fechamento de terreiros e o assassinato de um pai-de-santo (em 2002).

    Segundo Jair de Ogum, um dos mais famosos pais-de-santo do Rio, s no

    complexo do Alemo fecharam mais de quarenta terreiros.

  • 37

    Embora os motivos apresentados no fiquem claros, o aspecto mais

    significativo destas aes, diz respeito construo de um imaginrio social,

    bastante matizado pelos setores pentecostais, que coloca estas religies como

    inimigas da sociedade pois associam a Umbanda e o Candombl a

    manifestaes demonacas acirrando a intolerncia religiosa e dificultando as

    relaes sociais nos diferentes espaos, tanto pblicos quanto privados.

    Este movimento, de intolerncia, no novo para os adeptos destas religies.

    Tanto umbandistas como candomblecistas cotidianamente se deparam com

    atitudes preconceituosas e as perseguies a terreiros e seus dirigentes so

    comuns

    O surpreendente saber que em tempos de democracia e liberdade religiosa

    garantidas na Constituio de 1988, estas posies aflorem com tanta fora

    sendo to pouco combatidas. Os prprios umbandistas, para se remeter

    apenas a Umbanda, no se posicionam em relao intolerncia e ao

    preconceito sofrido14.

    14 J em fase de concluso desta pesquisa, recebi por e-mail a notcia de que a Federao

    Nacional do Culto Afro-Brasileiro, a partir de encontros nacionais, elaborou o CDIGO

    NACIONAL DE TICA E DISCIPLINA LITRGICA DA RELIGIO AFRO-BRASILEIRA, na

    tentativa de garantir a confiana da sociedade e diminuir a intolerncia religiosa. Embora o

    documento faa maiores referncias ao Candombl, a Umbanda citada. Para maiores

    detalhes, pode-se consultar este documento no site da instituio citada.

  • 38

    Encontramos na histria do Brasil, perseguies a Umbanda desde o comeo

    do sculo XX, quando os primeiros terreiros aparecem no Rio de Janeiro. Estas

    perseguies so das mais diferentes ordens, como polticas, ideolgicas,

    religiosas e morais e a que vimos na matria citada.

    Segundo Birman (BIRMAN, 1985), como os mdiuns umbandistas lidam com

    foras sobrenaturais, tidas como primitivas e marginais vistas com

    desconfiana e medo, o umbandista acaba por pagar um preo social, pelo fato

    de ter poderes s vezes to perigosos. Esse preo como sabem todos os

    umbandistas, o enfrentamento cotidiano de um estigma. So, com freqncia,

    vistos como pessoas suspeitas, despertam desconfianas e sofrem volta e

    meia, acusaes as mais variadas.

    Em 1937, no II Congresso Afro-Brasileiro BA, o texto A liberdade religiosa no

    Brasil: a macumba e o batuque em face da lei., Bittencourt (1937) apresenta

    um panorama de como as religies afro-brasileiras eram vistas. Segundo a

    Constituio de 1823, estas religies no eram proibidas, mas toleradas e

    seus praticantes perdiam os direitos polticos, que s eram concedidos aos

    praticantes da ento religio oficial, a christ.

    Muita divergncia houve no modo de entender a liberdade religiosa. O projecto

    garantia liberdade apenas as comunhes christs, dando aos que professassem

    direitos polticos, que eram negados aos adeptos das religies no christs; houve,

    porm, quem, com esprito intolerante, pugnasse pela excluso tambm dos

    christos no catlicos de entre os brasileiros com direitos polticos (...) e o longo

    debate terminou pela concesso de direitos polticos apenas aos cathlicos (...)

  • 39

    Alm disso, o Cdigo Penal de 1831 previa na parte IV, que tratava dos crimes

    policiaes, um captulo, o I, relativo s ofensas religio, moral e aos bons

    costumes, e que

    como j ocorrera no Imprio, mesmo na Repblica mau grado a claresa desses

    dispositivos isto no impediu, nem impede, que alhures, como aqui mesmo,

    autoridades policiaes prepotentes invadam o recinto onde esto sendo celebrados ou

    se celebram os cultos feticistas, os batuques, destribuindo bordoada e levando para o

    crcere homens e mulheres de regra, sem qualquer motivo plausvel, por mnimo

    que seja e que , ainda de longe pudesse justificar violncia to grande.

    (BITTENCOURT, 1937)

    Neste mesmo item, tambm era considerado como ofensa o celebrar em casa

    ou edifcio que tenha alguma forma exterior de templo, ou publicamente em

    qualquer lugar, o culto de outra religio que no seja a do Estado.

    (BITTENCOURT, 1937)

    Somente em 1891, a constituio da Repblica, no seu artigo 72 concedeu a

    todos os indivduos e confisses religiosas o direito de exercerem publicamente

    e livremente seu culto (...). Mas, ao mesmo tempo foi necessrio um captulo

    especial para tratar do abuso de autoridade exercido por autoridades policiais,

    ou seja, dos crimes contra o Livre exerccio dos cultos, como descreve Silva:

    Por esta poca predominava o pensamento modernizante, que reclamava a

    necessidade de civilizar o Brasil, colocando-o ao lado das melhores naes

    europias. Neste contexto, surgem os primeiros trabalhos cientficos que procuram

    explicaes para os modos de vida e para a cultura das religies afro-brasileiras que

  • 40

    eram denominadas de primitivas e atrasadas. Inicialmente estas explicaes,

    possuam orientaes racistas e evolucionistas que acabam por confirmar a opinio

    da classe dominante de que os traos culturais herdados do continente africano eram

    inferiores aos do branco, de tradio europia o ideal de civilizao branca,

    moderna e cientificista. (SILVA, 2005)

    Em 1857 surge na Frana O livro dos espritos, o primeiro livro de Allan

    Kardec, que logo chega ao Brasil. O Espiritismo ou Kardecismo, como mais

    conhecido, logo se transforma em alternativa religiosa para uma parcela da

    classe dominante, que via em suas orientaes uma maneira mais civilizada

    de religiosidade, pois para Kardec o fenmeno religioso pode ser estudado e

    explicado racionalmente, cientificamente.

    Esta idia de religio, que propunha a racionalizao da f e de seus

    fenmenos, atravs de estudos cientficos, corroborou com a idia de poder

    civilizar a nao, de higienizar a sociedade, portanto embranquec-la. Era a

    possibilidade de distanciar-se do catolicismo popular e afastar-se de vez das

    religies afro-brasileiras, vistas com preconceito, elevando-se ao status de

    grupo civilizado ou pessoa civilizada.

    A prtica religiosa de transe est presente na sociedade brasileira desde sua

    formao, atravs dos rituais xamanicos, dos cultos bantus, dos candombls e

    das prticas catlicas populares, que o movimento civilizador no conseguiu

    abafar. A Umbanda surge da interseco destes trs elementos, e segundo

    alguns autores, como uma alternativa para a prtica da incorporao de

    espritos.

  • 41

    Algumas dcadas mais tarde, outro fato curioso se d. Pesquisadores,

    intelectuais, escritores e artistas promovem um movimento de afirmao da

    identidade negra e de sua cultura com a retomada da cultura africana, a partir

    da divulgao da cultura dos candombls da Bahia, principalmente15. Surgem

    vrias pesquisas sobre o tema, livros so publicados, descrevendo parte dos

    rituais que at ento somente os iniciados tinham acesso. Romances so

    escritos, orixs so cantados fora dos terreiros, em festivais, rdios e televiso,

    divulgando e legitimando a cultura negra e conseqentemente o Candombl.

    Temos ento dois movimentos: um que legitima o Candombl, atravs de uma

    cultura negra ancestral, vinda da frica e, portanto digna de ser divulgada e

    cultuada e outra vinda da Europa, que legitima a crena no esprito mas no

    qualquer esprito. Para doutrinar, mdicos, escritores, personalidades com

    algum status social e para serem doutrinados, espritos marginais, que de

    alguma forma no encontram o caminho da evoluo moral e espiritual. E o

    transe, mediante a racionalizao e o estudo cientfico, nesta justificativa passa

    a ser, portanto, uma prtica civilizada que leva ao progresso moral e espiritual.

    Estes dois movimentos, embora se dirijam a parcelas especificas da sociedade,

    prope de modos diferentes o mesmo ideal de prtica religiosa: uma que

    15 Entre estas publicaes as de Pierre Verger so as mais conhecidas, como Notas sobre o culto aos

    Orixs e Voduns; nas artes plsticas temos Caryb com seus desenhos representando o cotidiano do

    candombl; na msica Mario Bethania, Caetano entre outros, na literatura nacional, Jorge Amado.

  • 42

    caracterize o praticante como um sujeito culto, pois respeita suas tradies e

    no segundo caso acrescento ainda, um sujeito evoludo espiritualmente.

    Neste sentido que afirmei anteriormente que a Umbanda vista com

    preconceito por ambas as correntes religiosas: uma porque no a v como

    possuidora de uma legitima tradio da cultura africana, j que trabalha

    diretamente com a incorporao de espritos desencarnados e vista como

    sincrtica e a segunda pela utilizao de elementos da cultura africana, como

    os atabaques e a dana, e tambm por lidarem com espritos marginais,

    consideradas, nesta perspectiva, como prticas primitivas e de pessoas

    ignorantes.

    Desta forma a Umbanda tem percorrido um longo caminho para se afirmar

    como religio. Vrios so os movimentos em torno das prticas umbandistas,

    para conferir-lhe legitimidade, que vo desde o abandono das prticas

    consideradas africanizadas, como oferendas, matana e a msica, at o

    lanamento de livros em formato mais acadmico, com diferentes assuntos

    tratados de modo cientifico.

    o caso do escritor umbandista Rubens Saraceni, que apresenta o tema da

    espiritualidade a partir do olhar umbandista. Os ttulos vo desde os romances

    at os ttulos que buscam sistematizar e codificar um conjunto de temas e

    assuntos to abrangentes, que se no representava formalmente um cdigo

    religioso, tratava-se no mnimo de uma codificao extensa de vrios

  • 43

    aspectos relativos aos fundamentos do Ritual de Umbanda Sagrada

    (SARACENI, 1998).

    Outro movimento bem recente neste sentido a fundao, em 2004, da

    primeira Faculdade de Teologia Umbandista do pas, que alm de disciplinas

    tradicionais aos cursos de graduao, inserem no currculo disciplinas voltadas

    especificamente religio umbandista e ministradas na sua maioria, por

    professores umbandistas.

    Muitos umbandistas vem este processo como natural e dizem fazer parte da

    evoluo da religio, como da prpria sociedade, que necessita modernizar-se;

    outra corrente v que este processo esta transformando a religio em outra

    coisa, que no umbanda, podendo extingui-la. Estes movimentos embora

    legtimos acabam por negar uma parte essencial da histria da Umbanda, uma

    vez que vo deixando de lado caractersticas e rituais que deram origem a ela.

    Organizao da Umbanda

    Quando sou questionada sobre o que a Umbanda, a resposta vem rpida:

    uma religio! E to rpido quanto minha resposta aparecem perguntas que

    indagam de forma geral se a Umbanda no a mesma coisa que

    Candombl ou se no coisa do mal! Explico ento que a Umbanda uma

    religio e como tal, tambm tem sua histria.

    Em So Paulo a Umbanda chega primeiro que o Candombl. Mesmo sem a

    denominao de Umbanda, os encontros e/ou reunies aconteciam nas casas

  • 44

    de famlias, que praticavam o que se chamava na poca, de espiritismo de

    mesa, mais conhecido como Mesa Branca, mas que incorporavam espritos de

    Caboclos, pretos Velhos e Crianas principalmente.

    A variedade de prticas existentes grande e pensar sua origem requer

    algumas escolhas. Para uma parte dos umbandistas a religio inicia-se com

    Zlio de Moraes no Rio de Janeiro, quando este recebe uma mensagem do

    Caboclo Sete Encruzilhadas, dizendo que sua misso seria fundar uma nova

    religio: a Umbanda.

    A partir das dcadas de 30 fundam mais sete tendas, todas com a designao

    de tendas espritas, com forte influncia do catolicismo.

    Para Cavalcanti Bandeira a Tenda Esprita Mirim, fundada em 13 de outubro de

    1924 foi a primeira a praticar o ritual de Umbanda e segundo Alexandre

    Cumino (editor do Jornal do Ax e da Revista Umbanda) a nica a no aceitar

    em seu Cong o sincretismo dos orixs com os santos catlicos, com exceo

    de Jesus Cristo/Oxal16.

    Bandeira afirma que a Umbanda o resultado da

    transmutao com modificaes profundas surgi(ndo) uma nova religio de carter

    polimorfo, abrasileirada, porque se distanciando dos primitivos cultos africanos (...)

    16 Ligiro, por exemplo, caracteriza este movimento de Umbanda catlica, pois profundamente influenciadas pela moral crist e pelo espiritismo kardecista. (LIGIRO, 2000)

  • 45

    embora repousando nos cultos bantos, pela sua base comum espiritual. (BANDEIRA,

    1970)

    Embora no me detenha profundamente, neste momento, nas diferentes

    formas de se pensar a Umbanda, apresentarei duas delas que so

    recorrentes nos livros umbandistas: a primeira pela etimologia da palavra, e a

    segunda pela descrio do ritual, suas caractersticas, modos, etc., que em

    ambos os casos trazem uma diversidade17, de explicaes, que interessante

    apontar, pois apresentam a prpria diversidade da religio e

    conseqentemente a dificuldade de se pensar na Umbanda como uma religio

    fechada.

    A origem etimolgica do vocbulo Umbanda controverso mesmo entre seus

    adeptos. Entre as produes umbandistas, encontramos uma variedade de

    verses. Uma das mais comuns, explica: uma de unidade, Uno (Deus) e

    banda como sendo um lugar, cidade, agrupamento e interpretada como unio

    de um grupo ( Deus). Outras interpretaes existem e reproduzo abaixo

    alguns exemplos, retirados destas produes no:

    17 Embora estes aspectos sejam citados no me aprofundarei no primeiro aspecto etimologia da

    palavra para explicar o nascimento da Umbanda. O segundo aspecto os rituais e as caractersticas

    da Umbanda sero oportunamente analisados e descritos quando analisar os Cadernos de Registro,

    fonte desta pesquisa.

  • 46

    Site Umbanda Racional (2006): Esse vocbulo, Umbanda, tem sua origem no

    substantivo feminino do segundo gnero (Banda). Banda tem origem no dialeto

    Banto, e quer dizer lugar, cidade; o vocbulo (Umbanda) nasceu do nosso linguajar,

    porque o sentido real de banda , todos vindos de diversos lugares ou reunidos

    daqueles lugares. Pelo entrosamento do dialeto Banto e o idioma falado no Brasil

    (portugus), surgiu o impulso do conjunto e traos culturais estreitamente ligados

    entre si, formando a palavra Um Banda, pois Um o adjetivo nico, continuo,

    singular, indivisvel, e juntando este ao substantivo, expressou-se dentro do nosso

    linguajar, a palavra Umbanda.

    Livro O Cdigo da Umbanda (SARACENI, 1998): a palavra Umbanda deriva de

    nbanda, que em Kibundo significa sacerdote ou curador. Isto Umbanda, onde

    todos os praticantes so um templo vivo no qual os Sagrados Orixs se manifestam,

    assim como todos os nossos amados guias espirituais.

    Umbanda a religio, mbanda o sacerdote.

    Umbanda a caridade, mbanda o curador.

    Umbanda o meio, mbanda o mdium.

    Umbanda a evoluo, mbanda o ser evoluindo.

    Livro Umbanda do Brasil (W.W. da, 1996): o vocbulo Umbanda (que d margem a

    uma srie de controvrsias) somente pde ser identificado at o presente dentro

    das qualificadas lnguas mortas, assim no snscrito, no pelevi, nos sinais vdicos e,

    diretamente, na lngua ou alfabeto admico ou vatnico dito como um dos primitivos

    a humanidade (...), todavia, entre os angoleses, existe o termo forte de KIMBANDA

    Kia kusada ou Kia dihamba que significa sacerdote, feiticeiro, o que cura doenas,

    invocador dos espritos, etc.

  • 47

    Estes exemplos, embora apresentem certa divergncia, convergem para um

    ponto: todas pretendem conferir atravs da explicao do vocbulo a

    legitimidade da prpria religio. No ltimo caso, atribuem palavra a

    ancestralidade Admica ou Vatan, resgatando smbolos deste alfabeto18, para

    explicar a origem do termo, enveredando para um estudo lingstico,

    comparando-o a outros alfabetos.

    Estes textos so uma amostra da diversidade encontrada, diversidade esta,

    utilizada como motivo de crticas por diferentes autores, principalmente aqueles

    que vem na variedade uma desarticulao da prpria religio, caracterizando-

    a de crendice, devaneio e fantasias, como Boaventura Kloppenburg (1961).

    Em 1961, Candido Procpio Ferreira de Camargo, apontava esta mesma

    diversidade, quando analisava as publicaes sobre a Umbanda. Segundo ele,

    A extraordinria variedade doutrinria que transparece nesses livros ainda maior do

    que a proliferao multiforme dos terreiros. Os livros doutrinrios exprimem duas

    tendncias, nem sempre mutuamente exclusivas. A primeira segue, com certas

    liberdades, a orientao dos antroplogos brasileiros, que alias citam. Traam a origem

    africana da Umbanda, do nfase aos ritos de iniciao tradicionais (...) a segunda

    18 Para maiores informaes e esclarecimentos de como elaboraram este estudo, procurar em W.W.

    da Mata e Silva, especialmente em Umbanda do Brasil, a partir da pgina 71. Embora citado neste

    trabalho, as informaes contidas na obra citada, no expressam a opinio da autora ou da maioria

    dos umbandistas, que geralmente optam por uma explicao mais simplificada do termo, como Luz

    Divina, Luz Irradiante, etc.

  • 48

    Utilizarei o substantivo terreiro

    quando me referir ao local (fixo)

    onde se praticam os rituais de

    Umbanda, embora possamos

    encontrar diferentes designaes,

    como centro, templo, tenda, casa

    esprita, cabana, fraternidade e

    igreja espiritual.

    defende a tese da origem remotssima da Umbanda, muito mais antiga do que o

    Kardecismo, o Cristianismo e o prprio Judasmo.

    A variedade literria, embora apresente diferentes formas de se pensar a

    Umbanda, no registra de forma significativa e real a riqueza dos rituais

    praticados em cada um dos terreiros

    existentes, no s em So Paulo, mas em

    todo o territrio nacional, possuindo, um

    formato multicultural de acordo com as

    tradies e formas de se viver em cada

    localidade.

    Cavalcanti Bandeira ao ser entrevistado, em 1972, por Maria Helena Vilas B.

    Concone prope uma primeira sistematizao da Umbanda, assim descrita:

    1 - Umbanda esprita, de mesa, constitui-se numa fase intermediria entre, as

    Umbandas e o espiritismo de Kardec. (...);

    2 - Umbanda ritualista ou de salo, (...) caracterstica mais marcante o uso da

    roupa branca e das palmas para marcar os trabalhos (...) segue orientao do

    Caboclo Mirim, de influencia indgena;

    3 - Umbanda ritmada, de terreiros (...) sua caracterstica marcante ouso dos

    atabaques para marcar o ritmo e andamento da cerimnia;

    4 - Umbanda ritmada e ritualizada, mais prxima do ritual do Candombl, (...)

    chama esta forma de Umbandonbl. 19

    19 Atualmente encontramos a utilizao deste termo em vrios espaos, inclusive acadmicos, como

    nas pesquisas sobre as religies afro-brasileiras e geralmente sua utilizao vincula-se a uma

    concepo banalizadora da Umbanda. Mas, o termo foi proposto primeiramente por Cavalcanti

  • 49

    Como podemos perceber a variedade de rituais na Umbanda no uma

    caracterstica da atualidade, embora tenha se intensificado, com o passar dos

    anos, incluindo ou absorvendo outros saberes, como por exemplo, os

    conhecimentos orientais de cura.

    O segundo aspecto apontado para se pensar a Umbanda atravs de seu

    ritual.

    Mas, antes de falarmos no ritual da Umbanda a gira vamos descrever de

    que forma um terreiro pode se organizar.

    A estrutura fsica de um terreiro

    A estrutura fsica dos terreiros via de regra muito simples, constando de duas

    partes principais: uma onde acontece o ritual e

    onde ficam os mdiuns, e outra onde fica as

    pessoas que vo assistir as giras, a

    assistncia.

    Bandeira, para identificar na sistematizao elaborada por ele os vnculos desta com o

    Candombl.

    Estou chamando de mdiuns a todos(as) os(as) filhos(as) do terreiro que esto na corrente, inclusive cambonos e ogs.

  • 50

    Assistncia: espao destinado a acomodar as pessoas que visitam o terreiro

    ou seus freqentadores assduos. Este se localiza fora do espao da gira,

    geralmente dividido por uma espcie de cerquinha e cortinas que delimitam

    os espaos sagrado do profano e se abrem somente quando a gira aberta

    ao pblico.

    Podemos observar modificaes ao longo do tempo neste espao. Em terreiros

    mais antigos o local dividido para homens e mulheres, que sentam-se em

    lados opostos.

    Atualmente pode ser visto sem esta diviso e homens e mulheres sentam-se

    lado a lado. As crianas geralmente ficam ao lado de seus pais ou

    responsveis. Podemos encontrar tambm, outros cmodos, como por

    exemplo, um quarto para atendimento individualizado, cozinha, vesturio

    Fotografia 1 Espao da Assistncia do TUCTPB

  • 51

    (camarinha), mas estes dependem, muitas vezes, da disponibilidade de espao

    e de recursos financeiros para serem acrescentados. Os banheiros, geralmente

    ficam do lado de fora e so utilizados por todos.

    Terreiro local onde acontecem as giras: o espao destinado ao local das

    giras ao sagrado composto de um salo (que comporte os mdiuns); em

    uma das paredes fica o Cong (altar) com as imagens, flores, guias e demais

    apetrechos utilizados pelos mdiuns. As imagens de santos catlicos so muito

    comuns nos terreiros, pois sincretizam-se com os Orixs cultuados tanto na

    Umbanda como no Candombl.

    O Cong de um terreiro um dos locais mais importantes, pois nele esto

    contidos assentamentos (ou firmezas) dos orixs como tambm das entidades

    Fotografia 2 - Terreiro de Umbanda Caboclo Sete Cachoeiras/Guaianazes

  • 52

    que l trabalham. Em muitos casos identificam a provenincia do(a) chefe da

    casa e das entidades que a comandam.

    Atualmente podemos encontrar terreiros com uma quantidade de imagens

    muito pequena ou quase nenhuma nos seus Congs, dando preferncia a

    objetos representativos das linhas com as quais o(a) chefe do terreiro trabalha,

    como pequenas quedas dgua, flores, quartinhas de assentamento, pedras,

    fogo (atravs das velas ou de tochas).

    Para Arthur Ramos, em O Negro Brasileiro, a estrutura dos terreiros de

    macumba so grosseiros e simples, sem esta teoria de corredores e

    compartimentos dos terreiros gegiorub.

    Fotografia 3 - Cong TUCTPB Festa de Ogum

    Foto Solange Vaini

  • 53

    Acostumado com a organizao dos terreiros de Candombl, v na estrutura

    da macumba uma pobreza oriunda da cultura banto20.

    Mas no se trata aqui de pobreza cultural. No podemos esquecer que as

    casas de Candombl que tem como modelo as casas da Bahia ou a macumba

    do Rio de Janeiro era pouco cultuado em So Paulo. Aqui predominavam as

    formas de culto voltadas ao espiritismo, com fortes tradies banto (que

    20 O movimento de reafirmao da identidade negra, iniciada por volta da dcada de 50 em

    diferentes frentes, como j citado, criou no imaginrio das comunidades religiosas e na sociedade

    nacional a idia de que a etnia iorub a legitima detentora das razes das religies afro-brasileiras,

    em especial do Candombl, quando outras etnias participaram ativamente deste processo, como a

    bantu. A construo da idia de etnia para o povo africano, como mostra Lopes, foi uma criao do

    europeu, sendo essencializadas e naturalizadas, tanto no discurso acadmico como no popular.

    Antes desse perodo enxergavam-se apenas como seres humanos e as trocas aconteciam (tanto

    tecnolgica como cultural) entre todas as tribos, sem esta preocupao de etnia, que acaba por

    territorializar os espaos e as relaes, ocasionando uma super valorizao da cultura iorub em

    detrimento das outras. Ao falar da cultura acstica, em vrias passagens mostra a cultura bantu, em

    especial a acstica, como sendo muito rica, possuindo a faculdade de classificao, e que este

    sistema muito mais racional que o sistema indo-germnico (...) a faculdade de coordenao de que

    d provas a lngua bantu muito desenvolvida e d-lhes notvel clareza. (pag. 206) Mais a frente,

    cita Henri Junod, estudioso da cultura africana que assim descreve a cultura bantu: o esprito bantu

    extremamente sensvel a todas as expresses vindas do exterior e encontra meio de exprimir essas

    impresses em palavras pitorescas que do lngua interesse e cor extraordinrios. A este respeito,

    os bantus so-nos muito superiores e essa a razo pela qual to poucos europeus podem, em boa

    verdade, aprender e empregar convenientemente esses advrbios descritivos (sem falar daqueles que

    os desprezam!). (pag. 213/214) Esta fala, a meu ver, refora a idia de que a cultura bantu, longe de

    ser pobre foi desqualificada e desconsiderada e hoje percebemos nos grupos religiosos

    umbandistas o desconhecimento desta nossa matriz, introduzindo aspectos do candombl acima

    citado, como nico referencial para a cultura umbandista.

  • 54

    cultuavam os mortos) e europias (espiritismo de Kardec) que no tinham

    como tradio espaos que congregavam Orixs e filhos(as) de santo adeptos

    da casa.

    Embora as estruturas fsicas dos terreiros de Umbanda no tenham a

    intrincada organizao dos terreiros de Candombl descritos por diferentes

    autores como o citado acima, possui uma estrutura peculiar, prpria a qualquer

    terreiro de Umbanda. Possuem um espao interno destinado ao ritual,

    vesturios, camarinha, um espao externo destinado assistncia, banheiros,

    casa de exu, independente de sua localizao ou filiao.

    Outro aspecto a considerar diz respeito localizao destes terreiros. A

    Umbanda considerada uma prtica religiosa urbana, seus terreiros ficam

    dentro das cidades e a cidade de So Paulo oferece poucos espaos

    disponveis para comportar um emaranhado de casas ou de corredores; outro

    fator bem mais significativo, diz respeito forma de se cultuar estes Orixs na

    Umbanda. Para os umbandistas os Orixs so entidades divinas, de grande

    fora e luz e que dificilmente incorporam em seus mdiuns. Estes fornecem um

    variado leque de linhas21, das quais as entidades que so incorporadas

    (caboclos, pretos velhos, crianas, marinheiros e etc.) fazem parte, como por

    exemplo, Caboclo da linha de Oxossi, de Xang, etc. Portanto, a ausncia

    21 No item 2 deste captulo apresentarei as linhas de Umbanda e seus desdobramentos.

  • 55

    deste tipo de organizao na estrutura fsica dos terreiros na Umbanda no

    pode caracteriz-la como desprovida de cultura.

    A estrutura administrativa do terreiro

    A estrutura administrativa do terreiro cuida da sua organizao e constituda

    pelo conjunto de cargos administrativos, como presidente, vice-presidente,

    secretrio, tesoureiro, procurador, etc. Cuidam do funcionamento do terreiro,

    preocupando-se com os recursos financeiros disponveis, contribuies (que

    podem ser variadas, como: objetos de culto, dinheiros e outros tipos de

    doaes), scios, documentaes (principalmente se o terreiro participa de

    atividades sociais), enfim, a toda a rotina de uma instituio que necessita se

    manter com recursos prprios.

    Geralmente possuem estatuto e regimento interno e muitos esto

    ligados/cadastrados a alguma federao22, que lhes do suporte jurdico e

    auxilio para as atividades do terreiro, como por exemplo, concesso de licena

    22 Hoje existem vrias instituies com a pretenso de organizar as religies afro-brasileiras, em

    todos os estados da federao, em So Paulo temos: Federao de Umbanda e Candombl do Estado de

    So Paulo, Federao Brasileira de Umbanda, Conselho Nacional da Umbanda do Brasil, entre outras. No site

    Giras de Umbanda e a cultura afro-brasileira esto listadas 15 federaes no estado de So Paulo e o SOUESP -

    Superior rgo de Umbanda do Estado de So Paulo, como entidade que tem por objetivo agregar

    todas elas. A lista com nome e endereo encontra-se em anexo nesta pesquisa

  • 56

    Optei em apresentar a

    nomenclatura utilizada por

    Almeida por tratar-se de um

    umbandista escrevendo para

    umbandistas, mas utilizarei a

    forma mais conhecida de

    identificao dos dirigentes nos

    terreiros: Pai e Me espirituais,

    quando me referir a esta

    hierarquia.

    de abertura dos terreiros, concesso para dias de festa, como a de Yemanj,

    na Praia Grande/SP.

    Por outro lado, alguns terreiros possuem estatuto e regimento, mas no esto

    ligados ou filiados a nenhuma federao, por diferentes razes, como por

    exemplo, ter maior liberdade de suas prticas rituais, no terem que pagar

    mensalidade ou no ter que se comprometer com as questes polticas tanto

    de grupos umbandistas como da poltica regional ou nacional.

    A estrutura espiritual

    J a estrutura espiritual no deve se preocupar com as questes

    administrativas (materiais), embora muitas vezes encontremos terreiros que se

    organizam de forma diferente, acontecendo de uma pessoa exercer dois

    cargos dentro do terreiro.

    Os cargos hierrquicos seguem a

    seguinte ordem, sempre em posio

    decrescente: babalorix (pai-grande) ou

    ialorix (me-grande), pai-pequeno ou

    me-pequena, chefes de gira-pblica e de

    treinamento, og, chefes de cambono e

  • 57

    Defumao: queima de ervas

    aromticas em um recipiente

    prprio (turbulo) para diluio de

    energias negativas. As ervas mais

    conhecidas nas defumaes dos

    terreiros so: alecrim, benjoim,

    alfazema e incenso. Exemplo de

    ponto cantado para defumao:

    Defuma com as ervas da Jurema Defuma com arruda e guin Alecrim, benjoim e alfazema Vamos defumar filhos de f

    samba, mdium de trabalho, mdium em treinamento (em desenvolvimento),

    cambono ou samba (ALMEIDA, 2003).23

    Desenvolvimento da Gira

    No geral a gira tem incio por volta das 20h, iniciando com os mdiuns

    saudando o Cong e os demais componentes, sendo que o/a pai/me

    saudado(a) em primeiro lugar, seguido pelo(a) pai/me pequeno(a), se o

    terreiro utilizar esta organizao

    hierrquica.

    Faz-se a defumao, sempre ao som dos

    pontos cantados e dos atabaques. Aps

    este momento, so cantados pontos de

    abertura da gira, saudao das sete

    linhas, e saudao a linha de esquerda

    23 Esta organizao tambm no um consenso entre os terreiros de Umbanda. A hierarquia ou a

    nomenclatura utilizada para organizar o corpo medinico varia de casa para casa. Conhecendo este

    aspecto, solicitei para os integrantes da lista de discusso (virtual) sobre a umbanda da qual

    participo, que os membros dissessem de que forma suas casas se organizavam, qual a nomenclatura

    utilizada. Embora a lista seja composta por aproximadamente 500 internautas umbandistas, no

    obtive nenhuma resposta. Este silncio pode ser interpretado como o no entendimento da

    solicitao ou que este mais um tema controverso entre os umbandistas, ou seja, todos tm uma

    maneira de se organizar, mas colocar isso publicamente, numa lista de discusso poderia gerar novos

    confrontos.

  • 58

    Exus e Pomba Gira, que podem variar de acordo com a casa.

    A linha que prevalecer naquele dia cantada com maior nfase e as

    entidades so chamadas. Os mdiuns incorporam cada um sua entidade,

    sempre depois do/a pai/me. normal que neste momento j estejam

    incorporados, geralmente com a entidade que d nome ao terreiro e que

    comanda a gira.

    Na gira descem espritos, genericamente chamados de guias (...) nem todos descem

    para trabalhar, para atender os aflitos que vem procurar lenitivo para seus males (...)

    nas entrevistas chamadas de consultas. (NEGRO, 1996)

    Dentro do terreiro os mdiuns posicionam-se em fileiras, sendo que homens e

    mulheres ficam em lados opostos. Quando h uma grande quantidade de

    mdiuns na casa, estes se posicionam de maneira um pouco diferente com os

    cambonos e mdiuns em desenvolvimento enfileirados atrs dos mdiuns de

    incorporao e que j do consultas, formando duas fileiras. Alm desta

    disposio, o lugar que ocupam na fila, depende do grau de iniciao dos

    mdiuns, ou seja, depende do seu grau de aprendizado e/ou da posio que

    ocupam na hierarquia do terreiro.

    Em terreiros mais antigos, como o que meus pais freqentaram, esta forma de

    organizar os filhos, era tambm a maneira como iam conquistando, atravs da

    aprendizagem, postos dentro do terreiro. Ao mdium de incorporao que

    iniciava seu processo de desenvolvimento no era permitido conversar ou dar

    passes para a assistncia. Quando atingia um grau de desenvolvimento maior,

  • 59

    podia ser designado para ficar na porteira (local por onde entram as pessoas

    para dentro do terreiro); conforme seu grau de desenvolvimento, mdium e

    entidade iam conquistando outros postos, podendo dar passes, depois

    consultas, at chegar a

    padrinhos/madrinhas e/ou pai/me

    pequenos.

    Aps a incorporao dos mdiuns as

    pessoas da assistncia so chamadas

    para tomar os passes ou passar pelas

    consultas.