PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO PUC/SP
Solange Salussolia Vaini
O Sagrado ganha Espao:
Um estudo de caso sobre a Umbanda
DOUTORADO EM CINCIAS SOCIAIS
SO PAULO 2008
PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO PUC/SP
Solange Salussolia Vaini
O Sagrado ganha Espao:
Um estudo de caso sobre a Umbanda
Tese apresentada Banca Examinadora da Pontifcia
Universidade Catlica de So Paulo, como exigncia
parcial para obteno do ttulo de Doutor(a) em
Cincias Sociais sob a orientao da Professora
Doutora Maria Helena Vilas Boas Concone.
DOUTORADO EM CINCIAS SOCIAIS
SO PAULO 2008
Banca Examinadora
________________________________________________
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Dedicatria
Aos meus pais Iridia e Flavio
Exemplos de seriedade, compromisso, dedicao
E amor a Umbanda!
Aos meus Pais Espirituais
Caboclos Trs Penas e Pena Azul
Exemplos de humildade, pacincia e determinao!
Agradecimentos
Ao CNPq e ao Programa de Ps- Graduao em Cincias Sociais da PUC/SP
por ter me proporcionado uma bolsa de estudos, sem a qual no teria
condies de realizar esta pesquisa;
Maria Helena Vilas Boas Concone, minha orientadora, por ter aceito
novamente o desafio de falar sobre a Umbanda, numa poca em que falar de
religio parecia estar fora de moda!
s entidades Caboclo Trs Penas e Pena Azul pela autorizao em utilizar os
Cadernos de Registros, com os quais foi possvel reconstruir a memria do
grupo e da Umbanda!
Ao Caboclo Cacipor (especialmente) e a todas as entidades que me ajudaram
durante estes cinco anos de pesquisa a conquistar a tranqilidade necessria
para poder escrever!
Aos meus pais Flavio e Iridia Vaini pelas longas conversas aos ps da mesa
tomando caf, conversando, brigando e recordando os momentos vividos na
Umbanda!
A cada mdium, filho(a) do terreiro, que de alguma forma contribuiu para que
esta pesquisa fosse concluda, como Ilia Ruiz, pelas fotos cedidas, Swamir
Salussolia pelas conversas no stio, Nelza Fedalto que relembrou a trajetria
da famlia na Umbanda, ao Rene Ruiz pelos constantes questionamentos sobre
o grupo, ao Marcelo Oliveira pelas longas conversas sobre outras prticas da
Umbanda, a minha irm Dbora Vaini por ter se reencontrado com a Umbanda,
ao Vinicius Carneiro pela traduo do resumo e a todos e todas que
participaram da construo da memria do grupo e da Umbanda!
toda minha famlia pelo esforo de tentar compreender o que escrever uma
tese... e de aceitar meus longos distanciamentos!
todos os(as) amigos(as), que de alguma forma me auxiliaram a fincar os
ps no cho, com suas sugestes, crticas, alegrias...
Gosto de acreditar, como dizem os umbandistas, que nenhuma folha cai por
acaso..., creio ento que durante estes cinco anos de pesquisa todas as
folhinhas que apareceram no meu caminho contriburam para que eu pudesse
atravessar o caminho... se mais fcil ou mais difcil, no sei... mas foi o meu
caminho!!
Resumo
Esta pesquisa teve como objetivo identificar a partir da memria de indivduos
umbandistas, de um terreiro especfico, situaes de aprendizagens e se estas
poderiam ser consideradas prticas emancipadoras e humanizadoras do
sujeito umbandista. A partir dos Cadernos de Registro existentes no Terreiro
objeto desta pesquisa, foi possvel reconstruir a memria da Umbanda e do
grupo que a pratica, bem como os processos de aprendizagem prprios da
Umbanda. As primeiras hipteses levantadas relacionavam-se com a prpria
religio, ou seja, de que a Umbanda como movimento religioso que agrega
indivduos das mais diferentes origens em um mesmo espao, posiciona-se
frente realidade de forma crtica e transformadora, levando mdiuns e
consulentes a constantes reflexes.
Palavras-chave: Umbanda memria aprendizagem
Abstract1
The objective of this project was to collect and analyses memories of
umbanda persons, from as specific terreiro. We focused on leave and
learning situations of that space, and if these experiences could be considered
emancipative and human being practices of this umbandista unique person.
Based on the written books of this specific terreiro, we were able to rebuild the
memories of Umbanda and its group, moreover its umbanda learning
processes. Some initial hypothesis were related with religion, which means that
Umbanda as a religious movement is able to put together too different people
in the same place. The reality that this group shares, is to create a criticism and
individual reformations, around mediuns and patients, in order to personal
reflections.
Key-words: Umbanda memories learning process
1 Alguns termos em portugus, que so especficos sobre a Umbanda, no encontram
correspondncia no ingls.
1
SUMRIO
SUMRIO ____________________________________________________ 1
ndice de Fotografias ___________________________________________ 6
ndice de Figuras ______________________________________________ 8
INTRODUO _________________________________________________ 9
Motivao _________________________________________________________ 9
Arquitetando o itinerrio ____________________________________________ 17
Imagens do itinerrio ______________________________________________ 20
Construindo o roteiro ______________________________________________ 24
Meu Olhar ________________________________________________________ 30
Para a Educao _____________________________________________________ 30
Para a Humanizao e a Emancipao ___________________________________ 33
Para a Prxis e a Prxis Umbandista ____________________________________ 34
E A UMBANDA ISSO... _______________________________________ 36
Organizao da Umbanda ___________________________________________ 43
2
A estrutura fsica de um terreiro _____________________________________ 49
A estrutura administrativa do terreiro _________________________________ 55
A estrutura espiritual ______________________________________________ 56
Desenvolvimento da Gira ___________________________________________ 57
A vestimenta a roupa na Umbanda __________________________________ 60
Os dias da Gira ___________________________________________________ 62
Entidades e Orixs As linhas da Umbanda ___________________________ 66
Pontos cantados __________________________________________________ 78
Pontos riscados ___________________________________________________ 80
As Obrigaes na Umbanda _________________________________________ 82
ALGUMAS CONTRIBUIES TERICAS __________________________ 86
Sobre a Memria __________________________________________________ 86
Sobre a Aprendizagem e o Terreiro ___________________________________ 93
Sobre os Cadernos de Registro: oralidade e a escrita __________________ 103
A oralidade e a escrita ___________________________________________________ 110
Sobre a prxis medinica: a aprendizagem na Umbanda ________________ 117
Sobre o conceito de Trabalho na Umbanda ___________________________ 121
3
SOBRE O TERREIRO: Um Pouco da Histria _____________________ 126
Consideraes preliminares ________________________________________ 126
Localizao do Terreiro ___________________________________________ 128
Imigrantes e Benzedeiras __________________________________________ 130
A Tenda Esprita Caboclo Pena Branca e Joozinho das Sete Encruzilhadas _______ 139
As Giras Pblicas e Particulares ____________________________________ 143
As Aulas ________________________________________________________ 143
As Obrigaes ___________________________________________________ 145
As Festas _______________________________________________________ 147
As Funes no TUCTPB ___________________________________________ 148
Os Mdiuns ___________________________________________________________ 149
Os Cambonos _________________________________________________________ 150
Ogs e Curimba ________________________________________________________ 151
O TUCTPB, o Bazar da Pechincha e a Comunidade Local _______________ 153
Legalidade ou Clandestinidade _____________________________________ 158
O SAGRADO DE CASA EM CASA _______________________________ 161
Giras Pblicas e Particulares _______________________________________ 166
4
As Festas _______________________________________________________ 178
As Obrigaes ___________________________________________________ 187
As Reunies _____________________________________________________ 195
As aulas ________________________________________________________ 204
O SAGRADO NA VARANDA ___________________________________ 208
Giras Pblicas e Particulares _______________________________________ 209
As Festas _______________________________________________________ 234
As Obrigaes ___________________________________________________ 244
As Aulas ________________________________________________________ 249
As Reunies _____________________________________________________ 256
O SAGRADO GANHA ESPAO _________________________________ 266
Algumas consideraes sobre o grupo neste perodo __________________________ 272
Giras Pblicas e Particulares _______________________________________ 279
Primeiro momento ______________________________________________________ 279
Segundo Momento _____________________________________________________ 295
As Festas _______________________________________________________ 301
As Obrigaes ___________________________________________________ 308
5
As Aulas e Reunies ______________________________________________ 312
Estatuto e Regimento Interno: elaborao ___________________________________ 322
CONSIDERAES... __________________________________________ 328
BIBLIOGRAFIA ______________________________________________ 345
6
ndice de Fotografias
Fotografia 1 Espao da Assistncia do TUCTPB 50
Fotografia 2 - Terreiro de Umbanda Caboclo Sete Cachoeiras/Guaianazes 51
Fotografia 3 - Cong TUCTPB 52
Fotografia 4 TUCTPB 61
Fotografia 5 - Oferenda Para Exu - Santurio Nacional de Umbanda 28/12/2007 83
Fotografia 6 - Santurio Nacional de Umbanda 84
Fotografia 7 - Convite de Inaugurao da Tenda de Oxal, amor e Caridade - 1958 135
Fotografia 8 Trabalho na Praia Grande 1958 135
Fotografia 9 - Festa de Cosme e Damio 1975 148
Fotografia 10 - Escola Estadual P. G. Joo Domingues de Oliveira - Embu-Guau 153
Fotografia 11 - Sala de aula da Escola - foto de Solange Vaini 156
Fotografia 12 - Trabalho na Praia de Perube 1988 Imagem cedida por Iridia Vaini e
Digitalizada em 28/11/2007 por Solange Vaini 180
Fotografia 13 - Trabalho na Praia de Perube 1988 184
Fotografia 14 - Festa de Oxossi na Varanda 1989 209
Fotografia 15 - Escola de Curimba Felix Nascentes Pinto 1989 212
7
Fotografia 16 - Festa de Oxossi na Varanda 1991 Imagem cedida por Ilia Ruiz 234
Fotografia 17 - Festa de Cosme e Damio na Varanda 1992 Foto de Solange Vaini 240
Fotografia 18 - Festa de Cosme e Damio na Varanda 1997 241
Fotografia 19 - Incio da construo do Terreiro 1998 Filhos(as) tentando carpir o mato, com a
participao das crianas. 266
Fotografia 20 - Terreiro em construo - 1998 270
Fotografia 21 - Operao realizada em dia de trabalho 2006 297
Fotografia 22 - Trabalho na Praia de Perube 2000 302
Fotografia 23 - Aps os trabalhos o Lanche coletivo! 303
Fotografia 24 Oferenda Oxossi 2004 304
Fotografia 25 Festa em Homenagem a Cosme e Damio. 305
Fotografia 26 - Festa de Cosme e Damio 2006 306
Fotografia 27 Homenagem ao Caboclo Trs Penas 308
8
ndice de Figuras
Figura 1 Caderno de Registro de 24/10/1976 161
Figura 2 Caderno de Registro 27/01/1984 170
Figura 3 Caderno de Registro 18/12/1981 182
Figura 4 Caderno de Registro 26/06/1985 198
Figura 5 Caderno de Registro14/06/1997 228
Figura 6 Caderno de Registro de 24/04/1993 237
Figura 7 Caderno de Registro de 03/10/1992 238
Figura 8 Caderno de Registro de 02 maro de 1999 246
Figura 9 Caderno de Registro de maro 2003 285
Figura 10 Caderno de Registro de 11/02/2000 Relao das ervas colhidas para o Banho 311
9
INTRODUO
Tomemos cuidado para no misturar demais a cincia com o
que dizem os textos religiosos. reconfortante e satisfatrio
que haja convergncia. Mas no penso que seja preciso
argumentos cientficos para provar uma doutrina religiosa. As
religies no precisam disso.
Trinh Xuan Thuan
(THUAN, 2002)
E a Umbanda isso, a Umbanda no uma religio
acadmica, no uma religio codificada; ela feita do povo e
para o povo, dentro da sua prpria crena, sua prpria cultura,
dentro de seus prprios anseios e do seu prprio nvel de
espiritualidade.
Painho (Chico Ansio)1
Motivao
inevitvel para mim2 falar da Umbanda sem pensar ou me referir a um
passado recente, mais especificamente a minha infncia e adolescncia. Todas
as vezes que falo sobre ela, as recordaes sobre as noites vividas nos
1 (LIGIRO, 2000, p. 78)
2 Tomei a liberdade de utilizar a primeira pessoa do singular para explicar um pouco o processo de
construo da memria, mas devemos pensar este processo de forma geral no indivduo e na
sociedade da qual faz parte.
10
terreiros me acompanham. Antes mesmo da escola, acho que o terreiro foi
primeira forma de socializao externa por que passei.
Meus pais so umbandistas desde moos, embora a famlia venha de uma
tradio catlica, misturada verdade com o kardecismo, mas umbandistas
mesmo foram meus pais que iniciaram a trajetria.
Por parte da famlia paterna, minha av j freqentava reunies de mesa
branca e reunies em casa de conhecidos com a prtica da incorporao de
caboclos, pretos velhos e crianas, mas sem a denominao de Umbanda.
Minha av tambm era uma tima benzedeira, procurada por muitos
moradores dos arredores onde morava No bairro da Vila Mariana, em So
Paulo.
J a famlia de minha me, seguia a tradio catlica, por parte de minha av.
Meu av dizia-se comunista e ateu. Um fato curioso que quando os filhos
nasciam ia biblioteca procurar um nome para ele nas enciclopdias, para
fugir aos nomes de santos que eram comuns poca.
O resultado foi curioso. Os nomes diferentes3 e realmente incomuns
produziram uma histria interessante: quando minha av resolve batizar as trs
primeiras filhas (escondida do marido, que no permitiu que as crianas fossem
3 Os nomes por ordem de nascimento: Ilia, Ilithya, Iridia, Swamir, Ileonisa.
11
batizadas) o padre da igreja local, recusa-se dizendo que os nomes eram
pagos e s realizaria o batismo trocando os nomes das meninas por nomes
de santas da igreja catlica. As meninas hoje uma delas minha me foram
ento batizadas com os nomes de: Terezinha, Maria Aparecida....
Muitos anos mais tarde que a famlia de minha me adota tambm o
kardecismo como prtica religiosa, mas sem deixar de se dizerem catlicos,
praticando um kardecismo de mesa, pois faziam as sesses em casa com a
incorporao de guias, como caboclos, preto-velhos e crianas, que vinham
para conversar, dar passes e fazer curas. Nesta poca meu av j havia
deixado de ser ateu e comunista, participando ativamente das reunies,
cedendo inclusive sua casa para os encontros.
Meus pais acabam se conhecendo em um terreiro de Umbanda. Casam e
quando nascemos eu e minha irm afastam-se durante alguns poucos anos
das prticas umbandistas, pois achavam que ir ao terreiro assiduamente
poderia ser penoso para as filhas pequenas.
Voltam a freqentar a Umbanda quando minha irm, ainda pequena comea a
apresentar alguns problemas de sade, que so logo atribudos ao
afastamento do casal de suas obrigaes espirituais.
Assim, retornam a Umbanda. E aqui comeam minhas lembranas sobre os
terreiros que freqentamos, ou melhor, sobre a Umbanda e o presente projeto
12
de pesquisa. Por isso, disse que difcil falar sobre a Umbanda, sem falar
tambm da minha prpria trajetria e das lembranas que tenho sobre ela.
Minha memria construda a partir de minhas experincias pessoais,
auxiliada por uma memria social. Se estou inserida na sociedade, se fao
parte de diferentes grupos sociais, construo a partir deles e nas experincias
vivenciadas neles uma existncia social. Quando evoco estas experincias, no
caso minha experincia na Umbanda, vividas em espao e tempo nicos, estas
surgem em forma de lembranas ou memrias que s podero ser
compreendidas se pensadas e analisadas, em relao ao contexto do
cotidiano.
As lembranas que tenho sobre este cotidiano, me dizem que tanto fui
influenciada como influenciei este espao e tempo nicos. Quando penso nas
experincias que tive ao conviver com as pessoas nos terreiros desde muito
cedo aos oito anos dormia nos bancos do terreiro que meus pais
freqentavam, esperando a gira terminar! percebo o quanto estas
experincias ainda esto vivas em minha memria, e o quanto ainda me
recordo de homens, mulheres, crianas, cambonos, mdiuns, guias... que
construram parte de minha histria pessoal e social.
Assim, falar sobre a Umbanda, tendo como objeto de pesquisa a histria do
prprio grupo, um dos aspectos que diferenciam este trabalho de muitos
outros, ou seja, uma umbandista falando da prpria religio, tendo como objeto
de pesquisa o grupo do qual faz parte.
13
Mas, mais do que falar de um grupo especfico ou da prpria famlia, este
trabalho pretende refletir, analisar e identificar quem o sujeito umbandista a
partir de sua formao na Umbanda, ou seja, do processo de ensino
aprendizagem por que passa este indivduo, como atua na sociedade, na
comunidade em que vive e de que forma a Umbanda contribui para a formao
de uma identidade crtica e transformadora.
Para este percurso vou utilizar dois recursos
bsicos de obteno de dados: registros
escritos e eventualmente entrevistas com
pessoas que fazem parte do terreiro, tanto os que vestem o branco, como da
assistncia.
A escolha deste terreiro se deu por motivos muito especficos: em primeiro
lugar pela facilidade de acesso, afinal de contas fao parte do grupo, e no
podemos esquecer que o acesso fcil ao objeto de pesquisa essencial para
sua realizao, portanto uma escolha razovel; em segundo lugar pelos
registros escritos existentes que podem resultar em material riqussimo de
anlise sobre a prtica da Umbanda, mesmo que estes registros tenham sido
feitos por minha me e durante muitos anos por mim mesma. Isto no significa
que ficarei isenta de problemas. Embora estar prxima ao grupo do qual
pretendo desenvolver a pesquisa se apresente como uma facilidade, pode
tambm representar um fator de complicao.
Estes registros so feitos desde
1970, ou seja, trs dcadas de
registros disposio para
consulta e anlise.
14
Complicao, pois os sujeitos, ao conhecerem a pesquisadora, podem se sentir
constrangidos a dar depoimentos pessoais sobre a Umbanda e sobre o terreiro,
por exemplo, como tambm os sujeitos escolhidos para as entrevistas
apresentarem-se inadequados do ponto de vista de informantes, por no se
lembrarem, por serem tmidos demais ou por no possurem as informaes
necessrias pesquisa.
Posso ainda correr o risco de no ser imparcial nas reflexes e anlises
elaboradas, por se tratar de um grupo o qual conheo muito bem, mas, acredito
que a objetividade cientfica to cobrada no meio acadmico, no ficar
jamais isenta desta pesquisa, pois at mesmo na escolha do tema estar l
subjetividade. Acredito que uma pesquisa deva primar pela objetividade do
pesquisador e ser este, o mais rigoroso possvel com os dados colhidos, mas a
pesquisa no estar totalmente isenta de sua subjetividade.
Portanto, ter a Umbanda como objeto de pesquisa apresenta-se como uma
tarefa desafiadora, visto a familiaridade que tenho com ela. So dcadas
vividas no interior da religio, e torn-la um objeto de estudo, ainda causa-me
certo estranhamento.
Mas, justamente por esta familiaridade que venho, cada vez mais, afirmando
a necessidade de falar dela, descortinando nas suas intrincadas redes de
relaes, sua histria, que a histria de indivduos que fazem parte desta
cidade e que a tem como espao religioso, social e educacional.
15
Embora acredite que minha experincia nos terreiros tenha sido minha primeira
forma de socializao, minha existncia social se deu tambm a partir de
outras experincias. Como a de ser professora. Atuei durante muitos anos em
escolas Pblicas Municipais de So Paulo e em diferentes espaos, como
professora, coordenadora pedaggica, pedagoga... Meu mestrado na rea
educacional, aliado ao trabalho na escola, contribui para a construo de um
conhecimento ancorado na pesquisa e na reflexo da realidade que me
cercava.
A consolidao de um pensamento crtico, voltado perspectiva de
humanizao e emancipao dos sujeitos, motivou a elaborao desta
pesquisa. Ter como hiptese que a Umbanda pode ser propiciadora de
momentos de reflexo, de construo de conhecimento atravs de processos
de educao dentro dos terreiros estimulou-me a juntar estes dois mundos.
Os conceitos de emancipao, humanizao e transformao social
construdos no espao e tempo vividos na escola, ou melhor, na educao,
propiciou a reflexo sobre os processos educacionais acontecidos e vividos
dentro de minha experincia na Umbanda. Portanto, ao falar sobre estes
processos de aprendizagem, de ensino dentro do terreiro, estarei utilizando os
referenciais de construo do conhecimento para a emancipao do sujeito,
construdo na minha experincia com a educao.
A utilizao destes conceitos marca alm da posio epistemolgica, uma
posio poltica, tomada a partir do olhar de quem est inserida no grupo social
16
e do olhar da pesquisadora (papis como atora social), pois explicitam meu
compromisso com a prxis transformadora, por isso histrico-social, tanto na
Educao como na Umbanda, enquanto possibilidades reais de aes de
interveno social que constri sujeitos humanos.
Concordo com Geertz, (2006, pg. 10) que aponta as mudanas sociais
ocorridas nos ltimos anos, lembrando que a religio na verdade nunca
desapareceu, mas sim que as Cincias Sociais desviaram seus estudos para
outros campos de anlise.
As transformaes sociais, diz ainda, tm modificado as formas de relaes e
as religies hoje possuem novas configuraes, perdendo o sentido os estudos
voltados para indicadores e estatsticas, como freqncia a cultos, muitas
vezes numa repetio exagerada do que j foi dito, com produo exacerbada
de teorias distanciadas da prtica (cotidiana) e que os pesquisadores deveriam
se preocupar hoje em desvendar a qualidade do esprito: quadros de
percepo, formas simblicas, horizontes morais.
A nova situao exige uma nova conceituao da religio e de seu papel na
sociedade como tal. Bem ou mal, a construo de vises de mundo com
base na coliso de sensibilidades (e a construo de sensibilidades a partir do
choque de vises de mundo o processo circular) que preciso apresentar e
compreender, no momento atual.
17
Arquitetando o itinerrio
Geralmente a etapa inicial de um projeto de pesquisa diz respeito verificao
do que j foi escrito sobre o tema pretendido, ou seja, procede-se pesquisa
bibliogrfica para que o pesquisador tenha uma idia do que existe produzido e
identificar as possibilidades de sua prpria pesquisa. Para minha surpresa,
esta dificuldade surgiu, quando iniciei a pesquisa bibliogrfica em livrarias e
sebos. Encontrar e/ou localizar o tema procurado tornou-se uma tarefa rdua,
para no dizer quase impossvel.
Tente ir a uma livraria e buscar na prateleira dedicada ao tema religio algum
livro que fale sobre a Umbanda. Com certeza voc ir achar tudo ou quase
tudo sobre catolicismo, islamismo, budismo, taosmo... Kardecismo? Voc
encontra uma diviso especfica intitulada Espiritismo. Nos sebos a situao
no diferente.
E sobre a Umbanda, onde encontramos? No ser difcil imaginar onde
encontraremos alguma coisa. V prateleira intitulada misticismo,
esoterismo, magia... L encontrar muita coisa sobre a Umbanda. No s
livros escritos por umbandistas, mas tambm por intelectuais e pesquisadores,
como Ivone Maggie (Guerra de Orix) e Reginaldo Prandi (os Candombls de
So Paulo entre outros) e outros.
Entre um sebo e outro e vrias caminhadas entre as prateleiras garimpando
ttulos, as perguntas iam surgindo. Por que a consideram magia e no religio?
18
um Culto? Uma Seita? Afinal de contas o que a magia? O que religio? E
a Umbanda, como podemos defini-la? Identific-la? Quais so suas
caractersticas? Aprende-se a ser umbandista? Quais so as prticas
desenvolvidas nos terreiros de Umbanda e que proporcionam ao indivduo
construir saberes, como tambm apropriar-se deles?
Sobre a bibliografia encontrada4 posso dizer que to diversificada quanto s
prticas encontradas. Muitas vezes o termo Umbanda utilizado como ttulo
para descrever uma srie de simpatias ou magias das mais diferentes
naturezas. Voc poder encontrar nas prateleiras e nos contedos das
publicaes, receitas mgicas que vo desde curar uma diarria at encontrar
ou amarrar o homem/mulher de sua vida.
Estes manuais utilitrios encontrados em grande quantidade aparecem em
maior nmero nas ultimas dcadas, suprindo necessidades que surgem com a
modernidade, como por exemplo, solues rpidas e eficientes e que voc
mesmo pessoa comum pode realizar, sem a interferncia ou a mediao de
outra pessoa com o sobrenatural.
As publicaes mais antigas diferem consideravelmente das mais novas, pois
trazem um contedo voltado histria da Umbanda, da organizao do ritual, e
4 Estou me referindo aqui, as publicaes escritas por umbandistas e no produes acadmicas
frutos de pesquisas sistematizadas nas universidades.
19
principalmente da conduta moral/espiritual dos umbandistas... Tenta de alguma
forma convencer o leitor dos seus dogmas, como o livro Catecismo de
Umbanda: tudo sobre a doutrina da f de Umbanda (Legtimo e Completo)5,
produzido em forma de perguntas e respostas simples, informando o leitor
sobre diferentes aspectos da religio.
Mas nenhuma publicao encontrei, tanto acadmica quanto umbandista que
tratasse diretamente da questo por mim levantada: de que forma se aprende a
ser umbandista? Existe um processo educacional que forme o sujeito
umbandista? Este processo contribui para a formao de um sujeito
humanizado, emancipado, que pense sua realidade criando e recriando-a?
Embora existam muitas publicaes umbandistas, que descrevem seus rituais,
sua organizao espiritual (orixs/guias/entidades), e do orientaes morais,
estes escritos influenciam as prticas cotidianas dos terreiros, marcados por
forte tradio oral? Considerando que os saberes sagrados so transmitidos
aos iniciados oralmente, na prtica costuma no ser permitido o registro
escrito, tendo como orientao guardar tudo de cabea, me pergunto: de que
forma estes conhecimentos so criados e recriados? Como estes
5 Encontrei este livro em um sebo no centro de So Paulo. No traz a data de sua publicao. O autor
ou organizador como diz a Editora Clepatra, ficou a cargo do escritor M. A. Camacho (...) isto
porque, conhecendo a fundo os mais intricados problemas de Umbanda, Camacho era o mais
indicado para tal realizao. Segundo consta na contra capa esta edio, a 8, foram editadas 60 mil
cpias.
20
conhecimentos produzem uma prxis umbandista, capaz de criar e recriar no
s a prpria religio, mas os sujeitos que a praticam, de forma que estes
possam dialogar com sua realidade criativamente?
A sociedade tem se modificado ao longo das ltimas dcadas, e os adeptos da
Umbanda tambm. Hoje as pessoas que freqentam os terreiros, possuem um
grau de escolarizao que no comeo do sculo passado no existia,
entretanto, os ensinamentos transmitidos oralmente, continuam hoje. Dentro
dos terreiros se privilegia a transmisso dos conhecimentos pela prtica
emprica e a oralidade.
O umbandista convive com dois mundos, o da oralidade e o da escrita, mas no
espao sagrado dos terreiros, o que prevalece o mundo da oralidade, da
transmisso oral dos saberes e estes so independentes, quase no dialogam
quando se trata da transmisso destes saberes. A aprendizagem se d a
partir da observao e da prtica.
Estas prticas, que acontecem dentro dos terreiros e que ensinam o sujeito a
ser um umbandista que me interessam enquanto objeto de pesquisa, de
conhecimento. O confronto entre estes dois mundos, que vo constituindo o
sujeito, e esta constituio que me interessa do ponto de vista da pesquisa.
Imagens do itinerrio
Como podemos perceber, a diversidade acaba por produzir uma
heterogeneidade de entendimentos e de conceitos sobre a Umbanda que os
21
prprios umbandistas esto longe de conciliar. H uma srie de ramificaes
ou denominaes, como mstica, esotrica, branca, lisa, quimbanda,
cabalstica, popular, inicitica, filosfica, kardecista, cruzada, racional,
carismtica...
Como movimento religioso nos aspectos sociolgicos, antropolgicos e
psicolgicos j foi explorado e existem diferentes pesquisas sob diferentes
olhares para o fenmeno. A educao vista sob as concepes religiosas,
principalmente a catlica, tambm foi explorada em diferentes ocasies e reas
do conhecimento, mas pouca coisa h sobre as relaes dos processos
educativos (formais e no formais) com as religies afro-brasileiras.
Ao iniciar as primeiras incurses sobre o tema, buscando conhecer o que j
havia sido produzido sobre Educao e Umbanda como apontei antes,
nada encontrei. Hoje, quase cinco anos aps estas primeiras investidas, ainda
encontramos poucas pesquisas sobre o tema, embora j comecem a aparecer.
Uma delas Educao em terreiros e como a escola se relaciona com as
crianas que praticam candombl, de Maristela Gomes, pela Pontifcia
Universidade Catlica do Rio de Janeiro, sob a orientao de Vera Candau,
22
uma das poucas de que tomei conhecimento.6 A autora fala das crianas e de
sua relao com candombl, e da relao que estas tm com a escola.
A pesquisadora que entra em contato com o mundo religioso do Candombl
atravs de uma reportagem, tece um registro sobre as relaes destas crianas
com a religio de modo sensvel e belo, denunciando o despreparo e o
preconceito da escola (e dos professores7) para lidar com o diferente e no caso
com as religies afro-brasileiras.
Embora a pesquisadora se debruce sobre as relaes estabelecidas no campo
religioso do Candombl, no pode deixar de ser citada, j que seu tema se
aproxima pelo menos em ttulo daquilo que pretendemos desvendar. Outros
trabalhos com a mesma temtica no foram encontrados.
As primeiras hipteses levantadas sobre a questo da educao na
perspectiva umbandista relacionam-se com a prpria religio, ou seja, de que a
Umbanda como movimento religioso que agrega indivduos das mais diferentes
6 A autora faz referncia dificuldade de encontrar pesquisas e/ou trabalhos que tenham como
tema a questo da educao e das religies afro-brasileiras; em sua pesquisa tambm encontrou
apenas um trabalho, na Bahia, que tem como tema a educao e o currculo na perspectiva da
educao pluricultural e foi realizada na comunidade Oba Biyi.
7 Stela Caputto entrevistou apenas professores da disciplina de Religio, que no Rio de Janeiro est
inserida no currculo escolar.
23
origens em um mesmo espao, posiciona-se frente realidade de forma crtica
e transformadora, levando mdiuns e consulentes a constantes reflexes.
Neste sentido a Umbanda poderia caracterizar-se como uma prtica religiosa
para a transformao social, uma vez que as constantes reflexes
desencadeadas aos seus freqentadores sejam mdiuns e/ou consulentes
podem proporcionar rupturas das vises de mundo do indivduo, levando-o a
re-constru-lo.
Considerar a Umbanda como prtica transformadora que trabalha para a
humanizao e emancipao dos sujeitos sociais em aes coletivas supe
que, se estas prticas participam da constituio do sujeito, podem contribuir
para a efetivao de relaes tambm transformadoras da realidade.
Objetivos
Assim, os objetivos desta pesquisa, so:
Identificar a partir da memria de indivduos umbandistas, de um terreiro
especfico, situaes de aprendizagens, que possam ser consideradas
como uma prxis umbandista;
Analisar a natureza destas prticas sob a perspectiva da emancipao e
humanizao do sujeito;
Identificar se a prxis umbandista pode ser considerada uma prxis
transformadora do indivduo, tendo como perspectiva sua humanizao;
24
Construindo o roteiro
Ter o conhecimento como produto das prticas humanas, construdo na
interao do sujeito com o mundo, implica pensar a Umbanda como face desta
prtica, possibilitando pens-la como prxis constitutiva e transformadora.
Pens-la estimuladora de uma educao crtica, que promova esta
transformao uma tarefa desafiadora e instigante, pois como foi dito
anteriormente, este aspecto, dentro dos estudos sobre as religies afro-
brasileiras e tambm da educao, ainda no foi refletida e sistematizada.
Dizer que a educao se d em diferentes instncias e de diferentes formas,
fazendo parte das esferas social, cultural, poltica, econmica e religiosa,
falar da educao como um processo de formao do indivduo, historicamente
datado individual e coletivamente construdo na interao com outros
sujeitos. Assim, a abordagem dos processos educacionais umbandistas, pode
ser pensada como movimento dinmico, considerando a diferena e o conflito
como faces da constituio do sujeito social.
Para pensar o processo educacional dentro do terreiro, devo pensar o conceito
de educao como processo, considerando que o currculo entendido aqui
como uma ao, uma prtica social e cultural que constri conhecimento/s
possu dinamicidade, interatividade, construo coletiva de pressupostos
comuns ao grupo, que o constri e o pe em prtica.
25
Falar em currculo na rea religiosa pode parecer estranho num primeiro
momento, mas o conceito pode auxiliar a reflexo sobre os processos de
aprendizagem que ocorrem dentro do terreiro. Para esta reflexo tomarei como
uma das referncias o educador espanhol J. Gimeno Sacristn que tem como
objeto de estudo o currculo e suas prticas. Em seu livro Currculo, uma
reflexo sobre a prtica, coloca que o currculo uma prxis antes que um
objeto esttico emanado de um modelo coerente de pensar a educao ou as
aprendizagens. (SACRISTN, 2000) Se temos a educao como processo,
em constante movimento, podemos aceitar a definio que Sacristn nos
oferece sobre o currculo e utiliz-la como uma construo social que facilita o
acesso ao conhecimento e como uma forma particular de entrar em contato
com cultura, no caso a umbandista.
A idia de que existem processos educacionais nos terreiros e que estes
podem propiciar a reflexo crtica, orientar meu olhar para o papel da
oralidade e da escrita neste processo e de que forma estes dois mundos se
encontram e se articulam no espao sagrado do terreiro e conseqentemente
dos umbandistas. Portanto, aspectos como a possesso, o transe, a
historicizao da Umbanda, que j foram amplamente abordados, com maior
propriedade at, por autores como Maria Helena Vilas Boas Concone, no
primeiro caso, e de Lisias Negro no segundo, entre outros, no sero temas
centrais deste trabalho, embora presentes.
26
O caminho pretendido para refletir sobre as questes apontadas partir da
identificao da cultura umbandista, atravs de dois instrumentos bsicos, a
pesquisa participante e o trabalho com memria (o papel da oralidade e do
registro escrito), como formas de construo desta cultura e identificao dos
processos de aprendizagem para esta construo.
Acredito que a partir de minha participao ativa no terreiro, das entrevistas e
da leitura e anlise dos cadernos de registro, poderei levantar categorias,
identificando aspectos nicos da cultura umbandista, como construda e se
esta construo aponta para a idia inicial da humanizao e da emancipao
do sujeito.
Quando penso no caminho a ser percorrido, penso tambm nas vrias
escolhas que terei que fazer, para chegar ao lugar desejado. As escolhas no
so fceis! Neste processo sempre temos a impresso de que alguma coisa
muito importante est sendo deixada de lado.
Estas escolhas, portanto, se deram no caminhar. Vrias situaes contriburam
para a construo desta pesquisa, sejam com os colegas de classe e seus
questionamentos, nas conversas com minha orientadora, que com seu modo
sereno, ia escutando e interferindo de modo delicado nas construes
apresentadas, no grupo de estudo sobre memria que formamos e nas
inmeras circunstncias cotidianas que envolviam a religio. Nas tentativas de
esclarec-los e na inquietao do recorte a fazer, re-organizei este caminho.
27
No meu caso, a inquietao aparece quando percebo que dos vrios itinerrios
que posso traar dois em particular me chamam, e de certa forma o caminho
que percorri at aqui como pessoa: como articular dois mundos aparentemente
to diferentes de forma que ambos possam dialogar, e como umbandistas e
no umbandistas, podem se apropriar dos conceitos aqui utilizados de forma a
compreenderem este universo, e v-lo como espao propiciador da
humanizao e da emancipao do sujeito?
Estas duas questes aparentemente to simples envolvem escolhas, que
foram se fazendo no caminhar. O trabalho com os registros escritos, que
trazem a memria do grupo, foi uma delas. Os cadernos que durante dcadas
foram sendo escritos, sero utilizados como documentos memorialistas e
atravs deles re-construir a histria do grupo e da Umbanda, identificando
momentos de aprendizagem, de transmisso de conhecimentos, que vo
construindo a cultura da Umbanda. O aparente paradoxo entre a afirmao do
aprendizado prtico e o ensinamento oral e trabalhar com os textos escritos,
ser retomado adiante.
Ao reler os cadernos, verifico elementos desta aprendizagem e desta cultura,
ainda hoje existentes no terreiro, como o Ritual de Sacodimento8, descrito no
caderno de 1975, quando o terreiro que meus pais freqentavam na Mooca, foi
8 O caderno citado de 1975, quando meus pais freqentavam a Tenda de Umbanda Caboclo Pena
Branca e Joozinho das 7 Encruzilhadas, na Mooca.
28
ao stio para as obrigaes, com todos os filhos.
Assim est descrito uma parte destas obrigaes:
Foi dado o banho de sacudimento que jogado no filho pelas costas, feito isso o
filho cobre a cabea deita esteira, colocando ao lado uma vela de 7 dias, que j esta
acesa, fica deitado pelo menos 3 horas. A toalha da cabea no pode ser tirada mais,
s tirada no fim da engira pelo Pai de Santo. O banho para afastar todos os maus
fludos que a pessoa tem.
Cerca de vinte anos depois, lemos:
Ervas para o banho, colhidas em 15.04.1995. saia branca (flor), saia branca (folha),
manjerico, alecrim, folha de amora, confrei, balsamo folha larga, melicia, assa peixe,
hortel, folha gengibre, samambaia, pico preto, sap, folha de maracuj, novalgina,
arruda, samambaia de bugre, folha de pitanga, alecrim do campo, pinho roxo,
balsamo, carobinha, folha de goiaba, louro, erva de bicho, so Gonalo, eucalipto,
carqueja, gervo, balsamo, tansagem, hortel, dente de leo, erva de santa maria,
folha de laranja, folha de zeduaria, balsamo folha pequena, espada de so Jorge, ch
de estrada e marcelinha. (1995)
Este ritual embora ressignificado, ainda existe. feito uma vez por ano, e j
passou por algumas modificaes, como ficar menos tempo deitado na esteira
(1h somente) e no ser obrigatrio. O modo de preparo do banho continua
basicamente o mesmo, o que muda a diversidade de ervas utilizada e a
retirada de alguns ingredientes que foram considerados ofensivos, como o
estrume e as vsceras.
29
Para o banho de sacudimento vai as seguintes ervas que posta em fuso dias antes
do banho. Carqueja, arruda, guanchuma, alecrim do campo, erva de bicho, catinga de
mulata, carrapichinho, urtiga, cip abre corpo, cip abre caminho, cip de trabalho,
carobinha, esterco de vaca, esterco de cavalo, vsceras de galinha com pena, espada
de so jorge, palha de alho. (1975)
Ao reler os cadernos dvidas foram surgindo e os questionamentos foram se
acumulando. O que fazer com o volume de informaes que iam aparecendo
diante de meus olhos? De que forma identificar se aqueles registros possuam
as informaes pretendidas? Muita coisa est registrada, mas uma grande
parte de acontecimentos no o foi. Seja por falta de agilidade em registrar no
ato dos acontecimentos tudo o que ocorria ou pela seleo do que registrar.
Ento como poderia trabalhar estas informaes?
A meu ver pelo caminho das entrevistas, da observao e principalmente da
prpria participao no terreiro. Atravs da oralidade destes sujeitos eu
inclusive confrontar este mundo com a cultura identificada nos cadernos de
registro e com o prprio discurso dos sujeitos umbandistas.
Mas antes de pensar no caminho a seguir, necessrio saber a partir de que
bases este caminho ser construdo. Ou seja, quando falo em educao,
aprendizagem, humanizao, emancipao e na prpria Umbanda, falo a partir
de que olhar? A partir de qual estrada estou falando?
30
Meu Olhar
Para a Educao
Penso que a educao um processo que acontece ao longo da vida,
preparando os membros da sociedade para a participao na vida social,
sendo assim, um fenmeno social, universal, cultural e existencial todas as
sociedades dependem dela para se manter, para funcionar. (PINTO, 2000)
Nas relaes entre o Homem e o Homem e deste com a natureza, o
conhecimento9 produzido. Portanto, podemos dizer que a educao um
processo de prover os indivduos dos conhecimentos e experincias culturais10
que os tornam aptos a atuar no meio social e a transform-lo em funo de
necessidades econmicas, sociais e polticas da coletividade.
Neste processo de produzir conhecimento, o homem transforma o mundo
social em que vive e transforma a si mesmo. Este duplo processo que Marx
chama de prxis.
9 lvaro Vieira Pinto, em Cincia e Existncia define o conhecimento como um processo de extrema
amplitude e complexidade pelo qual o homem realiza sua suprema possibilidade existencial, aquela
que d contedo sua essncia de animal que conquistou a racionalidade: a possibilidade de
dominar a natureza, transform-la, adapt-la s suas necessidades.
10 Cultura: conjunto de prticas, de representaes, de comportamentos, relacionado a um grupo
humano.
31
Charlot (2001) ao falar sobre educao, e a relao desta com a cultura,
acrescenta outro aspecto a questo: diz que educao cultura e o em
(...)trs sentidos que no devem ser dissociados. Ela cultura porque
humanizao. Ela introduo na cultura, isto , no universo de signos, de smbolos,
da construo de sentidos. (...) socializao porque (sem ela) no possvel
introduzir-se na totalidade do que a espcie humana produziu. Introduzir-se na cultura
s possvel introduzindo-se em uma cultura, a de um grupo social determinado, em
um momento de sua histria.
Neste sentido, minha relao com outros indivduos e outras culturas, a partir
de um grupo, faz e refaz minha cultura, me constituindo. Esta construo de
sentidos me permite tomar conscincia das relaes com o mundo, com os
outros e comigo mesma.
A cultura, portanto, essencial para compreender em escala menor, meu
grupo e na maior, a sociedade da qual fao parte. Nestas relaes o
conhecimento vai sendo produzido e reproduzido, a partir das significaes que
lhe atribuo, privilegiando ou no conhecimentos para a transmisso s novas
geraes. Geralmente este processo pensado a partir de uma educao
escolarizada, sistematizada, planificada.
32
Meu olhar para a educao, e para a educao dentro do terreiro, ser a no
escolarizada, no sistematizada, no planificada11. O que me interessa aqui o
processo de construo do conhecimento, do saber, impresso na cultura do
grupo, visto a partir da educao no formal.
Almerindo Janela Afonso faz uma distino entre educao formal, informal e
no-formal, dizendo:
Educao formal: educao organizada com uma determinada seqncia e
proporcionada pelas escolas; Educao informal: abrange todas as possibilidades
educativas no decurso da vida do indivduo; Educao no-formal: embora tenha uma
estrutura e uma organizao, no se prende a fixao de tempos e locais e flexibiliza
os contedos.
A preferncia por trabalhar com o conceito de educao no-formal, ainda que
esta preveja uma organizao e uma estrutura, se d pelo fato de acreditar que
estes elementos podem ser encontrados no terreiro, inclusive no que diz
respeito a um contedo12 selecionado a ser transmitido aos filhos/mdiuns.
11 No sentido escolar.
12 Conjunto de conhecimentos socialmente acumulados, mas selecionados, pr-determinados e
sistematizados que so transmitidos ao grupo social geralmente atravs da escola formal.
33
Para a Humanizao e a Emancipao
O conceito utilizado por mim proposto por Paulo Freire, principalmente a
partir de seu livro Pedagogia do Oprimido. Este texto que j completou trinta
anos de existncia, a cada dia torna-se mais atual. Sua leitura deve ser feita
com o olhar no presente, para as relaes hoje estabelecidas na sociedade.
Diversas so as anlises feitas da nossa sociedade e de como as relaes
esto sendo modificadas e ressignificadas, a partir da lgica do mercado, da
economia e do dinheiro como principal fonte de prazer e de delimitao das
relaes.
O que mais ouvimos, seja na rua, em casa, no terreiro ou na televiso de
como as pessoas esto mudando, os jovens principalmente, que no tm mais
respeito pelos mais velhos, pelos bons costumes, a famosa expresso
inverso de valores. Os noticirios televisivos a todo instante informam isso,
de maneira determinista, como se estas aes e valores no pudessem ser
modificadas ou transformadas. As pessoas sentem-se acuadas e com seus
valores, crenas, moral, conhecimentos e experincias descartados como os
produtos vendidos nas lojas de departamentos e constantemente lembrados de
sua descartabilidade.
O que gosto em Freire como vai descrevendo nossa sociedade a partir das
relaes sociais, de como homens e mulheres constroem seus espaos e
tempos a partir dos mecanismos de opresso existentes e ao mesmo tempo
34
mostra as possibilidades de rompimento com estas prticas. E a maior
possibilidade a educao. Muitas vezes refere-se educao formal,
escolarizada, mas quando faz a anlise destas relaes no da escola que
fala, mas sim da educao como possibilidade humana, como prtica da
liberdade, que tem no ato de conhecer, uma aproximao crtica da realidade.
Para se pensar a educao como possibilidade da prxis libertadora,
necessria a crena em homens e mulheres, na sua histria e na sua
inconcluso humana. sabermo-nos seres inacabados, inconclusos, mas no
determinados no sentido da paralisao da ao. confiar, crer que o outro
tem o poder de deciso, da assuno da liberdade, e a esperana inabalvel
na possibilidade do estar-sendo no mundo.
Para a Prxis e a Prxis Umbandista
Na educao utiliza-se muito o termo prxis como referncia a prtica
pedaggica, ou seja, aquilo que os educadores realizam em sala de aula. Mas
este conceito prev duas formas de pensar sobre ele: em primeiro lugar
apenas como a coisa prtica, a ao em si mesma, uma ao concreta, que
parte do conhecimento adquirido para a realizao de uma ao especifica;
outra forma de pens-la pode ser como um movimento em que o conhecimento
utilizado pelo homem na sua relao com a natureza, transformando-a e
transformando a si mesmo, em diferentes esferas como a cultural, a social e a
poltica.
35
A maior dificuldade quando pensamos em mudana, em mudana social e/ou
transformao social, est justamente na ruptura da conscincia comum, na
ruptura do pensamento que acredita que a prtica est desvinculada de
qualquer tipo de reflexo, da reflexo sobre seu ato, seja ele construir uma
cadeira ou ensinar uma criana os pontos cantados no terreiro, como se estas
aes estivessem desvinculadas do seu pensar, da sua reflexo, de seu estar
no mundo.
Essa atitude natural se baseia no fato do indivduo ver a atividade prtica
como um simples dado que no exige explicao. Com tal atitude, este acredita
estar numa relao direta e imediata com o mundo dos atos e objetos prticos.
Suas conexes com esse mundo e consigo mesmo aparecem diante dele num
plano a - terico13. No sente necessidade de rasgar a cortina de preconceitos,
hbitos mentais e lugares-comuns na qual projeta seus atos prticos.
(VAZQUEZ, 1977)
A definio trabalhada aqui aquela que tem por concepo o Homem como
um ser ativo, criador e prtico, capaz de refletir criticamente sobre as condies
objetivas da realidade a qual pertence e compreender que se encontra inserido
num tempo e espao nicos.
13 Vazquez define este indivduo como possuidor de uma conscincia comum.
36
E A UMBANDA ISSO...
A Umbanda e o Candombl, religies afro-brasileiras, aparecem no imaginrio
da sociedade nacional, em amplos segmentos, como prticas mgicas ou de
feitio ligadas ao desconhecido, ao sobrenatural, a espritos e a coisas que no
podem compreender, portanto, desconfortveis.
Vrios so os exemplos que podemos obter conversando e observando as
reaes das pessoas quando se deparam com estas prticas. Estas vo desde
o escrnio rejeio quase total de convvio com os adeptos destas religies e
das prprias religies. Uma matria publicada no Jornal Folha de So Paulo,
no caderno Cotidiano, intitulada Trfico acusado de vetar umbanda no Rio.
(MONKEN, 2006), pode ser utilizada como exemplo.
A matria descreve a ao de traficantes no Rio de Janeiro, em diferentes
bairros, proibindo a prtica da Umbanda e do Candombl com ameaas e
represlias, fechando terreiros e impedindo que seus adeptos usem adereos,
como guias e turbantes, prprios destas religies. Segundo a matria, foram
ouvidos lderes de associaes de moradores e religiosos, que confirmam o
fechamento de terreiros e o assassinato de um pai-de-santo (em 2002).
Segundo Jair de Ogum, um dos mais famosos pais-de-santo do Rio, s no
complexo do Alemo fecharam mais de quarenta terreiros.
37
Embora os motivos apresentados no fiquem claros, o aspecto mais
significativo destas aes, diz respeito construo de um imaginrio social,
bastante matizado pelos setores pentecostais, que coloca estas religies como
inimigas da sociedade pois associam a Umbanda e o Candombl a
manifestaes demonacas acirrando a intolerncia religiosa e dificultando as
relaes sociais nos diferentes espaos, tanto pblicos quanto privados.
Este movimento, de intolerncia, no novo para os adeptos destas religies.
Tanto umbandistas como candomblecistas cotidianamente se deparam com
atitudes preconceituosas e as perseguies a terreiros e seus dirigentes so
comuns
O surpreendente saber que em tempos de democracia e liberdade religiosa
garantidas na Constituio de 1988, estas posies aflorem com tanta fora
sendo to pouco combatidas. Os prprios umbandistas, para se remeter
apenas a Umbanda, no se posicionam em relao intolerncia e ao
preconceito sofrido14.
14 J em fase de concluso desta pesquisa, recebi por e-mail a notcia de que a Federao
Nacional do Culto Afro-Brasileiro, a partir de encontros nacionais, elaborou o CDIGO
NACIONAL DE TICA E DISCIPLINA LITRGICA DA RELIGIO AFRO-BRASILEIRA, na
tentativa de garantir a confiana da sociedade e diminuir a intolerncia religiosa. Embora o
documento faa maiores referncias ao Candombl, a Umbanda citada. Para maiores
detalhes, pode-se consultar este documento no site da instituio citada.
38
Encontramos na histria do Brasil, perseguies a Umbanda desde o comeo
do sculo XX, quando os primeiros terreiros aparecem no Rio de Janeiro. Estas
perseguies so das mais diferentes ordens, como polticas, ideolgicas,
religiosas e morais e a que vimos na matria citada.
Segundo Birman (BIRMAN, 1985), como os mdiuns umbandistas lidam com
foras sobrenaturais, tidas como primitivas e marginais vistas com
desconfiana e medo, o umbandista acaba por pagar um preo social, pelo fato
de ter poderes s vezes to perigosos. Esse preo como sabem todos os
umbandistas, o enfrentamento cotidiano de um estigma. So, com freqncia,
vistos como pessoas suspeitas, despertam desconfianas e sofrem volta e
meia, acusaes as mais variadas.
Em 1937, no II Congresso Afro-Brasileiro BA, o texto A liberdade religiosa no
Brasil: a macumba e o batuque em face da lei., Bittencourt (1937) apresenta
um panorama de como as religies afro-brasileiras eram vistas. Segundo a
Constituio de 1823, estas religies no eram proibidas, mas toleradas e
seus praticantes perdiam os direitos polticos, que s eram concedidos aos
praticantes da ento religio oficial, a christ.
Muita divergncia houve no modo de entender a liberdade religiosa. O projecto
garantia liberdade apenas as comunhes christs, dando aos que professassem
direitos polticos, que eram negados aos adeptos das religies no christs; houve,
porm, quem, com esprito intolerante, pugnasse pela excluso tambm dos
christos no catlicos de entre os brasileiros com direitos polticos (...) e o longo
debate terminou pela concesso de direitos polticos apenas aos cathlicos (...)
39
Alm disso, o Cdigo Penal de 1831 previa na parte IV, que tratava dos crimes
policiaes, um captulo, o I, relativo s ofensas religio, moral e aos bons
costumes, e que
como j ocorrera no Imprio, mesmo na Repblica mau grado a claresa desses
dispositivos isto no impediu, nem impede, que alhures, como aqui mesmo,
autoridades policiaes prepotentes invadam o recinto onde esto sendo celebrados ou
se celebram os cultos feticistas, os batuques, destribuindo bordoada e levando para o
crcere homens e mulheres de regra, sem qualquer motivo plausvel, por mnimo
que seja e que , ainda de longe pudesse justificar violncia to grande.
(BITTENCOURT, 1937)
Neste mesmo item, tambm era considerado como ofensa o celebrar em casa
ou edifcio que tenha alguma forma exterior de templo, ou publicamente em
qualquer lugar, o culto de outra religio que no seja a do Estado.
(BITTENCOURT, 1937)
Somente em 1891, a constituio da Repblica, no seu artigo 72 concedeu a
todos os indivduos e confisses religiosas o direito de exercerem publicamente
e livremente seu culto (...). Mas, ao mesmo tempo foi necessrio um captulo
especial para tratar do abuso de autoridade exercido por autoridades policiais,
ou seja, dos crimes contra o Livre exerccio dos cultos, como descreve Silva:
Por esta poca predominava o pensamento modernizante, que reclamava a
necessidade de civilizar o Brasil, colocando-o ao lado das melhores naes
europias. Neste contexto, surgem os primeiros trabalhos cientficos que procuram
explicaes para os modos de vida e para a cultura das religies afro-brasileiras que
40
eram denominadas de primitivas e atrasadas. Inicialmente estas explicaes,
possuam orientaes racistas e evolucionistas que acabam por confirmar a opinio
da classe dominante de que os traos culturais herdados do continente africano eram
inferiores aos do branco, de tradio europia o ideal de civilizao branca,
moderna e cientificista. (SILVA, 2005)
Em 1857 surge na Frana O livro dos espritos, o primeiro livro de Allan
Kardec, que logo chega ao Brasil. O Espiritismo ou Kardecismo, como mais
conhecido, logo se transforma em alternativa religiosa para uma parcela da
classe dominante, que via em suas orientaes uma maneira mais civilizada
de religiosidade, pois para Kardec o fenmeno religioso pode ser estudado e
explicado racionalmente, cientificamente.
Esta idia de religio, que propunha a racionalizao da f e de seus
fenmenos, atravs de estudos cientficos, corroborou com a idia de poder
civilizar a nao, de higienizar a sociedade, portanto embranquec-la. Era a
possibilidade de distanciar-se do catolicismo popular e afastar-se de vez das
religies afro-brasileiras, vistas com preconceito, elevando-se ao status de
grupo civilizado ou pessoa civilizada.
A prtica religiosa de transe est presente na sociedade brasileira desde sua
formao, atravs dos rituais xamanicos, dos cultos bantus, dos candombls e
das prticas catlicas populares, que o movimento civilizador no conseguiu
abafar. A Umbanda surge da interseco destes trs elementos, e segundo
alguns autores, como uma alternativa para a prtica da incorporao de
espritos.
41
Algumas dcadas mais tarde, outro fato curioso se d. Pesquisadores,
intelectuais, escritores e artistas promovem um movimento de afirmao da
identidade negra e de sua cultura com a retomada da cultura africana, a partir
da divulgao da cultura dos candombls da Bahia, principalmente15. Surgem
vrias pesquisas sobre o tema, livros so publicados, descrevendo parte dos
rituais que at ento somente os iniciados tinham acesso. Romances so
escritos, orixs so cantados fora dos terreiros, em festivais, rdios e televiso,
divulgando e legitimando a cultura negra e conseqentemente o Candombl.
Temos ento dois movimentos: um que legitima o Candombl, atravs de uma
cultura negra ancestral, vinda da frica e, portanto digna de ser divulgada e
cultuada e outra vinda da Europa, que legitima a crena no esprito mas no
qualquer esprito. Para doutrinar, mdicos, escritores, personalidades com
algum status social e para serem doutrinados, espritos marginais, que de
alguma forma no encontram o caminho da evoluo moral e espiritual. E o
transe, mediante a racionalizao e o estudo cientfico, nesta justificativa passa
a ser, portanto, uma prtica civilizada que leva ao progresso moral e espiritual.
Estes dois movimentos, embora se dirijam a parcelas especificas da sociedade,
prope de modos diferentes o mesmo ideal de prtica religiosa: uma que
15 Entre estas publicaes as de Pierre Verger so as mais conhecidas, como Notas sobre o culto aos
Orixs e Voduns; nas artes plsticas temos Caryb com seus desenhos representando o cotidiano do
candombl; na msica Mario Bethania, Caetano entre outros, na literatura nacional, Jorge Amado.
42
caracterize o praticante como um sujeito culto, pois respeita suas tradies e
no segundo caso acrescento ainda, um sujeito evoludo espiritualmente.
Neste sentido que afirmei anteriormente que a Umbanda vista com
preconceito por ambas as correntes religiosas: uma porque no a v como
possuidora de uma legitima tradio da cultura africana, j que trabalha
diretamente com a incorporao de espritos desencarnados e vista como
sincrtica e a segunda pela utilizao de elementos da cultura africana, como
os atabaques e a dana, e tambm por lidarem com espritos marginais,
consideradas, nesta perspectiva, como prticas primitivas e de pessoas
ignorantes.
Desta forma a Umbanda tem percorrido um longo caminho para se afirmar
como religio. Vrios so os movimentos em torno das prticas umbandistas,
para conferir-lhe legitimidade, que vo desde o abandono das prticas
consideradas africanizadas, como oferendas, matana e a msica, at o
lanamento de livros em formato mais acadmico, com diferentes assuntos
tratados de modo cientifico.
o caso do escritor umbandista Rubens Saraceni, que apresenta o tema da
espiritualidade a partir do olhar umbandista. Os ttulos vo desde os romances
at os ttulos que buscam sistematizar e codificar um conjunto de temas e
assuntos to abrangentes, que se no representava formalmente um cdigo
religioso, tratava-se no mnimo de uma codificao extensa de vrios
43
aspectos relativos aos fundamentos do Ritual de Umbanda Sagrada
(SARACENI, 1998).
Outro movimento bem recente neste sentido a fundao, em 2004, da
primeira Faculdade de Teologia Umbandista do pas, que alm de disciplinas
tradicionais aos cursos de graduao, inserem no currculo disciplinas voltadas
especificamente religio umbandista e ministradas na sua maioria, por
professores umbandistas.
Muitos umbandistas vem este processo como natural e dizem fazer parte da
evoluo da religio, como da prpria sociedade, que necessita modernizar-se;
outra corrente v que este processo esta transformando a religio em outra
coisa, que no umbanda, podendo extingui-la. Estes movimentos embora
legtimos acabam por negar uma parte essencial da histria da Umbanda, uma
vez que vo deixando de lado caractersticas e rituais que deram origem a ela.
Organizao da Umbanda
Quando sou questionada sobre o que a Umbanda, a resposta vem rpida:
uma religio! E to rpido quanto minha resposta aparecem perguntas que
indagam de forma geral se a Umbanda no a mesma coisa que
Candombl ou se no coisa do mal! Explico ento que a Umbanda uma
religio e como tal, tambm tem sua histria.
Em So Paulo a Umbanda chega primeiro que o Candombl. Mesmo sem a
denominao de Umbanda, os encontros e/ou reunies aconteciam nas casas
44
de famlias, que praticavam o que se chamava na poca, de espiritismo de
mesa, mais conhecido como Mesa Branca, mas que incorporavam espritos de
Caboclos, pretos Velhos e Crianas principalmente.
A variedade de prticas existentes grande e pensar sua origem requer
algumas escolhas. Para uma parte dos umbandistas a religio inicia-se com
Zlio de Moraes no Rio de Janeiro, quando este recebe uma mensagem do
Caboclo Sete Encruzilhadas, dizendo que sua misso seria fundar uma nova
religio: a Umbanda.
A partir das dcadas de 30 fundam mais sete tendas, todas com a designao
de tendas espritas, com forte influncia do catolicismo.
Para Cavalcanti Bandeira a Tenda Esprita Mirim, fundada em 13 de outubro de
1924 foi a primeira a praticar o ritual de Umbanda e segundo Alexandre
Cumino (editor do Jornal do Ax e da Revista Umbanda) a nica a no aceitar
em seu Cong o sincretismo dos orixs com os santos catlicos, com exceo
de Jesus Cristo/Oxal16.
Bandeira afirma que a Umbanda o resultado da
transmutao com modificaes profundas surgi(ndo) uma nova religio de carter
polimorfo, abrasileirada, porque se distanciando dos primitivos cultos africanos (...)
16 Ligiro, por exemplo, caracteriza este movimento de Umbanda catlica, pois profundamente influenciadas pela moral crist e pelo espiritismo kardecista. (LIGIRO, 2000)
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embora repousando nos cultos bantos, pela sua base comum espiritual. (BANDEIRA,
1970)
Embora no me detenha profundamente, neste momento, nas diferentes
formas de se pensar a Umbanda, apresentarei duas delas que so
recorrentes nos livros umbandistas: a primeira pela etimologia da palavra, e a
segunda pela descrio do ritual, suas caractersticas, modos, etc., que em
ambos os casos trazem uma diversidade17, de explicaes, que interessante
apontar, pois apresentam a prpria diversidade da religio e
conseqentemente a dificuldade de se pensar na Umbanda como uma religio
fechada.
A origem etimolgica do vocbulo Umbanda controverso mesmo entre seus
adeptos. Entre as produes umbandistas, encontramos uma variedade de
verses. Uma das mais comuns, explica: uma de unidade, Uno (Deus) e
banda como sendo um lugar, cidade, agrupamento e interpretada como unio
de um grupo ( Deus). Outras interpretaes existem e reproduzo abaixo
alguns exemplos, retirados destas produes no:
17 Embora estes aspectos sejam citados no me aprofundarei no primeiro aspecto etimologia da
palavra para explicar o nascimento da Umbanda. O segundo aspecto os rituais e as caractersticas
da Umbanda sero oportunamente analisados e descritos quando analisar os Cadernos de Registro,
fonte desta pesquisa.
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Site Umbanda Racional (2006): Esse vocbulo, Umbanda, tem sua origem no
substantivo feminino do segundo gnero (Banda). Banda tem origem no dialeto
Banto, e quer dizer lugar, cidade; o vocbulo (Umbanda) nasceu do nosso linguajar,
porque o sentido real de banda , todos vindos de diversos lugares ou reunidos
daqueles lugares. Pelo entrosamento do dialeto Banto e o idioma falado no Brasil
(portugus), surgiu o impulso do conjunto e traos culturais estreitamente ligados
entre si, formando a palavra Um Banda, pois Um o adjetivo nico, continuo,
singular, indivisvel, e juntando este ao substantivo, expressou-se dentro do nosso
linguajar, a palavra Umbanda.
Livro O Cdigo da Umbanda (SARACENI, 1998): a palavra Umbanda deriva de
nbanda, que em Kibundo significa sacerdote ou curador. Isto Umbanda, onde
todos os praticantes so um templo vivo no qual os Sagrados Orixs se manifestam,
assim como todos os nossos amados guias espirituais.
Umbanda a religio, mbanda o sacerdote.
Umbanda a caridade, mbanda o curador.
Umbanda o meio, mbanda o mdium.
Umbanda a evoluo, mbanda o ser evoluindo.
Livro Umbanda do Brasil (W.W. da, 1996): o vocbulo Umbanda (que d margem a
uma srie de controvrsias) somente pde ser identificado at o presente dentro
das qualificadas lnguas mortas, assim no snscrito, no pelevi, nos sinais vdicos e,
diretamente, na lngua ou alfabeto admico ou vatnico dito como um dos primitivos
a humanidade (...), todavia, entre os angoleses, existe o termo forte de KIMBANDA
Kia kusada ou Kia dihamba que significa sacerdote, feiticeiro, o que cura doenas,
invocador dos espritos, etc.
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Estes exemplos, embora apresentem certa divergncia, convergem para um
ponto: todas pretendem conferir atravs da explicao do vocbulo a
legitimidade da prpria religio. No ltimo caso, atribuem palavra a
ancestralidade Admica ou Vatan, resgatando smbolos deste alfabeto18, para
explicar a origem do termo, enveredando para um estudo lingstico,
comparando-o a outros alfabetos.
Estes textos so uma amostra da diversidade encontrada, diversidade esta,
utilizada como motivo de crticas por diferentes autores, principalmente aqueles
que vem na variedade uma desarticulao da prpria religio, caracterizando-
a de crendice, devaneio e fantasias, como Boaventura Kloppenburg (1961).
Em 1961, Candido Procpio Ferreira de Camargo, apontava esta mesma
diversidade, quando analisava as publicaes sobre a Umbanda. Segundo ele,
A extraordinria variedade doutrinria que transparece nesses livros ainda maior do
que a proliferao multiforme dos terreiros. Os livros doutrinrios exprimem duas
tendncias, nem sempre mutuamente exclusivas. A primeira segue, com certas
liberdades, a orientao dos antroplogos brasileiros, que alias citam. Traam a origem
africana da Umbanda, do nfase aos ritos de iniciao tradicionais (...) a segunda
18 Para maiores informaes e esclarecimentos de como elaboraram este estudo, procurar em W.W.
da Mata e Silva, especialmente em Umbanda do Brasil, a partir da pgina 71. Embora citado neste
trabalho, as informaes contidas na obra citada, no expressam a opinio da autora ou da maioria
dos umbandistas, que geralmente optam por uma explicao mais simplificada do termo, como Luz
Divina, Luz Irradiante, etc.
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Utilizarei o substantivo terreiro
quando me referir ao local (fixo)
onde se praticam os rituais de
Umbanda, embora possamos
encontrar diferentes designaes,
como centro, templo, tenda, casa
esprita, cabana, fraternidade e
igreja espiritual.
defende a tese da origem remotssima da Umbanda, muito mais antiga do que o
Kardecismo, o Cristianismo e o prprio Judasmo.
A variedade literria, embora apresente diferentes formas de se pensar a
Umbanda, no registra de forma significativa e real a riqueza dos rituais
praticados em cada um dos terreiros
existentes, no s em So Paulo, mas em
todo o territrio nacional, possuindo, um
formato multicultural de acordo com as
tradies e formas de se viver em cada
localidade.
Cavalcanti Bandeira ao ser entrevistado, em 1972, por Maria Helena Vilas B.
Concone prope uma primeira sistematizao da Umbanda, assim descrita:
1 - Umbanda esprita, de mesa, constitui-se numa fase intermediria entre, as
Umbandas e o espiritismo de Kardec. (...);
2 - Umbanda ritualista ou de salo, (...) caracterstica mais marcante o uso da
roupa branca e das palmas para marcar os trabalhos (...) segue orientao do
Caboclo Mirim, de influencia indgena;
3 - Umbanda ritmada, de terreiros (...) sua caracterstica marcante ouso dos
atabaques para marcar o ritmo e andamento da cerimnia;
4 - Umbanda ritmada e ritualizada, mais prxima do ritual do Candombl, (...)
chama esta forma de Umbandonbl. 19
19 Atualmente encontramos a utilizao deste termo em vrios espaos, inclusive acadmicos, como
nas pesquisas sobre as religies afro-brasileiras e geralmente sua utilizao vincula-se a uma
concepo banalizadora da Umbanda. Mas, o termo foi proposto primeiramente por Cavalcanti
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Como podemos perceber a variedade de rituais na Umbanda no uma
caracterstica da atualidade, embora tenha se intensificado, com o passar dos
anos, incluindo ou absorvendo outros saberes, como por exemplo, os
conhecimentos orientais de cura.
O segundo aspecto apontado para se pensar a Umbanda atravs de seu
ritual.
Mas, antes de falarmos no ritual da Umbanda a gira vamos descrever de
que forma um terreiro pode se organizar.
A estrutura fsica de um terreiro
A estrutura fsica dos terreiros via de regra muito simples, constando de duas
partes principais: uma onde acontece o ritual e
onde ficam os mdiuns, e outra onde fica as
pessoas que vo assistir as giras, a
assistncia.
Bandeira, para identificar na sistematizao elaborada por ele os vnculos desta com o
Candombl.
Estou chamando de mdiuns a todos(as) os(as) filhos(as) do terreiro que esto na corrente, inclusive cambonos e ogs.
50
Assistncia: espao destinado a acomodar as pessoas que visitam o terreiro
ou seus freqentadores assduos. Este se localiza fora do espao da gira,
geralmente dividido por uma espcie de cerquinha e cortinas que delimitam
os espaos sagrado do profano e se abrem somente quando a gira aberta
ao pblico.
Podemos observar modificaes ao longo do tempo neste espao. Em terreiros
mais antigos o local dividido para homens e mulheres, que sentam-se em
lados opostos.
Atualmente pode ser visto sem esta diviso e homens e mulheres sentam-se
lado a lado. As crianas geralmente ficam ao lado de seus pais ou
responsveis. Podemos encontrar tambm, outros cmodos, como por
exemplo, um quarto para atendimento individualizado, cozinha, vesturio
Fotografia 1 Espao da Assistncia do TUCTPB
51
(camarinha), mas estes dependem, muitas vezes, da disponibilidade de espao
e de recursos financeiros para serem acrescentados. Os banheiros, geralmente
ficam do lado de fora e so utilizados por todos.
Terreiro local onde acontecem as giras: o espao destinado ao local das
giras ao sagrado composto de um salo (que comporte os mdiuns); em
uma das paredes fica o Cong (altar) com as imagens, flores, guias e demais
apetrechos utilizados pelos mdiuns. As imagens de santos catlicos so muito
comuns nos terreiros, pois sincretizam-se com os Orixs cultuados tanto na
Umbanda como no Candombl.
O Cong de um terreiro um dos locais mais importantes, pois nele esto
contidos assentamentos (ou firmezas) dos orixs como tambm das entidades
Fotografia 2 - Terreiro de Umbanda Caboclo Sete Cachoeiras/Guaianazes
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que l trabalham. Em muitos casos identificam a provenincia do(a) chefe da
casa e das entidades que a comandam.
Atualmente podemos encontrar terreiros com uma quantidade de imagens
muito pequena ou quase nenhuma nos seus Congs, dando preferncia a
objetos representativos das linhas com as quais o(a) chefe do terreiro trabalha,
como pequenas quedas dgua, flores, quartinhas de assentamento, pedras,
fogo (atravs das velas ou de tochas).
Para Arthur Ramos, em O Negro Brasileiro, a estrutura dos terreiros de
macumba so grosseiros e simples, sem esta teoria de corredores e
compartimentos dos terreiros gegiorub.
Fotografia 3 - Cong TUCTPB Festa de Ogum
Foto Solange Vaini
53
Acostumado com a organizao dos terreiros de Candombl, v na estrutura
da macumba uma pobreza oriunda da cultura banto20.
Mas no se trata aqui de pobreza cultural. No podemos esquecer que as
casas de Candombl que tem como modelo as casas da Bahia ou a macumba
do Rio de Janeiro era pouco cultuado em So Paulo. Aqui predominavam as
formas de culto voltadas ao espiritismo, com fortes tradies banto (que
20 O movimento de reafirmao da identidade negra, iniciada por volta da dcada de 50 em
diferentes frentes, como j citado, criou no imaginrio das comunidades religiosas e na sociedade
nacional a idia de que a etnia iorub a legitima detentora das razes das religies afro-brasileiras,
em especial do Candombl, quando outras etnias participaram ativamente deste processo, como a
bantu. A construo da idia de etnia para o povo africano, como mostra Lopes, foi uma criao do
europeu, sendo essencializadas e naturalizadas, tanto no discurso acadmico como no popular.
Antes desse perodo enxergavam-se apenas como seres humanos e as trocas aconteciam (tanto
tecnolgica como cultural) entre todas as tribos, sem esta preocupao de etnia, que acaba por
territorializar os espaos e as relaes, ocasionando uma super valorizao da cultura iorub em
detrimento das outras. Ao falar da cultura acstica, em vrias passagens mostra a cultura bantu, em
especial a acstica, como sendo muito rica, possuindo a faculdade de classificao, e que este
sistema muito mais racional que o sistema indo-germnico (...) a faculdade de coordenao de que
d provas a lngua bantu muito desenvolvida e d-lhes notvel clareza. (pag. 206) Mais a frente,
cita Henri Junod, estudioso da cultura africana que assim descreve a cultura bantu: o esprito bantu
extremamente sensvel a todas as expresses vindas do exterior e encontra meio de exprimir essas
impresses em palavras pitorescas que do lngua interesse e cor extraordinrios. A este respeito,
os bantus so-nos muito superiores e essa a razo pela qual to poucos europeus podem, em boa
verdade, aprender e empregar convenientemente esses advrbios descritivos (sem falar daqueles que
os desprezam!). (pag. 213/214) Esta fala, a meu ver, refora a idia de que a cultura bantu, longe de
ser pobre foi desqualificada e desconsiderada e hoje percebemos nos grupos religiosos
umbandistas o desconhecimento desta nossa matriz, introduzindo aspectos do candombl acima
citado, como nico referencial para a cultura umbandista.
54
cultuavam os mortos) e europias (espiritismo de Kardec) que no tinham
como tradio espaos que congregavam Orixs e filhos(as) de santo adeptos
da casa.
Embora as estruturas fsicas dos terreiros de Umbanda no tenham a
intrincada organizao dos terreiros de Candombl descritos por diferentes
autores como o citado acima, possui uma estrutura peculiar, prpria a qualquer
terreiro de Umbanda. Possuem um espao interno destinado ao ritual,
vesturios, camarinha, um espao externo destinado assistncia, banheiros,
casa de exu, independente de sua localizao ou filiao.
Outro aspecto a considerar diz respeito localizao destes terreiros. A
Umbanda considerada uma prtica religiosa urbana, seus terreiros ficam
dentro das cidades e a cidade de So Paulo oferece poucos espaos
disponveis para comportar um emaranhado de casas ou de corredores; outro
fator bem mais significativo, diz respeito forma de se cultuar estes Orixs na
Umbanda. Para os umbandistas os Orixs so entidades divinas, de grande
fora e luz e que dificilmente incorporam em seus mdiuns. Estes fornecem um
variado leque de linhas21, das quais as entidades que so incorporadas
(caboclos, pretos velhos, crianas, marinheiros e etc.) fazem parte, como por
exemplo, Caboclo da linha de Oxossi, de Xang, etc. Portanto, a ausncia
21 No item 2 deste captulo apresentarei as linhas de Umbanda e seus desdobramentos.
55
deste tipo de organizao na estrutura fsica dos terreiros na Umbanda no
pode caracteriz-la como desprovida de cultura.
A estrutura administrativa do terreiro
A estrutura administrativa do terreiro cuida da sua organizao e constituda
pelo conjunto de cargos administrativos, como presidente, vice-presidente,
secretrio, tesoureiro, procurador, etc. Cuidam do funcionamento do terreiro,
preocupando-se com os recursos financeiros disponveis, contribuies (que
podem ser variadas, como: objetos de culto, dinheiros e outros tipos de
doaes), scios, documentaes (principalmente se o terreiro participa de
atividades sociais), enfim, a toda a rotina de uma instituio que necessita se
manter com recursos prprios.
Geralmente possuem estatuto e regimento interno e muitos esto
ligados/cadastrados a alguma federao22, que lhes do suporte jurdico e
auxilio para as atividades do terreiro, como por exemplo, concesso de licena
22 Hoje existem vrias instituies com a pretenso de organizar as religies afro-brasileiras, em
todos os estados da federao, em So Paulo temos: Federao de Umbanda e Candombl do Estado de
So Paulo, Federao Brasileira de Umbanda, Conselho Nacional da Umbanda do Brasil, entre outras. No site
Giras de Umbanda e a cultura afro-brasileira esto listadas 15 federaes no estado de So Paulo e o SOUESP -
Superior rgo de Umbanda do Estado de So Paulo, como entidade que tem por objetivo agregar
todas elas. A lista com nome e endereo encontra-se em anexo nesta pesquisa
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Optei em apresentar a
nomenclatura utilizada por
Almeida por tratar-se de um
umbandista escrevendo para
umbandistas, mas utilizarei a
forma mais conhecida de
identificao dos dirigentes nos
terreiros: Pai e Me espirituais,
quando me referir a esta
hierarquia.
de abertura dos terreiros, concesso para dias de festa, como a de Yemanj,
na Praia Grande/SP.
Por outro lado, alguns terreiros possuem estatuto e regimento, mas no esto
ligados ou filiados a nenhuma federao, por diferentes razes, como por
exemplo, ter maior liberdade de suas prticas rituais, no terem que pagar
mensalidade ou no ter que se comprometer com as questes polticas tanto
de grupos umbandistas como da poltica regional ou nacional.
A estrutura espiritual
J a estrutura espiritual no deve se preocupar com as questes
administrativas (materiais), embora muitas vezes encontremos terreiros que se
organizam de forma diferente, acontecendo de uma pessoa exercer dois
cargos dentro do terreiro.
Os cargos hierrquicos seguem a
seguinte ordem, sempre em posio
decrescente: babalorix (pai-grande) ou
ialorix (me-grande), pai-pequeno ou
me-pequena, chefes de gira-pblica e de
treinamento, og, chefes de cambono e
57
Defumao: queima de ervas
aromticas em um recipiente
prprio (turbulo) para diluio de
energias negativas. As ervas mais
conhecidas nas defumaes dos
terreiros so: alecrim, benjoim,
alfazema e incenso. Exemplo de
ponto cantado para defumao:
Defuma com as ervas da Jurema Defuma com arruda e guin Alecrim, benjoim e alfazema Vamos defumar filhos de f
samba, mdium de trabalho, mdium em treinamento (em desenvolvimento),
cambono ou samba (ALMEIDA, 2003).23
Desenvolvimento da Gira
No geral a gira tem incio por volta das 20h, iniciando com os mdiuns
saudando o Cong e os demais componentes, sendo que o/a pai/me
saudado(a) em primeiro lugar, seguido pelo(a) pai/me pequeno(a), se o
terreiro utilizar esta organizao
hierrquica.
Faz-se a defumao, sempre ao som dos
pontos cantados e dos atabaques. Aps
este momento, so cantados pontos de
abertura da gira, saudao das sete
linhas, e saudao a linha de esquerda
23 Esta organizao tambm no um consenso entre os terreiros de Umbanda. A hierarquia ou a
nomenclatura utilizada para organizar o corpo medinico varia de casa para casa. Conhecendo este
aspecto, solicitei para os integrantes da lista de discusso (virtual) sobre a umbanda da qual
participo, que os membros dissessem de que forma suas casas se organizavam, qual a nomenclatura
utilizada. Embora a lista seja composta por aproximadamente 500 internautas umbandistas, no
obtive nenhuma resposta. Este silncio pode ser interpretado como o no entendimento da
solicitao ou que este mais um tema controverso entre os umbandistas, ou seja, todos tm uma
maneira de se organizar, mas colocar isso publicamente, numa lista de discusso poderia gerar novos
confrontos.
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Exus e Pomba Gira, que podem variar de acordo com a casa.
A linha que prevalecer naquele dia cantada com maior nfase e as
entidades so chamadas. Os mdiuns incorporam cada um sua entidade,
sempre depois do/a pai/me. normal que neste momento j estejam
incorporados, geralmente com a entidade que d nome ao terreiro e que
comanda a gira.
Na gira descem espritos, genericamente chamados de guias (...) nem todos descem
para trabalhar, para atender os aflitos que vem procurar lenitivo para seus males (...)
nas entrevistas chamadas de consultas. (NEGRO, 1996)
Dentro do terreiro os mdiuns posicionam-se em fileiras, sendo que homens e
mulheres ficam em lados opostos. Quando h uma grande quantidade de
mdiuns na casa, estes se posicionam de maneira um pouco diferente com os
cambonos e mdiuns em desenvolvimento enfileirados atrs dos mdiuns de
incorporao e que j do consultas, formando duas fileiras. Alm desta
disposio, o lugar que ocupam na fila, depende do grau de iniciao dos
mdiuns, ou seja, depende do seu grau de aprendizado e/ou da posio que
ocupam na hierarquia do terreiro.
Em terreiros mais antigos, como o que meus pais freqentaram, esta forma de
organizar os filhos, era tambm a maneira como iam conquistando, atravs da
aprendizagem, postos dentro do terreiro. Ao mdium de incorporao que
iniciava seu processo de desenvolvimento no era permitido conversar ou dar
passes para a assistncia. Quando atingia um grau de desenvolvimento maior,
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podia ser designado para ficar na porteira (local por onde entram as pessoas
para dentro do terreiro); conforme seu grau de desenvolvimento, mdium e
entidade iam conquistando outros postos, podendo dar passes, depois
consultas, at chegar a
padrinhos/madrinhas e/ou pai/me
pequenos.
Aps a incorporao dos mdiuns as
pessoas da assistncia so chamadas
para tomar os passes ou passar pelas
consultas.