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PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATOLICA DE MINAS GERAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS A ARGUMENTAÇÃO NO DISCURSO JURÍDICO: A ESTRATÉGIA DA PERGUNTA EM AUDIÊNCIAS DE INSTRUÇÃO E JULGAMENTO, EM INTERROGATÓRIOS JUDICIAIS E EM SESSÕES DE TRIBUNAL DO JÚRI Aidalice Ramalho Murta Belo Horizonte 2010

PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATOLICA DE MINAS GERAIS … · Argumentação, a fim de que se possam descrever determinados mecanismos inferenciais típicos do jogo argumentativo jurídico

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PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATOLICA DE MINAS GERAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

A ARGUMENTAÇÃO NO DISCURSO JURÍDICO: A ESTRATÉGIA D A PERGUNTA EM AUDIÊNCIAS DE INSTRUÇÃO E JULGAMENTO, E M

INTERROGATÓRIOS JUDICIAIS E EM SESSÕES DE TRIBUNAL DO JÚRI

Aidalice Ramalho Murta

Belo Horizonte 2010

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Aidalice Ramalho Murta

A ARGUMENTAÇÃO NO DISCURSO JURÍDICO: A ESTRATÉGIA D A PERGUNTA EM AUDIÊNCIAS DE INSTRUÇÃO E JULGAMENTO, E M

INTERROGATÓRIOS JUDICIAIS E EM SESSÕES DE TRIBUNAL DO JÚRI

Tese apresentada ao programa de Pós-Graduação

em Letras da Pontifícia Universidade Católica de

Minas Gerais, como parte dos requisitos para a

obtenção do título de Doutora em Linguística,

elaborada sob a orientação do Prof. Dr. Paulo

Henrique Aguiar Mendes.

Belo Horizonte 2010

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FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Murta, Aidalice Ramalho

M972a A argumentação no discurso jurídico: a estratégia da pergunta em audiências de instrução e julgamento, em interrogatórios judiciais e em sessões de tribunal do júri. / Aidalice Ramalho Murta. Belo Horizonte, 2010

172f. : il.

Orientador: Paulo Henrique Aguiar Mendes Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Programa de Pós-Graduação em Letras.

1. Análise do discurso. 2. Terminologia Jurídica. 3. Atos da fala. 4. Oratória. I. Mendes, Paulo Henrique Aguiar. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós- Graduação em Letras. III. Título.

CDU: 800.85

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Aidalice Ramalho Murta

A ARGUMENTAÇÃO NO DISCURSO JURÍDICO: A ESTRATÉGIA D A PERGUNTA EM AUDIÊNCIAS DE INSTRUÇÃO E JULGAMENTO, E M

INTERROGATÓRIOS JUDICIAIS E EM SESSÕES DE TRIBUNAL DO JÚRI

Tese apresentada ao programa de Pós-Graduação

em Letras da Pontifícia Universidade Católica de

Minas Gerais, como parte dos requisitos para a

obtenção do título de Doutora em Linguística.

______________________________________________________________

Profª. Drª. Edna Aparecida Lisboa Soares– Faculdade Pitágoras

______________________________________________________________

Profª. Drª. Helcira Maria Rodrigues de Lima – UFMG

______________________________________________________________

Profª. Drª. Maria Ângela Paulino Teixeira Lopes – PUC Minas

______________________________________________________________

Prof. Dr. Hugo Mari – PUC Minas

_______________________________________________________________

Prof. Dr. Paulo Henrique Aguiar Mendes (Orientador) – PUC Minas

Belo Horizonte, 28 de outubro de 2010.

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Ao meu esposo, Gilmar Fernandes, pelo amor que dá sentido à vida e pela interlocução que

conduz à felicidade, além de fazer do Direito um universo de sabor e de encantamento.

À memória do meu pai, Avelino, pelas muitas perguntas que nos fizemos e pelas tantas respostas

descobertas no silêncio das suas retinas e na intensidade das horas vividas.

À minha mãe, Terezinha, pelo amor e confiança constantes.

Aos meus netos, Mel e Miguel, pela vida que renova as esperanças.

Aos meus filhos Ara, Artur e Cora cujos abraços alimentam minha alma e os sorrisos curam as

dores e renovam as esperanças.

Ao meu orientador, Prof. Dr. Paulo Henrique, pela maneira segura e calma com que trilhou

comigo este caminho e pela humildade que encanta e ensina.

Ao Prof. Dr. Hugo Mari, pelos ensinamentos claros e seguros e, sobretudo, pela forma com que se

empenhou para que eu superasse as dificuldades e cuja confiança em mim foi decisiva para a

conclusão deste estudo.

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AGRADECIMENTOS

À CAPES, cujo fomento possibilitou a conclusão deste estudo.

Aos amigos Sandra e Jorge, pela amizade desprendida que me fez continuar adiante.

Aos juízes de Direito Dr. Maurício Torres Soares e Dr. Estevão Lucchesi de Carvalho, por terem

contribuído de forma decisiva para a coleta dos dados.

Aos servidores do Fórum Lafaiete Geraldo Borja Pereira, Célia Dias Assis Gonçalves e Fernando

Ruas Rosa, pela forma acolhedora com que me conduziram na gravação de várias oitivas.

Aos meus genros Dene e Francis, pela solidariedade e motivação com que acompanharam em mais

esta tarefa.

A Rafa e Laia, pela ajuda requisitada sempre de última hora.

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RESUMO

O presente estudo toma por objetivo analisar o uso da pergunta como estratégia argumentativa

utilizada em algumas situações comunicativas do discurso jurídico. Considerando a importância

desse discurso para o convívio pacífico das sociedades e para a garantia de conquistas sociais e

individuais, o discurso jurídico constitui um espaço privilegiado para a aplicação de estratégias

argumentativas, uma vez que há um embate de pontos de vista e de lugares de direito. Como, para

maior clareza de linguagem, é exigido que as perguntas sejam elaboradas como atos de fala

diretos, a conversão desses atos em significação indireta requer maior habilidade dos

interlocutores, de modo que estes utilizem a reorientação pragmática. Este texto foi construído em

quatro capítulos, além de nota introdutória. O primeiro capítulo é destinado ao esclarecimento

acerca da concepção pela qual alguns termos são tomados, tal como as noções de contrato e de

situações comunicativas. Em seguida, é apresentado o quadro teórico-metodológico que serve de

fundamentação às análises dos dados coletados, sendo tomada a Teoria Semiolinguística, a Teoria

dos Atos de Fala, a Teoria da Problematologia, estudos sobre a Intencionalidade e várias teorias da

Argumentação, a fim de que se possam descrever determinados mecanismos inferenciais típicos do

jogo argumentativo jurídico. Depois disso, foram feitas análises, de modo a elucidar as estratégias

linguístico-enunciativas que atualizam o ato diretivo de pergunta no discurso jurídico e atuam no

plano argumentativo desse discurso. O último capítulo foi destinado às considerações finais,

momento em que são comentados os resultados obtidos através deste estudo.

LINHA DE PESQUISA: Enunciação e Processos Discursivos

PALAVRAS-CHAVE: Discurso jurídico. Argumentação. Atos de fala. Intencionalidade. Teoria

da Problematologia. Contrato de Comunicação

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RÉSUMÉ

L’étude présentée a comme objectif l’analyse de l’utilisation de la question, en tant que stratégie

argumentative utilisée en quelques situations communicatives du discours juridique. Considérant

l’importance de ce discours à la convivialité pacifique des sociétés et pour la garantie de

conquêtes sociales et individuelles, le discours juridique constitue un espace privilégié à

l’application des stratégies argumentatives puis qu’il y a un choc de points de vues et de lieux de

droits. Comme il faut, pour une plus large clarté de langage, que les questions soient élaborées

comme des actes de parole directs, la conversion de ceux-ci en signification indirect requiert une

plus grande habileté des interlocuteurs, pour qu’ils utilisent la réorientation pragmatique. Ce texte

a été construit en quatre chapitres en plus de la note introductive. Le premier chapitre est destiné

à l’éclaircissement de la conception à travers laquelle certains termes sont utilisés, comme la

notion de contrat et de situations communicatives. Ensuite, on présente le cadre théorique -

méthodologique qui sert de fondement aux analyses des données collectées, tout en utilisant la

Théorie Semiolinguistique, la Théorie des Actes de Parole, la Théorie de la Problématologie, les

études sur l’Intentionnalité, et encore d’autres théories de l’Argumentation, afin de décrire

certains mécanismes inférentiels typiques du jeu argumentatif juridique. Après, on a fait des

analyses afin d’élucider les stratégies linguistiques – énonciatives qui mettent à jour l’acte directif

de question dans le discours juridique et agissent sur le terrain argumentatif de ce discours.

Réservé aux considérations finales, le dernier chapitre commente les résultats obtenus à travers

cette étude.

LIGNES DE RECHERCHE : Enonciation et Procès discursifs

MOTS CLÉS : Discours juridique. Argumentation. Actes de parole. Intentionnalité.

Théorie de la Problématologie. Contrat de Communication

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 Sala de audiência – área criminal .................................................................... 32

Figura 2 Sala de audiência – área cível ........................................................................... 32

Figura 3 Salão do Tribunal do Júri ................................................................................. 33

Figura 4 Meta-predicados lógicos ................................................................................... 38

Figura 5 O patocoelho ...................................................................................................... 39

Figura 6 A direcionalidade como princípio da intencionalidade ................................. 39

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LISTA DE ABREVIATURAS

AD – Análise do Discurso

AIJ – Audiência de Instrução e Julgamento

CRE – crença

DES – desejo

EC – Estado de coisas

EM – Estados mentais

EM int – Estados mentais intencionais

IR – Interrogatório Judicial

SJ – Sessão de Tribunal do Júri

TAF – teoria dos atos de fala

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SUMÁRIO

1- INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 10 1.1 Objetivos .........................................................................................................................

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2- QUADRO TEÓRICO-METODOLÓGICO ................................................................. 19 2.1 Algumas noções aplicadas ao discurso jurídico ..........................................................19 2.2 Intencionalidade: noções e categorias ..........................................................................32 2.2.1 O postulado de Searle ..................................................................................................35 2.2.1.1 Condição de satisfação dos estados intencionais .................................................. 36 2.2.2 O postulado de Grice ................................................................................................... 41 2.3 Pressupostos da Teoria dos Atos de Fala .................................................................... 44 2.3.1 O ato de pergunta ........................................................................................................ 52 2.3.1.1 A pergunta conforme a Problematologia de Meyer ............................................. 55 2.4 Teorias da Argumentação ............................................................................................ 58 2.4.1 A Sofística na construção filosófica do Direito brasileiro ........................................ 59 2.4.2 A Retórica aristotélica e as categorias de análise argumentativa ............................. 64 2.4.3 A Nova Retórica de Perelman .................................................................................... 67 2.4.3.1 O acordo como objeto da argumentação .............................................................. 69 2.4.3.2 As técnicas argumentativas de Perelman ............................................................. 75 2.4.3.2.1 Os argumentos quase-lógicos ................................................................................ 76 2.4.3.2.2 Argumentos baseados na estrutura do real ............................................................. 84 2.4.3.2.3 Argumentos fundadores da estrutura do real ......................................................... 86 2.5. A argumentação na Teoria Semiolinguística .............................................................

87

3 – QUADRO DE ANÁLISE ............................................................................................. 92 3.1 Interrogatório judicial .................................................................................................. 92 3.2 Audiência de instrução e julgamento – área cível ...................................................... 1073.3 Audiência de instrução e julgamento – área criminal ...............................................

119

4 – CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................

143

REFERÊNCIAS ..................................................................................................................

147

ANEXOS .............................................................................................................................. 152

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1– INTRODUÇÃO

A argumentação, assim como a pergunta, dois aspectos da linguagem humana de

dimensões bastante distintas, representa um amplo território capaz de despertar o interesse pela

investigação, sobretudo porque ambos os aspectos pressupõem a dimensão pragmática da ação

linguageira, o que implica maiores rendimentos de sentido, em virtude da multiplicação das

possibilidades de usos da língua, conforme Chabrol e Emediato (2002, p. 295) que afirmam que

“Para melhor compreender o que sustenta as argumentações, faz-se necessário buscar as chaves

ligando os fenômenos semântico-linguísticos, psicológicos e sociais que atuam na comunicação

humana”.

Tema central de inúmeros estudos que são produzidos desde a Antiguidade Clássica, a

argumentação rendeu algumas linhas teóricas, muitas vezes antagônicas entre si. Mesmo assim,

cada uma dessas linhas contribuiu para que fosse possível compreender um pouco mais esse

objeto tão complexo. Foi assim que a argumentação percorreu a trajetória da sofística até a

dialética, passando pela lógica clássica, partindo de uma “arte da enganação”, como a chamou

Aristóteles, pensador que deslocou o uso da argumentação da “arte de bem falar” para “um

conjunto de técnicas ‘racionais’, visando a persuadir um auditório” (EMEDIATO, 2001, p. 162),

sendo hoje vista como uma atitude discursiva que aciona diversos mecanismos de organização

dos discursos, de acordo com a circunstância comunicativa em que se faz presente. Entretanto, a

despeito de todos esses estudos realizados, muito ainda há a ser investigado, sobretudo se

associado ao universo linguístico.

O ato de perguntar, ao seu turno, parece mesmo ser uma atividade que leva o homem a

transformar o mundo a seu redor e a si mesmo. Não é muito descabido imaginar que,

provavelmente, o homem se perguntou como seria possível carregar o máximo de objetos e o

maior peso com o mínimo de esforço e que, dessa pergunta, tenham surgido a roda, os veículos

automotores e, em um redimensionamento de noções como as de tempo, espaço e realidade, a

Internet, só para citar alguns inventos do homem.

A existência humana requer interação com o mundo mediada pela inteligência que

determina sua ação e sobrevivência. É perguntando que o homem constrói seus saberes e

viabiliza não só sua permanência no mundo como também sua evolução. E se há uma imagem

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que bem traduz essa atividade humana é “O Pensador”, de Auguste Rodin. Uma figura gigante de

um homem sentado, apoiando o queixo na mão, simboliza o pensamento humano sobre a vida,

representa a figura humana carregada de sincera preocupação e de profunda reflexão, a

interrogar-se acerca do seu destino.

Como fala Charaudeau (2008, p.19), o “conhecimento é a resposta a uma interrogação

sobre a relação vivido-teoria” e que “provém de um esforço de objetivação para arrancar do

mundo empírico uma explicação sem a qual ele permaneceria um vivido sem significância”. Daí

a prática acadêmica, por exemplo, de estabelecer uma pergunta que fundamente uma investida

científica. Via de regra, ouve-se na academia a pergunta “Qual é a sua pergunta?”.

Em texto intitulado “A noção de tempo e o ato de perguntar”, Patrick W. Azevedo e

Sylvia Beatriz Joffily (2008), ao discutirem o que significa “perguntar” do ponto de vista

neuropsicológico, contam que, etimologicamente, “perguntar” vem do verbo latino “prae-

cuntare” e se refere à ação de cutucar, de sondar o desconhecido com o auxílio de um “contus”

que, em latim, quer dizer “uma varinha”.

Numa dimensão mais dialogal, a pergunta aparece como uma espécie de motor das

interações conversacionais. É muito difícil imaginar que em conversas de toda ordem não apareça

nenhum tipo de pergunta, seja da natureza argumentativa, investigativa e mesmo retórica ou

fática. Já de início, uma conversa se estabelece por meio de um cumprimento, não raramente

estruturado com o uso de uma pergunta (“Tudo bem?”, “Como vai?”), e se desenrola sob os

efeitos que as inúmeras perguntas feitas trazem à interação, numa dupla articulação, isto é, a

pergunta vai dando o tom da conversa ao mesmo tempo em que é determinada pela situação

comunicativa e pelo domínio discursivo em que se inscreve. Entretanto, a possibilidade de

ativação discursiva da pergunta não fica por aí. Conforme estudamos (MURTA, 2005), mesmo

em situações monologais, como é o caso do discurso publicitário, a pergunta atua naquilo que se

pode chamar de fingimento dialogal, instanciando o outro (leitor ou ouvinte) no discurso e

capturando sua atenção.

Considerando a perspectiva de ato de fala, apontada por Benveniste (1989, p. 89), quando

lembra que “a interrogação (...) é uma enunciação construída para suscitar uma resposta”, a

pergunta pode realizar várias ações, o que lhe confere um certo caráter plural, sendo, em certa

medida, uma espécie do que chamaremos de “poliato”. Isso porque, por meio da pergunta, é

possível realizar uma gama considerável de atos indiretos, o que mostra, por um lado, a riqueza

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comunicativa desse ato de linguagem; por outro, a sua complexidade e consequente importância

para estudos que se ocupam de análises de aspectos acerca da linguagem. Se, originalmente, a

estátua “O Pensador” foi feita para compor o monumento “As portas do inferno”, em homenagem

a Dante Alighiere por sua obra “Divina comédia”, analogamente pode-se dizer que a pergunta é o

que se pode chamar de uma nebulosa para a Teoria dos Atos de Fala, quase que uma porta do

inferno da divina comédia, que é a comunicação humana.

Dessa forma, sendo a pergunta um padrão de enunciado e a argumentação um conjunto de

estratégia de uso de enunciados, é pertinente considerar que esse tipo de enunciado, sobretudo em

razão da sua variada funcionalidade, constitui recurso para a construção do plano argumentativo,

conforme verificamos no discurso publicitário, em nossa pesquisa de Mestrado (MURTA, 2005).

Considerando que, no discurso publicitário, a pergunta não desempenha o papel de uma

condição enunciativa, pretendemos tomar outro domínio discursivo para checar o funcionamento

da estratégia da pergunta no plano argumentativo em situações comunicativas para as quais a

pergunta possua caráter constitutivo. Assim, optamos por investigar três situações comunicativas

do discurso jurídico, a saber, as AUDIÊNCIAS DE INSTRUÇÃO E JULGAMENTO (AIJ), as

SESSÕES DE TRIBUNAL DE JÚRI (SJ) e os INTERROGATÓRIOS JUDICIAIS (IR). Pelo

fato de a pergunta ser um ato constitutivo dessas situações comunicativas, nós pensamos que isso

pode oferecer um considerável panorama de análise e de comparação desses usos e seus efeitos

de sentido, em função da sua validade argumentativa. Além disso, o discurso jurídico é um

domínio notadamente regulador e marcadamente um lugar de poder, constituído de regras muito

rígidas, cujos atos e situações comunicativas possuem uma prescrição bastante calcificada, se não

obrigatória.

Se em um domínio tão escamoteado como o publicitário, em que a dimensão acional de

auferir lucros é cuidadosamente apagada, a pergunta realiza desdobramentos e derivações tão

curiosos, qual será o seu comportamento com relação ao plano argumentativo, ou seja, que

efeitos de sentido esse ato de fala pode derivar em um domínio tão cercado e pouco permissivo,

cujo objetivo principal é assumidamente aplicar um dado direito a uma das partes querelantes?

Por conseguinte, esse desdobramento é propriedade do ato de pergunta, uma possibilidade do

domínio discursivo, ou uma conjugação desses dois componentes norteados pela intencionalidade

argumentativa?

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Da perspectiva do discurso jurídico, algumas considerações devem ser feitas acerca da

nossa escolha como espaço de pesquisa. As concepções teóricas voltadas para o campo do Direito

vêm, de longa data, buscando superar a interpretação unilateral e formal dos textos legais. Essa

tendência de leitura literal surgiu desde a Escola da Exegese, da Escola Histórica e da Escola

Pandectista1, mas tomou corpo a partir das ideias do jurista austríaco Hans Kelsen, para quem a

ciência do direito deveria abster-se de influências e de instrumentos de outras ciências, devendo o

jurista amparar suas interpretações na materialidade do discurso inscrita na lei positivada, isto é,

registrada na literalidade do texto legal. Entretanto, essa corrente monista não alcançou maior

expressão devido, principalmente, à oposição daqueles que adotam visão dialética e

interdisciplinar do Direito como, no caso do Brasil, apontou Miguel Reale (2003).

De fato, parece muito forçado entender o direito como uma ciência fechada em si mesma,

enquanto ela se nos apresenta de natureza tão dialética. Tomando por referência as observações

de Perelman (1970), a noção de justiça que norteia a filosofia do direito, notadamente quanto diz

respeito às fontes do direito2, está situada no ponto máximo de tensão entre a equidade que se

pode ministrar ao caso concreto (exercida fora da letra da lei) e a segurança do princípio da

legalidade (dada pela letra da lei), de tal maneira que o julgador vivencia o drama de sopesar

esses valores e administrá-los antes de cada sentença a ser dada. Além disso, nem os julgamentos

nem a apresentação dos fatos, na composição do processo judicial, possuem o condão (nem se

arvoram de tal) de fazer da reconstituição da realidade nos autos um reconto preciso e

transparente do passado, em nítida descrição narrativa dos fatos que geraram as consequências

jurídicas. Mesmo os operadores do direito buscam apresentar uma versão mais plausível, mais

consistente e, por isso mesmo, mais aceitável do fato jurídico, capturando o outro, levando-o a

aderir à posição defendida. O contrário disso é o que pretendeu a linha monista, objetivando

transformar o processo judicial em tradutor da realidade e o julgador em mero operador de

silogismos.

1 Todas essas Escolas preconizavam a positivação (codificação) da lei e defendiam a interpretação literal do texto legal. A primeira tem origem francesa e é uma corrente de pensamento jurídico que floresceu no início do século XIX, a partir do Código Napoleônico. A segunda marca o pensamento alemão pelo historicismo, durante o fim do século XVIII e início do XIX, tendo em Savigny seu representante maior, para quem o direito natural não é mais concebido como um sistema normativo auto-suficiente, separado do direito positivo, e sim como um conjunto de considerações filosóficas sobre o positivo. A terceira, também de origem alemã, surgida no início do século XVI, representa uma metodologia de estudo e de aplicação do direito, relacionada com o jus naturalismo. 2 As fontes do direito constituem instrumentos de aplicação da justiça, a saber, a própria lei e, quando esta apresentar alguma lacuna, a analogia, a doutrina, a jurisprudência e o costume.

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Cabe dizer que a lógica jurídica não é uma reprodução da lógica formal, distanciando-se e

muito da noção de aperfeiçoamento dos raciocínios lógico-dedutivos, mas consiste

fundamentalmente de uma lógica argumentativa. É na prática do discurso, por meio da efetivação

de cada uma das suas situações comunicativas, que seus atores são colocados em mise-en-scène,

construindo uma realidade jurídica, realidade essa em que se constrói, para cada processo

judicial, a noção de justiça, de equidade, de razoabilidade e de aceitabilidade das decisões

alcançadas.

A escolha do discurso jurídico deve-se, portanto, à sua natureza essencialmente

linguística, argumentativa e dialética.

Nessa medida, vale dizer que a complexidade do universo jurídico não pode ficar à mercê

de correntes que olvidem as tramas do sentido e suas implicações para a dinâmica social em que

o evento discursivo se insere. Uma análise do discurso jurídico que se detenha em aspectos

descritivos ou normativos da materialidade linguística corre o sério risco de desconsiderar fatores

que atuam na transformação da palavra em ação (no caso, por exemplo, das sentenças) e da ação

em palavras (no caso do fato que gerou a ação judicial), deixando de verificar os efeitos de

sentido que estão na origem de ações humanas, bem como as estratégias linguageiras humanas

que norteiam os inúmeros efeitos de sentido provenientes de atos de fala.

Nos terrenos da linguística, as pesquisas no campo da Análise do Discurso (AD)

apresentaram expressivos avanços pelo fato de oferecerem suporte teórico que permite a

compreensão dos fenômenos de linguagem que ocorrem nos vários domínios discursivos. Isso

porque a AD toma por objeto de análise os usos lingüísticos articulados com as dimensões sócio-

históricas do evento enunciativo que os originou, resultando em melhor compreensão dos

fenômenos da linguagem. Dentre esse suporte destacam-se a teoria semiolinguística e a teoria dos

atos de fala. Concebendo a linguagem como forma de ação, essas teorias apresentam de modo

complementar os parâmetros de análise dos discursos, exatamente por considerar as dimensões

pragmáticas que constituem os discursos. A primeira, a partir da noção de contrato, desloca a

discussão para uma dimensão mais abrangente, considerando a linguagem como prática social, na

qual os sujeitos agem na sociedade. A segunda propõe a análise dos modos pelos quais as

palavras são convertidas em ação, salientando a preponderância dos atos de fala como formas de

linguagem que conduzem a essa conversão.

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Considerando que o direito é uma ciência interdisciplinar e dialética, nada mais coerente

do que tomar para sua análise os instrumentais teóricos de um campo que cuida exatamente da

complexidade da linguagem na conversão de palavras em ações, como é o caso da Análise do

Discurso. Além disso, como Bittar e Almeida (2006, p. 423 - 424) apontam, há a necessidade de

maiores estudos acerca da linguagem jurídica, já que, somente a partir da década de 70, o assunto

passou a ser tema de estudos de linguagem, notadamente através das investidas de Perelman. Os

autores chegam a dizer que “Não há direito sem discurso, pois a racionalidade do que é jurídico

depende do inter-relacionamento humano”.

Da perspectiva do referencial teórico, neste estudo é feita a escolha por uma postura

“antropofágica”, na concepção apontada por Machado (2001). As teorias que fundamentam este

estudo apresentam natureza muito mais complementar do que antagônica entre si. Mesmo que

algumas delas situem-se em lugares aparentemente opostos, essa oposição significa a análise de

um mesmo objeto a partir de perspectivas diferentes, o que favorece uma visão mais ampla do

objeto analisado.

Tomamos, então, a pergunta inscrita nas três situações comunicativas do discurso jurídico,

entendida como uma estratégia argumentativa, como nosso objeto de estudo. Para nós, a despeito

de ser exigência dos ordenamentos jurídicos que a pergunta seja enunciada como um ato de fala

direto, ela pode ser desdobrada em outros atos, a fim de funcionar como estratégia argumentativa

nessas situações comunicativas.

Nossa hipótese de que a pergunta está na matriz da dimensão argumentativa nessas

situações comunicativas do discurso jurídico tem por base o modelo da Problematologia de

Michel Meyer, segundo o qual toda forma de interação discursiva se funda sobre uma dupla

dimensão fundamental, a saber, a problematológica, que diz respeito à dimensão da pergunta, e a

apocrítica, que se liga à dimensão da resposta. Isso vale dizer que a afirmação de alguma coisa

pressupõe uma pergunta sobre essa coisa, situação claramente vivenciada nessas três situações

comunicativas do discurso jurídico. Além disso, o ato de pergunta, sendo obrigatoriamente um

enunciado direto nesse tipo de discurso, atua como estratégia argumentativa no jogo de perguntas

e respostas, por possibilitar a derivação de um ato de fala, construído originalmente como

enunciado direto, em uma significação indireta por meio de uma reorientação pragmática.

A fim de se verificar essa hipótese, foram realizadas cerca de trinta e sete horas de

gravação de audiências de instrução e julgamento (AIJ), de sessões de tribunal do júri (SJ) e de

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interrogatórios judiciais (IR), das quais foram selecionados os pontos de maior rendimento

argumentativo decorrente do uso das perguntas e que estão detalhados no quadro de análise.

Outras ocorrências foram utilizadas na exemplificação do quadro teórico, com a finalidade de

aproximar a teoria do objeto de estudo. Ao todo, foram assistidas oito audiências de instrução e

julgamento, sendo duas delas na área penal, perfazendo um total de doze horas; cinco

interrogatórios judiciais, compondo cerca de cinco horas; e três sessões do tribunal do júri,

somando aproximadamente vinte horas.

Vale ressaltar que, conforme acordado entre as partes, os operadores do direito e esta

pesquisadora, todo o material gravado foi apagado, após seu uso na elaboração deste estudo. Isso

se deve a solicitações de juízes e promotores, cuja intenção é resguardar nomes de pessoas, ainda

que se tratasse de sessões públicas e cujas atas (ou termos de oitiva, como chamam alguns

operadores do direito) sejam de acesso aberto. Além disso, foram citados exemplos ocorridos em

AIJ da Justiça Eleitoral que, a despeito de ser segredo de justiça, foi liberada para este estudo,

desde que preservadas as qualificações das partes, o município e a comarca em que aconteceu o

processo.

Quando da transcrição das oitivas, procuramos manter o mais próximo dos níveis de

linguagem empregados pelos participantes, de tal forma a oferecer material mais fidedigno e que

bem retrate o perfil dos envolvidos. Foram evitadas transcrições detalhadas de marcas da

oralidade (tais como pausas, alterações de tom de voz, hesitações, sobreposição de turnos,

reduções excessivas, dentre outras), por não serem objetos deste estudo e, principalmente, porque

poderiam dificultar a fluidez da leitura.

Com relação às situações comunicativas pesquisadas, esclarecemos que optamos pela

metodologia de utilizar as análises das sessões do tribunal do júri para exemplificar partes do

quadro teórico. As outras duas situações, além de também ilustrarem a teoria, são mais

detalhadamente discutidos no quadro de análise, com o objetivo de verificar a aplicabilidade

teórica no discurso jurídico, bem como checar a validade da hipótese por nós aventada. Essa

escolha se deu em razão da duração de uma sessão do tribunal do júri. Das que acompanhamos, a

mais rápida durou cerca de quatro horas, o que implicaria uma extensa transcrição, muitas vezes

repetitiva. Por isso, fizemos a opção de selecionar os pontos de real interesse e aplicá-los ao

quadro teórico, contribuindo para a leitura deste texto.

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Do ponto de vista estrutural, este texto está organizado em quatro partes. Esta primeira, de

caráter introdutório, é seguida por uma exposição teórica, quando são discutidos os pressupostos

que norteiam as análises. Esse quadro traz uma breve nota sobre a concepção a partir da qual as

noções de discurso e de enunciação são tomadas neste texto Segue-se a isso a apresentação dos

pressupostos acerca da noção de contrato de comunicação e de situação comunicativa e sua

aplicação ao discurso jurídico, bem como as noções e categorias de análise sobre

intencionalidade, pressupostos da teoria dos atos de fala e, fechando esse quadro, as teorias da

argumentação que fundamentam este estudo.

Depois disso, vem o quadro de análises em que as perguntas feitas nas oitivas em AIJ e IR

recebem análise detalhada, conforme o quadro teórico. Finalmente, estão as Considerações

Finais, parte em que são apresentadas as conclusões a que foi possível chegar a partir do estudo

feito.

1.1 Objetivos

Geral

• Situando este estudo no interior da Análise do Discurso, o objetivo geral é avaliar o uso

argumentativo da pergunta nessas três situações comunicativas do discurso jurídico.

Específicos

• Analisar os tipos de perguntas ocorridos em AUDIÊNCIA DE INSTRUÇÃO E

JULGAMENTO, INTERROGATÓRIO JUDICIAL e TRIBUNAL DO JÚRI, inscritos no

discurso jurídico.

• Confrontar essas ocorrências, a fim de reconhecer que fatores propiciam o seu

funcionamento como estratégia discursiva.

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• Verificar os efeitos de sentido proveniente desses usos e suas implicações para o plano

argumentativo nessas situações comunicativas do discurso jurídico.

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2– QUADRO TEÓRICO-METODOLÓGICO

2.1 Algumas noções aplicadas ao discurso jurídico

Antes de abordarmos o quadro teórico propriamente dito, apresentaremos algumas

concepções que são basilares para a fundamentação deste estudo. Assim, partimos da noção de

discurso, passamos à compreensão acerca de enunciação, para finalizarmos com as noções de

contrato e a de situação de comunicação, buscando verificar essas noções no discurso jurídico.

Concepções variadas de discurso permeiam os estudos e vão desde a sua vinculação

estrita ao enunciado até a dimensão de ordem mais social, como é o caso de Bakhtin (1981). Para

Bakhtin (2003, p. 225) o “Discurso não reflete uma situação, ele é uma situação. Ele é uma

enunciação que torna possível considerar a performance da voz que o anuncia e o contexto social

em que é anunciado”. Ou seja, uma prática que é definida por espaços e regras que são originados

da esfera social, mas que também atua na transformação da realidade de âmbito social que cerca,

delimita e regula essa prática. É por isso que pensamos em discurso jurídico, por exemplo, que é,

como tal, uma prática social norteada por valores ideológicos e estruturada a partir de espaços,

regras e ordenamentos próprios, tipificadores dessa prática. Por outro lado, o discurso jurídico

atua na transformação da realidade que o cerca, na medida em que, ao aplicar um determinado

direito, altera um estado de coisas do mundo, sendo um domínio nitidamente marcado pelo poder,

por regras, um lugar de hierarquias e de modos específicos de ação.

No que diz respeito à enunciação, Benveniste (1989, p. 81-90) a define como “conversão

individual da língua em discurso”, ato em que o locutor “apropria-se do aparelho formal da

língua”, colocando-a em funcionamento, passando, desse modo, a realizar ações. Com isso,

Benveniste esclarece que a enunciação transforma a língua de uma possibilidade de usos em uma

“instância do discurso” que parte do locutor e chega ao alocutário, do qual requer uma outra

enunciação. Assim, embora nascendo no “eu”, a enunciação de forma explícita ou não, instaura o

“outro” no discurso, consistindo, dessarte, em uma alocução. Essa evocação do outro representa

uma característica da enunciação, na medida em que este advento estabelece o que Benveniste

chama de “relação discursiva com o parceiro”, constituindo o “quadro figurativo da

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enunciação”. Aplicando essas considerações ao universo jurídico, é possível perceber, a título de

exemplo, a petição inicial do advogado como uma primeira enunciação do locutor que suscita

uma sucessão de outras enunciações, como a do juiz a instanciar a outra parte no discurso, para

que, por sua vez, enuncie sua defesa.3

Esse quadro figurativo nos remete às noções tanto de contrato quanto de situação

comunicativa.

O conceito de contrato permeia nosso cotidiano, regulando nossas práticas e

parametrizando nossos comportamentos em sociedade, atuando como forma de garantir a

convivência social ou como limites bastante estreitos para a ação. No caso do Direito, essa noção

recebe uma significação específica, deixando de ter a natureza de combinação tácita entre as

pessoas para ganhar a dimensão de uma categoria tanto conceitual quanto prática, verificável em

uma variedade de tipos, merecendo receber estudo especializado no Direito Civil.

Nos estudos acerca da linguagem, como é este o caso, a noção de contrato não só é

considerada como, além de ganhar outros contornos, favorece a compreensão do funcionamento

da linguagem e dos efeitos de sentido resultantes das ações linguageiras.

Surgida no seio dos estudos de Saussure, a noção de contrato passa, nos estudos de

Charaudeau (1994), a ter um contorno mais aproximado de uma categoria operacional de análise

das ações linguageiras, e é esta que aqui nos interessa mais de perto. Para Charaudeau, a noção de

contrato funciona como uma forma de enquadramento mais amplo, necessário à atividade

linguageira, oferecendo tanto um conjunto de restrições aos sujeitos participantes quanto um

espaço de estratégias que podem ser articuladas para a viabilização dos projetos de palavra ali

desenvolvidos.

Para Charaudeau, todo ato de linguagem realiza-se dentro de um tipo específico de

relação contratual (de uma articulação íntima, bidirecional, não determinista, entre os planos

situacional e linguístico), implicitamente reconhecido pelos sujeitos, e que define, por um lado,

aspectos ligados ao plano situacional – qual a identidade dos parceiros, seus objetivos, o assunto

de que falam, em que circunstâncias materiais – e, por outro, aspectos relativos ao plano

comunicacional e discursivo – quais as maneiras de dizer ou quais as estratégias discursivas

pertinentes.

3 Na linguagem jurídica, com base no Princípio do Impulso Oficial, o judiciário só pode agir se provocado por alguém. A petição inicial, então, impulsiona o juízo à ação. Vale lembrar que os termos “provocar” e “impulsionar” fazem parte do vocabulário do Direito, sendo usados, inclusive, nesse Princípio citado.

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Assim, pelo fato de fornecer um modelo próprio da Análise do Discurso, que busca

compreender o processo enunciativo, no qual seja considerada a dimensão extralinguística que

imbrica de modo assaz pertinente à manifestação linguística, a teoria semiolinguística apresenta

uma visão de linguagem muito próxima da noção de Benveniste, segundo a qual a referência ao

mundo está submetida à relação enunciativa estabelecida entre os sujeitos parceiros do contrato.

Dito de outra forma, a linguagem é o médium entre os sujeitos coenunciadores e entre estes e o

mundo.

Conforme Charaudeau (1996) afirma, a significação resulta de um componente

linguístico, cuja materialidade estrutura-se de acordo com suas propriedades intrínsecas, de

maneira significante, e de um outro componente situacional, cuja ordem é psicossocial, que

favorece a imbricação dos sujeitos tanto atores como comunicantes. Com base nisso, o autor

postula a existência de um sentido relacional, fruto da relação intersubjetiva dos parceiros do

contrato, e de um sentido implícito, que vai além das propriedades lexicais e das relações

sintagmáticas do enunciado, já que é processado na perspectiva das condições de enunciação, o

que favorece a elaboração de inferências sobre aquilo que não é dito explicitamente. Daí a

importância da conjugação dos espaços interno e externo para os estudos da linguagem, bem

como da compreensão mais ampla do processo de significação. Dito de outra forma, a

significação resulta de duas interrelações que agem simultaneamente uma sobre a outra, quais

sejam, a interrelação dos dois espaços de produção de sentido interno e externo e a interrelação

dos dois espaços enunciativos, isto é, o da produção, centrado no “eu”, e o da interpretação,

centrado no “tu”.

Considerando que os parceiros fazem uma encenação enunciativa (mise-em-scène) que

constitui o ato de linguagem, ao fazerem uso da linguagem, esses parceiros situam-se em

contratos a cujas convenções se subordinam. Essas convenções são práticas psicossociais

compartilhadas entre os membros de uma determinada comunidade, sendo que cada parceiro tem

seu projeto de fala, pautado em uma pertinência intencional, estabelecida conforme o contrato,

cuja condição primeira para o seu estabelecimento é o reconhecimento mútuo dos interlocutores

como parceiros. Assim, o contrato, como base de toda atividade de linguagem, requer três

condições básicas à sua realização. A primeira é o reconhecimento do saber, que representa um

certo conjunto de universos de referência, em termos de sistemas de crenças e valores, que

permitem que os parceiros assumam as suas representações supostamente partilhadas sobre o

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mundo. A segunda é o reconhecimento do poder, que diz respeito à posição socioinstitucional

ocupada pelos parceiros do contrato, articulada aos papéis linguageiros que os sujeitos assumem

no discurso em razão da realidade psicossocial em que se dá o jogo enunciativo. E, por último, o

saber fazer, que se refere à capacidade do sujeito comunicante, tornado enunciador, de confirmar

as duas condições anteriores, através da efetivação de seu projeto de fala por meio do discurso,

adequando o circuito interno (do dizer) com o externo (do fazer).

Enquanto o reconhecimento do saber e o reconhecimento do poder instauram a

legitimidade do sujeito falante, conferida em virtude da posição que ele assume nas diferentes

redes de práticas sociais, o saber fazer lhe confere a credibilidade, que não lhe é dada a priori,

mas conquistada e negociada no desenvolvimento das práticas de linguagem e que está

diretamente vinculada ao desempenho enunciativo apresentado pelo sujeito comunicante, tornado

enunciador. Caso não seja consolidada, a credibilidade pode colocar a legitimidade em questão, o

que implica dizer que o direito à palavra do sujeito falante pode ser questionado, apesar da

legitimidade que ele possua a princípio.

Trazendo esses conceitos ao universo da prática jurídica, vê-se que o autor da ação,

mediante um fato real, constitui, por meio de uma procuração ad judicia, um advogado,

devidamente autorizado pela Ordem dos Advogados, para que este ajuíze a ação. Essa ação é

encaminhada a uma determinada vara, conforme sua natureza cível ou criminal (por exemplo, só

para citar os ramos do Direito da chamada Justiça Comum4), cujo juiz dará prosseguimento ao

pedido, fazendo com que a parte ré tome conhecimento da ação e dela participe. Assim, constitui-

se a legitimidade dos sujeitos participantes da ação judicial. Conforme as fases processuais, as

partes do processo vão atuando em busca de conferir veracidade à sua tese jurídica. O embate

argumentativo de cada parte recai, principalmente, sobre a credibilidade, o saber fazer da outra

parte, de modo que esta seja desacreditada e tenha seu projeto de palavra abalado e, por

conseguinte, a tese jurídica derrotada.

Partindo da concepção da linguagem como forma de ação dos sujeitos na sociedade, a

teoria semiolinguística, como um dos modelos mais recentes da Análise do Discurso, oferece um

referencial teórico bastante produtivo à análise de todos os domínios discursivos, justamente por

levar em consideração que o sentido é socialmente construído a partir dos efeitos derivados dos

4 O Sistema Judiciário Brasileiro adota as designações de “Justiça Comum” e de “Justiça Especializada”, conforme a área em que se dá a lide.

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processos enunciativos engendrados na interação linguística. Ao deslocar a discussão do eixo

estritamente linguístico para uma dimensão discursiva mais abrangente, essa teoria busca

contemplar a linguagem como prática social, propondo, em virtude disso, uma alteração na

abordagem da significação, na medida em que integra as dimensões situacional e linguística do

discurso como componentes essenciais à produção de sentido. O componente linguístico,

organizado a partir de seus próprios princípios, e o situacional, que se atém às especificidades do

contexto de onde se depreendem os elementos psicossociais, constituem as duas dimensões que,

embora autônomas, passam a se interrelacionar, de tal maneira que resultem na significação do

discurso.

Charaudeau (1983, p. 50) explicita que “a noção de contrato pressupõe que os

indivíduos, pertencendo a um mesmo corpo de práticas sociais, sejam suscetíveis de entrar em

acordo sobre as representações linguageiras dessas práticas sociais”. Dessa forma, os

interlocutores que encenam o ato de linguagem devem reconhecer-se mutuamente como parceiros

de uma prática comunicativa, para que seja firmado entre eles um contrato no qual eles são

participantes de uma troca comunicativa, tal como propõe Charaudeau (1992).

No discurso jurídico, nota-se claramente essa noção de contrato. Seja em uma audiência

de instrução e julgamento (AIJ), em uma sessão de tribunal do júri (SJ), seja no interrogatório

judicial (IR), cada participante reconhece seu papel a ser ali representado. Assim, o magistrado

nomeado (na verdade, o juiz é sorteado pela Distribuição) coloca-se como o julgador do caso,

presidindo as reuniões; os advogados, legalmente constituídos, representam juridicamente seus

clientes; e estes, por sua vez, constituem as partes da querela. O reconhecimento desses papéis

faz com que nenhum dos interlocutores assuma o lugar do outro, o que o levaria a uma situação

totalmente ridícula.

Uma vez estabelecido o contrato, os parceiros delineiam, a partir das intenções

comunicativas dos sujeitos envolvidos nas práticas de linguagem, o seu projeto de palavra que,

conjugado com a identidade desses parceiros, dá materialidade ao contrato, ao mesmo tempo em

que é por este condicionado, efetivando as trocas interlocutivas nessa dialética que constitui todo

e qualquer discurso.

Ao abordar a noção de intencionalidade, por meio da expressão intenções comunicativas,

postula-se que cada prática de linguagem significa uma forma de agir sobre o interlocutor, com o

objetivo de conduzi-lo a uma determinada ação. Isso faz com que o sujeito elabore seu projeto de

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palavra de acordo com o contrato sociolinguageiro que compartilha com o interlocutor. Assim, o

viés argumentativo se apresenta no discurso jurídico de forma mais acentuada, em que há a

admitida intenção de se alcançar um suposto direito, em cujo interior discursivo digladiam duas

forças: a que pleiteia o direito e a que nega a existência de tal direito. Como se pode ver, o

projeto de palavra de cada parte vem marcado por esse lugar no mundo, bem como serve de

recurso de delimitação desse lugar. Em síntese, a teoria semiolinguística postula que a efetivação

do contrato funda-se sobre uma expectativa (enjeu) de que os interlocutores se reconheçam um

ao outro com os estatutos que eles se imaginam (CHARAUDEAU, 1983, p. 73).

Para que seja estabelecida uma relação contratual, conforme apresenta Charaudeau (1996:

35), são necessários três componentes próprios do ato de linguagem, quais sejam, o

comunicacional, o psicossocial e intencional.

O componente comunicacional é entendido como a dimensão física da situação de

interação e que esclarece se os interlocutores estão presentes durante o ato de linguagem, se eles

se veem, que tipo de canal que utilizam, se esses canais são múltiplos ou não. As três situações

comunicativas do discurso jurídico aqui estudadas acontecem em ambientes físicos apropriados e

designados para tal, com os parceiros presentes, usando a fala como canal de interlocução.

O componente psicossocial diz respeito aos estatutos através dos quais os parceiros se

reconhecem, ou seja, que papel assumem em tal contrato, em razão da idade, do sexo, da posição

socioprofissional, instituições a que pertencem, posição hierárquica, dentre outros aspectos. No

discurso jurídico, esses papéis, como já apontado acima, são muito claramente definidos e

percebidos, e as intencionalidades próprias de cada um deles são também quase que

institucionalmente delimitadas. Afinal, não se espera que o advogado do réu assuma a tese do

advogado do autor. Interessante lembrar que a questão dos papéis associada às intencionalidades,

delimitando as competências (ou o poder fazer, para usar terminologia da teoria), é tão marcada

no discurso jurídico que ao juiz compete julgar os pedidos com base nos autos e com aquilo que

foi efetivamente pedido. Qualquer concessão a mais que ele faça para a parte autora é chamada

de extra petita (fora do pedido) e pode ser impugnada pela outra parte, desde que não sejam

questões sobre as quais o juiz pode decidir de ofício.

Finalmente, o aspecto intencional diz respeito aos conhecimentos que os parceiros

possuem, já construídos ou em construção, do outro, de forma imaginária, evocando

conhecimentos supostamente partilhados, para ativar informações sobre as intenções do ato de

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linguagem e as estratégias engendradas como forma de manipulação. É comum perceber que

integrantes das cenas judiciais em muitos casos partilham o conhecimento de que as partes têm

uma intenção diversa daquela da outra parte, daí porque consideram que o promotor tem sempre

a função de acusar (o que nem sempre acontece) e que testemunha tende a mentir (daí a

necessidade de checar cada informação dada por ela). Esse componente diz respeito mais

estritamente à realização dos atos de fala direcionados para a consolidação do projeto de palavra

de cada uma das partes.

No caso do discurso jurídico, ao imbricar esses três componentes, cada uma das partes

elabora, em virtude do que conhece desse contrato, uma imagem discursiva do seu oponente a

partir da qual serão articuladas estratégias argumentativas. O tom de formalidade e o alto nível de

convencionalidades fazem com que os sujeitos com pouca experiência no discurso jurídico criem

uma imagem de extremo rigor e seriedade, o que empresta aos logos um tom de maior cuidado

linguístico, revelado, por exemplo, nas formas de tratamento. É por isso que ouvir uma

testemunha tratar o promotor por “você” causa tamanha estranheza e beira o desrespeito.

Essa noção de contrato é efetivada no interior da situação comunicativa que, para

Charaudeau (2006, p. 77), é como um “cenário teatral”, em que são apresentadas as limitações de

espaço, tempo, de relações, de palavras, e no qual se realizam as trocas sociolinguageiras. Os

condicionamentos que permitem a realização dessas trocas, para ele, são construídos através de

convenções e normas de condutas linguísticas sem as quais não poderia haver comunicação

humana. O ato comunicativo concreto ocorre numa ambiência de cointencionalidade, cujos

interlocutores se submetem às exigências da situação de comunicação. Nessa mesma direção,

entende-se que as situações comunicativas acontecem em meio à articulação entre as coerções

situacionais, determinadas pelo contrato de comunicação, e as possibilidades de engendramento

discursivo.

As muitas situações comunicativas que compõem as também inúmeras práticas sociais

podem ser compreendidas como sendo separadas umas das outras a partir do detalhamento de

dispositivos comunicacionais específicos de cada situação e que as configuram, por assim dizer,

apresentando-lhes o mise-en-scène. O dispositivo, portanto, é uma maneira de se pensar a

articulação entre os elementos que formam um conjunto estruturado em virtude da solidariedade

que os vincula. Constituem-se como dispositivos a identidade dos participantes, a finalidade, os

propósitos temáticos e os suportes materiais.

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A dimensão que aborda a identidades dos parceiros pode ser compreendida pela

expressão “quem se dirige a quem?”, referindo-se à definição dos parceiros do contrato, inseridos

numa determinada situação comunicativa, em termos de sua posição como sujeitos comunicantes

(EUc) e / ou sujeitos interpretantes (TUi).

Em um interrogatório judicial, sendo uma situação que ocorre somente na área do direito

penal, tais parceiros se traduzem pelo Ministério Público (através do seu representante, o

promotor de justiça), parte autora da lide, por ser ele quem oferece a denúncia que inicia a ação

judicial; pela parte ré, vivida pela pessoa acusada do crime em discussão; e pelo juiz, que

representa o papel de julgador, cujo convencimento favorável cada uma das partes almeja

conquistar, constituindo, por isso mesmo, o destinatário final das argumentações engendradas

nessa situação.

Com relação à audiência de instrução e julgamento da área cível, os parceiros são

identificados como a parte autora e a parte ré, cada uma delas acompanhada de seu advogado e de

suas testemunhas, e o juiz que preside a audiência. No direito penal, a diferença está na

constituição da parte autora que é, como no IR, representada pelo Ministério Público, por meio

do promotor. Assim como no IR, o juiz é o destinatário final das argumentações, a quem cada

parte espera convencer.

Na sessão de tribunal do júri, a mudança na identidade dos participantes ocorre no nível

do destinatário (TUd). Como essa situação ocorre somente nos âmbitos do direito penal, como no

IR, a parte autora é o Ministério Público e o réu é a pessoa acusada. Cada uma dessas partes vem

composta ainda pelas suas respectivas testemunhas, sendo a parte ré acompanhada por seu

advogado. Todavia, nesse cenário aparece o corpo de jurados, composto pelos chamados juízes

não togados. Estes são pessoas da própria sociedade, que não necessariamente conhecem sobre as

matérias de direito que serão ali apresentadas, mas que, a despeito disso, também julgarão o réu,

tomando por base as apresentações feitas nesse evento. Por isso, o corpo de jurados, juntamente

com o juiz togado, constitui o TUd dessa situação.

Considerando a disputa argumentativa travada nessas situações comunicativas do direito,

na qual duas partes oponentes disputam, cada uma a seu turno, a adesão do juiz, vale destacar que

o TUd (aquele a quem aqui chamamos de destinatário final) é, de fato, o juiz. Entretanto, quando

as partes ou suas testemunhas são inquiridas pelo juiz e pelos respectivos defensores – tornados

sujeitos comunicantes e enunciadores –, os representantes da parte contrária também se

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encontram presentes na cena, participando dela como rigoroso ouvinte e analista dos

depoimentos, o que faz deste um participante do conjunto de TUi, do qual também faz parte o

julgador. Isso nos leva a entender que o juiz acumula, de fato, dois papéis actanciais, quais sejam,

o TUd e o TUi. Isso mostra a reversibilidade desses papéis enunciativos, já que estes efetivam

eventos interativos, bem ao contrário da fixidez das situações monolocutivas.

De acordo com o Código de Processo Civil (BRASIL, 2009), nos seus Artigos 450, 451,

452, Incisos I, II e III, Art. 454 e 456, a Audiência de Instrução e Julgamento (AIJ) apresenta a

seguinte conformação: em data e horário previamente designados, o juiz abre a audiência,

mandando que o oficial apregoe as partes, acompanhadas de seus advogados. Inicialmente, são

ouvidas as partes e, após isso, o juiz fixará os tópicos sobre os quais incidirá a prova, que será

produzida respeitando a seguinte ordem: primeiro, os peritos e os assistentes técnicos esclarecerão

sobre os fatos; em seguida, são tomados os depoimentos pessoais pelo juiz, ouvindo o autor e o réu,

necessariamente nessa ordem; finalmente, é feita a oitiva das testemunhas arroladas pelas partes.

Ao findar a instrução, é dada a palavra aos advogados do autor e do réu e ao Ministério Público, se

for o caso de ações peculiares que caibam participação da Promotoria, nessa ordem necessária, pelo

tempo máximo de vinte minutos, podendo ser esse prazo prorrogável por mais dez minutos, caso o

juiz entenda por bem. De acordo com o Art. 456, uma vez terminado o debate ou oferecidos os

memoriais, o juiz poderá dizer a sentença sobre a questão. Um detalhe curioso que se observa nesse

rito é que o enunciador das perguntas é sempre o juiz, ainda que ele não seja a fonte da arguição,

isto é, qualquer pergunta que for feita deve ser dirigida ao juiz que a remete ao depoente,

diretamente ou autorizando-o a responder.

Essas disposições apresentadas pelo Código de Processo Civil mostram a organização das

identidades dos participantes de uma AIJ. O juiz será sempre o presidente dos trabalhos e é a ele

que todos os demais participantes devem se dirigir em suas perguntas ou respostas. No entanto,

mesmo com toda essa prescrição, há juízes que imprimem maior grau de naturalidade a essas

situações, ao romperem com a ritualística, permitindo que haja o diálogo direto entre os operadores

do direito e os depoentes, no caso da AIJ.

Um outro dispositivo que configura uma situação comunicativa é a finalidade. Sintetizado

pela expressão “Para que dizer?”, esse dispositivo diz respeito ao objetivo segundo o qual o

discurso é engendrado. Nesse sentido, pode-se tomar o contrato de comunicação do discurso

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jurídico em função dos ‘objetivos comunicacionais’ formulados por Charaudeau, a saber, os

objetivos são o factitivo, o persuasivo, o informativo e o sedutor.

O objetivo factitivo tem por meta levar o interlocutor destinatário (sujeito a quem é

destinada toda a argumentação) a realizar uma ação em favor do locutor (a parte querelante),

podendo ser traduzido pelo predicado modal fazer fazer que, no discurso jurídico, significa levar

o julgador da causa jurídica a proferir sentença favorável a uma das teses defendidas pelas partes.

O segundo, o persuasivo, pode ser traduzido pelo predicado modal fazer crer e tem por finalidade

o "controle do outro" através do uso da racionalidade, do convencimento, engendrado pelo

comunicante que busca levar o interlocutor a crer no universo discursivo construído. O objetivo

informativo é engendrado com vistas a partilhar informações, de fim de levar o outro a ter

determinado tipo de conhecimento. Esse objetivo pode ser traduzido pela predicação modal fazer

saber e pode ser verificado no discurso jurídico nas oitivas das testemunhas, quando são

esclarecidas circunstâncias atinentes ao fato jurídico em discussão. Por fim, o objetivo sedutor

também prima pelo "controle do outro", mas pela via da sedução, traduzida pelo predicado modal

fazer sentir, buscando fazê-lo "sentir" estados emocionais favoráveis aos propósitos do

comunicante e, assim, aderir à tese apresentada. Esse último é bastante utilizado nas sessões de

tribunal do júri, situação em que as estratégias de sensibilização do auditório alcançam níveis

elevados, de modo a seduzir sobretudo o corpo de jurado, que não é exatamente um público cujos

parâmetros de julgamentos são de natureza técnica, mas pautado no senso comum. Em síntese, é

imprescindível que o EUc convença ou seduza o TUi a aderir ao seu projeto de fala e, por

conseguinte, ao seu universo discursivo construído (a ação judicial).

O dispositivo concernente ao propósito temático envolve aspectos ligados aos assuntos

que podem ser abordados na situação comunicativa e pode ser expresso pela questão “sobre o

que dizer?”. Trata-se de um conjunto de temas pertinentes ao contrato de comunicação em

questão. Nessas três situações comunicativas do discurso jurídico aqui estudadas, as tematizações

devem se ater ao fato jurídico em discussão, chegando, em muitos casos, o juiz a advertir o

depoente a ater-se ao que lhe é perguntado, impedindo, assim, todo tipo de digressão.

De acordo com Brandão (Internet), “O interrogatório é antes de tudo um direito do

acusado. Via de regra, é nele que se inicia a instrução do processo (no rito ordinário, a sequência

de audiências é 1° - interrogatório; 2° - testemunhas de acusação; 3° - testemunhas de defesa)”.

Esse autor esclarece que o interrogatório é um ato exclusivo entre o acusado (interrogado) e o

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Juiz (interrogador). Apesar dessa especificidade, a presença e o acompanhamento do advogado

do acusado são permitidos. O interrogatório, assim como a AIJ, obedece a uma rígida norma de

realização. De forma geral, o juiz ouve o acusado para depois, fazendo um resumo do que foi

dito, ditar para o escrevente aquilo que vai ficar registrado nos autos. Pode ocorrer que o juiz não

considere importante algo que tenha o réu dito. Assim, isso não seria registrado no interrogatório.

Todavia, se isso for, na visão do advogado, relevante para a defesa do réu, o defensor presente ao

ato poderá requerer que se consigne no termo o que foi dito. Em síntese, o interrogatório é o

momento em que o réu tem a oportunidade de "falar com o Juiz", expondo a sua versão dos fatos

àquele que futuramente irá julgá-lo, entendendo esse falar a partir da inquirição do magistrado.

Como se pode ver, a pergunta caracteriza esse evento, sendo para ele uma condição

enunciativa, sem a qual o interrogatório não aconteceria. Conforme indica o próprio nome, a

palavra “interrogatório”, de acordo com Ferreira (1986), significa o “ato em que se reduzem a

escrito as respostas que dá o indiciado ou o réu às perguntas feitas pela autoridade competente”.

Trata-se, pois, de um jogo de perguntas e respostas desenvolvido entre o juiz e o acusado, não

podendo ter nenhum tipo de variação sem o prévio consentimento do magistrado, cabendo a cada

um dos participantes da cena desempenhar o seu papel, a saber, o juiz como o inquiridor e o

acusado como entrevistado inquirido.

Conforme o propósito temático de uma AIJ, para citar outro exemplo, não cabe ao

depoente fazer perguntas ao juiz, aos advogados ou ao promotor, mas sim responder ao que lhe

for perguntado, da mesma forma que a platéia que assiste a uma sessão de tribunal do júri (SJ)

não pode participar dessa situação comunicativa.

De acordo com os Artigos de 433 a 438 do Código de Processo Penal (BRASIL, 2009),

bem como o Artigo 5º, inciso XXVIII, da Constituição Federal, o Tribunal do Júri constitui uma

sessão que é presidida pelo juiz, tendo sete jurados (também chamados de corpo do júri ou corpo

de sentença) escolhidos de uma relação de vinte e um nomes previamente sorteados de uma mais

ampla lista estabelecida a partir de nomes de pessoas de reputação ilibada, maiores de vinte e um

anos, cidadãos idôneos, que irão compor o corpo de jurados ou o conselho de sentença em cada

sessão de julgamento. Assim, o Tribunal de Júri é um julgamento realizado pelo povo, ou seja, o

promotor e o advogado de defesa têm de expor e debater os pontos contra ou a favor do réu, para

convencer sete jurados de que o réu é culpado ou inocente. Nesse tipo de evento, cada

participante tem sua função definida e pré-determinada. O promotor representa o Estado e tem

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por função acusar o réu do crime que foi cometido. Ele é o representante da lei no Tribunal do

Júri e é entre ele e o advogado de defesa que acontecem os grandes debates no tribunal.

Entretanto, se o promotor achar que o réu é inocente ou que merece tratamento diferenciado, deve

pedi-lo expressamente. O Juiz-presidente é a autoridade máxima no tribunal. Apesar de não poder

induzir a decisão dos jurados e nem ser responsável por ela, é ele quem decide a pena que o réu

vai ter de cumprir no caso de condenação. O advogado de defesa é escolhido pelo réu ou

contratado pela justiça, caso o réu não tenha condições de contratar tal profissional. É ele que

debate com o promotor e que deve apresentar as provas de que o réu não é culpado; seu dever é

mostrar ao júri a inocência do seu cliente. O réu é o acusado, mas, apesar de ser o destino dele

que está sendo decidido no tribunal, possui participação muito pequena. O conselho de sentença é

composto pelos vinte e um jurados, dos quais sete são escolhidos e que têm por função votar a

decisão acerca da inocência ou culpa do réu. Enquanto durarem as sessões, os jurados ficam

incomunicáveis e raramente fazem algum tipo de pergunta ou observação. As testemunhas são

aquelas pessoas que vão trazer algum tipo de informação sobre o crime em discussão e só falam

quando perguntadas e autorizadas pelo juiz que preside a sessão. Toda Sessão de Tribunal de Júri

é aberta ao público, que deve assistir aos movimentos sem direito a nenhum tipo de intervenção.

Esse público é chamado de espectadores ou mesmo de auditório.

O dispositivo suporte físico/material pode ser expresso “dizer através de que meio de

veiculação?” e pode ser traduzido pelo canal/veículo através do qual as situações jurídicas em

tela são analisadas. Todas essas situações são essencialmente realizadas por meio da oralidade,

em espaços físicos específicos. Em todas essas situações comunicativas, há um alto grau de

ritualização previsto no ordenamento jurídico, que dispõem, inclusive, sobre quem fala, quando

fala e a quem se dirige. No caso das AIJ, por exemplo, o Código de Processo Civil preconiza que

as partes dirijam suas perguntas ao juiz que, por sua vez, autoriza o depoente a responder, sendo

que este último também deve dirigir suas respostas ao magistrado. No entanto, essa formalidade

nem sempre é cumprida, havendo em muitos casos a quebra desse protocolo. Afinal, das oito AIJ

a que assistimos, em apenas duas esse ritual foi cumprido; nas demais, inquiridor e depoente

dialogaram diretamente, sem que perguntas e respostas passassem pelo juiz. Enquanto o IR e a

AIJ acontecem nas chamadas salas de audiências, a SJ é realizada em salas que recebem o nome

de Salão do Tribunal do Júri. As salas de audiência são dispostas tal como mostram as figuras

abaixo.

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Figura 1: Sala de audiência – área criminal Fonte: Elaborada pela autora

Figura 2: Sala de audiência – área cível Fonte: Elaborada pela autora

Juiz Escrevente

Depoente

Parte e

Adv.

Parte e

Adv.

Advogado

Promotor Juiz Escrevente

Réu

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O Salão do Tribunal de Júri, por sua vez, apresenta a seguinte estrutura.

Figura 3: Salão do Tribunal do Júri Fonte: Elaborada pela autora

Feitas essas considerações, passemos a pressupostos teóricos cuja abordagem incide

diretamente nas análises que serão apresentadas a seguir.

2.2 Intencionalidade: noções e categorias

Uma noção que é fundamental não só para esta discussão como para toda aquela que

procura tratar da argumentação é a visão que se tem acerca de intencionalidade. Importantes

estudos colocaram a discussão sobre o tema nos âmbitos da psicologia. Outros optaram por uma

discussão mais filosófica do assunto, sobretudo a escola analítica, quando se buscou construir um

quadro de análise algorítmica, e da fenomenologia, que discutiu a relação sujeito e objeto na

intencionalidade. Embora esses autores não tenham situado as discussões sobre o tema nos

Promotor Juiz Escrevente

Depoente Adv. de defesa r é u

Auditório

Jurados

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terrenos da linguística, todos, de alguma forma, perpassam a questão da linguagem; uns

enfocando aspectos mais do ponto de vista mental, e outros centrando a atenção nos

procedimentos mais próprios da linguagem.

A intencionalidade pode ser estudada em seu aspecto mais geral, a partir dos estados

mentais, ou de modo mais específico, do ponto de vista do seu funcionamento e da estrutura das

formas linguísticas, em uma perspectiva empírica que busca analisar a materialidade linguística

pela qual a intencionalidade se revela nas práticas de linguagem e quais os resultados dessas

manifestações.

Essa noção sofreu ao longo do tempo consideráveis ajustes que contribuíram para que se

chegasse a uma melhor compreensão do que seja intencionalidade, embora haja muito a ser

conhecido nesse terreno. Na Idade Média, o termo intentio era tomado como mero objeto do

pensamento, sabendo que o seu fundamento ontológico é o inesse, o ser interno, uma vez que o

objeto do pensamento in-existe intencionalmente como uma atualidade no pensamento

(CAYLLA, 1991, p. 47). O fato de o objeto ter a in-existência confere a ele o caráter noemático5

(em oposição a fenomênico) e isso favorece a visão de Brentano ao conceber na intencionalidade

uma característica distintiva do mental.

Para os teóricos desse período, havia três formas de intenção: a intenção per se, a intenção

de re e a intenção de dicto. A intencionalidade (intentio) toma o ser (in-esse) e faz dele um objeto

do pensamento. Isso significa a intencionalidade no pensamento e é um ato que torna o ser (esse)

em ser subjetivo (esse subjectivum) por meio da construção de um ser por representação. Esse ser

por representação não é um mero ser representado, mas aquele in-esse, isto é, de existência

intencional no pensamento, um ser que a mente, a linguagem ou o discurso produz. Nesse

período, os teóricos postulavam que o objeto intencional era diretamente dependente do objeto

real (de re), tendo essa intencionalidade a presença determinada na linguagem (intenção de

dicto), nas expressões discursivas (CAYLLA, 1990, p. 78).

Avançando um pouco nessa discussão, Pacherie (1993) fez um estudo sobre a

intencionalidade a partir do que ela chamou de “psicologia ordinária”, ao que hoje seria próximo

5 “A característica principal de um ato de percepção, o que o distingue de outros atos, é a sua qualidade cognitiva que faz dele, através da atividade prática um canal de informação importante. [...] a percepção é um ato e, como todos os atos, ela é intermediada por um noema perceptual [...] é nesse sentido que se torna necessário compreender que a existência do objeto não é essencial à intencionalidade do ato de percepção. É o noema que assegura essa intencionalidade”. (Fisset, 1992)

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da cognição geral, e destacou dois aspectos importantes, a saber, qualia e atitude proposicional.

Qualia, na maioria das pesquisas, representa níveis de conhecimento que compõem o processo de

consciência e para os quais não possuímos esquema de representação objetiva. Com relação às

atitudes proposicionais, a lógica modal estabeleceu uma série de padrões, dos quais resultam

categorias como os estados mentais, organizados a partir de metapredicados, tais como CRENÇA

(CRE) e DESEJO (DES), para o que a psicologia ordinária atribuiu propriedades semânticas.

Na década de 50 (1950), um debate entre Chisholm e Sellars colocou a discussão acerca

da intencionalidade na dimensão semântica. Isso contribuiu para que Austin, Searle e Grice

conduzissem a questão para os terrenos da linguagem. Esses autores estipularam duas ordens de

análise. A primeira, de natureza teórico-formal que resulta da incapacidade das teorias

semânticas, tais como o estruturalismo, de explicar questões sobre o sentido dos enunciados, uma

vez que ficavam fora do escopo estabelecido por essas teorias. A segunda, de natureza

pragmático-conceitual, resulta dos estudos sobre enunciação que passaram a dominar os estudos

sobre fenômenos da linguagem. Sabendo-se que o trabalho teórico-formal opera com categorias

da convencionalidade (como as relações sintagmáticas, as propriedades lexicais, a

composicionalidade do significado, pressuposição, quantificação, negação, modalização,

condições para referência, relações lógico-semânticas, regras, cálculos de significado e

significado da sentença), centrando sua atenção nos fatos do enunciado, e que a análise

pragmático-conceitual estabelece como fatos para suas análises as categorias da enunciação (tais

como condições enunciativas, orientação de uso, aderência semântica ao contexto de uso,

identidade dos interlocutores, argumentação, condições para referenciação, relações

interlocutivas, estratégias, produção de sentido e sentido do falante), admite-se que há uma zona

de interseção entre as dimensões em que aparecem, podendo figurar na outra dimensão, em

virtude de ambas as dimensões serem fundamentais para a construção de sentido.

Nessa ótica, partindo da categoria dos estados mentais (EM), Searle vai discutir a

intencionalidade como uma direcionalidade, englobando nessa investida alguns autores e fatos

em três dimensões. A primeira delas entende a intencionalidade como emergente do enunciado

(EDOint), com base nos estudos de Chisholm, Strawson, Urmson e Grice. A segunda vê a

intencionalidade como emergente da enunciação (Eãoint), conforme apontam Strawson, Grice e

Austin, sendo esta que, neste estudo, interessa-nos mais de perto. E a última dimensão defende

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que a intencionalidade é uma propriedade dos estados mentais (EMint), conforme Brentano,

Twardoswski, Meinong e Husserl.

2.2.1 O postulado de Searle

Para Searle, a intencionalidade é aquela propriedade da mente (humana) pela qual os

estados mentais são capazes de representar objetos e estados de coisas do mundo. Todo estado

mental é intencional na medida em que habilita a relação do organismo ao mundo, ao meio

ambiente e outras pessoas. Esse ponto é crucial, posto que Searle (1995) explica a

intencionalidade da mente humana ainda no modelo da “representação”. Para esse autor, a

natureza dos estados intencionais é evidenciada dizendo que estes representam objetos e estados

de coisas do mundo. A relação que os seres humanos estabelecem com o mundo real se deve, em

parte, a essa capacidade. A intencionalidade funciona capacitando os seres humanos a lidar com o

mundo.

Desse modo, para se distinguir os estados mentais intencionais dos que não o são, Searle

explicita uma chave para essa distinção em forma de pergunta: se alguém tem uma crença, ou um

desejo, então em que exatamente esse alguém acredita? O que deseja? Usando de uma “fórmula”

geral, se um estado “E” é intencional, a que se refere? Nesse sentido, o termo intencionalidade

nada mais é que uma forma genérica de dizer que a mente pode ser “dirigida a”, ou ser “sobre

algo”, ou “acerca de”, objetos e estado de coisas no mundo.

A forma de intencionalidade mental que é característica aos sujeitos humanos é definida

por Searle como “intencionalidade intrínseca” ou original, e é sobre esta forma de

intencionalidade que falaremos neste trabalho. É dita intencionalidade intrínseca não apenas

porque Searle acredita que seja uma forma de intencionalidade do mental inerente à biologia6 dos

seres humanos, mas também pelo fato de que estes têm seus estados mentais intencionais

independentemente do que qualquer outro ser humano pense, sendo um fato a respeito destes.

6Alguns exemplos desses estados mentais intencionais são a fome, a sede, crenças, desejos, percepções, intenções, lembranças, etc. O autor defende a intencionalidade dos estados mentais como intrínseca por considerá-la uma característica da mente enquanto fenômeno biológico, que faz parte da história biológica de certos organismos com um tipo de estrutura cerebral que pode causar e sustentar estados mentais que são intencionais.

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No entanto, duas exceções a respeito da teoria exposta aqui precisam ser explicitadas antes de

prosseguir esta discussão. A primeira é que para este autor, nem todos os estados mentais

intencionais são conscientes e nem todos os estados mentais conscientes são intencionais. A

intencionalidade não é a mesma coisa que consciência, apesar de ambas estarem aliadas. Por isso,

Searle rejeita a noção de identidade entre consciência e intencionalidade, e qualquer teoria que

diz que toda consciência é “consciência de”. Mas os pormenores disto talvez sejam objetos para

outro trabalho, não deste.

A segunda é que não se deve confundir “intencionalidade” com “intenção”. Essas duas

palavras (“intenção” e “intencionalidade”) possuem um significado próximo no vocabulário do

senso comum. E, por isso, há uma dificuldade em se entender a intencionalidade como um

aspecto mais geral que intenção. Temos de levar em conta, a partir de agora, que, na interpretação

searleana, ter uma intenção é apenas uma forma de intencionalidade, e esta designa uma

propriedade da mente humana; sendo assim, o autor a utiliza como termo técnico. Ou seja, para

Searle, a intenção é um tipo de estado intencional, como a crença e o desejo. A diferença entre o

desejo e a intenção é que a realização do objeto da intenção depende do locutor, o que não ocorre

com o desejo.

2.2.1.1 Condições de satisfação dos estados intencionais

A noção de condição de satisfação é outro ponto importante da teoria da intencionalidade

dos estados mentais. E o interessante a se notar é que “condição de satisfação” abrange todas as

condições possíveis em que um sujeito pode ter estados intencionais e como eles são satisfeitos.

Além de ser um termo geral, genérico, que é comum a quaisquer estados intencionais com um

conteúdo proposicional, condição de satisfação é por isso um aspecto comum a um grande

número de estados intencionais, senão todos.

Segundo o autor, um estado mental só é intencional devido às suas condições de

satisfação, se é “dirigido para” por ter condições do mundo a serem satisfeitas (no mundo).

Com isso se quer dizer que, no geral, a intencionalidade tem a característica ou

propriedade intencional devido às suas condições de satisfação.

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Para Searle, toda explicação precisa acerca da intencionalidade deve levar em conta as

condições de satisfação, sendo ela a chave para o entendimento da representação, visto que todo

estado intencional com uma direção de ajuste é uma representação de suas condições de

satisfação, ou seja, ao modo como nós representamos o “evento” com uma possível “condição de

satisfação”. Não há outros meios de explicação do que seja um estado intencional como uma

crença ou um desejo sem já se ter condições de satisfação. E na abordagem de Searle, os estados

intencionais são representações intrínsecas, logo, tanto crenças quanto desejos são representações

intrínsecas, possuem condições de satisfação. Por isso não há como separar nem distinguir a

entidade, os estados intencionais, de seu conteúdo representativo, suas condições de satisfação.

Embora não se possa afirmar que a mente tenha um caráter funcional articulado apenas a

partir dessas duas categorias, o autor parece admitir que alguns fatos possam ser explicados a

partir da combinação dos estados intencionais crença e desejo. Assim, poderíamos traduzir o

funcionamento dos meta-predicados (crença e desejo) da seguinte maneira: 7.

Figura 4: Meta-predicados lógicos Fonte: MARI, 2007.

Podemos, então, pensar nos dois meta-predicados como extensão do tempo, atribuindo à

crença o tempo passado, com alternâncias diferenciadas considerando-se casos particulares, e o

tempo futuro ao desejo.

Essas são, portanto, as principais noções que pertencem à teoria da intencionalidade de

Searle e que teriam o objetivo de explicar o caráter intencional de alguns estados mentais

(crenças, desejos, percepções, intenções, ações etc.); ou seja, noções que explicariam a

intencionalidade da mente.

7 Este esquema compõe material oferecido por Mari em ocasião da disciplina “Seminários de Estudos Avançados: Linguagem e Intencionalidade” (02/05/2007)

Meta-predicados lógicos CRE DES

Contingência de existência daquilo que

pode existir

Possibilidade de existência daquilo que

não existe

Necessidade de existência de algo que

existiu

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Em um interrogatório judicial, por exemplo, o ponto de vista idealizado pelo promotor

(autor da ação judicial) baseia-se na crença (CRE) de que a parte acusada é culpada pelo crime e

o desejo (DES) de que a condenação seja aplicada à parte ré. Da perspectiva do advogado de

defesa, existe a CRE de que a parte ré pode ser inocente e o DES de efetivar essa crença por meio

da absolvição do seu cliente.

Com relação à noção de direcionalidade como princípio da intencionalidade, proposto por

Searle, trata-se de um fator norteador da significação. Para exemplificar essa noção, é

apresentada uma ilustração bastante conhecida de um animal que, visto de um determinado

ponto, pode ser um pato ou, se visto de outro ponto, um coelho.

Figura 5: O patocoelho,

Fonte www.ilusaodeotica.com.

Imagine-se que há uma linha (vertical) no sentido do olho para o pescoço do animal, até a

base do desenho, onde passa uma linha horizontal. No extremo esquerdo desta última linha, está a

letra X, no extremo direito, a letra Z e, na confluência das duas linhas, a letra Y. Assim, a figura

fica dividida em dois ângulos retos.

intencionalidade

X Y Z

Figura 6: A direcionalidade como princípio da intencionalidade.

Fonte: Elaborada pela autora

Pelo medium do elemento lingüístico jogo de perguntas e

respostas

Práticas sociais discursivas AIJ, IR e SJ

Noções de domínio discursivo Discurso Jurídico

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Considerando que há certa dificuldade em definir de que animal se trata, e acrescentando

que se pode tratar dos dois animais simultaneamente, há que se delimitar um campo de visão.

Então, se a figura for vista a partir do espaço delimitado pela relação X Y, poderá ser visto um

pato, ao contrário do coelho, que pode ser visto a partir da relação Y Z, e, ainda, um patocoelho

na relação X Z. A escolha que é feita em salientar tal ou qual lado, colocando-se o outro em

segundo plano, é a intencionalidade na ação comunicativa, regulada pela prática social

vivenciada e manifestada por intermédio dos elementos linguísticos.

Uma ação judicial tem por objetivo discutir um ponto controverso (um objeto difuso,

portanto) sobre o qual duas partes discordam. O fato jurídico, em muitos casos, apresenta-se ao

julgador nessa forma difusa que, se visto da perspectiva do autor da ação, pode significar culpa

da parte ré; se analisada do ponto de vista do acusado, pode ter significação bastante adversa

daquilo que foi pretendido pela acusação. Esse é o caso, por exemplo, de ações que discutem a

autoria de um crime cujas provas técnicas ou testemunhais não são assaz evidentes. Para o

julgador, considerar uma ou outra perspectiva do fato jurídico é uma forma de decidir, não sobre

a verdade factual, mas sobre a verdade judicial do tema em discussão. Dito de outra forma,

estando o juiz diante do objeto difuso que é o tema da ação judicial e cujas perspectivas são

apresentadas e defendidas pelas partes, cabe a ele (o juiz) decidir em favor daquela perspectiva

que lhe pareça mais verossímil e adequada ao contexto.

Sabendo disso, cada um dos operadores do direito (promotor e advogado de defesa), tanto

no interrogatório judicial, quanto na AIJ ou na sessão de tribunal do júri, engendra uma série de

perguntas aos depoentes, como estratégias, a fim de colocar em evidência a perspectiva desse

objeto difuso que ele quer que seja escolhida e, dessa forma, tentar alcançar no julgador essa

interpretação, o que resultará na efetivação dos seus estados mentais intencionais de crença e

desejo.

Uma sequência de perguntas e respostas em uma oitiva pode ter efeitos de sentido muito

antagônicos, em virtude da direcionalidade escolhida, sobretudo em um ambiente tão

argumentativo como o discurso jurídico. Aquilo que é tomado como um bom argumento em uma

linha argumentativa pode ser completamente contrário à mesma tese, se se considerar uma outra

perspectiva. Um exemplo disso é o trecho de uma oitiva descrito abaixo.

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O juiz deu a palavra ao advogado da parte ré: Advogado da ré: Gostaria de saber, Excelência, se a depoente tem acesso à contabilidade da empresa? Testemunha: Tenho. Eu auxilio o contador da empresa. Advogado da ré: A empresa tem costume de fazer negócios sem nota fiscal? Tem “caixa 2”? Testemunha: Não. Toda mercadoria que entra na empresa é escriturada e tem nota fiscal. O juiz passou a palavra ao advogado da parte autora: Advogado da autora: A senhora tem notícia, sabe de alguma nota emitida pela empresa X, que presta bombardeio radioativo? Testemunha: Essa empresa já emitiu notas fiscais por prestação de serviços a nossa empresa. Advogado da autora: A senhora sabe quando foi o serviço, a data e a quantidade de mercadoria tratada pela empresa X? Testemunha: Não sei. Advogado da autora: Excelência, pelo menos alguma coisa aproximada, a data, a quantidade, ainda que “por alto”. Testemunha: Não faço a menor ideia. Advogado da autora: Já que ela diz que presta assessoria ao contador da empresa, dá para dizer quanto seria o faturamento anual dessa empresa? Testemunha: Não sei não. Advogado da autora: Nem o faturamento médio, mais ou menos? Testemunha: Não tenho ideia do faturamento da empresa

O material desse exemplo pertence a um processo que corre em vara cível, sendo uma

ação de natureza de PRESTAÇÃO DE CONTAS. A parte autora, conforme afirma nos autos,

extraiu, serrou (uma espécie de lapidação) e tratou com radioatividade (para provocar a coloração

esverdeada, sendo serviço prestado pela “empresa X”) uma certa quantidade de crista de quartzo.

Depois disso, entregou a mercadoria para que a ré comercializasse o produto e fizesse o acerto

com a autora. Como não houve o acerto, é solicitada judicialmente da ré a prestação de contas

concernente à transação efetuada.

Inicialmente, foi proposta conciliação, não aceita pelas partes. Em seguida, foi ouvida

uma cópia de gravação telefônica entre a parte autora e um sócio da parte ré. Logo após, passou-

se à oitiva das partes e suas testemunhas. O trecho acima é o depoimento de uma testemunha da

ré, inquirida pelos advogados.

Aparentemente, a testemunha apenas presta informações daquilo que sabe sobre a vida da

empresa, sem maiores comprometimentos. Entretanto, ao ser essa oitiva situada no discurso

jurídico, mais especificamente em uma AIJ, considerando a intencionalidade institucional dessa

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situação comunicativa, bem como as teses defendidas pelas partes, as orientações de sentido

mudam completamente, principalmente, se se levar em conta o trecho final da oitiva:

Juiz: Mais pergunta, doutor? Advogado da autora: Não, Excelência. Sem mais perguntas. Não adianta perguntar. Ela não sabe de nada mesmo.

Como se pode ver, ao afirmar ser auxiliar do contador, a testemunha apresenta a possibilidade de

conhecer a vida financeira da empresa, o que a qualifica como boa informante (da perspectiva do

advogado da ré). Entretanto, da perspectiva do advogado da autora, quando a testemunha diz não

saber qual é o faturamento da empresa, ela coloca em xeque essa condição. “Já que ela diz que

presta assessoria ao contador da empresa”, deve saber informar esse dado perguntado, ainda que

“por alto”. Por isso, o advogado da autora, mediante a resposta da depoente que diz desconhecer

tal informação, busca desqualificar seu depoimento, através de “Não adianta perguntar. Ela não

sabe de nada mesmo.”, sugerindo que testemunha não atende à condição postulada pelo advogado

de defesa.

Em síntese, no domínio discursivo jurídico, cabe ao operador do direito, em conformidade

com as especificidades de cada situação comunicativa (IR, AIJ ou SJ), engendrar perguntas

(médium linguístico) que tenham por base uma tese jurídica, estabelecendo o eixo argumentativo

sob o qual se estabelece a perspectiva (X Y ou YZ) pela qual se quer (CRE e DES) que a questão

em debate (culpa ou inocência) seja interpretada (intencionalidade). Dessa forma,

intencionalidade é um movimento, uma impulsão de realização de um ato de fala engendrado

pelo locutor, em razão dos estados mentais intencionais (EMint) de crença ou desejo de obter um

objeto X, resultando em estratégias engendradas na triangulação EU / TU / MUNDO e que são

reveladas pela presença de marcas linguísticas nos enunciados.

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2.2.2 O postulado de Grice

Opondo-se aos lógicos no que concerne à existência de divergências na significação entre

os chamados símbolos formais e seus supostos análogos ou contrapartes em línguas naturais,

Grice (1982) sustenta que essa postura é equivocada, derivando esse erro do fato de “não se

prestar a devida atenção à natureza e importância das condições que governam a conversação”

(1982, p. 83). Assim, o autor propõe o contrato de cooperação, regido por máximas

conversacionais e implicaturas que resultam de violações dessas máximas. Para tanto, Grice

introduz os termos implicitar, implicaturas e implicitado, para falar da violação das máximas

conversacionais como forma de, a partir do “significado convencional das palavras (sentenças)”,

derivar um sentido daquilo que é dito (sentido implicitado).

Grice afirma que é a existência do contrato de cooperação que faz com que as

conversações não sejam algo desconexo, sem sentido, já que os diálogos “são, pelo menos até

certo ponto, esforços cooperativos, e cada participante reconhece neles, em alguma medida, um

propósito comum ou um conjunto de propósitos, ou, no mínimo, uma direção mutuamente aceita”

(1982: 86). É em razão desse contrato de cooperação que, no discurso jurídico, seja em uma AIJ,

em um interrogatório judicial ou em uma sessão de tribunal do júri, em face de uma pergunta

como

Juiz: Onde o senhor estava no dia do crime?

o réu não pode falar qualquer frase do tipo

Réu: As uvas estão prontas para a colheita.

como resposta sem que corra o risco de ser considerado ridículo, demente ou, até mesmo, ser

repreendido pelo juiz.

Com relação às máximas conversacionais, Grice aponta a existência de quatro delas,

quais sejam, a máxima da quantidade, a máxima da qualidade, a máxima da relação e a máxima

do modo.

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A primeira, a da quantidade, relaciona-se à quantidade de informações a ser fornecida, de

modo que não seja dito nem mais nem menos daquilo que se espera que se diga. No discurso

jurídico, essa máxima é bastante observada. Tanto é que, caso um depoente extrapole ao que foi

perguntado, o juiz, via de regra, costuma repreendê-lo como uma advertência do tipo

Juiz: Seja objetiva, dona Maria. Responda somente aquilo que foi perguntado à senhora, por favor.

A máxima da qualidade diz respeito ao critério da verdade, já que se espera que os

participantes digam aquilo em que de fato acreditem ser verdadeiro, de forma que a sua

contribuição seja verídica. No discurso jurídico, essa máxima apresenta especial destaque, uma

vez que afirmar aquilo que se acredita ser falso ou do qual não se tem provas é considerado crime

de perjúrio, passível de punição.

A máxima da relação propõe que aquilo que seja dito seja concernente ao assunto tratado,

de sorte que haja pertinência. Também observada no discurso jurídico, essa máxima é

constantemente considerada pelo juiz, que não permite nas oitivas haver tergiversações. É muito

comum ouvir o juiz advertir o depoente com frases do tipo

Juiz: Atenha-se ao que lhe foi perguntado.

Ser claro, evitando ambiguidades, formas obscuras, a prolixidade, buscando expressar de

forma ordenada, é o que preconiza a máxima de modo. O discurso jurídico prima também por

essa máxima, já que a clareza e a forma direta são privilegiadas nesse discurso. Tanto é assim

que, em caso de dúvida gerada pela resposta dada em uma oitiva, o juiz repete a pergunta, para

que a resposta seja refeita de maneira mais clara. Ocorre também de o juiz solicitar

explicitamente que o depoente seja mais claro.

Considerando que a intencionalidade das partes que compõem o discurso jurídico é

conquistar para sua tese a adesão do julgador, ocorre de os operadores do direito violarem

algumas dessas máximas, ou provocarem o depoente para que este o faça, com o propósito de

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malbaratar o plano argumentativo do seu opositor, conforme esperamos demonstrar no decorrer

das análises.

2.3 Pressupostos da Teoria dos Atos de Fala

Surgida no interior da Filosofia da Linguagem, com os dos estudos de Austin e de Searle,

a Teoria dos Atos de Fala (TAF) parte da concepção de linguagem como forma de ação, através

da qual os seres humanos modificam o estado de coisas no mundo, da mesma forma com que eles

se ajustam a esse estado de coisas, valendo-se, para tanto, da enunciação de atos de fala diretos

ou indiretos. Embora iniciada nesses terrenos da filosofia da linguagem, como um método para a

análise, por meio do uso da linguagem, de questões atinentes à própria filosofia, a TAF

desenvolveu-se em duas ramificações cujos rumos se desprendem do foco primeiro adotado por

Austin. A primeira, que se ocupou da análise formal da linguagem e a segunda, que influencia

sobremaneira a linguística aplicada, sendo também muito considerada pelas ciências humanas em

geral, em virtude dos conceitos de performativo e força ilocucional.

Alegando que o uso concreto da linguagem é excessivamente complexo, diversificado e

sujeito a um número muito grande de variações, alguns filósofos, dentre os quais está Carnap,

afirmavam que nada de significativo ou de relevância científica poderia ser construído a partir de

um objeto tão fluido e inconstante por ser de natureza tão particular. Todavia, a TAF, tal como

proposta por Austin, busca dar conta exatamente da análise sistemática desses fenômenos

pragmáticos, ou seja, da linguagem em uso, colocada em ação. Para tanto, devem ser utilizados

os instrumentos conceituais adequados, o que nos leva a perceber que a análise pragmática, bem

ao contrário de não ser objeto de investida científica, oferece consideráveis recursos para a

compreensão dos inúmeros eventos que são realizados a partir do uso linguístico, tal como as

práticas do discurso jurídico, domínio que somente se efetiva por meio da linguagem, ambiente

em que mundos são construídos, desconstruídos e reconstruídos, tal como possibilita a dialética

jurídica.

Partindo da teoria pragmática de Wittgenstein, segundo a qual o sentido das palavras

resulta do seu uso em diferentes situações de interação linguísticas, Austin propõe que esse

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sentido não se reduz unicamente a proposições declarativas. Para Wittgenstein, o sentido de uma

proposição muda em virtude do jogo de linguagem em que ela é usada. Daí a necessidade de se

investigar variados tipos de enunciados que vão além da simples constatação de coisas no mundo.

É a partir desse tipo de investigação que Austin conclui que muitas sentenças são, de fato, ações

que se realizam por meio do uso da palavra. Dito de outra forma, o dizer é um fazer na medida

em que enunciar algo implica a execução de uma ação, tal como acontece em um IR, durante a

qualificação do réu:

Escrevente: Qual é o seu endereço? Réu: (silêncio) Escrevente: Fulano, seu endereço por favor?

Ao retomar a pergunta, mais que fazer uma pergunta, através da qual solicita uma

informação, o escrevente realiza a ação de dar uma ordem ao réu para responder à pergunta, ao

que é prontamente atendido.

Considerando a natureza deste texto, desnecessária se torna a discussão pormenorizada do

que Austin formulou e dos desenvolvimentos dados à TAF por Searle e outros filósofos.

Entretanto, devido ao seu caráter essencial ao processo de análise linguística, algumas categorias

devem ser abordadas e é o que faremos a seguir.

O ponto basilar da proposta de Austin consiste na definição dos atos de fala como

constituintes elementares para o uso e a compreensão da linguagem natural. Contrariamente ao

que propunham Frege e Russel, para quem os enunciados deveriam ter condição de verdade para

serem válidos, Austin considera que cada ato de fala requer um conjunto de condições para que

tenha sucesso na sua realização como ação no mundo. Dessa forma, Austin parte da conhecida

distinção entre os atos de fala constatativos e os performativos, ou seja, a diferença entre as

sentenças usadas para relatar, descrever fatos e eventos e as sentenças usadas para realizar algo,

tal como as perguntas a seguir, utilizadas no discurso jurídico. Vale lembrar que estes exemplos

não trazem nem performativos autênticos, devido à ausência de verbos de tal natureza, nem de

assertivos legítimos, por se tratar de formas interrogativas. No entanto, a despeito dessas

ausências que podem gerar alguma dificuldade, consideramos que esta é apenas aparente, já que

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as perguntas apresentadas assumem, no contexto de enunciação, a forma de assertivos, quando

são interpretadas indiretamente, como esperamos demonstrar. Se não, vejamos:

Escrevente: Você é casado com fulana de tal? Depoente: Sou.

Por meio dessa pergunta, realizada no momento da qualificação do depoente, faz-se

constar dos autos que o réu é casado, tomando essa informação como um dado importante para

uma possível futura consequência jurídica.

Ou ainda como na pergunta

Juiz: O que os senhores acham de um acordo em dez mil?

O juiz não quer que as partes digam se o acordo é justo, se é previsto em tal ou qual lei ou

se tem origem na filosofia do direito, como a literalidade da pergunta pode sugerir. Ao contrário

disso, considerando a pragmática do momento, o juiz realiza o ato de propor um acordo entre as

partes, buscando cumprir a função teleológica do direito que é a pacificação social.

Austin logo percebeu que essa distinção não era muito produtiva, pois o constatativo

também é performativo, já que descrever é um dos tantos atos que realizamos e que pode ser bem

ou mal sucedido. Do mesmo modo, os performativos possuem uma dimensão constatativa, já que

mantêm uma relação com um fato, no caso do exemplo acima, um acordo judicial. Com base

nisso, Austin propõe que a concepção do uso da linguagem como forma de agir seja estendida

para toda a linguagem, sendo o ato de fala uma unidade básica de significação constituída por

três dimensões articuladas entre si, quais sejam, os atos locucional, ilocucional e perlocucional.

O ato locucional diz respeito à dimensão propriamente linguística, ou seja, as palavras e

sentenças utilizadas conforme as regras gramaticais cabíveis, dotadas de sentido e de referência.

Considerado como o núcleo do ato de fala, o ato ilocucional tem como aspecto fundamental a

força ilocucional que consiste na performance propriamente dita, constituindo o tipo de ato

realizado. Os verbos performativos, normalmente, descrevem o modo ilocucional dos atos

realizados. Considerando que é possível realizar atos ilocucionais sem o uso de verbos

performativos e que um mesmo ato locucional pode realizar atos ilocucionas diversos, pode-se

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concluir que a realização de um ato de fala com uma determinada força vai além dos seus

elementos linguísticos. Um dos objetivos principais da TAF é explicitar a força do ato realizado

e, mais especificamente neste estudo, nossa finalidade consiste em tornar explícita a força do ato

de fala do tipo pergunta, realizado no discurso jurídico, a qual possibilita o seu uso como

estratégia argumentativa.

A dimensão perlocucional, tal como Austin definiu, diz respeito às consequências do ato

no universo dos sentimentos, dos pensamentos e das ações dos sujeitos aos quais os atos são

direcionados, ou, mais ainda, da audiência, de outras pessoas, podendo ter sido realizado com

base em uma intenção, um objetivo de produzir essas consequências. No caso das três situações

comunicativas do discurso jurídico, aqui estudadas, os atos de fala de pergunta são produzidos a

partir do objetivo não só de obter informações, mas, sobretudo, de verificar a veracidade dessas

informações prestadas. Nesse sentido, os inquiridores buscam, por meio de suas perguntas,

provocar embaraços, contradições e incompatibilidades, inverossimilhança (quando se trata de

depoimentos da parte contrária) ou chegar a confirmações, reafirmações e coerência, quando

favorável à tese do inquiridor. Esse efeito perlocucional, somado às especificidades de cada

situação comunicativa e do domínio discursivo, confere ao ato de pergunta ali enunciado a

natureza argumentativa.

Depois dessas formulações, Austin caracteriza as condições fundamentais para a

realização dos atos de fala. Essas condições consistem em uma combinação entre as intenções do

falante e as convenções sociais em seus diferentes graus de formalidade. A satisfação dessas

condições constitui o critério de sucesso ou de fracasso da realização do ato de fala. As intenções

configuram a dimensão psicológica do falante, embora originadas das práticas sociais (tal como

Wittgenstein ilustra ao se referir ao jogo de xadrez, lembrando que não é possível ter a intenção

de se jogar xadrez, se ele não existisse). As práticas sociais permeiam todo tipo de interação,

atribuindo-lhes maior ou menor grau de formalidade. No discurso jurídico, por exemplo, as

interações acontecem com alto grau de formalidade, caracterizado pelo uso de pronomes de

tratamento (“excelência”), por adjetivações múltiplas, constantes e variadas (“eminente colega”,

“doutor”, “douto juiz”, “senhor”, dentre outras), pelo vestuário (uso de ternos e togas). Embora

constantemente implícitas, essasregras são sempre aplicadas e isso se torna evidente no momento

em que são violadas.

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Desses atos, os ilocucionais constituem-se ponto de grande número de trabalhos sobre a

linguagem. Essa ação linguística não é a do tipo que está no eixo da consequência do que se diz.

Ao contrário disso, ação ilocucional é engendrada ao mesmo tempo em que se diz o que se diz.

Assim, quando o juiz diz “declaro o réu inocente”, ele efetivamente inocenta o réu. A partir desse

ato do juiz, o réu deixa de ter qualquer tipo de compromisso com o caso em que era julgado. Daí

a força de se realizar algo por meio da uma força ilocucional.

Na década de sessenta, Searle, importante discípulo de Austin, questionou a taxionomia

proposta por este, criticando, principalmente, o fato de que a classificação inicial baseava-se em

verbos ilocucionais e não em atos ilocucionais. Entretanto, Searle também não se propõe a definir

a expressão “atos ilocucionais”. Em lugar disso, analisa um ato ilocucional específico para

estabelecer as bases para uma definição futura. Assim, ele propõe o ato ilocucional como a

unidade mínima da comunicação lingüística que, ao ser realizado, faz com que o sujeito se

envolva em formas de comportamento controlado, governadas por regras. Em uma situação típica

de fala, pressupõe-se um falante, um ouvinte e um proferimento por parte de um falante. São

vários os tipos de atos associados a esse proferimento: declarações, perguntas, ordens,

cumprimentos e outros.

Searle também adota a noção de condições como fundamentais para que um ato de fala

realize uma ação.Essas condições se classificam em três tipos: as condições preparatórias, as

condições de sinceridade, e a condição de conteúdo proposicional. As perguntas (classificadas

como atos diretivos) apresentam as seguintes condições, para que realizem algum tipo de ação:

Condição preparatória: o ouvinte (O) é capaz de responder A.

Condição de sinceridade: o falante (F) quer que o ouvinte (O) responda A.

Conteúdo proposicional: o falante (F) pressupõe o futuro ato de enunciar uma resposta por parte

do ouvinte (O).

Além disso, Searle propõe a seguinte tipologia dos atos de fala:

1. assertivo - compromete o falante com a verdade expressa na proposição (dizer, asseverar).

2. diretivo: tenta levar o interlocutor a fazer algo (pedir, mandar, ordenar) no futuro.

3. comissivo: compromete o falante com uma ação futura (perguntar, prometer, ameaçar).

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4. expressivo: expressa um estado psicológico (agradecer, congratular).

5. declarativo: muda o estado institucional, tende a se apoiar em instituições extralinguísticas

(excomungar, declarar guerra, condenar, demitir)

Vanderveken (1985) sustenta o ponto de vista segundo o qual uma força ilocucional é

dividida em seis componentes, quais sejam, um ponto, um modo, um conteúdo proposicional, as

condições preparatórias, as condições de sinceridade e o grau de intensidade. Concordando com

Searle acerca da existência de somente cinco pontos ilocucionais (assertivo, comissivo,

expressivo, diretivo e declarativo, conforme apresentado acima), Vanderveken associa a cada um

desses pontos uma força ilocucional, o que faz com essas forças sejam consideradas como

primitivas, já que elas fazem com que um conteúdo possa ser relacionado com o mundo, sendo as

asserções e as declarações realizadas em tempo presente (“Declaro aberta a sessão”, “Sentencio o

réu a cumprir a sentença de 12 anos em regime fechado”, “Segundo os autos, o réu é inocente”);

o comissivo como sendo um comprometimento do locutor com uma ação futura (o clássico

exemplo da promessa); o diretivo que gera uma ação futura para o alocutário (o juiz, primeiro,

pergunta para, depois disso, o depoente responder); e o expressivo que traz a expressão de

atitudes ou estados psicológicos do locutor. Para esse autor, todas as demais forças ilocucionais

são construídas a partir de três operações sobre os componentes dessas forças ilocucionais

primitivas, quais sejam, a restrição do modo, o aumento ou diminuição dos graus de intensidade e

de sinceridade e a adição de conteúdo proposicional, condições preparatórias e condições de

sinceridade.

Vejamos alguns exemplos dessas operações.

Em uma AIJ de um processo em que uma professora é acusada de bater em uma aluna de nove anos de idade, a diretora é inquirida: Juiz: A senhora estava na escola no dia do episódio? Diretora: Sim, estava. Juiz: E a professora bateu na criança? Diretora: Bem, eu gosto muito da família da aluna e quero que a professora saiba que gosto dela também, por isso... Juiz: Senhora, atenha-se ao que lhe foi perguntado. Não quero saber de outra coisa que não seja o que pergunto à senhora. Vou repetir: a professora bateu na criança? A senhora viu se isso aconteceu? Lembro à senhora que mentir em juízo é crime, passível de prisão.

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Ao interromper a depoente e limitar sua resposta ao que lhe foi perguntado, o juiz limita

também os modos de atos de fala que ela pode enunciar. Assim, ela só pode asseverar se a

professora agrediu fisicamente a aluna, se a depoente viu a cena. Não cabe a esta enunciar

nenhum ato de fala do tipo expressivo, do tipo gosto de A ou de B.

Ainda nesse exemplo, o juiz, ao repetir sua pergunta, acrescentou um novo conteúdo

proposicional. Afinal, há implicações distintas de sentido perguntar à depoente se “a professora

bateu na criança” e se a depoente “viu se isso aconteceu”. A diretora pode ter a certeza de que o

fato aconteceu, ainda que ela não tenha necessariamente visto a cena. Em caso de a depoente ter

visto a cena confere maior grau de verdade ao depoimento do que ter “ouvido dizer” que o fato se

deu.

Ao lembrar a testemunha de que mentir é um ato passível de pena, o juiz faz uma ameaça

camuflada sob a égide de um aviso, um lembrete, o que dá mostras de como o grau de

intensidade pode ser alterado (nesse caso, para menos, em função do grau de polidez do juiz), de

modo bem diferente de ele dizer algo como “Fale a verdade ou mando prendê-la”. Além disso, as

condições preparatórias ganham maior explicitude, ficando claro que o juiz é hierarquicamente

superior à testemunha a ponto de poder mandar prendê-la, se esta for pega em alguma mentira.

Ao se abordar a Teoria dos Atos de Fala, surge a dicotomia atos de fala diretos e indiretos.

O ato de fala direto é realizado através de formas linguísticas especificadas como certos tempos

ou modos verbais, dadas expressões estereotipadas, determinados tipos de entoação. Empregam-

se, por exemplo, expressões como “por favor”, “por gentileza” para fazer pedidos, solicitações,

dar ordens, pautadas em índices de polidez.

Quanto ao ato de fala indireto, diz-se que é aquele em que uma força ilocucional é obtida

indiretamente por meio de um outro ato (Searle, 1969). Há muitos casos em que o falante realiza

um ato de fala que pode, ao mesmo tempo, significar literalmente o que expressa na proposição e

indicar um conteúdo proposicional diferente, ligado a outra força ilocucional. Um bom exemplo

disso é o que aconteceu em uma AIJ. Ao ser perguntada várias vezes sobre um detalhe do

acidente de que era acusada, a ré, irritada, perguntou ao juiz

Ré: Quer que eu desenhe? Juiz: Sim, por favor. Tome aqui

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Ao aceitar a sugestão da ré e entregar-lhe o papel e a caneta, o juiz dá mostras de que

interpretou a pergunta com um ato de fala direto em que a depoente quer saber se ele quer que ela

ilustre sua fala com um desenho. Todavia, essa mesma pergunta é comumente empregada em tom

irônico, quando o interlocutor não entende algo que o locutor diz e que parece óbvio. A pergunta,

então, é usada como ato de fala indireto para indicar que o interlocutor tem pouca habilidade de

interpretação, desqualificando-o.

Searle propõe regras de inferências com base em Grice, abrangendo atos de fala indiretos,

ironia e metáfora. Defende que nos atos de fala indiretos os falantes comunicam mais do que

aquilo que realmente dizem, confiando no conhecimento das condições de felicidade. O uso do

“poder” seria uma referência à condição preparatória.

Ainda um outro ponto importante na teoria dos atos de fala é a noção de sentido da

sentença e o sentido do falante. Sentido da sentença é o mesmo que dizer sentido próprio, preso

às possibilidades da materialidade, da composicionalidade dos elementos linguísticos básicos, a

partir dos quais o sentido das expressões linguísticas, em qualquer situação, possa ser apreendido.

Sentido do falante, por sua vez, refere-se àquele cuja interpretação pressupõe uma série de

inferências por parte do interlocutor. Enquanto os atos de fala diretos apresentam coincidência

entre o sentido da sentença e o sentido do falante, os atos de fala indiretos apresentam, por sua

vez, algum grau de não coincidência entre esses dois sentidos.

Entre as críticas que se fizeram ao tratamento de Searle para os atos indiretos, há o fato de

que os enfoques inferenciais falham por não explicar o motivo pelo qual os falantes preferem

fazer verdadeiras “ginásticas” com os atos indiretos, em vez de lançarem mão da simplicidade

das expressões diretas. Uma resposta que nos parece muito radical contra as teorias da força

literal é admitir-se que não existe força literal alguma. Em lugar disso, o que há é uma questão de

mapear a força dos atos de fala em sentenças em um contexto específico. A força ilocucional

seria inteiramente pragmática. A semântica teria papel mínimo, com significados muito amplos,

baseados nos três tipos básicos de sentença: afirmativa, interrogativa, imperativa, que têm força

ilocucional embutida. Assim, por exemplo, a sentença interrogativa seria uma proposição aberta,

limitada pelo conjunto de respostas apropriadas. Essa postulação não resiste a atos de fala diretos

puros, por assim dizer, aqueles cuja estrutura gramatical indica a mesma força ilocucionária

daquela pretendida pelo falante, como em, por exemplo, um cumprimento do tipo “Boa tarde!”,

feito por amigos, ao se encontrarem. Não parece que o locutor, ao enunciar esse cumprimento,

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deseje dar a este um sentido diverso daquele que tem usualmente. Nesse caso, dizer “Boa tarde!”

tem o efeito de sentido de só realizar um cumprimento mesmo. Dito de outra forma, negar a

existência da força literal implica a concepção de ausência de sentido na língua. Não se trata aqui

de defender uma imanência do sentido à língua. Todavia, como resultante de uma construção

histórico-social, o significado é um componente que atua na realidade da língua, possibilitando

que esta seja paradoxalmente, como Sausurre descreveu, mutável ao mesmo tempo em que é

imutável.

Essa discussão pode ser resolvida com a abordagem na teoria dos atos de fala das noções

de sentido da sentença e sentido do falante, já que o sentido da sentença é aquele preso às

possibilidades da materialidade, da composicionalidade dos elementos linguísticos básicos, a

partir dos quais o sentido das expressões linguísticas, em qualquer situação, possa ser apreendido,

e que o sentido do falante, por sua vez, refere-se àquele cuja interpretação pressupõe uma série de

inferências por parte do interlocutor. Os atos de fala diretos são exemplo de sentido da sentença,

enquanto os atos de fala indiretos são exemplos de sentido do falante.

2.3.1 O ato de pergunta

Retomando o caráter plural do ato de pergunta, conforme dissemos na Introdução, não é

muito difícil verificar a plasticidade desse ato. Afinal, a possibilidade de realização de atos

indiretos por meio de perguntas constitui um importante recurso linguístico usado nas interações

de todo tipo, uma vez que, como todo ato de fala, a pergunta também é uma ação situada, da qual

é possível derivar uma infinidade de outros atos.

Ancorada no domínio do discurso jurídico, a pergunta, além de realizar uma série de atos

indiretos, também provocam determinados efeitos de sentido oriundos duma significação

indireta, já que elas – as perguntas – nascem da efetivação das intencionalidades cabíveis a cada

situação comunicativa e aos papéis psicossociais protagonizado pelas partes do processo judicial.

Em outras palavras, as perguntas feitas, seja nas audiências de instrução e julgamento, seja nos

interrogatórios judiciais ou nas sessões de tribunal do júri, fundamentam-se nas intencionalidades

tanto da situação comunicativa vivenciada quanto no papel que cada locutor protagoniza, ao seu

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turno, de sorte a derivar ações pertinentes a esse universo discursivo. Daí porque, enquanto no

discurso publicitário, por exemplo, as perguntas realizam atos indiretos de oferta e de promessa,

no discurso jurídico, por sua vez, elas derivam efeitos de sentido próprios desse domínio, tais

como esclarecer, acusar, defender, afirmar, negar, colocar em suspeição, construir determinados

tipos de imagem, dentre outras ações. Daí a relevância do uso da pergunta como estratégia no

plano argumentativo do discurso jurídico.

Exemplos disso podem ser vistos, no discurso jurídico, em ocorrências do tipo:

Conjugando essa pergunta com a situacionalidade em que se insere, considerando a

intencionalidade do promotor de alcançar a condenação do réu, é possível derivar da pergunta

acima um ato indireto de acusação por meio de uma asserção próxima de

A explicação aceitável para a presença de vestígios de pólvora na mão do réu é o fato de ele ter matado a vítima.

Em uma SJ, o advogado de defesa fez aos jurados a pergunta

Advogado: Como é que ele matou a vítima, se ele não estava na cidade, no dia que mataram ela?

com o intuito óbvio de negar a autoria do crime imputada ao seu cliente e, por conseguinte,

defendê-lo dessa acusação. Ou seja, o ato direto de pergunta derivando um ato indireto de

negação.

Ou, ainda, como em uma AIJ, em que o advogado pergunta à testemunha de acusação

Advogado: O senhor já ouviu falar se, alguma vez, o réu andou metido com brigas e com outros tipos de crime?

Como se pode ver, o advogado usa o ato de pergunta para provocar um tipo específico de

resposta que possa atuar na construção da imagem do réu. Notadamente, se o advogado for de

defesa do réu, deverá ter a certeza da resposta negativa, para que não coloque em risco sua

Promotor: Senhores, se o réu não atirou na vítima, como explicar os vestígios de pólvora encontrados na sua mão, nos exames feitos no dia do crime?

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argumentação. Se o advogado for de acusação, como foi o caso colhido por nós, deverá ter a

certeza da resposta positiva, a fim de levar adiante sua proposta argumentativa, pautando-a na

imagem negativa do réu, como pessoa dada ao crime, como antecedentes que possam vir a

contribuir com a sua incriminação pelo crime em discussão.

A pergunta pode, por vezes, auxiliar em situações delicadas, conferindo maior grau de

polidez ao ato de fala, quando se quer esclarecer algo. Em uma SJ, o advogado de defesa,

sabendo que o júri constituído para aquela sessão era composto, na sua maioria, por pessoas

bastante leigas em relação a princípios do Direito, perguntou a esses jurados

Advogado de defesa: Os senhores sabiam que matar para se defender, para não morrer, quando em situação de ameaça iminente, constitui o que o Direito chama de “legítima defesa”. Sabiam também que, aquele que mata em legítima defesa é absolvido porque não cometeu crime, mas lutou para sobreviver a uma tentativa de assassinato?

Usando as perguntas para dar um tom de polidez, o advogado esclarece ao júri o que é o

princípio da legítima defesa, bem como suas implicações para a absolvição do acusado.

Parece-nos claro que, como uma ação situada que é, enquanto ato de fala, a pergunta, a

partir da conjugação com as especificidades da situação comunicativa em que se insere e com os

papéis sociais dos interlocutores, ou seja, com a ativação dos constituintes da força ilocucional

(sobretudo, as condições preparatórias e as condições de conteúdo proposicional), favorece a

derivação de atos indiretos de fala que irão atuar como recurso argumentativo em determinado

tipo de domínio discursivo.

Outro tipo de pergunta bastante usual é a que encontramos no julgamento de um policial

militar, acusado de tentativa de homicídio. O acusado fazia o curso de Direito, na época em que

um assaltante agia nas imediações dessa faculdade. Ao sair da aula, o policial foi abordado pelo

assaltante que, com revólver em punho, levou-lhe todos os pertences, sem que o militar esboçasse

qualquer reação. Quando o assaltante montava na motocicleta para fugir do local, o militar

disparou cinco tiros contra o assaltante, atingindo-o da cintura para baixo. Ao dominar o

assaltante e tomar a arma, viu que o revólver era de brinquedo. Durante a SJ, quando era julgado

o militar, sua advogada pergunta aos jurados:

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Advogada de defesa: O Ministério acusa meu cliente de ter tido uma ação excessiva, indagando por qual razão o militar teria dado cinco tiros na vítima. Pois eu pergunto aos senhores: considerando o nível de terror que o indivíduo provocava naquele ambiente e as convicções próprias da profissão de militar, capaz de arriscar sua vida para salvar a nossa, o que teriam feito os senhores, se estivessem no lugar do acusado? Teriam agido com polidez, solicitando gentilmente ao bandido que lhes entregasse a arma em nome da lei?

Por meio dessa pergunta, a advogada coloca a discussão no nível da subjetividade,

procurando provocar a empatia dos jurados, de sorte que eles, imbuídos do espírito de

sobrevivência (ativado pela expressão “nível de terror que o indivíduo provocava”) e de

cumprimento do dever (provocado por “convicções próprias da profissão de militar”), possam

absolver o réu. Ou seja, ela usa a pergunta para atribuir aos jurados a responsabilidade da

resposta mais provável, qual seja, a de que eles não teriam comportamento diverso daquele que

teve o réu e, por conseguinte, sendo um comportamento socialmente aceito, não há motivo para

incriminar o acusado. Assim, parece-nos pertinente dizer que, no discurso jurídico, a pergunta

atua como estratégia argumentativa por possibilitar a derivação de atos indiretos que favorecem

os jogos intencionais típicos desse domínio discursivo.

2.3.1.1 A pergunta conforme a Problematologia de Meyer

Ainda outra perspectiva pela qual a pergunta pode ser analisada como inscrita na matriz

argumentativa dessas situações comunicativas do discurso jurídico, é aquela cuja base é o modelo

da Problematologia de Michel Meyer, segundo o qual toda forma de interação discursiva se funda

sobre uma dupla dimensão fundamental, a saber, a problematológica, que diz respeito à dimensão

da pergunta, e a apocrítica, que se liga à dimensão da resposta. Isso vale dizer que a afirmação de

alguma coisa pressupõe uma pergunta sobre essa coisa, situação claramente vivenciada no

discurso jurídico.

Para Meyer (1981: 83), o sujeito, quando fala, recorre à linguagem para responder a um

problema que, de alguma forma, a ele foi apresentado. Nessa medida, ao ser colocado um

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problema, coloca-se igualmente uma resposta, ainda que parcial, já que é a primeira etapa na

busca de solução que o outro (o interlocutor) deverá oferecer.

Ao propor a concepção problematológica da argumentação e da retórica, esse autor

apresenta uma das mais fecundas abordagens sobre o tema, o que conduz a um interessante

contraponto com o texto anterior de Vignaux, uma vez que, enquanto este último enfatiza o poder

da definição (da afirmação), Meyer destaca o poder da problematização (interrogação), como se

pode ver em

A única retórica possível hoje é, então, de natureza problematológica, porque debatemos antes de tudo problemas ou questões (...) As concepções da retórica que encontramos geralmente colocam o acento sobre um ou outro destes três componentes, o ethos, o pathos ou o logos. Entretanto, esses três parâmetros são indissociáveis, o que faz com que a retórica remeta a uma relação intersubjetiva entre um locutor (ethos) e um auditório (pathos) através de uma linguagem (logos). Daí nossa definição: a retórica é a negociação da distância entre os indivíduos a propósito de uma questão. (MEYER, 2008, p. 10 – 11, tradução nossa)8.

Nos terrenos da argumentação, Meyer desenvolve interessante comentário acerca da

relação entre retórica e argumentação, dizendo que, desde Aristóteles, há uma associação entre

argumentação e dialética que, ainda que ‘parente’ da retórica, diferencia-se desta por enfatizar o

confronto de teses, conferindo maior importância ao logos em detrimento do ethos e do pathos.

No entanto, o autor relativiza essa hipótese ao abordar tal relação sob a ótica da problematologia.

Para Meyer (2008, p. 18, tradução nossa)9, a retórica coloca suas questões por meio da ênfase na

resposta, “como se os problemas estivessem resolvidos”, enquanto a dialética aborda as questões

a partir da pergunta, da problematização, ou do seu aspecto problematológico, como diz o autor,

da perspectiva da pergunta, por meio da qual se afirma do conflito cujos pontos de debate são

tomados como objeto de acordo (tal como em Perelman e que veremos a seguir) sobre os quais

recairão os esforços argumentativos.

Essa concepção é perfeitamente verificável nos domínios do discurso jurídico.

Diferentemente do que acontece no discurso publicitário – que se oferece ao interlocutor com a 8 “La seule rhétorique possible aujourd’hui est donc de nature problématologique, car on débat de problèmes et de questions (...) Les conceptions de la rhétorique que l’on géneralement mettent l’accent sur l’une ou l’autre de ces trois composantes, l’ethos, le pathos, ou le logos. Pourtant, ces trois paramètres son indissociables, ce qui fait que la rhétorique se ramène à um rapport intersubjectif entre um locuteur (ethos) et um auditoire (pathos), via um ou du langage (logos). D’où notre définition : La rhétorique est la négociation de la distance entre les individus à propos d’une question.” 9 “En fait, la rhétorique aborde ses questions par le biais des réponses, comme si, du même coup, elles étaint resólues.”

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pretensão de uma resposta a desejos e necessidades a este supostamente atribuídos –, os debates

apresentados no discurso judiciário surgem e se desenrolam a partir de algum conflito entre as

partes, cuja solução faz parte (e mesmo motiva) do fazer jurídico, já que ao Direito cabe o papel

de pacificador social. Dito de outra forma, notadamente nas situações comunicativas aqui

estudadas, mais do que fazer afirmações, os sujeitos que protagonizam essas situações debatem

questões que são objeto de discórdia entre eles e sobre as quais recaem todos os

empreendimentos argumentativos no sentido de diminuir a distância entre as pretensões desses

indivíduos querelantes.

Ao colocar a diferença entre questão-resposta, categorizando essa diferença como

“dualidade fundamental da linguagem” (p. 20), ao que chama de diferença problematológica,

Meyer oferece importante ferramenta de análise do jogo pergunta-resposta. Tal como o autor diz,

todo e qualquer discurso, da frase ao texto, pode tanto tratar das questões colocadas, propondo

sua solução, ou revelando sua face interrogativa. Com isso, Meyer toma a resposta como unidade

apocrítico-problematológica, já que as expressões apocríticas são também problematológicas.

Isso porque

... o problematológico, concebido de maneira ampla com toda remissão a problemas, parece cobrir tanto o campo apocrítico, que é da ordem da solução, quanto o campo particular das perguntas. (...) Para que apareça uma nova questão, é necessária uma mediação através da qual se ache problematizado o que está fora de questão. (MEYER, 2008, p. 22, tradução nossa)10

Tais afirmações conferem a propriedade de recursividade ao jogo pergunta-resposta.

Enquanto uma resposta pretende solucionar uma questão apresentada pela pergunta, uma nova

pergunta, feita a partir daquilo que foi respondido, problematiza a solução apresentada, de modo

a retomar o conflito inicialmente proposto.

Para Meyer, é o contexto que será o mediador da diferença problematológica. No caso do

discurso jurídico, ao apresentar uma resposta a uma pergunta, o depoente pretende sanar a dúvida

e resolver o conflito instituído. No entanto, a partir do que é dito, o inquiridor problematiza o que

foi dito, a fim de levar adiante o conflito (no caso de esse inquiridor ser da parte contrária à do

depoente) ou de alcançar proposição favorável à sua tese jurídica.

10 “... le problématologique, conçu de manière large comme tout renvoi aux questions, semble couvrir autant de champ de l’apocritique, que est l’orde de la solution, que les renvois particuliers aux questions. (...) Pour qu’apparaisse une question nouvelle, il faut nécessairement une médiation via laquelle se trouve problématisé ce qui était hors question.”

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Assim, esse autor aponta que a argumentação recai sempre sobre aquilo que, na resposta,

enseja nova pergunta, sobre a adequação entre essa ligação e sobre seus fundamentos,

constituindo o logos, para o autor, o lugar privilegiado, ainda que a questão em foco reenvie uma

diferença nas posições respectivas e, logo, aos sujeitos nela envolvidos. Com base nisso, vale

dizer que, ao recortar tal ou qual aspecto de uma resposta ou destacar uma e não outra dimensão

de uma situação comunicativa vivenciada, atualizando um determinado aspecto problematológico

(que, por ser potencial, pode ou não ser atualizado), o sujeito faz um opção argumentativa em

favor da tese que está a defender.

Em uma AIJ na área trabalhista, ocorreu a seguinte interlocução:

Advogado do reclamado11: O senhor confirma o que o seu advogado escreveu, que o senhor trabalhou para o senhor Fulano de Tal? E que o senhor chegou a trabalhar pessoalmente com ele? Reclamante: Trabalhei sim, doutor. Advogado do reclamado: Então, o senhor conhece ele? Reclamado: Conheço sim. Advogado do reclamado: E ele está aqui nesta sala? Reclamado: É... quer dizer... eu... Advogado do reclamado: Ele está aqui nesta sala, senhor Beltrano? Reclamado: É... num tá não.

O depoente busca estabelecer o nexo trabalhista através da resposta em que afirma

conhecer o empregador contra o qual ingressou a ação, como se a resposta fosse suficiente e

necessária à prova desse vínculo, ou seja, a solução da demanda probatória. Entretanto, o

advogado problematiza a resposta, propondo, por meio da pergunta, que o depoente diga se o

reclamado está presente na sala de audiência. A resposta, ao afirmar a ausência do outro na sala, é

a solução esperada pelo advogado, já que o depoente foi incapaz de reconhecer o reclamado, que

estava presente na sala de audiência. Com isso, o reclamante caiu em descrédito e obteve

sentença negativa ao seu pedido.

11 Na área do Direito Trabalhista, aquele que ajuíza a ação é chamado de “reclamante” e a outra parte é denominada “reclamado”.

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2.4 Teorias da Argumentação

Estudada desde a Antiguidade Clássica, a argumentação rendeu algumas linhas teóricas,

muitas vezes com um formato tal que lhes conferia um certo antagonismo aparente. Assim

dizemos porque, a nosso ver, as teorias sobre argumentação são complementares. Em realidade,

algumas delas analisam a argumentação de uma certa perspectiva, contribuindo, cada uma a seu

turno, para que seja possível compreender um pouco mais esse objeto tão complexo. Foi assim

que a argumentação percorreu a trajetória da sofística até a dialética hegeliana, passando pela

lógica clássica, partindo de uma “arte da enganação”, como a chamou Aristóteles, pensador que

deslocou o uso da argumentação da “arte de bem falar” para “um conjunto de técnicas

‘racionais’, visando a persuadir um auditório” (EMEDIATO, 2001, p. 162), sendo hoje vista

como uma atitude discursiva que aciona diversos mecanismos de organização dos discursos, de

acordo com a circunstância comunicativa em que se faz presente. Entretanto, a despeito de todos

esses estudos realizados, muito ainda há para ser investigado, sobretudo se associado ao universo

linguístico.

O estudo da argumentação pode ser compreendido em três perspectivas. Uma delas é a

dimensão retórica cujo nome de destaque é, sem sombra de dúvida, o do filósofo grego

Aristóteles. Essa dimensão toma por recorte os laços entre orador e auditório, mediados por um

conjunto de crenças e valores que lhes é peculiar, sendo a persuasão fundamentada pelo princípio

da verossimilhança. Uma outra dimensão é a lógica, para quem a relação entre as premissas e a

conclusão deve constituir um princípio de verdade que, por sua vez, deve ser demonstrada por

meio de cálculos e operações de sentido. A última perspectiva de compreensão da argumentação

é a linguística, cujos pesquisadores de destaque são Ducrot e Anscombre. Essa linha considera

que a argumentação está inscrita na língua e que é orientada por encadeamentos dos topoï

intrínsecos e dos blocos semânticos. Essa corrente considera um certo semanticismo interno à

língua, em função da significação linguística, o que, para os pesquisadores, garante uma

imanência da argumentação à língua. Tanto a Pragmática quanto a Análise do Discurso

alimentam-se dessas três linhas que tratam da argumentação.

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2.4.1 A Sofística na construção filosófica do Direito brasileiro

Os primeiros estudos realizados de forma sistemática aconteceram por volta do século V

a. C., quando Atenas viveu o apogeu da democracia, dando início à Retórica que, aqui, por razões

didáticas, será dividida em dois movimentos, quais sejam, a Sofística e a Retórica propriamente

dita.

Naquela época, a argumentação constituía meio de saber, prestígio social e, em um

segundo momento, recompensa pecuniária. Mestres itinerantes se autodenominavam sofistas (que

vem de sofos = “sábio”) e percorriam o mundo de então, ensinando a arte de argumentar e

fazendo conferências. Como alguns deles costumavam cobrar pelos seus serviços, a classe passou

a ser associada à falência do pensamento especulativo. O fato de conhecerem muitas culturas

diferentes, por causa das inúmeras viagens que faziam, e o conflito existente entre as ideias de

vir-a-ser de Heráclito e as da imutabilidade proposta por Parmênides, contribuíram para que os

sofistas se firmassem como céticos e como relativistas. Apesar de toda crítica que a sofística

recebeu ao longo da história da filosofia, os sofistas trouxeram inquestionável progresso à

filosofia, sobretudo por mostrar-lhe algumas falhas no sistema filosófico vigente, notadamente

em categorias como a de “verdade”, vista até então como absoluta. Essa relativização da verdade

chega até os dias de hoje por meio de uma construção teórica, a dialética, de uma elaboração bem

mais complexa e que fundamenta vários estudos e ações em diversos campos das atividades

humanas. Se, por um lado, a sofística relativizou a verdade, como se pode constatar em análise da

redução antropológica de Protágoras, destacado sofista, de que “o homem é a medida de todas as

coisas”; por outro lado, deixou à posteridade o legado da percepção dos aspectos pragmáticos ou

contextuais que delineiam as produções de sentidos e de julgamentos.

Os sofistas puderam ampliar sua visão de mundo, ao travarem contato com várias culturas

durante as viagens que faziam, o que resultou em uma maior amplitude conceitual que, por sua

vez, favoreceu a relativização da verdade, demonstrando aos seus ouvintes que aquilo que lhes

parecia, por exemplo, imoral, pecaminoso, era tido como natural em outras culturas. Assim, eles

desenvolviam a argumentação centrando-a nos comportamentos humanos, ressaltando que muito

do que era tido como natural, na verdade, era uma construção social. Por se ocuparem de tarefas

de natureza heurística, os sofistas se punham a “descobrir temas conceituais para discussão” e

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isso levou Górgias a escrever Elogio a Helena, com a intenção de fundamentar a ideia de que a

paixão tem direito de se sobrepor à razão, relativizando a moral vigente, segundo a qual a mulher

estava subordinada ao marido.

No campo do Direito, a sofística também trouxe importante contribuição. Ao aplicarem

alguns conceitos básicos da Linguística na comunicação jurídica, Damião e Henriques (2000, p.

27 – 33) descrevem o ato comunicativo jurídico por meio das direções onomasiológica (centrada

no locutor) e semasiológica (centrada no alocutário). Enquanto a primeira trata das atividades de

produção do sentido, indo das relações paradigmáticas até a elaboração final da expressão

linguística, a outra faz o caminho inverso, indo das relações sintagmáticas até as paradigmáticas,

na tentativa de produção de sentido. Nesse trabalho de busca de sentido, o alocutário desenvolve

três “operações de raciocínio”, segundo os autores, quais sejam, a compreensão, a interpretação e

a crítica. Na primeira, faz-se o trabalho linguístico propriamente dito, buscando reconhecer o

valor intra-sistêmico dos elementos lingüísticos, para usar as palavras de Mari (2008), numa

espécie de desvendamento do enunciado, ou das relações sintagmáticas para se chegar às

paradigmáticas, como se queira dizer. No segundo raciocínio, é feita a aproximação do enunciado

ao campo do direito, momento em que o enunciado é “avaliado e julgado” conforme as

especificidades do discurso jurídico. Retomando Mari, é a ocasião de verificação do valor inter-

sistêmico do enunciado, ou seja, a interpretação do enunciado no universo do discurso jurídico.

Finalmente, o terceiro raciocínio desenvolvido que é a crítica. Segundo Damião e Henriques,

“Criticar é avaliar a validade/eficácia da ideia no mundo concreto, avaliando sua aplicabilidade e

efeitos = dimensão pragmática da hermenêutica”. Para ilustrar, eles citam o art. 370 do Código

Civil de 1916 (vigente à época de elaboração do estudo feito pelos autores) o qual dizia que

“Ninguém pode ser adotado por duas pessoas, salvo se forem marido e mulher". Em razão do

tempo em que foi escrita, no Código Civil, a expressão “marido e mulher”, por meio da presença

dos dois gêneros masculino (de”marido”) e feminino (de “mulher”) fundava-se em um valor

religioso e institucionalizado de “casamento”, segundo o qual, além de ser condição essencial ao

proponente de um processo de adoção, deveria ocorrer somente entre heterossexuais. Naquele

tempo (e ainda hoje, para alguns), como essa era a concepção de casamento vigente e significava

uma verdade absoluta, a expressão, isto é, a letra da lei era aplicada sem maiores dificuldades

para os operadores do Direito. Entretanto, os novos modelos de família que foram surgindo na

sociedade brasileira, como aqueles resultantes de separação ou aqueles constituídos por pessoas

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do mesmo sexo, trouxeram questionamentos acerca do artigo, mostrando a necessidade de

extrapolação do sentido dos termos “marido” e “mulher”, sendo, portanto, o que Mari chama de

valor meta-sistêmico.

Essa ampliação semântica dos termos “marido” e “mulher”, por meio da operação da

crítica, possibilita uma relativização da noção de “casamento”, numa aplicação da estratégia

argumentativa desenvolvida pela sofística. Isso resultou, na prática do Direito, em uma

interpretação mais ampla do art. 370 do Código Civil, favorecendo, por exemplo, os casos de

adoção de crianças por casais de separados ou de homossexuais. A recorrência de decisões

judiciais favoráveis a adoções por casais não constituídos por “marido” e “mulher” criou um

elevado número de jurisprudência a ponto de merecer, no novo Código Civil, de 2002 (BRASIL,

2009), o acréscimo do parágrafo único ao artigo 1622. Com acréscimo ao caput do artigo 370, do

Código Civil anterior (BRASIL, 1916), o novo Código inova também no parágrafo único ao dizer

que

Art. 1.622. Ninguém pode ser adotado por duas pessoas, salvo se forem marido e mulher, ou se viverem em união estável. Parágrafo único. Os divorciados e os judicialmente separados poderão adotar conjuntamente, contanto que acordem sobre a guarda e o regime de visitas, e desde que o estágio de convivência tenha sido iniciado na constância da sociedade conjugal.

Outro exemplo pode ser encontrado no âmbito de direito penal. Eram comuns na

sociedade brasileira os crimes em que o homem “lavava sua honra”, notadamente em questões de

adultério, e tinha amparo legal em sua defesa, estipulado no artigo 240 do Código Penal.

Entretanto, com as mudanças de valores e costumes da sociedade, o adultério deixou de ser

considerado um ato tão espúrio e, consequentemente, o Código Penal foi modificado por

revogação do artigo 240 pela Lei 11.160, de 2005 (BRASIL, 2008), para descriminação do

adultério. Curiosamente, o argumento que bem pode sustentar essa mudança social é aquele

utilizado por Górgias, em Elogio a Helena, citado acima.

Parece claro, então, que o legado da sofística ao direito brasileiro recai sobre os princípios

filosóficos que o norteiam. Em oposição às ideias kelsenianas, Miguel Reale, em 1968 e,

posteriormente, em diversas obras, propõe a teoria tridimensional do direito, segundo a qual o

Direito se compõe de três dimensões. Primeiramente, há o aspecto normativo, em que se entende

o Direito como ordenamento e sua respectiva ciência. Em segundo lugar, há o aspecto fático, em

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que o Direito se atenta para sua efetividade social e histórica. Por fim, em seu lado axiológico, o

Direito cuida de um valor, no caso, a Justiça. Desse modo, o fenômeno jurídico é composto,

necessariamente, de um fato subjacente (fato econômico, geográfico, demográfico, de ordem

técnica etc.); de um valor que atribui uma certa significação ao fato, influenciando a ação do

homem no sentido de atingir ou preservar determinado objetivo; e, por último, a norma que

representa a relação ou medida que integra os demais elementos. Reale definiu o Direito como

realidade histórico-cultural tridimensional, ordenada de forma bilateral atributiva, segundo

valores de convivência. O Direito é fenômeno histórico, embora não seja inteiramente

condicionado pela história, já que apresenta uma constante axiológica. O Direito é uma realidade

cultural, porque é o resultado da experiência do homem. A bilateralidade é essencial ao Direito.

A bilateralidade-atributiva é específica do fenômeno jurídico, de vez que apenas ele confere a

possibilidade de se exigir um comportamento.

Ora, a sofística, no processo de relativização do conceito de verdade sobre um fato, partia

do estudo do comportamento humano variável de cultura para cultura. Também o Direito

brasileiro atual toma por objeto o comportamento humano, ou seja, o homem social em seus

conflitos. Em ambos os casos, são os conceitos de homem e de suas relações sócio-históricas que

possibilitam a relativização da verdade. Em outras palavras, tanto a sofística como a teoria

tridimensional do direito têm a visão dialética de homem, de sociedade e de história, o que lhes

favorece a alteração do conceito de verdade e, consequentemente, a realização de julgamentos

diferenciados, numa aplicação mais ampla do direito. Assim, a sofística ocasiou a mudança de

paradigmas e enfoques sobre um fato da realidade, de modo a alterar o conceito que o auditório

tinha acerca desse fato. Isso não implicava necessariamente na alteração do fato em si, da

realidade em discussão, mas da forma pela qual ela era vista pelo auditório. Daí a relativização da

verdade sobre o fato e não da verdade do fato mesmo.

Esse período significou a transição para o que aqui chamamos de Retórica propriamente

dita. Há de se notar, entretanto, que a crítica era dirigida ao que alguns sofistas faziam da

atividade argumentativa, entendida essa prática como charlatanice. Uma crítica de ordem ético-

moral, portanto, bem diferente de qualquer tipo de observação sobre o aspecto conceitual da linha

sofística. Nesse diapasão, trata-se de posição bastante questionável (uma verdade relativa)

consoante os moldes sociais de hoje, em que as profissões humanas são fundamentadas pelo

ganho pecuniário, sem que haja qualquer tipo de constrangimento em usar uma sabedoria, um

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conhecimento em benefício de alguém. Interessante seria apontar algum tipo de incoerência no

quadro conceitual que a teoria oferece, feito que, aliás, nenhum detrator da sofística chegou a

apresentar.

Corroborando esse ponto de vista, Paulo Bonavides, conceituado jurista brasileiro, em seu

livro “Teoria do Estado” (2007), diz que

Os sofistas implantam no pensamento jurídico a consciência da antítese desesperadora, que compõe o drama subseqüente de toda a filosofia do direito, a saber, a antítese entre o nomos dikaion – o justo segundo a lei – e o fisei dikaion – o justo segundo a natureza. O que é justo segundo a lei, é justo por natureza? Eis a interrogação aflitiva de um problema trazido pelos sofistas ao desenvolverem as premissas que lhes oferecem os filósofos predecessores. (BONAVIDES, 2007, p. 418)

Com isso, Bonavides deixa entrever que a noção de justiça (“o justo”) não constitui

verdade absoluta, já que essa noção está sujeita a variações originadas de paradigmas distintos,

quais sejam, a lei e a natureza. O fato de se levantar tal questionamento, que ainda hoje – e tanto

mais hoje – preocupa os operadores do direito, por si só revela a relatividade das verdades

jurídicas. E é o mesmo autor que chama a Sofística de “posição revolucionária” e trata as ideias

de Sócrates, Platão e Aristóteles por “posição conservadora”, para, em paralelo, apontar “um

lugar de honra no quadro da filosofia grega” (2002, p. 411) para os sofistas.

Uma constante estratégia dos sofistas consistia em partir de exemplos de reivindicações

jurídicas nos quais eram expostos argumentos e contra-argumentos, evidenciados temas,

questionamentos, sentimentos, enfim, toda sorte de recursos cabíveis ao discurso, a fim de torná-

lo mais eficaz no intento da persuasão. O principal recurso utilizado por esses filósofos era o uso

da polissemia das palavras e o poder da linguagem. Assim, eles otimizaram as potencialidades do

discurso, de modo a garantir maior poder de persuasão, lançando mão da linguagem como meio

de satisfação dos interesses daqueles que pagavam por tal serviço. Isso fez com que a Retórica

fosse tomada como sinônima da corrente sofista, o que conferiu àquela total desgaste, tanto pelo

uso excessivo quanto pelo descrédito social. Assim, os filósofos Platão e Aristóteles combateram-

na firmemente, chegando este último a intitulá-la de “arte de enganação”.

Platão elabora sua crítica, de acordo com a qual o discurso deveria estar sujeito à verdade

proposicional. Para Aristóteles, a sofística não conhecia o objeto sobre o qual discursava, apenas

detinha o domínio de técnicas por meio das quais manipulava o auditório, já que o capturava,

demovendo-o e levando-o a agir de acordo com a tese que lhe era apresentada.

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2.4.2 A Retórica aristotélica e as categorias de análise argumentativa

Considerando a dimensão pragmática que envolve a argumentação, Aristóteles elaborou

quatro categorias ainda hoje utilizadas nas análises da argumentação, quais sejam, o Ethos, a

construção discursiva da imagem do enunciador; o Pathos, que representa a sensibilidade do

auditório, utilizadas para despertar o outro e aflorar-lhe o desejo e/ou a solidariedade; o Logos

que constitui a materialidade do discurso, sendo o lugar em que são desenvolvidas, engendradas

as estratégias argumentativas; e, finalmente, o topos, que representa o conjunto de crenças e

valores de um auditório, sobre o qual se funda a lei de passagem de um argumento, garantindo-

lhe a validade e a aceitação.

Para Aristóteles, as provas inerentes ao discurso procedem de três aspectos, quais sejam, o

caráter moral do orador (ethos), a disposição do auditório (pathos) e a qualidade do discurso em

si, o quanto ele pode ser ou parecer ser demonstrado (logos). Assim, a imagem que o orador

projeta de si mesmo no discurso pode garantir-lhe a credibilidade e a autoridade. Afinal, é muito

mais fácil para um orador de conhecida honra convencer um auditório que para aquele outro de

índole duvidosa. Nessa medida, o sentimento, a emoção, o pathos do auditório é ativado, isto é, o

orador busca provocar a emoção do auditório, de modo que este venha a aderir à tese aventada

pelo orador, culminando na persuasão, no convencimento do auditório, modelando seu

comportamento. Para isso, são engendrados argumentos e estratégias (logos) que estejam em

consonância com o mundo de crenças e valores (topos) desse auditório, para que a tese seja

validada. Essas categorias não podem, justamente por serem validadas por topoï de ordem

cultural, ser avaliadas por teorias da argumentação centradas na razão, uma vez que a retórica

aristotélica está centrada na noção de senso comum (topos).

Na dimensão do discurso jurídico, essas categorias contribuem para a articulação não só

discursiva como também para a efetivação dos planos argumentativos. Os participantes de cada

mise-en-scène que caracteriza os três gêneros do discurso jurídico que aqui interessam mais de

perto buscam construir o ethos correspondente ao papel que representam e que esteja em

consonância com a intencionalidade de cada movimento discursivo. Assim, o juiz busca construir

um ethos que represente imparcialidade, conforme os preceitos doutrinários, uma vez que ele está

legitimado pelas circunstâncias jurídicas e deve assegurar sua credibilidade que, em certa medida,

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é extensiva ao Poder Judiciário. Ademais, essa construção de ethos pretende distanciar o juiz do

homem de fato que o representa (chamado no direito de princípio da impessoalidade), de tal sorte

a possibilitar maior expressão de verdade concernente ao fato real que originou o fato jurídico e,

por conseguinte, maior justiça à sentença. A sobriedade da linguagem, o uso intencional e

pragmático de pronomes de tratamento, tais como “senhor” e “senhora” para as partes e “doutor”

para os advogados, bem como o uso do espaço físico adredemente organizado constituem marcas

dos rituais que são articulados nesses três gêneros estudados. Esse ethos está presente nos três

gêneros estudados, com pequenas variações, o que leva a dizer que se trata de uma configuração

institucional, o que delineia a representação cultural que se faz de um juiz de direito e que lhe

confere um destaque social e uma investidura de poder. Tal poder pode ser constatado pelo uso

de atos de fala declarativos, tais como “Declaro aberta a sessão” ou “Indefiro a contradita da

testemunha”.

Com relação às variações do ethos do juiz, isso se deve a funções específicas que ele

representa em cada um desses gêneros. Dado que o IR tem por finalidade oferecer ao réu um

momento de defesa, o juiz assume o ethos de perquiridor, usando de uma série de perguntas

como instrumento para alcançar a verdade acerca da relação do réu com o crime que lhe é

imputado.

Em uma AIJ, o juiz deve assumir o papel de mediador, legitimado pelas cricunstâncias

judiciais, articulando o seu projeto de fala, de modo a tentar extrair das oitivas a maior

proximidade entre o momento dos depoimentos e a realidade do fato real que gerou o fato

jurídico, utilizando estratégias que aproximem sua imagem, seu ethos, de imparcialidade e de

distanciamento das posições dos querelantes. Além disso, o ethos de presidente da reunião é

fortemente construído, uma vez que é a ele que as partes e as testemunhas se dirigem, seja para

perguntar seja para responder, quase como se fosse uma situação em que somente o juiz e o seu

interlocutor estivessem presentes, muito embora a escolha de palavras, de recursos de construção

de ethos adequados, de patemização de discursos e, por conseguinte, de articulação

argumentativa do logos, revelam o ambiente tenso de duelo de pontos de vista que uma AIJ

representa.

Quando se fala da construção do ethos do juiz, muito do que é dito faz parte de uma

idealização de como o homem que vive tal papel pode bem representá-lo, de modo que a menor

proximidade entre a pessoa e o processo jurídico implique maior justiça à sentença. Entretanto, o

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ser humano não é compartimentado. Por mais que ele busque distanciar-se, ainda assim lhe resta

o conjunto de suas idiossincrasias que compõe o seu pathos que, de alguma forma, faz-se

presente na sentença. Sabendo disso, o ethos dos oradores do direito (advogados e promotores)

busca colocar em seu logos argumentos patemizados que podem despertar a adesão do juiz.

Com relação ao pathos, um dos momentos em que essa categoria é amplamente usada e

que bem encarna e representa a herança do direito grego é a SJ. Ainda realizada de modo que

lembra em muito os debates nas ágoras gregas, o uso de um logos inflamado, eivado de conceitos

e crenças vigentes na sociedade em que acontece, a SJ permite aos oradores jurídicos (no caso, os

advogados e promotores) construirem a sua teia argumentativa baseada em costumes e valores

sociais e nem tanto, nem necessariamente, jurídicos. Como recurso argumentativo, vale ressaltar

a origem familiar, a tradição de bom cristão, os hábitos de trabalhador exemplar, dentre uma

infinidade de aspectos que quase nunca possuem nexo causal com a culpabilidade em discussão.

Isso porque o júri popular (os demais juízes, aqueles não togados) é composto por cidadãos

comuns que não têm obrigatoriamente conhecimento acerca dos pressupostos do direito, mas que

representam a sociedade da qual fazem parte e têm a finalidade de dizer, por meio dos seus votos,

se o réu é culpado ou não, o que significa um veredicto para que o juiz possa aplicar a

dosimetria12 da pena, se for o caso. Como se pode ver, trata-se de gênero pautado no jogo entre o

ethos institucional dos operadores do direito e o pathos de um júri, cuja natureza popular pesa

mais que as verdades processualmente construídas ao longo da tramitação judicial.

Por mais que se tente descrever essas categorias, seguramente aspectos deixam de ser

apresentados. Afinal, não se trata de papéis teatrais memorizados, internalizados, estáticos e

inflexíveis. Pelo contrário, a multiplicidade de manifestações dessas categorias, ativadas pelos

sujeitos comunicantes em cada ato de fala que enunciam, revela o quanto essas categorias

constituem um recurso de grande força argumentativa no jogo, no mise-en-scène, que é

desenrolado nos gêneros do discurso jurídico.

12 Termo técnico do direito e que significa a medida adequada da pena apresentada na sentença.

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2.4.3 A Nova Retórica de Perelman

A Nova Retórica de Perelman e Olbrechts-Tyteca significa, segundo os próprios autores,

“uma ruptura com uma concepção da razão e do raciocínio, oriunda de Descartes” (1996, p.1), ou

seja, uma representação da retórica sob influência dos paradigmas clássicos, de modo a lhe

conferir um caráter bastante diferente daquele impresso pelo racionalismo cartesiano, qual seja, o

caráter apodíctico (necessário e evidente), uma vez que, segundo o próprio Perelman afirma, “não

se delibera quando a solução é necessária e não se argumenta contra a evidência”. É por isso que

esses autores, ao dar os contornos de sua concepção de retórica, traçam uma oposição entre

demonstração e argumentação, através da construção de um paralelo entre raciocínio dialético e

raciocínio analítico. Enquanto a demonstração é elaborada a partir da noção de cálculo, não

permitindo a existência de mais de uma conclusão, dado seu aspecto more geométrico,

matemático, por assim dizer, a argumentação possibilita a apresentação de uma série de

argumentos e de fundamentos contrários ou favoráveis a uma única tese. Nessa perspectiva, na

argumentação não há lugar para a certeza, a convicção. Ao contrário disso, ela dá azo ao diálogo,

ao debate, ao arrazoamento. Para a ocorrência da argumentação, é fundamental que haja pessoas

interessadas na discussão; que queiram convencer e estejam dispostas a ouvir, construindo aquilo

que Charaudeau chama de contrato linguageiro em que seus parceiros se reconhecem

mutuamente.

Ainda um outro fator que contribui para a distinção entre demonstração e argumentação,

segundo Perelman, é a natureza dos objetivos de cada uma dessas atividades. Na demonstração,

objetiva-se que a verdade de uma conclusão seja comprovada através da verdade das premissas,

por outro lado, na argumentação, o objetivo é a adesão dos espíritos aos quais ela é dirigida.

Fundada na retórica clássica, a postulação de Perelman apóia-se na trajetória histórica da

argumentação, fazendo da tradição aristotélica sua viga-mestra. Daí o entendimento da

argumentação como um conflito e a adoção do conceito de “justo” como basilar para ela, que

prima pelo gênero jurídico, conforme classificação de Aristóteles. Esse conceito de “justo” pode

ser entendido tanto como no sentido de “justiça”, isto é, em conformidade com a lei, ou como

“justificado”, ou razoável, numa dimensão do bom senso. Em outros termos, Perelman estabelece

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o critério de “justo” como sendo o topos que ele retoma de Arsitóteles, sendo a meta-regra da

justiça a lei de passagem nessa teoria.

Para Perelman, a efetivação do discurso argumentativo funda-se na credibilidade do

orador, atributo esse construído anteriormente ao discurso, para que o orador tenha direito à fala e

seja ouvido. Assim, esse autor atribui ao termo ‘credibilidade’ um sentido diferente daquele

atribuído por Charaudeau em seu modelo (para quem tal componente deveria ser chamado de

legitimidade). Para Perelman, ainda, uma imagem do auditório é construída pelo orador, também

antes de elaborar o discurso, a partir do que conhece e sabe desse auditório, com vistas a entrar

em um consenso quanto a crenças e valores estabelecidos, compondo o contato intelectual de que

fala o autor. Essa idealização do auditório pelo orador tanto pode ser de natureza particular

quanto universal. O auditório universal é mais exigente, pois requer um discurso mais

convincente, enquanto o particular é mais vulnerável à persuasão, aceitando um discurso mais

frouxo ou mesmo demagógico. A distinção adequada confere maior êxito ao intento

argumentativo, posto que aumenta as possibilidades de adesão à tese, favorecendo uma tendência

do auditório a agir no sentido em que é argumentado.

A concepção de gêneros discursivos presente em Aristóteles também é mantida na Nova

Retórica, alterando-se um pouco no maior destaque dado ao gênero epidíctico, cuja importância

foi ignorada pela tradição clássica. Para Perelman (1996, p. 54), esse discurso é de destacada

importância no processo de persuasão; como ele mesmo escreve, “os discursos epidícticos

constituem uma parte central da arte de persuadir”, como em outro trecho, “É nessa perspectiva,

por reforçar uma disposição para a ação ao aumentar a adesão aos valores que exalta, que o

discurso epidíctico é significativo e importante para a argumentação” (1996, p. 55 – 56).

Partindo desses pressupostos, Perelman discute aquilo que pode ser tomado como ponto

de partida para a trama argumentativa, a saber, o acordo, bem como as maneiras pelas quais são

efetivadas as estratégias argumentativas, ou seja, aquilo que ele chama de técnicas

argumentativas, consideradas pelo autor como as mais relevantes aos raciocínios dialéticos.

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2.4.3.1 O acordo como objeto da argumentação

Para que se possa desenvolver uma argumentação, é preciso, efetivamente, reconhecer

algumas premissas que serão previamente admitidas no início do processo argumentativo. Tais

premissas servem de sustentação para uma tese que se pretende defender ou contestar. No

primeiro caso, ou seja, no caso em que se pretende defender uma conclusão (tese), é preciso an-

gariar a adesão do auditório acerca das premissas que são apresentadas para fazê-lo aceitar, por

consequência, a tese que delas decorre. No segundo caso, entretanto, para contestar a tese que se

expõe, torna-se necessário fragilizar as premissas da argumentação do interlocutor, fazendo-o

reconhecer sua improcedência e/ou suas limitações para sustentar a conclusão que delas decorre.

Em qualquer um dos casos, o ponto de partida da argumentação consiste no assentimento daquilo

que se admite como válido para o desenvolvimento do diálogo. É neste sentido que Perelman

afirma ser toda argumentação – em amplo sentido – uma argumentação ad hominem, visto que

toda argumentação depende do que o interlocutor esteja disposto a admitir.

A afirmação do caráter ad hominem da argumentação está vinculada à associação que se

faz entre a argumentação e a questão do auditório. A importância da anuência do auditório se

consolida pelos objetos de acordo que podem ser fatos, verdades, presunções, valores, hierarquias

ou lugares. Objetos de acordo, portanto, são apresentados por Perelman como pontos de partida

da argumentação. Dessa forma, os pontos de partida de uma argumentação são elementos que de-

pendem da anuência do auditório. Ou seja, para que haja argumentação é preciso haver não

apenas um auditório, mas um acordo prévio acerca das premissas que serão admitidas como

ponto de partida para a discussão. Chegamos, dessarte, à conclusão de que sem a anuência do

auditório não há argumentação. Considerando-se que toda argumentação está voltada para um

auditório, e este, por sua vez, é composto por indivíduos que têm opiniões e reconhecem valores,

pode-se entender o que Perelman estava sugerindo ao afirmar que toda argumentação é ad

hominem.

Para haver uma argumentação, é necessária a existência de um acordo prévio, garantindo

que os interlocutores não venham a pôr em dúvida – posteriormente – aquilo que se admite como

pertinente para a discussão (afirmação) que se propõem a discutir (defender). Afinal, no processo

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argumentativo, é preciso evocar a plausibilidade, o razoável, como sustentação da tese que se

pretende defender.

Perelman estabelece, então, duas categorias de tipos de acordo: uma concernente ao real,

que diz respeito aos objetos fatos, verdades e as presunções, e outra atinente ao preferível, que

comporta os objetos valores, as hierarquias e os lugares do preferível.

Da mesma forma que os termos “processo” e “ação” encontram no Direito um uso

específico, diferenciado daquele feito em outros domínios discursivos, a palavra “fato” integra a

relação de expressões típicas do discurso jurídico. Com base nisso, “fato” e “fato jurídico” são

duas coisas distintas. Se um raio cai na rede elétrica de uma cidade, isso é só um fato. Entretanto,

se cai um raio na rede elétrica e isso danifica um eletrodoméstico, esse é um fato jurídico, uma

vez que tem uma consequência jurídica para a relação entre o consumidor, dono do

eletrodoméstico, e a empresa fornecedora de energia. Em outros termos, fato jurídico é o evento

que pode ocasionar uma relação jurídica entre essas partes, sobre a qual serão apresentados

argumentos ou provas e cuja previsão encontra respaldo na legislação vigente. Mas ainda assim,

no âmbito do processo judicial, há fatos sobre os quais não restam dúvidas (os chamados fatos

axiológicos) como também aqueles controversos acerca dos quais incidem as investidas

argumentativas. São estes últimos que constituem objeto do acordo argumentativo. O próprio

Perelman esclarece que

Para o teólogo ou o jurista, é considerado um fato não o que pode pretender o acordo do auditório universal, mas o que os textos exigem ou permitem tratar com tal. (...) Em direito, existem ficções que obrigam a tratar uma coisa, mesmo que não exista, como se existisse ou a não reconhecer como existente alguma coisa que existe. O que é admitido como um fato de senso comum pode ficar privado de qualquer conseqüência jurídica. Assim é que o juiz ‘não está autorizado a declarar um fato constante, pela única razão de que teria adquirido pessoalmente, fora do processo, o seu conhecimento positivo’. A intervenção do juiz poderia vir a modificar as pretensões das partes; ora, são as partes que determinam o processo, no âmbito da lei. Vemos, portanto, que, para certos auditórios, o fato é vinculado à prova que se quer ou pode administrar. (PERELMAN: 1996, 115)

Nessa perspectiva da argumentação, fato, então, diz respeito ao ponto sobre o qual recaem

as discussões jurídicas e argumentativas. No caso, por exemplo, de um crime contra a vida, ao

oferecer a denúncia, o promotor pode pretender que o acusado seja tomado de forma

incontestável, como autor do assassinato. Do ponto de vista da defesa, o advogado pode

concordar com o Ministério Público sobre esse ponto, propondo para discussão as

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circunstâncias13 em que se deu o crime, ou pode refutar essa proposição, alegando inocência do

seu cliente. No primeiro caso, a autoria do crime é considerada como fato incontroverso,

resultante de um acordo universal cujo auditório também é universal, sendo o acusado chamado

de réu confesso. No segundo caso, todavia, o advogado particulariza o auditório e,

consequentemente, o fato perde o estatuto de universal. Isso pode ser conseguido a partir de duas

estratégias, quais sejam, ao se levantar dúvidas no auditório sobre o fato ou ao se ampliar esse

auditório, incluindo nele membros que não reconhecem o caráter universal do fato da autoria do

crime. Esta segunda estratégia tem maior aplicação na sessão de tribunal do júri, dado que o

conhecimento de matérias do direito é condição necessária à participação do indivíduo no corpo

de jurados. Por fim, no exemplo em tela, há um fato axiológico, que é a morte da vítima, e sobre

o qual não deve ser engendrado nenhum tipo de argumentação, sob pena de aquele que o tentar

ficar exposto ao ridículo.

No que diz respeito à noção de verdade, Perelman (1996, p. 77) a compreende como

“sistemas mais complexos, relativos a ligações entre fatos, que se trata de teorias científicas ou

concepções filosóficas ou religiosas que transcendem a experiência”. Na sua teoria, o autor

estabelece que, entre a verdade absoluta e a não-verdade, há um espaço para aquelas outras

verdades sobre as quais incidem discussões, em virtude da possibilidade de associar a elas razões

e contra-razões. É o caso, por exemplo, do exame de DNA cuja probabilidade de acerto muito

próxima da totalidade dos casos causou a sua aceitação como prova incontestável de paternidade

forçada. Mas, como todo aspecto sobre o qual incide a argumentação, assim como se dá com os

fatos, também as verdades podem ser alvo de questionamento. Se, por um lado, não se questiona

a validade de exame de DNA como prova, por outro, pode questionar-se a lisura com que foi

realizado, trazendo à discussão jurídica as alegações de imperícia, negligência ou má fé.

Outra situação em que se verifica essa relativização da verdade, no que atine ao conjunto

probatório produzido por laudo pericial, é o caso Isabella Nardoni, amplamente divulgado pela

mídia nacional. Gozando de alto nível de credibilidade, esses laudos são considerados como

prova incontestável para muitos processos judiciais, ainda mais nas situações em que não há

testemunhas. Para fundamentar a acusação de autoria do crime ao casal Nardoni, o promotor de

justiça usou os laudos apresentados pelos peritos, de modo a construir uma cronologia dos

13 O termo “circunstância” também tem uso específico no Direito Penal, significando um conjunto de aspectos contextuais que podem servir de atenuantes, agravantes ou mesmo excludentes de culpabilidade como, por exemplo, a legítima defesa.

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acontecimentos (horário em que a família saiu do supermercado, em que o carro foi desligado em

que foram feitos telefonemas), na noite da morte de Isabella, associada a demonstrações

empíricas da perícia especializada (marcas do calçado na roupa de cama do quarto de onde

Isabella caiu, altura da qual o sangue de Isabella pingou coincidente com a estatura de Alexandre

Nardoni, a força com a malha da rede de proteção foi impressa na camisa de Alexandre), a fim de

incriminar os acusados. Esses pareceres técnicos, dessa perspectiva, foram tomados como

verdades absolutas. No ponto de vista da defesa, no entanto, alegou-se nulidade da perícia,

atribuindo-lhe o caráter de fragilidade. Essa alegação, ao problematizar a validade pericial,

relativiza a verdade dessas provas, o que leva o advogado a afirmar que não há provas contra

esses acusados.

O último objeto de acordo que incide sobre a realidade são as presunções. Necessitando

de reforço para que haja adesão a elas, as presunções constituem uma espécie de máximas

socialmente válidas e, como aponta Perelman (1996: 79), quase sempre “são admitidas de

imediato, como ponto de partida das argumentações”. Elas podem ser tomadas como sendo

presunções da qualidade, da credulidade natural, do interesse e da sensatez humana. A presunção

da qualidade estabelece uma equivalência entre a qualidade do ato e a qualidade da pessoa que o

praticou; a da credulidade natural diz respeito à tendência humana de aceitar como verdadeiro

aquilo que nos é dito e pode ser sintetizada pela máxima “acredito até que me provem o

contrário”; a presunção do interesse, por sua vez, relaciona à crença de que “todo enunciado

levado a nosso conhecimento supostamente nos interessa”; e a presunção da sensatez atém-se “ao

caráter sensato de toda ação humana”. Evidentemente, por ser objeto de validade essencialmente

sócio-cultural, as presunções partem de categorias de comportamentos humanos, vinculando-se

àquilo que é considerado normal e verossímil em determinados grupos sociais, de modo que

sempre se espera que o normal é o que acontecerá. Como isso não se verifica estatisticamente, as

presunções são tomadas como ponto de partida para argumentações e não as probabilidades e são

as primeiras (as presunções baseadas no normal) que necessitam de um grupo de referência. Com

isso, Perelman aponta que

Em toda argumentação judiciária intervêm as variações do grupo de referência. A antiga oposição entre a argumentação pelos motivos do crime e pelo comportamento do acusado corresponde a dois grupos de referência diferentes: o primeiro, mais amplo, o segundo, mais específico, o que significa que, no segundo caso, tiram-se as presunções do que é normal para homens que se comportam, a vida inteira, como o acusado. (PERELMAN, 1996, p. 82)

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No lendário caso bastante propalado dos âmbitos do direito, pode-se perceber a aplicação

de presunções. Durante anos, um rapaz perturbara um sapateiro por causa de sua feiura. Não

suportando mais a situação, o homem matou o rapaz. Na SJ, ao receber a palavra, o advogado de

defesa cumprimentava os presentes, calava-se, olhava o relógio, repetiu essa cena várias vezes,

até que o juiz, irritando-se com a situação, ordenou que ele apresentasse algo importante aos

autos, caso contrário a palavra lhe seria retirada. O advogado perguntou se um cumprimento que

em nada é ofensivo, pela repetição, em tão pouco tempo, irritou os presentes, como condenar um

homem que sofreu durante anos a provocação da vítima? Ao fazer a encenação, o advogado

aplica a estratégia de fazer com que o auditório se coloque no lugar do réu, como ponto de

comparação entre comportamentos que justificam a escolha da atitude do acusado, pelo fato de

ela apresentar grau bem maior de tolerância que o habitual.

No tocante aos objetos de acordo pautados no preferível, os valores, por serem, por

natureza, arbitrários, que decorrem de escolhas, ou opções, e não de evidências empíricas ou de

parâmetros lógicos, possuem, portanto, o caráter relativo. Como destaca Perelman (1996: 84),

“nos campos jurídico, político, filosófico os valores intervêm como base de argumentação ao

longo de todo o desenvolvimento”. Segundo esse autor, há os valores concretos e os abstratos.

Um valor é considerado concreto em razão da sua realidade única. Os abstratos, por sua vez,

estão associados à ideia de mudança. A forma preferível e superior que alguns valores têm em

relação a outros estabelece o segundo tipo de objeto de acordo fundado no preferível, a saber, a

hierarquia.

As hierarquias apresentam-se sob dois aspectos, quais sejam, ao lado de hierarquias

concretas, como de se colocar o homem como superior ao animal, e ao lado de hierarquias

abstratas, como entender o justo preferível ao útil, por exemplo. Essas hierarquias são

reconhecidas a partir da intensidade com que se adere mais a um valor que a outro em um par de

comparação. Retomando o caso de Isabella Nardoni, durante o julgamento do casal, o grupo de

pessoas que, na porta do fórum, gritava “Justiça! Justiça!”, pela intensidade com que imprimia a

essa atitude, hierarquizou o justo como preferível ao verdadeiro..

Por último, Perelman apresenta os lugares. Realizando função semelhante à das

presunções, os lugares são divididos em duas categorias: a dos lugares-comuns, aceitos em todos

os domínios discursivos, e os lugares específicos, próprio de um certo domínio, de uma área do

conhecimento, de uma disciplina. Enquanto os lugares-comuns do preferível constituem

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afirmações muito gerais, concernentes àquilo que se acredita possuir maior valor,

independentemente do domínio em que se inscrevem, os lugares específicos, ao seu turno,

estabelecem aquilo que é tido como maior valor em domínios específicos.

Os lugares apresentam algumas categorias: da quantidade, da qualidade, da ordem, do

existente, da essência e da pessoa. Os lugares da quantidade tomam por preferível e superior

aquilo que é proveitoso ou maior, que seja mais durável, assim como aquilo que seja mais útil nos

mais diversos casos. A esses lugares opõem-se os lugares da qualidade que adotam como critério

de superioridade o fato de ser único ou raro, portanto, de natureza insubstituível.

Ao lado desses dois mais usuais vêm os demais lugares. Os da ordem privilegiam a causa

sobre o efeito, do antecessor pelo sucessor. É o lugar da tradição por excelência. Os lugares do

existente dão preferência àquilo que de fato existe sobre algo que é apenas uma possibilidade. Os

lugares da essência atribuem superioridade àquilo que de melhor maneira representa o essencial.

Por fim, os lugares da pessoa conferem superioridade àquilo que está associado à pessoa sobre o

que só dizem respeito a coisas ou a outros seres.

Há, ainda, os objetos de acordo próprios de certos auditórios, seja de ordem ideológica,

seja profissional. Assim, os operadores do direito devem estar em conformidade com as normas

jurídicas, para que possam desempenhar cada um dos papéis de modo adequado à situação

comunicativa que protagonizam.

2.4.3.2 As técnicas argumentativas de Perelman

A argumentação pode oferecer recursos para se convencer o auditório com base naquilo

que já é desejado ou conhecido por esse auditório. Contudo, os inúmeros tipos de auditório torna

viável a adaptação ideal do orador e, em virtude disso, Perelman propõe as técnicas

argumentativas que constituem modos de desenvolvimento de raciocínios.

Os esquemas argumentativos caracterizam-se por processos de “ligação” e “dissociação”.

Os processos de ligação correspondem a uma solidariedade entre elementos distintos que permite

estruturá-los, a fim de valorizá-los positiva ou negativamente. De modo contrário, nos processos

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de dissociação podem ser percebidas técnicas de ruptura com o objetivo de separar elementos de

um todo solidário, modificando seu sistema.

Perelman (1996, p. 212) refere-se às técnicas argumentativas como esquemas de

argumentos para os quais os casos particulares examinados servem apenas de exemplos, que

poderiam ser substituídos por inúmeros outros casos.

Segundo Perelman (1996, p. 215), os raciocínios dialéticos têm em comum com os

analíticos a necessidade de “ligação” entre premissas e conclusões. Assim, ele apresenta três

categorias de ligação14, quais sejam, os argumentos quase-lógicos, os argumentos fundados na

estrutura do real e os argumentos que fundam a estrutura do real.

2.4.3.2.1 Os argumentos quase-lógicos

Os argumentos quase-lógicos são raciocínios não-formais que possuem certa força de

convicção, mas que não têm valor conclusivo. A força persuasiva do argumento quase-lógico

consiste, justamente, na sua proximidade com o argumento certeiro. Conforme explana Perelman

(1996, p. 297), “os argumentos quase-lógicos têm pretensão a certa validade em virtude de seu

aspecto racional, derivado da relação mais ou menos estreita existente entre eles e certas fórmulas

lógicas ou matemáticas”. Nesse sentido, ainda, argumenta o autor que o que caracteriza a

argumentação quase-lógica é

seu caráter não formal e o esforço mental de que necessita sua redução ao formal. É sobre esse último aspecto que versará eventualmente a controvérsia (...) A argumentação quase-lógica se apresentará de uma forma mais ou menos explícita. (PERELMAN, 1996, p. 220)

Um exemplo desse tipo de argumento acontece em um IR cujo réu é acusado de um

assassinato de uma mulher

Promotor: É verdade que o senhor já teve outros problemas com a Justiça? Réu: Já sim senhor. Promotor: O senhor foi acusado de quê?

14 Vale ressaltar que o autor elenca um número razoável de técnicas. Aqui, serão apresentadas apenas as mais recorrentes no corpus analisado.

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Réu: Uai, eles me condenou por uma morte aí. Promotor: Morte de quem? Réu: Num lembro o nome não senhor Promotor: A vítima desse crime era um homem? Réu: Não senhor. Era uma mulher.

Como se pode ver, o promotor pretende construir uma estrutura quase-lógica por meio do

seguinte jogo inferencial :

O réu já cometeu um crime contra a vida de uma mulher. (fato 1) O réu é acusado de matar outra mulher. (fato 2) O réu matou esta última mulher. (conclusão desejável pelo promotor)

Nessa estratégia, o promotor cria uma fórmula mais ou menos explícita, cuja estrutura tem

natureza matemática que exige um esforço mental para se chegar à sua redução formal sobre a

qual recai a controvérsia de que o fato de ter cometido um mesmo tipo de crime anteriormente

não faz do réu o culpado pelo crime em discussão. Esse conjunto de marcas silógicas associadas à

controvérsia apontada revela a natureza quase-lógica da estratégia argumentativa do promotor.

Nessa perspectiva, cumpre concluir que – embora, pelo princípio da intransferibilidade subjetiva

dos crimes, que é um princípio do direito penal, o juiz não possa condenar o réu tomando por

base esse raciocínio sugerido pelo promotor – essa estratégia argumentativa reforça a tese de que

o réu é culpado.

Após caracterizar a argumentação quase-lógica, Perelman apresenta uma série de

argumentos que constituem estratégias de construção dessa linha argumentativa, que passamos a

citar a seguir.

- Contradição e incompatibilidade

Considerando a distinção entre a linguagem natural e a de um sistema formal, Perelman

apresenta os usos e finalidades dos princípios da contradição e da incompatibilidade em um plano

argumentativo. Enquanto a contradição leva o orador a um discurso absurdo, a incompatibilidade

é utilizada pelo orador para a demonstração de teses opostas, de modo que se escolha, entre as

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duas teses, a que melhor se aplica ao caso concreto. Portanto, segundo Perelman (1996, p. 222),

“a argumentação se empenhará em mostrar que as teses combatidas levam a uma

incompatibilidade, que nisso se parece com uma contradição, que ela consiste em duas asserções

entre as quais cumpre escolher, a menos que se renuncie a ambas.” O autor distingue

incompatibilidade das contradições, afirmando que as primeiras existem em função das

circunstâncias, pois, para ele (1996, p. 228), “para entrar num conflito que impõe uma escolha, é

preciso que duas regras sejam aplicáveis simultaneamente a uma mesma realidade.” Assim,

existem três procedimentos que o orador pode utilizar para evitar uma incompatibilidade:

a) lógica – a lógica pressupõe a solução dos problemas antecipadamente. Todo o discurso

do orador deve ser examinado, antecipadamente, para evitar que ocorram incompatibilidades:

a atitude lógica pressupõe que se consiga aclarar suficientemente as noções empregadas, especificar suficientemente as regras admitidas, para que os problemas práticos possam ser resolvidos sem dificuldade mediante simples dedução. Isso implica, aliás, que o imprevisto foi eliminado, que o futuro foi dominado, que todos os problemas se tornaram solucionáveis tecnicamente. (PERELMAN, 1996, p. 224-225);

b) prática – ao contrário da lógica, a prática pressupõe a solução dos problemas de forma

sincrônica, ou seja, à medida que eles forem ocorrendo, serão solucionados. Em outros termos,

são resolvidos durante o discurso, a partir do momento em que são apresentados ao orador. É um

procedimento arriscado, pois pode ocorrer um problema para o qual o orador não tenha uma

solução, naquele momento;

c) diplomática – o orador, quando confrontado com a incompatibilidade, pode solucioná-

la, diplomaticamente, adotando uma solução apresentada pelo auditório.

Um exemplo dessa estratégia pode ser visto em uma AIJ de um processo eleitoral, em que

o candidato eleito é acusado do crime eleitoral de compra de votos

Juiz: Segundo denúncia do Ministério Público, a senhora diz que o candidato eleito deu dinheiro à senhora para votar nele. Isso é verdade? Testemunha de acusação: É sim. Juiz: Como isso aconteceu? Testemunha de acusação: Eu estava precisando de um dinheiro e o irmão dele me deu cem reais para votar no candidato. O juiz passa a palavra ao advogado de defesa. Advogado da ré: A senhora trabalhou na campanha do candidato adversário? Testemunha de acusação: Não. Advogado da ré: Em momento nenhum?

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Testemunha de acusação: É, sim. Quer dizer, só no finzinho da campanha, só uns dias. Advogado da ré: E na campanha do acusado? Testemunha de acusação: Trabalhei não. Advogado da ré: Houve alguma proposta do acusado para a senhora trabalhar para ele? Testemunha de acusação: Não. Advogado da ré: Excelência, existe um contrato às folhas “tais” dos autos, firmado entre a depoente e o comitê eleitoral do acusado. O juiz encontra o contrato nos autos e pergunta à depoente Juiz: Essa assinatura é da senhora? Testemunha de acusação: É sim senhor.

A partir das perguntas feitas nesse trecho da oitiva, o advogado de defesa construiu a

estratégia de colocar em evidência a incompatibilidade situacional proposta pela acusação. Uma

vez havendo um contrato de prestação de serviços entre a testemunha de acusação e o acusado,

torna-se muito mais provável que o dinheiro eventualmente entregue a ela se devesse a possível

pagamento desse serviço e não a título gratuito. Como a testemunha omite previamente a

existência do contrato – prova incontestável presente nos autos – , essa omissão aponta para a

incompatibilidade presente no depoimento, conforme quer o advogado de defesa, já que a tese de

pagamento devido à existência de um contrato é melhor que a tese de compra de votos, cuja

redução formal pode ser expressa por meio da seguinte estrutura:

A testemunha firmou com o acusado contrato de prestação de serviço. (fato 1) A testemunha recebeu dinheiro do acusado. (fato 2) O dinheiro foi pagamento do acusado à testemunha em virtude do contrato. (conclusão proposta pelo advogado de defesa)

Essa estratégia tem por base uma outra estrutura implícita:

Existe um contrato entre a testemunha de acusação e o acusado. (fato 1) A testemunha omite a existência do contrato. (Fato 2) A testemunha apresenta depoimento incompatível. (conclusão desejada pelo advogado)

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Cumpre ressaltar, no entanto, que a tese da defesa também apresenta incompatibilidade,

uma vez que o fato de haver um contrato de prestação de serviço, por si só, não é causa

suficiente, isto é, não exclui a possibilidade de não ter havido compra de votos. Afinal, esse

contrato poderia ter sido firmado apenas para “lavar” o ato ilícito, camuflando a compra de voto.

Entretanto, a defesa logra maior êxito por construir a tese de menor nível, comprovado na AIJ, de

incompatibilidade sendo, como apontou Perelman, a que, entre as duas, “cumpre escolher”.

- O ridículo na argumentação

Além desses procedimentos, Perelman salienta o papel do ridículo na argumentação. Para

ele, o ridículo é aquilo que deve ser sancionado pelo riso, de modo que

uma afirmação é ridícula quando entra em conflito, sem justificação, com uma opinião aceita. Fica de imediato ridículo aquele que peca contra a lógica ou se engana no enunciado dos fatos, conquanto que não o considera um alienado ou um ser que nenhum ato pode desqualificar, por não gozar do menos crédito. (PERELMAN, 1996, p. 236)

O riso é a sanção da transgressão de uma regra aceita, uma forma de condenar um

comportamento excêntrico, que não se julga bastante grave ou perigoso para reprimi-lo com

meios mais violentos. A esse tipo de argumentação está ligada a figura ironia, através da qual se

pretende dar a entender o contrário do que se diz, o que a torna uma argumentação indireta. A

ironia fica ainda mais eficaz quando é dirigida a um grupo bem delimitado. Apenas a concepção

que se faz das convicções de certos meios pode fazer-nos adivinhar se determinados textos são ou

não irônicos. Dessa forma, não se utiliza o ridículo no discurso, embora o orador possa utilizar a

ironia como recurso argumentativo., tal como fez um promotor em SJ, ao rebater a argumentação

de advogado de defesa que alegava a necessidade de se aplicar o princípio do direito in dubio pro

reo, pelo fato de nenhuma das testemunhas afirmar ter visto o acusado cometendo o crime, a

despeito de todas as evidências apresentadas.

Promotor: Senhores jurados, os senhores perceberam o papel que a defesa quer que os senhores representem? Que os senhores ajam como o português da anedota vulgar que, por ter a sua mulher na companhia de um homem, aos beijos e abraços, em um quarto de motel, diz “Ó dúvida cruel!”, pelo fato de ela ter apagado a luz do quarto? Como é possível fazer tão pouco da inteligência dos senhores, solicitando que ignorem os depoimentos todos aqui realizados, as provas e evidências todas apresentadas, pelo simples fato de nenhuma testemunha ter assistido ao ato criminoso cometido pelo réu? Algum dos senhores, por acaso, teria dúvida quanto ao adultério – a exemplo da anedota do português – pelo simples fato de terem os amantes apagado

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as luzes tão somente na hora da cópula? Como dizer que há dúvidas? E, não havendo dúvidas, como inocentar o acusado, senhores?

Para compor o quadro do ridículo, o promotor usa, além da anedota em si, algumas

expressões que, na nossa cultura, possuem um sentido pejorativo, tais como o “português da

anedota”, “vulgar”, “fazer tão pouco da inteligência dos senhores”, “pelo simples fato”, com o

intuito óbvio de ridicularizar a tese da defesa.

- Identidade e definição na argumentação

Uma das técnicas essenciais da argumentação quase-lógica é a identificação de diversos

elementos que são o objeto do discurso. O procedimento mais característico de identificação

completa consiste no uso das definições, que podem ser de quatro espécies: normativas

(individual, como se quer que a palavra seja utilizada); descritivas (indicam o sentido da palavra

em determinado meio e momento); de condensação (indicam elementos essenciais da definição

descritiva); complexas (combinam elementos das três anteriores).

Durante uma SJ, em que uma mulher de classe baixa era acusada de, com uma pequena

faca de uso doméstico, matar o marido, durante uma briga, enquanto bebiam, em casa, a

promotora disse que a mulher havia agido por vingança, já que o marido costumava agredi-la

sempre que bebiam. A isso, o advogado de defesa retrucou, dizendo:

Advogado de defesa: Senhores, o que é vingança? Que conceitos de defesa e de vingança adotamos? Será vingança, no calor de uma discussão, privados do bom juízo, agir impensadamente? Por ventura não é cálculo frio e demorado, distante no tempo dos acontecimentos que caracteriza a vingança? Não é a defesa um ato reflexo, filho do instinto de auto-preservação? Cabe tomar um ato pelo outro a nosso belprazer ou de acordo com nossos interesses.

O advogado, na defesa de sua cliente, define o que é “defesa” e o que é “vingança”,

explicitando em que contexto aplicar um e outro termo, isso com o objetivo de contrapor à tese

do Ministério Público de que a mulher agiu premeditadamente., o que confere penalidades

bastante diversas. Afinal, agir “no calor da discussão” (como se diz no direito) leva à tese de

legítima defesa que pode, até mesmo, inocentar o réu.

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- A regra da justiça

Requer a aplicação de um tratamento idêntico a seres ou a situações que são integrados

numa mesma categoria. Para isso, os seres deveriam ser idênticos, o que nunca acontece. Então,

são consideradas as semelhanças entre as características essenciais.

O uso de analogias (strictu sensu significam decisões de juízes de primeira instância) e

jurisprudências (strictu sensu são as decisões dos tribunais de segunda instância e superiores)

como fonte do direito tem por base essa regra. Na ausência ou insuficiência de lei que ampare

uma situação fática, não podendo o Estado deixar de aplicar a justiça, o julgador toma uma

decisão que, em casos análogos, pode ser reaplicada. Em uma sustentação oral no Tribunal de

Justiça, um advogado apresenta aos desembargadores:

Advogado de defesa: Doutos Desembargadores, consultando os julgados deste Egrégio Tribunal, é possível verificar o enorme acervo de situações análogas em sentido favorável à do meu cliente. Poderia eu citar aqui uma vasta lista de processos, entretanto atenho-me ao de nº X por ser assaz semelhante ao que ora vivenciamos. Assim como o meu cliente, o réu daquele processo era acusado de tráfico de drogas a partir de uma denúncia. O entorpecente que fora encontrado com este não significava quantidade que tipifique o tráfico, sendo que o réu confessou-se usuário. Se em tal situação o réu foi absolvido, como desejar, então, para o acusado deste processo resultado diverso? Sabemos que a acusação de tráfico de drogas contra meu cliente foi feita por um indivíduo que, flagrado portando entorpecentes, disse ter comprado a droga do réu. Mais tarde, descobriu-se que o denunciante era inimigo do acusado. Como se isso não bastasse, em momento algum meu cliente foi pego com drogas. Em ambos os casos, uma única testemunha, cujo depoimento veio eivado de inverdades e intenções espúrias. Como pode a Justiça ter dois pesos e duas medidas para casos tão similares? Há firmes jurisprudências nos Tribunais Superiores que rechaçam esse tipo de condenação, sem nenhuma prova robusta que a embase, por absoluta afronta ao princípio do in dubio pro reo. Neste caso em debate, além de afrontar o não menos vetusto brocardo latino testis unus, testis nulus, há de se considerar, ademais, que o único testemunho colhido é de um declarado desafeto do acusado, eivando de suspeição o seu depoimento por flagrante confronto com o disposto no artigo 214 do Código de Processo Penal, em consonância com o artigo 405, 3º, III, do Código de Processo Civil.15

- Argumentos de reciprocidade

O argumento de reciprocidade é aquele que, tomando dois seres ou duas situações,

aproveita-se de uma possível similaridade e postula que esses dois termos correlativos numa

relação devem ser tratados de forma semelhante. A reciprocidade faz parte da regra de justiça,

15 Segundo esses artigos, estão impedidos de depor, dentre outros, “o inimigo capital da parte, ou seu amigo íntimo”.

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uma vez que exige o tratamento igual de seres e situações semelhantes umas às outras, já que

estes possuem os mesmos traços pertinentes, o que justifica a sua inclusão em uma mesma

categoria. A regra de justiça é chamada especificamente de “regra de ouro”, quando for aplicada

a situações tomadas como sendo semelhantes.

- Argumentos de transitividade

A transitividade é uma propriedade formal de certas relações que permite passar da

afirmação de que existe a mesma relação entre os termos a e b e entre os termos b e c, à

conclusão de que ela existe entre os termos a e c: as relações de igualdade, de superioridade, de

inclusão, de ascendência são relações transitivas. Dito de outra forma, a transitividade é um caso

específico de identificação, quando se estabelece uma relação entre um termo e um segundo

termo (A e B), e uma relação entre um segundo termo e um terceiro (B e C) que determina que a

relação seja estendida também entre o primeiro e o terceiro (A e C). Existe uma relação entre B e

C e esta relação estabelece um eixo entre A e C simultaneamente. Um exemplo desse argumento

pode ser visto em um IR em que dois rapazes estavam sendo acusados de um homicídio:

Promotor: Desde quando você conhece o acusado 1? Acusado 2: Eu conheço ele desde criança. Promotor: Vocês viviam no mesmo bairro? Tinham algum tipo de convivência? Acusado 2: Tinha sim. Promotor: Como era a vida de vocês? Onde vocês se encontravam? Acusado 2: A gente estudava na mesma sala, jogava bola junto, brincava na rua. Promotor: E da vítima? Você era amigo? Acusado 2: Tinha pouco conhecimento. Promotor: Ele morava no mesmo bairro? Acusado 2: Morava. Promotor: Desde criança? Acusado 2: Não. Ele mudou para lá tem poucos anos. Promotor: Há quanto tempo? Acusado 2: Sei lá, uns oito anos mais ou menos. Promotor: Você e o acusado 1 já foram processados juntos por um latrocínio seguido de morte? Acusado 2: Já sim. Promotor: O acusado 1 foi preso em flagrante e confessou ter matado a vítima porque esta o provocou demais. Isso é de seu conhecimento? Acusado 2: Sei sim. A vítima jogou uma garrafa de cerveja nele. Promotor: Você viu isso? Acusado 2: Vi sim.

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As perguntas são feitas, compondo o seguinte encadeamento:

1 - Os acusados são amigos de infância. 2 - Os acusados já foram parceiros em outro crime. 3 - O acusado 1 era inimigo da vítima. 4 - O acusado 1 matou a vítima com a ajuda de alguém. 5 - O acusado 2 estava na cena do crime.

6 - O acusado 2 ajudou o acusado 1 a matar a vítima.

Por esse encadeamento, percebe-se que o promotor pretende estabelecer o argumento da

transitividade da seguinte forma:

Acusado 2 era parceiro de Acusado 1. (A parceria B) Acusado 1 era inimigo da vítima. (B inimizade C) Acusado 2 era inimigo da vítima. (A inimizade C)

2.4.3.2.2 Argumentos baseados na estrutura do real

Essa categoria, fundada na estrutura do real, é constituída por aqueles argumentos cujo

fundamento encontra-se na ligação existente entre os diversos elementos da realidade. Uma vez

que se admite que os elementos do real estão associados entre si, em uma ligação específica, é

possível fundar sobre tal relação uma argumentação que permita passar de um desses elementos

ao outro, com o qual haja uma relação de sucessão ou de coexistência (PERELMAN, 1996, p.

251). Por sucessão, são aqueles argumentos que dizem respeito à relação de causa e efeito, por

exemplo, o argumento pragmático, que atribui o valor de uma tese aos resultados causados por

sua adoção. Em outros termos, são argumentos fundados na estrutura do real aqueles que

permitem passar daquilo que é admitido ao que se quer fazer admitir. Desde que haja elementos

do real associados uns aos outros numa ligação reconhecida, é possível fundar nela uma

argumentação. Enquanto os argumentos quase lógicos têm pretensão a certa validade em virtude

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de seu aspecto racional, os argumentos fundados sobre a estrutura do real valem-se dessa

estrutura para estabelecer uma solidariedade entre juízos admitidos e outros que se procura

promover.

Um exemplo desse tipo está na defesa feita pelo advogado, da SJ mencionada acima em

que uma mulher era acusada de matar o marido. O advogado dirigiu-se ao corpo de jurados, por

meio das perguntas:

Advogado de defesa: Se essa mulher for presa, quem vai cuidar das crianças pequenas que estão em casa? O Estado, senhores, que já deixa a desejar em suas obrigações primeiras? Nós, componentes desta sessão, assumiremos mais essa tarefa, somando-a às que já nos assoberbam?

Como se pode ver, o advogado atrelou à adoção da tese de condenação da ré a

consequência de que as crianças, filhas do casal, ficariam sem ter quem lhes guardasse. Diante de

tal argumento, a tese de acusação sofreu enfraquecimento dado o peso de suas consequências.

Os argumentos fundados na estrutura do real por coexistência são aqueles que dizem

respeito às relações envolvendo realidades de ordens diferentes, em que uma seja a essência e a

outra a manifestação exterior dessa essência. É o argumento que procura associar o caráter de

uma pessoa a seus atos, por exemplo. Um advogado que alega ser o réu um bom pai de família,

trabalhador pontual e cumpridor das suas obrigações, pessoa calma e de bom senso, busca

associar o caráter pacífico e de bom cidadão à impossibilidade de o réu ter praticado o crime que

lhe é imputado.

Assim, as ligações de sucessão são estabelecidas pelo nexo de causalidade, pelo

argumento pragmático, pela relação meio-fim e pelo argumento do excedente. A partir da

afirmação de uma ligação causal a argumentação pode dirigir-se em direção à procura das causas,

à determinação dos efeitos ou à apreciação de um fato através das suas consequências. O

argumento pragmático diz respeito não à existência, mas à importância de um objeto ou um

acontecimento.

Nos argumentos de meios e fins, os meios também podem se transformar em fins, em uma

estratégia em que o argumento do excedente é o argumento do exagero frequentemente

empregado. As ligações de coexistência apresentam a relação entre a pessoa e seus atos. Aquilo

que se diz sobre uma pessoa tem sua justificativa pela maneira como esta se manifesta, mas é a

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unidade e a estabilidade da pessoa que unifica o conjunto dos seus atos, tais como suas intenções,

seu caráter é que explicam o seu comportamento.

- Argumentos de autoridade

Usado muito frequentemente na ausência de prova demonstrativa, embora no discurso

jurídico seja prática recorrente, podem ser divididos, conforme o tipo de autoridade, em:

a) parecer unânime: como argumento, um advogado cita um julgado afeito à sua tese e

que teve parecer favorável unânime;

b) opinião comum: durante um processo na Justiça Eleitoral, em que um candidato era

acusado de compra de votos, já que fora visto na casa de um eleitor, o seu advogado de defesa

que, em tal comunidade, a prática de ir a toda e qualquer casa de eleitor, para pedir-lhe o voto,

constitui traço cultural tão arraigado que o candidato que assim não proceder está sujeito a não

obter os votos pretendidos. Em síntese, como opinião comum, “Candidato que quer voto, vai de

casa em casa, conversar com os eleitores”;

c) Categorias de homens: trata-se de recurso muito utilizado no discurso jurídico, no qual

se faz menção a tal ou qual corrente doutrinária do Direito, linhas filosóficas, pesquisas de toda

área;

d) Impessoal: na argumentação jurídica, esse recurso também é extremamente utilizado,

sobretudo porque o direito é uma ciência social interdisciplinar por excelência;

e) Explicitamente nomeada: citar os nomes de pessoas ilustres, de renome inquestionável,

ainda é recurso do qual se valem muitos advogados.

2.4.3.2.3 Argumentos fundadores da estrutura do real

São os argumentos que, a partir de um caso conhecido, permitem estabelecer um

precedente, um modelo ou uma regra geral, como os raciocínios pelo modelo ou pelo exemplo. A

argumentação pelo exemplo tem por objetivo passar do caso particular para a generalização,

através de exemplos que comprovem a generalização. Segundo Perelman, é importante que o

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exemplo escolhido não possa ser contestado. O exemplo pressupõe a existência de certas

regularidades cujos exemplos fornecerão uma concretização.

- Argumento do modelo ou do antimodelo

Como variação do argumento pelo exemplo, esse tipo tem por característica o fato de

tomar pessoas como protótipos, como modelos a serem seguidos ou, ao contrário disso, a serem

evitados, constituindo o que se chama de antimodelo, que é aquele cujas ações e comportamentos

são alvo de críticas.

Para exemplificar o argumento do modelo, na Contestação16 do processo eleitoral, cuja

AIJ foi citada em parte acima, o advogado cita trecho da Bíblia, concitando o juiz a seguir as

orientações de Jesus (modelo de sabedoria e de retidão para nossa cultura cristã) a conhecer as

árvores pelos frutos que elas produzem, isto é, a conhecer o teor da denúncia pelo comportamento

dos denunciantes (os opositores políticos do acusado) ao Ministério Público, os quais, nesse caso,

são um antimodelo, por terem os hábitos de mentir, de caluniar, de perseguir os adversários

políticos e de mal administrar o município quando estiveram no poder, segundo o advogado de

defesa

- Argumentação pela analogia

É o argumento que pressupõe que, por exemplo, a Justiça deve tratar de maneira igual as

situações iguais. As citações de jurisprudência são os exemplos mais claros do argumento por

analogia, que é bastante útil porque o juiz pode ser, de algum modo, influenciado a decidir em

conformidade com o que já se decidiu, em situações anteriores.

2.4.4 A argumentação na Teoria Semiolinguística

Para postular a teoria semiolinguística, Charaudeau parte de uma concepção que se filia à

tradição retórica. Situada nos campos da Análise do Discurso, em clara oposição ao postulado de

16 Contestação é o nome que se dá a uma peça processual na qual o advogado apresenta respostas às acusações feitas pelo autor na Petição Inicial (ou Exordial, peça que inicia o processo judicial).

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Ducrot (1987), a teoria semiolinguística propõe que a argumentação “não pode ser identificada

com a presença de marcas em uma sequência de frases ou proposições ligadas por conectores

lógicos” (CHARAUDEAU, 2001, p. 191). Ao contrário disso, equiparada à narração e à

descrição, a argumentação é entendida como uma atitude discursiva em razão de uma finalidade

comunicativa, fruto de uma opção do sujeito argumentante (responsável pelo ato de linguagem).

Esse sujeito argumentante, ao argumentar com o sujeito alvo, apresenta uma tese acerca do

mundo, compondo uma relação triangular que, na perspectiva do sujeito argumentante,

representa duas finalidades.

A primeira é “uma busca de racionalidade que possa servir como ideal de verdade”,

como meio de explicar fenômenos com mais de uma resposta possível. Nessa teoria, o verossímil,

ou aquilo que é tido como verdadeiro a partir das construções socioculturais do grupo em que o

sujeito argumentante e o sujeito alvo estão inseridos, propicia o jogo de verdade e universalidade

dessas explicações. É esse viés de ideal de verdade que cada uma das partes do processo judicial

pretende atribuir à sua tese como, por exemplo, o réu que nega a autoria do crime ou algumas

condições específicas em que o fato ocorreu, de modo a eximi-lo (ou, quando menos, diminuir-

lhe) de culpa. Nessa categoria estão os laudos periciais que, a despeito de erros e equívocos que,

porventura, podem apresentar, são aceitos como verdades cuja força pode inocentar ou condenar

o réu.

A segunda finalidade é “uma busca de influência como ideal de persuasão”, de maneira a

capturar o interlocutor (sujeito alvo que, neste caso, é o julgador), fazendo-o dividir e participar

do âmbito do discurso. Para isso, o sujeito argumentante busca despertar o desejo do sujeito alvo

na mesma direção do seu (do sujeito argumentante) ideal, de forma que o sujeito alvo seja um co-

enunciador. Essa finalidade é mais claramente percebida em sessões do tribunal do júri, quando

os operadores do direito (advogado e promotor) costumam apelar para a sensibilização dos juízes

não togados que, por não serem obrigatoriamente pessoas com conhecimento acerca de matérias

do Direito, tendem a emitir julgamentos que não passam necessariamente pelos pressupostos da

ciência do direito, ao contrário disso, muitas vezes, fundamentando-se bem mais em persuasão do

que em convencimento.

Para Charaudeau, o sujeito argumentante procede a três atividades mentais com vistas a

realizar seus objetivos. A primeira é a problematização, que consiste em fazer saber, tanto o que

é o centro da discussão, como também o direcionamento que se deve dar a esse tema. Essa

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atividade significa uma articulação do sujeito argumentante, no sentido de apresentar ao sujeito

alvo o quadro de questionamento em que é colocado o tema, podendo esses questionamentos

incidirem sobre o enunciado ou sobre a enunciação. Quando o interlocutor pergunta acerca da

relação causa/consequência do fato, o questionamento se dirige ao enunciado; quando questiona a

legitimidade do locutor ao enunciar, a incidência ocorre sobre a enunciação. No caso dessas

situações comunicativas do discurso jurídico aqui estudadas, essa problematização vai além de

sujeito alvo (o julgador). Ao que tudo indica, ela parte da ligação entre perguntas e respostas,

ativando ora um conjunto de dúvidas ora um conjunto de respostas possíveis, a fim de que, em

virtude da dimensão situacional que é mais enfatizada, possam alcançar a sanção favorável do

julgador.

A segunda atividade é elucidar, ou seja, fazer compreender. Através dela, o sujeito

argumentante busca explicar ao interlocutor as razões que elucidam o fato ou as consequências

que podem advir dele. Tal como Charaudeau afirma, “elucidar é entrar no universo do discurso

da causalidade e não naquele da existencialidade do acontecimento” (apud MENEZES, 2001:

193). Nessa perspectiva, as causas podem ser imediatas ou profundas. As imediatas

compreendem aquelas que elucidam acerca da origem do estado de fato, um fato anterior ou uma

sucessão deles. As causas profundas referem-se a origens múltiplas, em virtude do entendimento

de fatores variados, compreendendo um raciocínio marcado de paralelismos e analogias. Essa

atividade, no discurso jurídico, pode ser vista em conjunto de perguntas e respostas que tomam

por tema as circunstâncias em que o fato jurídico se deu, bem como o nível de envolvimento de

cada uma das partes nesse evento.

Por último, a atividade de provar, que equivale ao fazer crer, permitindo ao sujeito

argumentante assumir uma posição frente às inúmeras explicações para um mesmo fato, além de

conduzir o interlocutor a avaliar a explicação apresentada. Como diz Charaudeau (1996: 32), o

fazer crer “corresponde à finalidade do controle do outro pelo viés da racionalidade”17. Ou seja,

do objeto aqui estudado, efetivar todo um plano argumentativo, por meio do jogo de perguntas e

respostas, representa uma atividade através da qual se pretende levar o julgador a tomar uma

17 O próprio autor avança na direção de considerar que outros componentes, da ordem do fazer sentir, também são ativados nos embates argumentativos, atuando na patemização do auditório, largamente observados nas sessões de tribunal do júri. No entanto, fazemos tal citação pelo fato de ela coadunar com a dimensão da “prova” jurídica, pautada que esta deve ser na força das evidências, isto é, na menor distância das possibilidades de representação da verdade factual.

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determinada tese como mais verossímil que outra, considerando-se um conjunto de argumentos

aos quais se atribui um maior valor de racionalidade.

Assim, para a teoria semiolinguística, a argumentação, originária de um contrato

linguageiro específico (neste caso, o discurso jurídico, analisados em três de seus muitos

gêneros), oferece espaço de engendramento dessas três atividades cognitivas. No interior desse

contrato, o sujeito comunicante, para engendrar suas estratégias argumentativas, precisa

constituir-se como sujeito enunciador argumentante através das perspectivas da legitimidade, da

credibilidade e da captação do interlocutor.

A legitimidade diz respeito ao reconhecimento do poder e do saber, isto é, relaciona-se à

licença para dizer que o sujeito argumentante possui, em virtude de vivenciar tal papel social, em

nome da instituição que ele representa. Dito de outra forma, a legitimidade reporta à base

institucional a partir da qual é construído o direito de fala do sujeito argumentante.

No discurso jurídico, a legitimidade pode ser percebida, dentre outras inúmeras situações,

nas encenações próprias de cada uma das situações comunicativas aqui estudadas. Não que uma

pessoa qualquer queira defender o suposto direito de alguém. É preciso que essa pessoa seja,

antes, formada em direito, inscrita na Ordem dos Advogados do Brasil e, além disso, tenha

procuração da parte para representá-la em juízo. Também, a mera vontade de presidir uma das

situações comunicativas do discurso jurídico não é o suficiente para que tal se dê. Além de ser

legalmente habilitado no direito, é necessário ter sido aprovado em concurso e ter passado por

todos os trâmites de posse do cargo, bem como ser nomeado juiz de tal processo.

A legitimidade no discurso alcança todos os seus meandros como, por exemplo, numa

AIJ, cada parte ou testemunha somente pode falar quando o juiz lhe der a fala, momento em que

passa a ter a legitimidade final para efetivar seu pronunciamento, sem a qual corre o risco de

anular sua fala. Mais que isso, a questão da legitimidade é tão reguladora que nenhum advogado

pode falar diretamente ao depoente, devendo dirigir-se ao juiz, que repete a pergunta ou autoriza

a resposta.

A credibilidade pode ser entendida como o princípio de veracidade e de pertinência que

fundamenta o discurso do sujeito argumentante. Enquanto a legitimidade relaciona-se ao poder

falar, a credibilidade funda-se sobre o crédito que se pode dar ao que é dito. Conforme

postulações de Charaudeau (1999), a credibilidade significa a capacidade do sujeito

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argumentante de garantir uma certa autoridade sobre aquilo que diz, por meio de uma

competência, expressa pelo saber fazer.

Para exemplificar a noção de credibilidade, tomamos a AIJ da prestação de contas,

apresentada anteriormente. Nela, o advogado da autora busca, ao levar a testemunha a cair em

contradição e, desse modo, fragilizar a credibilidade da depoente, atribuindo-lhe uma espécie de

veredicto de que “Ela não sabe de nada mesmo”.

Por fim, a captação significa capturar o interlocutor, através da sedução e/ou

dramatização, fazendo dele não só um parceiro, mas um aliado no contrato argumentativo. No

discurso jurídico, o juiz é o interlocutor cuja adesão cada parte, por meio das articulações

argumentativas, pretende capturar para a sua tese.

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3– QUADRO DE ANÁLISE

Considerando que nosso objeto de estudo é o ato de pergunta, bem como a dificuldade de leitura

que pode resultar da descrição detalhada de cada uma das oitivas que compõem este corpus,

faremos nossas análises a partir das perguntas feitas em cada uma das situações comunicativas

estudadas, seguindo-se de seus desdobramentos nas respostas obtidas, passando-se pelo jogo

intencional para se alcançar, dessa maneira, o detalhamento do plano argumentativo.

Começamos, então, pelo interrogatório judicial (IR), para concluirmos com duas audiências de

instrução e julgamento (AIJ), sendo uma na área cível e outra na criminal18.

3.1 Interrogatório judicial

Um primeiro movimento necessário à realização desse contrato (como de qualquer outro)

é o reconhecimento recíproco dos protagonistas como participantes de um evento,

reconhecendo-se mutuamente como parceiros de uma prática comunicativa, para que seja

firmado, assim, entre eles um contrato no qual eles são participantes de uma troca comunicativa,

conforme proposta de Charaudeau apresentada anteriormente. No caso do IR, os operadores do

direito (juiz, advogado e promotor) têm o direito de perguntar, enquanto o réu possui a

prerrogativa de responder ou não ao que lhe for perguntado. Cabe ao representante do Ministério

Público acusar e sustentar essa acusação do réu; a este, defender o quanto possível; e, ao juiz,

julgar a pertinência da acusação e, se for o caso, a extensão da pena.

Para que haja esse jogo de representações, são construídos os ethos correspondentes a

cada papel actancial. Em se tratando de duelo de posições, em que a veracidade de um implica

obrigatoriamente a desdita da outra, a mais evidente intenção de cada um dos sujeitos

argumentantes é desabilitar o projeto de palavra do outro, por meio do rompimento da sua

18 Salientamos que todas as situações comunicativas aqui analisadas estão detalhamente descritas nos Anexos deste texto, podendo ser facilmente consultadas para se dirimirem possíveis dúvidas. Além disso, relembramos que, conforme dito da Introdução, em virtude da sua extensão, as sessões de tribunal do júri (SJ) foram usadas nas exemplificações do quadro teórico, o que, a nosso ver, dispensa maiores análises.

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credibilidade, de modo a capturar a adesão de juiz (para usar terminologia de Charaudeau). Isso

é feito pelo réu em vários momentos, aproveitando-se das perguntas feitas pelo juiz e, depois,

pelo promotor.

O caso: o réu é acusado de matar a vítima José19. Pelo “Princípio do Contraditório e da

Ampla Defesa20”, o réu tem direito de se defender e, como dito anteriormente, o interrogatório

judicial (IR) representa esse direito. Assim, trazido o réu à presença do juiz, o escrevente oficial

passa a fazer a qualificação do réu, sempre por meio de perguntas. Foi feito pelo escrevente um

total de onze perguntas, todas elas versando acerca de dados pessoais do réu, tais como nome

completo, filiação, endereço, escolaridade.

(1): Você chama R de tal? (2): Nasceu em Belo Horizonte? (3): Sua data de nascimento? (4): O senhor Fulano de Tal é seu pai? (5): Seu endereço por favor? (6): R, seu endereço por favor? (7): Quando você for solto, você vai para lá? (8): Então tá. Rua? (9): Número? (10): Você tem estudo? (11): Estudou até que série?

O conteúdo proposicional dessas perguntas, que evidenciam a tematização sobre os dados

pessoais do réu, é escolhido tomando-se por base as condições preparatórias desse momento

dentro da situação comunicativa. Em cada uma das oitivas, para proceder à qualificação do

depoente, o escrevente deve realizar atos diretos de pergunta, com a finalidade de obter

respostas, também em atos de fala diretos, a fim de que isso fique consignado nos autos. No caso

do IR, a despeito de a qualificação da parte ré já ser constante dos autos, ela deve vir expressa no

termo da oitiva (ou ata, como chamam alguns autores). Vale destacar que, por trás da aparente

irrelevância de (7), está a força de confirmação do endereço do acusado, uma vez que, nesse 19 Todos os nomes usados nesta tese são fictícios. 20 O Princípio do Contraditório e da Ampla Defesa está assegurado pelo artigo 5º, inciso LV da Constituição Federal, podendo ser entendido também pela expressão audiatur et altera pars, que significa “ouça-se também a outra parte”. É um corolário do princípio do devido processo legal, concedido à parte ré, caracterizado pela possibilidade de resposta e pela utilização de todos os meios de defesa admitidos em Direito.

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momento da situação comunicativa, o escrevente não pode afirmar nada sobre o depoente, mas

tão somente fazer-lhe perguntas, ainda que só para reafirmar ou confirmar.

O que chama a atenção é que, durante a qualificação, o réu não pode deixar sem resposta

nem uma das perguntas feitas, nesse momento. Daí a sequência de (5) a (9). Como não houve

resposta a (5), a pergunta é refeita em (6), trazendo como vocativo o nome do réu. Em resposta, o

depoente dá o endereço da sogra, o que motiva as perguntas de (7) a (9), de modo a confirmar o

endereço.

Terminada a qualificação, o juiz disse ao réu que ele seria interrogado acerca do processo,

esclarecendo que ele tem o direito de ficar calado, sem que isso interfira na sua defesa. Em

seguida, o juiz leu para o réu a denúncia do Ministério Público, na qual o acusado configura-se

como um dos responsáveis pelo assassinato de José, em homicídio duplamente qualificado21. Ao

terminar a leitura, o juiz passa a interrogar o réu, fazendo-lhe um total de trinta e nove perguntas,

apresentadas de (12) a (50), a seguir.

(12): Isso que eu li para você aqui é verdade? (13): Você disse que o fato não aconteceu do jeito que está aqui?

As perguntas (12) e (13) abordam a veracidade da denúncia, buscando colher a versão do

réu acerca do crime, tal como preconiza o ordenamento jurídico e como requer a situação

comunicativa do interrogatório judicial. Além disso, quanto mais o acusado souber do fato,

maiores são as chances de ele estar envolvido no episódio, inferência que pode ser fortalecida

mediante a confirmação da presença do réu na cena do crime. E é isso que o juiz busca checar

através das perguntas a seguir.

(14): Você estava no momento em que ele foi atingido? (15): A vítima chegou lá onde você estava? (16): E a favela como é que chama? (17): Nós vamos chegar lá. A favela se chamava Vietnã, né? 21 As qualificadoras, previstas nos incisos de I a V do parágrafo 2º do artigo 121 do Código Penal Brasileiro, constituem a derivação do tipo penal (“Matar alguém”), agregando agravantes em razão das circunstâncias subjetivas e objetivas nas quais o crime foi realizado, o que ocasiona o aumento das penas.

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Embora buscando alcançar uma descrição da cena, o juiz elabora perguntas que colocam

o réu no foco da discussão, por meio do pronome “você”, o que nos remete à teoria da

problematologia, já que há nessa sequência uma orientação de respostas ou, no mínimo, um

conjunto de respostas possíveis. Para (14) e (15), inclusive, esse conjunto só permite duas

respostas (sim / não), sendo que somente em caso de resposta afirmativa poderia ser feita a (18).

Em (15) (16) e (17), acontece um movimento interessante. Evidentemente, o local do

crime está configurado nos autos e é de se esperar que o juiz o saiba. Entretanto, mantendo um

ethos de imparcial, o juiz usa a expressão “lá onde você estava” para designar esse lugar. Nessa

direção, a presença do termo “favela”, em (16), remete ao fato de ter sido o réu quem assim

denominou o ambiente, conforme se pode ver em (15a)

(15a): É. O que tinha era uma boca, a favela era uma boca. Lá estava cheio de gente e como eu frequentava lá na época, ele chegou e começou a conversar com Lilico e com esse Cigano que está escrito aí. Ele chegou pedindo uma arma que era para matar não sei lá quem. Eles começaram a discutir e eles encheram ele de tiro lá, mataram ele lá e todo mundo saiu correndo.

Para responder ao que foi perguntado, bastava ao réu parar a resposta na sua primeira

palavra (“É”), que seria uma resposta cabível ao conjunto esperado. Todavia, ele estende o

detalhamento, esclarecendo que o local onde o crime aconteceu era “uma boca”, reiterando que

“a favela era uma boca”. A expressão completa a ser usada é “boca de fumo”, que significa

“ponto de venda de drogas”. Dito que se tratava de uma favela, o juiz parte para (16), obtendo a

seguinte resposta, em (16a)

(16a): Chamava Vietnã. Parece que já acabou também. Por causa que eu tenho mais processo, né? Infelizmente, né? Por causa desses processos, tudo eles joga nas costas da gente.

O nome “Vietnã” é bastante sugestivo. Ele remete a “guerra do Vietnã” que, conjugado

com o contexto do crime em análise, ou seja, uma boca de fumo situada em uma favela, conduz à

inferência de que o crime faz parte da chamada “guerra do tráfico”.

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Além disso, mais uma vez, o acusado vai além do que é perguntado. Buscando construir

um ethos de injustiçado, partindo do topos presente na nossa sociedade de que o juiz é o homem

do Direito, da justiça e, por extensão, deve ser um homem justo, que não é afeito a injustiças, o

réu tenta sensibilizá-lo, atrelando a causa da denúncia e acusação (“Por causa que”) a

perseguição da polícia pelo fato de o réu responder a outros processos. Essa atribuição pode ser

estendida ao Ministério Público, já que este acolheu o inquérito policial e ofereceu a denúncia,

instaurando o processo judicial. Isso pode ser percebido no trecho “tudo eles joga nas costa da

gente”, destacando o plural de “eles” que, ao mesmo tempo em que indetermina o sujeito, aponta

para essa dupla direção. Afinal, o depoente poderia ter dito especificamente “A polícia joga tudo

nas costa da gente”. Com isso, o depoente tenta sair da posição de réu para passar à de

testemunha ocular do crime que, por sinal, ocupa um lugar específico no discurso jurídico,

preferível ao de réu, seguramente.

Daí a importância da presença do modalizador “infelizmente”, usado pelo acusado, nesse

jogo de tentativa de sensibilização do juiz. Curioso também é observar o uso do fático “né?”,

buscando instanciar e manter o TUi (o juiz) no discurso, de modo a cooperar com seu projeto de

palavra. Vale ressaltar que, em todo o seu depoimento, como se poder ver nos Anexos, o réu

usou tanto esse fático quanto o modalizador em duas respostas somente quando se referiu à

existência dos outros processos e acusou a polícia de ser injusta e incompetente (“eles não têm

em quem enfiar essa, então, manda para cima de mim”).

Em seguida, o juiz fez uma série de perguntas, buscando verificar as relações do réu com

outros acusados, bem como se eles estavam juntos no momento do crime. Ao tematizar as

relações entre os envolvidos, o juiz mescla perguntas que abordam desde a presença dos

acusados na cena crime até a existência de amizade entre eles, passando por detalhamentos

acerca do fato em si como, por exemplo, a motivação para o crime e a autoria dos disparos. Essa

estratégia aparenta dupla função. A primeira consiste em, pela mescla de perguntas, variar o

assunto, de modo a levar o réu a cometer alguma contradição ou incompatibilidade. A segunda

diz respeito à técnica argumentativa de uso de argumentos quase-lógicos por meio da

transitividade de aspectos da relação entre os outros acusados (A) com a vítima (B) para a

relação desta (B) com o réu (C)

(18): E você estava na companhia de quem? (19): E o Cigano estava lá?

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(20): Garrincha? (21): Garrincha, então, não estava? (22): Bom, então, lá chegou o José, pedindo uma arma. Ele pediu a arma para quem? (23): Cigano? (24): O José? (25): Ele falou que queria matar alguém? (26): Cigano não queria emprestar a arma para ele. É isso? (27): Eles discutiram porque ele pediu a arma? (28): Ele ameaçou o Cigano? (29): O Cigano, então, atirou na vítima? (30): Foi só o Cigano que atirou? (31): Lilico, então, estava lá, junto com o Cigano? (32): Você está dizendo para mim que a vítima era amiga do Cigano? (33): Você, então, não efetuou nenhum disparo? (34): Você ouviu os primeiros disparos e saiu correndo? (35): Mais alguém atirou na vítima? (36): E você já conhecia a vítima? (37): Tinha alguma coisa contra ele? Já se desentendeu com ele? (38): E o Cigano e o Lilico? Eles vendiam drogas lá na favela?

Colocando em sequência as perguntas (18), (19), (21), (22), (26), (27), (28), (29), (30),

(32), (36) e (37) é possível perceber um encadeamento que sugere, do ponto de vista do

inquiridor, a transitividade de relações entre os envolvidos, que pode ser descrita com a seguir:

Conjunto de amigos = {Cigano, Lilico, a vítima e o réu} Conjunto de pessoas presentes na boca de fumo = {Cigano, Lilico, a vítima e o réu} Conjunto de pessoas que vendiam drogas na favela = {Cigano, Lilico, a vítima e o réu} Conjunto de pessoas envolvidas na discussão = {Cigano, Lilico, a vítima e o réu} Conjunto de pessoas envolvidas no crime = {Cigano, Lilico, a vítima e o réu}

Todos os cinco conjuntos são confirmados pelas respostas do depoente, sendo que ele se

exclui dos três últimos, a fim de colocar-se na posição de testemunha. Esses três últimos

constituem uma transitividade pretendida pelo juiz e, como demonstraremos mais adiante, será

aproveitada pelo promotor.

Como à (38) o réu responde com (38a),

(38a): Vendiam. Eles estavam na boca, vendendo. O senhor deve achar estranho e dizer “É. Ele diz que não tem envolvimento, mas sabe de tudo”. Mas favela é um trem muito... todo mundo conhece

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todo mundo. E eu não sou santo porque eu tenho uns outros processos aí, já tive envolvimento com o crime mesmo, então...

o juiz elabora a sequência de (39) a (50):

(39): Eu vou te ouvir daqui a pouquinho sobre esses processos, viu? Você conhece as pessoas Carlos de Tal, Leonardo de Tal e Leandro de Tal? (40): Você sabe por que estão dizendo que foi você que cometeu esse crime? (41): Sabe por que estão dizendo que foi você que matou? (42): Você responde a quantos processos, sem ser esse aqui, tirando esse aqui? (43): Você já foi condenado em um e os dois são por homicídio? (44): Fora este aqui, você tem um de homicídio e um de porte de arma. É isso? (45): Você pegou qual pena no homicídio? (46): E no porte de arma? (47): Você está preso há quanto tempo? (48): Já cumpriu dois anos? (49): Como foi isso? (50): Quer acrescentar mais alguma coisa? Tem mais alguma coisa a dizer?

Ao contrário do que objetivava, o réu comete a violação da máxima da quantidade,

oferecendo um excesso de informações, ao responder que se trata de perseguição da polícia pelo

fato de ele responder a outros processos. Diante disso, o juiz desconsidera a dimensão apocrítica

da resposta como solução para a acusação e, ao contrário disso, faz dez perguntas acerca desse

envolvimento do réu com o crime, o que contribui para o fortalecimento do ethos do réu como

culpado do crime em tela.

A estratégia do juiz de variar o assunto das perguntas, para alcançar uma possível

contradição ou incompatibilidade, rende lucro argumentativo. Considerando que a contradição

ou a incompatibilidade, neste caso, estão na dimensão do depoente, então devem ser levadas em

conta as respostas dadas. Assim, vejamos a seguinte sequência:

(23): Cigano? (23a): É. Sei lá estava. A Rua estava cheia, não dava para compreender bem a discussão não. Só escutava “Num sei o que”, só “Ah! Me dá um revólver aí, para eu matar fulano” que não sei o quê. Aí começou o bate-boca deles lá e os caras arrancou o revólver e enfumaçou ele com um muncado de tiro. (25): Ele falou que queria matar alguém? (25a): Ele contou, conversando, que queria matar não sei quem lá., que tinha discutido com um

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pessoal lá. Ele discutiu com os dois: “É que eu sei de um muncado de coisa aí” e tal e os dois encheu ele de bala. (30): Foi só o Cigano que atirou? (30a): É. Ele e o Lilico. Eu vi só o primeiro tiro porque eu sai correndo. (32): Você está dizendo para mim que a vítima era amiga do Cigano? (32a): Era. Eles eram amigos, dividiam a boca lá. Todo mundo conhecia todo mundo lá. (34): Você ouviu os primeiros disparos e saiu correndo? (34a): Saí. Todo mundo saiu correndo na hora que eles começaram a dar tiro. Tem várias testemunhas lá... (38a)(...) O senhor deve achar estranho e dizer “É. Ele diz que não tem envolvimento, mas sabe de tudo”. Mas favela é um trem muito... todo mundo conhece todo mundo (39): (...) Você conhece as pessoas Carlos de Tal, Leonardo de Tal e Leandro de Tal? (23): Não senhor.

Algumas incompatibilidades surgem no trecho e podem ser evidenciadas em blocos,

como a seguir.

1- O réu diz que “não dava para compreender (...) Só escutava “Num sei o que”, só “Ah! Me dá um revólver aí, para eu matar fulano” que não sei o quê”, para, mais adiante, dizer que a vítima “conversando, que queria matar não sei quem lá.” As informações são incompatíveis, uma vez que, se não dá para compreender bem, se a escuta era dificultada, reduzida, não é muito aceitável que o depoente possa ter ouvido uma conversa entre a vítima os assassinos. Mais compatível seria ele dizer que, por exemplo, os envolvidos gritavam, discutiam e que, por isso, ele pôde ouvir o que eles diziam. Assim, os envolvidos gritavam ou conversavam?

2- O depoente afirma que “os caras arrancou o revólver e enfumaçou ele com um muncado de tiro”. Depois, diz que foi o Cigano “e o Lilico” quem atirou na vítima. Imediatamente após, ele fala que “Eu vi só o primeiro tiro porque eu sai correndo”. Ao ser perguntado se ele “ouviu os primeiros disparos e saiu correndo”, o réu responde que “Saí. Todo mundo saiu correndo na hora que eles começaram” A incompatibilidade se verifica pelo fato de que, se o depoente ouviu o primeiro tiro e saiu correndo, não há como ele ter visto que foram Cigano e Lilico que atiraram.

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3- O réu afirma por duas vezes que “todo mundo conhece todo mundo” na favela. Depois diz que não conhece “Carlos de Tal, Leonardo de Tal e Leandro de Tal”. Se todos se conhecem na favela e essas três pessoas são da favela, é curioso que o réu não conheça exatamente aquelas que são arroladas como testemunhas de acusação.

Seguindo o IR, o juiz passa a palavra ao promotor que faz as treze perguntas seguintes,

numeradas de (51) a (63). As quatro primeiras perguntas exploram a dimensão problematológica,

na medida em que valorizam o envolvimento do réu com outros crimes, ampliando o rol de

delitos cometidos pelo acusado, já que o juiz não havia abordado acerca de assaltos.

(51): O senhor já teve envolvimento em assalto? (52): Foi condenado? (53): Quantos assaltos? (54): Por porte de arma, quantas vezes você foi preso?

Considerando as técnicas argumentativas propostas por Perelman, o promotor constrói

uma argumentação quase-lógica, uma vez que se baseia em um jogo inferencial muito próximo

dos raciocínios matemáticos, dando a esse argumento uma aparência de ser lógico, racional,

certeiro, quando, na verdade, não há nada nele que lhe garanta essa lógica precisa. Vejamos o

detalhamento desse raciocínio:

O réu já cometeu outros crimes antes. (fato) O réu estava presente no crime em questão. (fato) O réu cometeu o crime em tela. (conclusão inferencial desejada pelo promotor)

As três perguntas seguintes buscam ancorar o réu e o crime em discussão no contexto de

“guerra do tráfico”, sugerido a partir da problematização do nome da favela.

(55): Esse Cigano já morreu também? (56): Você estava lá no local, uma boca de fumo, né? O que você estava fazendo? (57): Você estava vendendo droga?

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O fato de um dos assassinos também ter sido morto reforça a tese da acusação de que se

trata de crime ligado ao tráfico de drogas, o que provoca as perguntas (56) e (57), de modo a

envolver o acusado na problemática do crime.

Para Meyer, tal como dito anteriormente, a pergunta traz em si um conjunto de

possibilidades de respostas e isso pode ser visto entre o par (56) e (57). Quando o promotor

enuncia (56), não se espera que depoente venha a responder que estava fazendo tráfico de drogas,

dada a posição de inocente (quando muito, de testemunha ocular) que ele assume no discurso. Em

lugar disso, a resposta, que é dada pelo promotor, sob a forma da pergunta (57), tem por alvo o

TUi, que é o juiz, e é quem dará a sentença, o julgamento do caso, e cuja adesão interessa às

partes. Em outros termos, ao perguntar ao réu se ele estava vendendo drogas na boca de fumo no

momento do crime, o promotor intenciona despertar no juiz o reconhecimento e a aceitação da

tese de que o réu e os outros acusados mataram a vítima devido à desavença relacionada ao

tráfico de drogas, sugerindo que o acusado é tão traficante quanto seus amigos da boca de fumo,

conforme a seguinte transitividade argumentativa.

Cigano e Lilico eram amigos do acusado. (A amizade B) Cigano e Lilico discutiram com a vítima. (A desavença B) Acusado discutiu com a vítima. (A desavença C – inferência por transitividade) Cigano, Lilico e acusado atiraram na vítima. (conclusão por transitividade)

Tomando essas duas últimas perguntas feitas pelo promotor sobre a presença do réu na

boca de fumo, colocando-as na sequência de outras duas perguntas feitas pelo juiz, é possível ver

o seguinte roteiro:

(32) Juiz: Você está dizendo para mim que a vítima era amiga do Cigano? (38) Juiz: E o Cigano e o Lilico? Eles vendiam drogas lá na favela? (56) Promotor: Você estava lá, no local, uma boca de fumo, né? O que você estava fazendo? (57) Promotor: Você estava vendendo droga?

A essas perguntas o réu respondeu, respectivamente:

(32a): Era. Eles eram amigos, dividiam a boca lá. Todo mundo conhecia todo mundo lá. (38a): Vendiam. Eles estavam na boca, vendendo (...).

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(56a): Eu tinha... Igual eu falei para o senhor, eu tinha, eu tive envolvimento com o crime, eu tinha amizade, eu conhecia... (57a): Não. Eu estava só vendo uns amigos, os conhecidos meus eram muitos. Eu ia lá constantemente.

Do ponto de vista argumentativo do promotor, pode-se pensar que ele pretendeu construir na

mente (ou no espírito, para usar um termo próprio da argumentação) do julgador (TUi) o

seguinte estado de coisas, como passaremos a detalhar.

1 - O réu era amigo de Cigano e Lilico.

2 - O réu ouviu a vítima ameaçar os amigos. 3 - O réu se envolveu na discussão. 4 - O réu atirou na vítima

Enquanto as quatro primeiras asserções têm por base as confirmações do réu, as outras

duas resultam da transitividade argumentativa possibilitada pelo jogo inferencial propiciado pelo

raciocínio quase-lógico.

Finalizando seu conjunto de perguntas, o promotor tematiza o depoimento prestado pelo

acusado, na fase de inquérito policial, destacando as circunstâncias em que o interrogatório

aconteceu.

(58): Você contou na delegacia várias vezes como tudo aconteceu, né? Você foi pressionado a contar? (59): Essa assinatura é sua? (60): Onde foi que você deu esse depoimento? (61): Você conta aqui no seu depoimento na delegacia que você estava na boca de fumo, quando José chegou, dizendo que ia matar uma pessoa e, como você sabia que essa pessoa era gente boa, você resolveu acabar com o José, sendo acompanhado por Cigano e Garrincha. Você teria confessado para a polícia que foi você que efetuou o disparo? (62): Você foi obrigado a assinar o depoimento? (63): O depoimento foi lido para você?

Ao destacar aspectos relativos às circunstâncias que cercaram o depoimento, tais como se

o depoente foi pressionado a confessar o crime ou a assinar o depoimento e se o depoimento foi

lido, o promotor busca imprimir um viés de racionalidade a esse documento, atribuindo e ele o

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que Charaudeau chama de ideal de verdade, já que um maior nível de credibilidade pode ser

atrelado ao procedimento, em virtude dessas circunstâncias marcadas pela livre e espontânea

vontade do depoente em confessar sua participação no crime. Como, durante esse IR, o réu nega

ter cometido o crime, contrariando o que foi dito por ele na delegacia, o promotor, por meio das

perguntas de (58) a (63) acima, tenta construir um ideal de persuasão, por meio dos seguintes

raciocínios:

O réu confessou anteriormente que matou a vítima. (fato 1) O réu não foi forçado a confessar. (fato 2) O réu disse a verdade. (conclusão inferencial desejada pelo promotor)

O réu deu depoimento verdadeiro. (inferência 1)

O réu negou o depoimento dado. (fato 1) O réu mente ao negar o depoimento. (conclusão inferencial desejada pelo promotor)

Todavia, a despeito de todo esse arcabouço argumentativo, os dois sujeitos

argumentantes fazem proposições que apresentam algum grau de incompatibilidade, sobretudo

porque é uma característica da argumentação essa possibilidade de discutir o provável e adotar

aquilo que for mais verossímil. Dizer o indiscutível não é argumentar, mas demonstrar, como

fala Perelman. A argumentação do réu é incompatível porque não basta a ele dizer que não

cometeu o crime, que a acusação é perseguição da polícia. Isso por si só não faz dele um

inocente. É preciso que ele traga provas do que diz. Por outro lado, o fato de ter cometido outros

crimes, de estar presente aos fatos, de ser amigo de traficantes, enfim, nada disso faz com que o

réu seja, de fato, um dos assassinos da vítima. Caberá ao juiz escolher aquela tese que apresentar

menor grau de incompatibilidade, conforme seu julgamento.

É possível pensar esse percurso argumentativo em razão das intencionalidades que

cercam esse evento comunicativo. Tal como dito antes, há um nível de intencionalidade que é

constitutivo da situação comunicativa e que delimita as possibilidades de estratégias que podem

ser engendradas no nível da realização dos atos de fala. Dessa forma, sabendo que o IR é o

momento do processo judicial em que o réu tem seu espaço de construir pessoalmente sua

defesa, sabendo também que o IR acontece em processo do direito penal, sendo que é o

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Ministério Público que oferece a denúncia que acusa o réu, a intencionalidade relacionada à

situação, da perspectiva do Ministério Público é provar que o réu é culpado e, da perspectiva do

réu, é provar sua inocência. Essas duas intencionalidades situacionais é que vão nortear as

possibilidades das estratégias que serão articuladas no nível dos atos de fala que, por sua vez,

realizam ações intencionais interacionais, com vistas a lograr êxito no plano argumentativo.

Nesse IR, a fim de consolidar sua investida argumentativa, o promotor elabora uma sequência de

perguntas que revela alguns aspectos interessantes.

Primeiro, ao elaborar quatro perguntas que reportam a outros crimes cometidos pelo réu,

o promotor deixa entrever que pretende que o réu seja visto como uma pessoa de hábitos

suspeitos, dada ao crime. Depois disso, tomando, por exemplo, as duas perguntas (56) e (57),

feitas pelo promotor,

(56): Você estava lá, no local, uma boca de fumo, né? O que você estava fazendo? (57): Você estava vendendo droga?

em virtude da ordem em que foram elaboradas, percebe-se que todos os enunciados construídos

são atos de fala diretos, uma vez que o seu sentido é muito próximo da semântica dos elementos

que compõem a sentença, resultando em uma transparência semântica. Entretanto, daí pode-se

derivar um sentido do falante, em virtude da reorientação pragmática oferecida pela segunda

pergunta. Ou seja, como o réu responde que foi “ver uns amigos, uns conhecidos”, não

abordando nada relativo à boca de fumo, o promotor faz a segunda pergunta como se fosse a

resposta que deveria ter sido dada, mas que foi omitida pelo réu. Com isso, o promotor associa

estados mentais intencionais (EMint) a uma série de estados de coisas (EC), ancorando essa

conjugação na situação comunicativa do IR, o promotor faz derivar de suas perguntas uma

suspeita forte de que o réu vendia drogas nessa boca, por ter um passado ligado ao crime e por

ainda frequentar uma boca de fumo, local onde aconteceu o crime, aproximando o assassino à

hipótese de “guerra do tráfico de drogas”. Assim, a expressão linguística é composta por três EC

e seus respectivos EM22

22 Símbolo Leitura Necessidade ◊ Possibilidade

¬ Negação

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EC1= P1 (o réu tem passado de crimes) EMint1 = CRE forte P1 [constatação] EC2 = P2 (o réu estava na boca de fumo, local do crime) EMint2 = CRE forte P2

[constatação] EC3 = P3 (o réu vendia drogas) EMint 3 = CRE forte ◊P3 [suspeição]

Como o réu nega P3, o promotor aborda outros EC nas questões seguintes: EC1= P1 (na delegacia, o réu confessou o crime) (fato 1) EC2= P2 (a assinatura é do réu) (fato 2) EC3= P3 (o réu assumiu o depoimento) (fato 3) EC4= P4 (o depoimento foi lido para o réu) (fato 4) EC5= P5 (o depoimento é válido) (conclusão inferencial desejável pelo promotor) EC6= P6 (o réu nega a autoria do crime) (fato 5) EC7= P7 (o réu nega um fato válido) (inferência desejável pelo promotor) EC8= P8 (o réu mente) (conclusão inferencial desejável pelo promotor)

O promotor, para verificar a validade do depoimento prestado pelo réu, na delegacia,

aborda as circunstâncias em que se deu tal oitiva, como se pode ver no grupo de perguntas de

(58) a (63). Uma vez validado o depoimento, este passa a ser considerado não mais como um

fato de acordo argumentativo, mas como fato de prova jurídica. Partindo disso, o promotor

articula o segundo movimento que é confrontar as posturas do réu, ou seja, a da delegacia e a do

IR. Sendo atribuído o valor de ideal de verdade ao primeiro depoimento e estando o réu

negando, agora, esse depoimento, o promotor busca conduzir o juiz à conclusão inferencial

expressa em P8, com o objetivo de invalidar a posição atual do réu.

Essa posição do promotor fica ainda mais evidente, quando se consideram as escolhas

lexicais feitas por ele. Primeiro, ele repete a afirmação do réu de que estava no local do crime,

uma boca de fumo, e solicita sua confirmação por meio do fático “né?”. Depois, na sequência de

perguntas, além de repetir a estratégia do “né?”, salienta que o réu “contou na delegacia várias

vezes como tudo aconteceu”. O termo “contar” tem o sentido de “confessar”, já que não tem

cabimento perguntar a um réu se ele foi pressionado a simplesmente relatar os fatos. Perguntar a

um réu se ele foi pressionado, só pode fazer sentido se o complemento de “pressionado” for “a ¬◊ impossibilidade

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confessar”. Além disso, mesmo depois de ter a confirmação do réu de que o depoimento foi dado

na delegacia, o promotor pergunta em que lugar o réu estava quando deu o tal depoimento em

que confessou ter matado a vítima para, em seguida, perguntar se o réu confessou ter feito os

disparos. É na resposta a essa pergunta que o réu coloca em xeque seu projeto argumentativo, ao

dizer que “não sou um leigo para dar um depoimento assim”. Isso leva a pensar que, ao dizer que

não é leigo, conjugando essa fala como a situação comunicativa do tipo IR, entende-se que ele

tem experiência como réu e não se incriminaria. Essa ideia é reafirmada na sua última fala, ao

dizer que “Nem se eu tivesse matado, eu falava que eu não tinha matado”, quando o réu deixa

clara sua posição de mentiroso convicto.

Finalizando a oitiva, o juiz passa a palavra ao advogado do réu, que faz as seguintes

perguntas:

(64): O seu depoimento foi lido para você, antes de você assinar? (65): Você estava com seu advogado? (66): Por que você foi para a Bahia?

Com relação a essas perguntas, curioso como a falta de ligação entre as três perguntas

que ele fez é absolutamente aparente. Considerando as respostas dadas, percebe-se que o

advogado pretende alegar nulidade do depoimento prestado na delegacia, uma vez que, a

despeito de ter sido lido para o réu, este estava sem o devido acompanhamento de advogado. A

isso, o advogado pretende dar azo ao argumento de perseguição por parte da polícia que, não

tendo um culpado, atribui a autoria ao réu, por ele já ter problemas anteriores com a Justiça.

Voltando às perguntas feitas pelo juiz, vale observar que ele repete a pergunta “Você

sabe por que estão dizendo que foi você que cometeu o crime?”. Sem grandes alterações no

conteúdo proposicional, o juiz diz “Sabe por que estão dizendo que foi você que matou?”. Dadas

as condições preparatórias, no discurso jurídico, devem ser feitas perguntas diretas (atos diretos

de pergunta) e respostas também diretas, todas elas (perguntas e respostas) elaboradas a partir de

atos de fala diretos. Como o réu responde com evasivas, o juiz retoma a pergunta, agora

retirando o sujeito “você” e substituindo a expressão “cometeu esse crime”, marcada pelo

eufemismo, pelo sinônimo de valor semântico mais incisivo “matou”. Sabendo dos papéis

sociais e discursivos vividos nessa situação comunicativa, considerando a hierarquia do juiz

sobre os demais, até porque é ele quem preside a sessão, essa alteração constitui um índice de

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reorientação pragmática a derivar desse ato de fala direto um sentido não mais da sentença, mas

do falante, em que sugere uma orientação do tipo “Responda adequada e diretamente ao que for

perguntado”, indo além do próprio conteúdo proposicional da pergunta.

Assim, atos de fala diretos realizados no ponto diretivo, no modo de pergunta derivam

atos de fala indiretos de acusação, de suspeição, de reprimenda e de asseveração.

3.2 Audiência de instrução e julgamento – área cível

Sabendo que o IR e o SJ acontecem somente no direito penal e que a AIJ está presente em

todas as áreas do direito, optamos por apresentar duas análises desta última situação

comunicativa, a fim de verificar se há algum tipo de variação que altere o uso argumentativo da

pergunta.

O caso: um casal trafegava em uma motocicleta por uma avenida principal de Belo

Horizonte, quando foi atingido por um carro que não fez a parada obrigatória. No acidente, o

condutor e a passageira da moto machucaram-se muito. A esposa do motoqueiro sofre fratura

exposta em uma das pernas, tendo de fazer cirurgia para colocar pinos de metal. Por não poder

trabalhar, acabou por ser demitida. Assim, o casal ingressou com uma ação judicial, requerendo

indenização por danos materiais e morais. Após tentar a Conciliação, sem obter resultado, o juiz

iniciou a AIJ. A ré foi convidada a aguardar na sala de espera, enquanto a parte autora foi

ouvida, sendo arguída pelo juiz e pelo advogado da ré.

As trinta perguntas feitas pelo juiz podem ser reunidas em três grupos, através dos quais

ele buscou verificar as circunstâncias em que se deu o acidente, a existência de culpa da ré e os

prejuízos da parte autora advindos do acidente. Assim, ele inicia pelas circunstâncias do

acidente, tema sobre o que fez as seis perguntas:

(64): Como foi que tudo aconteceu? (65): Sua esposa estava na garupa? (66): A que horas foi isso? (67): Você transitava em que sentido? Centro – bairro ou bairro – centro? (68): Como foi o acidente?

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(69): Em que lugar do carro a moto bateu?

Em seguida, o juiz fez três perguntas por meio das quais buscou verificar a existência de

culpa da ré, ou seja, o nexo causal entre os danos e a autoria.

(70): A motorista chegou a frear? (71): Ela freou? (72): No local que ela saiu tinha placa de parada obrigatória?

Apresentando nexo com a legislação de trânsito, essa sequência mostra como o juiz parte

do comportamento da ré para, em seguida, associar esse comportamento ao local do acidente e,

por conseguinte, com a legislação, por meio de um raciocínio lógico:

Havia no local placa de parada obrigatória. (fato 1) A ré não parou no local de parada obrigatória. (fato 2) A ré é culpada. (provável conclusão do juiz, por meio de aplicação lógica da lei)

A partir disso, o juiz associa a esses estados de coisas (EC) uma série de estados mentais

intencionais (EMint):

EC1= P1 (Havia no local placa de parada obrigatória) EMint 1 = CRE forte P1 [constatação] EC2 = P2 (A ré não freou no local) EMint 2 = CRE forte P2 [constatação] EC3 = P3 (a ré não obedeceu à sinalização) EMint 3 = CRE forte P3 [constatação] EC4 = P4 (a ré é culpada) EMint 4 = CRE forte P4 e DES forte P4 [julgamento]

Vale lembrar que o julgamento do juiz, no âmbito jurídico, tem valor declarativo com

dupla direção de ajustamento, uma vez que a ele é atribuída a autoridade com que instaura a

culpa da ré. Ou seja, esse julgamento, construído a partir do que foi percebido do mundo (em

franco ajustamento da mente ao mundo) gera um estado mental de crença e que, de fato, tem o

poder de mudar a realidade do mundo (que passa a se ajustar à mente do juiz), que se dá por

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meio do desejo de fazer valerem os princípios, institucionalmente atribuídos ao juiz. Daí nossa

opção de descrever o seu EMint de julgamento com os dois metapredicados de CRE e DES fortes.

Afinal, o juiz crê na culpa da ré e, uma vez convencido disso, deseja aplicar a justiça,

impingindo-lhe a pena cabível.

Seguindo-se a isso, o juiz busca apurar os desdobramentos do acidente, de modo a obter

informações que sirvam de parâmetros para a concessão de indenização, se for o caso.

(73): No acidente, você se machucou? Alguém se machucou? (74): Ela foi atendida em hospital? (75): Que hospital? (76): Recebeu alta quando? (77): Chegou a ficar engessada? (78): Quanto tempo ela ficou tratando?

Com essas perguntas, o juiz tematiza as consequências do acidente sobre a integridade

física dos acidentados, buscando a existência de danos. Considerando que esses danos ocorrem, o

juiz faz outro bloco de quatro perguntas, através do qual aborda as consequências desses danos

ao trabalho da vítima.

(79): Ela ficou sem trabalhar? (80): Ela pediu o INSS? (81): Ela não recebeu do INSS? (82): Por quê?

Nesse trecho, o juiz problematiza duas respostas dadas pelo depoente. Como o depoente

responde a (80) que

(80a) Não senhor.

o juiz refaz sua pergunta em (81), como se o depoente tivesse violado a máxima de quantidade

ou a da qualidade, ou seja, como se a resposta fosse insuficientemente informativa ou não fosse

verdadeira. A ela, o depoente responde

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(81a): Não. Ela não tinha.

Diante dessa resposta, há nova problematização por parte do juiz, que pergunta (82),

obtendo por resposta

(82a): A patroa dela não registrou ela no INSS.

Como não há nova problematização, parece que é atribuído o valor apocrítico a (82a), por

considerá-la satisfatória em alguma medida, já que o juiz muda o foco da próxima sequência de

perguntas.

(83): Você usava a moto para trabalho? (84): A seguradora pagou o conserto? (85): Com que tempo?

Para esse trecho, compreender os dispositivos que constituem a situação comunicativa

auxilia na percepção não só do sentido dessas perguntas, como também da orientação

argumentativa que subjaz a elas. Sabendo que o advogado da seguradora estava presente na AIJ e

que ele se sentava do mesmo lado da mesa que o advogado da ré, entende-se, por essa ocupação

espacial que a seguradora era litisconsorte23, isto é, quem pagava o seguro era a ré. Disso resulta

que outro EMint pode ser atribuído ao juiz, algo próximo do que vem descrito abaixo.

EC1= P1 (a seguradora é litisconsorte na parte ré) EMint 1 = CRE forte P1 [constatação] EC2 = P2 (a seguradora assumiu o conserto da moto) EMint 2 = CRE forte P2 [constatação] EC3 = P3 (a seguradora admitiu culpa da ré) EMint 3 = CRE forte P3 [constatação] EC4 = P4 (a ré é culpada) EMint4 = CRE forte e DES forte P4 [julgamento]

23 Litisconsórcio do latim litis consortium, do verbo litigo (-are): litigar. Daí litis cum sors, expressão na qual li, litis significa processo, cum preposição que indica junção, e sors (tis) quer dizer “destino, sorte”. Assim, essa expressão significa a reunião de vários interessados como uma mesma parte do processo, na qualidade de autor ou de réu.

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Como se pode ver, da perspectiva do juiz, ao constatar tanto a infração da motorista em

relação à lei de trânsito quanto à postura da seguradora de assumir sua parte nos prejuízos

gerados à parte autora, considerando o papel que o julgador desempenha nessa situação

comunicativa em análise, este não só crê na necessidade de sentenciar a ré como culpada, mas

também deseja fazê-lo, o que se confirma, posteriormente, nos autos, conforme sentença

expedida.

Com a pergunta

(86): Você estava na velocidade de 60 km/h?

o juiz viola a máxima da quantidade, uma vez que na resposta à pergunta (64) o depoente já

havia dito:

(64a): Era umas cinco horas da tarde, eu estava vindo na Avenida dos Andradas, eu e minha esposa, a uns 50 – 55 km/h, quando a motorista atravessou com o carro, sem olhar.

Esse tipo de violação é muito comum em oitivas. Os operadores do Direito usam a

estratégia de alternar e intercalar os temas das perguntas, buscando verificar se o depoente

comete algum tipo de contradição ou de incompatibilidade, de maneira a comprometer seu

depoimento. Nesse caso em análise, o autor reitera a informação ao responder

(86a): Não. Estava a uns 50 – 55 km/h.

conferindo coerência ao seu projeto de palavra, o que pode angariar maior credibilidade à sua

tese e, por conseguinte, render aceitação do seu pedido inicial.

Por fim, o juiz elabora as seguintes perguntas:

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(87): Que outros prejuízos o senhor teve? (88): Você contou com o salário da sua esposa? (89): Quanto tempo ela ficou sem receber? (90): O senhor trabalhou nesse período? (91): Que transporte usou? (92): E a sua esposa foi para o hospital de quê? (93): Que mais prejuízos você teve?

Tomando as perguntas (87) e (93), é possível perceber, pelo uso dos termos “outros” e

“mais”, que o juiz não mais suspeita da existência do nexo causal, destinando as outras cinco

perguntas a detalhes acerca de despesas que o autor teve com o acidente.

Dando prosseguimento à oitiva, o advogado da ré fez as sete perguntas:

(94): Tinha algum carro parado na faixa da direita? (95): A que horas você bateu no carro? (96): Por que o fusca estava parando, se a pista da avenida é preferencial? (97): Sua esposa voltou a trabalhar no mesmo local? (98): No dia, ela estava trabalhando? (98):O farol estava aceso? (99): Ficou aceso o tempo inteiro?

Para a análise desse rol de perguntas, é necessário ter sempre em mente que elas foram

engendradas no interior do discurso jurídico, mais especificamente, em uma AIJ, situação

comunicativa em que dois polos argumentativos digladiam, buscando a adesão do julgador.

Além disso, essa situação comunicativa é regulada não só por regras de conduta como por nortes

jurídicos. Conforme o Código de Processo Civil, no seu artigo 333, incisos I e II, cabe ao autor

demonstrar o “fato constitutivo do seu direito” e, ao réu, provar a “existência de fato impeditivo,

modificativo ou extintivo do direito do autor”. Diante disso, o advogado da ré elabora seu

projeto de palavra a partir do objetivo de apresentar algum elemento que sirva como fato

modificativo do direito do autor. Esse fato é, então, o objeto do acordo argumentativo, conforme

proposição de Perelman, já que é sobre ele que recaem as estratégias argumentativas verificadas,

sobretudo, nas perguntas (94), (95), (96), (98) e (99).

Em (94), ao colocar a possibilidade de existência de um carro parado à direita, o

advogado coloca em discussão as condições em que o autor transitava (se prestava a devida

atenção, se olhava para os lados, se ele podia ver os demais veículos que transitavam no

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ambiente), de modo a atribuir-lhe alguma parcela de culpa pelo acidente. Uma vez que não cabia

mais discussão acerca do direito do autor, pela razão de existir no local do acidente a placa de

parada obrigatória, o advogado da ré adota a tese de que houve algum fato modificativo, como

veremos mais à frente.

Em (95), a estratégia usada foi colocar o autor (“você”) no epicentro da discussão, como

agente (de “bateu”) responsável pela colisão, objetivando desviar a atenção do julgador, que

deixaria de ter o foco na ré para passar a analisar o comportamento do autor.

Com a pergunta (96), o advogado mais do que retoma (94). Como o autor responde

(94a): Parado não. Um fusca é que estava parando.

o advogado valoriza a violação da máxima da quantidade e a do modo (já que a informação

acerca de como e onde o fusca parava não foi suficiente e, por isso, também não foi clara),

buscando uma implicatura com (96), por meio da qual problematiza a resposta dada pelo

depoente. Daí porque o advogado usa “parando” com o sentido de “reduzindo a marcha”,

objetivando provocar o seguinte esquema argumentativo quase-lógico:

O fusca transitava pela via preferencial. (fato 1) O fusca não necessitava reduzir a marcha. (fato 2) O fusca reduziu a marcha mesmo estando na via preferencial. (fato 3) Havia algo inesperado que exigia do fusca a redução de velocidade. (conclusão desejável pelo advogado)

Atrelado a esse vem outro argumento, de natureza transitiva, associado a um EMint do

advogado que, interrogando o autor, tem por objetivo de provocar um determinado estado de

convencimento no espírito do juiz. Esse plano argumentativo pode ser interpretado por um

esquema próximo de:

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EC1= P1 (o fusca transitava pela via preferencial) EMint 1 = CRE forte P1 [constatação] EC2 = P2 (o autor transitava na via preferencial) EMint 2 = CRE forte P2 [constatação] EC3 = P3 (o fusca reduziu a marcha para evitar acidente) EMint 3 = CRE ◊P3 [suspeição] EC4 = P4 (o fusca não se chocou com o carro da ré) EMint 4 = CRE forte P4 [constatação] EC5 = P5 (o autor não reduziu a marcha) EMint 5 = CRE forte ◊P5 [suspeição] EC6= P6 (o autor poderia ter evitado o acidente) EMint 6 = CRE forte ◊P6 [suspeição] EC7= P7 (o autor foi negligente na direção) EMint 7 = CRE forte ◊P7 [suspeição] EC8= P8 (o autor contribuiu para o acidente) EMint 8 = CRE forte ◊P8 [julgamento]

Como se pode ver, aqui trazemos uma descrição diferente para o EMint de julgamento.

Anteriormente, apresentamos que CRE forte e DES forte P4 = [julgamento] , diferentemente do

que aparece no quadro acima (CRE forte ◊P8 [julgamento]). Essa variação deve-se ao fato de que,

no primeiro caso, trata-se de um EMint atribuído ao juiz e, na segunda ocorrência, o julgamento

atinente ao advogado da ré. Ora, levando em conta as atribuições de cada um dos papéis

psicossociais dessa situação comunicativa, sabe-se que cabe ao juiz julgar e, para isso, muitas

vezes, ele se vale de uma série de outros estados mentais intencionais, tais como suspeitar e

constatar, bem diferente do advogado que não pode, por exemplo, proferir julgamentos. Em

função de ocupar esse lugar, o julgador é o destinatário dos empreendimentos argumentativos

envidados em tais situações. Como ao advogado não cabe julgar, então lhe resta o desejo de que a

“possibilidade” – representa por “◊” – de um julgamento específico torne-se um fato real. Dessa

forma, a fim de alcançar sentença favorável, o advogado de defesa constrói todo um plano

argumentativo, em que intenta construir no espírito do julgador um EMint que seja favorável à tese

aventada. Disso é possível entender que, assim como os atos de fala não só efetivam as práticas

sociais como também são por essas mesmas práticas regulados, a intencionalidade também atende

a essa pertinência situacional, sendo mais ou menos previsíveis os movimentos a serem

engendrados pelos atores dessas cenas.

Esse arcabouço argumentativo do advogado, no entanto, foi contraposto pela resposta do

depoente

(96a): Eu não sei por que ele estava parando. Eu sei que ele estava estacionando, encostando.

Com isso, o autor separa semanticamente os termos “parando”, “ estacionando” e

“encostando”, dando mostras de que o advogado incorreu em violação da máxima do modo ao se

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valer da ambiguidade da expressão “estava parando”. Nessa perspectiva, “parando” passa a ter o

sentido de “reduzindo a marcha”, enquanto “estacionando” e “encostando” são tomados por

sinônimos entre si, não necessariamente “diminuindo a velocidade”. Mais do que isso, “parando”

e “estacionando” apresentam um certo grau de antonímia, na medida em que o primeiro termo,

em virtude da utilização feita pelo advogado, passou a ser tomado com o sentido de “reduzindo a

marcha”.

Feita a oitiva do autor, passou-se a ouvir a ré. Como nenhum dos advogados quis

perguntar-lhe nada, apenas o juiz inquiriu a ré.

(100): A senhora está sob o compromisso com a verdade, tá bom? Jura dizer a verdade? (101): Como aconteceu o acidente? (102): Teve algum veículo que impedia sua visão? (103): Onde? (104): Na pista da direita? (105): Não entendi. Como na esquerda? Na contramão? (106): Sim, por favor. Tome aqui. (107): A moto saiu paralela ao caminhão? (108): Ao lado do caminhão? (109): Onde a moto pegou no seu carro? (110): O veículo teve danos? (111): A moto estragou? (112): O que foi feito de negociação? (113): A senhora acionou o seguro? (114): Nós fazemos seguro para, em caso de uma eventualidade, de não termos condições de arcar com os prejuízos, a seguradora cobrir por nós. Por que a senhora acha que o seguro honrou seu prejuízo? (115): A seguradora só paga se o segurado estiver errado. Por que a senhora acha que o seguro pagou? (116): Alguma pessoa machucou na hora? (117): Foi aquela mulher que se machucou na hora, no acidente? (118): Com relação a outros gastos, os autores procuraram a senhora para receberem ajuda?

Essas dezenove perguntas podem ser separadas em sete grupos, conforme os assuntos

abordados, quais sejam:

• a pergunta (100) faz parte da ritualística judicial e representa o momento do

compromisso24 da testemunha;

24 Trata-se de termo técnico do Direito, usado para designar o momento em que a testemunha compromete-se em dizer a verdade.

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• com (101), o juiz faz a introdução da oitiva, sendo uma pergunta bastante comum nas

oitivas, através da qual se pretende colher a versão do depoente;

• de (102( a (109), são tematizados o ambiente do acidente e as condições de visibilidade

da motorista;

• de (110) a (113), o juiz aborda os danos causados aos veículos e a negociação feita;

• com (114) e (115), o juiz discute a responsabilidade da seguradora sobre os danos;

• em (116) e (117), busca-se saber sobre os danos sobre as pessoas envolvidas;

• em (118), o juiz quer saber se houve a comunicação entre os envolvidos acerca das

outras despesas da vítima.

Enquanto os dois primeiros grupos ligam-se às normas da situação comunicativa, as

demais compõem o plano argumentativo do juiz. Considerando (102), (103), (107) e (108), é

possível perceber que a ré disse haver um caminhão impedindo a sua visão. Além disso, (108) é

uma reformulação de (107), constituindo uma problematização da resposta

(107a): Foi.

Como a ré foi bastante econômica na resposta, o juiz refaz a pergunta, a fim de levá-la a

dar mais alguma informação, sendo exatamente o que acontece, já que a ré responde

(108a): Acho que sim. Eu não vi a moto. Só sei que ela veio para cima do meu carro.

Com isso, a ré favorece o seguinte jogo inferencial

Havia uma placa de parada obrigatória no local do acidente. (fato 1) Havia um caminhão que dificultava a visão da ré. (fato 2) A ré não viu a moto. (fato 3) A ré não prestou a devida atenção. (provável inferência feita pelo juiz) A ré agiu com imprudência e imperícia. (provável conclusão do juiz)

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Nesse trecho, mais especificamente de (103) a (106), ocorre um fato muito interessante e

pouco comum em situações comunicativas do discurso jurídico. Foi colocado no rol de perguntas

o item (106) que não tem natureza interrogativa e também não é uma pergunta indireta. Isso se

deve à importância de (106) para o trecho, conforme se verá a seguir. Como à (102) a ré

responde

(102a): Um caminhão parado.

o juiz problematiza a resposta através da (103), ao que a ré, visivelmente irritada, responde

(103a): Do lado assim. Pela esquerda. Parado.

Como a resposta não foi clara, pois não se pode precisar à esquerda de quem estava o caminhão,

o que representa uma violação da máxima do modo, o juiz faz nova problematização em (104) e

(105), tomando por referência a esquerda da via em que a ré transitava (“Na contramão?”). Ainda

mais irritada, a depoente responde

(105a): Ele estava parado na esquerda. Quer que eu desenhe?

Essa resposta é conflitante com o dispositivo comunicacional que atua na configuração de uma

AIJ, relativo à identidade dos parceiros, pois cabe ao juiz perguntar e, ao depoente, responder de

forma clara e direta, sob pena de ser advertido. Como estava bastante irritada, a ré usa a pergunta

“Quer que eu desenhe?” – uma forma bastante usual em conversas informais, como forma de,

ironicamente, debochar da capacidade de compreensão e do nível de inteligência do interlocutor

–, violando mais uma vez a máxima do modo, por meio da ironia. Daí porque o juiz disse (106),

dando mostras de ter tomado a fala da depoente como um ato de fala direto, ignorando o sentido

do falante para ater-se ao sentido da sentença.

A perspectiva argumentativa do juiz tem novo foco com a sequência de (113) a (115). Ao

trazer para o debate a atitude da seguradora de pagar as despesas da moto, colocando esse fato no

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eixo da discussão, o juiz, considerando que o fato de haver um Litisconsórcio incide sobre o

acordo argumentativo constituindo uma verdade, utiliza a técnica argumentativa na qual se

aplica o argumento pela analogia, de modo a obter fundamentação para sua sentença. Assim,

pode ser construído o seguinte quadro argumentativo:

Fato 1 = A ré e a seguradora são litisconsortes no processo. Fato 2 = A seguradora só paga despesa, se o seu cliente estiver errado Fato 3 = A seguradora pagou o conserto da moto. Inferência = A seguradora admitiu a culpa. Conclusão por analogia = assim como sua litisconsorte, a motorista também é culpada.

Além disso, vale lembrar que as violações, tanto de máximas conversacionais quanto de

regras da situação comunicativa, podem contribuir para a construção de um ethos da ré como

uma pessoa que tende à irritabilidade (“Quer que eu desenhe?”), pouco disposta ao diálogo (dá

respostas curtas e, por vezes, monossilábicas) e que resiste em admitir o próprio erro (tal como

dito, em resposta à primeira pergunta do juiz, “Eu sei que não tive culpa, não me sinto culpada.”).

Esse ethos contribui negativamente para o julgamento do juiz, pois tende a abrir terrenos para

ponderações pautadas na presunção da qualidade, tal como proposto por Perelman, uma vez que

gera a suscetibilidade de se atribuir ao ato cometido as mesmas qualidades da pessoa que o

cometeu. Nessa perspectiva, não nos parece desprovido de sentido situar as cinco últimas

perguntas do juiz em um mesmo quadro intencional, tomando por base as respostas da depoente.

Nelas, há a presença de algumas marcas linguísticas que favorecem a construção desse ethos da

ré e a sua associação à presunção da qualidade do ato.

Sabendo que ré responde, respectivamente,

(114a): Porque nós acionamos. (115a): Porque somos clientes, porque pagamos por isso, porque não quer perder cliente. (116a): É. A esposa dele. (117a): Parece que foi. (118a): Olha, nós demos nossos contatos, até resolver a moto. Eles, então, ligavam direto, incomodando minha família, todo dia querendo alguma coisa.

considerando que a argumentação jurídica recai sobre tanto fatos quanto sobre imagens, a

resistência da ré em admitir que foi a sua culpa pelo acidente que fez com que a seguradora

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pagasse o conserto da moto pode apontar para ethos de uma depoente inflexível. Acrescenta-se a

isso que, em (117a), ela não demonstra reconhecer a vítima, ao que pode ser associado um certo

descaso para com a mulher acidentada (“Parece que foi.”). Essa postura abre espaço para

discussões em torno de objetos de acordos argumentativos pautados no preferível, a saber, os

valores concretos, já que ela não demonstra colocar o ser humano (“incomodando minha

família”) acima de outros valores como, por exemplo, o dinheiro (“querendo alguma coisa”).

Tomando por base o início da AIJ, em que o juiz deve tentar a conciliação das partes, e

como foram feitas as perguntas de (116) a (118), parece ser pertinente pensar que ele, uma vez

convencido da autoria da ré e de que ela não cederia a um acordo, buscou verificar a extensão

dos danos causados pelo acidente. Tanto é que, nas oitivas das duas testemunhas de acusação,

todas as perguntas feitas por ele versaram somente acerca das despesas do autor com os

desdobramentos dos danos sofridos no acidente, tais como tratamento de saúde, ausência de

salários e dificuldades de transportes, conforme se pode verificar nos anexos deste texto, de

modo a configurar a existência de danos e obter dados para o cálculo da indenização pedida pela

parte autora. O fato de, curiosamente, o advogado da parte autora não ter feito nenhuma

pergunta, pode ser uma evidência de que ele inferiu, em face desses aspectos, já estar o juiz

convencido da culpa da ré.

Dito de outra forma, as perguntas feitas de (114) a (118), engendradas no interior da

situação comunicativa AIJ, enunciada pelo julgador, podem funcionar como estratégias

argumentativas que resultam na construção da imagem de uma das partes envolvidas no processo

judicial, o que pode contribuir para a formação do parecer do julgador.

Por outro lado, não é de se esperar que, em um contrato sociolinguageiro em que

prevalece a disputa acirrada por uma sentença favorável, um dos sujeitos envolvidos abandone

sua identidade, o papel psicossocial que assume nessa prática linguageira, e passe a adotar as

intenções do seu parceiro. Ao contrário disso, é fundamental que cada um desses parceiros

garanta a legitimidade do seu projeto de palavra, mantendo a imagem discursiva que for mais

adequada a esse lugar enunciativo. No entanto, o uso de estratégias discursivas deve estar em

sintonia com as imagens e valores (os topoï) socialmente construídos e validados, a fim de se

conquistar a adesão do julgador, seja por meio do seu convencimento (fazer crer) seja pela

persuasão ou sensibilização (fazer sentir), garantindo credibilidade à tese defendida. É nessa

medida que a postura adotada pela ré pode concorrer para a derrocada argumentativa da defesa.

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3.3 Audiência de instrução e julgamento – área criminal

Nesse processo, o acordo argumentativo recai sobre as circunstâncias do assassinato de

um homem, uma vez que o réu já havia assumido a autoria do crime, sendo o que se chama no

Direito de “réu confesso”. Nessa AIJ, são ouvidas quatro testemunhas, sendo a primeira de

acusação (filho da vítima) e as outras três de defesa (dois vizinhos dos envolvidos e a esposa do

réu). Conforme os normativos do Código de Processo Penal, será o primeiro a inquirir o

depoente aquele que o indicou, isto é, se se trata de testemunha da ré, primeiro (depois do juiz)

quem faz as perguntas é o advogado da ré; se a testemunha é da parte autora, então quem inicia

(depois do juiz) as perguntas é o advogado da parte ou promotor de justiça, conforme a área do

Direito. Considerando que se trata de uma situação comunicativa do tipo AIJ na área do Direito

Penal, primeiro é ouvida a testemunha da parte autora, ou seja, do Ministério Público, para,

depois, fazer a oitiva de testemunhas da parte ré. Como presidente da sessão, ou o juiz dá a

palavra, primeiro, ao promotor, ou faz, de antemão, algumas perguntas no decorrer dos

depoimentos25, com o objetivo de tornar mais claro o depoimento, para que possa ditar de modo

mais pertinente para o escrevente que digita a Ata de Audiência. Dito de outra maneira, os

sujeitos do contrato reconhecem mutuamente as identidades de parceiros dessa troca

sociolinguageira, possuidores de legitimidade que os habilita a desempenhar os respectivos

papéis psicossociais, efetivando os projetos de palavra no mise- en- scène da situação

comunicativa, ancorada nos dispositivos da finalidade, dos propósitos temáticos e do suporte

material.

Feita a qualificação da primeira testemunha, inicia-se a oitiva. Tomemos as perguntas

feitas pelo promotor, lembrando que só traremos as intervenções do juiz, quando elas

representarem algum tipo de orientação discursiva ou argumentativa. E isso acontece já no

primeiro par de pergunta e resposta. Ao ser perguntado

(119): Fulano, você viu o crime? Você estava presente aos fatos?

25 Vale relembrar que, em virtude do papel de presidente, o juiz tem a discricionariedade de alterar essas sequências do rito, daí porque apresentamos as formas alternativas.

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o depoente responde

(119a): Estava presente. Só não vi ele atirando, mas vi ele, na hora em que eu cheguei, no momento, ele me apontou a arma e falou se eu viesse também, ele ia atirar em mim também.

dando mostras de que entendeu por “viu o crime” e por “estava presente aos fatos” como “ter

visto o pai atingido e o réu com a arma em punho”. Diante disso, o juiz pergunta

Juiz: Então, o senhor viu quando o réu atirou na vítima?

ao que o depoente responde

Depoente: Estava presente. Só não vi ele atirando, mas vi ele, na hora em que eu cheguei, no momento, ele me apontou a arma e falou se eu viesse também, ele ia atirar em mim também.

deixando claro que ele não viu o réu alvejar a vítima, embora o que viu é suficiente para entender

que foi o réu que matou o pai do depoente. O promotor dá sequência ao depoimento,

perguntando

(120): Sabe por que motivo o réu baleou seu pai? (121): Você sabe quem começou a discussão? (122): Nessa discussão envolveu a esposa da vítima também? (123): E a mulher do réu estava presente?

Como se pode ver, o promotor incide suas perguntas acerca das circunstâncias em que o

crime aconteceu, já que é sobre esses fatos que recai o acordo argumentativo, como propõe

Perelman. Como o depoente responde

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(120a): Não. Fiquei sabendo que foi uma discussão, mas eu não fiquei ciente do que eles... do que aconteceu não. (121a): Não. Fiquei sabendo que foi um tal de Baiano que estava junto com meu pai. Mas, só que meu pai estava junto, ele atirou nele também. (122a): Não, porque ela estava na casa da minha tia com a minha irmã. (123a): Eu não estava no momento que rolou a discussão não.

percebe-se uma possível incompatibilidade, quando se confrontam as respostas, já que

EC1 = P1 (O depoente não estava presente no momento da discussão.) EC2 = P2 (O depoente não sabe o motivo do crime.) EC3 = P3 (O depoente ouviu dizer que houve uma discussão entre réu e vítima.) EC4= P4 (O depoente não ficou ciente.)

SE o depoente não estava presente aos fatos; SE ele não sabe o motivo do crime; SE ele não ficou ciente; ENTÃO ele não tem condições de dizer que ficou sabendo que houve uma discussão entre os envolvidos. POIS, SE ele ficou sabendo que houve uma discussão entre os envolvidos, ENTÃO ele ficou ciente do motivo do crime

Soma-se a isso, o fato de o depoente dizer que “não estava no momento que rolou a

discussão”, quando se refere à presença da esposa do réu na cena do crime, como também que a

esposa da vítima “estava na casa da minha tia com a minha irmã”. Diante disso, o juiz intervém,

travando-se o seguinte diálogo:

Juiz: A esposa da vítima, então, não foi atingida porque não estava lá. É isso? Testemunha: Não. Eu não estava lá não. Juiz: O que o Promotor quer saber é se a esposa da vítima e a do réu foram envolvidas na discussão. Testemunha: Não. Eu não estava no momento da discussão não. Juiz: Você não sabe por que você não estava lá. É isso? Testemunha: Não, porque eu não estava presente na hora do... Juiz: Então, você não sabe? Testemunha: Não. Não sei não.

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Ocorre que as respostas do depoente violam a máxima de modo, na medida em que não

são claras o suficiente para se saber do envolvimento das esposas na discussão. Persistindo a

falta de informação, o que resulta na violação da máxima da quantidade, o juiz pergunta “Então,

você não sabe?”, como uma constatação de que o depoente desconhece o envolvimento das

esposas, levando a testemunha a confirmar essa constatação.

Retomando a palavra, o promotor faz a pergunta

(124): Você não sabe se a mulher do réu foi envolvida também?

em uma nítida repetição de informações já sabidas. Essa violação da máxima da quantidade

parece ser uma estratégia argumentativa, já que a esposa do réu é uma das testemunhas arroladas

pela defesa e, como se pode inferir, o envolvimento dessa pessoa nas circunstâncias do crime

pode apresentar um valor argumentativo, já que é exatamente sobre as circunstâncias do crime

que se acordou argumentar.

Para o Direito Penal, uma vez admitida a autoria do crime, passa-se à discussão acerca

das circunstâncias em que o crime aconteceu, verificando-se aquilo que pode servir de atenuante

ou de agravante, fornecendo fundamentação para a dosimetria da pena ou para a absolvição do

réu. Como critérios para tal, podem ser citados: a quantidade de disparos ou golpes efetuados

contra a vítima; as partes do corpo atingidas; a distância entre a vítima e o assassino; situação de

discussão (o chamado “calor da discussão”), dentre outros, que ajudam a configurar se se tratou

de um crime planejado, de um resultado de forte discussão ou de legítima defesa. É evidente que

a acusação tenderá a buscar agravantes; ao passo que a defesa envidará esforços argumentativos

no sentido de atenuar a ação do réu.

Assim, o promotor pergunta acerca do nível de lucidez da vítima e do réu, por meio das

perguntas

(125): Você sabe dizer se seu pai estava embriagado? (126): E o réu?

o tipo de ameaça que a vítima representava para o réu, como tematiza na sequência

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(127): Fisicamente, qual é a compleição do seu pai, hein? Era mais forte ou mais fraco que o réu? (128): Seu pai estava armado naquele dia? (129): Ele tinha o costume de andar armado? (130): Seu pai tinha arma?

ou o estado de lucidez do companheiro da vítima, através de

(131): Além do seu pai e do Baiano, tinha mais alguém no local onde começou a discussão? (132): Baiano também estava embriagado?

Com isso, pode-se compor o seguinte jogo argumentativo quase-lógico, da perspectiva da

acusação, considerando aquilo que foi respondido pelo depoente:

SE EC1= P1 (a vítima estava embriagada) (fato 1) EC2 = P2 (o réu não estava embriagado) (fato 2) EC3 = P3 (a vítima não portava arma no dia do crime) (fato 3) EC4 = P4 (a vítima não costumava portar arma) (fato 4) EC5 = P5 (a vítima não possuía arma) (fato 5) EC6= P6 (a vítima estava na companhia de um amigo) (fato 6) EC7= P7 (o amigo da vítima também estava bêbado) (fato 7) ENTÂO EC8= P8 (a vítima não representava ameaça ao réu) (conclusão desejável pelo promotor)

Além disso, o promotor busca ainda associar ao réu alguns elementos que podem ter

valor de agravantes, seja pela inexistência de alguma divergência anterior entre as partes,

(133): Sabe se seu pai tinha algum problema anterior com o réu? (134): Não sabe ou não tinha?

seja pela quantidade de tiros com que atingiu a vítima,

(135): Quantos disparos ele deu?

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pelo desequilíbrio emocional,

(136): Você tentou agredir o réu no dia lá? (137): Você disse na Polícia que você tentou aproximar de seu pai e foi impedido pelo réu.? (138): Não permitiu?

ou pela razão fútil que motivou o crime, conforme abordado em

(139): Na madrugada que antecedeu o crime, o Baiano deu um pontapé no portão na casa do réu?

O grupo de perguntas a seguir parece não ter valor argumentativo,

(140): Seu pai estava com Baiano nesse momento? (141): Que distância você estava do local em que seu pai foi baleado? (142): Era um beco? (143): E você estava na rua? (144): Onde ele foi baleado?

até porque o promotor segue perguntando

(145): Você sabe de algum outro problema do réu com discussão, briga, com a polícia? (146): Sabe se mexia com droga, boca de fumo?

no entanto, quando se confrontam as perguntas de (140) a (144) com (147),

(147): Você escutou barulho, vozes, gritos antes dos tiros?

percebe-se que o promotor, considerando seu papel psicossocial e a dimensão intencional que

norteiam seu projeto de palavra, pretendeu descartar a possibilidade de existência de discussão

entre a vítima e o réu, a fim de construir outro agravante, levando o julgador a considerar que o

réu não agiu sob forte emoção ou no “calor da discussão”, como alguns operadores do Direito

costumam usar.

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Finalizada a participação do promotor, a advogada de defesa passou a ter a vez de inquirir

a testemunha. Por meio de dezoito perguntas, a advogada problematizou acerca do tipo de

relacionamento que havia entre a esposa da vítima e a do réu, a composição da família do

depoente, bem como se a vítima e o seu amigo Baiano tinham passagem pela polícia, conforme

se pode ver nos exemplos colocados logo abaixo. Com essa abordagem, a advogada busca

construir um plano argumentativo pautado na intencionalidade de estender as características

negativas do grupo para a vítima. Essa estratégia argumentativa atua na construção do ethos da

vítima como sendo uma pessoa de má conduta e que representa uma ameaça às pessoas de bem.

Assim, a advogada pergunta

(148): Fulano, no dia do fato, após o acontecimento, você ouviu dizer ou ficou sabendo por qualquer outra pessoa que o motivo da discussão tinha sido entre a mulher do seu pai e a mulher do réu? (149): Seu pai já havia sido preso alguma vez? (150): Você é filho único ou seu pai tinha outro filho? (151): Você não tem um irmão que chama Bruno não? (152): Esse Bruno está vivo ou está morto? (153): Morreu por quê? (154): E você está preso por quê? (155): : Você sabe ou tem conhecimento de que o Baiano já foi preso ou condenado?

Como resposta, a testemunha diz

(148a): Mas elas tinham discutido uns três dias atrás, eu acho. Elas tinham discutido, mas eu não sei o motivo não. (149a): Não tenho conhecimento não. (150a): Tinha mais uma menina. (151a): Tenho, mas ele não é filho dele não. Não é filho do meu pai não. É filho só da minha mãe. (152a): Está morto. (153a): Tráfico. (...) É disputa de boca, né? (154a): Tráfico. (155a): Condenado eu não sei não, mas ele já foi preso várias vezes.

Considerando as respostas da testemunha, confirmando que o amigo da vítima já havia

sido processado e que o depoente e seu irmão Bruno haviam se envolvido com o tráfico de

drogas, sabendo que este último foi morto em disputa por “boca de fumo”, a argumentação da

defesa caminha na seguinte direção:

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EC1= P1 (o enteado da vítima era traficante) (fato 1) EC2 = P2 (o filho da vítima é traficante) (fato 2) EC3 = P3 (o amigo da vítima já foi preso) (fato 3) EC4 = P4 (o grupo ao qual a vítima pertencia tinha má conduta) (fato 4) EC5= P5 (a vítima representava ameaça ao réu) (inferência desejável pela defesa)

Ao ser tomado o depoimento da primeira testemunha de defesa, a advogada mantém a

mesma linha de perguntas, tematizando o comportamento social da vítima, com vistas a construir

uma imagem negativa que favoreça a tese de que a vítima contribuiu para a ocorrência do crime,

o que pode ter valor de atenuante. Por isso é que a advogada pergunta, por exemplo:

(156): Você sabe se a vítima era dada a briga, se era uma pessoa que comportava mal no bairro... Como era o comportamento dessa pessoa? (157): E a respeito do Baiano? Era uma pessoa boa, não era? Como é que era?

Conforme abordagem da argumentação proposta por Perelman, no que atine aos acordos

sobre os quais recaem os esforços argumentativos, tal como apontado no quadro teórico deste

estudo, as presunções constituem uma espécie de topos que valida determinados comportamentos

humanos tidos como normais em determinadas sociedades. Nessa perspectiva, a advogada de

defesa tenta construir grupos de referência que tome como normal o comportamento do réu que é

um homem trabalhador, pacífico, caseiro, que não tem hábito de beber. Em oposição a esse

comportamento está o da vítima, pessoa dada a brigas, violento, arruaceiro, beberrão, de estreitas

relações com o crime. Ativando essa presunção de normalidade à da qualidade, a defesa busca

estabelecer uma equivalência entre essas qualidades do réu como sendo também próprias do ato

que ele praticou. A defesa busca, então, estabelecer uma analogia entre agente e ato que pode ser

expressa através de algo próximo da máxima “se o réu possui hábitos pautados na normalidade,

então o crime que ele cometeu não extrapola essa esfera socialmente aceita”. Com isso, a

advogada pretende atenuar a culpa do seu cliente e, por extensão, alcançar sentença favorável à

sua tese.

Em direção contrária, o promotor aborda o comportamento do réu, seus hábitos, a

motivação do crime, bem como busca saber se a testemunha presenciou o crime, ou se viu a

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vítima embriagada ou chutando o portão da casa do réu. Sabendo que a testemunha afirma não

ter presenciado os fatos, o grau de credibilidade atribuída ao seu depoimento pode ser diminuído,

uma vez que “ouvi dizer” é menos aceitável do que “eu vi”, ou seja, presume-se que aquele que

viu possui melhores condições de falar sobre o fato do que aquele que “ouviu dizer”.

De modo semelhante é conduzida a oitiva da segunda testemunha arrolada pela defesa. A

advogada manteve a linha argumentativa e apenas dois movimentos merecem análise mais

detalhada. A advogada pergunta

(156): O senhor sabe de algum incidente havido, após o problema aí, com a casa do réu?

e como a testemunha responde

(156a): Sei que, pela manhã, chutaram o portão da casa dele...

Como se pode ver, o depoente apaga, seja por não ter entendido ou por desatenção, o

trecho “após o problema aí”, incorrendo em uma violação da máxima da quantidade, por ser

excessivamente informativo, o que faz com que o juiz intervenha, redirecionando a resposta do

depoente

Juiz: Isso o senhor já disse. Depois do crime, aconteceu alguma coisa?

Esse trecho reafirma a regulação da situação comunicativa, através do funcionamento dos

seus dispositivos, sobretudo, nesse episódio, da identidade dos participantes, da finalidade, dos

propósitos temáticos. A intervenção do juiz leva o depoente a reorganizar sua resposta,

acrescentando informações.

Testemunha de defesa 2: Botaram fogo na casa dele.

Conforme a teoria da problematologia, embora atendendo de modo satisfatório ao que foi

perguntado, a resposta da testemunha possibilita uma problematização, não para malbaratar a

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solução que ela traz, mas para, exatamente na direção dessa solução, favorecer a identificação da

pessoa que incendiou a casa do réu. Daí a pergunta da advogada

(157): O senhor sabe ou ouviu dizer quem botou o fogo?

que leva a testemunha a dizer (157a): Ouvi boatos de que seria o enteado da vítima.

A resposta, desta feita, é informativa o suficiente, pois já se sabe que a vítima tinha um

enteado e que esse enteado se chamava Bruno. Entretanto, a advogada não se dá por satisfeita e

pergunta

(158): Sabe o nome dele?

com a intenção de deixar expresso e claro o nome da pessoa que ateou fogo à casa do réu. Assim,

s testemunha responde

(158a): Bruno.

Embora pareça preciosismo da advogada, essa insistência tem por base um planejamento

argumentativo no qual as perguntas servem de estratégia por favorecerem a associação de EC, já

que elas podem derivar atos indiretos de suspeição e de construção de imagens, tal como se pode

ver no esquema abaixo.

SE EC1= P1 (a vítima discutiu com o réu) EC2 = P2 (a vítima era mais forte fisicamente que o réu) EC3 = P3 (a vítima e o amigo chutaram o portão da casa do réu) EC4 = P4 (o filho e o enteado da vítima eram traficantes) EC5= P5 (o enteado da vítima vingou sua morte, ateando fogo à casa do réu) LOGO EC6= P6 (a vítima e sua família tinham conduta violenta) (inferência desejável pela defesa)

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EC7= P7 (a vítima representava perigo iminente ao réu) (inferência desejável pela defesa) ASSIM EC8= P8(o réu matou a vítima para se defender) (tese defendida pela defesa / conclusão desejada pela defesa)

Ao arguir a testemunha, o promotor faz somente quatro perguntas

(159): O senhor disse que na manhã do dia do crime houve uma provocação lá, né? E depois o que foi que aconteceu? (160): A que horas o crime aconteceu? (161): O senhor sabe como a vítima foi morta? (162): Sabe se ele foi baleado pela frente ou pelas costas?

através das quais desloca o eixo da argumentação da construção de imagens da vítima e de sua

família para circunstâncias específicas do crime, buscando checar o tempo decorrido entre a

discussão e o crime, o modo como a vítima foi morta e em que lugar do seu corpo os tiros

atingiram. Essa escolha aponta nitidamente para os critérios utilizados para se parametrizar as

circunstâncias em que um crime aconteceu, entendendo-as como atenuantes ou agravantes. Nessa

dimensão, a pergunta (162) apresenta maior destaque, uma vez que atingir a vítima pelas costas é

muito mais grave que fazê-lo pela frente, sendo uma excludente da tese de legítima defesa.

Assim, com (162), o promotor busca colocar em xeque uma possível tese da defesa. Esse intento

só não logra maior êxito porque a testemunha não oferece a resposta pretendida pelo promotor, já

que diz

(162a): Não posso dar detalhe, pois eu não estava presente no dia.

Em seguida, é ouvida a terceira testemunha da defesa, a esposa do réu. A advogada de

defesa inicia a oitiva, fazendo um total de dezenove perguntas, começando por

(163): Dona Maria, a senhora estava presente aos fatos do crime?

Uma vez confirmado que a testemunha estava presente, quando o crime aconteceu, a

advogada pergunta

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(164): Dona Maria, a senhora estava presente aos fatos do crime? (165): A senhora pode me contar o que aconteceu lá? (166): Logo em seguida, o que aconteceu?

ficando claro que mudou totalmente o foco de sua abordagem, deixando de tematizar acerca da

imagem da vítima e de pessoas a ela relacionadas, para provocar a narrativa dos fatos. Afinal,

desse total de perguntas, apenas uma retoma o tema da imagem da vítima e do seu amigo. Todas

as outras englobam algum aspecto da narrativa dos fatos. Assim, ao ouvir que a vítima e seu

amigo ameaçaram o réu e sua esposa, a advogada pergunta

(167): De que ameaças?

para, depois, questionar acerca do tempo decorrido entre a discussão e o crime e a reação do

casal, como se vê no bloco

(168): Quanto foi o tempo de quando eles voltaram, depois que a senhora veio do salão? Isso foi quanto tempo? (169): Que horas mais ou menos? (170): E enquanto eles foram e voltaram, o que a senhora e o réu ficaram fazendo? (171): Vocês não saíram de casa em momento algum?

No entanto, ao ser perguntada

(172): Quando eles retornaram, antes de ir embora, o que aconteceu?

a testemunha responde

(172a): Eles quebraram de novo o portão. Novamente quebraram o portão, entraram na nossa garagem...

Diante dessa resposta, o juiz faz uma intervenção, provocando o seguinte diálogo:

(173) Juiz: Novamente quebraram o portão? A senhora disse que eles discutiram, xingaram a

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senhora e quebraram o portão da senhora, né? Testemunha: Isso. (174) Juiz: Eles quebraram o portão da senhora duas vezes? Testemunha: Duas vezes. Não. Uma vez. Eles quebraram o portão às 15 horas, à tarde. Entraram dentro da nossa garagem, que é terreno grande que fica a casa, e nós trancados dentro de casa. Por volta das cinco horas da tarde, eles retornaram: um por baixo e outro por cima, para matar a gente. (175) Juiz: E aí?

A testemunha responde à pergunta, através da narração da ação da vítima e seu amigo. Ao

contrário do intento da depoente de apresentar a resposta como solução da querela jurídica, o juiz

promove uma problematização dessa resposta. Ao ouvir a palavra “Novamente”, presente na

resposta, o juiz faz sua primeira pergunta (173), que vem dividida em duas partes. Na primeira,

ele repete a informação (“Novamente quebraram o portão”) expressa duas vezes em (172a) de que

o portão foi quebrado por duas vezes (“quebraram de novo” e “Novamente”). Na segunda, ele

refaz o percurso atribuído à vítima e ao seu amigo Baiano (“eles discutiram, xingaram a senhora e

quebraram o portão da senhora, né?”) pela testemunha, obtendo “Isso” como resposta. Essa

estruturação da pergunta em duas partes traz uma contradição, qual seja, é dito que “eles

discutiram, xingaram e quebraram o portão”, ou seja, o portão foi quebrado apenas uma vez, para

ser confrontado com “Eles quebraram de novo o portão. Novamente quebraram o portão”. Essa

incompatibilidade ou contradição apresentada pode ser expressa por meio da seguinte redução

formal:

A testemunha afirmou que o portão foi quebrado uma vez. (fato 1) A testemunha diz que o portão foi quebrado de novo, por duas vezes. (fato 2)

Diante da concordância da testemunha com essa contradição (“Isso”), o juiz pergunta

(174). A resposta da depoente deflagra nova contradição, pois ela afirma que o portão foi

quebrado “Duas vezes” e, imediatamente após, nega (“Não”). A redução formal é, então

ampliada para:

A testemunha afirmou que o portão foi quebrado uma vez. (fato 1) A testemunha diz que o portão foi quebrado de novo, novamente. (fato 2) A testemunha confirma que o portão foi quebrado por duas vezes. (fato 3) A testemunha nega que o portão foi quebrado por duas vezes. (fato 4) A testemunha comete uma contradição ou incompatibilidade. (conclusão aceitável)

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Essa contradição ou, pelo menos, incompatibilidade tende a desacreditar o projeto de

palavra da depoente, por favorecer a construção do seguinte EMint

EC1= P1 (a testemunha afirmou que o portão foi quebrado uma vez) EMint 1 = CRE forte P1 [constatação] EC2 = P2 (a testemunha diz que o portão foi quebrado de novo) EMint 2 = CRE forte P2

[constatação] EC3 = P3 (a testemunha confirma que o portão foi quebrado por duas vezes) EMint 3 = CRE forte P3 [constatação] EC4 = P4 (a testemunha nega que o portão foi quebrado por duas vezes) EMint 4 = CRE forte P4 [constatação] EC5= P5 (a testemunha comete uma contradição ou incompatibilidade) EMint 5 = CRE forte P5 [constatação] EC66= P6 (a testemunha se contradiz) EMint 6 = CRE forte P6 [constatação]

A pergunta (175) deriva o ato indireto de ordem, com alto índice de polidez, que pode

ser traduzido como “Continue”. Tanto é assim que a testemunha continua a narrativa,

relatando

(175a): Quando a vítima veio com a mão para trás, o réu disse “vamos conversar”. E a vítima, com a mão para trás, falou para o réu “Eu vou te matar”. Foi aí que o meu marido deu os tiros nele.

Retomando a palavra, a advogada pergunta

(176): A senhora fala que ele chegou com a mão para trás. Ele chegou a entrar na casa de vocês? (177): Então eu não entendi. Olha aqui, então ele estava na garagem e o réu saiu para a garagem? Isso que eu não entendi. (178): Tá. Então eles estavam do portão para dentro, na garagem, mas não estavam na casa. Estavam no terreno. É isso? buscando demonstrar que a vítima favoreceu o crime por ter feito ameaças seguidas de invasão da

propriedade do réu.

A pergunta que a advogada fez em seguida foi a única que remeteu à imagem da vítima e

do Baiano

(179): O que a senhora pode me dizer dessas pessoas, a vítima e o Baiano? Eram pessoas bem quistas não eram? Pessoas dadas a brigas ou não eram? Como eram as pessoas da vítima e do Baiano?

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voltando, imediatamente, à narrativa dos fatos, procurando confirmar que o filho da vítima não

estava presente no momento do crime e que não havia nenhum problema anterior entre os

envolvidos que pudesse caracterizar o crime como um ato de vingança,

(180): O filho da vítima estava presente na hora dos fatos? (181): A senhora teve, antes ou depois do problema, algum problema com a esposa da vítima?

bem ao contrário do que provoca com as perguntas seguintes

(182): Depois do fato ocorrido, houve algum problema, algum incidente com a casa da senhora? (183): Eles quem? (184): Quem que é Bruno?

quando coloca o enteado da vítima como agente da cena do incêndio à casa do réu, após a morte

do padrasto. Essa estratégia é concluída com a última pergunta, que retoma, em certa medida, a

(181).

(185): Antes desse fato, seu esposo e a vítima tiveram algum problema? Segue-se a oitiva, passando a palavra ao promotor que elabora trinta e quatro perguntas

através das quais se desenrola vigoroso plano argumentativo. Enquanto a advogada de defesa

privilegiou a construção de ethos do seu cliente como de um homem trabalhador, caseiro e

pacífico, o promotor, já de início, busca colocar esse ethos em suspeição por meio de quatro

perguntas

(186): Onde o réu arrumou esse revólver? (187): Essa arma é registrada? (188): Ele tem porte de arma? (189): Há quanto tempo ele tinha essa arma?

A testemunha diz não saber a resposta das duas primeiras perguntas. No entanto, ao negar

que o marido tinha porte de arma e, sobretudo, ao responder (189) com

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(189a): Ele tinha essa arma lá por volta de um ano.

o intento do promotor começa a lograr êxito, justamente porque fragiliza o ethos do réu. Afinal,

não combina com uma pessoa pacífica o hábito de ter arma em casa, ainda mais sem licença para

tal.

A próxima investida argumentativa do promotor tem por alvo desconstituir a tese de

“calor da hora”, sobre o que elabora as cinco perguntas

(190): A senhora contou que os problemas começaram na parte da manhã, com ofensas e tal e... A que horas foi o crime? (191): Segundo a polícia foi às 19 horas. Já era de noitinha, final da tarde? (192): A senhora fala que vocês entraram para casa e ficaram lá. Durante esse tempo todo, vocês ficaram dentro de casa? Vocês não pensaram em chamar a polícia e resolver esse problema? (193): Não tinha telefone, celular? (194): A senhora conta que o réu saiu de casa e a vítima veio com a mão para trás. O réu já saiu com a arma em punho?

Com esse grupo de perguntas, o promotor procura construir uma cronologia dos fatos que

compõem o crime, propiciando uma reflexão na qual fique caracterizada a intenção de matar por

parte do réu. Para tanto, ele usa expressões como “problemas começaram na parte da manhã”,

“Segundo a polícia foi às 19 horas” e “esse tempo todo”. Considerando as categorias de tipos de

acordo propostas por Perelman (a do real e a do preferível), é possível perceber que a

argumentação do promotor, ativada nesse trecho acima, é fundamentada pela articulação desses

dois tipos de acordo, mais especificamente, das duas subcategorias de presunção da sensatez (na

dimensão da categoria do real), que se atém ao caráter sensato das ações humanas, e de lugar-

comum (do universo do preferível). A presunção da sensatez implica que, para não ser visto com

menor nível de responsabilidade pela morte da vítima, o réu deveria ter buscado se acalmar e

pedido auxílio à polícia para “resolver esse problema”. Além disso, é lugar-comum crer que,

decorrido o tempo de uma manhã até o anoitecer, o réu poderia ter se acalmado a ponto de evitar

o crime. Para arrematar essa estratégia, o promotor enuncia (194), por meio do que,

provavelmente por considerar que a testemunha desconheça as implicações de um acusado ter

uma arma em punho ou na cintura, por exemplo, tenta configurar a intenção do réu de matar a

vítima e só não logra êxito porque a testemunha responde

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(194a): Não. Ele estava com a arma na cintura.

Feita essa investida, o promotor articula novo jogo argumentativo efetivado através de

quinze perguntas seguidas de uma asserção, quais sejam,

(195): No momento dos disparos, a vítima estava dentro da garagem? (196): Estava? (197): Qual era o endereço? (198): Engraçado que a vítima caiu bem no meio da rua. Como a senhora fala que ela estava na garagem? (199): Onde fica a garagem da casa da senhora? A senhora falou que a garagem fica na frente da casa? (200): Eu sei. Mas olha, aqui, minha senhora. O corpo esta aqui, ó. O corpo está coberto com o lençol aqui, ó (mostrando na foto nos autos). Onde está a garagem em que ele estava no momento em que foi baleado? (201): Ele tomou o tiro lá? (202): E por que a gente não vê o corpo dele lá? (203): A senhora viu o momento em que o réu deu o tiro? (204): A vítima estava na rua? (205): Ele estava do lado de fora do imóvel? (206): Não estava lá dentro da garagem não? (207): A vítima estava se afastando da casa de vocês, quando foi baleada? (208): Então, ele não estava se afastando? (209): Então como a senhora explica que o corpo está aqui, no meio da rua, do outro lado da rua, inclusive? (210): O corpo caiu aqui, ninguém arredou o corpo, ninguém encostou a mão...

Nesse bloco de perguntas, o promotor problematiza acerca do local em que a vítima

estava ao ser baleada, já que esse fato é objeto de acordo, tal como fala Perelman, e sobre o qual

recai maiores esforços argumentativos. Como os operadores do Direito, nesse caso em tela,

digladiam no eixo atenuante / agravante, se a vítima tiver invadido a propriedade do réu, terá

favorecido o crime, o que constitui uma atenuante. Como se pode ver, na busca de circunstâncias

agravantes, o promotor tem por meta levar a depoente a confirmar que a vítima estava fora desse

lugar, ao ser morta. Assim, o promotor enuncia a pergunta (195) que, em vez de abordar algo

como “Onde a vítima estava, quando foi atingida?”, já traz explícita uma direção de resposta (“a

vítima estava dentro da garagem”), que é seguida pela depoente que diz

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(195a): Estava.

Entretanto, diante de (195a), o promotor não dá prosseguimento ao tema, pois, com (196),

ele repete a resposta da depoente, sob a forma de pergunta, para que ela repita a resposta dada.

Essa é uma estratégia comumente utilizada quando paira algum tipo de dúvida sobre a resposta,

seja porque não foi bem entendida, seja porque não foi ouvida direito ou porque se quer

questionar aquilo que foi dito. Assim, considerando o lugar do qual o promotor enuncia, é de

esperar que, por trás de (196), haja uma manobra argumentativa, por meio da problematização.

Dito de outra forma, o que poderia, do ponto de vista da depoente, ser uma solução acerca do

local em que estava a vítima, passa a ser um problema com sérias implicações argumentativas, do

ponto de vista da acusação.

Diante da resposta,

(196a): Estava próximo à garagem.

o promotor desvia o assunto, por meio de (197), para retomá-lo com (198), desconsiderando

(196a), objetivando explicitar aquilo que ele pretende que seja uma contradição, que pode levar o

testemunho ao descrédito e, por conseguinte, à derrocada da estratégia da defesa de construir um

quadro atenuante para o crime. Em resposta, a testemunha diz

(198a): Você pode observar... Você pode observar... Deixa eu ver aqui... (folheando os autos, mostrando uma foto). Minha casa. Essa aqui onde eles arrumaram o portão, só prenderam ele com uma grade...

Para evitar novos ataques a esse ponto e, de alguma forma, atrapalhar a investida da

acusação, a testemunha poderia ter dito algo como “Eu disse que a vítima estava próximo à

garagem e não dentro dela”. No entanto, com (198a), mesmo diante da ironia do promotor ao

dizer “Engraçado que a vítima caiu bem no meio da rua”, ela não diz nada de relevante, deixando

espaço para novo ataque da acusação, a quem ela chama de “Você”, contrariando orientação do

componente psicossocial (ou, visto da perspectiva da TAF, as condições preparatórias para a

enunciação) desse contrato sociolinguageiro, segundo a qual as expressões de tratamento devem

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revelar a formalidade, o distanciamento, a polidez e a ausência de intimidade entre todos os

interlocutores. Essa quebra de protocolo, muitas vezes, é vista ora como desrespeito, arrogância,

ora como nervosismo, por parte de quem a comete, o que tende a dificultar-lhe o projeto

argumentativo, em virtude da construção de um ethos desprivilegiado socialmente. Antes, então,

que a depoente conclua sua fala, o promotor engendra (199), optendo por resposta

(198a): É porque nós construímos uma garagem, mas não colocamos o portão grande, colocamos só o pequeno porque não tinha dinheiro na época.

Como aquilo que a depoente diz não atende ao conteúdo proposicional da pergunta,

novamente se abre espaço para que o promotor articule a série de (200) a (210), compondo um

quadro argumentativo que pode ser explicitado assim:

EC1= P1 (a depoente diz que vítima foi morta na garagem) EC2 = P2 (o corpo estava no meio da rua) EC3 = P3 (ninguém mexeu no corpo) e

SE P 1, P 2 e P 3 LOGO P4 (a testemunha comete uma incompatibilidade) Uma vez fragilizado o argumento de que a vítima provocou o crime, a acusação passa a

discutir as partes do corpo da vítima que foram atingidas pelos tiros, como se vê no bloco a

seguir.

(211): Ele estava em direção ao réu ou estava parado? (212): Ele veio andando e falando isso? Na direção do réu? (213): Agora, como é que os médicos dizem que a vítima tomou quatro tiros pelas costas? E um na cabeça, pelas costas? (214): Então, os médicos estão mentindo aqui? (215): Então, a senhora não tem explicação para esse laudo que está mencionando que ele tomou tiro pelas costas? (216): A senhora tem certeza do que viu? (217): A senhora tinha ingerido bebida alcoólica? (218): Enxerga bem?

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Do ponto de vista do conteúdo proposicional, a estratégia do promotor, com essas

indagações, é recriar a cena do crime, descrevendo a posição do réu e da vítima, um em relação

ao outro. Mais uma vez, não se trata de apenas obter informações, uma vez que existem nos autos

tanto o boletim de ocorrência policial, acompanhado de fotos, quanto o laudo pericial que

apresenta o instrumento do crime e os lugares do corpo da vítima que foram atingidos. Ao

analisar as perguntas (211) e (212), pode-se inferir as respostas obtidas, tal como preconiza a

teoria da problematologia, o que nos leva a pensar que, agindo de modo argumentativo, o

promotor levou a depoente a dar as seguintes respostas, reafirmando o que ela já havia dito,

quando interrogada pela advogada de defesa:

(211a): Ele estava com a mão para trás e já veio falando “Eu vou te matar. Eu vim para te matar”. (212a): Na direção do réu.

Como a testemunha segue exatamente o caminho pretendido pelo promotor, ele enuncia a

(213), através da qual joga com valores de credibilidade. Sabendo que os médicos legistas

possuem legitimidade para fazer essas descrições, possuindo alto grau de credibilidade devido a

sua fé pública (juris tantum26), bem como considerando que a testemunha é esposa do réu e que,

por isso, pode propender a prestar informações tendenciosas, o promotor pergunta (213) com a

intenção clara de desacreditar a informação da depoente, através do seguinte argumento de

incompatibilidade:

EC1= P1 (a depoente diz que vítima estava de frente para o réu) EC2 = P2 (os médicos legistas dizem que a vítima foi alvejada pelas costas) EC3 = P3 (os médicos legistas possuem maior credibilidade)

SE P 1, P 2 e P 3 LOGO P4 (a testemunha comete uma incompatibilidade)

26 Segundo a norma processual, trata-se de um direito relativo, uma vez que ele admite prova em contrário. Ou seja, não é verdade suma, pois pode ser questionado, desde que se apresentem provas técnicas em contrário. No entanto, um laudo pericial goza de alto grau de credibilidade, por possuir natureza técnica.

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O fato de a depoente responder

(213a): Ele não tomou nenhum tiro pelas costas.

não muda a situação argumentativa, pois, para contestar o laudo pericial, não basta alegar, mas há

que se ter prova em contrário. Como esse não era o caso, no momento, o promotor insiste nessa

perspectiva por meio de (214) e (215). Diante da resistência da depoente, que responde

(214a): Eu não sei te dizer. Mas eu estava lá e ele não tomou tiro assim. (215a): Não.

o promotor finaliza sua arguição com (216) a (218), ao que a depoente responde afirmativamente.

Mais especificamente, as perguntas (217) e (218) atuam na consolidação da estratégia

argumentativa de construir um quadro de agravantes para o crime27. Com essas duas últimas

perguntas, o promotor tenta construir um argumento quase-lógico e, por meio das máximas

conversacionais, favorecer a ridicularização da depoente. Afinal, se ela não ingeriu bebida

alcoólica, se enxerga bem, se diz ter certeza do que viu e o que ela disse ter visto contradiz um

laudo pericial, então ela mente. E é essa a conclusão que a acusação busca despertar no espírito

do julgador, por meio de algo próximo de

EC1= P1 (a depoente diz que vítima não foi alvejada pelas costas) EC2 = P2 (a depoente vai contra o laudo dos médicos legistas) EC3 = P3 (a depoente não ingeriu bebida alcoólica) EC4 = P4 (a depoente enxerga bem)

SE P 1, P 2 e P 3 LOGO P4 (a testemunha comete uma incompatibilidade) 27 Para o Direito Penal, alvejar, como neste caso, a vítima nas costas, com cinco tiros, indica o animus necandi (vontade de matar), sendo, portanto, um fator agravante, uma vez que isso representa menor possibilidade de defesa da vítima.

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Com essa estratégia, percebe-se que há, por parte do promotor, uma busca de

racionalidade que possa servir como ideal de verdade, por buscar atribuir às suas posições um

caráter universal, através do qual consiga exercer influência sobre o juiz, como um ideal de

persuasão, de maneira que seja produzido um fazer crer no espírito do julgador, conduzindo-o à

prolação de uma sentença favorável à tese defendida pela acusação.

Vendo essa estratégia pela perspectiva de Grice, tomando por referência a máxima da

qualidade, espera-se que os interlocutores digam aquilo que acreditam ser verdadeiro, e o fato de

algum deles violar essa máxima gera uma implicatura conversacional que coloca sob suspeição o

projeto de palavra daquele que a comete. Como, de partida, o laudo pericial possui maior

credibilidade do que o depoimento da esposa do réu, e sabendo que o ridículo ocorre quando uma

afirmação entra em desacordo com outra mais aceita, então a depoente fica, pelas perguntas (217)

e (218), exposta ao ridículo por afirmar, com pretensa lucidez (não ingeriu bebida alcoólica) e

segurança (enxerga bem), algo que contradiz um parecer técnico sem lhe provar a invalidade. Daí

porque o promotor encerra a sua participação na oitiva, dizendo-se satisfeito com o que ouviu.

Aproximando essa estratégia da perspectiva aristotélica, o promotor usa no seu logos um

conjunto de perguntas que levam a depoente a oferecer determinados tipos de respostas que serão

novamente problematizadas. Esse jogo de problematização coloca em evidência alguns topoï que

revelam um conjunto de valores socialmente aceitos como melhores que outros (por exemplo, a

maior credibilidade atribuída ao laudo que ao depoimento da depoente), constituindo uma espécie

de entrave para a validade das afirmações feitas pela testemunha. Esse entrave passa, então, a

atuar na construção de um ethos negativo da depoente, na medida em que colocada em

descrédito.

No entanto, a despeito de todos esses esforços envidados pelos envolvidos nessa oitiva,

como se trata de objeto sobre o qual recai a argumentação, nada significa certeza dos fatos, mas

apenas que um ou outro, ao final da lide, terá escolhida a sua tese jurídica como a mais

verossímil. O fato de gozar de maior credibilidade ou de a parte ré não ter demonstrado a

invalidade, nada disso faz com que o laudo seja necessariamente verdadeiro. Ou, como no caso

do Direito Penal, cujas sentenças partem da participação popular presente no corpo de jurados,

em que, muitas vezes, não se escolhe necessariamente a tese mais verossímil, mas aquela que traz

consigo o reflexo de aspirações sociais ou de apelos da opinião pública, como muito se tem visto

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em sessões do júri. Em síntese, não escolhe por uma verdade factual, mas por uma posição mais

verossímil, pairando, por isso, sobre as verdades dos autos algum grau de dúvida.

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4 – CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esperamos ter mostrado, a partir do quadro teórico apresentado, como o uso da pergunta,

nessas três situações comunicativas do discurso jurídico, aqui estudadas, constitui uma

importante estratégia na construção e efetivação do plano argumentativo de cada uma das partes

processuais (autor, réu e julgador). Ao interpelar o depoente, o operador do direito não quer

apenas obter informações, detalhes acerca do fato jurídico em discussão. Mais que isso, ele busca

obter respostas que, pela afirmação ou negação (conforme o caso), contribuam para a sua

investida argumentativa em favor da aceitação da sua tese jurídica. Em outros termos, o embate

jurídico acontece pelo viés da dimensão problematológica da linguagem, ora por meio de

orientações de resposta contidas na pergunta, ora pela dimensão da pergunta recuperável através

da resposta, mas, sobretudo, pela recursividade que esse jogo de pergunta e resposta possibilita,

principalmente porque ele nasce de uma situação de conflito de interesses e é esse mesmo

conflito que o alimenta.

Nessa medida, acreditamos ter comprovado nossa hipótese de que a pergunta está na

matriz da dimensão argumentativa nessas situações comunicativas do discurso jurídico. Afinal, o

ato de pergunta, sendo obrigatoriamente um ato de fala direto, ou seja, um enunciado cujo sentido

está próximo do sentido da sentença, nesse tipo de discurso, possibilita a derivação de outros atos

de fala que, em conjunto com os demais atos de fala e com as dimensões pragmáticas da situação

comunicativa, favorecem a derivação de atos de fala indiretos, cujos efeitos de sentido resultam

em estratégias argumentativas.

Pelo fato de a pergunta ser um ato diretivo, ou seja, para o alocutário realizar (a resposta)

no futuro (depois da pergunta), ela pode favorecer a realização de um tipo de estratégia

argumentativa muito interessante. Por meio de uma sequência de perguntas, o locutor apresenta

algumas premissas, ficando a conclusão como uma espécie de resposta mais esperada, mais

provável. Essa é uma forma de prender o alocutário no plano argumentativo do locutor, de tal

sorte que, ao dar a resposta, o alocutário (implícita ou explicitamente conforme o caso e o

contrato comunicativo), concorda com o raciocínio do locutor e essa concordância implica

aceitação e validação da tese colocada pelo locutor e, por conseguinte, a derrocada argumentativa

do alocutário. É isso que, por exemplo, o promotor faz quando pergunta à testemunha (209)

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“Então como a senhora explica que o corpo está aqui, no meio da rua, do outro lado da rua,

inclusive?”. É como se a conclusão não tivesse sido induzida pelo locutor e a responsabilidade da

sua enunciação passasse a ser única e exclusiva do alocutário, a ponto de o locutor poder dizer

“Você mesmo disse X”, tendo X o efeito de sentido de concordância com a tese do outro. No

caso do discurso jurídico, concordar com uma ou outra hipótese do outro significa admiti-lo

como vencedor daquele debate.

Além disso, foi possível perceber que, nem sempre, pergunta-se para que o outro saiba a

resposta. Às vezes, em uma oitiva, deixar o alocutário sem saber o que dizer, sem saída, é bem

mais lucrativo do ponto de vista argumentativo do que ter dele uma boa resposta. Afinal, em se

tratando de uma disputa, tirar os movimentos e as possibilidades do outro é sinônimo de vitória,

ainda que parcial. Dessa forma, no universo de disputa argumentativa, às vezes, uma pergunta é

feita para não se obter resposta válida, tal como o promotor fez na última oitiva analisada ao

perguntar “Então, a senhora não tem explicação para esse laudo que está mencionando que ele

tomou tiro pelas costas?” (215) e obter um “não” como resposta.

Assim, ao conhecerem de modo sistemático as estratégias argumentativas engendradas no

interior do discurso jurídico, os operadores do direito podem aprimorar suas técnicas e avançar

para outras estratégias além daquelas que buscam validação em topoi excessivamente culturais,

como é o caso das sessões do tribunal do júri, situação comunicativa em que a patemização dos

discursos e a teatralidade argumentativa ganham maior expressão, em virtude de o corpo de

jurados não ter a necessidade de ser constituído por pessoas conhecedoras das matérias do

Direito. Por isso, os operadores do direito comumente se valem de lugares comuns e do conjunto

de crenças e valores socialmente constituídos para alcançarem julgamentos favoráveis. A sessão

de tribunal do júri é, inclusive, de todas as situações comunicativas aqui estudadas, aquela que

mais campo oferece para a enunciação dos mais variados tipos de perguntas, com os mais

diversos matizes argumentativos, justamente devido a essa teatralidade que lhe é peculiar.

Com relação à prática forense, foi possível verificar que o juiz ouve as perguntas e as

respectivas respostas e dita para o escrevente judicial aquilo que passará a constar do termo de

audiência. Entretanto, nesse processo de transposição da fala para a escrita, muitos aspectos

como, por exemplo, a repetição da pergunta – seja total ou parcialmente expressa, como

aconteceu em (195) e (196) – são apagados e, com isso, muitos aspectos da dimensão

argumentativa são perdidos. Talvez, uma solução seja a gravação das oitivas, de modo que os

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operadores do Direito possam aproveitar com mais detalhamento a riqueza do material

argumentativo que é produzido nessas situações comunicativas, tal como já vem acontecendo em

determinados eventos da Justiça Especial.

Com relação aos domínios das teorias sobre a argumentação, conforme dito aqui,

assumimos uma postura antropofágica em relação às teorias adotadas e, como pudemos ver, há

entre elas uma complementariedade, na medida em que, aplicadas em conjunto, favorecem a

compreensão mais ampla do objeto que se quer conhecer. Estudar a argumentação, levando em

conta a conjugação da dimensão linguística, com as condições pragmáticas, a natureza dos

argumentos e a relação do orador com seu auditório e o conjunto de crenças e valores que

compõem a cultura na qual se argumenta, pode oferecer melhores condições para se compreender

essa prática. Sem dúvida, foi essa postura que nos possibilitou perceber a pergunta como a

produtiva estratégia argumentativa que é.

Da perspectiva da Análise do Discurso, parece-nos bastante claro o quanto a AD oferece

importante suporte teórico de ampla aplicação, podendo auxiliar muitas outras áreas do

conhecimento humano, tanto pela validade de seu instrumental teórico quanto pela alta

interdisciplinaridade que o caracteriza. Ao interrelacionar as dimensões físicas

(comunicacionais), psicossociais e intencionais que configuram os discursos e que são por ele

configuradas, a AD dá conta de responder a questões como, por exemplo, aquelas atinentes à

capacidade dos falantes de criarem sempre novos sentidos a partir de um mesmo ato de fala. A

resposta que a AD oferece é de que os efeitos de sentido, que são múltiplos e variáveis, resultam

da conjugação do enunciado com a pragmática da enunciação (que engloba desde a dimensão

física até a linguística, passando pela psicossocial e a intencional – nesse mister, a teoria

semiolinguística apresenta uma formulação muito sólida), o que resulta em uma infinidade de

possibilidades de usos e de sentidos que aumentam em uma progressão geométrica.

Retomando os nossos objetivos propostos para este estudo, após analisarmos um número

considerável – mais de duzentas perguntas, somente no quadro de análise –, checando-lhes os

efeitos de sentido proveniente dos usos nas três situações comunicativas do discurso jurídico, e

suas implicações para o plano argumentativo nesses eventos jurídicos, podemos perceber que os

fatores que propiciam o funcionamento desse ato de fala como uma estratégia discursiva nascem

da imbricação dos elementos pragmáticos com a perspectiva argumentativa e com os lugares

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enunciativos, isto é, aquilo que chamamos, consoante Mari (2007)28, de reorientação pragmática.

Dito de outra maneira, um ato de fala, sendo uma ação situada em um contexto enunciativo

norteado por diretrizes pragmáticas, pode derivar diversos atos de fala indiretos, quando é

acionado algum tipo de reorientação pragmática. É, portanto, a força ilocucional, em virtude,

mais especificamente, das condições preparatórias e do conteúdo proposicional, que possibilita o

funcionamento da pergunta como uma estratégia argumentativa.

Além da Teoria dos Atos de Fala, encontramos na teoria da problematologia importante

aporte teórico que nos possibilitou compreender um pouco mais do nosso objeto. Ao apontar a

perspectiva problematológica, essa teoria favoreceu a compreensão de que o caráter recursivo da

pergunta alimenta o debate jurídico, cujo objeto é o conflito de interesses, motivo pelo qual se

torna ambiente eminentemente argumentativo. Aliada aos pressupostos acerca da

intencionalidade, essa teoria possibilita revelar nuances muito especiais próprias do jogo de

pergunta e resposta.

Relembramos que dissemos perceber o discurso jurídico como aquele cuja lógica não se

reduz à reprodução da lógica formal, já que se configura marcadamente pela lógica da

argumentação. Dissemos também que é na prática desse discurso que seus atores são colocados

em mise-en-scène, construindo uma realidade jurídica através da qual, para cada discussão

judicial, são construídas as noções de justiça, de equidade, de razoabilidade e de aceitabilidade

das decisões alcançadas. Nesse ambiente de papéis sociais diversos – embora especificados pela

dimensão linguageira – e de interesses conflitantes, a dimensão problematológica da linguagem

assume expressão mais evidente, atuando na efetivação dessa dialética discursiva, objetivando

provocar, por meio dos atos de fala de pergunta e resposta, algo que atue como ações típicas

desse universo discursivo (julgar, explicar, contrapor, defender, acusar, dentre outras), compondo

a perspectiva argumentativa dos embates jurídicos observáveis nas situações comunicativas aqui

estudadas.

28 Em material oferecido por Mari em ocasião da disciplina “Seminários de Estudos Avançados: Linguagem e Intencionalidade” (02/05/2007)

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ANEXOS A- Interrogatório judicial

Escrevente: Você chama R de tal? Réu: Chamo Escrevente: Nasceu em Belo Horizonte? Réu: Não. Escrevente: Sua data de nascimento? Réu: 22/02/1983 Escrevente: O senhor Fulano de Tal é seu pai? Réu: É Escrevente: Seu endereço por favor? Réu: (silêncio) Escrevente: R, seu endereço por favor? Réu: Ah, meu endereço é lá na casa de minha sogra, Rua 4, no Bairro São Paulo. Escrevente: Quando você for solto, você vai para lá? Réu: É pra lá. Escrevente: Então tá. Rua? Réu: Rua 4. Escrevente: Número? Réu: Número 102. Escrevente: Você tem estudo? Réu: Tenho. Escrevente: Estudou até que série? Réu: Segundo grau completo.

Terminada a qualificação, o juiz disse ao réu que ele seria interrogado acerca do processo,

esclarecendo que ele tem o direito de ficar calado, sem que isso interfira na sua defesa. Em

seguida, o juiz leu para o réu a denúncia do Ministério Público, na qual o acusado configura-se

como um dos autores do homicídio de José, em homicídio duplamente qualificado. Ao terminar a

leitura, segue o IR, agora pelo juiz.

Juiz: Isso que eu li para você aqui é verdade? Réu: O fato é, mas não fui que atirei. O fato em si, algumas coisas são verdade, mas não tenho nada com isso. Juiz: Você disse que o fato não aconteceu do jeito que está aqui?

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Réu: Não. Praticamente sim, eu... eu estava no local, na hora, estava na favela, frequentava lá... O pessoal que, no caso, que matou ele, nenhum é deles que está constando aí. Juiz: Você estava no momento em que ele foi atingido? Réu: Estava, no momento, perto. Não só eu, mas várias pessoas. Juiz: A vítima chegou lá onde você estava? Réu: É. O que tinha era uma boca, a favela era uma boca. Lá estava cheio de gente e como eu frequentava lá na época, ele chegou e começou a conversar com Lilico e com esse Cigano que está escrito aí. Ele chegou pedindo uma arma que era para matar não sei lá quem. Eles começaram a discutir e eles encheram ele de tiro lá, mataram ele lá e todo mundo saiu correndo. Juiz: E a favela como é que chama? Réu: Chamava Vietnã. Parece que já acabou também. Por causa que eu tenho mais processo, né? Infelizmente, né? Por causa desses processos, tudo eles joga nas costas da gente. Juiz: Nós vamos chegar lá. A favela se chamava Vietnã, né? Réu: É. Juiz: E você estava na companhia de quem? Réu: Ah! Estava eu, um tal de Cláudio, Edu, tinha um tanto de gente lá. Juiz: E o Cigano estava lá? Réu: Estava. Estava Cigano... Juiz: Garrincha? Réu: Não. Garrincha não. Estava um tal de Lilico. Os dois que matou: Cigano e Lilico. Cigano já até morreu já. Juiz: Garrincha, então, não estava? Réu: Não. Ele também já é finado. Tinha mulher, menino. A rua estava cheia de gente, umas cinco, cinco e meia da tarde, mais ou menos. Juiz: Bom, então, lá chegou o José, pedindo uma arma. Ele pediu a arma para quem? Réu: Para o Cigano. Juiz: Cigano? Réu: É. Sei lá estava. A Rua estava cheia, não dava para compreender bem a discussão não. Só escutava “Num sei o que”, só “Ah! Me dá um revólver aí, para eu matar fulano” que não sei o quê. Aí começou o bate-boca deles lá e os caras arrancou o revólver e enfumaçou ele com um muncado de tiro. Juiz: O José? Réu: Ele mesmo. Juiz: Ele falou que queria matar alguém? Réu: Ele contou, conversando, que queria matar não sei quem lá., que tinha discutido com um pessoal lá. Ele discutiu com os dois: “É que eu sei de um muncado de coisa aí” e tal e os dois encheu ele de bala. Juiz: Cigano não queria emprestar a arma para ele. É isso? Réu: Acho que ia. Eles era tudo amigo, tudo parceiro. Eles vendia droga tudo lá, era tudo amigo, andava tudo junto. Juiz: Eles discutiram porque ele pediu a arma? Réu:É. Ele pediu a arma e eles não quis emprestar, aí ele falou “Ah! Você está topando, eu mato você também”. Aí os cara matou ele. Na mesma hora que ele queria a arma, ele ameaçou os cara. Juiz: Ele ameaçou o Cigano?

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Réu: É. Ele ameaçou os cara. Juiz: O Cigano, então, atirou na vítima? Réu: É, uai. Na hora que ameaçou, ele atirou. Juiz: Foi só o Cigano que atirou? Réu: É. Ele e o Lilico. Eu vi só o primeiro tiro porque eu sai correndo. Juiz: Lilico, então, estava lá, junto com o Cigano? Réu: Estava. Eles estavam lá o bolinho lá num canto, vendendo droga, perto do campo. Juiz: Você está dizendo para mim que a vítima era amiga do Cigano? Réu: Era. Eles eram amigos, dividiam a boca lá. Todo mundo conhecia todo mundo lá Juiz: Você, então, não efetuou nenhum disparo? Réu: Não. Juiz: Você ouviu os primeiros disparos e saiu correndo? Réu: Saí. Todo mundo saiu correndo na hora que eles começaram a dar tiro. Tem várias testemunhas lá... Juiz: Mais alguém atirou na vítima? Réu: Não. Os primeiros que eu vi foram eles. Juiz: E você já conhecia a vítima? Réu: Já. Ele era conhecido lá, que matava muita gente lá. Juiz: Tinha alguma coisa contra ele? Já se desentendeu com ele? Réu:Não. Nunca não. Ele tinha o apelido de Loirinho. Juiz: E o Cigano e o Lilico? Eles vendiam drogas lá na favela? Réu:Vendiam. Eles estavam na boca, vendendo. O senhor deve achar estranho e dizer “É. Ele diz que não tem envolvimento, mas sabe de tudo”. Mas favela é um trem muito... todo mundo conhece todo mundo. E eu não sou santo porque eu tenho uns outros processos aí, já tive envolvimento com o crime mesmo, então... Juiz: Eu vou te ouvir daqui a pouquinho sobre esses processos, viu? Você conhece as pessoas Carlos de Tal, Leonardo de Tal e Leandro de Tal? Réu: Não senhor. Juiz: Você sabe por que estão dizendo que foi você que cometeu esse crime? Réu:Lá na delegacia eles me perguntaram, no processo da Vietnã, quando eu fui preso, recapturado, “você sabe quem matou fulano de Tal”? Eu disse “Uai, aconteceu isso e isso”, eu estava no local... Juiz: Sabe por que estão dizendo que foi você que matou? Réu: É porque, infelizmente, como eu falei com o senhor, eu tenho fama, né? Eu não sou santo, tenho outros processo e eles não tem em quem enfiar essa, então, manda para cima de mim. É só perguntar lá na favela que todo mundo sabe quem foi que matou. Juiz: Você responde a quantos processos, sem ser esse aqui, tirando esse aqui? Réu:Dois. Já fui condenado em um... Juiz:Você já foi condenado em um e os dois são por homicídio? Réu:Não. Um por porte de arma, que já fui condenado... Juiz:Fora este aqui, você tem um de homicídio e um de porte de arma. É isso? Réu:É. Eu estou cumprindo o de porte de arma. Juiz: Você pegou qual pena no homicídio? Réu: Dezessete anos. Juiz: E no porte de arma?

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Réu: Dois anos e dois meses. Juiz:Você está preso há quanto tempo? Réu: Dois anos. Juiz: Já cumpriu dois anos? Réu: Não, contando tudo, são três anos e nove meses. Juiz:Como foi isso? Réu: Um ano e nove meses depois que eu fui preso, recebi um benefício e não voltei. Fui para a Bahia, aí fui recapturado e já cumpri mais dois anos da pena. Juiz: Quer acrescentar mais alguma coisa? Tem mais alguma coisa a dizer? Réu: Quero dizer só que, infelizmente, delegacia... Eu tive um problema com uns policiais aí, eu fui para a Bahia por causa disso, e tudo que acontece é R, é R, é R. Só que já fiz coisa mesmo, já roubei, já andei armado, só que não cometi homicídio, não tem testemunha de que eu fiz isso, ninguém falou que fui eu.

Após interrogar o réu, o juiz passou a palavra ao representante do Ministério Público.

Promotor: O senhor já teve envolvimento em assalto? Réu: Tive. Promotor: Foi condenado? Réu: Não. Promotor: Quantos assaltos? Réu: Um assalto. Promotor: Por porte de arma, quantas vezes você foi preso? Réu: Duas vezes. Promotor: Esse Cigano já morreu também? Réu: Já morreu. Promotor: Você estava lá no local, uma boca de fumo, né? O que você estava fazendo? Réu: Eu tinha... Igual eu falei para o senhor, eu tinha, eu tive envolvimento com o crime, eu tinha amizade, eu conhecia... Promotor: Você estava vendendo droga? Réu: Não. Eu estava só vendo uns amigos, os conhecidos meus eram muitos. Eu ia lá constantemente. Promotor: Você contou na delegacia várias vezes como tudo aconteceu, né? Você foi pressionado a contar? Réu: Não. Eu estava lá, dando depoimento do crime que eu fui condenado, aí eles me perguntaram “Você sabe alguma coisa da morte de Loirinho?”. Aí eu falei “Foi isso, isso e isso”. Aí, eles falaram que eu era incriminado, que eu estava envolvido, colocaram aí isso. Promotor: Essa assinatura é sua? Réu: É minha, sim senhor. Promotor: Onde foi que você deu esse depoimento? Réu: Na delegacia. Eu expliquei o crime do mesmo jeito que eu estou contando aqui. Promotor: Você conta aqui no seu depoimento na delegacia que você estava na

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boca de fumo, quando Loirinho chegou, dizendo que ia matar uma pessoa e, como você sabia que essa pessoa era gente boa, você resolveu acabar com o Loirinho, sendo acompanhado por Cigano e Garrincha. Você teria confessado para a polícia que foi você que efetuou o disparo? Réu: Eu vou dar um depoimento com ... Ô, Doutor, eu tenho o segundo grau completo, formado em eletrônica, não sou um leigo para dar um depoimento assim. Eu contei tudo direitinho, igual estou contando aqui, mas eu não disse que fui eu que matei não. Promotor: Você foi obrigado a assinar o depoimento? Réu: Não. Eu não fui obrigado não. Eu dei meu depoimento sozinho, não tinha advogado para me acompanhar... Promotor: O depoimento foi lido para você? Réu: Ler eles leram, mas eu passei batido, sei lá. Eu não dei depoimento de que eu matei ninguém. Eu vou chegar numa delegacia e falar “Eu matei”? Eu não. Nem se eu tivesse matado, eu falava que eu não tinha matado. Ainda mais um crime que eu não fiz. Expliquei a situação, contei os fatos. Todo mundo lá sabe quem foi, uai.

Em seguida, foi dada a palavra ao advogado do réu.

Advogado do réu: O seu depoimento foi lido para você, antes de você assinar? Réu: Foi. Eu estava preso lá no depoimento. Advogado do réu: Você estava com seu advogado? Réu: Não. Eu não tinha contato com advogado na época e eu eles leram o depoimento lá para mim. Advogado do réu: Por que você foi para a Bahia? Réu: Eu fui porque eu tive problema com a polícia, eu fui ameaçado. Fui embora para a Bahia para trabalhar

Sem mais nada a ser perguntado, o interrogatório foi encerrado e feita a ata que foi

assinada pelas partes e pelo juiz.

B- Audiência de instrução e julgamento – área cível

Juiz: Como foi que tudo aconteceu? Autor: Era umas cinco horas da tarde, eu estava vindo na Avenida dos Andradas, eu e minha esposa, a uns 50 – 55 km/h, quando a motorista atravessou com o carro, sem olhar. Juiz: Sua esposa estava na garupa?

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Autor: Estava sim. A gente estava voltando para casa. Juiz: A que horas foi isso? Autor: Por volta das cinco e meia. Eu peguei ela no serviço e a gente estava indo embora. Juiz: Você transitava em que sentido? Centro – bairro ou bairro – centro? Autor: Centro – bairro. Juiz: Como foi o acidente? Autor: Foi como eu disse. Eu vinha na pista da direita, tinha um fusca parando, eu fui para a pista mais da esquerda, quando apareceu o carro de uma vez, saindo da Rua Mariano de Abreu. Juiz: Em que lugar do carro a moto bateu? Autor: Bateu do paralama até perto da porta. Juiz: A motorista chegou a frear? Autor: Veio de uma vez. Juiz: Ela freou? Autor: Não. Ela atravessou direto, sem parar nem olhar. Juiz: No local em que ela saiu tinha placa de parada obrigatória? Autor: Tem sim. Juiz: No acidente, você se machucou? Alguém se machucou? Autor: Eu machuquei o braço, a perna. Minha mulher machucou muito. Ela teve fratura exposta na perna. Juiz: Ela foi atendida em hospital? Autor: Foi. Juiz: Que hospital? Autor: No SEMPER. Juiz: Recebeu alta quando? Autor: Uma semana depois. Juiz: Chegou a ficar engessada? Autor: Ficou, teve de colocar os pinos de metal, por causa da fratura exposta. Juiz: Quanto tempo ela ficou tratando? Autor: Três meses. Juiz: Ela ficou sem trabalhar? Autor: Ficou sim. Juiz: Ela pediu o INSS? Autor: Não senhor. Juiz: Ela não recebeu do INSS? Autor: Não. Ela não tinha. Juiz: Por quê? Autor: A patroa dela não registrou ela no INSS. Juiz: Você usava a moto para trabalho? Autor: sim. Ela é meu meio de trabalho. Juiz: A seguradora pagou o conserto? Autor: Pagou. Juiz: Com que tempo? Autor: Um mês depois do acidente. A moto ficou parada esse tempo todo. Juiz: Você estava na velocidade de 60 km/h? Autor: Não. Estava a uns 50 – 55 km/h. Juiz: Que outros prejuízos o senhor teve? Autor: Tive de pagar transporte, carro fretado, para levar minha mulher para o hospital.

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Com a dificuldade de trabalhar, minha mulher sem receber, fiquei sem recurso e tive de tomar dinheiro emprestado para pagar remédio e despesa com o tratamento dela. Juiz: Você contou com o salário da sua esposa? Autor: Não. Juiz: Quanto tempo ela ficou sem receber? Autor: Cinco meses. Juiz: O senhor trabalhou nesse período? Autor: Trabalhei. Juiz: Que transporte usou? Autor: Fiquei de ônibus, tomei moto dos outros emprestado. Juiz: E a sua esposa foi para o hospital de quê? Autor: De carro fretado. Juiz: Que mais prejuízos você teve? Autor: Como eu falei, eu tive de tomar dinheiro emprestado, atrasei conta de água, de luz, fiquei sem telefone, vendi coisa de casa. Foi isso.

O juiz passou a palavra ao advogado da ré.

Advogado da Ré: Tinha algum carro parado na faixa da direita? Autor: Parado não. Um fusca é que estava parando. Advogado da Ré: A que horas você bateu no carro? Autor: O acidente foi por volta das cinco e meia da tarde. Advogado da Ré: Por que o fusca estava parando, se a pista da avenida é preferencial? Autor: Eu não sei por que ele estava parando. Eu sei que ele estava estacionando, encostando. Advogado da Ré: Sua esposa voltou a trabalhar no mesmo local? Autor: Não. Advogado da Ré: No dia, ela estava trabalhando? Autor: Estava sim Advogado da Ré:O farol estava aceso? Autor: Estava. Advogado da Ré: Ficou aceso o tempo inteiro? Autor: Ficou até a moto bater e estragar tudo.

Terminada a inquirição ao autor, o juiz mandou que entrasse a ré, para ser ouvida.

Juiz: A senhora está sob o compromisso com a verdade, tá bom? Jura dizer a verdade? Ré: Sim, juro. Juiz: Como aconteceu o acidente? Ré: Eu ia pela Rua Mariano de Abreu, quando o motociclista veio feito louco e acertou meu carro. Eu sei que não tive culpa, não me sinto culpada. Juiz: Teve algum veículo que impedia sua visão? Ré: Um caminhão parado.

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Juiz: Onde? Ré: Do lado assim. Pela esquerda. Parado. Juiz: Na pista da direita? Ré: Não. Na esquerda. Juiz: Não entendi. Como na esquerda? Na contramão? Ré: Ele estava parado na esquerda. Quer que eu desenhe? Juiz: Sim, por favor. Tome aqui.

A ré desenha no papel dado pelo juiz que analisa o que foi desenhado e continua:

Juiz: A moto saiu paralela ao caminhão? Ré: Foi Juiz: Ao lado do caminhão? Ré: Acho que sim. Eu não vi a moto. Só sei que ela veio para cima de meu carro. Juiz: Onde a moto pegou no seu carro? Ré: Nossa! Pegou no paralama, na porta... Juiz: O veículo teve danos? Ré: Demais. Estragou todo do meu lado Juiz: A moto estragou? Ré: Um pouco. Estragou. Juiz: O que foi feito de negociação? Ré: Eu liguei para meu filho. A moto foi lá para casa até consertar. Juiz: A senhora acionou o seguro? Ré: Sim. Juiz: Nós fazemos seguro para, em caso de uma eventualidade, de não termos condições de arcar com os prejuízos, a seguradora cobrir por nós. Por que a senhora acha que o seguro honrou seu prejuízo? Ré: Porque nós acionamos. Juiz: A seguradora só paga se o segurado estiver errado. Por que a senhora acha que o seguro pagou? Ré: Porque somos clientes, porque pagamos por isso, porque não quer perder cliente. Juiz: Alguma pessoa machucou na hora? Ré: É. A esposa dele Juiz: Foi aquela mulher que se machucou na hora, no acidente? Ré: Parece que foi. Juiz: Com relação a outros gastos, os autores procuraram a senhora para receberem ajuda? Ré: Olha, nós demos nossos contatos, até resolver a moto. Eles, então, ligavam direto, incomodando minha família, todo dia querendo alguma coisa.

Como os advogados das partes não tinham perguntas a fazer, o juiz passou à oitiva

das testemunhas do autor.

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Juiz: O senhor deu a declaração de ter transportado a esposa do autor até o hospital SEMPER? Testemunha de acusação 1: Dei sim senhor. Juiz: Para que o senhor levou ela até lá? Testemunha de acusação 1: Para tratar da perna. Juiz: Por quanto tempo o senhor prestou esse serviço? Testemunha de acusação 1: Uns três meses mais ou menos. Juiz: Todo dia? Testemunha de acusação 1: Não. Só às terças-feiras. Juiz: O senhor a levou a outro lugar? Testemunha de acusação 1: Levei até a farmácia. Juiz: Para quê? Testemunha de acusação 1: Para fazer curativos e comprar remédios. Juiz: Quantas vezes? Testemunha de acusação 1: Umas quinze vezes. Juiz: Quanto o senhor cobrou por viagem? Testemunha de acusação 1: Para o hospital era R$37,00. Para a farmácia era R$15,00. Juiz: O autor pagava o senhor sempre à vista? Testemunha de acusação 1: Não. Ele ficou me devendo uns tempos, mas depois pagou tudo.

Mais uma vez, como os advogados das partes não tinham perguntas, a segunda

testemunha do autor foi ouvida.

Juiz: O senhor é amigo do autor? Testemunha de acusação 2: Somos conhecidos sim. Moramos vizinhos há muitos anos. Juiz: Isso impede o senhor de dizer a verdade? Testemunha de acusação 2: Não senhor. Juiz: Ele pediu dinheiro emprestado ao senhor? Testemunha de acusação 2: Pediu sim Juiz: Quanto foi? Testemunha de acusação 2: R$500,00. Juiz: Por que ele lhe pediu esse dinheiro? Testemunha de acusação 2: Ele disse que estava apertado por causa do acidente com eles. Juiz: Ele pagou ao senhor? Testemunha de acusação 2: Pagou sim. Juiz: O senhor sabe se ele pegou dinheiro emprestado com mais alguém? Testemunha de acusação 2: Ele disse para mim que tinha tomado emprestado para me pagar. Juiz: O senhor sabe em que a esposa dele trabalha? Testemunha de acusação 2: Ela é doméstica.

Nada mais a ser perguntado, a AIJ foi encerrada.

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C- Audiência de Instrução e Julgamento – área criminal

Juiz: Fulano, você é parente do acusado? Testemunha de acusação: Não. Juiz: E da vítima? Testemunha de acusação: Sou filho dele. Juiz: Você vai, então, responder às perguntas do Doutor Promotor de Justiça. O senhor tem a palavra, Doutor (dirigindo-se ao Promotor). Promotor: Fulano, você viu o crime? Você estava presente aos fatos? Testemunha de acusação: Estava presente. Só não vi ele atirando, mas vi ele, na hora em que eu cheguei, no momento, ele me apontou a arma e falou se eu viesse também, ele ia atirar em mim também. Juiz: Então, o senhor viu quando o réu atirou na vítima? Testemunha de acusação: É. Aí meu pai já estava caído lá na frente Promotor: Sabe por que motivo o réu baleou seu pai? Testemunha de acusação: Não. Fiquei sabendo que foi uma discussão, mas eu não fiquei ciente do que eles... do que aconteceu não. Promotor: Você sabe quem começou a discussão? Testemunha de acusação: Não. Fiquei sabendo que foi um tal de Baiano que estava junto com meu pai. Mas, só que meu pai estava junto, ele atirou nele também. Promotor: Nessa discussão envolveu a esposa da vítima também? Testemunha de acusação: Não, porque ela estava na casa da minha tia com a minha irmã. Promotor: E a mulher do réu estava presente? Testemunha de acusação: Eu não estava no momento que rolou a discussão não. Juiz: A esposa da vítima, então, não foi atingida porque não estava lá. É isso? Testemunha de acusação: Não. Eu não estava lá não. Juiz: O que o Promotor quer saber é se a esposa da vítima e a do réu foram envolvidas na discussão. Testemunha de acusação: Não. Eu não estava no momento da discussão não. Juiz: . Você não sabe por que você não estava lá. É isso? Testemunha de acusação: Não, porque eu não estava presente na hora do... Juiz: Então, você não sabe? Testemunha de acusação: Não. Não sei não. Promotor: Você não sabe se a mulher do réu foi envolvida também? Testemunha de acusação: Não. Também não. Promotor: Você sabe dizer se seu pai estava embriagado? Testemunha de acusação: Estava. Meu pai estava. Promotor: E o réu? Testemunha de acusação: O réu, eu não sei não. Promotor: Fisicamente, qual é a compleição do seu pai, hein? Era mais forte ou mais fraco que o réu? Testemunha de acusação: Ah! Meu pai tinha mais corpo que ele, era mais forte.

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Promotor: Seu pai estava armado naquele dia? Testemunha de acusação: Estava não. Promotor: Ele tinha o costume de andar armado? Testemunha de acusação: Não. Tinha não. Promotor: Seu pai tinha arma? Testemunha de acusação: Não. Nenhuma. Promotor: Além do seu pai e do Baiano, tinha mais alguém no local onde começou a discussão? Testemunha de acusação: Que eu saiba, não. Não tomei conhecimento disso não. Promotor: Baiano também estava embriagado? Testemunha de acusação: Estava. Ele estava bebendo junto com meu pai. Promotor: Sabe se seu pai tinha algum problema anterior com o réu? Testemunha de acusação: Não. Promotor: Não sabe ou não tinha? Testemunha de acusação: Não tinha. Promotor: Quantos disparos ele deu? Testemunha de acusação: Não deu para contar não, mas foi uns cinco, mais ou menos. Promotor: Você tentou agredir o réu no dia lá? Testemunha de acusação: No momento que ele estava armado, como é que eu podia... Promotor: Você disse na Polícia que você tentou aproximar de seu pai e foi impedido pelo réu.? Testemunha de acusação: É. Eu tentei aproximar só, mas... Promotor: Não permitiu? Testemunha de acusação: Não. Ele falou que, se eu aproximasse, ele ia atirar em mim também. Juiz: Você tentou se aproximar do réu ou de seu pai? Testemunha de acusação: Não. De meu pai. Promotor: Na madrugada que antecedeu o crime, o Baiano deu um pontapé no portão na casa do réu? Testemunha de acusação: Isso foi o que eu fiquei sabendo lá que aconteceu isso, por isso que aconteceu o fato. Juiz: Isso foi no dia ou no dia anterior? Testemunha de acusação: Foi no dia... Um dia antes de meu pai morrer. Promotor: Seu pai estava com Baiano nesse momento? Testemunha de acusação: Aí eu não tenho como dizer não. Promotor: Que distância você estava do local em que seu pai foi baleado? Testemunha de acusação: Estava... Uns vinte metros, mais ou menos. Promotor: Era um beco? Testemunha de acusação: Não. Foi em uma rua sem saída assim. Promotor: E você estava na rua? Testemunha de acusação: Não. Eu estava dentro da casa de um colega meu, fazendo artesanato, num beco. Promotor: Onde ele foi baleado? Testemunha de acusação: Ele foi baleado na rua e eu estava no beco. Na porta de casa, e ele foi baleado na porta da casa dele (do réu).

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Promotor: Você sabe de algum outro problema do réu com discussão, briga, com a polícia? Testemunha de acusação: Não. Ele ficava mais na dele, quieto, na casa dele. Promotor: Sabe se mexia com droga, boca de fumo? Testemunha de acusação: Não. Nunca vi não. Promotor: Você escutou barulho, vozes, gritos antes dos tiros? Testemunha de acusação: Não.

Nada mais tendo o Promotor a perguntar, o juiz deu a palavra ao advogado de defesa.

Advogada: Fulano, no dia do fato, após o acontecimento, você ouviu dizer ou ficou sabendo por qualquer outra pessoa que o motivo da discussão tinha sido entre a mulher do seu pai e a mulher do réu? Testemunha de acusação: Mas elas tinham discutido uns três dias atrás, eu acho. Elas tinham discutido, mas eu não sei o motivo não. Advogada: Você sabe se essas duas mulheres tinham uma amizade ou elas se falavam? Testemunha de acusação: Não. Elas chegaram a conversar, mas elas não se davam bem não. Juiz: Não se davam,mas conversavam? Testemunha de acusação: É, só se cumprimentavam, mas uma não foi com a cara da outra não. Advogada: Você sabia se seu pai tinha algum inimigo ou desafeto no bairro? Testemunha de acusação: Não. Todo mundo lá gostava dele. Advogada: Seu pai já havia sido preso alguma vez? Testemunha de acusação: Não tenho conhecimento não. Advogada: Se antes de ser preso, se ele já havia sido processado? Testemunha de acusação: Se ele? Advogada: Sim. Testemunha de acusação: Não. Não é do meu conhecimento não. Advogada: Você é filho único ou seu pai tinha outro filho? Testemunha de acusação: Tinha mais uma menina. Advogada: Você não tem um irmão que chama Bruno não? Testemunha de acusação: Tenho, mas ele não é filho dele não. Não é filho do meu pai não. É filho só da minha mãe. Advogada: Esse Bruno está vivo ou está morto? Testemunha de acusação: Está morto. Advogada: Morreu por quê? Testemunha de acusação: Tráfico. Juiz: É por crime envolvido com o tráfico. É isso? Testemunha de acusação: É disputa de boca, né? Advogada: Então, você me disse que Bruno não é filho do seu pai. Só da sua mãe, né? Testemunha de acusação: É só da minha mãe mesmo.

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Advogada: Você é irmão dele? Testemunha de acusação: É irmão, mas só por parte de mãe. Juiz: E qual o nome da sua mãe? Testemunha de acusação: Rosimeire Pereira. Advogada: E você está preso por quê? Testemunha de acusação: Tráfico. Advogada: Você sabe ou tem conhecimento de que o Baiano já foi preso ou condenado? Testemunha de acusação: Condenado eu não sei não, mas ele já foi preso várias vezes. Advogada: Você sabe se ele tinha algum desafeto no bairro? Testemunha de acusação: Se tinha, não sei não. Advogada: Você tem conhecimento que, logo após o fato aí, se houve algum incidente com a casa do réu? Testemunha de acusação: Sei que botaram fogo na casa dele. Fiquei sabendo que foi meu irmão, o Bruno. Foi viatura lá, na porta, procurando meu irmão, só que ele não estava lá não. Advogada: Foi no mesmo dia ou no outro dia? Testemunha de acusação: Foi no velório de meu pai. Advogada: Você sabe se sobrou alguma coisa da casa ou se a casa ficou muito danificada? Testemunha de acusação: Não.

Terminada essa oitiva, três testemunhas de defesa passaram a ser ouvidas. As duas

primeiras são moradores do bairro e, a última, esposa do réu. Feitas as qualificações e

compromissadas as testemunhas, cada uma delas no momento do seu depoimento, foram iniciadas

as oitivas.

Advogada: Fulano, nós estamos tratando aqui de um caso acontecido em 05 de fevereiro de 2005, às 19h, no Bairro Marajá, na cidade tal. O réu, Fulano de tal, é acusado de ter matado a vítima, Beltrano. Você conhecia a vítima? Testemunha de defesa 1: Conheci. Advogada: Você sabe se a vítima era dada a briga, se era uma pessoa que comportava mal no bairro... Como era o comportamento dessa pessoa? Testemunha de defesa 1: Ele era uma pessoa que bebia muito e arrumava muita confusão. E tinha muita gente lá que não era amigo dele não. Juiz: Então, quer dizer que ele não era bem visto lá? Testemunha de defesa 1: Não. Não era bem visto não. Advogada: Você sabe ou tem conhecimento se ele era dado a andar com um tal de Baiano? Testemunha de defesa 1: Isso. Advogada: Você conhecia esse Baiano também? Testemunha de defesa 1: Conhecia.

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Advogada: E a respeito do Baiano? Era uma pessoa boa, não era? Como é que era? Testemunha de defesa 1: Era tudo a mesma coisa. Os dois aprontavam demais, bebiam, brigavam… Juiz: Baiano também bebia e arrumava muita confusão? Testemunha de defesa 1: É. Advogada Esse fato que aconteceu em fevereiro de 2005, o senhor estava presente? Testemunha de defesa 1: Não. Advogada: Ficou sabendo posteriormente do motivo da ocorrência desse fato? Testemunha de defesa 1: O que a gente ficou sabendo lá é que ele estava chutando o portão do rapaz, né? Juiz: Quem chutou? Testemunha de defesa 1: A vítima. E ele também desacatou o réu. Advogada: O senhor sabe ou ouviu dizer que o Baiano e a vítima costumavam andar armado? Testemunha de defesa 1: Eles falava de matar, de dar tiros, mas nunca tinha nada não. Juiz: Nunca viu eles armados? Testemunha de defesa 1: Tinham nada não. Só falavam, mas não tinham nada não. Advogada: O senhor já ouviu eles falarem que iam dar tiro em todo mundo? Testemunha de defesa 1: Isso aí ele falava mesmo, mas… Juiz: Quem falava? Testemunha de defesa 1: A vítima. Mas nunca dava nada. Juiz: Só falava? Ninguém acreditava? Testemunha de defesa 1: Eles eram enjoados demais. Só na base da conversa.

A palavra é dada ao promotor.

Promotor: E o réu? Ele andava armado? Testemunha de defesa 1: Não. Esse é do tipo que não incomodava, é do serviço para a casa Promotor: O senhor viu o crime, viu como aconteceu? Testemunha de defesa 1: Não. Promotor: E o senhor conhece alguém que tenha visto o crime acontecer? Testemunha de defesa 1: Não. Promotor: O senhor já viu pessoalmente a vítima embriagada, arrumando confusão ou isso era boato? Testemunha de defesa 1: Já vi sim. Boato nada. Promotor: Como era a confusão que ele arrumava? Brigava? Testemunha de defesa 1: É. Brigava, saia para rua gritando, falando que matava. Porque ele mexia com tudo. Promotor: Ele era uma pessoa forte? Testemunha de defesa 1: Era. Direto ele caçava confusão.

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Promotor: O senhor sabe se foi ele mesmo que andou chutando o portão da casa do réu ou se foi outro vizinho do bairro? Testemunha de defesa 1: Ó! Foi ele que chutou, né? Ele, bêbado, que chutou o portão. Promotor: O senhor viu isso? Testemunha de defesa 1: Não. Ouvi dizer. Promotor: Sabe se o réu costuma beber bebida alcoólica? Testemunha de defesa 1: Não. Promotor: Não sabe ou não costuma beber? Testemunha de defesa 1: Não costuma. Se bebe, é só uma cervejinha e está bom. Promotor: O senhor chegou a conhecer a esposa da vítima? Testemunha de defesa 1: Conheço. Promotor: E a esposa do réu? Testemunha de defesa 1: Conheço. Promotor: Sabe se houve algum problema entre as duas, uma confusão, um bate-boca? Testemunha de defesa 1: Não. Não sei. Promotor: O senhor sabe se a vítima ofendeu a esposa do réu ou alguma coisa desse tipo? Testemunha de defesa 1: Ofendeu. Promotor: Como foi que ele ofendeu? Testemunha de defesa 1: O que falam lá é que ele xingou a mulher do réu e falou que o réu não era homem, essas coisas. Que chegou bêbado, com o Baiano, sem mais nem menos, caçando confusão lá. Promotor: O senhor sabe o motivo? Testemunha de defesa 1: Não. Promotor: O senhor sabe quanto tempo durou isso? O senhor recorda? Testemunha de defesa 1: Não. Isso aí foi num dia só mesmo que aconteceu o desacato e a morte.

Passou-se à oitiva da segunda testemunha de defesa.

Advogada: O senhor conheceu a vítima? Testemunha de defesa 2: Conheci. Advogada: O senhor sabe se ele era uma pessoa bem quista no bairro ou não, se ele se dava bem com todos ou como era a conduta social? Testemunha de defesa 2: Ele era uma pessoa um pouco tumultuada. Advogada: O quê que o senhor chama de tumultuada? Testemunha de defesa 2: Ele ingeria bebida alcoólica e algo mais, andava fazendo algumas ameaças. Advogada: O senhor sabe se ele já foi preso lá no bairro ou em outro lugar? Testemunha de defesa 2: Várias vezes. Advogada: O senhor viu isso que aconteceu no dia 5 de fevereiro, ou ficou sabendo de alguma coisa? Testemunha de defesa 2: Só ouvi o comentário.

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Advogada: E o que diziam sobre o crime, as circunstâncias do crime? Testemunha de defesa 2: Que eles ficaram provocando o réu pela parte da manhã. Juiz: Quem estava provocando o réu? Testemunha de defesa 2: A vítima estava provocando o réu, na parte da manhã. Mas eu ouvi comentário. Eu não estava presente. Advogada: O senhor conhece um tal de Baiano? Testemunha de defesa 2: Conheci. Advogada: Morava lá no bairro também, lá perto do bairro ou não? Testemunha de defesa 2: Morava próximo. Advogada: O senhor sabe se ele andava com a vítima? Testemunha de defesa 2: Andava. Advogada: O que o senhor pode dizer da pessoa do Baiano? Era uma pessoa boa, não era? Testemunha de defesa 2: Nada, era a mesma coisa: bebia e fazia tumulto. Advogada: O senhor sabe se a vítima e o réu já tinham tido algum problema, alguma desavença? Eles eram amigos, conhecidos ou eram desafetos? Testemunha de defesa 2: Nunca ouvi contar nada disso com eles. Desconheço qualquer problema antes, entre eles. Advogada: E o réu tinha algum problema no bairro, tinha algum inimigo? Era uma pessoa dada a tumulto? Testemunha de defesa 2: Não. É uma pessoa tranqüila, sempre do trabalho para casa, não era de conversa, uma pessoa trabalhadora. Advogada: O senhor conheceu a esposa da vítima? Testemunha de defesa 2: Conheci. Advogada: O senhor sabe se tinha alguma desavença, algum problema entre ela e a esposa do réu? Testemunha de defesa 2: Que eu saiba não. Advogada: O senhor sabe se elas eram amigas, se conversavam? Testemunha de defesa 2: Amigas não, mas elas conversavam. Amigas, amigas não chagava a ter uma amizade grande não. Advogada: O senhor ouviu dizer se, além da vítima, havia mais alguém presente na hora dos fatos? Testemunha de defesa 2: Não sei. Advogada: O senhor sabe de algum incidente havido, após o problema aí, com a casa do réu? Testemunha de defesa 2: Sei que, pela manhã, chutaram o portão da casa dele... Juiz: Isso o senhor já disse. Depois do crime, aconteceu alguma coisa? Testemunha de defesa 2: Botaram fogo na casa dele. Advogada: O senhor sabe ou ouviu dizer quem botou o fogo? Testemunha de defesa 2: Ouvi boatos de que seria o enteado da vítima. Advogada: Sabe o nome dele? Testemunha de defesa 2: Bruno.

Em seguida, o promotor fez as perguntas.

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Promotor: O senhor disse que na manhã do dia do crime houve uma provocação lá, né? E depois o que foi que aconteceu? Testemunha de defesa 2: Eu vi falando que foi pela manhã que houve uma provocação e esse crime foi na parte da tarde. Promotor: A que horas o crime aconteceu? Testemunha de defesa 2: Foi por volta das quatro e meia, cinco horas da tarde. Esse crime aconteceu bem no fim da tarde. Promotor: O senhor sabe como a vítima foi morta? Testemunha de defesa 2: Não. Eu só sei que houve tiro. No mais eu não sei não. Promotor: Sabe se ele foi baleado pela frente ou pelas costas? Testemunha de defesa 2: Não posso dar detalhe, pois eu não estava presente no dia.

Terminada essa oitiva, passa-se a ouvir a terceira testemunha de defesa, esposa do réu.

Advogada: Dona Maria, a senhora estava presente aos fatos do crime? Testemunha de defesa 3: Estava. Advogada: A senhora pode me contar o que aconteceu lá? Testemunha de defesa 3: Posso. Pela manhã, eu fui ao salão de beleza, depois voltei e me deparei com a esposa da vítima e começamos a conversar, quando, de repente, chegou o marido dela, acompanhado de um amigo, o Baiano. Ela começou a discutir com ele, falar com ele das brigas, do que ele estava fazendo... Juiz: A esposa dele discutiu com o amigo ou com a vítima, seu esposo. Testemunha de defesa 3: É. Com a vítima. Porque ele estava fazendo bagunça, quebrando o portão dos outros, padrão de água e luz das pessoas. Aí ele partiu para cima de mim, disse que eu é que eu tinha feito a cabeça dela para ela brigar com ele. Ele, começou a me xingar vários palavrões, a me chamar de um monte de coisa. Advogada: Logo em seguida, o que aconteceu? Testemunha de defesa 3: Nesse momento veio meu marido e a vítima começou a xingar meu marido. A vítima xingava e dizia que o meu marido estava procurando confusão com ele e começou a fazer as ameaças. Então, nós entramos para nossa casa, meu esposo me puxou e disse “Vamos embora para dentro”. E eles continuaram ameaçando. Juiz: A senhora está dizendo “eles”. Quem são eles? É só a vítima? Testemunha de defesa 3: Não. Ele e o Baiano. Então, nós entramos para nossa casa e ficamos lá trancados o dia inteiro porque ficamos com muito medo das ameaças deles. Advogada: De que ameaças? Testemunha de defesa 3: De morte, dizendo que ia matar eu, meu esposo e minhas filhas. Mais tarde eles voltaram e quebraram o nosso portão. Advogada: Quanto foi o tempo de quando eles voltaram, depois que a senhora veio do salão? Isso foi quanto tempo? Testemunha de defesa 3; Isso eu não seu dizer direito. Só sei que foi pela manhã,

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por volta de umas dez da manhã, mais ou menos... Depois eles voltaram Advogada: Que horas mais ou menos? Testemunha de defesa 3: Por volta de umas três horas da tarde. Advogada: E enquanto eles foram e voltaram, o que a senhora e o réu ficaram fazendo? Testemunha de defesa 3: Entramos para casa, trancamos a porta e ficamos trancados dentro de casa. Advogada: Vocês não saíram de casa em momento algum? Testemunha de defesa 3: Em momento algum. Advogada: Quando eles retornaram, antes de ir embora, o que aconteceu? Testemunha de defesa 3: Eles quebraram de novo o portão. Novamente quebraram o portão, entraram na nossa garagem... Juiz: Novamente quebraram o portão? A senhora disse que eles discutiram, xingaram a senhora e quebraram o portão da senhora, né? Testemunha de defesa 3: Isso. Juiz: Eles quebraram o portão da senhora duas vezes? Testemunha de defesa 3: Duas vezes. Não. Uma vez. Eles quebraram o portão às 15 horas, à tarde. Entraram dentro da nossa garagem, que é terreno grande que fica a casa, e nós trancados dentro de casa. Por volta das cinco horas da tarde, eles retornaram: um por baixo e outro por cima, para matar a gente. Juiz: E aí? Testemunha de defesa 3: Quando a vítima veio com a mão para trás, o réu disse “vamos conversar”. E a vítima, com a mão para trás, falou para o réu “Eu vou te matar”. Foi aí que o meu marido deu os tiros nele. Advogada: a senhora fala que ele chegou com a mão para trás. Ele chegou a entrar na casa de vocês? Testemunha de defesa 3: Ele não chegou a entrar na casa não. Advogada: Então eu não entendi. Olha aqui, então ele estava na garagem e o réu saiu para a garagem? Isso que eu não entendi. Testemunha de defesa 3: É. Vamos... Nós estávamos dentro de casa. Porque tem a garagem na frente da casa. Nós estávamos dentro de casa, quando eles vieram. Advogada: Tá. Então eles estavam do portão para dentro, na garagem, mas não estavam na casa. Estavam no terreno. É isso? Testemunha de defesa 3: É. Advogada: O que a senhora pode me dizer dessas pessoas, a vítima e o Baiano? Eram pessoas bem quistas não eram? Pessoas dadas a brigas ou não eram? Como eram as pessoas da vítima e do Baiano? Testemunha de defesa 3: Eram pessoas bastante bagunceiras, que mexiam com drogas, eram brigões e mexiam com muita arma. Advogada: O filho da vítima estava presente na hora dos fatos? Testemunha de defesa 3: Não ele não estava presente em momento nenhum. Advogada: A senhora teve, antes ou depois do problema, algum problema com a esposa da vítima? Testemunha de defesa 3: Não. Nunca. Advogada: Depois do fato ocorrido, houve algum problema, algum incidente com a casa da senhora? Testemunha de defesa 3: Teve. Eles entram na minha casa, saquearam e tacaram

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fogo. Advogada: Eles quem? Testemunha de defesa 3: O Bruno. Advogada: Quem que é Bruno? Testemunha de defesa 3: O enteado da vítima. Advogada: Antes desse fato, seu esposo e a vítima tiveram algum problema? Testemunha de defesa 3: Não.

O juiz passa a palavra ao Promotor.

Promotor: Onde o réu arrumou esse revólver? Testemunha de defesa 3: Não entendi. Promotor: Onde o réu arrumou esse revólver? Testemunha de defesa 3: Não sei. Promotor: Essa arma é registrada? Testemunha de defesa 3: Também não sei. Promotor: Ele tem porte de arma? Testemunha de defesa 3: Não. Promotor: Há quanto tempo ele tinha essa arma? Testemunha de defesa 3: Ele tinha essa arma lá por volta de um ano. Promotor: A senhora contou que os problemas começaram na parte da manhã, com ofensas e tal e... A que horas foi o crime? Testemunha de defesa 3: Não sei dizer exato. Promotor: Segundo a polícia foi às 19 horas. Já era de noitinha, final da tarde? Testemunha de defesa 3: Já era à tarde. Não sei dizer que horário que era porque eu estava muito atordoada, com medo. Promotor: A senhora fala que vocês entraram para casa e ficaram lá. Durante esse tempo todo, vocês ficaram dentro de casa? Vocês não pensaram em chamar a polícia e resolver esse problema? Testemunha de defesa 3: A gente tinha medo. Promotor: Não tinha telefone, celular? Testemunha de defesa 3: Nem celular nós tínhamos em casa. Promotor: A senhora conta que o réu saiu de casa e a vítima veio com a mão para trás. O réu já saiu com a arma em punho? Testemunha de defesa 3: Não. Ele estava com a arma na cintura. Promotor: No momento dos disparos, a vítima estava dentro da garagem? Testemunha de defesa 3: Estava. Promotor: Estava? Testemunha de defesa 3: Estava próximo à garagem. Promotor: Qual era o endereço? Testemunha de defesa 3: Av. Baronesa, 470, me parece, Bairro Heliópolis. Promotor: Engraçado que a vítima caiu bem no meio da rua. Como a senhora fala que ela estava na garagem? Testemunha de defesa 3: Você pode observar... Você pode observar... Deixa eu ver aqui... (folheando os autos, mostrando uma foto). Minha casa. Essa aqui onde

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eles arrumaram o portão, só prenderam ele com uma grade... Promotor: Onde fica a garagem da casa da senhora? A senhora falou que a garagem na frente da casa? Testemunha de defesa 3: É porque nós construímos uma garagem, mas não colocamos o portão grande, colocamos só o pequeno porque não tinha dinheiro na época. Promotor: Eu sei. Mas olha, aqui, minha senhora. O corpo esta aqui, ó. O corpo está coberto com o lençol aqui, ó (mostrando na foto nos autos). Onde está a garagem em que ele estava no momento em que foi baleado? Testemunha de defesa 3: Ele estava nesse... Aqui perto aqui, ó (mostrando na foto nos autos). Promotor: Ele tomou o tiro lá? Testemunha de defesa 3: Isso. Promotor: E por que a gente não vê o corpo dele lá? Testemunha de defesa 3: Ele não estava na garagem na hora do tiro. Quem estava era o réu. Promotor: A senhora viu o momento em que o réu deu o tiro? Testemunha de defesa 3: Vi Promotor: A vítima estava na rua? Testemunha de defesa 3: Ele estava próximo do nosso portão, na rua. Promotor: Ele estava do lado de fora do imóvel? Testemunha de defesa 3: É, mas... Promotor: Não estava lá dentro da garagem não? Testemunha de defesa 3: Não. Ele já tinha saído da garagem no momento. Promotor: A vítima estava se afastando da casa de vocês, quando foi baleada? Testemunha de defesa 3: Não. Eu acho... Não. Ele não estava afastando não. Ele veio realmente para cima do réu, para matar. Promotor: Então, ele não estava se afastando? Testemunha de defesa 3: Não. Em momento algum. Promotor: Então como a senhora explica que o corpo está aqui, no meio da rua, do outro lado da rua, inclusive? Testemunha de defesa 3: Não sei te dizer Promotor: O corpo caiu aqui, ninguém arredou o corpo, ninguém encostou a mão... Testemunha de defesa 3: Olha, eu sei que eu estava muito nervosa na hora. Mas que ele estava próximo ao meu portão na hora, ele estava, quase dentro da minha garagem. E o réu estava dentro da minha garagem. Promotor: Ele estava em direção ao réu ou estava parado? Testemunha de defesa 3: Ele estava com a mão para trás e já veio falando “Eu vou te matar. Eu vim para te matar”. Promotor: Ele veio andando e falando isso? Na direção do réu? Testemunha de defesa 3: Na direção do réu. Promotor: Agora, como é que os médicos dizem que a vítima tomou quatro tiros pelas costas? E um na cabeça, pelas costas? Testemunha de defesa 3: Ele não tomou nenhum tiro pelas costas. Promotor: Então, os médicos estão mentindo aqui? Testemunha de defesa 3: Eu não sei te dizer. Mas eu estava lá e ele não tomou tiro assim.

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Promotor: Então, a senhora não tem explicação para esse laudo que está mencionando que ele tomou tiro pelas costas? Testemunha de defesa 3: Não. Promotor: A senhora tem certeza do que viu? Testemunha de defesa 3: Tenho. Promotor: A senhora tinha ingerido bebida alcoólica? Testemunha de defesa 3: Não. Eu não bebo. Promotor: Enxerga bem? Testemunha de defesa 3: Enxergo. Promotor: Estou satisfeito, Meritíssimo.

Encerrada a oitiva, assinado o termo, foi encerrada a AIJ.