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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS PAULO
Programa de Pós-Graduação em Letras
Paulo Afonso Guimarães de Lima
A ARGUMENTAÇÃO E SEUS INFLUXOS PERSUASIVOS NO GÊNERO DO
DISCURSO PETIÇÃO: uma análise enunciativo-discursiva
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras da Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre em Linguística e Língua
Portuguesa.
Orientadora: Professora. Drª. Maria Ângela Paulino
Teixeira Lopes
Belo Horizonte
2016
Paulo Afonso Guimarães de Lima
A ARGUMENTAÇÃO E SEUS INFLUXOS PERSUASIVOS NO GÊNERO DO
DISCURSO PETIÇÃO: uma análise enunciativo-discursiva
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras da Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre em Linguística e Língua
Portuguesa.
Belo Horizonte
2016
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Lima, Paulo Afonso Guimarães de
L732a Argumentação e seus influxos persuasivos no gênero do discurso petição:
uma análise enunciativo-discursiva / Paulo Afonso Guimarães de Lima. Belo
Horizonte, 2016.
163 f.: il.
Orientadora: Maria Ângela Paulino Teixeira Lopes
Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Programa de Pós-Graduação em Letras.
1. Enunciação (Línguistica). 2. Alteridade. 3. Gêneros literários. 4. Análise do
discurso literário. 5. Petição inicial. 6. Argumentação jurídica. I. Lopes, Maria
Ângela Paulino Teixeira. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Programa de Pós-Graduação em Letras. III. Título.
CDU: 800.852
Paulo Afonso Guimarães de Lima
A ARGUMENTAÇÃO E SEUS INFLUXOS PERSUASIVOS NO GÊNERO DE
DISCURSO PETIÇÃO: uma análise enunciativo-discursiva
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras da Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre em Linguística e Língua
Portuguesa, contando com o benefício de bolsa
concedida pela CAPES -, como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre em Linguística e Língua
Portuguesa.
_________________________________________________________________
Profa. Dra. Maria Ângela Paulino Teixeira Lopes (Orientadora) – PUC Minas
_________________________________________________________________
Prof. Dr. Luiz Augusto Lima de Ávila – PUC Minas
_________________________________________________________________
Prof. Hugo Mari – PUC Minas
Belo Horizonte, 12 de dezembro de 2016.
Dedico este trabalho a Ana Cristina, minha incansável
incentivadora, e a Jéssica Paula, porque nela me inspiro para
sempre vislumbrar novos horizontes: amores da minha vida –
esposa e filha.
AGRADECIMENTOS
À Profa. Maria Ângela Paulino Teixeira Lopes, porque foi dedicada orientadora,
sempre pronta a nos socorrer nas mais diversas situações, contribuindo de forma singular com
seus conhecimentos inexoráveis na área da Análise do Discurso e na Linguística como um todo.
Agradeço também ao Prof. Hugo Mari, que, para minha satisfação, compôs a Banca
Examinadora em minha Defesa de Dissertação, vindo coroar e abrilhantar essa minha vitória,
haja vista o reconhecimento de todos quanto a sua competência e importância para o meio
acadêmico no que tange à Linguística em todos os seus segmentos – semântica, análise do
discurso, filosofia da linguagem, atos de fala, filologia, hermenêutica, exegese e ciências afins.
Agradeço inclusive aos demais professores que atuaram no decorrer do Mestrado, pois
foram eles importantes na consecução dos resultados auferidos ao longo dessa empreitada.
Agradecimento especial a minha esposa Ana Cristina, a minha filha Jéssica Paula, a
minha mãe, Maria Guimarães, e meus irmãos, pois todos são sustentáculos de minha formação
pessoal, sem nos olvidar de agradecer a todos que torceram por mim nessa empreitada, até
porque contribuíram de alguma forma nessa caminhada, e in memoriam a meu pai, Vicente
Tomaz de Lima, sempre presente em meus pensamentos nas grandes vitórias por vários
exemplos de vida.
À CAPES por ter subsidiado o Curso com a concessão da Bolsa integral auferida em
processo seletivo consoante Edital Bolsa/Mestrado/PUC-Minas/2014.
RESUMO
Pautando-se no quadro enunciativo-discursivo atinente à Análise do Discurso, a presente
pesquisa tem por objetivo demonstrar que as estratégias argumentativas engendradas pelas
partes envolvidas em julgamentos no âmbito do Tribunal do Júri visam influenciar os
enunciatários com poder de voto a aderir à tese empreendida no discurso, seja em determinado
norte, seja noutro, ainda que ela não corresponda em sua essência à realidade dos fatos. Nesse
sentido, trabalhamos o gênero petição por ser ele o meio de se externar as razões favoráveis ao
ponto de vista dos enunciadores – Promotor de Justiça, Réu, Juiz, autoridades em geral.
Optamos por prestigiar o júri sobretudo por ser ele um instituto jurídico que tem como ator
principal o cidadão comum, atuando como representante da sociedade, ainda que desprovido de
capacitação técnico-jurídica stricto sensu, contudo imbuído de sensibilidade capaz de avaliar
os fatos a seu juízo sem a interferência direta da doutrina ou jurisprudências predominantes nos
tribunais. Dessa forma, o objeto da pesquisa centra-se na construção enunciativa à vista do
modelo adotado pelo direito brasileiro em julgamentos de crimes dolosos contra a vida, eis que
são decisões peremptórias, sem possibilidade de recursos a instâncias superiores quanto ao
mérito, o que torna vulnerável a decisão, pois sempre haverá dúvidas quanto ao resultado se
houvesse a possibilidade de se rediscutir o caso em outras instâncias como acontece nas demais
causas, ainda que esse novo julgamento também fosse realizado por jurados leigos, com o
mesmo escopo e propósito do instituto Júri em primeira instância. Para melhor compreensão de
nossa proposta, trouxemos à baila um dos mais emblemáticos julgamentos ocorridos em Minas
Gerais, cujas principais petições deram ensejo ao livro Homicídio sem Cadáver – o caso Denise
Lafetá, de autoria do então Promotor de Justiça Tibúrcio Délbis. O julgamento em questão teve
grande repercussão na mídia à época, tendo em vista a dificuldade de obtenção de provas quanto
aos fatos, pois o corpo da vítima nunca foi encontrado. Essa circunstância por si demonstra a
dificuldade por parte da acusação, principalmente à vista de dúvidas que pairam em situações
como essa, mormente ao se levar em conta o brocardo jurídico do in dubio pro reu. Esses e
outros casos demandam discussão sobre o sistema do Júri, pois o que pesa tanto para
condenação quanto absolvição, em grande medida, são as estratégias argumentativas
empreendidas pelos enunciadores. Nessa perspectiva, o presente estudo centra-se no imaginário
sócio-discursivo, na construção identitária dos enunciadores e enunciatários – no ethos e
pathos, bem como na responsividade atinente à interação verbal, inclusive sob a ótica da
legislação vigente que, dadas as circunstâncias, carece de ser repensada, visando ao
aperfeiçoamento do sistema, quiçá implantando o duplo grau de jurisdição no âmbito do tribunal
do júri, como de resto acontece em todos os demais julgamentos na esfera judicial.
Palavras-chave: Petição. Enunciação. Alteridade. Dialogismo. Polifonia. Interação verbal.
Gênero de discurso.
ABSTRACT
The aim of this research is to demonstrate that the argumentative strategies engendered by the
parties involved in judgments in the scope of the Jury's Court are intended to influence the
enunciators with voting power to adhere to the thesis undertaken In discourse, whether in a
certain north or in another, although it does not correspond in its essence to the reality of the
facts. In this sense, we work the genre petition because it is the means to express the favorable
reasons to the point of view of the enunciators - Promoter of Justice, Defendant, Judge,
authorities in general. We chose to prestige the jury, mainly because it is a legal institute that
has as main actor the common citizen, acting as representative of society, although lacking
technical and legal training stricto sensu, yet imbued with sensitivity capable of evaluating the
facts in their own judgment Without the direct interference of doctrine or jurisprudence
prevalent in the courts. In this way, the object of the research focuses on the enunciative
construction in view of the model adopted by Brazilian law in judgments of intentional crimes
against life, since they are peremptory decisions, with no possibility of appeals to superior
instances regarding merit, which makes Vulnerable to the decision, because there will always
be doubts as to the outcome if there is a possibility of rediscussing the case in other instances
as in other cases, even if this new judgment was also carried out by lay jurors, with the same
scope and purpose of the Jury In the first instance. For a better understanding of our proposal,
we brought to the fore one of the most emblematic trials in Minas Gerais, whose main petitions
gave rise to the book Homicide without Cadaver - the Denise Lafetá case, by the then Attorney
General Tibúrcio Delélbis. The trial in question had great repercussion in the media at the time,
given the difficulty of obtaining evidence regarding the facts, since the body of the victim was
never found. This circumstance in itself demonstrates the difficulty on the part of the
prosecution, especially in view of doubts that arise in situations such as this, especially when
taking into account the legal signature of the dubio pro reu. These and other cases demand
discussion about the Jury system, since what weighs both for conviction and absolution, to a
large extent, are the argumentative strategies undertaken by the enunciators. In this perspective,
the present study focuses on the socio-discursive imaginary, on the identity construction of the
enunciators and enunciatarios - in the ethos and pathos, as well as on the responsiveness related
to the verbal interaction, even from the perspective of the current legislation that, given the
circumstances, It needs to be rethought in order to improve the system, perhaps by introducing
the double degree of jurisdiction within the jury, as is the case in all other judgments in the
judicial sphere.
Keywords: Petition. Enunciation. Otherness. Dialogism. Polyphony. Verbal interaction. Genre
of speech.
LISTA DE QUADROS
QUADRO 1 - Operadores Argumentativos – (Petição 04), (Anexo 04): ............................... 123
QUADRO 2 - Modalizadores discursivos – (Petição 04), (Anexo 04): ................................. 125
QUADRO 3 - Operadores argumentativos – (Petição 01), (Anexo 01) ................................. 128
QUADRO 4 - Modalizadores discursivos – (Petição 01), (Anexo 01): ................................. 130
LISTA DE SIGLAS
AD Análise do Discurso
CF/88 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988
CPC Código de Processo Civil
CPP Código de Processo Penal
EUc Sujeito comunicante
EUe Eu enunciador
MPE Ministério Público Estadual
OAB Ordem dos Advogados do Brasil
STF Supremo Tribunal Federal
STJ Superior Tribunal de Justiça
TJMG Tribunal de Justiça de Minas Gerais
TUd Sujeito destinatário
TUi Sujeito interpretante
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 23
2 DELIMITAÇÕES CONCEITUAIS, O CORPUS E A METODOLOGIA .................... 29
2.1 O Gênero de discurso Petição e outros gêneros correlatos ........................................... 29
2.2 A relação dialógica e a interação verbal no gênero do discurso petição ..................... 35
2.3 Abordagem metodológica ................................................................................................ 42
2.3.1 O Corpus selecionado e categoria de análise ................................................................. 42
2. 3.2 O problema e a hipótese ................................................................................................. 46
2.3.3 Objetivos .......................................................................................................................... 47
2.3.3.1 Objetivo geral: .............................................................................................................. 47
2.3.3.2 Objetivos específicos: ................................................................................................... 48
3 REFERENCIAIS TEÓRICOS ........................................................................................... 51
3.1 Relação dialógica, concepção identitária e relação de poder no discurso ................... 51
3.2 Aspectos discursivos e ideológicos no controle social .................................................... 62
3.3 A enunciação discursiva e dialógica no gênero petição ................................................. 73
3.4 Correlação entre aspectos linguísticos e jurídicos da pesquisa .................................... 75
3.5 A alteridade e a polifonia intrínsecas na enunciação discursiva .................................. 80
3.6 Semiotização ideológica no sistema jurídico .................................................................. 84
3.7 Os influxos da argumentação mudando a natureza das coisas .................................... 95
3.8 Aspectos inerentes à identidade social e discursiva ....................................................... 98
4 DA ANÁLISE DO MATERIAL SELECIONADO ........................................................ 103
4.1 Questões polêmicas acerca de julgamentos no âmbito do Tribunal do Júri ............. 103
4.2 Das Petições e seus aspectos linguístico-discursivos .................................................... 110
4.3 Operadores argumentativos, modalizadores e recursos linguísticos persuasivos .... 122
5 CONCLUSÃO ................................................................................................................... 135
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 141
ANEXOS 1 - Petição 01 ...................................................................................................... 145
ANEXOS 2 - Petição 02 ...................................................................................................... 149
ANEXOS 3 - Petição 03 ...................................................................................................... 151
ANEXOS 4 - Petição 04 ...................................................................................................... 153
ANEXOS 5 - Petição 05 ...................................................................................................... 161
23
1 INTRODUÇÃO
Este trabalho está inserido na perspectiva da enunciação discursiva, tendo como
propósito questionar os julgamentos no âmbito do Tribunal do Júri, cuja competência
institucional restringe-se à prática de crimes dolosos contra a vida.
Tendo em vista inúmeros julgamentos com repercussão na mídia, quiçá até mesmo
pelo fenômeno midiático relacionado a programas televisivos sensacionalistas envolvendo a
violência, chama-nos a atenção uma questão relevante voltada para o funcionamento júri, bem
como a influência da argumentação nas decisões proferidas a partir dos votos dos membros que
compõem o Conselho de Sentença, na perspectiva da Análise do Discurso - AD.
Optamos por este tipo de julgamento exatamente por ser ele proveniente do ponto de
vista de jurados sem formação jurídica, portanto o que tem repercussão na análise são as
enunciações a partir dos modos de dizer, bem assim as interpretações individuais acerca dos
discursos proferidos por testemunhas, policiais, advogados, assistentes de acusação, promotores
de justiça, juízes que presidem a sessão, levando-se em conta a concepção de justiça que norteia
o julgamento à vista dos discursos proferidos por todos quantos tenham relação com os fatos e
suas versões.
Considerando que a argumentação das partes é fator preponderante para persuadir o
jurado a proferir seu voto em consonância com o discurso empreendido, e que as técnicas de
oratórias visam ao convencimento das pessoas a mudarem ou não sua opinião, faz-se imperioso
repensar o sistema dando ao réu condenado ou ao próprio Ministério Público Estadual – MPE
a oportunidade de novo julgamento em grau de recurso rediscutindo o mérito, como de resto é
o que ocorre nas demais ações.
Justifica essa preocupação o fato de que não se pode afiançar que uma única chance de
se provar a inocência ou a culpabilidade possa não ser suficiente, carecendo, pois, de nova
oportunidade de apreciação do mérito. Ora, se das decisões de turmas recursais nas demais áreas
do direito cabem recursos a serem apreciados por outros colegiados de instâncias superiores,
qual a razão de não haver essa possibilidade em relação ao júri popular?
Por conseguinte, o presente estudo tem por objetivo avaliar o discurso em algumas das
petições do processo envolvendo o julgamento do acusado pelo assassinato de Denise Lafetá,
que por fim culminou na condenação do réu, ressaltando que as estratégias utilizadas pelas
partes são comuns em processos dessa natureza. Nesse sentido, pautamos os estudos na
denúncia do promotor de justiça, na petição do delegado responsável pelo inquérito policial, no
recurso interposto pelo promotor em face da impronúncia do réu, no acórdão do Tribunal de
24
Justiça e, finalmente, nas considerações tecidas pelo Relator quando do julgamento do recurso
impetrado pelo condenado.
Assim, o objetivo da pesquisa centra-se na hipótese de que a enunciação discursiva
pode, em determinadas situações, mudar a natureza das coisas, pois um argumento bem
engendrado consegue persuadir quem esteja em dúvida quanto aos fatos e suas versões mesmo
quando a parte não tenha razão, assim como também pode ocorrer em sentido inverso, na
medida em que uma construção discursiva desidiosa, pouco convicta, também pode acabar por
tornar quem tivesse razão numa demanda judicial a perder adeptos à tese defendida, por mais
que ela se coadunasse com a verdade.
Essa lógica, tanto num norte quanto em outro, ou seja, tanto para favorecer o autor ou
o réu, conforme o caso, por si já daria ensejo à necessidade de se repensar o ordenamento
jurídico no âmbito do tribunal do júri, tendo em vista que nas demais causas, cíveis ou penais,
aquele que tenha sido vencido em sua tese terá outras instâncias para reavaliar a decisão
recorrida, o que não acontece no júri, pois uma decisão ali tomada por maioria de votos será
peremptória, sem direito a recurso, mesmo quando o resultado seja motivado pela superação de
uma tese argumentativa que não se coadune com a verdade real – locução técnica no âmbito do
direito penal -, em detrimento do que efetivamente fosse o justo e razoável.
A incongruência em questão confirma o problema vislumbrado nessa pesquisa, sendo
que a hipótese plausível a sanar essa falha estaria em alterar o sistema processual penal vigente,
permitindo recursos em relação à decisão dos jurados, o que, aliás, iria ao encontro do que
preconiza a própria Constituição da República – CF/88, eis que o duplo grau de jurisdição é
uma garantia processual, a despeito de não ocorrer no âmbito do tribunal do júri quanto aos
crimes dolosos contra a vida.
O que nos motivou a adentrar nessa seara foi a percepção de que o sistema em questão
se nos configura injusto, uma vez que não é dado às partes, ou seja, ao Ministério Público como
representante da sociedade e ao réu, o direito de recorrer quanto ao mérito das decisões tomadas
por maioria dos jurados, o que pode perpetuar uma injustiça, haja vista que os votos são por
óbvio oriundos de interpretações discursivas diversas, ora em determinado viés, ora noutro, o
que por si daria ensejo à recorribilidade da sentença como acontece nos demais julgamentos.
Essas ponderações serão demonstradas pautando-se na perspectiva discursiva
externada no gênero textual petição, considerando as estratégias linguístico-discursivas
constitutivas da argumentação, o pathos e o ethos dos agentes, à vista da construção das imagens
dos interlocutores projetadas nas enunciações, sobretudo em relação ao vozeamento, polifonia,
dialogismo, interação verbal e alteridade, sem nos olvidar dos aspectos atinentes à ideologia e
25
produção de sentidos, construindo significados de natureza política.
Buscamos respaldar nossa pesquisa em Bakhtin/Volochinov (1990), Foucault
(1972), Pêcheux (2009), Bronckart (1999) dentre outros, até porque os estudos relacionados à
prática discursiva apresentam vieses de várias vertentes no âmbito da argumentação jurídica,
haja vista a construção identitária visando à adesão do enunciatário, a dialética engendrada em
pontos de vista antagônicos, vislumbrando a interpretação resultante da interseção dos eixos
sintagmáticos e paradigmáticos, remetendo-nos outros teóricos da análise discursiva, como
Amossy (2008), Koch (2006), Ducrot (1987), que também nos respaldaram neste trabalho.
A título de ilustração, a pesquisa em tela centrou-se em julgamento emblemático que,
pela peculiaridade, teve grande repercussão na mídia à época da divulgação dos fatos, inclusive
dando ensejo à citada obra de Tibúrcio Délbis, que, a propósito, atuou no caso como Promotor
de Justiça e, posteriormente, como advogado do assistente de acusação. Tal profissional atuou
com afinco e determinação no julgamento do acusado pelo assassinato da jovem Denise Lafetá,
crime acontecido na cidade de Uberlândia no fim da década de oitenta. Poderíamos citar outros
inúmeros casos, mas por questões didáticas o corpus está centrado nas petições trazidas à
colação, buscando identificar aspectos ideológicos nos discursos empreendidos.
Assim, a situação em questão é mera referência, pois há inúmeros julgamentos
similares com resultados distintos, ora pela absolvição, ora pela condenação do réu, portanto
nos pautamos especificamente nas petições discutidas no capítulo 04, embora pudéssemos nos
reportar a outras. Frisa-se que o gênero textual petição foi escolhido porque nele se externam
os argumentos empreendidos pelas partes, dando ensejo inclusive ao contraditório e à ampla
defesa, o que nos remete ao dialogismo pela tensão entre pontos de vista distintos.
O gênero petição foi considerado na pesquisa em sentido amplo, ou seja, as peças
relativas ao corpus, ainda que em sentido estrito sejam classificadas como contestações,
recursos, inquéritos, neste estudo foram todas tratadas como pertencentes ao gênero discursivo
petição por não estarmos enfatizando aspectos eminentemente técnicos no âmbito jurídico e sim
relacionados ao âmbito linguístico, ressaltando que o gênero petição ilustra de forma cabal o
conceito bakhtiniano segundo o qual todo gênero pertence a uma esfera de atividade humana,
sendo, por isso, relativamente estável, na medida em que se sedimenta ganhando autonomia em
relação a outros gêneros semelhantes.
Para galgarmos nossos objetivos, estruturamos a pesquisa em duas partes distintas, a
primeira voltada para as noções teóricas atinentes tanto à área jurídica quanto linguística, esta
voltada para a prática linguageira inerente às estratégias discursivas, argumentativa, persuasiva,
ao controle social, política, enquanto aquela, a jurídica, vislumbrando aspectos sociais, legais,
26
processuais, demonstrando o funcionamento do ordenamento jurídico. A segunda parte cuida
da análise das petições trazidas à colação, apontando alguns pontos relevantes que merecem
destaques em face do discurso empreendido pelos enunciadores, ressaltando sobretudo a
perspectiva interpretativa.
Quanto ao referencial teórico em si, procedemos a uma abordagem metodológica no
segundo capítulo, tecendo considerações sobre o objetivo geral e objetivos específicos da
pesquisa, demonstrando a importância vislumbrada no problema, bem como a hipótese que
tenderia a uma alternativa capaz de minimizar consideravelmente os influxos negativos do
ordenamento jurídico em função de eventuais falhas de ordem interpretativa do discurso, além
de evidenciarmos questões de ordem ideológica visando à manutenção do status quo, dada a
conotação política nesse propósito, ou seja, por ser onerosa a hipótese em questão, o sistema
tende a não discuti-lo, como de fato ocorre em outras situações similares.
Na consecução da pesquisa, pautamo-nos na análise de cunho qualitativo-
interpretativo, tendo como referência as petições em anexo, levando-se em conta o sistema
jurídico atinente ao tribunal do júri, a semiotização inerente ao ordenamento social como um
todo, seja na perspectiva de Maingueneau, seja na concepção de Bakhtin/Volochinov, sem nos
desvencilharmos por óbvio da concepção discursiva e enunciativa de correntes linguísticas
diversas.
Ainda no capítulo 2, adentramos nos conceitos jurídicos que dão suporte à pesquisa,
visando respaldar a correlação existente entre os vários pontos de vista relacionados ao tema
sob a ótica da linguística, notadamente na perspectiva da AD.
Em seguida, tecemos considerações sobre os elementos linguísticos que guardam
relação intrínseca com o gênero petição, mais precisamente no que tange ao dialogismo
enquanto ponto de tensão existente entre interlocutores, mormente no antagonismo existente
entre autor e réu, ressaltando a concepção identitária dos sujeitos comunicantes, bem como o
controle social e ideológico a poder do Estado e da sociedade, o que se evidencia na
semiotização de conceitos jurídicos, traçando nesse propósito um paralelo entre a linguística e
o direito.
Finalmente procuramos demonstrar a importância da formação identitária dos sujeitos
interactantes, o ethos do enunciador e o pathos do enunciatários, vislumbrando as estratégias
argumentativas e interpretativas em questão, tendo como norte o material selecionado, que
consistiu em petições em sentido lato, no caso, a denúncia emanada do representante da
sociedade – o órgão do MPE -, no Inquérito Criminal – Relatório do Delegado -, na decisão de
Impronúncia exarada pelo Juiz de primeira instância, que, aliás, não acatou a denúncia como
27
incursa no âmbito do Júri, sobretudo por não haver comprovação cabal da participação do
acusado, enfim, no excerto do Voto do Relator, especificamente em relação aos argumentos
explorado para justificar eventual erro judicial no caso sob análise, sob o argumento de supostas
compensações em favor do condenado, como indenizações do Estado por danos morais, haja
vista prisão por condenação injusta, o que, por consequente, dá azo a questionamentos quanto
à incerteza dos fatos, tanto de um lado quanto de outro, fatos esses que respaldam a tese ora
empreendida. Nesse propósito, procedemos a uma análise mais detida das peças do corpus,
focando os operadores argumentativos e os modalizadores, conforme quadros em anexo
demonstrando os recursos linguístico-discursivos utilizados pelos enunciadores visando
influenciar o enunciatário.
Na Conclusão, trazemos à colação matéria jornalística recente que vem corroborar
nossa tese, o que, de certa forma, nos afigura como um alento, pois ao iniciarmos a pesquisa
sequer se cogitava de uma reviravolta no mais emblemático julgamento ocorrido no país, no
caso, o massacre do Carandiru, que, há mais de vinte anos, culminou com a condenação de
vários praças e oficiais da polícia militar do estado de São Paulo pela morte de 111 presos,
sendo que recentemente tal julgamento foi anulado, dando ensejo a novo julgamento, o que não
ocorreria se nosso ordenamento jurídico tivesse implementado o duplo grau de jurisdição no
âmbito do Júri , como propomos, daí a plausibilidade da hipótese defendida na presente
pesquisa.
29
2 DELIMITAÇÕES CONCEITUAIS, O CORPUS E A METODOLOGIA
No presente capítulo tecemos considerações acerca da enunciação discursiva que dá
suporte à pesquisa, notadamente sob a ótica do discurso jurídico em julgamentos no âmbito do
tribunal do júri, ressaltando aspectos jurídicos relacionados ao julgamento que serviu de
referência para a pesquisa empreendida, traçando um paralelo entre nuances intrínsecas aos
aspectos linguístico-discursivos e jurídicos que guardam relações entre si, mormente no que
tange às práticas linguageiras, ao dialogismo, interação verbal, alteridade e polifonia.
2.1 O Gênero de discurso Petição e outros gêneros correlatos
Como o presente estudo visa examinar os efeitos semântico-discursivos advindos das
estratégias argumentativas empreendidas nas enunciações, foram selecionadas algumas peças
extraídas do livro em questão, sendo que várias delas, ainda que com outras nomenclaturas,
foram tratadas como pertencentes ao gênero petição em sentido lato, até porque, na maioria das
vezes, encerram-se pedindo à autoridade competente o deferimento do que se pleiteia. Ademais,
no âmbito da análise da prática discursiva, todo gênero de discurso é relativamente estável
(Bakhtin, 2003), portanto ele navega de um viés a outro em face de suas semelhanças, até se
firmar e ganhar autonomia, como procuramos demonstrar no decorrer da pesquisa.
Sobral (2009, p. 115-133), na mesma perspectiva de Bakhtin/Volochinov (1995, p.
262), assevera que o gênero se define como formas ou tipos relativamente estáveis em face de
enunciados discursivos que guardam sua lógica própria que, por sua vez, migram-se para outros
tipos a ele correlatos e, ao longo do tempo, cristalizam-se ganhando autonomia em termos de
formas de textualização, mas ainda assim sem fixidez, na medida em que eles próprios se acham
suscetíveis a mutação em consonância com seu próprio ritmo.
Nesse sentido, o gênero de discurso Petição, objeto precípuo da presente pesquisa, é
exemplo cabal dessa instabilidade, pois, em princípio, era tido como um mero requerimento,
posteriormente passou à condição de petição, contudo, para distingui-los entre si, dependendo
da parte que o subscreve, ele migra de petição para se consubstanciar em uma contestação, um
agravo, recurso, embargo etc., que, a despeito de serem petições em sentido lato, são
documentos correlatos mas com nomenclatura distintas. Na pesquisa em tela, salvo em
situações específicas, serão tratados como petição por questões didáticas.
Chamou-nos atenção a relação interdiscursiva existente no gênero de discurso petição,
pois nele se evidenciam importantes aspectos que demandam conceitos discursivos de alta
30
relevância, como o dialogismo, polifonia, alteridade, interação verbal, que fomentam a doutrina
e a jurisprudência.
Como se percebe, são sem dúvida dimensões que apontam para respaldar argumentos
em favor do enunciador e, em contrapartida, os demandados também se valem deles na mesma
perspectiva como enunciadores, ensejando, pois, uma relação dicotômica e dialógica, sobretudo
na perspectiva da responsividade inerente aos sujeitos da relação interdiscursiva, porquanto
todos, estando em polos distintos, utilizam-se dos mesmos artifícios em constante
reciprocidade, de sorte que há inevitáveis trocas de posições em relação ao emissor/receptor,
ou seja, enunciador e enunciatário trocam-se desse status a cada intervenção no exercício do
contraditório.
Ao tratarmos de questões jurídicas, vale frisarem aspectos ideológicos de alta
relevância, pois, como é cediço, todo discurso é ideológico e arraigado de intenções, como
ressaltou Bakhtin/Volochinov (BAKHTIN, 1995, p. 123), para quem “... O discurso escrito é
de certa maneira integrante de uma discussão ideológica em grande escala: ele responde a
alguma coisa, refuta, confirma, antecipa as respostas e objeções potenciais, procura apoio
etc.”.
Esse gênero do discurso foi prestigiado na Carta Magna por força do art. 5º, inciso
XXXIII, alínea “a”, que assegura a todos o direito de peticionar, nesse caso, sem qualquer
formalismo, senão vejamos:
XXXIV – são a todos assegurados, independente de pagamento de taxas: a) O direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou
contra ilegalidade ou abuso de poder; b) A obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de
direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoa.
(Constituição da República Federativa do Brasil, 1988)
Aduz-se do preceito em tela que esse direito é inalienável, na medida em que está
insculpido nos direitos e garantias fundamentais do cidadão, especificamente no art. 5º da
CF/88. Importante frisar que o dispositivo supracitado não impõe a necessidade de advogado
para peticionar nesse mister, portanto qualquer cidadão que vise pleitear junto às repartições
públicas algum direito tem a prerrogativa de fazê-lo subscrevendo o documento em questão
sem assistência de um procurador nesse sentido. Ressalte-se que nesse propósito o peticionário
vai se valer das mesmas estratégicas argumentativas na consecução de seu intento, até porque
os modos de dizer são inerentes a todo enunciado, não obstante o maior ou menor grau de
desenvoltura no enunciar de cada pessoa.
31
Outro dispositivo legal garantido pelo supracitado artigo 5º da CR/88 de suma
importância quanto aos aspectos enunciativos diz respeito ao habeas corpus, que por sua vez
também pode ser interposto por qualquer pessoa que se ache em situação arbitrária, de prisão
ilegal ou sob ameaça nesse sentido, cuja petição também não demanda qualquer formalismo,
nem mesmo ser subscrita por advogado ou defensor público, podendo ser elaborada por
qualquer interessado que se encontre nessa situação, senão vejamos:
Art. 5º (...) LXVIII – conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se
achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de
locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder. (Constituição da
República Federativa do Brasil, 1988)
Para melhor interpretação do artigo em questão, faz-se imperioso reportarmos aos
artigos 647 e 654 do Código de Processo Penal - CPP, a saber:
Art. 647. Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar
na iminência de sofrer violência ou coação ilegal na sua liberdade de ir e
vir, salvo nos casos de punição disciplinar. Art. 654. O habeas corpus poderá ser impetrado por qualquer pessoa,
em seu favor ou de outrem, bem como pelo Ministério Público. (Código
de Processo Penal, 1941)
Vale destacar o preceito primário do artigo 654 em epígrafe que a petição em questão
também não exige a subscrição por advogado, pois o próprio interessado, mesmo sendo leigo,
pode elaborar a peça e fazer com que ela chegue ao conhecimento do juiz.
Por essas especificidades, o instituto jurídico em questão guarda relevância para a
análise discursiva, pois são os argumentos empreendidos pelo interessado que vão pautar a
decisão do juiz, portanto não há que se cogitar de conhecimentos técnicos ou jurídicos para esse
mister, bastando a narrativa dos fatos mediante argumentos os mais convincentes possíveis.
A petição em habeas corpus, por exemplo, corrobora outro interessante brocardo
jurídico que também nos remete à prática discursiva vinculada ao gênero petição, qual seja: "dê-
me os fatos que lhe direi o direito". Ora, uma petição bem fundamentada, com argumentos
plausíveis, mesmo subscrita por qualquer pessoa ameaçada de prisão sem fundamentação legal,
ao chegar ao conhecimento do juiz, de pronto já surte os efeitos jurídicos almejados pelo
emissor, sanando se for o caso eventuais vícios ou ilegalidades.
A propósito da máxima supramencionada - Dê-me os fatos que lhe darei o direito -
vale ressaltar nela uma estratégia enunciativa de grande relevância quanto aos aspectos
32
identitários, pois os fatos não falam por si, mas pelas circunstâncias que o motivam,
considerando inclusive as versões que o norteiam, daí a importância dos argumentos
empreendidos visando à persuasão do enunciatário. Aduz-se do brocardo que ele tem viés
identitário e ideológico com o condão de valorizar o juiz, transpassando a ideia o agente público
em questão seria onisciente, ou seja, tem resposta para tudo, o que não é bem assim por questões
óbvias.
No que tange ao habeas corpus, em se tratando de um instituto secular, podendo
qualquer indivíduo elaborar essa petição de cunho jurídico mesmo sem ser advogado, vem à
tona a importância da argumentação para se chegar a bom termo. Ressalte-se que qualquer
pessoa está suscetível a uma prisão ilegal, sendo compelida a pleitear sua liberdade, ainda que,
por circunstâncias diversas, não possa o peticionário contar com a assistência jurídica de um
defensor público ou advogado.
Recentemente, a imprensa noticiou um fato pitoresco de um preso que, julgando estar
detido ilegalmente por decurso de prazo, sem condições de contratar um advogado, resolveu
por conta própria elaborar um habeas corpus em petição redigida em um rolo de papel
higiênico. Pode parecer grotesco, risível ou irônico, até mesmo vexatório aos olhos de quem
não convive no meio, mas há de se convir que a lei permite esse recurso em situação urgente,
sem distinção quanto aos meios a serem utilizados, obviamente quando feito com urbanidade e
respeito.
Para comprovação do fato, trazemos à baila umas das várias matérias jornalísticas
sobre o caso em questão:
Preso envia pedido de habeas corpus ao STJ escrito em papel higiênico FOLHA DE SÃO PAULO 21/04/2015 18h40 Um preso de São Paulo enviou ao STJ (Superior Tribunal de Justiça) um
pedido de habeas corpus feito em um pedaço de papel higiênico. A
correspondência, que foi entregue na tarde desta segunda-feira (20), aparentava
ser escrita pelo próprio detento e estava "caprichosamente dobrada", segundo
o órgão. O preso, que não teve o nome informado, contou em cerca de um metro de
papel higiênico que está preso há nove anos, no CDP (Centro de Detenção
Provisória) de Pinheiros 1, e que participou de uma rebelião em 2006. Ele ainda
falou que está preso de forma irregular porque o crime que cometeu já estaria
prescrito. Pela legislação brasileira, pedidos de habeas corpus podem ser feitos por
qualquer pessoa, em qualquer meio, sem que seja necessário um advogado.
Dessa forma, o STJ informou que o papel higiênico foi fotocopiado e
digitalizado, e o processo será distribuído a um ministro relator em breve. Segundo a assessoria de imprensa do STJ, um outro preso usou um lençol para
formular seu pedido de liberdade há cerca de um ano. Assim como aconteceu
33
com o lençol, o pedido feito no papel higiênico deve ser encaminhado para o
museu do STJ.1
Ora, uma petição dessa natureza, elaborada por um leigo, mas que surte os mesmos
efeitos de tantas outras elaboradas por advogados devidamente constituídos, corrobora a tese
de que o prestígio da peça jurídica não residiria exclusivamente no profissional que a elabora,
mas sim na argumentação empreendida visando ao êxito no seu desiderato, assim como na
importância que ela representa diante de situações-limite. É nesse viés que a dissertação em tela
se justifica, pois não se está aqui prestigiando a advocacia em si, tanto que o leigo também pode
peticionar em causa própria, vislumbrando o mesmo êxito que um advogado devidamente
constituído, sem contar também que é uma forma de prestigiar o letramento, pois qualquer
pessoa alfabetizada pode peticionar a seu favor, não só oralmente, mas também por meios
formais.
O que se pretende no presente estudo é focar na argumentação como o meio para se
chegar a um resultado satisfatório, seja ao autor seja do réu, embora saibamos que numa
demanda jurídica o sucesso de uma das partes implica necessariamente o insucesso da outra,
em tese, ambas tiveram as mesmas oportunidades, valendo-se dos mesmos artifícios e dos
mesmos códigos que disciplinam a matéria, portanto logrará êxito aquele que melhor conduzir
suas estratégias argumentativas, sobretudo em situações polêmicas como as citadas.
Ainda em relação à petição de habeas corpus redigida em papel higiênico, vale frisar
a estratégia utilizada pelo enunciador, pois se aduz do fato que a intenção do impetrante foi
exatamente criar um factoide, algo que chamasse a atenção, quiçá ironizando o Judiciário ou os
Poderes constituídos, bem como o sistema social como um todo. Com essa atitude inusitada, o
autor da petição se impôs como enunciador, construindo sua posição identitária, fato um tanto
quanto arriscado, mas que, no caso em apreço, não lhe trouxe maiores problemas, pelo
contrário, haja vista a própria repercussão na mídia.
Essa lógica se respalda na ousadia do enunciador, ou seja, chamar a atenção da mídia
por utilizar-se de meio inusitado, no caso, valer-se de papel higiênico para elaborar uma petição
tão importante em um recurso de importância ímpar, que é o próprio habeas corpus, cuja
tradução literal equivale a “tenha o corpo livre”, repercutindo, quando provido, na liberdade do
peticionário, no caso, o preso.
1 Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/04/1619357-preso-envia-pedido-de-habeas-
corpus-ao-stjescrito-em-papel-higienico.shtml
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Ora, por que se utilizar de papel higiênico para fim tão nobre quando não haveria
maiores empecilho ao interessado em fazê-lo de outra forma, caso tivesse ele a iniciativa de
solicitar a qualquer agente carcerário autorização para subscrever essa petição em papel ofício,
ainda que manuscrita, e endereçá-la ao juiz de execução penal? A intenção do peticionário foi
exatamente chocar, chamar a atenção, quiçá provocar, o que de certa forma repercutiu
favoravelmente a ele, como também poderia ocorrer o contrário dependendo da reação do
enunciatário, no caso, o juiz.
Como é de conhecimento geral, o direito é uma ciência que atua proeminentemente no
campo da retórica, da dialética, valendo-se de argumentos e de estratégias de convencimento,
tendo como objeto precípuo o diálogo, a comunicação inter partes, autor e réu, administração
pública e administrado, acusador e acusado.
No âmbito do direito penal, que mais nos interessa em face do corpus, a petição inicial,
tecnicamente denominada notitia criminis, é documento elaborado por qualquer pessoa que
tenha o conhecimento de um fato ilícito, antijurídico e punível, comunicando o ocorrido às
autoridades – delegados, promotores, policiais. A partir dessa peça, instaura-se o inquérito para
apuração da autoria, os indícios, circunstâncias etc., não havendo maiores preocupações de
natureza técnico-formal para sua confecção. Assim, para efeito do presente estudo, a queixa-
crime também compõe o rol de petições como gênero de discurso.
Em suas manifestações, valendo-se dos princípios jurídicos da ampla defesa e do
contraditório inerentes à perspectiva responsiva preconizada por Bakhtin (2011, p. 259-306), as
partes manifestam-se demonstrando suas razões, buscando sobretudo desqualificar os
argumentos do outro. Os interactantes utilizam-se de estratégias discursivas visando persuadir
a todos quantos tenham interesse direto ou indireto na demanda jurídica, sempre imprimindo
um ar verossímil em suas alegações, procurando ser o mais convincente possível, sobretudo
porque, em situações como a vivenciada no caso concreto sob análise, não se tem a plena certeza
dos acontecimentos. Assim, em tese, a dúvida é fator favorável ao acusado, como bem explicita
a máxima do in dubio pro reu.
Em função das incertezas, há todo um processo comunicacional em que se afloram
conjecturas, ilações, deduções, pistas, testemunhas, depoimentos, ou seja, perspectivas de toda
ordem no afã de aferir a verdade dos fatos, bem como imprimir credibilidade nos discursos
empreendidos, sendo que, pelas circunstâncias, tratando-se de situação limite, o campo é fértil
a explicitar o dialogismo, haja vista a tensão existente em posicionamentos antagônicos. Nesse
sentido, adentraremos a seguir na relação discursiva entre os enunciadores e enunciatários
envolvidos no embate em questão.
35
2.2 A relação dialógica e a interação verbal no gênero do discurso petição
A linguagem enquanto atividade social compreende os polos distintos correlacionados
ao eu e ao tu na concepção benvenistiana (Benveniste 1970), na vertente discursiva atinente aos
interactantes na relação de trabalho ressaltada por Bronckart (2009) face à relação interpessoal
dialógica nesse contexto. Intencionalmente, os sujeitos da relação interdiscursiva externam suas
pretensões, suas intenções, levando-se em conta as representações linguísticas explicitadas em
signos, mormente no que tange à semiótica social, fenômeno importante no âmbito do direito e
no gênero de discurso petição. Nessa perspectiva, faz-se imprescindível vislumbrar a
semiotização social sob a ótica ideológica preconizada por Bakhtin/Volochinov (1977).
Pautando-se na esfera discursiva propriamente dita, não há comportamento humano
alheio a uma pretensão intrínseca à satisfação de uma vontade, seja por ato comissivo ou
omissivo, respectivamente por ações ou omissões, de sorte que sempre há uma intenção no agir
humano, o que se externa pela linguagem, pelo discurso empreendido. Por conseguinte, não há
que se cogitar sequer de indiferença nesse agir, pois, mesmo na suposta apatia, há sempre uma
postura motivada pela intenção implícita ou explícita entre interlocutores.
Nesse sentido, a pesquisa centra-se no destaque a certas especificidades da prática
discursiva em face dos modos de dizer perceptíveis nos enunciados, nas estratégias discursivas
nos processos judiciais, inclusive no âmbito dos processos administrativos, levando-se em conta
a prerrogativa inalienável do direito de liberdade de expressão, bem como da ampla defesa, do
contraditório, devido processo legal, aspectos esses que, no Brasil, são resguardados pela CR/88
sob a égide dos Direitos e Garantias Individuais amparados principalmente no artigo 5º da Carta
Magna.
Visando elucidar alguns institutos jurídicos e linguísticos importantes, teceremos
comentários conceituais acerca do tema, ressaltando, todavia, que não aprofundaremos nesses
pressupostos por não estarmos voltados a um público específico, mas a todos quantos se
interessem pela AD e seus influxos no gênero textual petição.
O estudo em tela busca demonstrar que as práticas discursivas na relação jurisdicional
exploram estratégias argumentativas para influenciar os envolvidos nas decisões, mormente nos
julgamentos em si, visando sobretudo conquistar a empatia do auditório, bem assim de outros
enunciatários do discurso envolvidos direta ou indiretamente, mais precisamente daqueles que
tenham influência direta ou indireta na solução do conflito. Nesse mister, focamos a utilização
pelo enunciador de operadores argumentativos e modalizadores, bem como marcadores de
pressuposição, que são mecanismos que possibilitam engendrar a enunciação numa construção
36
lógica, com intenção persuasiva. Para explicitarmos esse viés, recorreremos a Ducrot (1977) e
Koch (2006), que tratam do tema de forma inequívoca.
Deve-se frisar que o agenciamento de recursos linguístico-discursivos provoca efeitos
polifônicos, possibilitando diversos pontos de vista pautados em outros dizeres, mesmo quando
antagônicos. Com efeito, o fenômeno redunda em diversas vozes, que, por conseguinte,
apontam para muitas instâncias discursivas, como religião, política, família, para o sistema
jurídico como um todo, sem nos esquecer do senso comum, da sabedoria popular, da cultura.
Na visão de Ducrot, o enunciador é na verdade o sujeito empírico que não se expressa por si,
mas por intermédio do locutor, portanto o sujeito discursivo é responsável por diversas vozes
advindas de outros enunciadores, sendo o enunciado o resultado da dicotomia entre as vozes e
discursos de outrem, ensejando, pois, a relação polifônica, que por sua vez também nos remete
à alteridade.
Para se alcançar êxito em suas pretensões discursivas, tanto na oralidade quanto nas
petições escritas, por razões as mais diversas, faz-se imprescindível investir na consciência
identitária do enunciador, primando-se pela adesão do auditório, vislumbrando teses
argumentativas a serem defendidas, sem se descuidar dos artifícios também suscetíveis pelos
enunciatários quando do momento de suas manifestações, que, por sua vez, valem-se dos
mesmos artifícios em seu favor no momento da responsividade. Nesse sentido, torna-se
imperioso atentar-se para as perspectivas da consciência identitária relacionada ao ethos e
pathos, que se posicionam em constante permuta entre os actantes no processo comunicacional,
como assevera Bronckart (1999, p. 217-248).
Outro fator relevante na pesquisa diz respeito aos aspectos semânticos envolvidos na
situação concreta sob análise e em outros tantos na mesma perspectiva, à medida que não se
pode adentrar na AD e na seara dos gêneros textuais julgamento e petição sem se vislumbrar o
fazer justiça em consonância com os preceitos do que efetivamente seja justo, até porque o justo
para uns pode não o ser para outros, ressaltando que nem sempre a própria lei é justa, e por
conseguinte o que é legal pode não se consubstanciar justo na acepção semântica. Por sua vez,
uma sentença sem vícios processuais, ainda que proferida na melhor das intenções, também
pode não se configurar justa na acepção semântica do termo, embora formalmente o seja em
relação ao sistema jurídico-processual vigente no momento em que seja proferida.
Assim, qualquer que seja o resultado de um julgamento, ele sempre será sujeito ao
duplo grau de jurisdição, ou seja, da decisão, não sendo em última instância, caberá recurso a
uma instância superior, cujo julgamento caberá a um colegiado, às turmas recursais, ampliando
assim o espectro do julgamento, com o propósito de minimizar a possibilidade de erros, embora
37
até mesmo das decisões das turmas ainda caibam recursos suscetíveis à reforma da referida
decisão. Ainda que haja reforma da decisão recorrida, não se pode afirmar que aquela decisão
tenha sido injusta ou proferida de forma errônea, pois formalmente foi proferida dentro dos
preceitos legais.
Em face dessas especificidades os posicionamentos enunciativos são de suma
relevância visando influenciar o legislador na elaboração de projetos de leis que em tese vão ao
encontro da acepção da justiça, lembrando-se que essa iniciativa externa responsividade a uma
demanda da sociedade, procurando, em última instância, tornar mais justo ou menos injusto o
ordenamento jurídico como um todo, pois toda ciência está sempre em evolução, procurando
aperfeiçoar o sistema, e é nessa perspectiva que trabalhamos no presente estudo, visando chamar
a atenção para julgamentos inerentes ao tribunal do júri, aliás, um instituto jurídico milenar
arraigado a certas tradições, daí a resistência em promover mudanças, embora todos saibam da
necessidade de se repensá-lo à vista de novos tempos, em consonância com a dinâmica evolutiva
nessa perspectiva.
Assim, faz-se importante atentar-se para digressões de natureza semântico-discursiva
para melhor compreensão da relação intrínseca entre a AD e a semântica, pois não há como
tratar uma dessas dimensões sem correlacioná-las no que couber à outra, até porque elas estão
imbricadas pela própria natureza, embora cada qual detenha sua autonomia e especificidades.
Dessa forma, cabe um paralelo sobre alguns aspectos atinentes ao Direito
Constitucional, Penal e Tribunal do Júri, bem como à prática linguageira no âmbito do
julgamento, considerando inclusive a responsividade preconizada por Bakhtin (1997, p. 272),
como se depreende do caso que serviu de parâmetro para discutirmos o gênero de discurso
petição, numa análise discursivo-enunciativa relacionada às práticas linguageiras, elegendo
dimensões como a polifonia, a alteridade, a interação verbal etc.
Para melhor situar o leitor sobre os fatos e suas versões, traçamos um panorama do
julgamento utilizado como referência para ilustrar nosso ponto de vista sobre o tema. Em que
pese termos nos centrado nesse caso, a situação por si ilustra de forma geral as práticas
discursivas que norteiam as pretensões tanto de uma parte quanto de outra nos discursos
proferidos para galgar seus objetivos no gênero de discurso julgamento, seja ele na esfera penal,
cível, trabalhista, empresarial, etc.
Salientamos que procedemos à análise na perspectiva interpretativo-discursiva de viés
antropológico, pautando-nos em Maingueneau (2004, p. 15-39), bem como nos preceitos
filosóficos e discursivos externados por M. Foucault na Arqueologia do Saber (1.986), para
quem o discurso pode ser considerado como “Um conjunto de regras anônimas, históricas,
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sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em dada época, e para uma área
social, econômica, geográfica ou linguística dada, as condições de exercício de função
enunciativa”. (Foucault, 1972, p. 136)
Importante ressaltar a enunciação enquanto fenômeno linguístico-discursivo,
principalmente quando se cogita em relacioná-la ao âmbito jurídico. Para se entender as nuances
jurídicas vinculadas ao corpus faz-se imperioso atentar-se para a trilogia que a consubstancia à
relação processual. Nesse contexto, reportamo-nos a Flores (2009), que por sua vez cita
Authier-Revuz (1998, p. 99), in verbis:
A enunciação, concebida como um campo heterogêneo do conhecimento, põe
em jogo o sujeito e sua relação com a língua e com o sentido. É então,
considerada lugar de uma inevitável heterogeneidade teórica, que leva a
linguística, entendida em seu sentido restrito, a ter que recorrer a teorias
exteriores a seu campo para apoiar a descrição dos fatos enunciativos. Tais
teorias exteriores são: a teoria do sujeito de J. Lacan, o dialogismo de M.
Bakhtin e a noção de interdiscurso de M. Pêcheux. (Flores, 2009, p. 99)
A trilogia que respalda a enunciação por si justifica a tese ora empreendida, pois no
âmbito de um julgamento esses matizes se evidenciam por estarem presentes neles aspectos
atinentes às concepções psicológicas, a intenção externada no discurso proferido, o sentido
intrínseco a um determinado objetivo e a construção semântica e sintática utilizadas
estrategicamente com a finalidade de auferir um resultado junto aos enunciatários – juiz, autor
e réu, bem como agentes periféricos dessa relação tripartite.
No que tange à visão crítica relacionada ao controle social vislumbrado no
ordenamento jurídico social, pautamos nossas considerações em Bakhtin/Volochinov
(Marxismo e Filosofia da Linguagem, 1990), em especial no primeiro capítulo – Estudo das
Ideologias e Filosofia da Linguagem – fls. 31/38.
Na concepção bakhtiniana, todo enunciado é resultado de intenções, cabendo ao
enunciatário captar por sua conta e risco essas especificidades discursivas emanadas do discurso
proferido, vislumbrando as finalidades explícitas ou implícitas na perspectiva do emissor-
enunciador. É claro que a representação externada pelo enunciador implica uma responsividade
que, por sua vez, emana daquele que antes se posicionava na condição de enunciatário, mas
cuja reação responsiva o desloca ao status de enunciador, numa troca constante de posições
enunciativas – emissor-receptor, receptor-emissor, daí a riqueza vislumbrada na argumentação
como fator preponderante no macro gênero julgamento, de cuja espécie no âmbito jurídico a
petição é mecanismo de se externar a enunciação, cujo resultado coincide ou não à expectativa
das partes.
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O corpus nos remete ao liame intrínseco ao julgamento no âmbito do direito penal e às
estratégias discursivas utilizadas pelos sujeitos dessa relação comunicacional visando ao
convencimento do outro, daí essa relação íntima entre o direito e a linguística, na medida em
que o discurso a ser empreendido e os argumentos de sustentação cênica que darão suporte à
relação dialógica estão relacionados à interpretação das ações humanas, justificando o porquê
da importância em traçar essas considerações preliminares sobre o tema.
Por questões didáticas, faz-se conveniente adentrarmos em alguns conceitos jurídicos
ainda que em linhas gerais, mormente em relação ao direito penal e processual, dentre outros
correlatos. Essas digressões são importantes à vista do gênero textual petição, pois, ao se adotar
o sistema acusatório, significa que o Brasil adotou a sistemática de somente instaurar um
processo quando haja uma acusação formal, seja por iniciativa da própria vítima, de um parente,
de quem tenha conhecimento do fato delitivo, por iniciativa da própria polícia civil,
tecnicamente denominada polícia judiciária, bem como por provocação do MPE na pessoa do
Promotor de Justiça, que atua como representante da sociedade.
Nesse sentido, não cabe ao Juiz, por iniciativa própria, investigar um crime e por sua
conta e risco acusar o réu, pois, se assim o fosse, estaria ele avocando para si uma
responsabilidade considerável, que seria julgar com isenção, haja vista o interesse que já se
configuraria pelo próprio ato primeiro, no caso, o de acusar para depois julgar, algo
praticamente impossível. Ademais, essa lógica tem um propósito, pois não sendo o juiz o
acusador, terá ele a isenção para presidir a ação, o que dificilmente ocorreria se a inciativa de
acusação partisse dele, em que pese ser aceita essa prática em outros ordenamentos jurídicos.
Essas considerações são importantes exatamente para que não haja descontrole nesse
mister, inclusive para se compreender a lógica do sistema, sendo que tais mecanismos
processuais, de certa forma, influenciam na interpretação dos fatos, daí a coerência processual
que impõe a prescrição do procedimento previamente, até para não se incorrer em casuísmo.
Ademais, se um juiz tem conhecimento da prática de um crime, na condição de
cidadão, ele não só pode como deve prestar queixa-crime contra o acusado, porém não o faz de
forma institucional, mas sim como um cidadão comum. Aliás, em flagrante delito, qualquer
cidadão pode dar voz de prisão ao que se encontre nessas condições, sendo a ocorrência uma
petição em sentido lato visando, se for o caso, dar início a um processo criminal a partir da já
mencionada notitia criminis.
Nas situações em que haja suspeita da prática de um crime, geralmente a vítima ou
qualquer outra pessoa apresenta notitia criminis perante uma autoridade policial, no caso o
delegado de polícia, que, por sua vez, tem a obrigação de instaurar um inquérito cuja finalidade
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é auscultar, inquirir, investigar, seja ele próprio ou por investigadores de polícia, peritos,
técnicos etc. Nessa relação dialógica começa a engendrar estratégias discursivas relevantes ao
processo como um todo, de sorte que passam a ter importância não só os fatos em si, mas
também as versões dos fatos sob a ótica dos enunciadores.
Ao vislumbrar a hipótese da prática do crime e de sua autoria, cabe à autoridade policial
concluir o inquérito e encaminhá-lo para o promotor natural, ou seja, a autoridade competente
para acusar o réu perante o Poder Judiciário. Sendo o crime doloso, com intenção de ceifar a
vida de alguém sem qualquer conotação patrimonial, cabe ao promotor de justiça apresentar a
denúncia ao juiz de primeira instância, requerendo a pronúncia do acusado e, por conseguinte,
o encaminhamento dos autos ao Tribunal do Júri. É o caso que norteia a pesquisa objeto da
presente dissertação, cujo corpus nos traz à tona a perspectiva dialética, porquanto na relação
dicotômica vislumbrada no processo há sempre que se resguardar a prerrogativa da ampla
defesa e do contraditório.
Entende-se por pronúncia o acatamento da acusação do Órgão do Ministério Público
em relação ao fato delituoso, no caso, crime doloso contra a vida - doloso por haver intenção
deliberada do acusado em atentar-se contra a vida de outrem sem qualquer conotação
patrimonial; em caso de se praticar o crime com a intenção de apropriar-se de um bem, por
exemplo, descaracteriza-se o homicídio doloso na perspectiva, passando o réu a responder por
latrocínio, ou seja, matar para roubar, para apropriar-se de coisa alheia móvel.
Assim, caso o réu incorra em latrocínio (matar para roubar, ou tecnicamente para se
apropriar de coisa alheia móvel), não há que se falar em julgamento perante o tribunal do júri,
pois nesse caso, será o réu acusado perante o juiz natural da vara criminal específica, cabendo
ao juiz togado presidir o processo e julgar o caso sem que se cogite da participação do júri, ou
seja, a decisão é monocrática. Sendo condenado, o réu pode recorrer ao Tribunal de Justiça;
Superior Tribunal de Justiça – STJ e Supremo Tribunal Federal - STF, conforme a circunstância,
sendo que quaisquer desses recursos serão interpostos por aquele que tenha sido parte vencida,
seja para reparar eventual erro processual, seja para recorrer do mérito.
Essas vicissitudes ilustram as razões do trâmite do caso trazido à baila, explicitando o
porquê da divergência crucial de natureza processual, comparando, por exemplo, um crime
motivado por questões patrimoniais com um crime tentado ou praticado contra a vida de
alguém, nesta situação a competência é exclusiva do tribunal do júri. Não estamos aqui nos
referindo a recursos de natureza processual, obviamente, pois para falhas relacionadas ao rito
propriamente dito cabem recursos naturalmente em qualquer situação, sendo que dos
julgamentos do júri não cabem recursos no mérito a outras instâncias, o que é uma exceção.
41
Ora, se todos estão suscetíveis a equívocos interpretativos, a erros, por que o corpo de
jurados não estaria por óbvio vulnerável a essas mesmas possibilidades? E mais, se se admite
que todos erram ou se equivocam, inclusive as turmas recursais compostas por juízes togados,
desembargadores, ministros, tanto que de suas decisões cabem recursos, por que não se admitir
que o tribunal do júri, composto por jurados (juízes leigos), também não incorreria em erros ou
equívocos suscetíveis de reparos? A celeuma mais uma vez não se resumiria em questões
jurídicas, mas em grande parte em questões linguísticas, discursivas, interpretativas,
considerando inclusive aspectos atinentes ao controle social? Eis a questão.
Vários fatores corroboram essa perspectiva e questionamentos, a saber:
• a dialogicidade, porquanto não há julgamento sem tensões voltadas por pontos
de vista divergentes, na medida em que enunciadores e enunciatários estão em
constantes conflitos de interesses, opiniões, argumentos;
• a dialética argumentativa, pois, se há posicionamentos doutrinários que
embasam votos favoráveis ao autor, também há em sentido contrário, favoráveis
ao réu, o que por si justifica o dialogismo supracitado;
• a interação verbal, uma vez que o ordenamento jurídico-processual e a legislação
como um todo são resultantes de uma política engendrada pela sociedade
mediante iniciativa de projetos de lei motivados pela demanda responsiva,
considerando a contextualização inerente a aspectos culturais, sociais,
psicológicos, tanto que a legislação de um país diverge consideravelmente em
relação a de outros;
• a polifonia, tendo em vista que todo julgamento permite às partes, por meio de
manifestações orais ou por petições, externarem diferentes pontos de vista, ou
seja, embora o enunciador seja o sujeito discursivo, atuando como locutor; na
verdade, sua enunciação é resultante de outros discursos, de outras enunciações
que se confrontam ou se apoiam, ensejando, pois, outro fenômeno que
descrevemos a seguir;
• a alteridade, que implica a inter-relação entre as pessoas numa concepção social.
No âmbito do direito, a alteridade se externa e se aflora no gênero de discurso
petição, considerando-a em sentido lato, ou seja, na petição propriamente dita,
na contestação, recurso, agravo, embargos, etc. Faz-se oportuno ressaltar que as
petições de grandes juristas, daqueles reconhecidamente dotados de notória
especialização, servem de supedâneo a outros advogados; as sentenças
proferidas também são subsídios a argumentos empreendidos em situações
42
similares; as obras jurídicas, por sua vez, prestam-se inclusive para formar
opinião, para respaldar sentenças, que, por outro prisma, embasam petições,
recursos, sentenças etc., daí a formação de opinião, a influência de uma
enunciação a outras enunciações, de um discurso a outro, e assim
sucessivamente, de sorte que o eu-individual parte do tu-enunciador e vice-versa,
ensejando a máxima de Benveniste segundo a qual não há o eu sem o tu, como
também não haveria o tu sem o eu. Enfim, o ato de linguagem é um fenômeno
de troca entre parceiros – enunciadores e enunciatários – cada qual em suas
semelhanças e diferenças.
Esses fenômenos linguísticos serão evidenciados amiúde ao longo da pesquisa,
contudo, em princípio, estamos nos atendo a aspectos jurídicos, bem como ao corpus, sobretudo
para que o leitor leigo possa melhor compreender as razões que nos levaram a vislumbrar o
problema e, por conseguinte, a hipótese.
Essa situação por si impõe vários questionamentos, na medida em que, em processos
comuns, sendo as decisões contrárias ao interesse de uma das partes, o contraditório e a ampla
defesa se consubstanciam em recursos os mais diversos, o que não é possível quando se trate
de decisões do júri, haja vista a aura soberana a que estão estereotipadas.
2.3 Abordagem metodológica
2.3.1 O Corpus selecionado e categoria de análise
O corpus centra-se no julgamento do acusado pelo assassinato da jovem Denise Lafetá,
tendo como referência as peças extraídas do Processo que culminou com a condenação do
acusado, posteriormente dando origem ao livro Homicídio sem Cadáver.
Selecionamos algumas peças para demonstrar estratégias argumentativas destinadas a
formar opinião dos enunciatários com poder de decisão sobre o caso, citando os Anexos e as
páginas do referido livro em que elas se encontram, até pela dificuldade em ter acesso aos autos
originais do processo pelo decurso de prazo.
No que tange especificamente ao material de análise, selecionamos as petições de
maior relevância à acusação, como a denúncia formulada pelo Promotor do caso – Petição 01 –
p. 27-29; a Petição 02, que relata os fatos sob a ótica do Delegado de Polícia responsável pelo
Inquérito Policial – p. 27/27; a Petição 03, relativa ao acatamento pelo Juiz do requerimento
43
feito pelo Promotor de Justiça pleiteando a prisão preventiva do acusado – p. 31/32; Petição
04 relativa às alegações finais - p. 35/47; a Decisão do Tribunal de Justiça do Estado de Minas
Gerais configurando o trânsito em julgado – p. 108/112.2
A título de esclarecimento, o julgamento seguiu o trâmite na cronologia dos fatos
elencados na seguinte sequência: os parentes mais próximos da vítima suspeitam de seu
desaparecimento; por conseguinte suspeitam que o responsável pelo sumiço da vítima tenha
sido seu companheiro - DAP; no afã de desvendar as causas do desaparecimento, comparecem
à delegacia da cidade de Uberlândia para apresentarem queixa-crime, tecnicamente denominada
notitia criminis; o delegado acolhe por dever de ofício a representação feita pelos interessados;
a partir de então, instaura-se o inquérito criminal; em seu mister, os policiais procedem às
investigações diligenciando o inquérito com buscas, apreensões, intimações do acusado,
depoimentos, perícia, ouvindo testemunhas. A despeito de todo o empenho, os policiais não
logram êxito em descobrir o paradeiro da vítima, nem encontram seu corpo, portanto não houve
como fazer o exame pericial conhecido como exame de corpo de delito; na impossibilidade de
exame pericial, conclui-se o inquérito por provas indiretas, testemunhais, pistas, conjecturas
etc., encaminhando o inquérito ao promotor de justiça responsável pela acusação, no caso
Tibúrcio Délbis - titular na Comarca de Uberlândia à época (autor do livro que serviu de suporte
ao presente estudo); o promotor procede à representação do acusado DAP narrando em
minúcias os acontecimentos, discorrendo sobre as evidências do crime, embora sem que o corpo
da vítima tenha sido localizado, contudo apresentando farta doutrina e jurisprudência acerca da
possibilidade de acusação por homicídio mesmo sem provas diretas; por seu turno, o juiz de
primeira instância à época - Comarca de Uberlândia - não se convence da prática do crime pelo
acusado e não o “pronuncia” (dialogismo), apresentando também dispositivo legal que o
autoriza a não fazê-lo – o que evidencia um dos mais importantes fatos a ensejar o dialogismo
no âmbito linguístico: o promotor de justiça se insurge (dialogismo) contra a decisão do juiz e
recorre ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais, órgão de segunda instância responsável por
julgar recursos dessa natureza; o Tribunal de Justiça dá provimento ao recurso, o que significa
reforma da decisão do juiz da comarca de Uberlândia, de sorte que o caso passa efetivamente a
ser julgado pelo tribunal do júri daquela comarca; o réu também se insurge contra tal decisão,
inclusive contra sua prisão antes mesmo do julgamento fundamentada em suposta obstrução
aos trabalhos da justiça, o que motiva seu desaparecimento temporário, impetrando habeas
corpus, recurso interposto por prisões arbitrárias - prisão supostamente ilegal; o STJ lhe nega
2 Délbis, Tibúrcio. Homicídio sem cadáver: o caso Denise Lafetá/Tibúrcio Délbis – Belo Horizonte: Del Rey,
1999.
44
provimento apresentando também doutrinas, jurisprudências e argumentações que respaldariam
a negativa do habeas corpus nessas circunstâncias; enfim, o processo efetivamente é julgado
pelo Tribunal do Júri, sendo o réu condenado a 13 anos de prisão, tendo se apresentado
espontaneamente para o cumprimento da pena que lhe fora imposta.
Toda essa trajetória demonstra que o julgamento passou por vários estágios antes de
haver a pronúncia do acusado, haja vista divergências interpretativas entre o promotor e o juiz,
assim como entre os advogados de defesa e a promotoria, portanto todo esse antagonismo
evidencia o dialogismo fomentado pela tensão discursiva, pontos de vista díspares que ensejam
relações dialógicas.
Sanadas as divergências preliminares sobre a pronúncia ou impronúncia do acusado,
são escolhidos sete jurados sorteados dentre vinte e sete cidadãos, dos quais, dependendo do
perfil do jurado, pois, considerando-se ainda a especificidade do crime, pode ser conveniente
aos advogados de defesa ou à promotoria mantê-lo ou não, tudo a depender das estratégias
argumentativas a serem utilizadas pelas partes, que, dadas essas circunstâncias, podem recusar
até três jurados dentre os que foram sorteados.
A recusa ou manutenção desses jurados guarda relação intrínseca com as questões
discursivas, com as estratégias argumentativas, haja vista que, em face da situação concreta, as
partes vislumbram questões ideológicas, pessoais, filosóficas, religiosas, valores os mais
diversos ligados à cultura, à economia, à política, machismo, feminismo, dentre outros.
Nesse sentido, vale ressaltar os aspectos linguísticos inerentes às questões identitárias,
o ethos, pathos e logos, que têm implicações na situação concreta, haja vista sua relação com a
imagem dos enunciadores e enunciatários e a preocupação com o que dizer e com o modo de
dizer, com o discurso em si.
Importante frisar que o presente estudo filia-se a uma perspectiva metodológica de viés
qualitativo-interpretativo, cujo corpus nos remete às petições atinentes ao julgamento no âmbito
do Tribunal do Júri. Nesse viés, como asseveramos anteriormente, pautamo-nos pela análise
expositiva e argumentativa, de cunho interpretativo, na linha preconizada por Salvador (1980,
p. 35), a quem Marina de Andrade Marconi e Eva Maria Lakatos (2010) se reportam em sua
renomada obra Fundamentos de Metodologia Científica, senão vejamos:
Para Salvador (1980, p. 35) a dissertação pode ser:
• Expositiva. Quando reúne e relaciona material obtido de diferentes
fontes, expondo o assunto com fidedignidade e demonstrando
habilitada não só de levantamento, mas também de organização.
• Argumentativa. Quando requer interpretação das ideias apresentadas
e posicionamento do pesquisador. (Sem destaque no original)
45
Por vislumbrar plausibilidade na demanda em questão pelas razões externadas, bem
como perspectivas quanto ao aperfeiçoamento do ordenamento jurídico nessa linha, mormente
em tema tão relevante, pautamo-nos ainda na consecução da pesquisa no viés qualitativo-
argumentativo, por entendê-lo como o mais adequado e oportuno nesse objetivo.
Tendo em vista que o ordenamento jurídico é semiotizado em razão de questões
ideológicas, filosóficas e políticas, tratamos o tema em questão em consonância com as lições
preconizadas por Charaudeau, mormente no que concerne à semiolinguística atinente à
construção do mundo, levando em conta a relação semântico-cognitiva inerente à estruturação
do mundo social em seus aspectos psicolinguísticos, sociolinguísticos e psicossociais.
Nessa linha de raciocínio, o referido autor explicita o duplo processo de semiotização
do mundo, subdividindo-o no processo de transformação e no processo de transação, que
respectivamente implicam mundo a significar e mundo significado, bem como correlação do
sujeito falante e sujeito destinatário.
Nessa correlação de fatores, o processo de transformação demanda identificação dos
seres: identidades nominais; qualificação: identidades descritivas; a ação: identidades
narrativas; causação: relação causa e efeito, ao passo que o processo de transação se
consubstancia à vista de quatro princípios, a saber: princípio de alteridade, pertinência,
influência e regulação, que são intrínsecos ao corpus.
A alteridade implica fenômeno linguageiro relacionado à troca enunciativa entre dois
parceiros comunicantes, quer estejam ou não em diálogo diante um do outro, mas cada qual
respeitando a individualidade do outro, face à mútua relação de semelhança e dessemelhanças
entre os enunciadores, de sorte que haja troca de saberes partilhados e finalidades comuns e
incomuns, havendo reciprocidades mútuas e respeito às diferenças.
O princípio de pertinência de certa forma correlaciona-se com o da alteridade, na
medida em que haja reconhecimento dos universos de referência, sendo que os parceiros do ato
linguageiro compartilham dos saberes sem que necessariamente os adotem nas mesmas
perspectivas: são saberes sobre o mundo, valores psicológicos, sociais, comportamentais.
No que tange ao princípio da influência, aduz-se que os sujeitos do ato discursivo
visam atingir o interlocutor, sempre com um propósito, ou para afetá-lo de forma emotiva ou
para induzi-lo a um agir, a uma reação, ou mesmo para lhe orientar na forma de pensar. Assim,
o princípio da influência visa a uma finalidade intencional.
Por fim, o princípio da regulação, que por sua vez guarda relação com o princípio de
influência, diz respeito ao conhecimento dos interlocutores acerca da dimensão da linguagem
utilizada no discurso, das estratégias de persuasão. Esse princípio permite a compreensão de
46
ambos quanto às práticas linguageiras utilizadas, o que impõe limites aos interlocutores, de sorte
que eles não se excedam à margem do bom senso. Por exemplo: entre o advogado e o promotor
em um júri a relação deve ser institucional, não extrapolando a esfera de atuação.
2. 3.2 O problema e a hipótese
O problema reside no fato de que, no âmbito do Poder Judiciário, todas as ações são
suscetíveis ao duplo grau de jurisdição, valendo dizer que o julgamento de primeira instância
pode chegar ao STF pelo inconformismo das partes em relação ao mérito, haja vista as
possibilidades de equívocos interpretativos por parte dos juízes e desembargadores, ou
independentemente de equívocos, por divergências de teses.
Ocorre que no âmbito do Tribunal do Júri não há essa possibilidade, portanto, havendo
eventual equívoco de ordem interpretativa, não há como recorrer da decisão proferida pelos
jurados, exceto em relação a erros grosseiros de natureza processual ou procedimental. Tal
posicionamento se ancora na supracitada soberania conferida ao conselho de sentença formado
por jurados leigos, portanto as partes ficam em certa medida vulneráveis a um único e
irrecorrível julgamento, o que representa grave problema, pois não há uma outra oportunidade
para se rediscutir o caso como ocorre nos demais julgamentos.
A hipótese plausível a mitigar os efeitos da vulnerabilidade em questão estaria na
implantação do júri em instâncias superiores, de sorte que sua condição soberana seria
preservada pelo princípio da unicidade que lhe seria conferida formalmente, como ocorre com
o próprio Ministério Público - MPE, desde que essa nova perspectiva fosse devidamente
disciplinada pelo legislador, ou seja, pelo ordenamento jurídico nesse sentido.
Essa nova formatação do júri propiciaria à sociedade maior segurança jurídica,
porquanto uma das funções dos recursos é exatamente minimizar as possibilidades de equívocos
motivados por interpretações discursivas divergentes. Com a implantação do duplo grau de
jurisdição no âmbito do júri, garantir-se-ia a todo cidadão o direito inalienável da ampla defesa
e do contraditório em outras instâncias, como ocorre nas demais esferas jurisdicionais, haja
vista que o júri é uma exceção, na medida em que não se cogita de recurso de suas decisões no
que tange ao mérito.
47
2.3.3 Objetivos
2.3.3.1 Objetivo geral:
O objetivo da pesquisa centra-se em demonstrar que as estratégias argumentativas
agenciadas pelas partes são em certa medida responsáveis pelo resultado auferido pela sentença
judicial que condena ou absolve o réu, sobretudo em questões polêmicas que admitam tanto
uma versão quanto outra, de sorte que o melhor argumento pode se sobrepor à realidade dos
fatos e, por conseguinte, implicar inevitável vulnerabilidade das partes envolvidas nos conflitos
jurídicos, haja vista posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais ora numa vertente, ora
noutra, o que se justifica até mesmo pelo fenômeno linguístico atinente à polifonia e alteridade
na relação discursiva.
Nesse sentido, há uma relativa insegurança jurídica aos jurisdicionados – autor e réu -
uma vez que nem sempre logra êxito na demanda judicial aquele que efetivamente tenha razão,
mas sim a parte que tenha se valido de argumentos mais convincentes em suas petições escritas
ou orais, persuadindo os enunciatários que detenham o poder de decidir, no caso os jurados,
juízes, desembargadores, ministros, bem como promotores de justiça, delegados, enfim,
autoridades competentes envolvidas em julgamentos dessa natureza.
Por oportuno, faz-se relevante ressaltar que os membros do conselho de sentença são
leigos, jurados sem formação jurídica, fato que por si denota peso considerável no discurso e
em sua interpretação, mormente porque pesam em suas decisões aspectos culturais de toda
ordem, como formação religiosa, classe social, grau de instrução, gênero etc.
Dessa forma, a pesquisa visa provocar uma discussão acerca da viabilidade do duplo
grau de jurisdição nos julgamentos atinentes à esfera do tribunal do júri, a exemplo do que
ocorre nas demais ações judiciais cíveis ou penais, sendo o júri uma exceção, na medida em que
não se permite rediscutir o caso a partir do veredito, a menos que tal propósito se justifique em
face de erros formais ou processuais, a exemplo de nulidades, o que não diz respeito ao mérito
em si.
Portanto, a pesquisa evidencia uma abordagem semiolinguística, levando-se em conta
as características gerais do discurso empreendido e assimilado pelas partes em julgamentos de
competência do júri, cujo veredito compete a jurados com ou sem formação jurídica, na maioria
das vezes sem qualquer formação nessa área, de sorte que os votos resultam mais da
sensibilidade interpretativa dos fatos, de suas versões e do senso comum de justiça de cada
jurado.
48
Nesse sentido, a pesquisa, em certa medida, prima-se pelo que preconiza Charaudeau
quanto às práticas sócio-discursivas, considerando o postulado de intencionalidade, os
princípios de interação e pertinência relativos ao ato de linguagem, senão vejamos:
Na abordagem semiolinguística, enfim, o princípio de pertinência – que
implica o ato de reconhecimento recíproco por parte dos parceiros e um saber
comum – vai muito além da instância de enunciação do ato de linguagem:
inclui todo um conhecimento prévio sobre a experiência do mundo e sobre os
comportamentos dos seres humanos vivendo em coletividade, conhecimento
este que não precisa ser expresso, mas que é necessário à produção e
compreensão do ato de linguagem. Tal abrangência nos leva a afirmar que o
ato de linguagem se realiza num duplo espaço de significância, o externo e o
interno à sua verbalização, determinando dois tipos de sujeitos de linguagem:
os parceiros, que são os interlocutores, sujeitos de ação, seres sociais que têm
intenções – que chamamos de sujeito comunicante e sujeito interpretante; e os
protagonistas, que são os intra-locutores, os sujeitos de fala, responsáveis pelo
ato de enunciação – os quais chamamos de (sujeito) enunciador e (sujeito)
destinatário. E embora haja uma relação de condição entre esses dois tipos de
sujeitos, não há entre eles uma relação de transparência absoluta.3
Não resta dúvida que o campo jurídico atinente a julgamentos de competência do júri
é fértil à Análise do Discurso, mormente em relação ao gênero petição, haja vista as estratégias
argumentativas utilizadas com propósitos persuasivos, considerando sobretudo a interface entre
sujeito comunicante e sujeito interpretante.
2.3.3.2 Objetivos específicos:
a) evidenciar que a enunciação discursiva pode mudar a natureza das coisas, tornando
formalmente o justo em injusto ou vice-versa, daí a vulnerabilidade dos jurisdicionados – autor
e réu - bem como toda a sociedade, pois ninguém está isento de se ver diante de uma situação
limite que lhe obrigue a se defender de uma acusação, até mesmo perante o tribunal do júri,
dadas as vicissitudes do dia a dia em um mundo tão conturbado;
b) demonstrar que aspectos linguístico-discursivos têm peso considerável nas decisões
jurisdicionais, mormente no âmbito do tribunal do júri, cujos integrantes são pessoas leigas em
relação a aspectos jurídicos em sentido stricto, portanto o que pesa em suas decisões são as
interpretações acerca dos discursos proferidos pelas partes;
c) apontar as estratégias argumentativas utilizadas no gênero de discurso petição, bem
como a construção da imagem pelo enunciador e enunciatário, na perspectiva do ethos e pathos,
3 CHARAUDEAU, Patrick. Uma análise semiolinguística do texto e do discurso. In: PAULIUKIONIS, M. A. L.
e GA VAZZI, S. (Orgs.) Da língua ao discurso : reflexões para o ensino. Rio de Janeiro : Lucerna, 2005, p. 11-
27
49
evidenciando a força cênica do eu enunciador perante o auditório, o tu enunciatário;
d) alertar para o fato de que, mesmo agindo em conformidade com os preceitos legais, as
decisões judiciais muitas vezes são antagônicas, como demonstram jurisprudências que dão
suporte aos jurisdicionados em polos distintos, ou seja, autor e réu, cada qual se valendo de
decisões que lhes sejam favoráveis, portanto o fiel da balança pode pender em razão da eficácia
enunciativa. Comprovam esse antagonismo os recursos interpostos nas várias instâncias cíveis
e penais, até exauri-los na Suprema Corte, que, por sua vez, também apresenta divergências de
entendimento entre seus ministros, tanto que a composição do colegiado é sempre formada por
número ímpar para se evitar o constrangimento de empate em julgamentos dessa natureza;
d) evidenciar que, a despeito de nuances inerentes a cada caso, o ordenamento jurídico
confere legitimidade às decisões judiciais tanto a favor quanto contra em situações análogas ou
díspares, mormente quando se observam o devido processo legal, a ampla defesa e o
contraditório;
e) fomentar a ideia e viabilidade de se implantar o duplo grau de jurisdição no âmbito do
Tribunal do Júri, visando facultar de forma efetiva a ampla defesa e o contraditório na mais
ampla acepção da expressão, visando rediscutir o mérito em grau de recurso perante o Júri em
instância superior, ou seja, no mínimo, no Tribunal de Justiça.
51
3 REFERENCIAIS TEÓRICOS
O propósito deste capítulo é demonstrar a base teórica sobre a qual procuramos nos
respaldar para evidenciar a influência da argumentação visando auferir um resultado
satisfatório, bem como os meios discursivos para confrontar outros pontos de vista em sentido
inverso, ressaltando a plausibilidade tanto em um quanto em outro vértice, porque, não fosse
por essas possibilidades, sequer haveria razões para se discutir a demanda na via judicial,
porquanto uma das partes se resignaria à sua condenação ou absolvição do outro, conforme o
caso, sem que se procedesse ao exercício do dialogismo inerente às demandas judiciais.
3.1 Relação dialógica, concepção identitária e relação de poder no discurso
O corpus nos permite explicitar a realidade dos fatos e, a partir dela, tirar conclusões
acerca de situações semelhantes, entendendo melhor o ordenamento jurídico, bem como a
relativa vulnerabilidade do sistema a partir dessa perspectiva, ressaltando que os
acontecimentos tendem a se repetir a ponto de sugerirem novas leis aperfeiçoando o sistema
como um todo, portanto a pesquisa vislumbra chamar a atenção para a realidade, visando
modificá-la no que for possível, sem a pretensão de querer mudar só por mudar.
Ademais, não nos cabe tão somente a posição apática e passiva de aceitar as coisas tais
como elas se nos apresentam sem nos posicionarmos em relação àquilo que possa ser
melhorado. Ouvimos os discursos emanados de nossos parlamentares enunciadores, que, no afã
de disciplinar o ordenamento jurídico, editam leis que nem sempre se coadunam com nossas
demandas, portanto podemos e devemos questionar o sistema sempre que entendermos
necessário.
Em sua obra Estética da Criação Verbal, Bakhtin (2011, p. 271) afiança que “A
compreensão passiva do significado do discurso ouvido é apenas um momento abstrato da
compreensão ativamente responsiva real e plena, que se atualiza na subsequente resposta em
voz real alta (...)”, mas muitas vezes essa resposta se dá a posteriori, portanto é sempre
oportuno questionar o status quo primando-se por uma posição responsiva oportuna, até porque,
segundo o referido autor, “Os gêneros da complexa comunicação cultural, na maioria dos
casos, foram concebidos precisamente para essa compreensão ativamente responsiva de efeito
retardado. Nesse propósito, voltaremos a esse tema ao questionarmos o sistema do tribunal do
júri, principalmente ao discorremos sobre os argumentos empreendidos pelo Relator no Anexo
05.
52
Assim não nos cabe ser apenas uma caixa de ressonância à vista do processo legislativo
ou em face dos discursos proferidos por nossos parlamentares, de sorte que os questionamentos
em pauta são oportunos a uma atuação responsiva, e esse é um dos propósitos da presente
pesquisa.
Ao tratarmos de um caso concreto, de certa forma, estamos vislumbrando outros
similares, haja vista que o comportamento humano, em geral, tende-se a voltar-se para o bem,
mas nas distorções também há similitudes em relação ao mal. Tanto assim o é que o caso Eliza
Samudio, em certa medida, assemelha-se em vários aspectos ao caso Denise Lafetá ora em
comento, ambos com grande repercussão na mídia.
Nesse intento, ao nos reportarmos ao julgamento em comento, partimos do micro para
exemplificarmos o macro, do particular para o geral, na medida em que haja uma simetria nas
situações, o que se constatará ao longo da pesquisa. Vale ressaltar que o fenômeno da polifonia,
em parte, se justifica em face dos fatos que por sua vez se repetem, daí a importância de
centrarmos em uma situação fática como referência empírica em situações concretas da mesma
natureza.
Para subsidiar a pesquisa, perscrutamos as enunciações doutrinárias e jurisprudências
atinentes às petições objetos do julgamento em si, tanto num viés quanto noutro, o que fomenta
a perspectiva da polifonia e alteridade inerentes ao vozeamento. Por oportuno, pesquisamos
obras voltadas para a AD visando respaldar nossas conjecturas sobre o tema tratado, não nos
esquecendo de recorrer também a obras literárias que tratam sobre a concepção de justiça, bem
assim sobre a burocracia estatal, mormente no âmbito do Judiciário, servindo como parâmetros
obras como O Processo e O Castelo de Franz Kafka, que de certa forma denunciam a burocracia
estatal e o controle social preconizado na semiotização externada por Bakhtin/Volochinov em
Marxismo e Filosofia da Linguagem.
Também nos reportamos à questão da formação identitária, tanto na perspectiva do
ethos quanto do pathos, bem como na valoração de um suposto prestígio social engendrado
artificialmente para respaldar estrategicamente determinadas funções de estado, a exemplo de
juízes, promotores, delegados, procuradores, advogados, como enfatizou Foucault em A
Arqueologia do Saber em relação a outros saberes, a exemplo da posição identitárias do médico,
do economista, do cientista nas respectivas épocas, haja vista sua pesquisa num viés diacrônico.
Tais estratégias também foram evidenciada por Amossy (2005) - A Imagem de Si no Discurso
- a construção do ethos, ressaltando inclusive a consciência da relação identitária vislumbrada
no auditório, que, por sua vez, implica percepção do pathos.
A pesquisa aguça questionamentos de interesse geral, sobretudo por se tratar de
53
questões polêmicas, no caso, um crime difícil de ser desvendado, sem provas materiais de sua
autoria, o que, por óbvio, demanda confrontos de ordem argumentativa de ambas as partes,
tanto da promotoria quanto da defesa, daí o porquê de se tratar de campo fértil aos estudos
linguísticos voltados para a dialética, haja vista as enunciações discursivas que perpassam pelo
crivo da veracidade dos fatos narrados, de juízos de valor, legalidade, interpretação da lei, dos
fatos e suas versões.
Vislumbrando essas circunstâncias, que por sinal não se resumem exclusivamente na
interpretação da lei em si, mas também dos fatos e suas versões, o gênero petição se
consubstancia oportuno a se conjecturar sobre a concepção de justiça, tendo em vista que quem
decide no âmbito do júri são jurados leigos que farão suas ponderações para dar o veredicto
sobre a condenação ou absolvição do acusado acerca de um crime cuja autoria lhe seja
imputada. É bom ressaltar que o dilema em questão não se dá exclusivamente em julgamento
oriundo do júri, pois mesmo em relação a decisões emanadas de juízes togados a celeuma
sempre estará presente, pois o conceito de justo é relativo, qualquer que seja a decisão tomada
em consonância com os preceitos processuais definidos nos respectivos códigos.
Nesse propósito, optamos pelo caso concreto em questão, visando demonstrar a
vulnerabilidade das partes à vista da interpretação dada às enunciações discursivas, sobretudo
em situações polêmicas que admitam tanto um viés quanto outro, haja vista que nem sempre há
unanimidade nas decisões dos jurados, como ocorreu no processo em análise, cujo resultado foi
cinco votos pela condenação e dois pela absolvição, sendo que a interpretação desses dois votos
vencidos não partiu do acaso, mas também de outros pontos de vista que devem ser sopesados
e respeitados por razões óbvias.
Deve-se frisar que, mesmo tratando em grande medida de direitos inerentes às partes,
incluindo as vicissitudes atinentes à acepção de justiça, de direito, de julgamento, de
argumentações jurídicas, de doutrinas e jurisprudências, a essência residirá sempre nos aspectos
linguísticos, haja vista que o direito se consubstancia em vários fatores, mormente no
contraditório, na dialética, na retórica, na responsividade, no dialogismo, na interação verbal,
na polifonia, na alteridade, daí a relação intrínseca com a linguística e a análise do discurso.
Nesse sentido, convém ressaltar que, ao tratarmos de temas voltados para o direito, na
essência, as questões linguístico-discursivas estão a ele subjacentes, imbricadas, como de resto
ocorre no campo da psicologia, sociologia, antropologia, comunicação, publicidade etc.
A propósito, toda a trajetória do processo em referência demonstra as vicissitudes de
julgamentos em geral, pois no caso sob análise estão intrínsecos aspectos atinentes à prática
linguageira, aos discursos, à interpretação dos fatos, dos posicionamentos enunciativos,
54
evidenciando o dialogismo em toda a sua dimensão por questões óbvias, especialmente pelo
direito à ampla defesa, pelo contraditório, isonomia processual entre as partes, pelas estratégias
argumentativas empreendidas tanto pelo autor quanto pelo réu.
No processo em referência evidenciamos o dialogismo em face da flagrante celeuma
envolvendo o crime, o que se vislumbra no trabalho das autoridades policiais, do promotor, juiz
de primeira instância, do colegiado nos tribunais superiores, bem como nos depoimentos das
testemunhas, do próprio réu, e nas alegações emanadas do advogado. Contudo, outros aspectos
discursivos serão evidenciados oportunamente, como a interação verbal, a polifonia, alteridade,
a perspectiva identitária formatada a partir do ethos, e pathos.
Ademais, na esfera do direito penal, por razões as mais diversas, há juízos de valor que
são levados em conta, como aspectos emotivos, principalmente quando envolvem questões
familiares, perda de entes queridos, a angústia de amigos, conhecidos e por que não até mesmo
dos profissionais que se empenham de forma sobre-humana no desvendar do crime, inclusive
as agruras da própria sociedade que se revolta contra a prática de delitos dessa natureza, o que
provoca comoção social pela repercussão do caso.
Todo esse procedimento nos dá a dimensão dos fatos, mormente no que sugere a
relação dialógica existente em toda a contextualização processual, sem nos olvidarmos da
interação verbal intrínseca aos procedimentos, ao julgamento em si, à contextualização dos fatos
e fundamentos externados na doutrina e jurisprudência que servem de parâmetros para respaldar
argumentos favoráveis e contra uma linha de raciocínio, fatos esses que nos remetem à
alteridade e polifonia, conceitos a serem explicados no decorrer da pesquisa.
Por razões óbvias, não há como negar a importância da linguagem, dos discursos e de
seus influxos em relação ao gênero de discurso mais abrangente que é o julgamento em si e, por
conseguinte, o gênero a ele imbricado, no caso, a petição, foco da pesquisa, porquanto toda
movimentação processual se faz por meio dela, daí sua riqueza, motivando-nos a embrenhar
nessa seara que, pelas circunstâncias dialéticas e antagônicas, nos afligem enquanto profissional
dessas áreas: letras e direito.
Antes de adentrarmos no corpus, faz-se oportuno tecer considerações acerca do
julgamento, que, pelas circunstâncias, culminou com grande repercussão midiática, dado à
especificidade do caso – o desaparecimento da jovem Denise Lafetá sem qualquer pista sobre
o ocorrido - tendo a vítima deixado uma filha de apenas seis meses de idade, sem que seu
companheiro tenha informado aos familiares e à própria polícia qualquer pista sobre o paradeiro
de sua amásia, a não ser a informação sumária de que a última vez que a teria visto foi quando
a deixou na rodoviária da cidade de Uberlândia-MG.
55
Contribuiu também para a repercussão do julgamento outro fato incomum, que, por
sua vez, aguçou a curiosidade geral, qual seja: o julgamento do acusado DAP sem o exame de
corpo de delito direto da vítima, porquanto o corpo jamais foi encontrado, fato esse que gerou
controvérsias de toda ordem, tornando muito mais difícil o trabalho da acusação, haja vista as
incertezas num primeiro momento quanto à autoria do crime, considerando a máxima do direito
penal relativa ao brocardo jurídico in dubio pro reu.
Pelas circunstâncias elencadas, mormente pela dificuldade de obtenção de provas, bem
assim pela negativa de autoria, não restam dúvidas de que, somente com muito empenho e
determinação e mediante argumentos contundentes por parte da acusação, chegar-se-ia a um
resultado favorável à acusação, o que demandaria estratégias enunciativas convincentes no
campo da prática linguageira, sobretudo no que concerne à perspectiva persuasiva nesse mister,
daí a importância da linguística nessa relação discursiva aflorada, aliás abrangente em qualquer
demanda jurídica, uma vez que a jurisdição implica demanda de interesses antagônicos, cuja
solução impõe debates, argumentos, estratégias persuasivas a todos os envolvidos na demanda.
No caso em tela, a jovem nascida na cidade de Coração de Jesus-MG viera para Belo
Horizonte em 1986 para estudar, tendo conhecido DAP, um alto funcionário da Petrobrás à
época, com quem passou a se relacionar. Nessa ocasião, o acusado teria sido transferido para a
cidade de Uberlândia-MG, local onde passou a conviver maritalmente com a jovem Denise
Lafetá. Ocorre que DAP era casado à época com N, com quem teve filhos, fatos que trouxeram
outras complicações, pois sua amásia engravidou-se nesse período.
Como noticiado no inquérito, a então esposa de DAP passou a questionar essa relação
extraconjugal, sendo que ele se comprometera em “resolver a situação” logo após o nascimento
de sua filha. Fato é que assim que, a criança completou seis meses de vida, a jovem Denise
Lafetá desapareceu, gerando as desconfianças quanto à culpabilidade do acusado,
principalmente por parte dos parentes da jovem desaparecida.
Por não haver qualquer pista da jovem, mesmo com o empenho dos familiares,
vizinhos e amigos nessa empreitada, houve a denúncia junto à delegacia de homicídio de
Uberlândia, cujo inquérito fora de pronto instaurado, tendo se empenhados no caso tanto o
delegado da cidade quanto o promotor de justiça daquela Comarca, Dr. Tibúrcio Délbis, dando
por instaurado o julgamento como crime de assassinato e ocultação de cadáver, julgamento
emblemático pelo fato de não se ter notícia do corpo da vítima, não possibilitando o
imprescindível exame de corpo de delito.
A repercussão do julgamento foi motivada sobretudo pelo fato incomum, inusitado à
época face à acusação da prática de um crime de homicídio sem prova cabal do assassinato e
56
sobretudo do envolvimento do acusado, embora houvesse suspeita. Nesse sentido, a acusação
ancorou-se em provas testemunhais, bem assim em outras pistas consideráveis, embora bem
mais frágeis que provas diretas.
Confirma essa dificuldade o fato de o processo só se ter consumado com o trânsito em
julgado após percorrer todas as instâncias possíveis, ou seja, do Tribunal do Júri da Comarca
de Uberlândia ao STF, cujo veredicto do Conselho de Sentença foi pela condenação do réu,
culminando na pena de 13 (treze) anos de reclusão, sendo 12 (doze) anos pelo crime de
homicídio e 01 (um) ano pelo crime de ocultação do cadáver, num veredicto de 05 (cinco) votos
a favor da condenação e 02 (dois) votos pela absolvição.
Se no campo jurídico-processual se evidencia a complexidade de um processo dessa
natureza, não se pode ignorar os influxos dessa demanda sob o ponto de vista linguístico, haja
vista os matizes relacionados ao processo de comunicação, as celeumas criadas pelas partes
visando auferir um resultado positivo, de sorte que o acusador se embrenha no propósito de
desqualificar a defesa, e na mesma perspectiva, a defesa atua com afinco para neutralizar
aquelas estratégias e ao mesmo tempo incrementar suas intenções enunciativas noutro viés,
visando à absolvição.
Releva frisar que nessa relação discursiva antagônica há uma cortina de fumaça
atinente à ética, porquanto não se pode ignorar essa conduta por razões as mais diversas. Um
dos fatores preponderantes nesse sentido diz respeito à representação das partes, pois na relação
processual há uma situação atípica, qual seja: os interessados na demanda, as partes
propriamente ditas, não falam por si, eis que elas são representadas por outrem, no caso, por
procuradores, o que tem outras implicações na medida em que o advogado tem compromisso
consigo mesmo, com o Conselho de Classe da categoria, no caso a Ordem dos Advogados do
Brasil – OAB, com o código de ética, portanto não pode agir discursivamente sem se preocupar
com essas especificidades.
Lado outro, o réu, em princípio, não teria maiores compromissos nesse sentido, pois o
que lhe importa é auferir o resultado almejado, no caso, sua absolvição e, por conseguinte, sua
liberdade. Nesse sentido, há uma relação “incestuosa”, em que se imbricam dois narradores, o
narrador de primeira pessoa, quando o réu presta depoimentos; o narrador de terceira pessoa na
condição de advogado do réu.
Essa dicotomia impõe restrições na prática discursiva, pois o discurso está adstrito a
certas condições, à moral, à ética, a códigos e procedimentos, embora se perceba muitas vezes
a inobservância desses princípios nessa relação dialógica, o que em certa medida mitiga a
relação enunciativa como um todo.
57
O julgamento em tela, pelas próprias circunstâncias, demonstra polêmicas as mais
diversas, não só pela especificidade relativa ao desaparecimento da vítima e ao fato de o corpo
jamais ter sido encontrado, mas também pela impronúncia do réu pelo juiz da vara criminal
daquela Comarca, cuja decisão se baseara na falta de prova cabal quanto à materialidade e
indícios suficientes de autoria, motivando, pois, recursos ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais
- TJMG, inclusive ao STJ.
Interessante ainda frisar que, na apuração dos votos, dois jurados absolveram o réu
nesse julgamento entendendo de forma semelhante ao posicionamento do juiz que não acatou a
petição pelo pronunciamento do réu, logo, em termos hipotéticos, se esse juiz fosse um dos
jurados do Conselho de Sentença que julgou o réu DAP, certamente ao invés de dois votos o
acusado passaria a ter três votos a favor da absolvição, ou seja, o resultado que foi de cinco a
dois já passaria a ser quatro a três; isso posto, bastaria que houvesse outro jurado pensando da
mesma forma para que houvesse a absolvição do réu, pois haveria 04 (quatro) votos a favor da
absolvição contra 03 (três) pela condenação, demonstrando pois o quão polêmico é um
julgamento como esse, o que só vem a corroborar a importância do gênero petição, dadas as
estratégias argumentativas tanto da defesa quanto da acusação.
Com o advento da Lei 11.689 de 2008, hoje basta a contagem de quatro votos
favoráveis à condenação ou quatro pela absolvição que já não carece da contagem dos demais
votos, pois já se teria a maioria suficiente, o que contribui para fomentar o sigilo no Tribunal
do Júri, evitando, por conseguinte, a hipótese de explicitar eventual unanimidade, que, por
razões óbvias, daria a certeza dos votos de todos os jurados, o que poderia ser comprometedor,
mormente em casos envolvendo crime organizado, formação de quadrilha, etc.
Essas questões de altas indagações, por si, ensejam debates de toda ordem, como se
depreende do corpus e do livro Homicídio sem Cadáver. A narrativa dos fatos corrobora
também a dialética argumentativa, visando à persuasão dos interlocutores, o que, por sua vez,
demonstra que a questão não reside exclusivamente na seara jurídica, mas em grande parte e
principalmente em questões semântico-discursivas.
Nesse propósito, convém tecer considerações preliminares acerca do Tribunal do Júri.
Como assevera um dos maiores penalista do direito brasileiro, mormente na área do processo
penal, o jurista Antônio José Miguel Feu Rosa, "O júri faz parte da própria história do homem
desde os tempos mais remotos, nas civilizações mais antigas, o homem era julgado por seus
semelhantes. Sempre foi este o modo de se fazer justiça" - (FEU ROSA, 1999, p. 554). Trata-
se, pois, de um instituto secular que se reporta inclusive ao antigo testamento.
58
Vale trazer à colação alguns exemplos de julgamentos populares dessa natureza para
ilustrar os meios utilizados pelo homem para fazer justiça há milênios. O próprio Feu Rosa se
reporta ao livro do Êxodo, § 18, para explicitar esse procedimento. Ao trazermos esse exemplo,
estamos nos inspirando também na Arqueologia do Saber de Foucault, que alertou para a
necessidade de se vislumbrar a trajetória dos saberes diacronicamente, para compreensão de
como pensava o homem em determinada época, bem assim dissecar como são constituídas as
formações discursivas e o controle social.
Na descrição arqueológica, Foucault conclui o seguinte:
Finalmente, a arqueologia não procura reconstituir o que pôde ser pensado,
desejado, visado, provado, almejado pelos homens no instante mesmo em que
proferiam o discurso; ela não se propõe a recolher esse núcleo fugidio onde
autor e obra trocam de identidade; onde o pensamento permanece ainda o mais
próximo de si, na forma ainda não alterada do mesmo, e onde a linguagem não
se estendeu ainda na dispersão espacial e sucessiva do discurso. Em outras
palavras, não tenta repetir o que foi dito reencontrando-o em sua própria
identidade. Não pretende se apagar na modéstia ambígua de uma leitura que
deixaria voltar, em sua pureza, a luz longínqua, precária, quase extinta da
origem. Não é nada mais diferente de uma reescrita: isto é, na forma mantida
da exterioridade, uma transformação regulamentada do que já foi escrito. Não
é o retorno ao segredo da origem; é a descrição sistemática de um discurso-
objeto. (FOUCAULT, 1972, p. 172)
Assim, ao nos reportarmos às reminiscências relativas ao julgamento do homem pelo
homem por um tribunal constituído por pessoas do povo, estamos corroborando a
discursividade polifônica e sobre a interação verbal preconizadas por Ducrot (1987) e Bakhtin
(1990), na medida em que a história se consubstancia numa sequência de atos, fatos, versões
dos fatos e de enunciações, redundando, pois, nas práticas discursivas ao longo da história da
humanidade.
Esse singelo histórico acerca do Tribunal do Júri nos dá a dimensão da extensão desse
instituto milenar, que se resume, em última instância, na máxima democrática segundo a qual
todo poder emana do povo, nos termos do parágrafo único do art. 1º da CF/88. Não obstante
essa máxima, há de se levar em conta a semiotização social que, direta ou indiretamente, traça
parâmetros para disciplinar o ordenamento jurídico visando sobretudo ao controle social.
Nessa seara, poder-se-ia questionar o próprio Tribunal do Júri, como o fazem muitos
de seus críticos, asseverando que, se o poder emana do povo, que o exerce por meio de seus
representantes, por que não constituir o Tribunal do Júri por juízes togados que, pelo próprio
axioma em questão, estariam cumprindo essa máxima preconizada no dispositivo legal
supracitado, por representação? A questão se nos configura polêmica e se justifica pela
59
semiotização discursiva ideológica visando ao controle social, como alega Bakhtin:
Os signos também são objetos naturais, específicos, e, como vimos, todo
produto natural, tecnológico ou de consumo pode tornar-se signo e adquirir,
assim, um sentido que ultrapasse suas próprias particularidades. Um signo não
existe apenas como parte de uma realidade; ele também reflete e refrata uma
outra. Ele pode distorcer essa realidade, ser-lhe fiel, ou apreendê-la de um
ponto de vista específico, etc. Todo signo está sujeito aos critérios de avaliação
ideológica (isto é: se é verdadeiro, falso, correto, justificado, bom, etc.). O
domínio do ideológico coincide com o domínio dos signos: são mutuamente
correspondentes. Ali onde o signo se encontra, encontra-se também o
ideológico. Tudo que é ideológico possui um valor semiótico'
(BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1990, p. 32).
Assim, podemos vislumbrar os influxos do Tribunal do Júri, inclusive quanto a sua
independência, tanto que a sentença do juiz togado se reveste tão somente de efeitos
homologatório do veredicto do conselho de sentença, ou seja, a decisão do povo tem o condão
de ser intocável, até mesmo pelo juiz togado, não podendo haver recurso, ainda que o
magistrado seja favorável à absolvição ou condenação do réu, entendendo em seu íntimo que o
julgamento tenha sido injusto por essa ou aquela razão, a despeito de ter seguido os trâmites
processuais em questão.
A propósito, o livro Homicídio sem Cadáver não se resume em mero suporte para a
presente pesquisa, mas sim como gênero discursivo relato, portanto com relevância na
constituição do corpus, constituindo ele próprio objeto de análise. As petições que compõem o
Anexo foram consideradas na pesquisa tanto em sentido stricto quanto lato, até porque, como
sabemos, o gênero de discurso é relativamente estável na concepção bakhtiniana, portanto não
é de se estranhar a similitude entre gêneros afins. Nesse sentido, como a diferenciação se
encontra tão somente na nomenclatura, trataremos essas peças como petição por questões
didáticas.
No capítulo seguinte adentramos no gênero em questão, apresentando algumas nuances
relevantes nesse propósito, trazendo à colação as supramencionadas petições, ou seja: o relato
conclusivo do inquérito policial, a sentença de impronúncia do juiz de primeiro grau, o recurso
interposto no Tribunal de Justiça de Minas Gerais pelo promotor de justiça, as narrativas das
testemunhas, bem como considerações acerca da condenação do réu e de eventual erro crasso,
caso no futuro a vítima aparecesse viva, como já ocorrera em outros casos.
Para melhor compreensão dos aspectos linguísticos inerentes às estratégias
argumentativas presentes no corpus, pautamo-nos nas petições extraídas dos autos do processo.
Apresentamos na presente pesquisa uma abordagem metodológica de natureza interpretativa,
focando o estudo no gênero de discurso petição, exemplo cabal do conceito preconizado por
60
Bakhtin (2003), segundo o qual todo gênero possui formas relativamente estáveis.
Faz-se imperioso atentar-se para o fato de que a petição é utilizada por qualquer
cidadão para resguardar direitos perante o Judiciário e também junto à Administração Pública,
seja para apresentação de uma denúncia junto aos órgãos de fiscalização, corregedorias,
conselhos fiscais, tribunais de contas, auditorias e controladorias, seja nas esferas judiciais em
sentido estrito, a exemplo do caso em apreço, no qual consideramos como petição todos os
documentos emanados das autoridades, assim como das partes, entendendo a petição em
sentido lato, porquanto uma contestação, por exemplo, será aqui tratada como petição por
questões didáticas.
Na presente pesquisa, nos concentramos em petições relacionadas especificamente ao
julgamento do acusado pelo crime de assassinato da jovem Denise Lafetá, contudo vale ressaltar
que as mesmas estratégias argumentativas utilizadas em um julgamento como esse, respeitadas
as especificidades de cada situação, são válidas para outras situações, uma vez que o cerne da
questão reside nas estratégias discursivas, considerando enunciações empreendidas, os modos
de dizer, os sujeitos da relação discursiva, o Eu comunicante (Euc) e o Tu Interpretante (TUi),
como na concepção de Charaudeau (2009), ou na perspectiva de Benveniste (2005) que
preconiza a impossibilidade na enunciação do Eu sem o Tu, e do TU sem EU (sem mim); e
ainda em Bronckart (2009), na relação entre os actantes, no caso o EU, o TU – respectivamente,
sujeito enunciador (EUe) e o sujeito destinatário (SUd) ou tu interpretante (TUi) e o ELE, mais
especificamente na relação de trabalho, sendo que todas essas acepções direta ou indiretamente
visam à persuasão do enunciatário com intenções dirigidas a um determinado propósito.
Ao nos reportarmos ao direito de peticionar resguardado pelo inciso XXXIV do art. 5º
da Constituição da República, vislumbramos nesse dispositivo um dos mais importantes direitos
do cidadão, pois ele faculta ao interessado o direito de peticionar perante a Administração
Pública ou ao Judiciário para salvaguardar direitos que possam estar sendo violados, aviltados
arbitrariamente. Essa iniciativa, por si, cria uma relação processual entre o cidadão e o Estado,
na qual vai se aflorar um diálogo que se inicia com a iniciativa do enunciador (Peticionário),
ensejando, pois, o dialogismo na concepção bakhtiniana, porquanto na maioria das vezes o
gênero em questão está relacionado a conflitos de interesses, gerando uma esfera de tensão
acerca de pontos de vista divergentes ou antagônicos.
O art. 5º da CF/88 faz parte do rol das garantias fundamentais do cidadão, sendo que o
inciso XXXIV garante o direito de petição, a saber:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
61
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes: XXXIV - são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra
ilegalidade ou abuso de poder; (Constituição da República Federativa do
Brasil, 1988)
Da leitura atenta do dispositivo legal em epígrafe, percebem-se claramente alguns
princípios jurídicos cuja observância por todos é imprescindível. São preceitos republicanos
emanados de uma Assembleia Constituinte em pleno exercício da democracia, portanto direitos
irrefutáveis e, por conseguinte, inalienáveis.
Para o resguardo desses direitos, assim como de tantos outros relacionados com os
direitos e garantias da pessoa humana, faz-se imperioso o exercício da cidadania de forma
efetiva, ressaltando que formalmente ou teleologicamente todos são iguais perante a lei e
titulares de direitos e deveres.
Para se exercer o direito de petição sequer necessita da assistência de advogado perante
a Administração Pública, assim como para impetrar um habeas corpus por prisão ilegal,
portanto cabe ao interessado a iniciativa de peticionar, apresentando argumentos que lhe sejam
favoráveis, com clareza, objetividade, utilizando-se de recursos linguísticos estratégicos como
os operadores argumentativos, modalizadores, primando-se pela coerência, coesão e conexão
discursiva.
Com o advento do novo Código de Processo Civil de março de 2016, a petição passou
a ser disciplinada pelo art. 319, cujas minúcias têm razões de ser, inclusive em relação a aspectos
linguísticos, pois ao se observarem literalmente esses pressupostos, resguarda-se ao intérprete
juiz-enunciatário o quantum se pede, nem a mais, nem a menos, nem fora do que se pleiteia,
mormente no que tange aos fatos e fundamentos, restringindo-se ao pedido, suas especificações,
eis que são esses os parâmetros para se julgar em relação ao interesse do autor.
Assim, a petição deve estar adstrita a seus pressupostos, a saber:
Art. 319. A petição inicial indicará: I - o juízo a que é dirigida; II - os nomes, os prenomes, o estado civil, a existência de união estável, a
profissão, o número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas ou no
Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica, o endereço eletrônico, o domicílio e a
residência do autor e do réu; III - o fato e os fundamentos jurídicos do pedido; IV - o pedido com as suas especificações; V - o valor da causa; VI - as provas com que o autor pretende demonstrar a verdade dos fatos
alegados; VII - a opção do autor pela realização ou não de audiência de conciliação ou
de mediação. § 1o Caso não disponha das informações previstas no inciso II, poderá o
62
autor, na petição inicial, requerer ao juiz diligências necessárias a sua
obtenção. § 2o A petição inicial não será indeferida se, a despeito da falta de informações
a que se refere o inciso II, for possível a citação do réu. § 3o A petição inicial não será indeferida pelo não atendimento ao disposto no
inciso II deste artigo se a obtenção de tais informações tornar impossível ou
excessivamente oneroso o acesso à justiça. (Código de Processo Civil, 2015)
Como salientamos, essas minúcias quanto à petição têm relação intrínseca com
aspectos linguísticos na medida em que a inobservância de alguns desses pressupostos, seja pelo
peticionário, seja pelo juiz, pode ensejar embargos de declaração, que são recursos contra
sentenças confusas, mal elaboradas, que não observaram a contento o que se pediu, muitas vezes
por interpretação equivocada do enunciatário, no caso o juiz, que, ao proferir a sentença, passa
de enunciatário a enunciador, de sorte que sua peça não pode ir além nem aquém do que se
pede, assim não pode a sentença fugir ao que se pleiteia. Por óbvio, os embargos declaratórios
são motivados por questões linguísticas, haja vista a relação dialógica inerente à petição em si,
bem como a interpretação dos fatos pelo enunciatário.
No âmbito do direito processual penal, a petição inicial seria vulgarmente a queixa
apresentada ao delegado, à autoridade policial, tecnicamente denominada notitia criminis, que
também pode ser apresentada diretamente à promotoria pública, não havendo maiores
formalidades, até pelo fato de ser documento elaborado por qualquer interessado. Podendo em
certas circunstâncias ser apresentada por qualquer pessoa, sem exigências técnicas nesse
sentido, a petição é sem dúvida uma peça fundamental aos estudos linguísticos, na medida em
que por meio dela a enunciação retrata a intenção do enunciador, seus propósitos, suas
estratégias enunciativas, sempre externando pontos de vista favoráveis ao interessado.
Assim, faz-se imprescindível imprimir nesses documentos estratégias argumentativas
eficazes visando à persuasão do enunciatário - juiz, delegado, promotor público, funcionário
público - sendo que, em face do princípio da ampla defesa e do contraditório, dar-se-á ensejo a
outras petições em sentido inverso, daí as razões inerentes ao dialogismo, pois certamente a
contestação, que é outra petição, refutará os argumentos iniciais criando um clímax que redunda
no exercício interpretativo por parte de quem vai decidir a demanda.
3.2 Aspectos discursivos e ideológicos no controle social
Como é cediço, o homem age motivado por seus ideais com intenções
preestabelecidas, portanto prima por projetos de vida e de poder moldados desde sempre. Nessa
trajetória, há um longo caminho a ser percorrido, contando inclusive com percalços inerentes
às circunstâncias, estando vulnerável aos contratempos, eis que nem sempre as expectativas
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correspondem ao esperado. Assim, considerando a vida em sociedade, o homem está sujeito às
intempéries sociais das mais diversas naturezas, sendo que suas reações são pautadas à vista
dos aspectos sócios-culturais.
Levando-se em conta essas perspectivas, não se pode ignorar que os conflitos de
interesse sejam inevitáveis, eis que a vida em sociedade impõe demandas de toda ordem,
portanto não há como ignorá-las. Assim, buscando disciplinar os conflitos inerentes aos
interesses individuais e coletivos, a sociedade tratou de se organizar, e nesse mister procurou
disciplinar as condutas, os direitos, o exercício dessas prerrogativas sociais por meio de
preceitos, normas, ordenamentos jurídicos, religiosos, em suma, vislumbrando ações que se
coadunem com suas pretensões.
Para tanto, não se pode ignorar o papel da linguagem, vez que, por meio dela, o homem
se organiza, agrupando-se socialmente de acordo com interesses comuns, sem ignorar que, em
qualquer meio, haverá em contrapartida interesses individuais díspares, até porque cada pessoa
se pauta por projetos de vida próprios, daí o porquê dos conflitos. Ora, o homem enquanto ser
social não consegue viver isolado, mas, vivendo em sociedade, não consegue conviver
harmoniosamente em todos os sentidos sem que houvesse códigos de conduta ético-morais que
disciplinassem a relação social entre os indivíduos, logo, por convenções nesse desiderato, são
elaboradas as normas de convivência, como por exemplos as leis, regulamentos, regimentos,
convenções etc.
Nesse sentido, faz-se oportuno reportarmos ao Contrato Social preconizado por
Rousseau (1999), segundo o qual os homens, reunidos em sociedade, convencionaram em
estabelecer normas de convivência entre si, facultando ao Estado a prerrogativa de disciplinar
normas jurídicas que minimizassem os influxos negativos resultantes dos conflitos de interesses
existentes. De forma tácita, o homem abriu mão de sua liberdade plena, passando a tê-la de
acordo com a convenção instituída pela lei, vislumbrando uma contrapartida que seria motivada
pela autoridade do Estado para discipliná-la como convencionado pela própria sociedade.
Dessa forma, o Direito enquanto ciência que visa resguardar a justiça passa a ter
importância ímpar nesse contrato social, eis que ele se consubstancia no conjunto de regras que
disciplinam a vida em sociedade, limitando, pois, os poderes estatais às dimensões estritas do
estado democrático de direito, embora até mesmo nos estados totalitários também haja uma
parcela dessa convenção ficta do contrato social, porquanto, de outra forma, os concidadãos
poderiam se rebelar quanto a esse estado de coisa e promover revoluções ou mesmo guerras
civis para implantar a democracia ou outra forma de governo, inclusive apresentando
argumentos convincentes a esse propósito.
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Logo, enquanto não haja essa iniciativa, entende-se tacitamente que não tenha havido
vontade ou oportunidade para tal propósito. Ressalte-se que, em qualquer circunstância, as
iniciativas são sempre respaldadas por discursos nesse ou naquele norte visando dar
legitimidade aos propósitos em questão.
A partir dessa digressão sumária acerca da vida em sociedade, adentramos nos influxos
da linguagem como fator primordial na solução dos impasses, o que se justifica pelo fato de o
direito disciplinar as relações conflituosas, sendo a linguagem a responsável por explicitar os
aspectos semântico-discursivos acerca do que seja efetivamente justo na concepção jurídica e
moral.
Aduz-se dos fatos sociais que o direito, por óbvio, não é um fim em si mesmo, pois
não basta dizer que ele se materializa no que a lei designa como sendo o certo ou o errado, mas
sim no que a sociedade convenciona por entender o que seja justo ou não, portanto esse conceito
de justiça se coaduna com a cultura de cada povo. Em tese, o ordenamento jurídico é apenas o
mecanismo utilizado para consubstanciar a justiça segundo a vontade da sociedade, haja vista
que o justo, ou o caráter de justiça, em si, já fora concebido na acepção semântica do termo
antes mesmo de haver uma lei que o defina como tal, portanto a linguagem e a semiotização
representativa dos fatos constroem a ordem jurídica à vista das demandas sociais que clamam
pela mudança ou manutenção do status quo.
Nesse propósito, podemos afiançar que são os discursos, as argumentações, as práticas
linguageiras, a interpretação do comportamento humano que vão interferir no processo
legislativo, culminando em leis, doutrinas e jurisprudências motivadas pela responsividade a
que mencionamos anteriormente na concepção bakhtiniana.
Ressaltamos que o foco principal da pesquisa em tela reside na linguagem e seus
influxos, assim como nas argumentações das partes envolvidas como fatores preponderantes
para o convencimento e a persuasão do enunciatário, portanto é nesse prisma que os estudos
serão vislumbrados, daí o porquê de focarmos no gênero petição em sentido lato, embora
pudéssemos optar por um gênero de discurso mais abrangente e correlato às petições, que seria
o julgamento, por sua vez, o macro gênero em relação a esses a que nos referimos, que também
guarda relações intrínsecas com a responsividade, haja vista o contraditório, a ampla defesa,
dialogismo, interação verbal, dentre outros aspectos, categorias essas que pertencem à esfera de
atividades e práticas discursivas.
Bronckart (2008, p.88) alerta para as características semiotizadas de indexações
sociais, uma vez que cada gênero é objeto de avaliações sociais, sendo visto e adaptado para
determinado agir, podendo ser mobilizado em uma ou outra situação de interação ou até mesmo
65
como um determinado valor estético. É nessa perspectiva que a petição se enquadra como objeto
de processos de conhecimento dotada do rótulo de maior ou menor estabilidade, conforme o
caso.
Na relação dialógica, não se pode ignorar sua contextualização social, valendo dizer
que em qualquer segmento da sociedade - religião, política, publicidade, jornalismo, e por óbvio
o direito -, há sempre tensões conflituosa motivadas por opiniões divergentes, até porque
inexiste discurso eminentemente autônomo, na medida em que há sempre interações verbais
que nos remetem a outros dizeres, a outras perspectivas, de sorte que a pretensa autonomia
discursiva não passa de uma ficção, porquanto todo texto traz em si a marca de outrem, daí o
porquê de opiniões díspares, sendo todo discurso ideológico e polifônico.
Na concepção bakhtiniana o homem é produto do intertexto, pois está inserido em uma
aldeia global, ainda que viva em uma comunidade isolada, uma vez que, mesmo nessas
condições, ainda haveria situações que o remetem a questionar o porquê das diferenças, da
cultura distinta, do receio em relação ao outro, enfim, todos esses questionamentos existem em
face da relação dialógica, da interação verbal e polifônica, fenômenos linguísticos distintos mas
que guardam relação intrínseca entre si.
Não é despiciendo frisar que a linguagem é a gênese de todos os propósitos
ideológicos, o que se vislumbra até mesmo na acepção teológica, segundo a qual, no princípio
era o verbo, numa simbiose semântica que representa tudo na palavra, no verbo enquanto
metonímia da linguagem ou das profecias. Portanto não há nada mais importante ao homem
que a comunicação, pois sem ela o ser humano não existiria com a consciência identitária, eis
que seria ele um solitário, daí a impossibilidade do discurso adâmico.
Utilizando-se do gênero petição em julgamentos ou em outras circunstâncias possíveis,
os interessados resguardam seus direitos apresentando argumentos que, a seu juízo, são
plausíveis a persuadir outrem, seja esse destinatário -TUi o juiz, o promotor de justiça, um
desembargador, jurados, delegados, autoridades administrativas ou até mesmo um servidor
público que apreciará o pedido externado pelo referido documento. Nesse propósito, os
argumentos persuasivos empreendidos pelos enunciadores são ancorados em proposições que
vão influenciar na decisão pleiteada visando sempre a um resultado seja favorável ao autor da
demanda, o requerente.
No afã de apresentar suas razões, as partes procuram utilizar-se de recursos discursivos
que foram objeto da pesquisa em pauta na perspectiva da AD, mormente no que tange aos
modos de organização, à construção da posição identitária do locutor/enunciador, utilizando-se
das modalizações, dos operadores argumentativos, dentre outros recursos. Noutro norte,
66
recorrem-se muitas vezes a argumentos falaciosos, à dialética, retórica, aos silogismos como
estratégias argumentativas visando sempre ao êxito na demanda.
A partir dessa digressão, adentrando na seara do processo criminal, deve-se atentar
para o fato de que os julgamentos de crimes dolosos contra a vida, tentados ou consumados,
não são julgados pelo juiz togado, mas sim pelo Tribunal do Júri, mais precisamente pelo
Conselho de Sentença composto por sete jurados, nesse caso juízes leigos, a quem basta
comprovação de serem alfabetizados e de boa conduta, sendo nomeados dentre cidadãos
comuns, atuando nesse mister sem ônus para o Estado, sendo que eles agem em nome da
sociedade, a quem cabe decidir pela condenação ou absolvição de acusados em crimes dessa
natureza.
Frisa-se que a Semiotização discursiva confere soberania aos julgados torna
irrecorríveis as decisões dos jurados a instâncias superiores, exceto quanto a erros formais,
processuais e decisões interlocutórias, mas nunca em relação ao mérito. Tal situação pode levar
a graves consequências, pois, não obstante a soberania a que nos referimos, vários fatores de
natureza discursiva podem contribuir para um resultado que não se coadune com a justiça na
acepção do termo, pois o resultado em julgamento desse viés depende muito de enunciações,
de modos de dizer, da interpretação dos fatos a partir da argumentação. Se por um lado essas
questões se nos apresentam como sendo eminentemente jurídica, por outro, e é neste que nos
interessa, elas têm relação intrínsecas com questões linguísticas, mais precisamente discursivas,
o que interfere diretamente no fazer justiça, em consonância com o direito na acepção do termo.
Nesse sentido, nunca é inoportuno lembrar-se do emblemático julgamento dos irmãos
Naves, em que a suposta vítima havia desaparecido, sendo os réus condenados pelo homicídio
e submetidos à pena de reclusão por vários anos após condenação pelo júri, até que veio à tona
o reconhecimento do erro judicial. O erro na verdade é tido como judicial por questões óbvias,
mas em sua essência houve erros interpretativos dos fatos e suas versões, na medida em que só
se condena alguém depois de haver toda uma discussão sobre verdades e mentiras ditas e
empreendidas pelos enunciadores e enunciatários, numa troca nesses polos, considerando que
em momentos distintos enunciadores passam a ser enunciatários e estes enunciadores.
Uma vez condenado em julgamentos emanados do júri, não resta ao réu outra
alternativa senão o cumprimento da pena, pois não há como recorrer a instâncias superiores
quanto ao mérito, exceto quanto a questões processuais ou, em situação extrema, como no
aparecimento de quem teria sido assassinado. Ora, se qualquer outro fato antijurídico, cível ou
penal, ao ser apreciado pelo Poder Judiciário, por juízes togados, desembargadores ou ministros
de cortes superiores, das decisões cabem recursos a outras instâncias, por que razão não poderia
67
haver o mesmo contra decisões emanadas do Conselho de Sentença? Assim como fora
semantizada a autonomia do júri tal como ele formatado atualmente, por outro prisma, poderia
também semantizá-lo nesse mesmo viés em segunda instância, considerando, inclusive, sob a
égide do princípio da unicidade que já resguarda o próprio Ministério Público, desde que tudo
em conformidade com a lei, o que, aliás, viria ao encontro da ampla defesa e do contraditório
insculpido nos direitos e garantias preconizados no art. 5º da CF/88.
Trata-se de um problema grave, embora pouco discutido, até porque, como é cediço, o
direito não é uma ciência dinâmica e responsiva em tempo hábil quanto deveria, haja vista o
tradicionalismo, o conservadorismo, e também porque as leis não acompanham o ritmo da
sociedade na mesma velocidade demandada, tanto que ainda vigora em nosso ordenamento
jurídico o Código Penal brasileiro promulgado na década de 50 do século passado, embora todos
saibamos que os costumes tenham sido alterados a olhos vistos, e cada vez em ritmo mais
acelerado, o que representa um descompasso inaceitável nessa relação dialógica, porquanto a
responsividade na concepção bakhtiniana não tenha correspondido às expectativas no que tange
à legislação. O próprio sistema do Tribunal do Júri é exemplo cabal dessa inércia, pois pouco
se mudou em relação a sua atuação, a despeito da demanda nesse mister, não obstante o
reconhecimento geral de sua importância.
Releva considerar que os julgamentos no âmbito do júri implicam situação limite de
alta relevância, porquanto lidam com dois direitos fundamentais, o direito à vida e à liberdade.
Sua importância ímpar se justifica em face de julgamentos envolvendo a liberdade ou a prisão
de acusados de práticas de crimes dolosos contra a vida, muitas vezes praticados de forma
hedionda, contudo, a depender das circunstâncias, não havendo evidências quanto à autoria, o
julgamento fica à mercê de análises interpretativas de enunciações discursivas que serão
responsáveis pela condenação ou absolvição do acusado, sendo que falhas interpretativas em
julgamento dessa natureza implicam condenações de inocentes ou absolvições de culpados.
Há de se frisar que sentenças equivocadas são comuns, contudo elas são reparáveis em
instâncias superiores, suscetíveis de recursos, até que se configure o trânsito em julgado,
podendo o julgamento chegar à instância máxima do Poder Judiciário, no caso ao STF. No
entanto, em relação ao Tribunal do Júri, como asseveramos anteriormente, não há o duplo grau
de jurisdição, logo é impossível recorrer, exceto quando se apele por novo júri por falhas
processuais, o que não é o caso aqui questionado, pois erros procedimentais não são
necessariamente vinculados a questões interpretativas do fato em si, mas de outras
circunstâncias. Nessas excepcionalidades, novo júri se dá porque o processo apresentou vícios
de nulidade, portanto não há que se cogitar de duplo grau de jurisdição ou de julgamento, como
68
ocorre em outras situações.
O que nos interessa aqui são as falhas interpretativas nos júris, essas, sim, irrecorríveis,
e muitas delas se dão por questões de ordem discursivas, de interpretação dos fatos à vista da
argumentação empreendida pelas partes. Todos sabemos que não há discursos gratuitos,
sobretudo em casos da mais alta relevância, como em julgamentos cujas manobras e estratégias
retóricas visam defender um ponto de vista, uma tese, sempre implicando intenções voltadas
para um ou outro viés.
Nesse sentido, o enunciador tem por propósito acusar um suspeito visando à sua
condenação, ou lado outro defendê-lo da acusação buscando sua absolvição. Há de se frisar
também que, entre dois debatedores, um sempre sobrepõe ao outro, seja pela competência
discursiva, seja pelas circunstâncias fáticas, mas qualquer que seja a razão, não se podem perder
de vista as estratégias enunciativas utilizadas pelos sujeitos comunicantes, ressaltando inclusive
aspectos psicológicos relevantes que interferem direta ou indiretamente no discurso
empreendido, como bem ressalta Bronckart (2009) ao tratar dos tipos psicológicos e linguísticos
atinentes ao mundo do narrar e mundo do expor.
Visando corroborar esse entendimento, a título de ilustração trazemos à baila um erro
judicial que ilustraria bem essa suscetibilidade no tribunal do júri, embora também possa ocorrer
mesmo em outros julgamentos que não sejam de sua alçada, sendo que, nesta hipótese, a
vantagem do duplo grau de jurisdição minimiza as chances de erros.
Especificamente em relação ao júri, um exemplo interessante que ilustra o propósito
dessa nossa pesquisa foi evidenciado por Paulo Rangel (2009) em sua obra Tribunal do Júri –
visão linguística, o que nos remete à polifonia, porquanto se ancora em outras obras, senão
vejamos:
O jurado João Lourenço Sardemberg denunciou que a votação sobre um dos
quesitos tinha sido concluída em sete votos contra o réu e cinco a favor. Com
esse resultado, o réu não podia ser condenado à morte, porque a pena máxima
exigia um mínimo de dois terços dos votos em todos os quesitos. Alguém teria
tentado convencer um dos jurados a mudar seu voto, mas o homem disse que
não mudaria, porque, se o fizesse, seriam atingidos os dois terços do único
quesito que não tinha essa maioria – assim, o réu poderia ser condenado à
morte (e esse jurado, por qualquer tipo de convicção moral ou religiosa, não
queria permitir isso). A pessoa, então, garantiu-lhe que os dois terços previstos
na lei não seriam alcançados com oito votos contra o réu, mas apenas com
nove ou mais votos. Assim persuadido, o jurado mudou seu voto e, com essa
mudança, foi possível, afinal, mandar Flor para o patíbulo. Essa
irregularidade legal se somaria a tantas outras e nunca seria reconhecida
nos recursos aos tribunais superiores” (MARCHI, Carlos. Fera de Macabu:
a história e o romance de um condenado à morte. 2. Ed. Rio de Janeiro: Record,
1999, p. 218) – Grifos acrescidos.
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Esse exemplo demonstra a influência da linguagem como tentativa de assimilar tensões
entre facticidade e validade, segundo preconiza Habermas (1997). Para Habermas essa tensão
migra para o Direito quando, na discussão de teses entre dissidentes, cada qual se respalda em
razões que lhes sejam favoráveis.
Conforme assevera Rangel (2009), o consenso habermasiano só é alcançado pela
superioridade do melhor argumento, ou seja, entre interlocutores há um que possui
superioridade intelectual ou discursiva em relação ao outro, ou pelo menos consegue esse
intento em determinadas ocasiões, a exemplo da sustentação oral em um julgamento.
Aduz-se, pois, que os argumentos bem engendrados acabam prevalecendo, o que vem
a corroborar nossas ponderações sobre o que seja justo ou injusto em julgamentos que não
passem pelo crivo de instâncias recursais, na medida em que as teses argumentativas nem
sempre se coadunam com a realidade dos fatos, mas possam prevalecer como verdades em face
do convencimento sobre o outro, o que induz a resultados no mínimo questionáveis. Uma
argumentação bem construída tem a força de mudar formalmente a natureza das coisas, porque
pode prevalecer sobre aquelas enunciações que representariam o justo, mas que não foram
exitosas a transmitir essa realidade perante os enunciatários com poder de voto, com poder de
decidir, o que implica questionamentos de alta relevância, uma vez que uma boa tese torna o
justo em injusto ou o injusto em justo, relativizando a verdade.
É claro que essas ponderações valem para muitas situações similares, como, por
exemplo, na relação discursiva e antagônica entre um vendedor e um comprador de uma
empresa comercial. Ora, muitas vezes, nessa relação dicotômica entre vendedor e comprador,
ambos têm argumentos divergentes, ainda que nem sempre verdadeiros, pois o vendedor se
utiliza de estratégias as mais diversas visando persuadir o comprador a adquirir determinados
produtos, incutindo no enunciatário “certas verdades” que por si deixam o comprador
desconfiado ou não. O comprador, por sua vez, tende a relutar a aderir ao discurso do vendedor,
apresentando contra-argumentos, mas acaba por se convencer do suposto bom negócio e
adquire os produtos em questão. Ocorre que pouco tempo depois descobre ter feito um mal
negócio, pois as alegações do vendedor não corresponderiam à realidade, contudo já não há o
que fazer senão utilizar-se das mesmas estratégias para repassar seu produto ao consumidor
final.
Essa luta diária entre a verdade real e verdade relativizada, entre o certo e o errado, o
justo e o injusto, ocorre a todo momento, com repercussões de toda ordem. Contudo, no campo
do direito, lida-se com situações-limite, pois estão em jogo os dois bens mais caros ao ser
humano, no caso a vida e a liberdade, portanto é nesse sentido que vislumbramos o problema e
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tentamos atenuá-lo apresentando sugestões ou hipóteses plausíveis a minimizá-lo, o que por sua
vez também implica inconformismo com o status quo, situação essa que demanda atitude
responsiva, quiçá sugerindo edição de lei incutindo no sistema atual o duplo grau de jurisdição
no âmbito do tribunal do júri, como asseveramos.
No exemplo supracitado relacionado à relação antagônica entre vendedor e comprador,
quem eventualmente tenha sido prejudicado por acreditar num argumento falacioso, quando
muito terá um certo prejuízo financeiro, o que é reparável. No entanto, aquele que tenha sido
injustiçado, condenado por um julgamento cujo resultado advenha de interpretações de um ou
outro jurado que, em tese, nada tem a perder a não ser em relação a sua própria consciência,
estaria privado de sua liberdade, de sua honra e, em países que admitem a pena de morte,
privado do direito à vida, eis que condenado à pena capital sem direito a recurso, dada a
formatação do tribunal do júri, porquanto não haveria a possibilidade de recurso a outro júri de
instância superior, dando ensejo ao duplo grau de jurisdição como propusemos na hipótese pelas
razões já externadas.
Posto isso, colocando-se em xeque o problema, a hipótese plausível a essa
inconsistência seria a alteração do sistema atual, possibilitando recursos em relação ao mérito
de sentenças condenatórias emanadas do Tribunal do Júri, de forma a institucionalizar essa
possibilidade em instâncias superiores, como ocorre nas demais ações, julgando em grau de
recurso as decisões desfavoráveis ao réu ou ao Ministério Público quando esses interessados
entendessem ser plausível o recurso a outro júri em instância superior, ressaltando-se que nem
sempre há interesse em fazê-lo, haja vista o conformismo e a resignação de quem assuma as
evidências dos fatos.
Ora, por que não poderia haver o duplo grau de jurisdição em relação aos julgamentos
do Tribunal do Júri, ainda que se restringisse esse novo júri somente ao âmbito Tribunal de
Justiça de cada Estado? Poder-se-ia incutir a mesma lógica da unicidade do Júri, como de resto
ocorre com o Ministério Público, que goza da prerrogativa da unidade como um todo, mesmo
quando o órgão pertença a esferas distintas – estadual ou federal, conforme o caso, dando ao
júri, com o trânsito em julgado, o mesmo status de soberania do veredito.
A questão é de natureza política, conveniência administrativa, sobretudo porque essa
hipótese se tornaria aos olhos de muitos, e principalmente do Poder Judiciário, dispendiosa ao
erário e, por consequente, ao cidadão, como de resto já o é toda a estrutura judiciária. Assim, a
política implementada coadunou-se com a semiotização do ordenamento jurídico tal como se
encontra, até porque não há mobilização da sociedade nesse sentido, de sorte que se perpassa
uma aura que coroa o júri como uma Corte popular soberana, aliás, que de fato o é, mas isso
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não significa ser infalível, ou que não possa, por essa circunstância, estar adstrito a recursos em
instâncias distintas, como nas demais situações jurisdicionais.
Frisa-se que não se está aqui a cogitar da extinção do júri, pelo contrário, estamos na
verdade valorizando-o, no entanto, dependendo do ponto de vista do ordenamento jurídico, isso
poderia até ocorrer, passando os crimes a serem julgados pelo próprio juiz togado. No entanto,
lado outro, a intenção é fomentar a ideia de modernizá-lo, tornando-o menos suscetível a falhas
motivadas pela interpretação discursiva, como ressaltamos. Em sendo implementado o duplo o
grau de jurisdição no âmbito do Júri, há menos chances de injustiças, eis que as estratégias
argumentativas empreendidas com ou sem sucesso na instância inicial possam ensejar novas
perspectivas, tornando o julgamento mais justo.
De fato, uma vez condenado pelo Conselho de Sentença, não resta ao réu outra
alternativa senão o cumprimento da pena, pois não há como recorrer da sentença condenatória,
exceto quanto a questões processuais eivadas de vícios de ilegalidades, como já ressaltamos. Se
em qualquer outro fato antijurídico, cabe recurso a instâncias outras, por que em nome da já
citada soberania do júri popular não se admite recorrer de suas decisões em relação ao mérito?
Por que não poderia haver júri em sede de recurso? São questionamentos que nos levam a
refletir sobre a semiotização e semantização social de um instituto que não tem acompanhado
o ritmo dos avanços da sociedade. A resposta a essas indagações se resume no controle social
e nos aspectos ideológicos incutidos no inconsciente coletivo, até mesmo para a manutenção do
status quo, uma vez que não é conveniente mudar algo que possa ser oneroso ao sistema como
um todo, a menos que haja provocação nesse sentido, ou mesmo uma demanda que justificasse
uma reação responsiva imprescindível, embasada em argumentos convincentes a justificar a
mudança perante o Congresso.
O instituto do Júri é exemplo cabal da inércia em questão, pois pouco se mudou em
relação a sua atuação, a despeito da demanda nesse mister, de sua importância, mormente por
ser ele responsável por julgamentos envolvendo a liberdade ou a prisão de acusados de práticas
de crimes dolosos contra a vida, quando todos sabemos do dano moral de uma condenação
injusta. Ademais, todo julgamento culmina na condenação ou absolvição do réu, sendo que, em
qualquer das duas situações, erros são suscetíveis de acontecer, como o exemplo do julgamento
relativo aos Irmãos Naves tão divulgado pela mídia, além de outros tantos ocorridos, o que
representa um peso considerável, tanto quando culmine na condenação de um inocente, quanto
na absolvição de um culpado.
Todavia, o que nos interessa no âmbito do presente estudo é questionar o porquê de
não se poder rediscutir a matéria resultante de interpretações acerca de discursos empreendidos,
72
cujas enunciações possam dar margem a posicionamentos diversos. Todos sabemos que não há
discursos gratuitos, e não é diferente em casos da mais alta relevância como os são julgamentos
dessa natureza. Sabe-se também que todo discurso tem por escopo defender um ponto de vista,
uma tese, portanto todos têm uma intenção deliberada, daí a importância da hipótese de se
rediscutir o tema no mínimo em esferas distintas, o que se coaduna com o escopo da ampla
defesa e do contraditório, institutos jurídicos que têm ampla conotação linguístico-discursiva.
Em face dessas especificidades, questiona-se até que ponto julgamentos se
consubstanciam justos quando há decisões jurisdicionais ou jurisprudenciais antagônicas entre
si, ora favoráveis ao autor, ora favoráveis ao réu, mesmo quando os fatos são similares, quando
não o sejam idênticos, e ainda assim nem quem fora absolvido nem quem fora condenado
possam recorrer no mérito a outro julgamento em instâncias superiores. A questão reside no
controle social a que nos mencionamos, bem assim na forma como foi estereotipado o instituto
do júri como sendo soberano, uma espécie de cláusula pétrea, levando-se em conta inclusive
os signos linguístico-ideológicos, como ressalta Bakhtin/Volochinov em Marxismo e Filosofia
da Linguagem, senão vejamos:
É justamente o problema da consciência que criou as maiores dificuldades e
gerou a formidável confusão que encontramos em todas as discussões
relativas tanto à psicologia quanto ao estudo das ideologias. De maneira
geral, a consciência tornou-se o ‘asylum ignorantiae’ de todo edifício
filosófico. Foi transformada em depósito de todos os problemas não
resolvidos, de todos os resíduos objetivamente irredutíveis. Ao invés de se
buscar uma definição objetiva da consciência, esta foi usada para tornar
subjetivas e fluidas certas noções até então sólidas e objetivas.
(...) A consciência adquire forma e existência nos signos criados por um grupo
organizado no curso de suas relações sociais. Os signos são o alimento da
consciência individual, a matéria de seu desenvolvimento, e ela reflete sua
lógica e suas leis. A lógica da consciência é a lógica da comunicação
ideológica, da interação semiótica de um grupo social. Se privarmos a
consciência de seu conteúdo semiótico e ideológico, não sobra nada. A
imagem, a palavra, o gesto significante, etc. constituem seu único abrigo. Fora
desse material, há apenas o simples ato fisiológico, não esclarecido pela
consciência, desprovido do sentido que os signos lhe conferem.
(BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1995, p. 35)
Corrobora essa dicotomia e contradições a que nos referimos a juntada em cada
processo de jurisprudências que vão ao encontro da pretensão do autor, assim como também
em relação à pretensão do réu, o que nos remete aos aspectos polifônicos preconizados tanto
também por Ducrot (1988). No Tribunal do Júri, por óbvio, impera a discursividade, o
dialogismo e a interação verbal, portanto essa preocupação se nos afigura mais evidente, haja
vista que o caso sempre será decidido por maioria de votos entre sete jurados, número ímpar
73
exatamente com o propósito de evitar o constrangimento de empates, como afiançamos alhures,
fomentando e aguçando ainda mais os questionamentos que deram ensejo à presente pesquisa.
Não é inoportuno ressaltar que os votos vencidos também têm seu peso, foram
pautados na mesma concepção de justiça, levaram em conta o discurso que se coadunou com a
coerência percebida pelos jurados nesse propósito, contudo foram minoria, coerentes com a
enunciação no mesmo desiderato. Essa dicotomia de entendimento deriva-se dos aspectos
polifônicos, na medida em que haja vários pontos de vista sobre determinado tema, logo as
vozes que se afloram e se sedimentam num posicionamento doutrinário têm seu peso, como
também o têm as vozes que se destoam nessa relação dialógica que constrói o discurso.
Vale dizer que mesmo havendo interpretação da própria lei em sentido diverso e, por
conseguinte, julgamentos antagônicos entre si, não significa que tenha havido ilegalidade, erro
judicial propriamente dito, porquanto o juiz julga de acordo com a lei e com o seu livre
convencimento, sendo a interpretação de ambas as situações questões de natureza discursiva,
dialógica e de interação verbal, levando-se em conta aspectos culturais, bem assim a
semiotização do sistema como um todo. O problema se nos aflige quando sabemos que da
decisão tomada em um julgamento no âmbito do tribunal do júri não se possa dela recorrer
porque ela foi estereotipada como imutável e insuscetível de revisão, “doa a quem doer”.
3.3 A enunciação discursiva e dialógica no gênero petição
Em relação à enunciação discursiva na concepção preconizada por Bakhtin (2011), faz-
se imperioso atentar-se para o fato de que esse fenômeno linguístico não se resume na simples
formulação de um enunciado, uma frase ou mesmo qualquer palavra contextualizada. Numa
visão mais ampla, a enunciação seria um processo discursivo que implica discursos imbricados
na interação verbal relativa a vários dizeres e em circunstâncias diversas, considerando-se os
ditos e o que ainda há de se dizer, porque todo discurso se faz a partir de contextos diversos, de
sorte que não há nada de tão novo assim, a não ser o estilo intuitu personae que seria a marca
personalíssima de cada enunciador, o que sugere inclusive a alteridade.
A enunciação guarda relação direta com a interação verbal, com o dialogismo e a
polifonia, com os modos de dizer, sem nos olvidar da citada alteridade, impondo, por
conseguinte, cumplicidades com outros discursos, o que sugere acatar ou não posicionamentos
diversos, assimilando-os ou rejeitando, dando ensejo ao dialogismo e também a posições
responsivas entre enunciadores e enunciatários, doutrinas e jurisprudências, o que se evidencia
nos processos judiciais. Assim, para melhor compreensão do estudo em tela, torna-se imperioso
compreender a enunciação em suas características primordiais, considerando a interação verbal
74
entre os agentes comunicantes e outros dizeres – doutrina e jurisprudências díspares entre si -,
sugerindo o contraditório sob o prisma da dialética e da retórica.
Reportando-se aos elementos supramencionados, verbais e extra verbais, depreende-
se dos fatos linguísticos que eles são formatados na sociedade à vista da cultura que os
influencia, daí o porquê da importância de se vislumbrar mecanismos de controle inerentes à
concepção de mundo numa perspectiva ideológica, o que se constrói a partir de discursos
enunciados num ou noutro norte, sempre se valendo da argumentação e da retórica que nos
remetem ao interdiscurso.
Ainda no que concerne aos aspectos extra verbais, há de se ater ao fato de que tal
fenômeno está intrínseco aos mecanismos de representação, aos signos, à semiótica, à ideologia
imposta pelo uso da palavra com a intenção deliberada e fomentada nos discursos, nos modos
de persuadir outrem, visando ao controle social, num viés político, como se depreende do
discurso religioso, jurídico, midiático, e por que não dizer do projeto de poder, etc.
Nesse sentido, não é difícil perceber que não há discursos isolados, à medida que toda
enunciação guarda relação intrínseca ou extrínseca com outros discursos, o que leva Bakhtin
(1952/1953) a asseverar que nenhum enunciado seria o primeiro ou o último, já que, mesmo o
pretensamente original resulta de influxos de outros posicionamentos na mesma vertente ou
noutras que tenham causado a responsividade em sentido diverso, sendo que também não será
o último, porque este mesmo fenômeno repercutirá em controversas ou assimilações noutras
perspectivas, num ciclo permanentemente mutável pelas razões externadas.
Nesse propósito, Bakhtin se reportou à polifonia, termo inspirado na música medieval,
cujas ressonâncias demandavam tons semelhantes e em certa medida harmônicos entre notas,
sugerindo, pois, uma orquestração instrumental com similitudes no contexto musical. Essa
pluralidade de notas, de sons, sugere ecos também harmônicos, daí o porquê da analogia feita
entre discursos que, por conseguinte, guardam vozeamentos ressonantes e dissonantes, dando
ensejo à interação verbal e ao dialogismo – dada a tensão discursiva respaldadas em
perspectivas diversas. A polifonia, portanto, não significa que os discursos sejam sempre na
mesma toada, pois as divergências enunciativas também são respaldadas em outras
circunstâncias que as reforcem, de sorte que, em cada perspectiva, seja a favor ou contra, há
sempre posicionamentos que ancora o ponto de vista discursivo.
Para melhor explicitar a dicotomia existente entre ressonância e dissonância nessa
metáfora, há de se levar em conta que os discursos se pautam por enunciações no mesmo ponto
de vista, sem ignorar a relação dialógica que, por sua vez, sugere a existência de outros discursos
que se relacionem entre si pelo mesmo efeito polifônico, portanto dando ensejo à dialética.
75
Nesse sentido, a discursividade em ambos os polos se vale também da polifonia por ecoar
pontos de vista simétricos entre si e em afronta a outros em sentido contrário, que também se
respaldam em perspectivas que lhes dão suportes.
Pode-se dizer que até mesmo na discordância há pontos convergentes entre os
enunciados, haja vista que, em quaisquer das perspectivas, a origem da enunciação parte do
mesmo princípio, do mesmo norte, ainda que para divergir a posteriori, em consonância com
os preceitos da dialética. Se assim não fosse, todos concordariam entre si, o que não se
coadunaria com a lógica comunicacional. Nesse diapasão, o Direito é uma ciência
eminentemente responsiva, à medida que ele se vale da retórica, do contraditório, da ampla
defesa e do devido processo legal, como está devidamente disciplinado no âmbito do art. 5º da
CF/88 e no ordenamento jurídico como um todo, mormente nos códigos de processos cíveis ou
penais.
3.4 Correlação entre aspectos linguísticos e jurídicos da pesquisa
No presente capítulo, reportamo-nos a referências teóricas atinentes tanto à esfera
linguístico-discursiva quanto jurídica, uma vez que elas repercutem direta e indiretamente no
gênero de discurso petição, especificamente no que tange às práticas argumentativas visando à
persuasão do enunciatário. Nesse sentido, discorremos sobre a interação verbal, polifonia,
alteridade, vozeamentos e estratégias argumentativas, fenômenos discursivos que envolvem a
retórica na busca do convencimento.
A pesquisa centrou-se nos aspectos discursivos intrínsecos ao gênero de discurso
Petição, notadamente em face das táticas argumentativas com fincas em convencer e persuadir
os jurados envolvidos no julgamento em si. Nesse propósito, o corpus evidencia nuances
comuns a outros julgamentos da mesma natureza, respeitadas as especificidades de cada
situação concreta.
O julgamento em tela, por exemplo, assim como outros na mesma perspectiva,
evidencia situação pitoresca sobretudo por gerar expectativas de toda ordem, sendo que
ninguém tem certeza do resultado. Em julgamentos complexos no âmbito do tribunal do júri,
mormente em casos como o enfrentado pela promotoria, a dificuldade da acusação se torna
evidente dada a complexidade em provar a ocorrência do fato sem evidência cabal do ocorrido,
principalmente pelo desaparecimento da vítima, o que inclusive impossibilitou o exame de
corpo de delito direto, situação especialíssima pela excepcionalidade.
No afã de demonstrar as estratégias argumentativas, teceremos considerações de
76
natureza técnica sobre determinados termos e procedimentos jurídicos sem, contudo,
aprofundarmos nesse propósito, haja vista que o objeto precípuo da pesquisa se centra no gênero
de discurso petição e nas enunciações destinadas ao convencimento e adesão dos enunciatários
diretos – jurados e autoridades -, assim como do auditório.
Frise-se inclusive que, muitas vezes, os aspectos técnico-jurídicos frequentemente
estão adstritos à relação semântico-discursiva, como a distinção entre um crime culposo e
doloso, que se diferenciam pela intenção do agente. Ora, esse liame inerente à intenção do
agente pode ser objeto de discussões homéricas tanto no campo jurídico quanto linguístico, daí
o foco da pesquisa sob a ótica do gênero de discurso petição, como veremos a seguir.
O tema em apreço nos sugere uma reflexão acerca dos aspectos inerentes ao gênero de
discurso e suas nuances, as características que o definem como tal, o estágio por que passa a
sua evolução, considerando o fato de que todo gênero de discurso é dinâmico por excelência,
sobretudo por estar sempre suscetível a mudanças, na medida em que haja necessidade de outros
gêneros proximais e correlatos, o que se se coaduna com a máxima que os definem como formas
relativamente estáveis e normativas de enunciado (Bakhtin 2003, p. 286), o que também foi
frisado por Sobral (2009) em artigo denominado Ver o mundo com os olhos dos gêneros.
A semelhança proximal entre gêneros afins sugere partilhar gêneros correlatos que
migram espontaneamente até que se firmam de forma autônoma, daí o porquê de estarmos no
presente estudo tratando do gênero petição não só em sentido stricto, mas também lato sensu.
Em sentido stricto, petição seria, no âmbito do direito, um pedido formulado a um juiz à vista
de um suposto direito do autor (reclamante, peticionário), em consonância com o art. 319 do
Código de Processo Civil.
Ao leigo possa parecer desnecessário o legislador ter adentrado em minúcias quanto
ao documento em questão, conforme ressaltamos anteriormente, mas exatamente à vista de
aspectos linguístico-discursivos é que se faz imprescindível esse intento, pois, para se ter a
dimensão do que se esteja pleiteando em uma ação judicial, não se deve, por óbvio, pedir nem
mais do que se pretende, nem menos, nem algo que não seja objeto precípuo da demanda, assim
como ao juiz também não cabe decidir nem além, nem aquém, nem fora do que seja
efetivamente o interesse do autor da demanda, portanto é vedado ao juiz julgar ultra, citra ou
extra petita, expressões que correspondem respectivamente à supracitada dimensão do que se
pede.
Essa preocupação do legislador guarda intrínseca relação com aspectos linguístico-
discursivos, na medida em que a questão reside na interpretação dos fatos e suas versões,
portanto, o rigor no formalismo em apreço é inerente ao gênero e, por óbvio tem suas razões de
77
ser, principalmente para se evitar um recurso processual muito comum nos julgamentos
denominado embargo de declaração.
Denomina-se embargo pelo inconformismo de quem se sinta prejudicado com a
sentença, seja o autor, seja o réu, recurso esse cujo nome induz ao dialogismo, uma vez que o
advogado tenha elaborado sua petição pleiteando um suposto direito, contudo o juiz lhe
concedera algo que não corresponda ao pedido, incorrendo o enunciador, no caso, o juiz, em
obscuridade, contradições, omissões ou incongruências, o que, por óbvio, tem natureza
linguística.
Não fosse pela interposição desses embargos, a sentença seria equivocada por má
interpretação do juiz ou por enunciação divergente em relação ao que se pleiteou, o que enseja
uma relação dialógica na acepção do termo, ou seja, uma tensão entre pontos de vista
divergentes, fato que sugere o dialogismo linguístico.
Por estarmos tratando do gênero de discurso petição no âmbito da AD, e o estudo em
pauta ser de interesse geral, faz-se oportuno esclarecer, sempre que possível, alguns termos
jurídicos para melhor compreensão do enunciatário que, não tendo formação jurídica, carece de
singelas considerações sobre o tema, sem o propósito de aprofundar-se nessa seara por questões
obvias.
Para esclarecimento desse recurso, reportamo-nos ao atual Código de Processo Civil,
a saber:
DOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO Art. 1.022. Cabem embargos de declaração contra qualquer decisão
judicial para: I. esclarecer obscuridade ou eliminar contradição; III. suprir omissão de ponto ou questão sobre o qual devia se pronunciar
o juiz de ofício ou a requerimento; III - corrigir erro material. Parágrafo único. Considera-se omissa a decisão que: III. deixe de se manifestar sobre tese firmada em julgamento de casos
repetitivos ou em incidente de assunção de competência aplicável ao
caso sob julgamento; IV. incorra em qualquer das condutas descritas no art. 489, § 1o.
(Código de Processo Civil, 2015)
Como se depreende desse artigo do CPC, nem sempre as sentenças ou acórdãos são
claros em seus dispositivos, tanto que o legislador cuidou de disciplinar os meios para que as
partes possam se valer desses embargos para esclarecer o que foi sentenciado, saneando
dúvidas, ambiguidades, contradições, obscuridades. Ora, ninguém incorre nessas falhas de
forma consciente e deliberada, sobretudo quando se esteja discutindo a concepção de justiça, o
direito em si, exceto quando haja má fé por parte do enunciador.
78
Aduz-se, pois, que incongruências que ensejam às partes a prerrogativa de interposição
de embargos declaratórios são motivadas, muitas vezes, por questões de natureza linguístico-
discursiva, pois o cerne desse recurso reside na enunciação desprovida da objetividade. Há de
se ressaltar que as eventuais falhas que motivem embargos desse viés podem, por sua vez, serem
motivadas também por enunciações das partes, que também nem sempre não ser claras em
relação ao objeto da demanda, daí o porquê de o legislador ter-se atentado para os pressupostos
do art. 319 do atual Código de Processo Civil, tecendo em minúcias os requisitos da petição
inicial.
A propósito, no âmbito do direito civil, o gênero petição recebe o nome de Petição
Inicial, ao passo que os demais requerimentos são denominados recursos, contestação, agravo,
dentre outros, mas, na essência, todos fazem parte do gênero de discurso petição, daí as razões
de alertarmos para esse fato corroborando a ênfase dada anteriormente quanto ao gênero em
sentido stricto e amplo.
As razões que ensejam a interposição dos supracitados embargos declaratórios, em
certa medida, explicam as dicotomias discursivas que, por si, corroboram a ideia de que
incongruências dessa natureza interferem na concepção de justiça no sentido mais amplo da
palavra.
A título de ilustração, basta recorrermos à celeuma causada recentemente quanto à ação
interposta no STF em relação à suposta ilegalidade quanto ao rito adotado pela Câmara dos
Deputados no que tange à votação de abertura de processo de impeachment da então Presidente
da República Dilma Rousseff.
No caso em apreço, o Governo questionou no STF o rito adotado na Câmera, tendo
logrado êxito nessa demanda. Insatisfeito com a votação, tendo em vista divergências as mais
diversas, foi interposto no próprio STF embargo de declaração para esclarecimento quanto à
extensão da decisão, visando dirimir dúvidas no Acórdão. Tendo sido levado ao Plenário da
Suprema Corte, esses embargos foram julgados, tendo os Ministros esclarecido a decisão,
demonstrando não ter havido omissão, inconsistência, obscuridade ou qualquer interpretação
equivocada, em que pesem entendimentos em sentido diverso que ainda persistem.
A digressão em tela visa demonstrar a finalidade dos embargos declaratórios que, na
maioria das vezes, guardam relação com aspectos linguísticos, mormente por se vislumbrar no
julgamento obscuridade quanto ao alcance da decisão judicial. É nesse sentido que a petição
deve estar adstrita às imposições do Código de Processo Civil ou, conforme o caso, em
regimentos interna corporis, exatamente para se evitarem dúvidas ou eventuais interpretações
equivocadas quanto aos procedimentos adotados.
79
No âmbito do direito penal, que por sua vez nos interessa em face do julgamento do
acusado pelo crime de Denise Lafetá, os embargos de declaração são disciplinados pelos arts.
619 e 620, impondo observância dos preceitos processuais, senão vejamos:
DOS EMBARGOS Art. 619. Aos acórdãos proferidos pelos Tribunais de Apelação, câmaras ou
turmas, poderão ser opostos embargos de declaração, no prazo de dois dias
contados da sua publicação, quando houver na sentença ambiguidade,
obscuridade, contradição ou omissão. Art. 620. Os embargos de declaração serão deduzidos em requerimento de que
constem os pontos em que o acórdão é ambíguo, obscuro, contraditório ou
omisso. § 1o O requerimento será apresentado pelo relator e julgado,
independentemente de revisão, na primeira sessão. § 2o Se não preenchidas as condições enumeradas neste artigo, o relator
indeferirá desde logo o requerimento. (Código de Processo Penal, 1941)
Da leitura atenta dos embargos, seja no âmbito do processo civil, seja no processo
penal, aduz-se que tal recurso está por óbvio adstrito não a questões jurídicas em si, mas também
a questões linguísticas com repercussão jurídica. Comprovam essa assertiva a existência,
respectivamente, de ambiguidade, obscuridade, pontos contraditórios ou omissos. Saliente-se
que o substantivo embargo deriva-se do verbo embargar, que se traduz em insatisfação, em
afronta quanto ao entendimento exarado pelo enunciador, no caso juiz, desembargador ou
ministros, divergências essas que induzem ao dialogismo, como já externamos anteriormente.
Ora, o dialogismo não se resume no mero diálogo entre as partes, mas sim numa
relação relativamente antagônica, em tensões comunicacionais motivadas por posicionamentos
discursivos que vão de encontro com enunciados acerca de determinado tema, ensejando
discussões sobre esse ou aquele ponto de vista, que por sua vez também se ancoram em outros
posicionamentos, tanto num viés quanto em outro, sugerindo também a polifonia ou,
dependendo da circunstância, até mesmo a alteridade.
Qualquer que seja uma enunciação, mormente em situações limites como no caso de
demanda judicial, são inadmissíveis equívocos dessa natureza, e que, por conseguinte,
comprometem consideravelmente o escopo da sentença. No entanto, há de se levar em
consideração que esses equívocos não ocorrem de forma deliberada, mas sobretudo pela
complexidade das situações específicas, o que explica interpretações as mais diversas,
independentemente de se cogitar de ilegalidade em face de posicionamentos divergentes entre
si.
80
3.5 A alteridade e a polifonia intrínsecas na enunciação discursiva
A alteridade guarda relação intrínseca com a polifonia e, por conseguinte, com o
interdiscurso, à medida que o vozeamento está imbricado em outros dizeres, seja de forma
explícita ou latente, consciente ou inconsciente, no mesmo direcionamento ou em sentido
diverso em consonância com o contexto adotado pelos enunciadores, portanto fenômenos
linguísticos indissociáveis do funcionamento do gênero de discurso petição.
Em artigo elucidativo, Beth Brait (2001) se reporta aos estudos de Authier-Revuz para
melhor explicar a alteridade e sua importância no fenômeno da enunciação discursiva. Nesse
ensaio, a autora demonstra a relação imbricada entre alteridade, dialogismo e heterogeneidade,
asseverando que o outro não é o mesmo em face do interdiscurso, até porque a voz do outro
advém de outras vozes, de outras enunciações, de sorte que esse fenômeno linguístico atinente
à alteridade implica vozeamentos que dão suporte ao enunciador, em contrapartida com outras
vozes que, por sua vez, também se respaldam por dizeres diversos propiciados pela prática
discursiva, dando ensejo inclusive à polifonia preconizada por Ducrot e Bakhtin.
Assevera Brait:
Assim sendo, a reflexão começa com traços gerais a respeito da teoria de
Authier-Revuz, aportando na fundamentação a partir da assunção do 'outro'
como constitutivo do sujeito e da linguagem; recupera o caminho bakhtiniano
para a constituição de uma concepção de linguagem em que dialogismo e
polifonia são alicerces necessariamente calcados num conceito de 'outro'
discursivo, ideológico e interacional; ensaia, com muitos “dedos”, a concepção
lacaniana em que inconsciente e linguagem autorizam o conceito de “outro”; e
por fim, volta a Authier para surpreender os momentos de sua teoria em que
Bakhtin é a contribuição, e não Lacan. (BRAIT, 2005, p. 7)
A propósito, o posicionamento em questão corrobora a tese da interdiscursividade,
aflorando a metalinguística, uma vez que se percebe claramente o código explicando o próprio
código, tendo em vista que Beth Brait se reporta a Authier-Revuz, que por sua vez se ancora
em Bakhtin/Volochinov e Lacan, o que por si comprova esse fenômeno linguístico da
intertextualidade, sem se olvidar da polifonia e da própria alteridade.
Não há como nos desvencilhar dessa especificidade, uma vez que ninguém age sozinho
na área do conhecimento, mormente quando se trata de estudos de natureza linguístico-
discursiva, o que se justifica pelo fato de a língua ser a primeira e mais importante das atividades
humanas.
Ressalte-se que a evolução a que nos referimos, por sua vez, também é relativa, pois,
em muitos casos, valendo-se dos mesmos recursos linguísticos, percebe-se, na verdade, um
processo inverso que se coaduna com a involução do homem, como se aduz de discursos
81
fundamentalistas, assim como de políticas revolucionárias retrógradas implantadas de forma a
fomentar o terror, visando instituir um estado radical, religioso, advindo de potestade, como
ultimamente tem sido noticiado pela mídia, assim como por estudos avançados sobre
religiosidade e política.
Tais contradições, por sua vez, também se amparam nos recursos linguísticos,
pautando-se nos signos, na semiótica, na semântica, na representação. Essa é a essência da
alteridade, que, por conseguinte, guarda relação imbricada com a polifonia preconizada em
primeira mão por Bakhtin (1929). Nesse propósito, para Authier, a alteridade se consubstancia
na trilogia linguagem, sujeito e sentido, considerando as diferenças entre os enunciadores e
enunciatários, respeitando suas especificidades enunciativas e interpretativas.
Essas nuances enunciativas são oportunas ao presente estudo por não se conceber a
ciência jurídica sem pensar nas semelhanças e divergências, porquanto o direito se
consubstancia em discursos, em enunciações, na dialética, cujo escopo é em última instância o
fazer justiça, considerando nesse mister os fatores intrínsecos à interação verbal, eis que a
atividade em si é eminentemente social e se vale em grande medida de posicionamentos
jurisprudenciais e doutrinários já sedimentados por juristas de escolas distintas, bem assim por
enunciados oriundos de correntes minoritárias que resistem a tendências já consagradas, o que
proporciona quebra de paradigmas, traduzindo-se na responsividade de que já tratamos neste
trabalho.
No decorrer do presente estudo, vamos voltar ao tema da alteridade e polifonia, tendo
em vista que ambas têm importância ímpar a respaldar a discursividade, mormente para reforçar
argumentos que visem a corroborar enunciados destinados a prestigiar determinados pareceres
num ou noutro viés, como se depreende do corpus, considerando as citações trazidas à colação
nas respectivas petições.
Outro fenômeno linguístico interessante que nos remete à interdiscursividade diz
respeito à heterogeneidade constitutiva que, segundo Authier-Revuz, diz respeito à
exterioridade não marcada na linearidade do dizer, mas que constitui o binômio sujeito e
discurso. Trata-se de uma simbiose entre dois ou mais discursos, uma harmonia nos dizeres, de
forma que não se possa identificar claramente a autoria primária do discurso.
Nessa perspectiva, Flores (2009) se reporta ao posicionamento de Authier-Revuz
(1998), in verbis:
O percurso pelo continuum de formas explicitamente marcadas da presença da
alteridade no discurso, passando por sequências nas quais a presença do outro
é sinalizada apenas de maneira implícita, conduz a um ponto-limite, em que a
alteridade não é nem localizável, nem representável na superfície linguística.
82
(...) A relação entre as formas de heterogeneidade mostrada marcadas e/ou
sugeridas e esse ponto-extremo, em que as palavras dos outros; as outras
palavras estão constitutivamente presentes no discurso, sem se representar na
superfície, não se dá por progressão linear de um plano a outro. A
heterogeneidade constitutiva é uma dimensão do heterogêneo de ordem
estruturada, fundamental, condição de existência do fato enunciativo. (...)
Recorre, assim, a duas abordagens em que se encontra um questionamento
radical - ainda que sobe bases diferentes - das noções de discurso como
homogêneo e de locutor como fonte de sentido: o dialogismo do Círculo de
Bakhtin e a teoria do sujeito estruturalmente clivado, elaborada por Lacan, a
partir da leitura de Freud. Essa ancoragem permite entender a fala como sendo
determinada para além da vontade do sujeito falante, que, ilusoriamente,
acredita ser a fonte de seu dizer, quando não é mais do que seu suporte e seu
efeito. (FLORES [et al], 2009, 135)
Em petições jurídicas ou administrativas, percebemos muitas vezes o uso frequente do
imbricamento de falas do enunciador associada ao discurso de outrem sem uma delimitação
explícita de quem efetivamente está enunciando, ou seja, não se identifica de forma clara a
origem do discurso, o que enseja a alteridade correlacionada à heterogeneidade constitutiva em
questão, eis que discurso de outrem se dá no enunciado de forma latente ou difusa, às vezes até
mesmo sem essa consciência.
No âmbito do direito, como se depreende do corpus, ao se recorrer à doutrina ou
jurisprudência, são comuns enunciações discursivas que coincidem em face dessa
heterogeneidade constitutiva, de sorte que o discurso de um está contido na enunciação de outro,
configurando a alteridade em questão. Esse fenômeno se dá pela associação de ideias, pelo fato
de haver convergência acerca do tema em discussão, assim como divergência em relação aos
que pensam de outra forma, ou seja, a alteridade está presente entre os que comungam do
mesmo posicionamento, assim como entre aqueles que divergem desse posicionamento, mas
que, por sua vez, encontram guarida em tese que lhes sejam favoráveis.
Em função desse fenômeno, há enunciações divergentes entre si, à medida que
determinado enunciador se pauta por pontos de vista de determinados doutrinadores, enquanto
o interlocutor pode entender de outra forma por se pautar em outros doutrinadores ou
enunciadores com outra concepção sobre o tema. Assim, considerando que cada qual adota
aquela corrente que mais se assemelha ao seu modo de ser, à que mais lhe convenha, há uma
tendência a se incorporar esse discurso como sendo também o seu, obviamente sem se cogitar
de plágio ou má fé, mas de uma identificação discursiva propriamente dita que dá ensejo ao
interdiscurso.
A título de ilustração, basta considerar que, no âmbito do direito penal, há aqueles
juristas que adotam ou simpatizam com direito penal mínimo como uma política inerente ao
controle social, entendendo a pena como um mal necessário que se deve aplicar de forma o mais
83
branda possível, enquanto há outros que fomentam o rigor da lei, primando-se pela aplicação
da pena não só com o caráter punitivo e retributivo, mas também como uma espécie de
vingança, visando inibir a prática de conduta antijurídica. Essa especificidade se dá pela
influência cultural, ideológica, política, bem assim pela simpatia a uma linha de conduta voltada
para esse ou aquele viés.
Em suma, é nesse sentido que a comunicação se faz interativa, o que se coaduna
inclusive com a polifonia, pois não há nada que, de uma ou de outra forma, já não tenha sido
dito, ainda que com outras palavras. A língua, por óbvio, evolui e, consequentemente, a cultura
que leva a uma adequação dos institutos, dos conceitos, proporciona enunciados semelhantes a
esse ou àquele discurso, contudo com certo aperfeiçoamento e adequação. Tal fenômeno
linguístico, por sua vez, nos remete também à alteridade sugerida por Charaudeau.
Para o referido autor “... todo ato de linguagem emana de um sujeito que gere sua
relação com o outro (princípio da alteridade) de modo a influenciá-lo (princípio de influência),
tendo de gerir uma relação na qual o parceiro tem seu próprio projeto de influência (princípio
de regulação).4
No entanto, por óbvio, nem sempre o enunciador consegue persuadir o interlocutor, de
sorte que a relação dialógica emerge dessa dicotomia existente entre pontos de vista antagônico,
o que sugere o dialogismo preconizado por Bakhtin, sobre o qual Flores externa sua visão, a
saber:
O dialogismo é constitutivo de todo discurso. É uma propriedade da linguagem
(discurso) que estabelece inter-relação permanente com outros discursos e o
discurso do outro. Isso se deve ao fato de o discurso trazer ressonâncias de já-
ditos, responder a dizeres diversos (passados, presente, futuros) e fazer
projeções e/ou antecipações do discurso-resposta. Essa inter-relação
permanente com discursos de outrem caracteriza a dinamicidade da linguagem,
sua natureza heterogênea e a instauração de áridas relações de sentido. A
constituição dialógica da linguagem evidencia que todo enunciado é um elo na
cadeia da comunicação discursiva, inscrito em um determinado momento
sócio-histórico, ‘povoado de palavras do outro em diferentes graus de presença,
o que garante a sua inconclusividade, no inacabamento orgânico. O
dialogismo, sendo um princípio intrínseco do discurso, aparece nas diferentes
noções desenvolvidas pela teoria bakhtiniana, como ‘linguagem, palavra, signo
ideológico, enunciado, sujeito, estilo e compreensão’. (FLORES [et al], 2009,
p. 80)
Ora, o Direito é exemplo cabal dessa concepção linguística. Os ensinamentos jurídicos,
por si, em qualquer época, se reportam ao Direito Romano, base do direito Civil, norteado por
seus jurisconsultos. Doutrinas e jurisprudências são colacionadas às petições, sentenças,
4 Charaudeau, 2005, p. 12 [2006, p. 16] in: http://www.patrick-charaudeau.com/Uma-analise-semiolinguistica-
do.html
84
recursos e outras peças. O que são esses dispositivos jurídicos senão a alteridade e a
discursivização intrínsecas ao dialogismo? Raramente se vê uma sentença que não traz em sua
fundamentação um julgado sedimentado em outras decisões no mesmo sentido emanadas dos
tribunais, significando, pois, que a alteridade se dá de forma explícita ou implícita, consciente
ou inconsciente, mas não há como ignorá-la no interdiscurso, assim como não se pode olvidar
do dialogismo que, por óbvio, vai muito além do diálogo na acepção do vocábulo.
Por jurisprudência entenda-se julgamentos com a devida cautela, pautando-se em
outros julgados relativos a situações análogas, ancorando-se em pontos de vista que corroboram
a argumentação empreendida, o que, por si, comprova o fenômeno da alteridade, assim como
da polifonia preconizada por Bakhtin. Verdade que, se há decisões judiciais num norte, também
há noutro sentido, mas ambas primando-se em outras vozes já ditas que se coadunem entre si
com entendimentos exarados em casos concretos em face de fatos e fundamentos que as
justifiquem, até que as circunstâncias fáticas acabem por se firmarem sem maiores divergências,
não obstante haver em qualquer situação independência do juiz em julgar conforme sua livre
convicção.
É fato inconteste que, para se chegar a bom termo, sabendo-se que, nas situações
concretas levadas às barras dos tribunais, há sempre polos antagônicos, seja o Estado como
autor e o cidadão como réu ou vice-versa, seja um demandante contra outro, haverá em princípio
o pressuposto do devido processo legal, facultando-se às partes as mesmas oportunidades, como
já ressaltamos anteriormente, o que, por si, demanda o dialogismo, uma vez que cada parte se
manifesta, cabendo à outra contestar. Essa relação antagônica linguisticamente sugere o
dialogismo, a interação verbal, o interacionismo de forma mais abrangente, bem como a
responsividade tratada por Bakhtin como forma de reação ao discurso do outro.
A propósito, Bakhtin asseverou que toda assertiva induz a uma resposta e, nesse
sentido, ele criou o neologismo responsividade. Todavia, há de se atentar-se que, no diálogo
entre as partes, nem sempre há uma intenção de persuadir o enunciatário, diferentemente do que
ocorre na esfera jurídica ou na atividade de trabalho, em que, na maioria das vezes, há sempre
esse interesse. A responsividade em questão abrange em os aspectos linguísticos supracitados,
haja vista os princípios da ampla defesa e do contraditório como prerrogativas inalienáveis.
3.6 Semiotização ideológica no sistema jurídico
Na prática discursiva, todo enunciador procura adequar sua fala à situação concreta,
sempre vislumbrando em certa medida a consciência identitária dos envolvidos no processo
85
enunciativo, principalmente a sua, pois não se podem ignorar os vários pontos de vista possíveis
em relação a determinado tema e ao posicionamento do receptor. Ademais, todos têm
consciência de que um discurso sempre se destina a um enunciatário específico, a um
determinado público, uma plateia ou uma coletividade, enfim, a um interlocutor que pode
concordar ou não com a mensagem transmitida, aderindo ou não a ela.
Sabendo-se dessas suscetibilidades, o enunciador tende a construir uma identidade
discursiva que possa interferir positivamente a seu favor. Visando a essa adesão ao discurso
proferido, faz-se imperiosa a construção da consciência identitária que se vincula aos saberes,
à autoridade de quem enuncia, o que, de certa forma, implica a formatação do ethos, sugerindo,
pois, um modo de dizer que busque a empatia do auditório consubstanciada no pathos.
Nesse sentido, não se pode ignorar que os interlocutores participam do processo de
comunicação em situações concretas, buscando fazer valer suas posições pessoais a partir da
referida consciência identitária, porque não é só o enunciador-locutor que tem essa iniciativa de
criar uma imagem positiva a seu favor, pois o TUi, por sua vez, não recebe a mensagem de
forma apática ou apolítica sem qualquer posicionamento responsivo, haja vista que o processo
de comunicação é dinâmico e consubstanciado em uma via de mão dupla.
Conforme leciona Amossy (2005), o ethos implica a construção de uma imagem do
enunciador no discurso, de forma que o emissor externa uma maneira própria de dizer, um modo
de enunciação personificado, desenvolvendo uma forma articulada de se expressar em
consonância com a situação cenográfica concreta, de sorte que cada caso específico demanda
uma maneira de enunciar reconhecido pelo modo de enunciar vinculado à adequação verbal
inerente a todo processo de comunicação indistintamente, não ignorando o estilo próprio do
enunciador, que deve ser considerado como relevante.
Corroborando essas assertivas, faz-se oportuno trazer à baila as lições da referida
autora, a saber:
A construção de uma imagem de si, peça principal da máquina retórica, está
fortemente ligada à enunciação, colocada no centro da análise linguística pelos
trabalhos de Emile Benveniste. Efetivamente, o ato de produzir um enunciado
remete necessariamente ao locutor que mobiliza a língua, que a faz funcionar
ao utilizá-la. Também é importante examinar a inscrição do locutor e a
construção da subjetividade na língua. Continuando esses trabalhos Catherine
Kerbrat-Orecchioni examinou os ‘procedimentos linguísticos” (shifters,
modalizadores, termos avaliativos etc.) pelos quais o locutor imprime sua
marca no enunciado, se inscreve na mensagem (implícita ou explicitamente) e
se situa em relação a ele (problema da distância enunciativa’. Se a autora se
coloca no interior de uma linguística da enunciação que privilegia o parâmetro
o locutor, ela não visa menos à interdependência dos parceiros da interlocução
e assim permanece fiel ao projeto de Benveniste, que havia introduzido a noção
de ‘quadro figurativo’. O autor entendia dessa maneira que a enunciação,
86
‘como forma de discurso, [...] instaura duas ‘figuras’ igualmente necessárias,
uma origem e outra destino da enunciação’. De fato, a enunciação é por
definição alocução; de uma forma explícita ou implícita, ‘ela postula um
alocutário’ e consequentemente estabelece uma ‘relação discursiva com o
parceiro’ que coloca as figuras do locutor e do alocutário em relação de
dependência mútua. (AMOSSY, 2008, p. 11)
A referência em questão, por sinal, exemplo inquestionável de polifonia e alteridade,
demonstra de forma cabal a cumplicidade entre os sujeitos da relação discursiva, o que se
evidencia no corpus. Nesse sentido, há de se ressaltar a percepção da subjetividade discursiva
mediante procedimentos linguísticos pelos quais o locutor imprime sua marca enunciativa,
como nas petições de outro gênero textual mais abrangente - o julgamento em si -, a exemplo
do caso trazido à colação. A propósito, pode-se afiançar que o gênero petição está contido em
um gênero mais amplo, elástico, no caso o julgamento, como de resto, em outras situações, o
gênero petição pode estar inserido no âmbito do gênero de discurso Processo Administrativo.
Assim, há de se considerar que o locutor age sobre o outro e a recíproca é verdadeira,
na medida em que quem é receptor, enunciatário ou alocutário - expressões sinônimas que
variam de autor para autor - tem sobre si o ônus da responsividade, que, por conseguinte, reverte
essa perspectiva na relação dialógica, inclusive em consonância com o dialogismo, sendo que,
no exercício da responsividade, passa a ser o enunciador (emissor/locutor/enunciador). Nesse
propósito, faz-se oportuno se reportar às lições de Maingueneau (1993) e Goffman (2001), de
quem Amossy (2005) também se vale para explicitar o fenômeno da construção identitária que
visa sobretudo ao envolvimento do outro, primando-se por legitimar as asserções discursivas.
Trata-se, pois, da relação interdiscursiva existente entre os actantes, sujeitos esses
compostos não só pelo eu e o tu ressaltados por Benveniste, mas também pelo ele, que seria a
influência de outros ditos acerca do tema, sugerindo por conseguinte a polifonia na concepção
bakhtiniana, ressaltando que o auditório representaria o “ele”. Por oportuno, esses fenômenos
linguageiros sugerem a interação verbal, valorizando aspectos sociais importantes às relações
interpessoais.
No âmbito do direito, são comuns as construções identitárias dos enunciadores, mais
precisamente na perspectiva bakhtiniana relacionada a identidades sociais, visando respaldar o
discurso, como por exemplo a suposta austeridade social motivada por certa eloquência no
dizer, no proferir palavras não tão comuns ao dia a dia, na imagem de si externada por
indumentárias, imponência dialógica às vezes até com relativa arrogância, o que se vislumbra
nas próprias petições que compõem os autos etc.
No afã de construir essa consciência identitária movida pelos modos de dizer, de se
expressar, de se apresentar, percebem-se aspectos semióticos que sem dúvida também fazem
87
parte do contexto discursivo nesse mister. Como é cediço, o interdiscurso não se resume em
palavras, mas também em gestos, em se apresentar, por modos de enunciar, modos de agir, de
se vestir, de tratar com o outro.
Assim, há de se questionar: por que os advogados só se apresentam em juízo trajando
ternos, assim como juízes, promotores e outros profissionais da área? Qual a razão de os
membros dos Tribunais atuarem sempre de togas em sessões plenárias? E os juízes ingleses e
do País de Gales que ainda atuam com suas perucas de crina de cavalos, indumentárias que
datam do século XVIII? Ora, esses artifícios só se justificam em face da construção identitária,
que se faz não unicamente por palavras ou discursos, mas por rituais, gestos, tradições, cultura
etc., além dos aspectos semióticos adstritos aos signos linguísticos e à semiotização social.
Ademais, não se pode olvidar dessa construção identitária com o objetivo de prestigiar
um suposto status, induzindo a um espírito de corpo, o que não foge à mesma seara da prática
discursiva e do controle social de que tratou Volochinov/Bakhtin em Marxismo e Filosofia da
Linguagem (1995). A título de ilustração, podemos citar duas profissões cuja prática já se
consagrou culturalmente nesse sentido, que são médicos e advogados, os dois únicos
profissionais que, em função do exercício de seu mister, têm a faculdade de serem tratados por
doutores, mesmo sem sequer terem defendidos uma tese ou até mesmo uma dissertação de
mestrado.
Nesse sentido, há críticas contundentes sobretudo a esse tratamento ao advogado, não
havendo maiores ressalvas no que tange a ao tratamento em questão quanto aos médicos,
embora a situação seja similar. Todos sabemos que o tratamento de doutor somente é conferido
stricto senso a quem defenda tese de doutorado, portanto seria uma impropriedade a situação
em questão.
Ocorre que esse tratamento de doutor tanto a médicos quanto a advogados tem como
justificativa o fato de serem eles os únicos profissionais que, no exercício da profissão,
defendem teses em sentido lato, daí o porquê dessa situação atípica. A título de ilustração, tais
profissionais atuam, de modo geral, em atividade meio e não de resultado, ou seja, um médico
ou um advogado, em regra, não têm a obrigação de auferir um resultado positivo com seus
clientes, mas têm a obrigação de empenhar-se ao máximo para conseguir um resultado
satisfatório.
Um paciente em consulta médica terá um diagnóstico sobre os problemas que está
sentindo, os sintomas, contudo, o médico vai lhe pedir os exames que eventualmente possam
indicar o problema. Esse paciente, assim como outros com os mesmos sintomas, ao procurarem
outros médicos, podem ter outros diagnósticos, ter outros tratamentos recomendados, todos se
88
utilizando de meios para tentar a solução do problema, portanto, cada qual defende uma tese,
um prognóstico, um diagnóstico sobre o caso sob análise, daí o porquê de já se ter
institucionalizado culturalmente o tratamento de doutor aos médicos. Essa digressão ilustra a
semiotização cultural para legitimar uma circunstância fática de acordo com a conveniência
institucional, sem nos olvidarmos da semantização social nesse mister, o que se legitima por
convenções discursivas, como discorremos acima.
Em relação aos advogados, também ocorre o mesmo, pois a atividade da advocacia,
como dito anteriormente, por ser atividade meio e não de resultado, o profissional utilizará de
todos os recursos processuais para obter um resultado favorável a seu cliente, porém esse
resultado esperado pode não corresponder às expectativas, pois a “tese” defendida em relação
ao fato jurídico em questão pode não lograr êxito. Tanto que em uma ação penal, a exemplo da
que foi objeto da presente pesquisa, a promotoria de justiça defendeu a tese de crime doloso
contra a vida da vítima, assassinato com a ocultação de cadáver. Lado outro, o advogado do réu
defendeu a tese de inocência, de desaparecimento espontâneo da vítima ou por outro motivo
alheio a seu conhecimento, sendo que o Tribunal do Júri acatou a tese do crime doloso em
questão, ao passo que o juiz de primeira instância, em princípio, foi favorável à impronúncia do
réu por não admitir a tese de crime de homicídio, porquanto não houve exame de corpo de
delito.
Vejam que tanto em relação ao médico quanto em relação ao advogado tais
profissionais têm obrigação de se empenhar ao máximo visando ao resultado mais favorável
aos clientes, contudo isso não é uma garantia de obtenção do resultado perseguido, pois a tese
defendida por ambos em relação ao problema, e os esforços olvidados pelos envolvidos, podem
não lograr êxito, ao passo que a tese em outra seara, por sua vez, pode ser a vitoriosa.
Tendo explicado essa lógica, faz-se oportuno tecer algumas considerações pertinentes
ao tema sob a ótica linguística, mais precisamente em relação à prática discursiva voltada para
o controle social, tanto na perspectiva de Foucault quanto na empreendida por Bakhtin. Assim,
a sociedade assimilou esse tratamento aos médicos e advogados à vista de esforços semióticos
engendrados pelo corporativismo de classe, considerando a necessidade circunstancial de
prestigiá-los em cada época, embora ainda se note certa restrição mais em relação aos
advogados, como se aduz de algumas críticas explícitas ou veladas, questionando que só seria
facultado tal tratamento a quem tenha defendido tese perante uma banca acadêmica, logo não
haveria porque tratar advogados como doutores.
De fato, em sentido estrito, sim, mas o que garante esse status quo é na verdade a
legitimação e a chancela conferida pela sociedade nesse sentido, tanto que raramente se vê
89
algum cliente ou paciente se dirigindo a tais profissionais sem os tratar por doutores, o que
corrobora o processo de reconhecimento lato sensu formatado pela instituição de classe, bem
como pelos usos e costumes, por conseguinte, pela própria sociedade. Outros argumentos
embasam esses questionamentos, mas os mais plausíveis vão ao encontro desse entendimento.
Lado outro, pode ocorrer comportamento em sentido inverso, como no caso dos
professores, por exemplo. Até o início do século XX, esses profissionais eram tratados por
mestres, independentemente de haverem concluído mestrado ou doutorado. Na verdade, essa
inversão também se deu pelo desprestígio da profissão perante a sociedade, o que demonstra
um retrocesso que significa certo descaso para com a profissão, o que, de certa forma, também
implica uma postura cultural da sociedade nesse propósito, infelizmente. Outro contrassenso
nesse sentido é o fato de que mesmo os professores que têm doutorado não serem tratados com
esse pronome de tratamento pelas razões já externadas, exceto em correspondências formais.
Essa explanação visa esclarecer, sob a ótica linguística, a questão da formação
identitária de que vários linguistas tratam, como Patrick Charaudeau, Maingueneau, Amossy,
dentre outros. A questão é cultural, inclusive vinculada a um espírito de corpo, haja vista que
essa mesma lógica relativa às defesas de tese em sentido lato também poderia ser defendida por
outras categorias, como a dos psicólogos, sociólogos, antropólogos etc., portanto qual seria a
razão de apenas médicos e advogados receberem esse tratamento no dia-a-dia?
Na realidade, essa legitimação se dá, como asseveramos antes, pela semiotização e
semantização sociais enquanto mecanismos de controle, à vista de uma chancela conferida
culturalmente, o que a propósito nos remeteria às obras Marxismo e Filosofia da Linguagem
(Volochinov/Bakhtin, 1929), e Arqueologia do Saber (Foucault, 1969). Trata-se de um prestígio
conferido em face da construção identitária, não do indivíduo propriamente dito, mas dos
saberes que são prestigiados em determinada época ou cultura em função de interesses sócio-
políticos, o que se externa no signo linguístico e, por conseguinte, na semiotização a ele
inerente.
Nesse sentido, focamos o que assevera Volochinov/Bakhtin acerca da ideologia e
filosofia da linguagem:
Os signos também são objetos naturais, específicos, e, como vimos, todo
produto natural, tecnológico ou de consumo pode tornar-se signo e adquirir,
assim, um sentido que ultrapasse suas próprias particularidades. Um signo não
existe apenas como parte de uma realidade; ele também reflete e refrata uma
outra. Ele pode distorcer essa realidade, ser-lhe fiel, ou apreendê-la de um
ponto de vista específico, etc. Todo signo está sujeito aos critérios de avaliação
ideológica (isto é: se é verdadeiro, falso, correto, justificado, bom, etc.). O
domínio do ideológico coincide com o domínio dos signos: são mutuamente
correspondentes. Ali onde o signo se encontra, encontra-se também o
90
ideológico. Tudo que é ideológico possui um valor semiótico. Cada signo
ideológico é não apenas um reflexo, uma sombra da realidade, mas também
um fragmento material dessa realidade. Todo fenômeno que funciona como
signo ideológico tem uma encarnação material, seja como som, como massa
física, como cor, como movimento do corpo ou como outra coisa qualquer.
Nesse sentido, a realidade do signo é totalmente objetiva e, portanto, passível
de um estudo metodologicamente unitário e objetivo. Um signo é um
fenômeno do mundo exterior. O próprio signo e todos os seus efeitos (todas as
ações, reações e novos signos que ele gera no meio social circundante)
aparecem na experiência exterior. Este é um ponto de suma importância. No
entanto, por mais elementar e evidente que ele possa parecer, o estudo das
ideologias ainda não tirou todas as consequências que dele decorrem.
(BAKHTIN, 1990, p. 32)
O tema se nos configura intrigante, até por se ater a um fenômeno recorrente ao longo
da história. Corrobora essa perspectiva vinculada à semiotização social o que Foucault externou
na Arqueologia do Saber, haja vista sua tese centrada na análise diacrônica relativa aos saberes
em um corte temporal para compreender o que, em cada, época foi uma referência cultural para
prestigiar ou até mesmo desprestigiar um conhecimento específico, bem como sua valoração
em relação à sociedade em um momento histórico.
Nesse sentido, reportando-se à arqueologia preconizada por Foucault, temos que os
saberes são referências também semantizadas pelos valores culturais em determinado momento
histórico, tanto que a obra em questão enfatizou a importância da medicina, das ciências naturais
e da economia, o que enseja inclusive aspectos inerentes à interação verbal.
Para o autor, e isso é inquestionável, a arqueologia implica relações entre formações
discursivas e domínios políticos que abrangem instituições, acontecimentos sociais, práticas e
processos econômicos, bem assim as positividades emanadas de um contexto sociocultural de
determinada época, senão vejamos a seguir.
Segundo Foucault, a medicina clínica instaurada no Século XVIII estaria vinculada a
fatos e organizações sociais inerentes a acontecimentos políticos, econômicos e sociais,
portanto haveria um link entre tais fatos e as ideias médicas de solidariedade orgânica de coesão
funcional. Nesse sentido, considerando o capitalismo industrial aflorado, torna-se imperiosa a
necessidade de mão-de-obra, portanto as doenças passaram a ter significação em face da
dimensão econômico-social.
Nesse viés, assevera Foucault:
(...) em uma época em que o capitalismo industrial começava a recensear suas
necessidades de mão-de-obra, a doença assumiu uma dimensão social: a
manutenção da saúde, a cura, a assistência aos doentes pobres, a pesquisa das
causas e dos focos patogênicos, tornaram-se um encargo coletivo de que o
Estado deve, por um lado, se encarregar e, por outro, supervisionar. Disso,
seguem-se a valorização do corpo como instrumento de trabalho, o cuidado de
racionalizar a medicina pelo modelo das outras ciências, os esforços para
91
manter o nível de saúde de uma população, o cuidado recebido pela
terapêutica, pela manutenção de seus efeitos, pelo registro dos fenômenos de
longa duração. (FOUCAULT, 1972, p. 200)
O excerto em tela corrobora o que externamos acerca do prestígio conferido a
determinadas áreas do conhecimento em épocas específicas, motivado por circunstâncias
ideológicas em face de um contexto sócio-político e econômico. A arqueologia engendrada por
Foucault vislumbra esse corte temporal visando uma análise que explicaria os saberes e sua
importância para a sociedade em determinado momento, bem como a valorização desse saber a
serviço de pressupostos políticos de controle social.
Essa valorização, que aliás foi vislumbrada em grande parte na medicina, na economia
e na política se aplica por óbvio a outros saberes, conforme eles possam ter importância no
controle social, mormente no que tange aos modos de dizer, à forma de se patentear uma
asserção de interesse sócio-político. Nessa seara, não por acaso, Foucault centrou-se na
enunciação discursiva relacionada ao saber médico, que, mutatis mutandis, no que coubesse,
valeria para o saber jurídico por razões outras na mesma época e na atualidade.
Depreende-se da arqueologia foucaultiana que nada ocorre ao acaso, pois as práticas
discursivas de cunho ideológico têm o condão de sugerir a manutenção do controle social, bem
assim o status quo em face das perspectivas econômicas e políticas em determinada época, daí
o porquê da valoração de certos segmentos da sociedade, a exemplo da economia, medicina e
ciências naturais no século XVIII, o que se faz estrategicamente para endossar as práticas
sociais chanceladas pelos saberes que estariam a serviço da sociedade em cada tempo, senão
vejamos:
Se a arqueologia aproxima o discurso médico de um certo número de práticas,
é para descobrir relações muito menos 'imediatas' que a expressão, mas muito
mais diretas que as de uma causalidade substituída pela consciência dos
sujeitos-que-falam. Quer mostrar não como a prática política determinou
o sentido e a forma do discurso médico, mas como e a que título ela faz parte
de suas condições de emergência, de inserção e de funcionamento. (...) Finalmente, podemos compreender tal relação na função que é atribuída ao
discurso médico, ou no papel que se requer dele, quando se trata de julgar
indivíduos, de tomar decisões administrativas, de dispor as normas de
uma sociedade, de traduzir - para 'resolvê-los' ou mascará-los - conflitos de
uma outra ordem, de dar modelos de tipo natural às análises da sociedade e às
práticas que a concernem. Não se trata, portanto, de mostrar como a prática
política de uma sociedade dada constituiu ou modificou os conceitos médicos
e a estrutura teórica da patologia, mas como o discurso médico como prática
que se dirige a um certo campo de objetos, que se encontra nas mãos de
um certo número de indivíduos estatutariamente designados, que tem,
enfim, que exercer certas funções na sociedade, se articula com práticas que
lhe são exteriores e que não são de natureza discursiva. (...)
92
Em outras palavras: a descrição arqueológica dos discursos se desenrola na
dimensão de uma história geral; ela procura descobrir todo o domínio das
instituições, dos processos econômicos, das relações sociais com as quais
pode-se articular uma formação discursiva; ela tenta mostrar como a autonomia
do discurso e sua especificidade não lhe dão, entretanto, um estatuto de pura
idealidade e de total independência histórica; ela quer revelar o nível singular
em que a história pode dar lugar a tipos definidos de discurso, que têm seus
tipos próprios de historicidade, e que estão relacionados com todo um conjunto
de historicidades diversas. (FOUCAULT, 1972, p. 202) Grifos acrescidos.
Nesse propósito, vale ressaltar que o saber médico no século XVIII, assim como outros
saberes em épocas distintas, foi evidenciado com o status em questão pela necessidade de
disciplinar as relações de trabalho em face da revolução industrial, ensejando, pois, o
nascimento das clínicas, legitimando, em certa medida, a segregação de pessoas que não
poderiam trabalhar, de sorte que a função desse profissional guardava relação intrínseca com as
práticas discursivas que endossassem essa necessidade premente naquele momento histórico.
Assim, ao se levar em conta os saberes, não há como desvencilhar-se da prática
discursiva do momento histórico, porquanto o que a sociedade convenciona em valorizar em
um momento pode não corresponder a outro, ressaltando que o saber na concepção arqueológica
foucaultiana tem por escopo legitimar a enunciação a serviço das instituições, o que
corresponderia à positividade do discurso.
Para Foucault (1972, p. 157), "A positividade de um discurso - como a da história
natural, da economia política, ou da medicina clínica - caracteriza-lhe a unidade através do
tempo, e muito além das obras individuais, dos livros e dos textos", o que explica a supra
valorização dos saberes institucionalizados conforme o interesse de controle social em questão.
É nesse contexto que vislumbramos o porquê das positividades em discursos latentes
do médico, do advogado, bem como de outros profissionais como o economista, que
implicitamente, ainda que de forma inconsciente, estaria a serviço de uma ideologia política,
vinculada ao ordenamento social legitimando pela semiotização de controle.
Em sentido inverso, quiçá pela mesma questão de desprestigiar um saber adstrito ao
conhecimento, o professor antes tido como mestre deixou de ter esse status exatamente por não
haver interesse em valorar devidamente seu conhecimento perante a sociedade, mormente em
países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, haja vista o desinteresse da sociedade e de
sua classe dominante em fomentar o conhecimento a quem o buscasse na escola. Nesse sentido,
de forma inversa, estaríamos diante da arqueologia do saber num viés inverso, ou seja,
desprestigiando o saber do mestre em face de controle social ao avesso.
93
Ainda em relação à arqueologia na concepção foucaultiana, poderíamos nos reportar a
fato pitoresco ocorrido no Brasil, que bem ilustra a relação médica vinculada à segregação de
pessoas que representariam sob a ótica preconceituosa do capitalismo um estorvo à sociedade.
O saber médico foi privilegiado como já dissemos, assim como o saber da biologia e ciências
naturais, como de resto se evidenciou na economia. No Brasil, por exemplo, tivemos a
segregação de pessoas que sofriam da hanseníase, haja vista as colônias existentes em locais
longínquos das cidades até recentemente. Da mesma forma, eram segregados os loucos ou tidos
como doentes mentais, bem como pessoas marginalizadas, vadias, que não representariam um
retorno econômico para o país, bastando lembrar que a vadiagem já foi tipificada como crime
pelo Código Penal brasileiro.
Dentre vários exemplos que ilustrariam a tese de Foucault, no campo da medicina,
poderíamos citar como exemplo o caso do artista de rua Arthur Bispo do Rosário, um sergipano
que viveu na cidade do Rio de Janeiro desde sua adolescência, tendo ingressado na Marinha,
sido boxeador, trabalhador no cais, motorneiro de bonde, empregado doméstico, até que passou
a ter alucinações, visões de anjos, passando a colecionador de coisas, artista, daí ser considerado
por uns como louco e por outros como um gênio.
A partir de seu comportamento supostamente esquizofrênico, Bispo do Rosário foi
internado na Colônia Juliano Moreira, instituição que segregava doentes mentais, alcoólatras e
pessoas que não se encaixavam no paradigma dos tidos como normais. Esse artista alegava que
escutava vozes, que era um enviado de Deus, que tinha por missão julgar os vivos e os mortos.
Após se apresentar ao Mosteiro de São Bento com essas ideias esdrúxulas, acabou sendo
internado no Hospício Pedro II, aliás, uma das maiores instituições oficiais destinadas a
segregar pessoas com esse perfil. Em seguida, foi internado em outras Colônias destinadas a
pacientes paranoicos e esquizofrênicos, onde permaneceu por mais de cinquenta anos.
Por muito tempo passou a produzir objetos diversos oriundos de lixo, - hoje reciclagem
-, até que sua obra passou a ser valorizada como obra de vanguarda, sobretudo pela forma
inusitada, pela beleza e estilo diferenciado. Uma de suas principais obras foi o Manto da
Apresentação, em que ele produzira com a intenção de se apresentar a Deus no Juízo Final,
portanto o manto seria uma referência de sua passagem pela terra.
Se hoje objetos desprezados pela sociedade têm sido reciclados por uma consciência
ecológica, a postura de Bispo do Rosário nos anos trinta do século passado era por assim dizer
revolucionária, no entanto, o artista pernambucano, incompreendido pela sociedade, fora
internado como louco, segregado do convívio em sociedade, até que sua obra fora reconhecida
como uma referência.
94
Hoje ele é uma referência artística póstuma, cuja obra, por seu turno, é referência da
arte contemporânea brasileira a ponto de inspirar um dos mais renomados artistas plásticos da
atualidade, Ronaldo Fraga, o estilista mineiro reconhecido mundialmente, que, a propósito,
passou a ser reconhecido exatamente a partir de trabalhos valorizando a obra de Bispo do
Rosário, sobretudo o manto sagrado que seria a túnica, a roupa especial de sua apresentação no
Juízo Final.
Ora, é inacreditável que um artista tido como louco, desprezado pela sociedade,
discriminado, internado em manicômios, alijado do sistema, na verdade, era um artista
incomparável, um gênio, cujo reconhecimento só viera uns trinta anos após sua morte. Se
tivesse aparecido na mídia hoje, certamente seria devidamente valorizado, quiçá um artista de
reconhecimento internacional, contudo, à época, tendo em vista a política praticada pela
sociedade ocidental, nos termos ressaltados por Foucault, não passou de um indivíduo
marginalizado, cuja obra não despertou qualquer interesse à sociedade capitalista. Contudo,
hoje há uma estátua em sua homenagem em sua terra natal Japaratuba, Sergipe.
A legitimação dos saberes tem, pois, um cunho ideológico que chancela seu significado
sócio-político. Da mesma forma, a profissionalização o tem na medida em que só se considera
o profissional legitimado a externar seu saber a partir do reconhecimento pelo Estado, porquanto
por maior que seja a competência empírica para contemplar uma demanda em face de um saber,
ele só será legitimado se devidamente institucionalizado pelas instâncias próprias vinculadas à
classe dominante, pela mídia ou pelo mundo acadêmico.
A título de ilustração, aquele que detinha ou ainda detenha um conhecimento empírico
adquirido pela experiência de longos anos, sobretudo no passado, era reconhecido como um
mestre, mormente pelo reconhecimento cultural nesse sentido, a exemplo de um pescador que,
por esforços próprios, enfrentava e ainda enfrenta mares revoltos em pescarias homéricas, de
um carpinteiro, que sem noções técnicas de geometria constrói obras que resistem por séculos,
assim como mestres que também detenham conhecimentos acerca da meteorologia sem sequer
conhecer minimamente da astrologia.
O exemplo nos serve ainda para ilustrar a dicotomia das positividades asseveradas por
Foucault na Arqueologia do Saber, embora o renomado filósofo tenha se embrenhado no
reconhecimento do saber institucionalizado, haja vista suas digressões sobre a medicina, a
economia, as ciências naturais, ressaltando que esses conhecimentos não eram por óbvio os
únicos a serem prestigiados numa análise diacrônica acerca do discurso empreendido em
relação a elas, mas o foram, naquele período, pelas circunstâncias políticas do momento. São
essas circunstâncias que ensejam as positividades na perspectiva foucaultiana.
95
Sabendo-se dessas vicissitudes, ainda que intuitivamente as pessoas se valham dessa
especificidade para engendrar suas enunciações, seus modos de dizer, por conseguinte, suas
construções discursivas, o que se depreende do discurso do advogado, juízes, médicos,
professores, políticos e por que não dos saberes inerentes às camadas menos institucionalizadas
da sociedade, como na relação discursiva dos trabalhadores com seus sindicatos, com as
associações de classe etc.?
Trata-se, pois, de questão relevante que demanda uma atenção especial na seara da
enunciação discursiva, que, de certa forma, corrobora o caráter sócio-político intrínseco ao
processo de comunicação. Nesse mister, vale confirmar essas asserções trazendo à baila na
próxima seção algumas ponderações acerca da identidade social e identidade discursiva, bem
como o fundamento da competência enunciativa na perspectiva de Patrick Charaudeau.
Na seção seguinte, vamos adentrar no cerne do julgamento, tecendo considerações
sobre fatos relevantes inerentes à argumentação como fator preponderante ao êxito do
enunciador.
3.7 Os influxos da argumentação mudando a natureza das coisas
No julgamento que trazemos à baila, o veredicto do Conselho de Sentença decidiu por
cinco votos a dois pela condenação do réu, o que traduz na percepção do que seria justo para a
maioria dos jurados, aliás, maioria considerável a dar certa tranquilidade ao titular da ação
penal, no caso ao Ministério Público, haja vista ter sido uma maioria qualificada por margem
de segurança, diferentemente do que ocorreria se fosse um resultado apertado de quatro votos
a três pela condenação, pois desses votos, bastaria um em sentido inverso e, nessa hipótese,
implicaria absolvição do réu por margem ínfima.
Esses resultados são, por óbvio, motivados em grande parte pela enunciação discursiva
empreendida pelos enunciadores, bem como pela percepção do senso de justiça assimilado
pelos enunciatários, no caso, pelos jurados, porquanto foi, em função das práticas discursivas,
das estratégias argumentativas externadas pelos sujeitos enunciadores, que se chegou ao
resultado, ao veredito.
Ora, nessa digressão, o resultado do julgamento em tela poderia ter sido outro, ou seja,
por quatro a três a favor da absolvição do réu, como ressaltamos anteriormente, o que também
seria diferença ínfima. Essas ponderações dão conta de que a questão é polêmica e adstrita não
só aos aspectos jurídicos como se possa imaginar, mas em grande medida a questões
enunciativas, semânticas, argumentativas e interpretativas dos fatos e de suas versões, em
96
última instância, centrando-se em questões linguístico-discursivas.
Nessa seara, há de se ponderar acerca da extensão do caráter justiça na acepção do
termo, ou seja, processualmente falando, um julgamento que obedeça aos preceitos jurídicos
são justos, mas a interpretação dos fatos pode levar a um julgamento que não o seja, uma vez
que ninguém tem o dom da onisciência, portanto julga pela interpretação dos fatos à vista de
suas versões, sabendo-se que cada pessoa interpreta de seu jeito, assimilando as circunstâncias
à sua maneira, a partir de sua cultura, sua conduta, sua moral. Nesse sentido, há de se considerar
que o certo para um pode não o ser para outro, como a interpretação de conduta moral e ética
também possa variar de pessoa por pessoa, o que interfere inclusive no julgamento acerca do
agir, da culpa, do dolo, do honesto, etc., fatores esses que estão intrinsecamente voltados para
questões de foro íntimo.
Esses matizes nos remetem à Lógica Jurídica de Perelman (2004), uma vez que ela não
aponta para o certo ou errado em situações antagônicas, mas para uma justificativa a meio
termo, vislumbrando o bom senso, sem taxar como justa ou injusta essa ou aquela decisão, mas
alertando para a necessidade premente de se procurar errar o menos possível quando não der
para acertar, até porque o erro é inerente às atividades humanas, mas, em situações limites,
mormente quando se lida com a liberdade, com a vida, com direitos fundamentais, a injustiça
se consubstancia um mal irreparável, muitas vezes motivada por questões retóricas e políticas.
Nesse propósito, recorremos a Mieczyslaw Manelli (2004), um dos grandes
colaboradores de Perelman, senão vejamos:
A Nova Retórica não toma nada como certo. E a luta de Perelman contra todos
os vestígios abertos ou ocultos da teoria de que a verdade é 'aquilo que vejo
clara e distintamente' tornou-se a batalha mais importante no novo e
consistente intelectualismo contra a intelectualização dissimulada do séc. XX. (...) Portanto, a razão deve ser fortalecida pela nova teoria da argumentação e as
soluções razoáveis devem ser pluralísticas. A Nova Retórica tem consciência
de que muitas pessoas tomam como certo, óbvio e racional o que ainda precisa
ser provado. Elas aceitam ideias tradicionais, embora as circunstâncias mudem
radicalmente. (...) A partir do ponto culminante da teoria da argumentação, os fatos designam o
que foi acordado por uma determinada audiência como incontroverso. Mas um
'fato' pode deixar de ser um fato porque dúvidas foram levantadas sobre
ele pelo público específico ou porque o público original se expandiu e seus
novos membros vieram a questionar o que para
outros era incontestável. (MANELLI, 2004, p. 25) Grifos acrescidos.
Assim, ancorando-se nos preceitos supra e nas bases filosóficas e metodológicas da
Nova Retórica, que, de certa forma, se coadunam com a semiotização social, não se pode
afiançar que o justo, na acepção do vocábulo, seja o que se decidiu nesse ou naquele norte, seja
97
no âmbito do Tribunal do Júri, no STJ, seja no próprio STF, até mesmo quando haja
unanimidade nas votações, assim como em decisões por maioria, pois aqueles que são votos
vencidos podem ter vislumbrado outras perspectivas que ensejariam outra decisão, como de
resto ocorre em casos distintos com vários recursos, como ocorreu no julgamento, objeto desta
dissertação.
A entender de forma taxativa esse desiderato, chegar-se-ia à conclusão de que as
decisões judiciais primariam pelo que seja o mais próximo do justo possível, porque a medida
precisa de justiça só se alcançaria numa acepção teológica, transcendental, com a prerrogativa
da onisciência e onipresença, obviamente inacessível ao homem.
Por oportuno, vale trazer à colação os ensinamentos de Foucault nessa seara, que, por
óbvio, não se direciona exclusivamente ao direito, à jurisdição, mas aos saberes
institucionalizados na ordem política, econômica, médica e por que não jurídica, segundo suas
proposições, a saber:
1. A ideologia não é exclusiva da cientificidade. Poucos discursos deram
tanto lugar à ideologia quanto o discurso clínico ou o da economia política: não
é uma razão suficiente para apontar erro, contradição, ausência de objetividade
no conjunto de seus enunciados. 2. As contradições, as lacunas, as faltas teóricas podem assinalar o
funcionamento ideológico de uma ciência (ou de um discurso com pretensão
científica); podem permitir determinar em que ponto do edifício esse
funcionamento se dá. Mas a análise de tal funcionamento deve-se fazer ao
nível da positividade e das relações entre as regras da formação e as
estruturas da cientificidade. 3. Corrigindo-se, retificando seus erros, estreitando suas
formalizações, um discurso não anula forçosamente por isso sua relação
com a ideologia. O papel desta não diminui à medida que cresce o rigor e
que a falsidade se dissipa. 4. Entregar-se ao funcionamento ideológico de uma ciência para fazê-
lo aparecer e para modificá-lo não é revelar os pressupostos filosóficos que
podem habitá-lo; não é retornar aos fundamentos que a tornaram possível e que
a legitimam: é repô-la em questão como formação discursiva; é entregar-
se não às contradições formais de suas proposições, mas ao sistema de
formação de seus objetos, de seus tipos de enunciação, de seus conceitos,
de suas escolhas teóricas. É retomá-la como prática entre outras práticas.
(FOUCAULT, 1971, p. 225) Grifos acrescidos.
A questão não é pacífica, haja vista a impossibilidade do homem em abarcar as
inumeráveis contradições e solucioná-las em definitivo. Por todo o exposto, poder-se-ia afirmar
que a ciência jurídica, dadas as inquietudes e contradições, poderia também ter sido objeto de
uma análise diacrônica na perspectiva foucaultiana, pois a Arqueologia do Saber enquadraria
perfeitamente nessa teoria. Não há ciência mais política que a ciência jurídica, haja vista seu
conteúdo ideológico atinente ao controle social, além do fato de ela estar adstrita ao contexto
98
das elaborações de leis, portanto não se desvencilhando do mister emanado do Parlamento.
Prova disso são obras clássicas relacionadas a fatos jurídicos, cujos romances tiveram
por escopo denunciar a politização da ciência jurídica sob a égide do controle social motivado
pelos influxos da atuação do Estado. Nesse propósito, essas obras criticam a burocracia estatal,
a veneração a uma elite de poder, bem como a ideologização dos Poderes. Corroboram essa
asserção obras clássicas de Kafka, como "O processo" e "O Castelo", assim como a Revolução
dos Bichos e "1984", de George Orwell, dentre outras, que são referências irrefutáveis nesse
sentido.
3.8 Aspectos inerentes à identidade social e discursiva
Em princípio, Charaudeau (2009) acena para a questão da identidade do enunciador
externada pela fala, pelo discurso empreendido, justificando, pois, a identidade social, a
consciência discursiva e a competência comunicacional, que, por sua vez, também remeteriam
ao ethos do enunciador, cujo propósito visa chancelar suas asserções, seus argumentos e, por
conseguinte, a adesão do auditório, vislumbrando a perspectiva do pathos como enunciatário.
Assim, o autor se reporta à visão que o indivíduo tem acerca de si, do outro e do meio,
permitindo-lhe a tomada de consciência de sua existência, de sua cultura, suas crenças, juízos
de valor, suas potencialidades e seus saberes, não ignorando essas mesmas prerrogativas no
outro, na inter-relação entre logos e pathos, ressaltando, pois, o status tanto do conhecimento
formal quanto empírico na prática discursiva, bem como o contexto sócio discursivo
engendrado pelo sistema comunicacional como um todo.
Nessa tomada de consciência, faz-se imprescindível o reconhecimento das diferenças
existentes entre os sujeitos, considerando-se inclusive a percepção de mundo, o que sugere a
alteridade reconhecida nos dizeres do outro e de si, daí as razões de se endossar a enunciação
com o enunciado alheio, ainda que de forma inconsciente. Dessa forma, o indivíduo reconhece
semelhanças e diferenças nos discursos afetos à realidade circundante, o que o motiva a se valer
de enunciados seus, mas que foram também objeto de enunciações de outrem, na medida em
que nenhum discurso está adstrito a uma originalidade que não advenha de outros ditos.
Nessa perspectiva, Charaudeau também se reporta a Benveniste para reforçar que as
divergências e semelhanças se complementam, uma vez que não há eu sem tu, nem tu sem o eu,
o que por si justifica a alteridade na perspectiva bakhtiniana vinculada ao dialogismo. Fato é
que as diferenças são inevitáveis e até mesmo elogiáveis e salutares sob o ponto de vista da
dialética, pois corrobora a máxima de que ninguém é dono de verdades absolutas. Nesse
99
conflito, torna-se inevitável a constatação de que as diferenças sempre representam uma certa
ameaça, daí a importância de se constituir a identidade inerente ao eu que o distingue do tu,
sugerindo, pois, o dilema preconizado por Benveniste.
Esse dilema envolvendo a consciência identitária no discurso enunciativo demonstra
que na prática dialógica há uma constante construção ou avaliação da identidade social que
perpassa entre os sujeitos comunicantes, haja vista que, no ato de enunciar, que não se confunde
com o ato de fala, o enunciador procura imprimir certa confiança em si, porque tem convicção
de que tal iniciativa lhe será favorável no ato de persuadir o enunciatário e, por conseguinte,
conquistar sua adesão.
Para sedimentar a identidade social em consonância com o sistema, imbrica-se um
discurso ao discurso do outro e, ao mesmo tempo, refutam-se outros discursos em sentidos
diversos, ensejando, pois, o fenômeno da dialética e do contraditório. A confluência entre
identidade discursiva e identidade social funda-se na competência enunciativa em situações
explicitadas por Charaudeau, senão vejamos:
Os exemplos acima nos mostram, por outro lado, que a identidade social não
explica a totalidade da significação do discurso, pois seu possível efeito de
influência não está inteiramente dado por antecipação; por outro lado, é certo
que o discurso não é apenas linguagem, sua significação depende também da
identidade social de quem fala. A identidade social necessita ser reiterada,
reforçada, recriada, ou, ao contrário, ocultada pelo comportamento linguageiro
do sujeito falante, e a identidade discursiva, para se construir, necessita de uma
base de identidade social. Postulamos, pois, que existe uma diferença entre
estes dois tipos de identidade, e que é pela sua combinação que se constrói o
poder de influência do sujeito falante.5
A partir de alguns exemplos que reforçam seus argumentos acerca da importância da
identidade social na prática discursiva, Patrick Charaudeau demonstra que essa especificidade
é conferida em face de reconhecimentos de natureza acadêmica, do saber empírico, pela cultura
propriamente dita. Segundo o autor, a legitimidade se faz pela força do reconhecimento por
parte dos integrantes de determinada comunidade, à vista do valor conferido por seus membros.
Essa identidade se consubstancia por traços de natureza psicossocial, ou seja, legitimidade
conferida pela palavra, pelo engajamento pessoal de natureza política, pela participação
ostensiva em determinado grupo sociopolítico, enfim pela posição de poder, militância e status
social, dentre outros fatores importantes nesse propósito.
5 http://www.patrick-charaudeau.com/Identidade-social-e-identidade.html
100
Ressalte-se que, de certa forma, Charaudeau se reporta aos posicionamentos de
Foucault na Arqueologia do Saber, na medida em que haja relativo status a quem tenha prestígio
identitário de cunho ideológico, como ocorreu no século XVIII em relação aos saberes
conferidos à medicina, à economia, à ciência biológica.
Nesse sentido, discorre Foucault em Arqueologia do Saber:
Saber e ideologia Uma vez constituída, uma ciência não retoma a seu cargo e nos encadeamentos
que lhe são próprios tudo que formava a prática discursiva em que aparecia;
não dissipa tampouco - para remetê-lo à pré-história dos erros, dos
preconceitos ou da imaginação - o saber que o cerca. A anatomia patológica
não reduziu e reconduziu às normas da cientificidade a positividade da
medicina clínica. O saber não é o canteiro epistemológico que desapareceria
na ciência que o completa. A ciência (ou o que passa por tal) localiza-se em
um campo de saber e nele tem um papel. Papel que varia conforme as diferentes
formações discursivas e que se modifica com suas mutações. Aquilo que, na
época clássica, era considerado como conhecimento médico das doenças do
espírito ocupava no saber da loucura um lugar muito limitado: não era mais
que uma de suas superfícies de afloramento, entre muitas outras
(jurisprudência, casuística, regulamentação policial, etc.); em compensação, as
análises psicopatológicas do século XIX, que também passavam por um
conhecimento científico das doenças mentais, desempenharam um papel muito
diferente e muito mais importante no saber da loucura (papel de modelo e de
instância de decisão). Do mesmo modo, o discurso científico (ou supostamente
científico) não garante a mesma função ao saber econômico do século XVII e
no do século XIX. Encontra-se uma relação específica entre ciência e saber em
toda formação discursiva; a análise arqueológica, em lugar de definir entre eles
uma relação de exclusão ou de subtração (buscando o que se esconde do saber
e resiste ainda à ciência, o que da ciência ainda está comprometido pela
vizinhança e influência do saber), deve mostrar positivamente como uma
ciência se inscreve e funciona no elemento do saber. (FOUCAULT, 1971, p.
223)
Essas ponderações reforçam, inclusive, a incorporação da consciência identitária na
prática discursiva, na medida em que os saberes atinentes aos enunciadores não estariam a
serviço da sociedade ao acaso, mas sobretudo em face da semiotização ideológica, visando ao
controle social, ainda que de forma latente e inconsciente. Esse fenômeno social ocorre nos
Poderes constituídos, na medicina, no mundo acadêmico, na mídia, enfim, nos formadores de
opinião em geral.
Vê-se, pois, que são vários os fatores que interferem no processo enunciativo,
mormente a semiotização social de cunho ideológico, a representação que se consubstancia no
mundo dos signos, inclusive no que tange à acepção de justiça, tendo em vista que a jurisdição
em si, objeto inerente à presente pesquisa, implica dizer o direito no caso concreto, o que nos
leva a questionar o que seria, para casos concretos específicos, a dimensão do justo, vez que
101
decisões externadas em situações concretas nem sempre se coadunam efetivamente com o que
seria reto, haja vista jurisprudências antagônicas em situações correlatas.
Dessa forma há de se ponderar: se os fatos e suas versões são similares, por que as
decisões não o são na mesma medida? Trata-se, por conseguinte, de questão de alta indagação
ou de alta relevância, como se depreende do corpus.
Para melhor compreendermos a influência do discurso sobre o outro, visando
sobretudo a persuasão do enunciatário pelo enunciador, faz-se oportuno atentar-se para as lições
de Aristóteles em suas convicções discursivas acerca da virtude do homem honesto e sincero,
enaltecendo a equidade como referência, ressaltando que oradores inspiram confiança quando
seus argumentos e conselhos são dignos, pautados pela razoabilidade, consciência, honestidade
e equanimidade, transpassando a ideia de solidariedade para com outro e com o auditório.
Reportando-se a Gadamer, Amossy ressalta a aparência do expor com virtudes, ou seja,
para o enunciatário, os argumentos empreendidos pelo orador devem no mínimo parecer
plausíveis, verossímeis. Segundo Amossy (2005, p. 34), o orador persuadirá mais à medida que
o ouvinte tiver a convicção de que ele parece expor esses argumentos com virtude, isto é,
honesta e sinceramente, o que, por sua vez, também nos remete à retórica aristotélica.
No que concerne a essa relação discursiva, seja ela inerente à oralidade, seja vinculada
ao texto em si, mormente no gênero petição, sem excluir outros gêneros que também apresentam
características semelhantes, devemos considerar a dicotomia entre a identidade discursiva e a
identidade social, como bem deixou patente Charaudeau (2009), ao tratar do tema.
103
4 DA ANÁLISE DO MATERIAL SELECIONADO
A partir deste capítulo, adentraremos mais precisamente na análise do material
selecionado. Dentre as várias peças do processo, destacamos cinco petições que, em certa
medida, dão a dimensão das estratégias discursivas utilizadas pelos sujeitos comunicantes
envolvidos no julgamento. São petições produzidas pelos enunciadores representantes das
personagens envolvidas no enredo, as quais, em determinadas situações, não falam por si, mas
por outrem, por advogados, promotores, juízes, testemunhas, cada qual numa esfera enunciativa
pertinente a suas perspectivas enunciativas, uns com maior grau de envolvimento na situação
concreta, outros de forma periférica, mas com importância relevante em face do contexto sócio-
discursivo.
4.1 Questões polêmicas acerca de julgamentos no âmbito do Tribunal do Júri
Sem dúvida, o ordenamento jurídico é resultante da demanda social, levando-se em
conta o peso da opinião pública influenciada ou não pela mídia, o que, por sua vez, vem ao
encontro dos influxos dos discursos, debates, matérias jornalísticas acerca de determinado tema,
sugerindo, pois, edições de leis, posicionamentos jurisprudenciais e doutrinários.
O julgamento, objeto das petições em anexo, foi polêmico em face de posicionamentos
díspares, contraditórios, que oscilam tanto num viés quanto noutro, inclusive perante a opinião
pública. No caso em tela, a polêmica residiu mormente no fato de se deflagrar um julgamento
no âmbito do tribunal do júri sem sequer ter a certeza do homicídio, sobretudo por não ter sido
encontrado o corpo da vítima, tanto que até o juiz de primeira instância não pronunciou o réu.
Tratando-se de homicídio, o normal seria a confirmação do crime a partir do exame de
corpo de delito, porém, no caso em estudo, isso não ocorreu pelo desaparecimento da vítima, o
que por si já sugere questionamentos, pontos de vista que se destoam em relação à doutrina,
jurisprudência e opinião pública. Nesse sentido, as polêmicas vivenciadas nos discursos
proferidos pelas partes, conforme se depreende das petições, são exemplos cabais do dialogismo
evidenciado por posicionamentos antagônicos, ora a favor da condenação, ora a favor da
absolvição, tendo em vista a ausência de prova cabal do crime, até pela inexistência de corpo
para exame pericial, tanto que não houve unanimidade no resultado do julgamento.
Oportuno lembrar que um caso como o ora analisado sob a ótica da AD se nos
configura emblemático sobretudo por ser julgado por juízes leigos, ou seja, pelo Tribunal do
Júri - Conselho de Sentença -, portanto por pessoas comuns do povo, escolhidas ou designadas
104
quase que aleatoriamente, não fosse por análise criteriosa sob a conduta pessoal de cada um,
sem se adentrar no grau de escolaridade dos jurados, se têm ou não conhecimentos específicos
da matéria, se exercem ou não cargos compatíveis com a função a ser exercida, se são
funcionários públicos ou não, empregados ou desempregados. O importante é que sejam
cidadãos comuns com conduta ilibada, aptos ao exercício de atos civis.
Interessante o instituto do Tribunal do Júri, na medida em que ele representa a vontade
popular externada por jurados leigos, portanto suas decisões implicam avaliação quanto à
conduta do acusado. Para efeito do julgamento no âmbito do júri faz toda diferença avaliar se o
acusado agiu deliberadamente com um propósito, se o fato foi motivado por culpa ou por dolo,
se houve intenção ou não na ação delituosa, se a ação foi motivada por um propósito ou outro,
se o réu agiu por vingança, para roubar ou furtar, daí a importância em se formular quesitos a
serem respondidos pelos jurados, o que, em si, sugere análise sob a ótica da enunciação
discursiva, porquanto tem repercussão a diferença entre uma coisa e outra, por mais sutis que
sejam essas nuances, ou seja: roubo ou furto, dolo ou culpa, assassinato ou latrocínio, o que
comprova a relevância do gênero de discurso petição e a análise semântico-discursiva em
julgamentos desse viés.
Nesse sentido, esses jurados estão afetos aos enunciados oriundos dos agentes
envolvidos no procedimento criminal em apreço, à fala do promotor, delegado, juiz de
pronúncia, testemunhas, assistente de acusação, da própria repercussão na mídia. Daí a
importância da eloquência discursiva inerente tanto à tese da acusação quanto da defesa,
primando-se por evidenciar as teses jurídicas empreendidas pelo advogado de defesa e pelo
Ministério Público, assim como pelo assistente de acusação.
Tais profissionais imprimem sua marca por características personalíssimas atinentes
aos modos de dizer, algo que, por excelência, é intuito personae, sobretudo porque cada pessoa
se expressa de forma singular, não obstante a influência de outrem em cada enunciação
discursiva, haja vista que somos o resultado de interdiscursos, da interação verbal propriamente
dita.
Cada enunciador apresenta-se com suas vicissitudes, com suas peculiaridades e
idiossincrasias, sempre visando à defesa de seu ponto de vista, sendo eloquente em suas
ponderações, cujas emoções perpassam ao auditório, primando-se sobretudo pela autoridade e
legitimidade no externar seu discurso, dando a ele ares de veracidade, bem como autenticidade
identidária capaz de persuadir o enunciatário mediante argumentos plausíveis a esse mister.
Ademais, o Eu Comunicante se vale de uma realidade psíquica que envolve os
enunciatários, que, no júri, são o auditório, o próprio réu, promotores, testemunhas, o juiz e,
105
principalmente, os membros do Conselho de Sentença, no caso, os jurados propriamente ditos
que, em última instância, são os responsáveis pelo veredicto.
Ao enunciar no júri, o locutor, por óbvio, não tem certeza de auferir um resultado
satisfatório quanto ao convencimento do alocutário, mas há sempre um esforço nesse sentido,
levando-se em conta a responsividade inerente à percepção do outro, que, por conseguinte, pode
vislumbrar outras perspectivas, ou seja, de outros discursos, já que o contraditório implica
pontos de vista díspares, antagônicos, no caso, o da acusação e o da defesa, contudo, apenas um
logrará êxito em sua enunciação discursiva, ressaltando-se que, se há estratégias argumentativas
de uma das partes, por óbvio, também há em relação à outra, mas as competências discursivas
dependem de cada enunciador, o que, aliás, faz a diferença, podendo ser o fiel da balança.
A partir do que já demonstramos acerca dos conceitos fundantes, do referencial teórico,
seja em relação aos aspectos linguísticos, seja em relação aos preceitos jurídicos externados,
vamos adentrar na análise das peças jurídicas em questão sob a ótica da enunciação discursiva.
O corpus é fértil em relação aos aspectos linguageiros, de sorte que, nas petições objeto
da análise, vislumbram-se a interação verbal, alteridade, vozeamento, polifonia, o agenciamento
de operadores argumentativos e modalizadores, bem como outros elementos relacionados às
estratégias discursivas responsáveis pelos efeitos de natureza persuasiva, o que realça tanto
aspectos linguísticos quanto jurídicos atinentes à dialética e à retórica.
Nesse sentido, teceremos considerações em relação à petição primeira, no caso, a
Petição-Denúncia que ensejou a abertura do inquérito e, por conseguinte, do processo relativo
ao julgamento do crime de homicídio. Adentrando no mérito no que tange ao procedimento em
si, entende-se por pronúncia o acatamento das razões externadas pelo Ministério Público quanto
à prática de um crime doloso contra a vida da vítima.
Respeitadas algumas condições mínimas, tal documento não teria maiores
formalidades na esfera penal, portanto ele em si depende basicamente do estilo de redigir de
cada enunciador, do Eu Comunicante – EUc, que, nessa peça, seria subscrita pelo promotor de
justiça, que, mutatis mutandis, atuaria como advogado da sociedade, assim como, em ações
comuns, seria o advogado da parte. Nessa condição, o Eu comunicante - EUc dá voz a seu
representado – o povo, a sociedade, porquanto quem tem a competência institucional para falar
nesses autos, representando o autor da ação – o Estado - é sempre o promotor – sujeito
enunciador, o EUc.
Por outro prisma, a enunciação é direcionada, em princípio, ao juiz – o TUd
interpretante – TUi ou o Tu Destinatário - TUd, conforme autores, que, no caso, apreciará os
fatos, cotejando-os com a legislação vigente, apreciando as circunstâncias, para, enfim, acatar
106
ou não a ação. Nessa relação dialógica, percebe-se um processo interacional existente entre
enunciadores e enunciatários que sistematicamente trocam de status no processo
comunicacional, até que o ciclo se complete em cada etapa, senão vejamos: ao apresentar a
petição relativa à acusação, à denúncia propriamente dita, o sujeito comunicante é o promotor
de justiça. Lado outro, o TU destinatário é o juiz de primeira instância, o responsável por acatar
ou não a petição a ele dirigida. Assim que são avaliados os pressupostos de admissibilidade, ao
se convencer da realidade dos fatos, quem fala nos autos é o juiz, passando, pois, à condição de
EUc, ao passo que o promotor à posição de enunciatário ou TUd.
Como estamos lidando com uma situação polêmica, aliás, relativamente comum, a
relação dialógica, por óbvio se evidencia quando o juiz não acata as razões externadas pelo
promotor, o que se consubstancia com a impronúncia do réu. Para melhor compreensão dos
fatos, a impronúncia é um termo técnico, que significa a não aceitação da denúncia, ou seja, ao
final da petição, o promotor “pede” (requer) e “espera” ‘seja o ora réu pronunciado como
incurso nas penas do art. 121, § 2º, inciso II (motivo fútil), mais art. 211 caput, ambos do
Código Penal, em concurso material de delitos, nos termos do art. 69 do mesmo códex, e via
de consequência seja o mesmo submetido a julgamento perante o Tribunal do Júri desta
comarca, como manda a lei”. (Anexo 01)
Ocorre que o juiz, o TUd ou TUi dessa relação dialogal, enquanto receptor da petição
– destinatário -, não comunga desse entendimento, e não acata a denúncia por entendê-la
insubsistente, desprovida de comprovação cabal e irrefutável dos pressupostos indispensáveis
a dar prosseguimento ao julgamento no âmbito do tribunal do júri, tendo em vista a não
convicção formada quanto ao falecimento da vítima e o envolvimento do réu nesses termos.
Ressalte-se a constante troca de posições existente nessa relação juiz/promotor –
promotor/juiz; advogado/juiz; juiz/advogado; juiz/testemunha, testemunha/juiz, em permanente
relação discursiva constitutiva do ethos, o que por si sugere a construção identitária de todos
que se inter-relacionam no interdiscurso – o ethos do advogado, do juiz, da testemunha etc.
Para melhor ilustrar práticas discursivas dessa natureza, Charaudeau (2009) destacou
a dicotomia entre identidade social e identidade discursiva, o que ilustra relação similar em
julgamentos em geral, notadamente no âmbito do júri, pois vários são os sujeitos comunicantes
exercendo papéis os mais diversos, em que enunciadores ou enunciatários atuam no papel de
testemunha, policial, delegado, juiz, promotor de justiça, advogado, assistente de acusação,
jornalista, o público que se interessa pelo julgamento e faz questão de assistir a ele, portanto
são situações inusitadas aos olhos de uns e corriqueiras na visão de outros.
107
Na tomada de consciência, os enunciadores têm a convicção da diferença de papéis e,
por conseguinte, da diferença entre os sujeitos, considerando, segundo Charaudeau, que A
percepção da diferença do outro constitui de início a prova de sua própria identidade, que
passa então a ‘ser o que não é o outro’, daí um certo respeito nessa percepção, assim como
uma relativa angústia identitária, pois o indivíduo começa a questionar a si próprio, na medida
em que vislumbra no outro as diferenças, o que dá ensejo ao fenômeno linguageiro da alteridade.
É nessa perspectiva que o referido autor vislumbra a máxima de Benveniste, segundo a qual
“não há ‘eu’ sem ‘tu’, nem ‘tu’ sem eu, o ‘tu’ constitui o ‘eu’. Também nessa correlação
discursiva inerente à consciência identitária é que se dá outro relevante dilema, no caso, a
atração e rejeição inerentes aos sujeitos interactantes.
Para melhor explicar o fundamento da competência comunicacional, o referido autor
dá exemplos didáticos que explicitam diferenças entre identidade social e discursiva, que, em
julgamentos, por exemplo, são evidenciadas circunstâncias parecidas. A título de ilustração,
temos na figura do promotor de justiça, assim como na posição do juiz, a identidade social
consubstanciada na autoridade reconhecida institucionalmente, tanto pelo ordenamento
jurídico-administrativo quanto na legitimação dessas competências conferidas pelo cidadão.
Lado outro, no exercício de seu mister, tais profissionais externam seus pareceres, seus
discursos, ordens, despacho, que, por força da própria lei, precisam ser fundamentados. Essa
fundamentação apresenta certas características discursivas que variam conforme cada
enunciador no contexto de suas profissões, ou seja, cada juiz, promotor ou delegado, ainda que
em situações semelhantes, vai enunciar à sua maneira, a seu modo, com características próprias,
o que, segundo Charaudeau (2009, p. 309-326), seria a identidade discursiva, enquanto aquela
ensejaria a identidade social.
A partir de exemplos didáticos sobre a correlação dessas identidades, das
representações sociais, assevera o autor o seguinte:
Vê-se nestes exemplos que a identidade do sujeito comunicante é compósita.
Ela inclui dados biológicos (‘somos o que nosso corpo é’), dados psicossociais
atribuídos ao sujeito (‘somos o que dizem que somos’), dados construídos por
nosso próprio comportamento (‘somos o que pretendemos ser’). Entretanto,
como, do ponto de vista da significação, os dados biológicos adquirem as
significações que os grupos sociais lhes atribuem, pode-se reduzir estes
componentes a dois: o que chamaremos, por comodidade, de identidade social
e o que chamaremos de identidade discursiva.6
6 http://www.patrick-charaudeau.com/ Identidade-social-e-identidade.html
108
A partir dessa correspondência discursiva, da representação relativa às identidades
discursivas em sentido amplo, teceremos algumas considerações intrínsecas aos sujeitos e seus
papéis identitários no gênero petição.
Na primeira petição transcrita no Anexo 01, temos a figura do promotor de justiça que
é o principal agente de acusação no processo como um todo, embora outros sujeitos também
atuem com o mesmo propósito, contudo há diferenças consideráveis em termos de
representações sociais, porquanto, institucionalmente, uns são autoridades, cujo papel social
está devidamente articulado em Estatutos, na Constituição, nos Regimentos, com respaldos
perante a sociedade, a exemplo de juízes, promotores, delegados.
Outros sujeitos discursivos são, do ponto de vista social, pessoas comuns do povo, sem
um viés institucionalizado no controle social, a exemplo das testemunhas, vizinhos, religiosos,
jornalistas, profissionais liberais, servidores públicos, etc. A cada agente comunicante há,
conforme o momento, uma identidade discursiva e uma identidade social, independentemente
da hierarquia do enunciador no processo em questão.
Segundo Charaudeau (2009, p. 4), A identidade social tem como particularidade a
necessidade de ser reconhecida pelos outros. Ela é o que confere ao sujeito seu ‘direito à
palavra’, o que funda sua legitimidade. A legitimidade advém das circunstâncias, do momento,
do ritual, do procedimento, portanto há situações formais que impõem a observância de normas
preestabelecidas em situações concretas, como, por exemplo, na oitiva de testemunhas, no
momento de se pedir a palavra, na oportunidade de recorrer, de interferir num discurso do outro.
Assim, a identidade social guarda relação intrínseca com procedimentos, com a ética,
com o ritual, legitimidade no agir, com a norma. Nesse sentido, Charaudeau faz uma digressão
do domínio jurídico para explicitar a identidade social em face desse domínio, senão vejamos:
Por exemplo, no domínio jurídico, que é regido por uma lógica da lei e da
sanção, os atores são legitimados pela obtenção de um diploma e o status
institucional é adquirido através de um sistema de ingresso por concurso,
aliado a um sistema de nomeação pelos pares ou pelos superiores hierárquicos. Desse modo, a profissão está protegida pelas regras da instituição. Mas no caso
de haver uma desobediência a uma destas regras (o segredo profissional, por
exemplo) ou um comportamento que esteja em divergência com relação a uma
norma esperada (como a ‘perseguição judiciária’ a jornalistas que denunciam
irregularidades), imediatamente se põe em questão a legitimidade da ação dos
juízes. O mesmo ocorre no domínio de certas profissões liberais. No caso da
medicina, por ser regida pela lógica da expertise e ter por finalidade lutar contra
o sofrimento e a morte, a legitimidade de alguns de seus atores seria
questionada se estes viessem a cometer erros médicos ou a priorizar seus
interesses financeiros em detrimento de sua atuação como médicos.7
7 http://www.patrick-charaudeau.com/ Identidade-social-e-identidade.html
109
A identidade social não está necessariamente relacionada especificamente a uma
função institucionalizada, como nos exemplos supracitados relacionados aos advogados e
médicos, obviamente, mas no próprio status do enunciador em face de uma função
institucionalizada no momento de sua enunciação. Por exemplo, uma testemunha terá
legitimidade para falar se ela estiver em condições de fazê-lo por uma circunstância que lhe dê
essa prerrogativa, ou seja, assistiu ao fato, teve conhecimento por ter visto algo de interesse ao
objeto questionado. Essa especificidade lhe confere o status identitário nessa perspectiva, ou
seja, a identidade social está devidamente legitimada, o que lhe confere credibilidade. Contudo,
se tiver algum interesse no resultado, certamente essa legitimidade fica mitigada,
comprometida, o que via de consequência afeta a identidade social e, por conseguinte, a
identidade discursiva.
Nesse propósito, é comum em audiências o advogado questionar as testemunhas se
elas têm interesse no resultado da ação, pois qualquer manifestação, ainda que de forma indireta,
compromete a credibilidade, por conseguinte, compromete também sua identidade discursiva,
cujo depoimento pode inclusive ensejar nulidade. Assim, para legitimidade institucional tanto
a identidade social quanto a discursiva têm interferências óbvias na enunciação.
No caso em apreço, por exemplo, foram ouvidas testemunhas, sendo que a fala de uma
delas fora desqualificada pelas próprias autoridades por imprimir conotações de cunho
religioso, juízos de valor, forte emoção, ou seja, fatores que direta ou indiretamente interferem
no julgamento, o que mitiga a isenção, ou seja, a identidade social da testemunha, em princípio,
não a desabonaria, contudo, a identidade discursiva já não se coaduna com o propósito do
processo e do julgamento.
Lado outro, aduz-se da fala do promotor de justiça toda uma carga semântica que, por
razões de ofício, poderia ser interpretada como uma forma de fomentar um juízo de valor
exacerbado em desfavor do acusado. Nesse caso, as identidades social e discursiva não
comprometem a legitimidade no processo, pois, por óbvio, o enunciador, na condição de
acusador, tem por objetivo imprimir um discurso voltado para o convencimento do enunciatário,
ainda que para isso tenha que explorar recursos emotivos, patêmicos, persuasivos em relação
ao pathos do enunciatário, mesmo ao se utilizar de juízo de valor.
Em contrapartida, o advogado do réu, não se restringindo à situação em apreço, mas
em qualquer julgamento no âmbito do júri, tem por função defender seu cliente, e nessa função
também se vale dos mesmos mecanismos utilizados pela acusação, por óbvio, impondo um
discurso que sensibilize os jurados, bem como o auditório, porquanto toda audiência relacionada
ao júri tem uma plateia assistindo, cujo público é formado por qualquer do povo, notadamente
110
familiares da vítima, estudantes, profissionais da área, a própria mídia. Assim, é interessante ao
advogado procurar sensibilizar a todos, inclusive a mídia em casos de repercussão, visando
sobretudo buscar adesão a um discurso favorável a seu cliente, dando ênfase ao ethos do
enunciador.
Nessa condição, vislumbra-se identidade social, na medida em que o advogado
devidamente inscrito na Ordem dos Advogados exerce legalmente a profissão e, nessa condição,
suas enunciações são legitimadas pelo uso da palavra, ainda que em nome da parte, porquanto
pressupõe-se a enunciação precípua da parte, e a narrativa por quem a representa, no caso, o
advogado, que, em última instância, enuncia com a legitimidade conferida institucionalmente.
Sua tese, por sua vez, deriva-se da legitimidade discursiva, como bem ressaltou Charaudeau.
Na situação discursiva, há uma constante construção identitária, um envolvimento dos
atores cênicos do discurso, envolvendo as figuras aristotélicas relacionadas ao ethos, pathos e
logos, cujas imagens se engendram numa cumplicidade retórica. Nessa trilogia, os
interlocutores formam imagens recíprocas e, nessa lógica, Amossy (AMOSSY, 2011, p. 5) se
reporta a Pêcheux (1969), para afirmar que A e B (enunciadores e enunciatários) nas duas pontas
da cadeia de comunicação, fazem uma imagem um do outro: o emissor A faz uma imagem de
si mesmo e de seu interlocutor B; reciprocamente o receptor B faz uma imagem do emissor A
e de si mesmo. (...) Não podemos expor mais claramente o jogo de espelhos que funda o quadro
figurativo.
4.2 Das Petições e seus aspectos linguístico-discursivos
Considerando as petições sob a ótica dos gêneros de discurso, tratando especificamente
das peças extraídas dos autos do processo de julgamento e que constam do livro Homicídio sem
Cadáver, de Tibúrcio Délbis, tomemos como referência a petição relativa à inicial, ou seja, à
peça de acusação, que, mutatis mutandis, serve para ilustrar as estratégias argumentativas em
outras petições do caso concreto sob análise.
A petição inicial interposta pelo promotor de justiça alterna sequência narrativa e
descritiva, em princípio, não externando juízo de valor, o que vem a acontecer quando o
enunciador sente a necessidade de ser mais convincente, tendo em vista que esta primeira
petição não logrou o êxito esperado, haja vista a negativa do juiz em pronunciar o réu, sendo
que, num segundo momento, em grau de recurso, o enunciador enfatiza aspectos atinentes à
conduta do acusado de forma mais enfática.
111
Nessa perspectiva, faz-se imperioso atentar-se para a trilogia relacionada ao ethos,
pathos e logos, uma vez que ela compõe o todo do discurso, bem como a relação interativa entre
os agentes comunicativos em questão, associando a ideia de caráter íntegro do enunciador,
legitimando seu discurso pela autoridade vinculada a seu modo de dizer, cujo enunciatário será
impactado pela emoção que lhe é incutida no discurso empreendido, mormente em face das
estratégias utilizadas no dizer, ou seja, o que será dito, as razões do que é dito, além da
pertinência no contexto, que consubstanciará o logos, fechando os elementos discursivos dessa
trilogia.
Reforçando o que evidenciamos anteriormente, a análise empreendida na presente
pesquisa é de cunho qualitativo-interpretativo pautada na perspectiva do interacionismo
sociodiscurso preconizado por Bronckart (2009), enfatizada por ele em razão da atividade de
linguagem em sentido amplo, tendo em vista aspectos inerentes às condutas humana, bem como
o processo histórico de socialização que nos remete a aspectos inerentes à semiotização social
arraigada às práticas discursivas no âmbito de julgamentos ou situações semelhantes,
principalmente nas relações de trabalho. Ressalte-se, por oportuno, que procuramos descrever
as características gerais do funcionamento do discurso, bem assim sua influência na consecução
dos objetivos, não priorizando a análise sistêmica particularizada.
Essa visão intrínseca à historicidade do ser humano, por sua vez, nos induz a
compreender melhor a visão de Foucault na perspectiva da Arqueologia do Saber, na medida
em que ele promoveu uma retrospectiva diacrônica vinculada ao comportamento humano em
determinada época, o que por si sugere o interacionismo, inclusive sob a ótica da antropologia.
Segundo Bronckart, a abordagem interacionista guarda relação direta com os sistemas
semióticos, o que, por sua vez, nos remete a Volochínov/Bakhtin (1990), mormente em relação
à semiotização social preconizada nos primeiros capítulos de Marxismo e Filosofia da
Linguagem.
Bronckart (2009, p. 141), por sua vez, reporta-se a Volochinov/Bakhtin/ (1977, 1978),
cuja abordagem também se coaduna com o ponto de vista de Foucault, entendendo que, em
relação à interação verbal propriamente dita, a substância linguística não se constitui de um
sistema abstrato de formas linguísticas, assim como também não se efetiva pela enunciação
isolada, nem mesmo pelo ato psíquico-fisiológico de produção, mas sim pelo fenômeno social
da interação linguística que se realiza mediante enunciações, ou seja, pela enunciação em si
imbricada de enunciações diversas num ou noutro sentido (Bronckart, p. 141), daí a consagrada
acepção bakhitiniana segundo a qual "Todo enunciado tomado isoladamente, bem entendido, é
individual, mas cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis
112
de enunciados, e é a estes que chamamos de gêneros do discurso" (BAKHTIN, 1984, p. 265).
Assim, as análises interpretativas relacionadas às petições infra (quadros 01 a 05) têm
como foco a produção do discurso enquanto trabalho psíquico-linguístico, de sorte que a
engenharia textual em questão, considerando a intenção dos enunciadores, leva em conta
aspectos linguageiros indissociáveis a essas áreas do conhecimento, centrando-se sobretudo na
visão de mundo inerente ao interacionismo sócio-discursivo, não havendo como se desvencilhar
dessa especificidade.
Ressaltamos, pois, a identidade social do agente principal responsável pela acusação,
no caso, o Promotor de Justiça. Essa identificação primeira tem uma razão de ser, cujo escopo
é construir sua identidade social e discursiva a partir do lócus de onde fala. Frise-se que outro
promotor, por mais que quisesse, não poderia adentrar no mérito dessa causa, pois somente o
titular estaria investido nessa prerrogativa, portanto imbuído da competência legitimada pela
identidade social, o que por sua vez afasta a hipótese de nulidade por incompetência
jurisdicional.
Trouxemos à colação petições que ajudam a compreender melhor o caso objeto da
análise e que elucidam as nuances de um julgamento no âmbito do tribunal do júri, bem como
as estratégias argumentativas utilizadas pelos enunciadores no afã de auferir um resultado
positivo ao autor ou ao réu, dependendo de quem subscreve a petição.
Na petição 01, ao empregar "no exercício de seu ministério" (“Exmo. Sr. Dr. Juiz de
Direito da 2ª Vara Criminal da Comarca de Uberlândia/MG O Promotor de Justiça, perante esta Vara,
no exercício de seu Ministério, com base no incluso inquérito policial, vem perante esse Juízo oferecer
denúncia contra:), o enunciador ressalta o seu mister, fazendo questão de demarcar
metaforicamente seu território, sua obrigação "de fazer", aliás, de atuar numa posição
institucional que outro não poderia exercer, a menos que designado em virtude de um
regimento, por férias do titular, licença médica, afastado temporariamente, dentre outras
hipóteses possíveis, mas tudo legitimado pela identidade social preconizada por Charaudeau.
Contudo, no caso em tela, a obrigação é do promotor, sendo natural, portanto, que ele faça essa
ressalva já de pronto, afastando qualquer desconfiança sobre sua competência institucional, o
que inclusive reforça a confiança perante o auditório, ensejando, pois, a correlação intrínseca
do ethos e do pathos, sem nos olvidar da esfera atinente ao logos, justificando por conseguinte
essa relação imbricada desses três pressupostos, como ressaltado por Amossy, 2005.
Essas ponderações fazem parte da consciência identitária do enunciador, bem assim da
formação dessa consciência perante o auditório, numa relação intrínseca à percepção consciente
ou não do ethos e do pathos, porque ninguém se identifica ou se qualifica para si próprio, mas
113
para outrem, haja vista que cada qual tende a se conhecer a si próprio, tendo consciência do que
é, de suas prerrogativas, suas competências, sem nos adentrarmos na seara da psicanálise
propriamente dita, porquanto não é esse nosso objetivo. Contudo, para efeito de discurso, de
argumentação, essa impressão deve ser passada ao enunciatário, imprimindo-lhe uma
autoridade que Charaudeau chamou de identidade social evidenciada pela identidade discursiva,
uma competência institucionalizada, quiçá provocando uma admiração, um respeito, uma certa
reverência a si pelo outro, o que funciona como estratégia de reforço com o fito de evidenciar a
autoridade enunciativa.
Assim, nessa construção identitária, o enunciador se apresenta como o Promotor da
referida Comarca, na Vara Criminal, em face de um incluso inquérito policial, portanto,
demonstra que também não foi ele que, a seu bel prazer, deu início à investigação, mas sim a
partir de denúncias, de hipóteses plausíveis dos fatos, da provocação de terceiros interessados,
tendo em vista uma queixa crime interposta por parente da vítima, pelo próprio inquérito policial
instaurado pela autoridade competente, por indícios etc.
Esse tipo de postura ilustra bem o que Bronckart (2009, p. 208) ressalta ao tratar os
tipos de discurso. Nesse sentido, comungando da mesma opinião de Authier-Revuz (1992) e
Cohn (1981), ele ressalta a característica comum em reproduzir um número considerável de
propriedades do discurso interativo, mormente no que tange a pronomes dêiticos, haja vista os
elementos indicativos do lugar do discurso, do seu tempo, da tempestividade, dos partícipes, do
eu enunciador e do tu enunciatário.
Esses matizes discursivos ressaltados na figura do promotor de justiça também são
evidenciados na fala de outras autoridades, como nas petições do delegado, do juiz e
desembargadores e ministros dos tribunais superiores, ressaltando que o julgamento em questão
não ficou adstrito à Comarca de Uberlândia, porquanto houve recursos aos tribunais superiores,
no caso, ao TJMG, ao STJ e ao STF, todos confirmando que a competência para o julgamento
seria de fato do Tribunal do Júri da Comarca de Uberlândia, onde o fato teria ocorrido.
Ressalte-se ainda que as demais petições apresentam aspectos semelhantes, portanto,
no que caiba, as asserções relativas aos aspectos linguístico-discursivos são estendidas a elas.
Ao falarmos preliminarmente do propósito do enunciador na petição 01, ficou clara a intenção
do promotor em delimitar sua atuação, ressaltando que o caso está tutelado em uma jurisdição
própria e perante um juízo também competente em termos institucionais. Assim funcionou nas
petições emanadas do delegado de polícia, juiz de primeira instância, relator nos recursos, cada
qual apresentando suas razões, sua identidade social – essa de forma consciente e proposital -,
sua identidade discursiva – que nem sempre é consciente, mas implicitamente todo enunciador
114
o faz na medida em que queira dar legitimidade a seu discurso -, de sorte que o gênero petição
proporciona uma análise bem rica em termos enunciativos.
Por sua vez, noutra esfera, o enunciador, promotor de justiça, passa a identificar o Réu,
em princípio de forma objetiva, sem imprimir qualquer juízo de valor até então, o que muda de
perspectiva na parte expositiva da petição, no decorrer da marcha processual em instâncias
superiores, ou seja, nos recursos interpostos, nas fundamentações perante o Tribunal de Justiça,
nas turmas recursais. Nesses momentos, será construída uma personificação identitária do
acusado perpassada por adjetivações que denotam juízos de valor que reforçariam perante o
auditório uma probabilidade da prática do delito pelo réu, assim como uma conduta ardilosa,
perspicaz no seu agir, discurso esse visando influenciar o auditório, os enunciatários em geral.
São exemplos dessa formação identitária do réu, a partir da visão do promotor de
justiça: “ficou enrolando; efetuou vários telefonemas para o denunciado na Petrobrás onde
trabalhava e ele não atendia, dizendo sempre que não estava, tinha saído, ainda não tinha
chegado, ... ; O denunciado assustou-se muito quando viu Maria Irene e seu pai ali; durante
as investigações, descobrimos que D é o mais frio e cínico mentiroso com quem já trabalhamos;
chegando inclusive a perguntar se Maria Denise não estava lá, fingindo-se chorar naquele
momento”. (...)
Lado outro, cuida o enunciador de proceder à identificação da vítima, em princípio,
também de forma objetiva, tentando não emitir juízos de valor, mas, no decorrer do processo,
da mesma forma como procedeu em relação ao réu, ao se referir à vítima, tenta demonstrar a
ingenuidade dela, o seu caráter honroso, mormente de uma pessoa lutadora, que, desde cedo,
vinda do interior para a capital com o propósito de vencer na vida - teria vindo para a casa de
seu tio em Belo Horizonte para estudar -, procurava ganhar a vida de forma honesta, ou seja,
procura o enunciador evidenciar suas características positivas, o que também é mecanismo de
persuasão, haja vista o efeito patêmico, senão vejamos: Maria Denise tinha a filha de seis meses
de idade, a quem tinha todo amor e carinho. Inacreditável que o coração de mãe de Maria
Denise tivesse a coragem de abandonar a filha e sumir sem deixar notícias; Maria Denise não
levou seus objetos de uso pessoal; Maria Denise tinha muito medo do denunciado.
Quanto à escolha lexical “sumiço”, ressalte-se inclusive que há um efeito psicológico
intencional em se utilizar um substantivo por outro, ou seja, sumiço perpassa a ideia de ação
impetrada por alguém, ao passo que desaparecimento teria uma carga semântica menos
contundente, vez que em desaparecimento poderia incutir a ideia de vontade própria da jovem,
logo melhor seria utilizar-se do vocábulo sumiço ao invés de desaparecimento, eis que a
intenção seria sensibilizar os enunciatários no afã de demonstrar a prática do crime. Ora, essas
115
nuances constituem modos de dizer, o que sugere intrigar os enunciatários, ainda que de forma
subliminar.
Ao utilizar em seu discurso "o sumiço da jovem sem deixar quaisquer notícias a quem
quer que seja", o enunciador utiliza-se do operador argumentativo “a quem quer que seja”
traspassando um argumento forte em termos enunciativos, mormente sob a ótica de quem recebe
essa informação, sejam os jurados, seja o juiz, seja o público que eventualmente assistira ao
julgamento e ouvira essa mesma expressão no discurso oral.
Os operadores argumentativos não guardam relação sintática propriamente dita, mas
de sentido, denotando, pois, uma força argumentativa com a intenção de influenciar o
enunciatário, visando persuadi-lo de forma irrefutável ou, no mínimo, dando ares de ação
engendrada com essa finalidade. Nesse sentido, o operador argumentativo "quer viva, quer
morta" denota certa censura à ação delituosa, pois imprime a ideia de reprovação da conduta
investigada, na medida em que o desaparecimento da vítima agrava ainda mais o crime, uma
vez que os parentes da vítima são penalizados duplamente, uma vez pela morte do ente querido,
outra pela impossibilidade de prestar-lhe a homenagem póstuma em sepultamento digno.
Frise-se ainda que o promotor/enunciador procura sensibilizar os enunciatários
deixando claro o fato de a vítima ter deixado uma filha de apenas seis meses "a quem tinha todo
amor e carinho", o que denota, na expressão “todo amor e carinho” uma pressuposição, um juízo
de valor, estabelecendo o efeito patêmico. E mais: "Inacreditável que a mãe de Maria tivesse a
coragem de abandonar a filha e sumir". No adjetivo inacreditável, vê-se que o enunciador se
utiliza de um índice de avaliação como recurso retórico, como manobra argumentativa, que,
aliás, pode ser também utilizado em outras perspectivas linguageiras visando a imprimir força
argumentativa destinada a influenciar o auditório.
Informações dessa natureza tendem a sensibilizar o público, e essa é a intenção
precípua do enunciador, eis que ele precisa convencer o enunciatário acerca de suas conjecturas
e de suas razões, portanto percebe-se a dicotomia evidenciada nos polos extremos da relação
discursiva, qual seja, o enunciador e o \enunciatário. Por óbvio, não se está aqui afiançando que
essa estratégia se faz por falsas conjecturas, muito pelo contrário, pois, a partir de suas
perspicácias, até mesmo de suas experiências nesse mister, não é difícil perceber aspectos
psicológicos associados a informações colhidas do inquérito, dando conta do perfil dos
envolvidos na questão, o que é transmitido a todos que tenham interesse no caso: delegado, juiz,
jurados, assistentes, o público em geral, inclusive o ex adversa, no caso o advogado de defesa
do réu.
116
Nos dois parágrafos seguintes, 10 e 11 – Anexo 01 -, o enunciador, narrando a
sequência dos fatos, utiliza-se do operador argumentativo com força cênica discursiva
apontando ou assinalando inclusão, soma, no caso, por meio dos advérbios inclusive e também.
São estratégias argumentativas que enfatizam o discurso, reforçam as conjecturas, dão
efetividade às informações, à medida que equivalem a fatos enumerados cujos efeitos ligados
ao pathos impressionam o enunciatário.
Verifica-se, por sua vez, que o "aliás" da fala do Promotor no item 12 do mesmo Anexo
(Maria Irene, inconformada com as explicações do denunciado, aliás contraditórias e cínicas,
resolveu dar queixa à Polícia), denota argumento favorável a uma conclusão peremptória,
taxativa; trata-se pois de mecanismo persuasivo, convincente, cuja finalidade é concluir sua
conjectura reforçando suas desconfianças e, por conseguinte, as dos parentes da vítima face às
contradições em desfavor ao réu, o que é partilhado em termos de suspeitas por parte dos
familiares de Denise.
Por fim, no 14º tópico de sua petição, o enunciador narra os acontecimentos, mais
precisamente o diálogo que DAP teria tido com sua esposa em detalhes, a ponto de prometer a
ela que, após Denise dar à luz a criança, ele pegaria a criança e "dispensaria" Maria Denise. O
verbo utilizado – dispensa - sugere uma ilação sob a extensão de seu significado semântico,
conotação de descarte, sumiço, conjecturas essas por parte do locutor-enunciador.
O emprego de verbos no futuro do pretérito (pegaria a criança e dispensaria a vítima)
atua como modalizador discursivo com efeitos de pressuposição gerada pelo tempo verbal da
ação. O uso do futuro do pretérito orienta para uma não afirmação cabal, para uma hipótese. Os
modalizadores, como afiança Koch (2000), podem produzir sentidos de atenuar algo que
poderia ser dito de forma mais enfática, mais grave, mas que, pelas circunstâncias, seria
conveniente mitigar a enunciação comprometedora, incisiva, portanto são modalizações
argumentativas num viés estratégico, inconcluso, quiçá com duplo sentido.
O item 15 da petição 01 chama-nos a atenção, senão vejamos: "15º) Por último, a
impressão obtida pela autoridade policial nas investigações policiais, durante o respectivo
inquérito, tais como: '... durante as investigações, descobrimos que D é o mais frio e cínico
mentiroso com quem já trabalhamos...'(.,.), constata-se, a partir da enunciação, além do juízo
de valor, um exemplo efetivo do discurso direto que se dá, não pelo sinal de travessão, mas
pelas aspas existentes na petição sob análise.
Ao analisarmos o todo da petição em tela, temos os dois tipos de discurso, o discurso
direto em face da narração do enunciador, o discurso indireto empregado com o uso da partícula
integrante "que”; não fosse pela especificidade do gênero petição, cujas circunstâncias assim o
117
exigem, teríamos o vício de linguagem relativo ao "queísmo", que certamente empobrece
qualquer texto, mas, no gênero discursivo em análise, alimenta uma sequência cronológica
recursiva, com poder de reforço aos argumentos, além de se coadunar com o formalismo
inerente às petições relativas a depoimentos ou narrativas, comuns em processos judiciais e
administrativos.
Chama-nos a atenção também o argumento utilizado pelo Relator ao adentrar no mérito
relativo ao Voto externado nas Notas Taquigráficas relativas à decisão em grau – recurso -, uma
vez que ela retrata a incerteza quanto ao fazer justiça na acepção do termo, o que não se pode
censurar de antemão, tendo em vista o fato de que ao homem não lhe foi dada por óbvio a
prerrogativa da onisciência. Assim, como asseverou Kelsen (2009) in Teoria Pura do Direito,
fazer justiça é escolher uma das hipóteses possíveis, ou seja, há mais de um caminho para
decidir uma demanda, sendo que cabe ao julgador escolher a opção mais provável e verossímil.
Dessa forma, reportamo-nos a alguns excertos do julgamento - Anexo 05 - para melhor
compreendermos a vulnerabilidade da concepção de justiça, bem como das próprias partes
envolvidas na demanda judicial – autor e réu -, senão vejamos:
"No seu aspecto fático, a questão é realmente complexa. Isso ocorre sempre
que o corpo da vítima desaparece sem deixar vestígios. Fica sempre a dúvida:
será que a vítima realmente morreu? Será que ela foi assassinada e o cadáver
destruído ou oculto? Será que a vítima apenas escafedeu-se sem deixar e sem
dar notícias? E se algum dia ela aparecer viva?!...8 (Sem destaque no original)
Como se depreende do parágrafo supra, o próprio Relator da decisão (Desembargador)
reconhece que a questão é complexa, dando azo a um certo consolo às partes, mormente ao réu,
que foi a parte vencida e que, pelo menos, não obstante a condenação, teria ele um certo alento,
pois perdera a ação, mas numa decisão em que houve o reconhecimento dos próprios julgadores
da dificuldade em decidir pelas circunstâncias fáticas, caso o erro viesse à tona, teria outras
“compensações”. Aduz-se que somente o réu teria a plena certeza de sua atuação ou não em
relação ao crime, ou seja, nem mesmo seus advogados teriam essa convicção, como de resto
nenhum advogado tem a plena certeza do que alegam seus representados.
A complexidade é corroborada pelas dúvidas ensejadas, portanto há de se levarem em
conta algumas especificidades, pois, se os juízes que compõem a turma recursal ainda teriam
dúvidas, ou pelo menos não teriam a absoluta certeza, por que também não as teriam os jurados?
Ademais, é de conhecimento geral o brocardo in dubio pro reu, portanto teria sido esse um
argumento contumaz a favor do recorrente nesse sentido. Contudo, ainda que a lógica lhe
8 Anexo 5 – DÉLBIS, Tibúrcio. Homicídio sem cadáver – O caso Denise Lafetá, Ed. Inédita, 1999, p. 110
118
pudesse ser favorável face ao benefício da dúvida, mesmo assim ele não logrou êxito em sua
empreitada, uma vez que o recurso por ele interposto não foi provido, daí a condenação pela
maioria dos jurados.
Em termos de estratégias argumentativas em sentido lato, certamente o brocardo
jurídico in dubio pro reu teria sido valoroso ao réu, ao passo que a observação do relator
representaria certa dificuldade à promotoria. Não bastasse essa assertiva, outras vieram no
mesmo norte, conforme se aduz da Petição relativa ao Anexo 05, dando ensejo a conjecturas
que também favoreceriam a defesa, conforme destacamos à frente.
Sem adentrar no mérito, até porque esse não é o propósito do presente estudo, além de
não ser ético fazê-lo, na medida em que não teríamos todas as peças, além de estarmos
analisando a contextualização em tela na perspectiva linguístico-discursiva, nessa linha,
podemos questionar a fala do Relator acerca dos supostos benefícios, caso, no futuro,
deparassem com um eventual erro judicial, se eventualmente a vítima aparecesse
inesperadamente, o que, a nosso sentir, implica em certa medida conjectura de natureza retórica,
mas verossímil enquanto conjectura, senão vejamos:
No caso concreto, entretanto, a única maneira possível de se constatar um
possível erro judiciário seria o aparecimento da vítima, viva. Afora tal caso, há
de prevalecer a decisão do Tribunal Popular. Se, entretanto, os ventos do
destino soprarem para o rumo diverso, isto é, se algum dia Maria Denise
reaparecer viva (talvez por pessimismo, creio que isto jamais acontecerá),
duas situações novas surgirão, uma a compensar a outra. O erro judiciário
ficará patenteado, mas, em compensação, uma vida humana (no caso de Maria
Denise) ressurgirá das cinzas. Deus queira que isso aconteça ... para o bem de
todos. Do réu, porque se livrará de vez da pena imposta pelo Júri de
Uberlândia e terá direito a indenização por parte do Estado. Dos familiares
de Maria Denise, porque voltarão a vê-la entre eles. Dos jurados porque o
destino terá evitado persistir o erro coletivo por eles praticado. Dos juízes
togados, porque o direito imperou, ainda que tardiamente.9 (Anexo 05, sem
destaque no original)
Ora, o excerto do Acórdão em tela dá a dimensão do fazer justiça na dimensão da
natureza humana, tendo em vista nossas limitações. Esse parágrafo, rico em expressões
metafóricas, [Se, entretanto, os ventos do destino soprarem pra o rumo diverso (...)... Se,
entretanto, os ventos do destino soprarem para o rumo diverso (...), O erro judiciário ficará
patenteado, mas ‘em compensação’, uma vida humana (no caso de Maria Denise) ressurgirá
das cinzas, (...)] demonstra a vulnerabilidade de que falamos ao questionarmos o fato de que
tanto há doutrina favorável a um determinado viés quanto a outros; jurisprudências favoráveis
a um determinado ponto de vista quanto em sentido oposto; argumentos partidários a um norte
9 Anexo 05 – Petição 05
119
assim como noutro norte. Enfim, vemos no caso em tela argumentações favoráveis ao autor,
como também favoráveis ao réu, porquanto sequer foi possível a realização do exame pericial
no corpo da vítima, haja vista não a terem encontrado “viva ou morta”, o que, por si, não
significa motivo para entender a decisão como equivocada, até porque já se passaram mais de
vinte anos sem que fatos supervenientes desqualificassem a decisão.
Ademais, as conjecturas e metáforas em destaque seriam também argumentos que
poderiam ser utilizados em favor do réu em eventual recurso, caso o ordenamento jurídico
permitisse o duplo grau de jurisdição no âmbito do tribunal do júri, como, aliás, é o que
propomos para, de fato, fomentar e consubstanciar a ampla defesa e o contraditório
preconizados pelo Constituição da República, nos termos do Art. 5º, XXXVIII, que, a propósito,
vale transcrever:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
XXXVIII - é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der
a lei, assegurados:
a) a plenitude de defesa;10 (Grifo acrescido)
Ora, como destacado no dispositivo legal supra, por plenitude de defesa pressupõe-se
o que a doutrina sedimentou na locução “ampla defesa e o contraditório”, o que não se
consubstancia em um único julgamento sem direito a recurso a instância superior, como ocorre
nos julgamentos de competência do júri. Para se fazer jus à expressão, o veredito soberano do
júri deveria ocorrer com o trânsito em julgado, considerando a hipótese de recurso a outro júri
em instância superior, como ocorre em qualquer outra situação, inclusive recursos de decisões
de turmas colegiadas e até mesmo do plenário de cortes superiores, exceto quando não haja
interesse do vencido em recorrer, como é comum acontecer.
Ao trazermos essa tese à esfera da AD, não o fazemos por acaso, mas sim por levarmos
em consideração os influxos linguageiros atinentes à formação de opinião, à posição responsiva
preconizada por Bakhtin (2011, p. 272) suscetível, inclusive, ao Parlamento, mediante
proposições de leis, porquanto a resposta (responsividade) viria ao encontro dos anseios da
sociedade, que prima pela ampla defesa, ressaltando que essa resposta nem sempre se faz de
imediato, mas muitas vezes a longo prazo, como se aduz das palavras do citado autor,
obviamente sem conotação pejorativa, ou seja, responsividade “com efeitos retardados”, senão
vejamos:
10 Constituição da República Federativa do Brasil
120
Os gêneros da complexa comunicação cultural, na maioria dos casos, foram
concebidos precisamente para essa compreensão ativamente responsiva de
efeito retardado. Tudo o que aqui dissemos refere-se igualmente, mutatis
mutandis, ao discurso escrito e ao lido. Portanto, toda compreensão plena real
é ativamente responsiva e não é senão uma fase inicial preparatória da resposta
(seja qual fora a forma em que ela se dê). O próprio falante está determinado
precisamente a essa compreensão ativamente responsiva: ele não espera uma
compreensão passiva, por assim dizer, que apenas duble o seu pensamento em
voz alheia, mas uma resposta, uma concordância, uma participação, uma
objeção, uma execução, etc. (os diferentes gêneros discursivos pressupõem
diferentes diretrizes de objetivos, projetos de discurso dos falantes ou
escreventes). O empenho em tornar inteligível a sua fala é apenas o momento
abstrato do projeto concreto e pleno de discurso do falante. Ademais, todo
falante é por si mesmo um respondente em maior ou menor grau: porque ele
não é o primeiro falante, o primeiro a ter violado o eterno silêncio do universo,
e pressupõe não só a existência do sistema da língua que usa mas também de
alguns enunciados antecedentes- dos seus e alheios – com os quais o seu
enunciado entra nessas ou naquelas relações (baseia-se neles, polemiza com
eles, simplesmente os pressupõe já conhecidos do ouvinte). (BAKTIN, 272)
(Grifos acrescidos)
Se o Júri decide não tão só pelos fatos e suas versões, mas em grande parte pelos
argumentos e estratégias discursivas emanados dos enunciadores, mormente advogados,
defensores, promotores de justiça, sem dúvida, esses fatores podem ser preponderantes à
condenação ou absolvição do réu, ainda que a verdade real não se consubstancie nos discursos
empreendidos. Assim, por que não dar aos interessados a chance de novo júri, no mínimo, para
sedimentar a decisão como a mais justa possível, depois de se esgotarem todas as instâncias
recursivas, diferentemente do que acontece no sistema vigente que não admite rediscutir o caso
quanto ao mérito em instância superior, uma vez que não há tribunal do júri ou conselho de
sentença em instâncias superiores. E não há essa possibilidade porque o ordenamento jurídico
semiotizou o júri como soberano, semantizando argumentos nesse viés, esquecendo-se que a
justiça como um todo, as sentenças, os acórdãos, em quaisquer instâncias, também são
soberanos.
Os argumentos do relator do caso dão sustentação a essa perspectiva quando da
conjectura de eventual erro judicial. A seu juízo, tendo decidido equivocadamente,
considerando a hipótese de aparecimento da vítima, nessa hipótese, haveria compensações, seja
pelo aparecimento da vítima, seja pela indenização ao réu, tais fatos, nesse ou em outros
julgamentos, ensejam a necessidade de se repensar o duplo grau de jurisdição, não pelo exemplo
em si, pela conjectura do Relator, mas por outras situações que sugerem a possibilidade de
revisar uma decisão em primeiro grau.
No exemplo em questão, caso a vítima aparecesse, configurando erro judicial, o
prejuízo ao réu teria sido irreparável, incomensurável, pois, dentre os bens mais valorosos a
serem contemplados pelo homem, certame estariam elencados entre eles a vida e a liberdade.
121
Como não há pena de morte no Brasil, quiçá até por essas vicissitudes, a privação de liberdade
teria um efeito devastador ao homem, mormente quando aplicada injustamente.
Assim, nas palavras do Relator – Anexo 05, Petição 05, “se algum dia Maria Denise
(a vítima) reaparecer viva ...”, certamente não haveria indenização estatal alguma que
compensaria o tempo que “injustamente” (índice de avaliação) - o acusado tivesse passado na
prisão, isso a se levar em conta os argumentos do Relator no último parágrafo da decisão. Aduz-
se desse argumento que a questão é de fato polêmica, assim como o é o discurso empreendido
na seara jurídica, porquanto, na maioria dos casos levados às barras dos tribunais, tanto há
razões para respaldarem posicionamentos discursivos em favor do autor quanto favoráveis ao
réu, daí a dificuldade de se aferir inequivocamente com quem está a justiça na acepção do termo,
mormente quando haja outras decisões jurídicas endossando discursos antagônicos entre si.
Para maior segurança do operador do direito em situações relativamente voláteis,
percebe-se que as enunciações vêm sempre respaldadas por outros julgados, pela doutrina e
também por jurisprudências que dão suporte à pretensão dos interessados, como se depreende
especificamente do próprio Anexo 5 (Petição 5).
Os destaques nessa petição têm por objetivo demonstrar como o locutor se respalda em
posicionamentos de outrem para dar sustentação a suas convicções. Essa especificidade é
comum em julgamentos, principalmente na esfera penal, dada a responsabilidade maior dos
envolvidos ao julgar pessoas que se veem frente a situações limites, como privação da liberdade
ou, noutro norte, com a absolvição em relação a acusações gravíssimas.
Esse dilema nos remete aos questionamentos acerca do julgamento relativo a crimes
dolosos contra a vida, considerando que argumentos podem relativizar a natureza das coisas, na
medida em que um culpado possa ser absolvido e um inocente ser incriminado, daí a
responsabilidade de todos quanto à legislação vigente, que, a despeito de sua importância, tem
sido pouco repensada, não havendo em relação à lei a responsividade visando adequações
demandadas.
Nesse mister, sugerimos no presente estudo avaliar a hipótese do duplo grau de
jurisdição em relação aos julgamentos na esfera do Tribunal do Júri, mormente quanto a
decisões com pelo menos um voto pela absolvição ou condenação. Nesse sentido, seria
plausível que a lei concedesse a oportunidade de o caso ser apreciado por outro conselho de
sentença em grau de recurso, ou seja, por júri na instância superior, até porque todo voto
divergente, ainda que em minoria, tem uma razão de ser. Esses questionamentos endossam o
viés sócio-antropológico vislumbrado no presente estudo, considerando inclusive a perspectiva
interpretativa sob a ótica da AD aqui adotada.
122
Há de se ressaltar que, ao iniciarmos a presente pesquisa, pautamo-nos numa análise
dos fatos por observarmos certas contradições no ordenamento jurídico, o que, por conseguinte,
implica, de nossa parte, posição responsiva, como asseveramos anteriormente. Ressalte-se que
recentemente a mídia divulgou a anulação do Júri relativo ao julgamento de policiais
condenados pelo “massacre do Carandiru”, sob a alegação de vícios processuais.
Tal fato foi denunciado pela Anistia Internacional, cujo advogado, Marcos Fuchs, essa
aberração “Passa uma mensagem de que existe impunidade, de que um policial militar pode
entrar em um estabelecimento penitenciário atirando, pois depois é absolvido, alegando falta de
provas e legítima defesa. Vamos esperar a decisão dos outros dois desembargadores –
esperamos justiça e uma condenação”.
Aduz-se, pois, que episódios dessa natureza que grassam país afora só vem a
corroborar nossa tese de que o ordenamento jurídico brasileiro deve ser repensado, mormente
no âmbito do Tribunal do Júri e nas demais esferas do Direito Penal.
4.3 Operadores argumentativos, modalizadores e recursos linguísticos persuasivos
Como sabemos, o uso da linguagem em situações específicas, formais, tem sempre a
marca da intencionalidade, portanto nenhuma enunciação é gratuita, sem um propósito
almejado pelo locutor-enunciador. Em última instância, o que o locutor-enunciador pretende é
atuar sobre o outro visando à obtenção de um resultado a ser alcançado, de sorte a linguagem
empreendida utiliza-se de argumentos persuasivos que primam pela adesão de outrem, do
próprio enunciatário, inclusive na expectativa de eventual reação dos destinatários em algum
sentido, como a apresentação de outros argumentos que refutem os seus, ensejando, pois, o
exercício do contraditório, fomentando, por conseguinte, a posição responsiva de que trata
Bakhtin (2011).
Na construção das petições é imprescindível a utilização de operadores argumentativos
e modalizadores discursivos, consoante lições de Ducrot (1988) e Koch (2000). Esses
mecanismos linguísticos são responsáveis pela construção de um texto coeso, bem engendrado,
coerente com o propósito semântico-discursivo vislumbrado pelo enunciador, na medida em
que permite ao enunciatário uma compreensão da enunciação em face de uma lógica arquitetada
com a finalidade de convencimento.
A teoria da argumentação da língua idealizada por Ducrot (1988) demonstra que os
operadores argumentativos atuam como mecanismos que servem para construir o argumento
necessário à compreensão dos interlocutores, de sorte que a escala em questão implica uma
123
avaliação entre dois ou mais enunciados à vista de sua gradação de força, ou seja, entre dois
enunciados que se complementam, a gradação se mede do mais forte para o mais fraco, numa
relação descendente, visando a uma mesma conclusão do destinatário final marcada pelas
estratégias discursivas do enunciador.
Analisando as petições, aduz-se que de fato seria um trabalho hercúleo do promotor
de justiça convencer o Júri, o juiz de primeira instância, bem como os membros da turma
recursal do Tribunal de Justiça, de que o réu seria realmente o autor do crime, haja vista tratar-
se de situação atípica, dada a circunstância de suposto crime de homicídio sem que houvesse
encontrado o cadáver da vítima. Com todas as adversidades, o promotor como principal ator da
acusação, contando com outras autoridades engajadas no caso, alcançou o objetivo em questão,
o que demonstra que suas estratégias discursivas se consagraram exitosas não só na perspectiva
jurídica, mas em grande parte pelas estratégias linguístico-discursivas.
A título de ilustração, apresentamos a seguir exemplos de situações relacionadas à
construção enunciativa a partir de operadores argumentativos utilizados na petição, reforçando,
pois, exemplos de recursos argumentativos necessários à construção de um texto elaborado
seguindo uma lógica compatível com os propósitos do enunciador, o que visa, dentre outros
fatores, persuadir os enunciatários a aderirem ao discurso enunciado.
Nesse sentido, vamo-nos ater a aspectos linguísticos relacionados às petições em tela,
vislumbrando os operadores argumentativos, bem como o direcionamento a que eles apontam,
conforme demonstrados nos quadros 01 e 02.
Quadro 01 - Operadores Argumentativos – (Petição 04), (Anexo 04):
Operadores argumentativos: Objetivo/orientação
a) ... e até hoje não foi
encontrada,
...
quer viva, quer morta, ... (p.22) Anexo
04
operador argumentativo (até) que
sinaliza para uma conclusão; ele
demonstra a força argumentativa da
enunciação.
operador que introduz alternância
(argumento alternativo), ideia de
somatório de hipóteses a favor de uma
mesma conclusão.
b) tais como: 1º ... (...) 15º (p. 23) operador de enumeração; comparação,
fatores que corroboram a hipótese
defendida pelo enunciador para se
chegar a uma conclusão; introduz
exemplos para se chegar a uma
124
conclusão.
c) R não precisava, pois, telefonar
para... (p. 23)
Explicação, justificativa que enseja uma
conclusão; ancora-se em argumentos
empreendidos anteriormente.
d) inclusive deixava R recado para ele
ligar para ela, mas ele ... (p. 24)
Assinala argumento mais forte de uma
escala orientada a uma conclusão; o
operador adiciona argumento a favor da
conclusão.
e) aliás contraditórias e cínicas... (p.
25)
Introduz argumento decisivo, taxativo,
inquestionável e peremptório. Reforça
um argumento apresentado
anteriormente, como xeque mate.
f) Por último, a impressão obtida pela
autoridade policial (...) (p. 25)
Aspecto dêitico, encerra uma
enumeração, uma sequência de
argumentos no mesmo diapasão,
confirmando existência de vários pontos
favoráveis ao argumento.
g) Assim, (...) (p. 25) Operador que introduz modo conclusivo
relativamente a enunciados e
argumentos já empreendidos,
demonstrando conformidade entre si,
visando a uma conclusão comum.
Tabela 01
Além dos operadores argumentativos utilizados como recursos inerentes à boa técnica
enunciativa, visando sobretudo à ênfase nos modos de dizer direcionada ao fim a que se propõe
o enunciador, não se pode olvidar de outro recurso valioso na produção textual, que são os
modalizadores discursivos, elementos esses também indicadores de intencionalidade,
sentimentos e atitudes.
Os modalizadores discursivos induzem juízos de valor externados pelo enunciador-
locutor mediante expressões que evidenciam intenção, lástima, desejo, considerações, em certa
medida, certeza ou dúvida, ou seja, são recursos que norteiam o discurso para um determinado
fim, direcionando a uma conclusão ou sentido, cujo escopo, em última instância, visam à adesão
do enunciatário.
São exemplos de modalizadores discursivos: espero que; de fato; certamente;
provavelmente; eventualmente; lamentavelmente; não obstante; acho que ..., penso que ...,
assim como expressões afins, verbos utilizados no subjuntivo, no futuro do pretérito, etc. No
âmbito das petições jurídicas, os modalizadores discursivos muitas vezes tendem a externar
posições assertivas do enunciador sugerindo aspectos deônticos que denotam obrigatoriedade,
125
força cogente, evidências, asserções, como: evidentemente, certamente, sem dúvida, é
incontestável, irrefutável, obrigatório, etc.
Tendo como referência a mesma petição anterior, na qual demonstramos os operadores
argumentativos relativo ao quadro acima, ressaltamos abaixo alguns modalizadores discursivos
que denotam ilações, sentimentos, obrigações, dentre outros, cuja finalidade visa manifestar
intenções e atitudes em face do enunciado, classificáveis como epistêmica, deôntica e afetiva:
Quadro 02 - Modalizadores discursivos – (Petição 04), (Anexo 04):
Modalizações: Objetivo/orientação
a) "... de fato." (p. 22)
modalização epistêmica assertiva
que denota confirmação.
b)"... indícios veementes ..." (p. 22) certeza, convencimento, portanto
também epistêmica assertiva.
c)"...inacreditável que o coração de
mãe..." (p. 23)
modalizador afetivo – juízo de valor;
externa emoções; intersubjetivo.
d) " "O denunciado chegou a dizer que
..."(p.23)
imprime atenuação; quase assertivo
e) "... e inclusive ficou "enrolando" R
quando esta lhe pediu o telefone de
...(p.23)
divagação, ponderação, conjectura;
f) "... durante investigações,
descobrimos que D é o mais frio e
cínico mentiroso com quem já
trabalhamos." (p. 25)
juízo de valor; assertivo afirmativo,
que orienta, pela comparação, para o
grau máximo;
juízo de valor;
g) "... devidamente citado, ..." (p. 25) conformidade, modalização
deôntica.
Tabela 02
No preâmbulo de sua Petição, a autoridade policial já externa suas conjecturas, dando
a entender que, mesmo sem prova cabal até então, tudo indica que o acusado, sob sua ótica,
fora realmente o responsável pelo crime, demonstrando que, a seu sentir, o indiciado é o único
suspeito de ter dado fim à vítima.
Nesse 2º parágrafo da Petição 02 – (Anexo 02), o enunciador valoriza os sentimentos
fraternais da vítima, seus hábitos religiosos, sua moral, a conduta digna e respeitosa em relação
aos familiares, ou seja, imprime juízo de valor emitido sobre ela por sua família, aspectos esses
corroborados pela autoridade policial em seu relato, conforme ressaltamos anteriormente. Lado
outro, em sentido inverso, aponta os pontos negativos relacionados à conduta do acusado,
126
ponderando sobre sua moral, apresentando seus defeitos nessa perspectiva, apontando-o como
cínico, mentiroso, frio e calculista, incutindo no enunciatário uma ideia de repulsa pelo acusado.
O relato como um todo está arraigado de termos pejorativos dando conta de que o
suspeito não era bom caráter, alegando que só quem acompanhou as investigações daria conta
de mensurar esses defeitos do acusado, fato esse que já denota juízo de valor, causando certa
repugnância em relação ao indiciado, o que, certamente, influencia os enunciatários, mais
propriamente no próprio auditório, porquanto o júri seria informado dessas características do
acusado nas palavras do promotor do caso quando da defesa oral de sua, fato que por si também
ensejaria a polifonia – discurso polifônico em que se imbrica a voz tanto do delegado quanto
do promotor (Anexos 02 e 04).
Essas estratégias linguístico-discursivas do enunciador apontam o réu como
mentiroso, o que, por conseguinte, já o coloca sob suspeita em relação a seus depoimentos, à
sua credibilidade em relação a seus enunciatários no momento de depoimentos, ainda que nesse
momento ele ainda se posicione como réu e não como o culpado, como de fato o fora pela
condenação imposta pelo Conselho de Sentença.
Não tendo uma prova efetiva acerca da culpabilidade do acusado, a autoridade começa
o 6º parágrafo com o uso do modalizador epistêmico – acreditamos -, que, pelo contexto, orienta
para uma avaliação do locutor, denotando dúvida. Nesse sentido, nota-se o emprego da
modalização enunciativa, pois sua fala não é taxativa, peremptória, incisiva nesse momento.
Ora, uma coisa é dizer que se acredita, outra é afirmar com convicção e certeza absoluta.
Percebe-se, pois, que a modalização utilizada atenua até certo ponto a fala do enunciador, bem
assim a credibilidade em relação a suas assertivas, no mínimo, levantando certa dúvida em seu
discurso.
Ainda no 6º parágrafo, em "... simplesmente contratou uma babá", o advérbio funciona
como modalização avaliativa em relação ao conteúdo proposicional, ou seja, externa uma
censura à ação do acusado sem imprimir caráter deôntico ou epistêmico à afirmação precedente
(“Acreditamos que ele seja o responsável pelo sumiço da vítima porque, segundo ele, ela foi
embora em 8/10/88. Ele não avisou ninguém. Simplesmente contratou uma babá...”).
No 8º parágrafo da Petição em apreço, uma escolha lexical agencia um “modo de
dizer” que fortalece a avaliação negativa (“quando a família telefonava, ele enrolava todo
mundo”). Trata-se de uma metáfora, uma gíria, um modo pejorativo utilizado para desenhar o
perfil do acusado, denotando alguém sem compromisso, de caráter duvidoso, capaz de
engendrar histórias, desculpas. Nesse viés, o enunciador constrói uma formatação identitária do
acusado, ensejando uma perspectiva que não lhe fosse favorável na visão dos enunciatários,
127
principalmente dos jurados.
Em seguida (17º §), incute o enunciador a ideia de sentimento de culpa por parte do
acusado em face da alegação da empregada D. V. quando do seu depoimento à autoridade,
segundo a qual ele sempre chorava ao apanhar sua filha. Questiona o enunciador – o delegado
-: "Seria sentimento de culpa?". Ora, outra conjectura poderia ser feita em lugar daquela: Seria
saudade de sua amásia? Por certo, este último questionamento desconstituiria sua linha de
raciocínio, uma vez que um viúvo, por exemplo, poderia chorar de saudade, por compaixão,
mas essa pressuposição não contribuiria para sua lógica enunciativa, ao contrário, ensejaria
dúvidas a todos, então mais eficaz seria optar pelo sentimento de culpa ou simulação do
acusado.
Feitas essas considerações (18º § da Petição, Anexo 02), com a perspicácia de um
profissional experiente, o delegado alega com certa resignação que tudo que pôde fazer foi feito,
contudo sem lograr êxito em seu propósito. Alega que a família também se empenhou ao
máximo, mas todas as empreitadas foram em vão, inclusive com o auxílio da Polícia
Especializada, tudo sem resultado plausível, a despeito de muitas diligências até mesmo em
estados vizinhos, perícia em corpos, esqueletos encontrados, sem nenhuma resposta efetiva.
Feita toda a narrativa do caso e já finalizando sua argumentação, o delegado volta à
narrativa, quiçá o tenha feito com o propósito de chamar a atenção do juiz (enunciatário direto),
frisando aspecto que, a seu sentir, seria relevante. Ora, se ele já havia terminado a narrativa e já
tecendo as considerações finais, não haveria motivo para voltar a outro fato que já deveria
constar da sequência narrativa anterior. Portanto nota-se nessa iniciativa uma estratégia
enunciativa para finalizar sua peça, desta feita voltando a narrar fato relevante, quebrando a
lógica de suas alegações, senão vejamos:
"Outra pista que D tentou desfazer foi a seguinte: Denise tinha
em Belo Horizonte um telefone que era locado pela Minas Fone,
de Belo Horizonte. Após o desaparecimento de Denise,
exatamente dois meses depois ele descobriu isso, pois contas,
digo, ordens de pagamento vinham para Uberlândia, e, assim,
tentou vender o telefone. Dessa forma, não havia necessidade da
locadora procurar Denise para renovar contratos.”
“Então, meritíssimo, todas as evidências são contra ele. A menor
continua com o suspeito, hoje, sendo criada pela esposa do
mesmo, pois voltaram a viver juntos.
A Petrobrás também investigou o caso, e com base nesse
inquérito policial o demitiu. Só posso dizer uma coisa com
absoluta certeza: tudo o que podíamos fazer em termos de
diligências para localizar ou saber o que aconteceu com a
desaparecida foi feito.
No momento, não vejo mais nada que eu possa fazer,
128
portanto remeto os presentes autos a vossa douta
apreciação". (Grifamos)
A petição supra relata toda a trajetória do inquérito policial, portanto é peça
fundamental na consecução dos trabalhos da promotoria de justiça e, por conseguinte, do
julgamento como um todo. Levando-se em conta o relato do Delegado, bem assim a Petição do
Promotor de Justiça – Anexo 04 -, percebem-se vários pontos correlatos imbricados nesse
enredo, demonstrando aspectos polifônicos entre as falas desses profissionais, cujo escopo é
comum à acusação na medida em que ambos atuam com o mesmo propósito, qual seja: a
condenação de DAP.
Como se percebe, o relato do delegado é eminentemente técnico, não obstante adentrar
em juízo de valor acerca da percepção que tem das características do acusado, o que não deixa
de fazer parte de suas estratégias argumentativas inerentes à profissão. Nesse aspecto, há que
se considerar que o relatório, em sentido stricto, é gênero do discurso que, a despeito da suposta
objetividade a que deveria estar adstrito, porquanto toda objetividade é ilusória quando se trata
de discurso – subjectus -, ele também apresenta nuances subjetivas, com estratégias externadas
tanto por operadores discursivos quanto por modalizações, portanto, na mesma seara da Petição
01, também cabe demonstrar nos quadros a seguir a utilização desses recursos linguístico-
discursivos, senão vejamos:
Quadro 03 – Operadores argumentativos – (Petição 01), (Anexo 01)
Operadores argumentativos: Objetivo/orientação
a) e deixado sua filha menor com o
amante, que aliás, neste caso, é
o único suspeito de ter dado fim
à desaparecida. (p. 27)
b)... A família alegou que, por
questões de educação, (...)
Denise jamais teria deixado sua
filha com o amante e
simplesmente desaparecido. (p.
27)
aliás: operador que introduz argumento
decisivo, visando a uma conclusão
peremptória, inquestionável.
jamais: operador que assinala para
hipótese remota, operador
argumentativo assertivo negativo;
simplesmente: modalização epistêmica;
índice de avaliação.
b)... trabalhamos porque muitas
pessoas interessadas
acompanharam as
investigações, inclusive juízes e
promotores. (p. 27)
inclusive: operador que assinala
argumento mais forte de uma escala
orientada para uma conclusão em face da
asserção anterior.
129
c) Não tenho nem como relatar...
(p. 27)
nem: assertivo negativo; soma argumento
favorável a uma conclusão.
d) Após o sumido de Denise, D se
mudou (...), porém, comprou
outra casa no bairro ... sem que
ninguém soubesse disso. (p. 28)
Operador que, no contexto, contrapõe a
argumento orientado para conclusão
oposta.
e) A senhora que cuidou da criança
também foi enrolada por D. (p.
28)
Também: indica argumento que soma,
indica, subentendendo uma escala com
outros argumentos antecedentes.
f) Ela sempre pedia (...), mas ele
nunca levou nada. (p. 28
operador que contrapõe argumento em
sentido contrário, diverso.
Tabela 03
Operadores argumentativos são formados por conectivos classificáveis em
conformidade com as normas gramaticais. Contudo, no que tange à Teoria da Argumentação
na Língua preconizada por Ducrot, não há uma relação intrínseca entre essas conjunções e os
operadores argumentativos, embora às vezes possa coincidir a relação de sentido, haja vista que
os operadores argumentativos porém e embora denotam sintaticamente conjunções
adversativas e concessivas, respectivamente, mas enquanto operadores argumentativos
representam simultaneamente ideia de contradição.
A diferença reside no fato de que as conjunções são descritas, em geral, pelo viés da
gramática tradicional, como conectores ou elementos de caráter circunstancial, presos a uma
sintaxe formal, ao passo que os operadores argumentativos são examinados sob o prisma das
relações de sentido e pela força argumentativa que imprimem ao discurso, daí serem
considerados estratégias persuasivas, de natureza semântico-discursiva. Na realidade, os
argumentadores denotam intenções, ou seja, contribuem para construção lógica visando à
conclusão direcionada pelo enunciador.
Feitas essas considerações acerca dos operadores argumentativos na peça do inquérito
policial, adentramos a seguir nos modalizadores, que, como já evidenciado, funcionam como
indicadores de intenções, atitudes e sentir do locutor, externando em seu discurso essas
vicissitudes, visando persuadir o enunciatário, mormente utilizando-se de mecanismos
estratégicos em sua argumentação, ou seja, uma assertiva no preceito primário que implica uma
conclusão no preceito secundário do enunciado, obedecendo a uma lógica entre essas premissas.
130
Quadro 04 – Modalizadores discursivos – (Petição 01), (Anexo 01):
Modalizadores discursivos: Objetivo/orientação
a) Se tivesse ido embora, não teria
levado o seu anel de formatura,
suas boas roupas boas, seu amuleto,
seu terço? p. 28
As expressões em epígrafe sinalizam para
uma hipótese, uma conjectura, portanto
atuam como modalizações discursivas
com o condão de externar0 dúvida,
incerteza, imprecisão, questionamentos.
b) Então, meritíssimo,
todas as evidências são contra ele. p. 29
Então: modalizador assertivo conclusivo.
c) A menor continua com o suspeito,
hoje sendo criada pela esposa do
mesmo, pois voltaram a viver juntos. p.
29
pois: modalizador assertivo causal
imprimindo uma justificativa.
d) Só posso dizer uma coisa com
absoluta certeza: p. 29
Só: modalização epistêmica delimitadora.
Perpassa a ideia de delimitação.
Tabela 04
Como demonstrado nas análises supra, as modalizações são tidas como epistêmicas na
medida em que externam condições propositivas atinentes ao conhecimento, a um pressuposto,
uma crença, verdades preconcebidas a que se vinculam as enunciações em questão, externando
uma valoração de sentido em suas asserções, visando a sensibilizar, persuadir ou até mesmo
auferir a adesão ou empatia do enunciatário.
As assertivas podem ser afirmativas ou negativas, no entanto as assertivas negativas
acabam também por afirmar algo, embora mediante modalizadores de cunho negativo, como:
de jeito nenhum, jamais, de forma alguma. Ex.: De jeito nenhum esse acordo ilegal vai prosperar
perante a lei, ou seja, trata-se de enunciação afirmativa, mas precedida de modalizador de cunho
negativo: De jeito nenhum.
Lado outro, as assertivas afirmativas apresentam esse duplo sentido, ou seja,
modalizadores afirmativos coadunando-se com a própria proposição afirmativa. Ex.: com
certeza, de fato, claro, óbvio, sem dúvida, certamente, evidentemente. Já as modalizações
epistêmicas quase-assertivas introduzem as afirmações mediante modalizadores (advérbios ou
locuções adverbiais) que denotam suscetibilidade, conjectura, possibilidade. Ex.:
eventualmente, provavelmente, quiçá etc. Por seu turno, as modalizações delimitadoras
restringem a asserção a uma esfera específica (geralmente por advérbios ou locuções
adverbiais). Ex.: cientificamente, politicamente, nesse contexto, dessa forma. As modalizações
deônticas advêm de um princípio, conceito, de uma proposição de natureza legal, denotando
uma obrigação, um axioma. Ex.: indubitavelmente, necessariamente, obrigatoriamente.
131
Feitas essas considerações, aduz-se que todo discurso é ideológico e se pauta por
intenções, sendo engendrado mediante estratégias argumentativas evidenciadas nas
modalizações discursivas e nos operadores argumentativos, bem como mediante outros
recursos enunciativos linguístico-discursivos, a exemplo do fenômeno da polifonia.
No afã de demonstrar efeitos polifônicos no âmbito das enunciações discursivas no
caso concreto sob análise, que a propósito também corrobora a tese de que a argumentação
bem-sucedida muda a natureza das coisas persuadindo o enunciatário a aderir ao discurso
empreendido, reportamo-nos às Petições 04 e 05 – Anexos 04 e 05 -, para demonstrar que o
enunciador recorre a outras situações similares para reforçar suas razões numa via de mão dupla
– enunciador – enunciatário, respectivamente.
A Petição 04, a partir das Alegações finais, baseia-se em grande parte na enunciação
exarada pelo delegado de polícia, com fincas nas Provas dos Autos, na qual o enunciador, o
Promotor de Justiça do caso, traça toda a trajetória dos fatos, seja em sua própria visão, seja na
versão das testemunhas, seja no relato do delegado de polícia que atuou no caso.
Em seguida, apontam os indícios do crime e da autoria, conforme relatos em sequência
cronológica – item 1º ao 15º da referida petição. Como aqui nos interessa a evidência de
aspectos polifônicos em que estejam imbricados no discurso de outrem, vamo-nos ater a essas
vozes que reforçam a enunciação do promotor de justiça nesse viés.
Para reforçar a importância dos indícios de prova no processo penal, sobretudo quando
não haja a prova cabal do alegado, o enunciador se reporta a doutrinadores outros, bem como à
jurisprudência dominante, daí o efeito de polifonia, ou seja, vozes ou enunciações que se
coadunam no mesmo propósito, nos mesmos vieses.
O enunciador, logo após o subtítulo relativo aos Indícios como Prova do Processo
Penal, Anexo 04, Petição 04, assevera o seguinte:
Os indícios são meios hábeis de prova no direito Processual Penal,
consoante o art. 239 do CPP.
O grande mestre Eduardo Espínola Filho, em sua obra Código de
Processo Penal Brasileiro Anotado (Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1942,
v (p. 138/151), dá-nos uma grande lição a respeito da prova indiciária.
Diz o mestre, citando Whitaker:
‘... O raciocínio constitui a indução indiciária, como presunção.
Presunção é a consequência tirada, pelo legislador ou pelo Juiz, do
fato certo para o incerto, que depende de prova. E acrescenta: na
presunção, há trabalho de raciocínio guiado pela lógica. De um fato
certo de existência incontestável é tirada, pela relação de
causalidade, a prova do fato incerto. O fato certo chama-se indícios;
o raciocínio que liga o fato certo ao probando é a presunção. A prova
indiciária une o abstrato ao concreto; de um fato conhecido a um
132
desconhecido. A premissa menor, concreta, certa e provada,
baseando-se nos dados da experiência ou do bom sendo comum,
leva à premissa maior abstrata, como conclusão lógica e segura.’
(Anexo 04, Petição 04) Grifos acrescidos.
Não resta dúvida de que os exemplos supra são por excelência polifônicos, haja vista
que compactuam do mesmo entendimento o promotor de justiça, ora enunciador, bem como
aqueles a quem recorre para reforçar sua tese. Tendo ou não citado tanto Eduardo Espínola
quanto Whitaker, certamente os estudos empreendidos pelo promotor anteriormente já teriam
evidenciado esse entendimento.
Para reforçar essa asserção, vale dizer que o raciocínio do promotor já direcionava para
esses pressupostos, contudo, para evidenciá-los dando ares de credibilidade, com mais razão,
seria oportuno citá-los, inclusive demonstrando a fonte, o que corrobora a tese da polifonia.
Em seguida, ainda visando ratificar esse entendimento, externando-o a outros
enunciatários, o enunciador, no caso o promotor de justiça, continua seu raciocínio com a
intenção de persuadir seus enunciatários:
Sustenta, com absoluta segurança o Ministro Bento de Faria (Código de
Processo Penal, v. 1, 1942, p. 309) que ‘se o espírito humano, na maioria
das vezes, não atinge a verdade senão por argumentos probatórios
indiretos, para evidenciar a circunstância ignorada com o nexo da
causalidade, ou de identidade específica (Sabatini Malatesta), não
poderia, pois, ser desprezada, nos Juízos criminais, a prova indiciária,
desde que cada vez mais a inteligência, a prudência e a cautela dos
criminosos dificultam a prova direta’.
(Anexo 04, Petição 04)
Ora, ainda corroborando posicionamento defendido pelo enunciador, que, por sua vez,
se reportou a dois outros enunciadores – Eduardo Espínola e Whitaker -, desta feita o promotor
recorre ao próprio Código de Processo Penal de 1942, p. 309 e a outro respeitável jurisconsulto,
Ministro Bento de Faria, sem nos olvidar de Sabatini Malatesta, ou seja, todo esse emaranhado
de posicionamento jurisprudencial e doutrinários emanado dos mais diversos matizes dá suporte
à enunciação discursiva empreendida com a intenção de reforçar o posicionamento do promotor
de justiça, todos ancorados em outros enunciados, daí a evidência da polifonia, que, aliás, é
típica do discurso do direito. Raramente uma petição, uma contestação, uma sentença ou
acórdão deixam de citar tanto posicionamentos doutrinários quanto jurisprudenciais,
corroborando assim a tese da polifonia na argumentação discursiva.
Ainda nesse mesmo diapasão:
133
Também o professor Antônio José Miguel Feu Rosa, da Universidade
Federal do Espírito Santo e Desembargador aposentado do Tribunal de
Justiça do mesmo Estado, em sua recente obra: Processo Penal (Nova
Letra, 1992, v. II, p. 253/256), no seu estimo moderno, ajustado à
realidade dos dias atuais, leciona que: ‘... a verdadeira prova é a que se
harmoniza com o conjunto, levando o Juiz ao seu convencimento...’.
(Anexo 04, Petição 04)
Ao se recorrer a Feu Rosa, também o enunciador não o faz por acaso, mas precisamente
pelo fato de que há sintonia nos dizeres de ambos, no entendimento que têm acerca de fato
similar, polêmico, mas verossímil e que se coadunam na enunciação do Promotor do caso sob
análise. São, pois, exemplos de polifonia na concepção bakhtiniana.
Reforçando ainda sua enunciação, sem qualquer receio de afetar sua originalidade, o
Promotor Tibúrcio Délbis, de forma didática, recorre a posicionamentos doutrinários que
corroboram seu entendimento, e que, certamente, influenciará os enunciatários, pois, ainda que
tivesse dúvidas, pensariam: ora, se pessoas renomadas, respeitáveis, experientes em casos
complexos dessa natureza assim já tenham decidido, certamente assiste razão ao promotor.
Nesse propósito, o enunciador traz à colação decisões no mesmo norte, senão vejamos:
Nesse sentido:
Prova indiciária – A prova indiciária é admissível quando os indícios são
coerentes e convergentes para um ponto comum, podendo fundamentar o
despacho de pronúncia.’ (TJ-MG, JM 111/287) Mais
Ainda:
‘Prova indiciária -
condenação – Condenação - Os indícios autorizam decreto condenatório
quando por eles se alcança o máximo de habilidade de haver o agente
cometido o crime ou de ter dele participado.’ (TJ-SC, In COAD 32.437)
(Anexo 04, Petição 04)
Tendo em vista que a ciência jurídica é complexa porque os fatos do dia a dia também
o são, suscitando entendimentos diversos, faz-se imperioso ressaltar que, se há posicionamentos
doutrinários tanto num viés quanto noutro, ambos reforçados por outros pontos de vista no
mesmo norte de acordo com o posicionamento do enunciador, o ex-adversa também se vale da
polifonia apresentando argumentos e decisões que lhe sejam favoráveis, portanto a polifonia
atende a ambos os lados por razões óbvias.
Para concluir a petição apresentando seus argumentos, suas razões corroboradas por
outros entendimentos exarados tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência, o enunciador
finaliza sua peça com outros posicionamentos que também nos remetem à polifonia.
Primeiramente o enunciador tece suas considerações acerca da situação concreta e assevera que
134
“Daí, o exame de corpo de delito há de ser substituído pela prova testemunhal e indiciária
constante dos autos, dada a impossibilidade de fazê-lo pela ocultação do cadáver pelo réu. Nesse
sentido:
“Perícia – Exame de corpo de delito – Impossibilidade de realização ante
o desaparecimento dos vestígios – Possibilidade, em linha supletiva, de
comprovação do crime investigado por prova testemunhal. Aplicação do
art. 167 do CPP.’ (Tacrim-SP, RT 673/336) Mais ainda:
‘Perícia – Exame de corpo de delito – suprimento pela comprovação
testemunhal somente quando desaparecidos os vestígios – Inteligência do
art. 167 do CPP;’ (TJ-SP, RT 684/307)
(Anexo 04, Petição 04)
Finalmente, o promotor encerra sua petição citando artigos do Código Penal, que
também ensejam polifonia, na medida em que todo dispositivo legal não deixa de ser uma
enunciação de outrem, no caso, do legislador, que, em tese, representa os anseios da sociedade,
senão vejamos:
Do pedido final
Dito tudo isso, este representante do Ministério Público pede e espera seja
o ora réu pronunciado como incurso nas penas do art. 121, § 2º, inciso II
(motivo fútil), mais art. 211, caput, ambos do Código Penal, em concurso
material de delitos, nos termos do art. 69 do mesmo códex, e via de
consequência seja o mesmo submetido a julgamento perante o Tribunal
do Júri desta comarca, como manda a lei.
JUSTIÇA!!!
(Anexo 04, Petição 04)
Dito isso, partimos para a conclusão, ressaltando que por óbvio esta dissertação não
esgota o tema, haja vista sua riqueza, como de resto assim o é toda pesquisa que explora
estratégias de cunho linguístico-discursivo a serviço da força argumentativa de discursos.
135
5 CONCLUSÃO
Como é incontestável, não há atividade humana que não esteja vinculada direta ou
indiretamente ao uso da linguagem, até porque, não fosse por esse fenômeno, certamente
estaríamos nas mesmas condições do homem ancestral, que, aliás, a partir dele, à vista da
faculdade discursiva em constante evolução, chegamos aonde estamos e certamente
avançaremos de forma inexorável, ainda que a passos lentos.
Pautando-nos no preceito metodológico que norteou a pesquisa em questão,
vislumbrando o gênero de discurso petição e sua inserção no macro gênero julgamento,
procuramos demonstrar que, na relação discursiva inerente à demanda judicial, as partes
empreendem argumentos visando influenciar o sujeito destinatário da relação discursiva, no
caso, o enunciatário propriamente dito, tendo em vista que ele, por sua vez, tende a influenciar
na decisão de mérito.
Nesse procedimento, ficam evidentes as relações dialógicas entre os interlocutores -
enunciador e enunciatário, sujeito comunicante e sujeito interpretante, eu comunicante e tu
destinatário - que, em cada momento, ocupam polos distintos na interação discursiva, seja como
autor, réu, autoridades constituídas, como delegado de polícia, promotor de justiça, juiz,
advogado, testemunha, numa constante troca enunciativa, pois ora o delegado externa seu ponto
de vista como enunciador, ora atua como enunciatário quando da oitiva de testemunhas; o
mesmo ocorrendo com o promotor de justiça que, em grande parte, atua como enunciador, mas
em outros momentos, como enunciatário. Ainda a título de ilustração, o juiz, em sua primeira
participação no julgamento, posiciona-se como enunciatário, ouvindo as partes, seus
advogados, promotores, para em seguida atuar como enunciador, emitindo uma ordem judicial,
um parecer, um despacho, uma sentença.
A relação dialógica se faz constante no julgamento, o que se consubstancia no gênero
de discurso petição, objeto precípuo da pesquisa, considerando inclusive sua dinâmica
evolutiva, pressuposto indispensável a todo gênero de discurso em razão de sua esfera de
atuação, mormente em vista de sua transformação contínua, a exemplo do que ocorre no meio
jurídico, cuja petição pode ser vislumbrada, em sentido amplo, como contestação, recurso,
agravos, embargos, sentenças, acórdãos, requerimentos etc. Nesse sentido, oportuno frisar que
Bakhtin asseverou que todo gênero de discurso é dinâmico e de relativa estabilidade, vale dizer,
instável por natureza.
Procuramos demonstrar a importância das estratégias argumentativas como meio para
se lograr êxito na demanda judicial, ressaltando que essa situação implica questionamentos
136
diversos, tanto de natureza jurídica quanto linguística. No que tange aos aspectos jurídicos, a
questão se atém à aplicação da lei propriamente dita, já no que concerne aos aspectos
linguísticos, a celeuma centra-se na interpretação da lei, dos fatos, dos discursos, assim como
na interpretação da conduta humana, na intenção do agente, dos sujeitos do discurso, bem como
na argumentação empreendida e em sua compreensão pelos enunciatários.
Trata-se, pois, de questões complexas, mormente quando se envolvem julgamentos
relacionados a crimes dolosos contra a vida, que, por conseguinte, são julgados pelo Tribunal
do Júri, Corte de Justiça Popular composta por juízes leigos responsáveis por julgar não por
critérios eminentemente técnicos, mas de acordo com a convicção e consciência de cada jurado
que a compõe, considerando inclusive os quesitos que lhes são formulados e que norteiam suas
convicções e decisões.
Optamos por questionar os julgamentos de competência do Tribunal do Júri não por
acaso, mas principalmente pelo fato de se tratar de julgamentos que envolvem direta ou
indiretamente pessoas comuns do povo, que, a despeito de estarem investidas de conhecimentos
não técnicos, são capazes de discernirem sobre uma situação das mais complexas, vez que
julgam a conduta de quem tenha sido acusado por um crime doloso, praticado com uma intenção
deliberada, visando objetivo específico que não seja o patrimônio em si, mas motivos outros,
vingança, desavenças, preconceitos, herança, etc.
Pela especificidade desse tipo de julgamento, percebe-se que aspectos linguístico-
argumentativos são responsáveis em grande escala pelo veredito, à vista do efeito promovido
pelas ações linguageiras, seja pela condenação, seja pela absolvição do acusado. Isso porque os
jurados têm que conjecturar acerca de fatos narrados por outrem, pela acusação, pela defesa,
pelos depoimentos dos envolvidos, pelo inquérito, ou seja, todo o contexto inerente aos
acontecimentos é objeto de ponderações dos jurados a partir de discursos proferidos.
A dinâmica do júri demonstra de forma inequívoca a importância da linguagem, pois
nele a relação dialógica se faz presente a todo tempo, de sorte que as petições escritas ou orais
externam pareceres de autoridades, assim como dos advogados, das partes interessadas, do réu,
sendo que todo esse aparato linguageiro será objeto de avaliações promovidas por quem tenha
a competência institucional para julgar. Esses fatores têm relevância no resultado do
julgamento, na medida em que nele se decide pela maioria de votos, o que, por si, aguça questão
intrigante, uma vez que votos antagônicos são frutos de interpretações distintas, sendo que
quaisquer que sejam os vieses que os nortearam, há um peso interpretativo que deve ser
respeitado.
A questão se torna menos polêmica quando a decisão se dá por unanimidade, seja para
137
condenar, seja para absolver, contudo, hoje já não há a possibilidade de evidenciar a
unanimidade, sobretudo pela alteração do rito, porquanto, ao se chegar ao quarto voto dos sete
possíveis, seja para condenar, seja para absolver, já se divulga o resultado, até mesmo para não
demonstrar a unanimidade, que, por consequente, acabaria por revelar o voto de cada jurado, o
que, por questões óbvias, deve ser evitado para não haver represálias, sobretudo quanto à
condenação, represálias essas que também poderia haver quanto à eventual absolvição, haja
vista interesses mútuos – autor e réu.
Quando optamos por trabalhar os aspectos argumentativos nas petições atinentes ao
tribunal do júri não o fizemos sem um propósito, pois, por óbvio, toda pesquisa deve ter por
objeto uma finalidade, que, no caso, seria aguçar a curiosidade e formar opinião sobre algo
relevante no âmbito do direito e que tem relação intrínseca com a linguagem, com a
interpretação dos discursos, com a dialética, ampla defesa e contraditório. Esses pressupostos
têm corolário no dialogismo, na interação verbal, na polifonia e na alteridade, pois nem sempre
a maioria sinaliza para o que é certo ou errado, até porque a certeza deve ser relativizada dada
a sua subjetividade.
Se em um julgamento em colegiado a decisão não é unânime, sintomático concluir que
a divergência foi motivada por pontos de vista divergentes, interpretações antagônicas, díspares,
portanto, quem garante que a maioria é que está correta? De certa forma a decisão por maioria
está semiotizada como sendo justa, mas justa sob o ponto de vista do que se institucionalizou
pelo ordenamento jurídico ou pelos usos e costumes ou, noutras searas, o resultado por maioria
tem mais chances de estar correto, mas isso não é garantia de infalibilidade.
Por oportuno, dada a suscetibilidade de incorreções em julgamentos, o ordenamento
jurídico já prevê o duplo grau de jurisdição, pois, se um juiz decide a causa dando-a por
procedente ou não, a parte vencida pode se insurgir contra a decisão e dela recorrer,
apresentando falhas na interpretação, apontando argumentos e posicionamentos doutrinários
que lhe sejam favoráveis, assim como jurisprudências que vão de encontro com a decisão
proferida, ou seja, contrária à sentença, o que por si demonstra que o trânsito em julgado só se
efetiva quando já não haja mais condições de recorrer.
A despeito dessas considerações, de forma atípica, não há como recorrer no mérito em
relação às decisões do Júri, decisões essas emanadas do Conselho de Sentença em face de
crimes dolosos contra a vida. O sistema definiu que tais decisões são soberanas, cujo julgamento
é insuscetível de reforma, o que só seria possível em face de erros formais, nulidades
processuais, como já afiançamos anteriormente.
Ocorre que essa decisão por maioria pode estar equivocada no mérito, engendrada
138
discursivamente por estratégias de natureza enunciativa e argumentativa, contudo, por mais que
tenha havido interpretações errôneas, por mais bem intencionados que sejam os jurados, no
mérito, a coisa julgada se consubstanciou formalmente, o que implicará prejuízo
incomensurável a uma das partes, em última instância, para a sociedade representada pelo
Ministério Público e pela assistência de acusação, ou para o réu, representado por seu advogado
ou defensor público.
Esses aspectos, pela própria complexidade, dão a dimensão do problema, cuja solução
deve passar por discussão em fóruns próprios, com a ampla participação da sociedade, ouvindo
juristas, representantes da própria Ordem dos Advogados, a Defensoria Pública, o próprio
Ministério Público, para enfim amadurecer a ideia de repensar o modelo atual do Júri, se assim
for o entendimento nesse propósito.
Nesse sentido, vislumbrando essa possibilidade, portanto o propósito foi questionar o
ordenamento jurídico nesse mister, no mínimo com a intenção de provocar discussões sobre
essa sistemática, inclusive sugerindo aos formadores de opinião atentar-se para essas hipóteses,
aguçando a necessidade de mais pesquisas com esse intento. Não se trata, por óbvio, de levantar
polêmica de forma gratuita, pois os argumentos aqui empreendidos são plausíveis a justificar
estudos nesse desiderato, até porque a dinâmica das relações sociais se faz por ponderações as
mais diversas, valendo ressaltar que a linguagem, em suas possibilidades, em seus vários
segmentos, é caminho legítimo para fazê-lo, porque o discurso é meio de que dispõe a
humanidade para interferir no mundo engendrado socialmente.
Faz-se oportuno frisar que os estudos linguísticos naturalmente têm relevância na seara
jurídica, assim como o têm a sociologia, a antropologia, a psicologia, a política, a religião, a
mídia, a bem da verdade, toda área do conhecimento, portanto não é diferente em relação ao
direito.
Corroborando essa assertiva, são oportunas as lições de Lopes, a saber:
A Linguística é uma ciência interdisciplinar. Ela toma emprestada a sua
instrumentação metalinguística dos dados elaborados pela Estatística, pela
Teoria da Informação, pela Lógica Matemática, etc. e, por outro lado, na sua
qualidade de ciência-piloto, ela empresta os métodos e conceitos que elaborou
à Psicanálise, à Musicologia, à Antropologia, à Teoria e Crítica Literária, etc.:
enfim, ela se dá, como linguística aplicada, ao Ensino das Línguas e à Tradução
Mecânica. Sem pretender ser exaustiva, a Fig. 2, adaptada de Peytard (1971 p.
73), mostra o posto que lhe corresponde no interior do campo semiológico.
(LOPES, p. 24)
Assim, face às minhas experiências pessoais nessas duas áreas do conhecimento - letras
e direito -, vislumbrei a possibilidade de conciliá-las no presente estudo, dando minha
contribuição mediante sugestões que se coadunam com a hipótese vinculada ao problema.
Nesse sentido, faz-se oportuno proceder a reformas no sistema atinente ao Tribunal do Júri,
139
facultando em seus julgamentos a oportunidade do duplo grau de jurisdição conforme interesse
das partes, mormente daquela que se tornou vencida na demanda judicial, seja o Ministério
Público, seja o Réu.
Dadas as vicissitudes, seria oportuno o duplo grau de jurisdição em instância superior,
ainda que sob a égide de uma Corte colegiada também composta por jurados leigos, fato esse
que sequer implicaria em onerar consideravelmente o Estado, pois, como é cediço, jurados
atuam sem remuneração nesse mister, portanto não seria esse o empecilho. Ademais, ainda que
onerasse o Estado, deve-se ressaltar que a justiça, na acepção do termo, não tem preço, sendo
que qualquer recurso no âmbito do Judiciário tem por propósito ou ratificar uma decisão
recorrida ou retificá-la.
Por todo o exposto, aduz-se que o cerne da questão tratada na presente pesquisa reside
não em questões estritamente jurídicas, mas sim em aspectos eminentemente linguístico-
discursivos, haja vista que os responsáveis pelo julgamento dessas demandas no âmbito do
Tribunal do Júri se pautam nas enunciações de todos quantos estejam direto ou indiretamente
envolvidos na apreciação dos fatos, de acordo com seu ponto de vista em face do caso concreto
sob análise. Conclui-se, por conseguinte, que não se concebe plausibilidade em desvincular os
influxos da argumentação como pressupostos das decisões de méritos oriundas de Cortes
Populares, mais especificamente dos Conselhos de Sentença, o que corrobora a importância do
gênero do discurso petição imbricado no macrogênero julgamento.
141
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145
ANEXOS 1 - Petição 01
“Exmo. Sr. Dr. Juiz de Direito da 2ª Vara Criminal da Comarca de Uberlândia/MG
O Promotor de Justiça, perante esta Vara, no exercício de seu Ministério, com base no incluso
inquérito policial, vem perante esse Juízo oferecer denúncia contra:
DAP, brasileiro, separado judicialmente (à época do crime), economista, com 42 anos de idade
nascido a 1/5/49, natural de Estrela/RS, filho de AHP e OEP, e que, segundo consta, residia na Rua
Alexandre Marquez, 1.017 – B. Martins, nesta cidade e/ou na Rua Urucânia, 447 – B. Saraiva, também
nesta cidade pelo seguinte fato delituoso:
Consta do incluso inquérito policial que o denunciado acima ficou conhecendo em Belo
Horizonte, capital mineira, em maço de 1986, a jovem Maria Denise Lafetá Saraiva, nascida aos
18/2/60, natural de Coração de Jesus/MG, filha de José Gonçalves Saraiva e Maria Joaquina Lafetá
Saraiva, que se achava em BH, na casa de seu tio, para estudar.
O denunciado era, à época, casado, entretanto apaixonou-se por Maria Denise e com ela passou
a conviver maritalmente. Em junho de 1987, o denunciado resolveu trazer Maria Denise para residir
com ele nesta cidade de Uberlândia, para onde tinha sido transferido como funcionário da Petrobrás
tendo separado de fato de sua mulher e aqui residira na Rua Alexandre Marquez, 1.017, como acima
referido, até 8/10/88, quando então o ‘sumiço’ de Maria Denise.
Tiveram uma filha, AEP, nascida aos 17/4/88. O casal não tinha empregada doméstica.
Segundo consta, Maria Denise sumiu no dia 8/10/88, desaparecendo sem deixar quaisquer
notícias a quem quer que seja e até hoje não foi encontrada, quer viva, quer morta, não obstante os
esforços de seus familiares e da Polícia, evidenciados à sua procura.
Os indícios que se extraem da prova colhida no presente inquérito policial são veemente, fortes
e coerentes a indicarem o denunciado como responsável pelo 1sumiço’ de Maria Denise, dando fim à
sua ida e ocultando o seu cadáver, tais como:
1º) O denunciado era amasiado com Maria Denise e com ela convivia maritalmente, sob o mesmo
teto, e segundo as próprias palavras do denunciado, no dia 8/10/88, ele a levou à rodoviária e a deixou
no saguão da referida rodoviária, dizendo que não sabia o destino dela, e que não sabe para onde ela
foi. Inclusive, diz eu houve brigas e discussões entre ambos (f. 4/v).
Assim, Maria Denise sumiu em plena convivência com o denunciado.
2º) Maria Denise tinha a filha de seis meses de idade, a quem tinha todo amor e carinho.
Inacreditável que o coração de mãe de Maria Denise tivesse a coragem de abandonar a filha e sumir
sem deixar notícias.
3º) O denunciado não noticiou o desaparecimento de Maria Denise à polícia, aos seus familiares
e à sociedade; pelo contrário, procurava sempre esconder, dando as suas versões, que eram
contraditórias.
4º) Maria Denise não levou seus objetos de uso pessoal, bem como vestimentas, calçados, etc.
haja vista que os mesmos foram apreendidos como objetos de prova no inquérito (f. 42), os quais foram
restituídos à sua família (f. 254).
5º) O denunciado chegou dias antes do ‘sumiço’ de Maria Denise a contratar uma senhora para
servir de babá à filha de seis meses de idade do casal (... ‘que prefere não dizer o nome...’).
6º) O denunciado informou para R, amiga de Maria Denise, que a mesma estava na casa de seus
pais em Coração de Jesus/MG. Daí, já desconfiada, telefonou para Coração de Jesus, mantendo contato
com Maria Irene Saraiva de Moura, irmã de Maria Denise, o que fez vir à tona, o ‘sumiço’ de Maria
Denise.
7º) O denunciado chegou a dizer a R que Maria Denise não desejava falar com ela; R não
precisava, pois, telefonar para Coração de Jesus e inclusive ficou ‘enrolando’ R, quando esta lhe pediu
146
o telefone ou o sobrenome de Maria Denise ou de seus pais para descobrir o telefone em Coração de
Jesus. R conseguiu com seus próprios esforços o número do telefone e pra lá ligou, vindo a descobrir o
desaparecimento de Maria Denise.
8º) Logo que se deu o ‘sumiço’ de Maria Denise, o denunciado mudou de endereço, deixado a
casa da rua Alexandre Marquez, 1.017 – B. Martins, indo para Rua Urucânia, 447 – B. arava, ambos
nesta cidade.
9º) Denise tinha muito medo do denunciado.
10º) Após o telefonema entre R e Maria Irene, R efetuou vários telefonemas para o denunciado
na Petrobrás onde trabalhava e ele não atendia, dizendo sempre que não estava, tinha saído, ainda não
tinha chegado, etc., inclusive deixava R recado para ele ligar para ela, mas ele não ligou. Daí, R,
desconfiada, telefonou para Coração de Jesus, mantendo contato com a irmã de Maria Denise, Maria
Irene Saraiva de Moura, o que veio dar publicidade ao ‘sumiço’ de Maria Denise.
11º) Maria Irene, irmã de Maria Denise, também tentou por diversas vezes falar por telefone com
o denunciado, na Petrobrás, onde trabalhava, mas não conseguiu. As informações eram as mesmas:
não tinha chegado, não tinha saído etc., inclusive pediu para ele ligar em Coração de Jesus, mas não
ligou. Até que Maria Irene e seu pai vieram a esta cidade de Uberlândia, precisamente no dia 27/2/89,
e ficaram à porta da Petrobrás à espera do denunciado, para uma conversa ou explicações deste para
com a família da desaparecida. O denunciado assustou-se muito quando viu Maria Irene e seu pai, ali.
Aí, Maria Irene perguntou notícias de Maria Denise e o denunciado disse que Maria Denise o tinha
largado em outubro de 1988 e disse que ia para a casa de seus pais em Coração de Jesus. O próprio
denunciado já havia informado por telefone, para Maria Irene, em janeiro de 1989 que Maria Denise
estava bem e estava sem com ela comunicar porque estava sem empregada, mas iria entrar de férias
naquele mês de janeiro e iam passar uns dias lá com eles. Maria Irene indagou sobre a divergência de
informação; ele, denunciado muito cínico disse que era engano de Maria Irene, chegando inclusive a
perguntar se Maria Denise não estava lá, fingindo-se chorar naquele momento.
12º) Maria Irene, inconformada com as explicações do denunciado, aliás contraditórias e cínicas,
resolveu dar queixa à Polícia. Na Delegacia, em audiência que Maria Irene, seu pai e o denunciado
tiveram com o delegado, Maria Irene pôde sentir que o denunciado deu um ‘sumiço’ em Maria Denise
e armou um plano para que ninguém procurasse Maria Denise, pois disse para Maria Irene que Maria
Denise estava bem; disse para R que Maria Denise não desejava falar com ela; disse para G que Maria
Denise havia mudado para o bairro Umuarama; disse que AM e M da Botique que Maria Denise e ele,
denunciado, tinham mudado para Belo Horizonte; disse para o médico que atendia a filha AEP, o Sr.
M da Pediatria do Hospital Santa Genoveva, que Maria Denise tinha ido fazer compras, quando ele
levou a criança ao hospital.
13º) O denunciado, em medos de outubro de 1988, esteve em Belo Horizonte, tentando vender um
telefone de Maria Denise.
14º) O denunciado, em dezembro/88, voltou a conviver com sua ex-esposa, NIP, com quem Maria
Irene esteve conversando e lhe afirmou que sabia do caso entre o denunciado e Maria Denise, que o
denunciado havia prometido a ela N que assim que Maria Denise desse à luz a criança, o denunciado
pegaria a criança e dispensaria Maria Denise.
15º) Por último, a impressão obtida pela autoridade policial nas investigações policiais, durante
o respectivo inquérito tais como:’... durante as investigações, descobrimos que D é o mais frio e cínico
mentiroso com quem já trabalhamos...’.
Assim, tendo o denunciado incorrido nas sanções do art. 121, § 2º, inciso II (motivo fútil) do
Código Penal, mais art. 211 do mesmo códex, requer esta Promotoria de Justiça seja o mesmo
denunciado devidamente citado para interrogatório e defesa que tiver ouvidas as testemunhas abaixo
arroladas, cumpridas as demais formalidades da lei e, afinal, condenado nas penas que lhe couber.
Rol de Testemunhas:
(...) Oito testemunhas.
147
Termo em que
Pede deferimento.
Uberlândia/MG, 26 e agosto e 1991.
a.) Tibúrcio Délbis Promotor de Justiça.”11
11 Délbis, Tibúrcio. Homicídio sem cadáver: o caso Denise Lafetá/Tibúrcio Délbis. - Belo Horizonte: Del Rey,
1999, ps. 22/26
149
ANEXOS 2 - Petição 02
Secretaria do Estado de Minas Gerais
16ª Delegacia Regional de Segurança Pública de Uberlândia/MG
3º Distrito Policial/Luizote de Freitas
Inquérito Policial n. 064/89
Vítima/Desaparecida: Maria Denise Lafetá
Suspeito: DAP
MM Juiz,
Em março de 2989, a família de Maria Denise nos procurou alegando que esta havia
desaparecido desde outubro de 1988 e deixado sua filha menor com o amante, que aliás, neste
caso, é o único suspeito de ter dado fim à desaparecida.
A família alegou que por questões de educação, formação pessoal e religiosa Denise
jamais teria deixado sua filha com o amante e simplesmente desaparecido.
O amante, DAP, era um homem casado, pai de família e alto funcionário da Petrobrás
(gerente regional), mas, naquela época, se encontrava separado de fato de sua esposa.
Durante as investigações, descobrimos que D é o mais frio e cínico mentiroso com quem
já trabalhamos, e, digo, trabalhamos porque muitas pessoas interessadas acompanharam as
investigações, inclusive juízes e promotores.
Não tenho nem como relatar esmiuçadamente as mentiras de D. É necessário que se leia
os autos, ainda que os conheça, mas não dá para se ter ideia de como ele é, somente quem
presenciou e acompanhou as investigações pode ter essa noção.
Acreditamos que ele seja o responsável pelo sumiço da vítima porque, segundo ele, ela
foi embora em 8/10/88. Ele não avisou ninguém. Simplesmente contratou uma babá, a Sr.ª V,
para tomar conta da criança e na casa desta. Enquanto isso, se preparou psicologicamente
para receber o impacto das investigações que sabia que existiriam posteriormente. Pagou todas
as dívidas da desaparecida, por certo para que ninguém o procurasse.
Quando os amigos perguntavam cadê a Denise, ele só dizia que ela tinha viajado.
Quando a família telefonava, ele enrolava todo mundo.
D é um homem culto, inteligentíssimo, ao ponto de arriscar os mais altos negócios para
a Petrobrás e, ao final, dá tudo certo por obra e graça de sua visão futurista e audaciosa, e
assim tem desculpas para tudo. Arruma explicações e justificativas para todas as mentiras e
omissões.
Os vizinhos informaram que Denise via dentro de casa como se estivesse sempre com
medo de alguma coisa e D não permitia que ela se relacionasse com ninguém.
Após o sumiço de Denise, D se mudou para outra residência no bairro Umuarama,
porém, comprou outra casa no bairro Sana Mônica e a arrumou, sem que ninguém soubesse
disso, da forma que Denise gostava, até nos pequenos detalhes. Arrumou tudo, transferiu os
móveis e coisas de Denise para esta casa e escondeu isso de todo mundo como se quisesse
preservar uma lembrança, somente sua, numa atitude característica de um psicótico.
Nesta casa estavam as melhores roupas de Denise, seu anel de formatura, seus livros,
seus discos e eu terço, pendurado na cabeceira da cama como ela gostava aí deu pergunto:
Se ela tivesse ido embora, não teria levado o seu anel de formatura, suas boas roupas e
150
seu amuleto – o terço?
Usamos, em todas as residências e locais suspeitos, até sondagem de infravermelho,
visando descobrir alguma sepultura, e muita escavação foi feita pelo Corpo de Bombeiros da
Polícia Militar e nenhuma prova conseguimos contra o suspeito.
Agora, ele pode tê-la matado em qualquer lugar do Brasil e aí sumido com o corpo, de
alguma forma, pois viajava sempre em carro da empresa e para muitos lugares do país.
A senhora que cuidou da criança também foi enrolada por D. Ela sempre pedia a ele que
lhe mandasse os documentos da menina a fim de que ela fizesse o cadastro da mesma, mas ele
nunca levou nada, sempre dando uma desculpa qualquer e ainda faia a babá presumir que um
pobre homem abandonado pela mulher.
Dª V conta que D sempre chorava quando ia apanhar a filha: ‘Lilisa’, com ela. Seria
sentimento de culpa?
Todas as diligências que pude empreender, e que os nossos ínfimos recursos permitiam
foram realizadas. A família, não contente, buscou Polícia Especializada em Belo Horizonte e
assim rodaram o país em busca de alguma prova, meses a fio, com o inquérito, e nada
conseguiram. Devolveram o inquérito.
Fizemos então muitas diligências pela região e outros estados vizinhos, checando corpos
e esqueletos, e também nada encontramos e, até o presente momento, estávamos aguardando
fatos novos, mas, até então, não descobrimos nada.
Outra pista que D tentou desfazer foi a seguinte: Denise tinha em Belo Horizonte um
telefone que era locado pela Minas Fone, de Belo Horizonte. Após o desaparecimento de
Denise, exatamente dois meses depois ele descobriu isso, pois as contas, digo, ordens de
pagamento vinham para Uberlândia, e, assim, tentou vender o telefone. Dessa forma, não havia
necessidade da locadora procurar Denise para renovar contratos.
Então, meritíssimo, todas as evidências são contra ele. A menor continua com o suspeito,
hoje, sendo criada pela esposa do mesmo, pois voltaram a viver juntos.
A Petrobrás também investigou o caso, e com base nesse inquérito policial o demitiu.
Só posso dizer uma coisa com absoluta certeza: tudo o que podíamos fazer em termos de
diligências para localizar ou saber o que aconteceu com a desaparecida foi feito.
No momento, não vejo mais nada que eu possa fazer, portanto remeto os presentes autos
a vossa douta apreciação.
Uberlândia-MG, 18 de julho de 1991.
Bel. G. S. Freitas
Delegado de Polícia Classe II.”12
12 Délbis, Tibúrcio. Homicídio sem cadáver: o caso Denise Lafetá/Tibúrcio Délbis. - Belo Horizonte: Del Rey,
1999, ps. 27/29
151
ANEXOS 3 - Petição 03
Decisão MM Juiz
Autos n. 790/91 – Prisão Preventiva
Acusado: DAP
O Dr. Promotor de Justiça requereu a prisão preventiva de DAP, o qual figura como
acusado no processo crime n 790/91 pela prática de homicídio qualificado e ocultação de
cadáver, previstos nos artigos 121, § 2º, inciso II (motivo fútil) e 211, respectivamente, ambos
do Código Penal.
Compulsando os autos, verifica-se que o ora acusado encontra-se foragido sem motivo
plausível que justificasse o seu desaparecimento repentino, dificultando, com isso, a
instrução criminal para a apuração da verdade dos fatos e posterior aplicação da norma
penal, bem como insegurança na ordem pública, já que tal crime teve grande repercussão na
sociedade.
Segundo consta dos autos, a vítima desapareceu no dia 8/10/88 sem deixar qualquer
notícia, sendo relevante destacar que na época do seu desaparecimento tinha uma filha de
apenas seis meses de idade.
Até hoje não se sabe nada a respeito do paradeiro de Maria Denise, que não foi
encontrada, nem viva e nem morta, não obstante os esforços de familiares, amigos, e
principalmente a Polícia, no sentido de localizá-la.
Os indícios que se extraem dos autos são fortes e coerentes a indicar o acusado como
responsável pelo desaparecimento da vítima.
Embora não sendo encontrado o corpo da vítima, não havendo nos autos o laudo de
necropsia, as demais provas, principalmente as testemunhais, convergem harmonicamente
no sentido de que a vítima foi morta pelo acusado, tendo este ocultado o cadáver da mesma.
Ademais, consoante as informações obtidas pelo zeloso r. do Ministério Público, o
acusado, conforme indica o ofício de f. 18 remetido pela Cia de Telefone do Brasil
Central, encontra-se nesta cidade, residindo atualmente com sua família na Rua dos
Canarinhos, 387 – B. Cidade Jardim, já que seu nome consta na lista telefônica deste
Município.
Assim sendo, a aplicação de tal medida faz-se necessária, razão pela qual decreto a
prisão preventiva do acusado DAP, nos termos do art. 311 e segs. do Código de Processo
Penal.
Espeça-se o competente mandado de prisão.
Cumpra-se.
Uberlândia, 5 de agosto de 1993.
a.) Bel. Paulo Batista Braga
Juiz de Direito.”13 (Fl. 32)
13 Délbis, Tibúrcio. Homicídio sem cadáver: o caso Denise Lafetá/Tibúrcio Délbis. - Belo Horizonte: Del Rey,
1999, ps. 31/32
153
ANEXOS 4 - Petição 04
Processo n. 890
R: DAP
V: Maria Deise Lafetá Saraiva
Alegações Finais
O réu, DAP, está sendo processado perante esse douto Juízo por ter dado sumiço à sua
amásia, a vítima Maria Denise Lafetá Saraiva, dando fim à sua vida, e ocultando o cadáver da
mesma. Isto em outubro de 1988, nesta cidade de Uberlândia.
Denúncia oferecida em 26/8/91 com base no inquérito policial que a instrui, a qual foi
recebida em 11/11/93 – fl. 2/287.
O réu não foi encontrado nos endereços por ele fornecidos aos autos, pelo que foi citado
por edital, e também não compareceu, ficando, portanto, revel.
Audiência inquirição testemunha em 7/6/93.
(...)
Audiência complementar inquirição testemunhas, em 10/8/93 – 393/404
Veio os autos a carta precatória oriunda de Belo Horizonte, que foi juntada aos autos –
f. 407/430, sendo que já tinha vindo a de Coração de Jesus/MG.
O processo veio-nos, com vista, para as alegações finais.
Este é o sucinto relatório.
Das Provas dos Autos
O acusado presente era casado civilmente com NIP e residiam em Porto Alegre/RS.
Em princípio de 1986, o acusado presente, deixando a sua esposa em Porto Alegre/RS,
passou a residir em Belo Horizonte, para trabalhar na Petrobrás, onde fora concursado.
Em março de 1986, o acusado conheceu a vítima destes autos, a jovem Maria Denise
Lafetá, moça solteira, nova, bonita, natural da cidade do interior do norte de Minas, Coração
de Jesus, e que se achava em Belo Horizonte, na casa de seu tio, Roossevelt Santos Lafetá, para
estudar.
Aí, conquistou Denise e passou a ter com ela um romance, a que pese ser homem casado,
com família constituída, ocultando para Denise este seu estado civil de homem casado.
Posteriormente, o acusado fora transferido de seu emprego na Petrobrás, de Belo
Horizonte para esta cidade de Uberlândia, e em junho de 1987 resolveu trazer Denise, também
para residir com ele nesta cidade, passando então a residir na Rua Alexandre Marquez, 1017
- B. Martins, nesta cidade.
Em maio de 1987, o acusado presente separou-se de sua mulher, com quem era casado
civilmente, NIP, judicialmente, sendo que, em fins de 1986, ela veio a residir em Uberlândia,
na Rua Tapuios, 16, - B. Saraiva, e em 15/12/87 passou a residir em Porto Alegre/RS, com os
seus filhos, retornando a essa cidade de Uberlândia/MG para moradia com os filhos, em
dezembro de 1988.
154
Ocorre que Denise desapareceu em plena convivência marital com o acusado,
misteriosamente, e até hoje não foi encontrada, quer viva, quer morta.
Os indícios apurados na prova carreada aos autos indicam como responsável pelo
sumiço de Denise o ora acusado, que pôs fim em sua vida e ocultou o seu cadáver para lhe
garantir a impunidade.
Dos Indícios
Confiram-se os indícios.
1º) O denunciado era amasiado com Maria Denise e com ela convivia maritalmente, sob
o mesmo teto, e segundo as suas próprias palavras, no dia 8/10/88, ele a levou à rodoviária
local e lá a deixou no saguão da referida rodoviária, dizendo que não sabia o destino dela, não
sabendo para onde ela foi. Inclusive, dizendo que houve briga e discussões entre eles, antes (f.
11/v). Assim, Maria Denise sumiu em plena convivência com o acusado.
2º) Maria Denise tinha a filha de seis meses de idade, àquela época, a quem tinha todo
amor e carinho. Inacreditável que o coração de mãe de Maria Denise tivesse coragem de
abandonar a filha e sumir, sem deixar notícias a ninguém.
3º) O acusado não noticiou o desaparecimento de Maria Denise à Polícia, aos seus
familiares e à sociedade, pelo contrário, procurava sempre ocultar qualquer informação que
pudesse vir a divulgar o desaparecimento, dando as suas versões, que eram contraditórias e
mentirosas.
4º) Maria Denise não levou seus objetos de uso pessoal, suas vestimentas, seus calçados,
seus pertences, etc., haja vista que foram apreendidos como objetos de prova no inquérito
policial (f. 55), os quais foram restituídos à sua família (f. 260).
5º) O acusado chegou dias antes do 'sumiço' da vítima a contratar uma senhora para
servir de babá a filha de seis meses de idade que prestou depoimento testemunhal à f. 42,
informação às f. 115, afirmando que cuidou da criança no período de 4.10.88 a 12.12.88, no
horário de 8:00 às 17:00 horas, e fl. 256. E, agora na fase da instrução do processo, em Juízo,
infelizmente não foi encontrada em que pesem os esforços desprendidos para tanto.
6º) O acusado informou para R, amiga de Maria Denise, que a mesma estava na casa de
seus pais em Coração de Jesus. Daí, R, já desconfiada, telefonou para Coração de Jesus,
mantendo contato com Maria Irene Saraiva de Moura, irmã de Maria Denise, fazendo com que
viesse "à tona" o sumiço de Maria Denise (fl. 20, 29/30, 43, 355/356 e 394/396).
7º) O acusado chegou a dizer a R que Maria Denise não desejava falar com ela; R, então,
não precisava telefonar para Coração de Jesus/MG e inclusive ficou 'enrolando' R, quando
esta lhe pediu o telefone ou o sobrenome de Maria Denise, ou de seus pais para descobrir o
telefone em Coração de Jesus. R conseguiu com seus próprios esforços o número do telefone e
para lá ligou, vindo a descobrir o desaparecimento de Maria Denise.
8º) Após o telefonema entre R e Maria Irene, R efetuou vários telefonemas para o
denunciado na Petrobrás onde trabalhava e não atendia, dizendo sempre a informação de que
não estava, tinha saído, ainda não tinha chegado, etc., inclusive deixava R recado para ele
ligar para ela, mas não telefonou. Daí, R, desconfiada, telefonou para Coração de Jesus,
mantendo contato com a irmã de Maria Denise, Maria Irene Saraiva de Moura, que então veio
a dar publicidade ao sumiço de Maria Denise.
9º) Maria Irene, irmã de Maria Denise, também tentou por diversas vezes falar por
telefone com o acusado, na Petrobrás, onde trabalhava, mas não conseguiu. As informações
eram sempre as mesmas de que não tinha chegado, não estava, tinha saído, etc., inclusive pediu
155
para ele ligar em Coração de Jesus, mas ele não ligou. Até que Irene e seu pai vieram a esta
cidade de Uberlândia, precisamente no dia 17/2/89, e ficaram à porta da Petrobrás à espera
do denunciado, para uma conversa ou explicações deste para com a família da sumida. O
denunciado assustou-se muito quando viu Irene e seu pai ali. Aí, Irene perguntou notícias de
Denise e o denunciado disse que Denise tinha o abandonado em outubro de 1988 e disse que
ia para a casa de seus pais em Coração de Jesus. Ora, o próprio acusado já havia informado
por telefone para Irene, em janeiro de 1989, que Denise estava bem e estava sem comunicar
porque estava sem empregada, mas que iriam entrar de férias naquele mês de janeiro e iam
passar uns dias lá com eles. Irene indagou-lhe sobre essa sua divergência de informação, e,
muito cínico, disse que era engano de Irene, chegando inclusive a perguntar se Denise não
estava lá, fingindo-se chorar naquele momento, como se fossem as 'lágrimas da lenda o
crocodilo.'
10º) Irene, inconformada com as explicações do acusado, aliás contraditórias, cínicas e
mentirosas, resolveu dar queixa à Polícia. Daí iniciaram as investigações a respeito do
misterioso sumiço de Denise. Na Delegacia de Polícia, em audiência a que Irene, seu pai e o
acusado tiveram com o Delegado, Irene pôde sentir que o acusado deu um sumiço em Denise
e armou um plano para que ninguém encontrasse Denise e assim ele ficaria impune, pois disse
para Irene que Denise estava bem; disse para R que Denise não desejava falar com ela; disse
para G que Denise havia mudado para o bairro Umuarama; disse para AM e M da Botique
que Denise e ele, denunciado, tinham mudado para Belo Horizonte; disse ainda para o médico
que atendia a filha AEO, Dr. M d pediatria do hospital Santa Genoveva, que Denise tinha ido
fazer compras, quando ele levou a criança ao hospital.
11º O acusado, em meados de outubro de 1988, esteve em Belo Horizonte, portanto, logo
após o desaparecimento de Denise, tentando vender um telefone de Denise, sendo que pegou
ali na firma locadora os impressos para tanto, e assim que fosse colhida a assinatura de Denise
e reconhecida a sua firma, estava apto a vendê-lo. Entretanto, lá não retornou.
12º) O acusado em dezembro de 1988 voltou a conviver com sua ex-esposa, NIP, com
quem Irene esteve conservando e esta lhe afirmou que sabia do caso amoroso entre o acusado
e a vítima, sendo que o acusado havia lhe prometido que assim que Denise desse à luz a criança,
o acusado pegaria a criança e dava um sumiço em Denise.
13º) Chama-se a atenção a impressão obtida pela autoridade policial, quando das
investigações policiais, durante o desenrolar do inquérito policial, que coaduna com o conjunto
probatório das provas colhidas, que registrou em seu relatório final: 'durante as investigações,
descobrimos que D é o mais frio e cínico mentiroso com quem já trabalhamos...'(f. 283).
14º) Logo após o sumiço de Denise, o acusado mudou de endereço, saindo da Rua
Alexandre Marquez, 1.017 - B. Martins, tirando os móveis e utensílios à noite em seu veículo
e, aos poucos, gerando uma verdadeira confusão de tudo, data vênia para enganar a todos,
inclusive com vários endereços nesta cidade, dando a toda evidência de enganar as autoridades
e garantir-lhe a impunidade; assim constam dos autos cinco endereços declarados por ele, tais
como: Rua Alexandre Marquez, 1.017 - B. Martins; Rua Urucânia, 447 - B. Saraiva; Rua
Tapuios, 16 - B. Saraiva; Rua Jorge Martins Pinto, 956 - B Santa Mônica; e Av. África, 1.441
- B. Tibery, todos nesse curto espaço de tempo do sumiço de Denise.
15º) O acusado D e sua ex-esposa N ajuizaram no foro desta comarca de Uberlândia uma
ação de separação judicial consensual, em maio de 1987, que foi homologada em 27/5/87,
declarando que residiam na Rua Tapuios, 16 - B. Saraiva, nesta cidade. Em junho de 1987, o
156
acusado trouxe Denise par conviver com ele na Rua Alexandre Marquez, 1.017 - B. Martins,
nesta cidade. Em 8/10/88, o acusado deu o sumiço em Denise.
Daí, esses indícios são fortes e coerentes, nada havendo nos autos o que possa contrariá-
los, nenhum contra-indício é apontado de que o acusado não seja o responsável pelo sumiço
de Denise, dando fim à sua vida e ocultando o seu cadáver par garantia de sua impunidade, e
consequentemente liberando-o para a saída extraordinária e arquitetada por ele, como saída
a normalizar a sua situação conjugal com sua ex-esposa N, não lhe importando que a tudo
isso custasse o sacrifício da vida da pobre e infeliz moça do Coração de Jesus, que caiu na
malha de sua consciência má, fria e cínica, que não teve sequer piedade em lhe tirar a vida e
esconder o seu corpo, deixando um vazio na indagação de que a sociedade quer de si uma
resposta: o que ele, acusado, fez com Denise?
Mas, data vênia, dele nunca saíra a verdade, porque a esconde a todo custo, assim como
escondeu o cadáver. Somente a Justiça pode dar esta resposta à sociedade, analisando o crivo
da prova colhida que conduz à certeza de que realmente ele deu um sumiço em Denise, pondo
fim em sua vida e ocultando o seu cadáver, com todo o seu peculiar cinismo e a frieza de um
homem de índole má, conseguindo encobrir a verdade, querendo ficar impune por falta do
cadáver da vítima, que ele misteriosamente deu sumiço, e que só ele pode dizer o que fez com
o corpo de Denise.
Não se pode premiar bandido como herói.
Se o acusado não fosse a julgamento perante o Tribunal do Júri, o que se diga apenas en
passant, como responsável pela morte de Denise, passaria então a ser o herói do crime de
homicídio impune pela sua conduta criminosa premeditada.
Dos Indícios como Prova do Processo Penal
Os indícios são meios hábeis de prova no Direito Processual Penal, consoante o art.
239 do CPP.
O grande mestre Eduardo Espínola Filho, em sua obra Código de Processo Penal
Brasileiro Anotado (Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1942, v (p. 138/151), dá-nos uma grande
lição a respeito da prova indiciária. Diz o mestre, citando Whitaker:
‘... O raciocínio constitui a indução indiciária, como presunção.
Presunção é a consequência tirada, pelo legislador ou pelo Juiz, do
fato certo para o incerto, que depende de prova. E acrescenta: na
presunção, há trabalho de raciocínio guiado pela lógica. De um fato
certo de existência incontestável é tirada, pela relação de causalidade,
a prova do fato incerto. O fato certo chama-se indícios; o raciocínio
que liga o fato certo ao probando é a presunção. A prova indiciária une
o abstrato ao concreto; de um fato conhecido a um desconhecido. A
premissa menor, concreta, certa e provada, baseando-se nos dados da
experiência ou do bom senso comum, leva à premissa maior abstrata,
como conclusão lógica e segura.’
Sustenta, com absoluta segurança o Ministro Bento de Faria (Código de Processo
Penal, v. 1, 1942, p. 309) que ‘se o espírito humano, na maioria das vezes, não atinge a verdade
senão por argumentos probatórios indiretos, para evidenciar a circunstância ignorada com o
nexo da causalidade, ou de identidade específica (Sabatini Malatesta), não poderia, pois, ser
157
desprezada, nos Juízos criminais, a prova indiciária, desde que cada vez mais a inteligência, a
prudência e a cautela dos criminosos dificultam a prova direta.’
Também o professor Antônio José Miguel Feu Rosa, da Universidade Federal do
Espírito Santo e Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do mesmo Estado, em sua
recente obra: Processo Penal (Nova Letra, 1992, v. II, p. 253/256), no seu estilo moderno,
ajustado à realidade dos dias atuais, leciona que: ‘... a verdadeira prova é a que se harmoniza
com o conjunto, levando o Juiz ao seu convencimento...’.
Os nossos tribunais têm decidido de forma constante e reiterada de que a prova
indiciária é meio hábil e seguro à condenação do acusado, desde que harmônica e coerente com
toda a prova colhida.
Neste sentido:
“Prova indiciária – A prova indiciária é admissível quando os
indícios são coerentes e convergentes para um ponto comum,
podendo fundamentar o despacho de pronúncia.’
(TJ-MG, JM 111/287) Mais
ainda:
‘Prova indiciária – Condenação – Os indícios autorizam decreto
condenatório quando por eles se alcança o máximo de habilidade
de haver o agente cometido o crime ou de ter dele participado.’
(TJ-SC, In COAD 32.437)
Ora, MM Juiz, em resumo é fato conhecido, certo e provado de que Maria Denise
sumiu em plena convivência marital com o acusado. Pelas circunstâncias indiciárias colhidas
e provadas nos autos, a conclusão lógica e certa é de que o acusado deu sumiço em Denise,
pondo fim em sua vida e ocultando o seu cadáver para garantir a sua impunidade, esta é a
grande verdade que se extrai dos autos.
Da falta de prova da materialidade do homicídio
É bem verdade que o art. 158 do CPP exige o exame de corpo de delito, quanto a
infração deixar vestígios.
Entretanto, em inteligência com o art. 167 do mesmo CPP, diz este que ‘não sendo
possível o exame do corpo de delito, por haverem desaparecido os vestígios, a prova
testemunhal poderá suprir-lhe a falta’.
Ora, MM Juiz exigir, in casu, a prova material do corpo de delito do cadáver da vítima
seria exigir a prova impossível, a ser comprovada pela acusação, pois o acusado ocultou o
cadáver da vítima, não deixando vestígios onde pudesse a Polícia encontra-lo, para submetê-lo
a exame de necropsia.
Ora, se o acusado eliminou a vítima e ocultou o seu cadáver, de modo que este não foi
encontrado, data vênia, é porque planejou o crime com toda astúcia e com todos os caprichos
da ‘pista’ a um caminho para encontrar o cadáver e aí fazer a perícia de autópsia,
consequentemente, garantindo-lhe a impunidade por falta da prova material do cadáver da
vítima.
Ora, estamos diante de um crime de homicídio em que o réu arquitetou o crime,
prevenindo-se para que não fosse ele descoberto.
Ora, se in casu, fosse exigira a materialidade do crime, em que o próprio réu planejou
158
o crime para não deixar condições desta prova ser feita, nós estaríamos premiando o sucesso
criminoso do réu, a sua astúcia criminosa, transformando-o de criminoso a herói do crime.
Só a ele cabe dizer onde está o cadáver da vítima. Mas ele não diz porque ele
propositadamente escondeu o cadáver da vítima para esconder também a sua impunidade.
Sem dúvida que teve uma grande inteligência em arquitetar tudo como arquitetou, de
modo que não fossem descobertos o crime e o cadáver.
O crime tornou-se impossível encobri-lo, pois, embora não desse queixa à Polícia do
sumiço de Denise, escondendo o fato, os vizinhos e os parentes da vítima deram pela falta dela
e aí começaram a indagar do réu a respeito dela, e ele com suas respostas contraditórias, cínicas
e mentirosas, facilmente chegou-se à conclusão de que ele, réu, dera um sumiço em Denise,
pelo que surgiram as investigações policiais e, consequentemente, este processo.
Mas, o cadáver ele escondeu dos familiares da vítima, da sociedade, da Polícia e da
Justiça, para esconder com ele a verdade real da história do crime.
Ora, se um agente comete um crime de homicídio e não esconde o cadáver da vítima,
a lei naturalmente exige a sua punição. Com muito mais razão e rigor há de ser punido o agente
que comete o homicídio ou dele participa e esconde o cadáver para não ser punido.
O primeiro, talvez por um momento de ímpeto que gerou violência, quer da vítima,
quer do agente, quer de ambos, o certo é que o fato aconteceu. E aí pudesse até caber, como
prevê a lei uma justificativa de conduta, como é o caso das excludentes da ilicitude (legítima
defesa, etc.).
Mas o agente que friamente, na calada da tomada de sua consciência deliberada para o
mal, premeditou dar um sumiço na vítima e esconder o seu cadáver para que ninguém
descobrisse a sua conduta criminosa, ficando então impune, não tem justificativa de sua
conduta, porque se a tivesse não teria escondido o corpo da vítima para tentar a sua impunidade.
Esta conduta, como é o caso destes autos, o que cremos ser um caso raro na história do
crime de homicídio, em que o réu dá um sumiço na vítima, sem que ninguém consiga descobrir
o que ele fez com o corpo dela, revela aos olhos da sociedade uma reprovação muito maior do
que o crime em que o cadáver foi encontrado e periciado.
Sem dúvida, revela o agente que isto fez ser um elemento de alta periculosidade, que
a sociedade pede que ele seja punido a todo rigor da lei, porque não teve piedade com sua
amásia, eliminando a sua vida e escondendo o seu cadáver e, com isso, ficaria tranquilamente
convivendo com sua primeira mulher, solucionando o problema que ele próprio criou com o
romance que teve com Denise, sendo um homem casado, com família constituída.
Daí, o exame de corpo de delito há de ser substituído pela prova testemunhal e
indiciária constante dos autos, dada a impossibilidade de fazê-lo pela ocultação do cadáver pelo
réu.
Neste sentido:
‘Perícia – Exame de corpo de delito – Impossibilidade de
realização ante o desaparecimento dos vestígios – Possibilidade,
em linha supletiva, de comprovação do crime investigado por
prova testemunhal. Aplicação do art. 167 do CPP.’ (Tacrim-SP,
RT 673/336) Mais ainda:
“Perícia - Exame de corpo de delito – Suprimento pela
comprovação testemunhal somente quando desaparecidos os
vestígios – Inteligência do art. 167 do CPP.’ (TJ-SP, RT
684/307)
(...)
159
Do pedido final
Dito tudo isso, este representante do Ministério Público pede e espera seja o ora réu
pronunciado com incurso nas penas do art. 121, § 2º, inciso II (motivo fútil), mais art. 211 caput,
ambos do Código Penal, em concurso material de delitos, nos termos do art. 69 do mesmo
códex, e via de consequência seja o mesmo submetido a julgamento perante o Tribunal do Júri
desta comarca, como manda a lei.14
JUSTIÇA !!!
Uberlândia/MG, 4/10/93.
O Promotor de Justiça,
Tibúrcio Délbis
14 Délbis, Tibúrcio. Homicídio sem cadáver: o caso Denise Lafetá/Tibúrcio Délbis. - Belo Horizonte: Del Rey,
1999, ps. 34/47
161
ANEXOS 5 - Petição 05
Apelação Criminal n.0.116.258-5.
Ementa: Júri - Decisão manifestamente contrária à prova dos autos - Caso concreto - Provas -
Decisão manifestamente contrária à prova dos autos é aquela escandalosa, arbitrária e sem nenhum
liame lógico com as demais provas do processo - Se a decisão popular tem respaldo em uma das versões
existentes, não pode o órgão revisor cassá-la, sob pena de negar vigência ao princípio constitucional
da soberania do Júri - Quem lida com o direito corre sempre o risco do erro judiciário; prevendo isso
é que a própria lei instrumental criou a ação rescisória e a revisão criminal - Recurso conhecido e
improvido. (Grifamos)
Vistos etc., acorda, em Turma, a Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de
Minas Gerais, incorporando neste o relatório de fl., na conformidade de ata dos julgamentos e das notas
taquigráficas, à unanimidade de votos, em rejeitar preliminar, negar provimento.
Belo Horizonte, 26 de maio de 1998.
Des. G. B. - Relator.
Notas taquigráficas O Sr. Des. G. B. (Relator):
Voto.
Na comarca de Uberlândia, DAP, já qualificado, foi denunciado e processado como incurso nas
sanções do art. 121, § 2º, inciso II e art. 211, todos do Código Penal, acusado de ter assassinado e dado
sumiço definitivo ao corpo de sua amásia Maria Denise Lafetá Saraiva. Os fatos, segundo a denúncia,
teriam ocorrido na primeira quinzena de outubro de 1988.
Após regular instrução criminal, foi o acusado impronunciado à consideração de que não
restaria provada, a contento, a materialidade do delito. (Grifamos)
Esta Câmara, no julgamento do Recurso em Sentido Estrito n. 26.111-5, deu provimento ao
recurso ministerial e pronunciou o réu, nos termos da capitulação inaugural.
Levado a julgamento por seus pares, viu-se o réu condenado, por maioria simples (5x2), à pena
de 12 anos de reclusão pelo homicídio qualificado e mais um ano de reclusão pela ocultação de cadáver.
Irresignada, apela a defesa com fulcro nas letras a e d do inciso III, do art. 593, do Código de
Processo Penal. Nas razões de recurso não levanta preliminar de nulidade alguma, pedindo apenas a
cassação do veredicto popular por manifestamente contrário à prova dos autos.
O recurso foi contra-arrazoado, tendo a ilustrada Procuradoria de Justiça opinado pelo seu
conhecimento e improvimento.
Recurso próprio, tempestivamente manifestado, com processamento e remessa regulares.
É, em síntese, o relatório.
Preliminarmente. Conheço do recurso porque presente todos os pressupostos do juízo de sua admissibilidade.
Desacolho a preliminar de inexistência do recurso, levantada pelo recorrido quando de suas
contrarrazões. Houve substabelecimento válido a advogado regularmente inscrito na OAB. Ainda que
assim não fosse, não seria nunca o caso de dar o recurso por inexistente. Quando muito, poderia se
baixar o processo em diligência para que o réu contratasse novo defensor que pudesse ratificar o
recurso; isso apenas demandaria desperdício de tempo e de prestação jurisdicional.
Conheço.
Embora o recorrente tenha fulcrado sua irresignação também na letra a, do inciso III, do art.
593, do Código de Processo Penal, ele não explicou qualquer preliminar de nulidade. Verificando o
aspecto formal do julgamento, não consegui divisar qualquer irregularidade de ordem pública que
pudesse ser decretada.
Mérito
162
No seu aspecto fático, a questão é realmente complexa. Isso ocorre sempre que o corpo da vítima
desaparece sem deixar vestígios. Fica sempre a dúvida: será que a vítima realmente morreu? Será que
ela foi assassinada e o cadáver destruído ou oculto? Será que a vítima apenas escafedeu-se sem deixar
e sem dar notícias? E se algum dia ela aparecer viva? !. (Grifamos)
No aspecto técnico-jurídico, entretanto, a questão é singela. É da jurisprudência uníssona dos
tribunais do país, e da doutrina unânime, que as decisões do Júri só podem ser cassada pelo órgão
revisor quando elas são totalmente bizarras, escandalosas, arbitrárias e sem nenhum nexo lógico com
as provas coletadas no processo.
Nesse sentido, as lições de Heleno Cláudio Fragoso - Jurisprudência criminal, p. 378, n. 320 -,
de Júlio Fabbrini Mirabete - Processo Penal, p. 612/613 -, de Damásio Evangelista de Jesus - Código
de Processo Penal anotado, 9. ed., p. 383, 1991 -, de Frederico Marques - Tratado de direito processual
penal, v. IV, p. 245 -, de Espínola Filho - Código de Processo Penal brasileiro - Anotado, v. IV, n. 1.238-
, etc.
Havendo duas ou mais versões, todas razoáveis, em confronto com as provas, pode o Tribunal
do Júri optar pela que lhe pareça mais verossímil ou a que melhor ajuste ao caso concreto, sem vez
para que o órgão revisor possa cassar a decisão por manifestamente contrária à prova dos autos
(STF, HC n.º 70.129-9-RJ, Rel. Min. Paulo Brossard, DJU de 16/10/89, p. 15.859).
No caso concreto, qualquer que fosse a decisão dos jurados, não havia como pudesse este
Tribunal cassá-la por manifestamente contrária à prova dos autos, posto que existem provam num e
noutro sentido. (Grifo nosso, enfatizando dando realce à tese empreendida, eis que o melhor argumento
tende a prevalecer quando há provas, doutrina e jurisprudência para ambos os lados).
Como é de costume, nesses casos a defesa sempre se aferra ao famoso Caso dos Irmãos Naves,
de Araguari, o mais famoso erro judiciário do país. É um risco que todos nós, que lidamos com a área
do direito, somos obrigados a correr. Toda atividade humana é falível como o próprio homem. Na
aplicação da lei não é diferente, mesmo porque não há nunca Justiça humana absoluta, em face da
notória e incontornável falibilidade do homem - quia humanum errar est. (Este último parágrafo
externa de forma cabal o dilema questionado na presente pesquisa, uma vez que as versões dos fatos,
em inúmeros casos levados às barras dos tribunais, tem argumentos antagônicos e verossímeis, daí o
porquê de prevalecer o mais convincente, ainda que não seja o mais justo ao caso concreto, daí o porquê
da enunciação crucial do Relator da petição em comento: quia humanum errar est, ou seja, porque
errar é humano).
No caso concreto, entretanto, a única maneira possível de se constatar um possível erro judiciário
seria o aparecimento da vítima, viva. Afora tal caso, há de prevalecer a decisão do Tribunal Popular.
Se, entretanto, os ventos do destino soprarem para o rumo diverso, isto é, se algum dia Maria Denise
reaparecer viva (talvez por pessimismo, creio que isto jamais acontecerá), duas situações novas
surgirão, uma a compensar a outra. O erro judicial ficará patenteado, mas, em compensação, uma
vida humana (no caso de Maria Denise) ressurgirá das cinzas. (Figura de retórica) Deus queira que
isso aconteça ... para o bem de todos. Do réu, porque se livrará de vez da pena imposta pelo Júri de
Uberlândia e terá direito a indenização por parte do Estado. Dos jurados, porque o destino terá evitado
persistir o erro coletivo por eles praticado. Dos juízes togados, porque o direito imperou, ainda que
tardiamente.
De qualquer sorte, no caso concreto, não há como cassar a decisão do júri. Ela não é
manifestamente contrária à prova dos autos, pois se alicerça na maioria lógica do conjunto probatório.
Assim, e acolhendo o parecer ministerial, nego provimento ao recurso.
Custas, pelo réu.
Participaram do julgamento os desembargadores E S e S R.
Súmula: Rejeitaram preliminar, negaram provimento".
O referido acórdão transitou livremente em julgado (f. 887).
O processo chegou à Comarca de origem.
163
O réu, DAP, surpreendentemente apresentou-se para cumprir a sua pena de prisão de 13 anos de
reclusão, tendo sido recolhido à Cadeia Pública da Comarca de Uberlândia, e assim deu início à
execução da pena, inicialmente em regime fechado.15 (Sem grifo no original)
15 Délbis, Tibúrcio. Homicídio sem cadáver: o caso Denise Lafetá/Tibúrcio Délbis. - Belo Horizonte: Del Rey,
1999, ps. 108/112