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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS PAULO Programa de Pós-Graduação em Letras Paulo Afonso Guimarães de Lima A ARGUMENTAÇÃO E SEUS INFLUXOS PERSUASIVOS NO GÊNERO DO DISCURSO PETIÇÃO: uma análise enunciativo-discursiva Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Linguística e Língua Portuguesa. Orientadora: Professora. Drª. Maria Ângela Paulino Teixeira Lopes Belo Horizonte 2016

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS … · sentido, trabalhamos o gênero petição por ser ele o meio de se externar as razões favoráveis ao ponto de vista dos enunciadores

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS PAULO

Programa de Pós-Graduação em Letras

Paulo Afonso Guimarães de Lima

A ARGUMENTAÇÃO E SEUS INFLUXOS PERSUASIVOS NO GÊNERO DO

DISCURSO PETIÇÃO: uma análise enunciativo-discursiva

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Letras da Pontifícia Universidade

Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para

obtenção do título de Mestre em Linguística e Língua

Portuguesa.

Orientadora: Professora. Drª. Maria Ângela Paulino

Teixeira Lopes

Belo Horizonte

2016

Paulo Afonso Guimarães de Lima

A ARGUMENTAÇÃO E SEUS INFLUXOS PERSUASIVOS NO GÊNERO DO

DISCURSO PETIÇÃO: uma análise enunciativo-discursiva

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Letras da Pontifícia Universidade

Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para

obtenção do título de Mestre em Linguística e Língua

Portuguesa.

Belo Horizonte

2016

FICHA CATALOGRÁFICA

Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Lima, Paulo Afonso Guimarães de

L732a Argumentação e seus influxos persuasivos no gênero do discurso petição:

uma análise enunciativo-discursiva / Paulo Afonso Guimarães de Lima. Belo

Horizonte, 2016.

163 f.: il.

Orientadora: Maria Ângela Paulino Teixeira Lopes

Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Programa de Pós-Graduação em Letras.

1. Enunciação (Línguistica). 2. Alteridade. 3. Gêneros literários. 4. Análise do

discurso literário. 5. Petição inicial. 6. Argumentação jurídica. I. Lopes, Maria

Ângela Paulino Teixeira. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Programa de Pós-Graduação em Letras. III. Título.

CDU: 800.852

Paulo Afonso Guimarães de Lima

A ARGUMENTAÇÃO E SEUS INFLUXOS PERSUASIVOS NO GÊNERO DE

DISCURSO PETIÇÃO: uma análise enunciativo-discursiva

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Letras da Pontifícia Universidade

Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para

obtenção do título de Mestre em Linguística e Língua

Portuguesa, contando com o benefício de bolsa

concedida pela CAPES -, como requisito parcial para

obtenção do título de Mestre em Linguística e Língua

Portuguesa.

_________________________________________________________________

Profa. Dra. Maria Ângela Paulino Teixeira Lopes (Orientadora) – PUC Minas

_________________________________________________________________

Prof. Dr. Luiz Augusto Lima de Ávila – PUC Minas

_________________________________________________________________

Prof. Hugo Mari – PUC Minas

Belo Horizonte, 12 de dezembro de 2016.

Dedico este trabalho a Ana Cristina, minha incansável

incentivadora, e a Jéssica Paula, porque nela me inspiro para

sempre vislumbrar novos horizontes: amores da minha vida –

esposa e filha.

AGRADECIMENTOS

À Profa. Maria Ângela Paulino Teixeira Lopes, porque foi dedicada orientadora,

sempre pronta a nos socorrer nas mais diversas situações, contribuindo de forma singular com

seus conhecimentos inexoráveis na área da Análise do Discurso e na Linguística como um todo.

Agradeço também ao Prof. Hugo Mari, que, para minha satisfação, compôs a Banca

Examinadora em minha Defesa de Dissertação, vindo coroar e abrilhantar essa minha vitória,

haja vista o reconhecimento de todos quanto a sua competência e importância para o meio

acadêmico no que tange à Linguística em todos os seus segmentos – semântica, análise do

discurso, filosofia da linguagem, atos de fala, filologia, hermenêutica, exegese e ciências afins.

Agradeço inclusive aos demais professores que atuaram no decorrer do Mestrado, pois

foram eles importantes na consecução dos resultados auferidos ao longo dessa empreitada.

Agradecimento especial a minha esposa Ana Cristina, a minha filha Jéssica Paula, a

minha mãe, Maria Guimarães, e meus irmãos, pois todos são sustentáculos de minha formação

pessoal, sem nos olvidar de agradecer a todos que torceram por mim nessa empreitada, até

porque contribuíram de alguma forma nessa caminhada, e in memoriam a meu pai, Vicente

Tomaz de Lima, sempre presente em meus pensamentos nas grandes vitórias por vários

exemplos de vida.

À CAPES por ter subsidiado o Curso com a concessão da Bolsa integral auferida em

processo seletivo consoante Edital Bolsa/Mestrado/PUC-Minas/2014.

RESUMO

Pautando-se no quadro enunciativo-discursivo atinente à Análise do Discurso, a presente

pesquisa tem por objetivo demonstrar que as estratégias argumentativas engendradas pelas

partes envolvidas em julgamentos no âmbito do Tribunal do Júri visam influenciar os

enunciatários com poder de voto a aderir à tese empreendida no discurso, seja em determinado

norte, seja noutro, ainda que ela não corresponda em sua essência à realidade dos fatos. Nesse

sentido, trabalhamos o gênero petição por ser ele o meio de se externar as razões favoráveis ao

ponto de vista dos enunciadores – Promotor de Justiça, Réu, Juiz, autoridades em geral.

Optamos por prestigiar o júri sobretudo por ser ele um instituto jurídico que tem como ator

principal o cidadão comum, atuando como representante da sociedade, ainda que desprovido de

capacitação técnico-jurídica stricto sensu, contudo imbuído de sensibilidade capaz de avaliar

os fatos a seu juízo sem a interferência direta da doutrina ou jurisprudências predominantes nos

tribunais. Dessa forma, o objeto da pesquisa centra-se na construção enunciativa à vista do

modelo adotado pelo direito brasileiro em julgamentos de crimes dolosos contra a vida, eis que

são decisões peremptórias, sem possibilidade de recursos a instâncias superiores quanto ao

mérito, o que torna vulnerável a decisão, pois sempre haverá dúvidas quanto ao resultado se

houvesse a possibilidade de se rediscutir o caso em outras instâncias como acontece nas demais

causas, ainda que esse novo julgamento também fosse realizado por jurados leigos, com o

mesmo escopo e propósito do instituto Júri em primeira instância. Para melhor compreensão de

nossa proposta, trouxemos à baila um dos mais emblemáticos julgamentos ocorridos em Minas

Gerais, cujas principais petições deram ensejo ao livro Homicídio sem Cadáver – o caso Denise

Lafetá, de autoria do então Promotor de Justiça Tibúrcio Délbis. O julgamento em questão teve

grande repercussão na mídia à época, tendo em vista a dificuldade de obtenção de provas quanto

aos fatos, pois o corpo da vítima nunca foi encontrado. Essa circunstância por si demonstra a

dificuldade por parte da acusação, principalmente à vista de dúvidas que pairam em situações

como essa, mormente ao se levar em conta o brocardo jurídico do in dubio pro reu. Esses e

outros casos demandam discussão sobre o sistema do Júri, pois o que pesa tanto para

condenação quanto absolvição, em grande medida, são as estratégias argumentativas

empreendidas pelos enunciadores. Nessa perspectiva, o presente estudo centra-se no imaginário

sócio-discursivo, na construção identitária dos enunciadores e enunciatários – no ethos e

pathos, bem como na responsividade atinente à interação verbal, inclusive sob a ótica da

legislação vigente que, dadas as circunstâncias, carece de ser repensada, visando ao

aperfeiçoamento do sistema, quiçá implantando o duplo grau de jurisdição no âmbito do tribunal

do júri, como de resto acontece em todos os demais julgamentos na esfera judicial.

Palavras-chave: Petição. Enunciação. Alteridade. Dialogismo. Polifonia. Interação verbal.

Gênero de discurso.

ABSTRACT

The aim of this research is to demonstrate that the argumentative strategies engendered by the

parties involved in judgments in the scope of the Jury's Court are intended to influence the

enunciators with voting power to adhere to the thesis undertaken In discourse, whether in a

certain north or in another, although it does not correspond in its essence to the reality of the

facts. In this sense, we work the genre petition because it is the means to express the favorable

reasons to the point of view of the enunciators - Promoter of Justice, Defendant, Judge,

authorities in general. We chose to prestige the jury, mainly because it is a legal institute that

has as main actor the common citizen, acting as representative of society, although lacking

technical and legal training stricto sensu, yet imbued with sensitivity capable of evaluating the

facts in their own judgment Without the direct interference of doctrine or jurisprudence

prevalent in the courts. In this way, the object of the research focuses on the enunciative

construction in view of the model adopted by Brazilian law in judgments of intentional crimes

against life, since they are peremptory decisions, with no possibility of appeals to superior

instances regarding merit, which makes Vulnerable to the decision, because there will always

be doubts as to the outcome if there is a possibility of rediscussing the case in other instances

as in other cases, even if this new judgment was also carried out by lay jurors, with the same

scope and purpose of the Jury In the first instance. For a better understanding of our proposal,

we brought to the fore one of the most emblematic trials in Minas Gerais, whose main petitions

gave rise to the book Homicide without Cadaver - the Denise Lafetá case, by the then Attorney

General Tibúrcio Delélbis. The trial in question had great repercussion in the media at the time,

given the difficulty of obtaining evidence regarding the facts, since the body of the victim was

never found. This circumstance in itself demonstrates the difficulty on the part of the

prosecution, especially in view of doubts that arise in situations such as this, especially when

taking into account the legal signature of the dubio pro reu. These and other cases demand

discussion about the Jury system, since what weighs both for conviction and absolution, to a

large extent, are the argumentative strategies undertaken by the enunciators. In this perspective,

the present study focuses on the socio-discursive imaginary, on the identity construction of the

enunciators and enunciatarios - in the ethos and pathos, as well as on the responsiveness related

to the verbal interaction, even from the perspective of the current legislation that, given the

circumstances, It needs to be rethought in order to improve the system, perhaps by introducing

the double degree of jurisdiction within the jury, as is the case in all other judgments in the

judicial sphere.

Keywords: Petition. Enunciation. Otherness. Dialogism. Polyphony. Verbal interaction. Genre

of speech.

LISTA DE QUADROS

QUADRO 1 - Operadores Argumentativos – (Petição 04), (Anexo 04): ............................... 123

QUADRO 2 - Modalizadores discursivos – (Petição 04), (Anexo 04): ................................. 125

QUADRO 3 - Operadores argumentativos – (Petição 01), (Anexo 01) ................................. 128

QUADRO 4 - Modalizadores discursivos – (Petição 01), (Anexo 01): ................................. 130

LISTA DE SIGLAS

AD Análise do Discurso

CF/88 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988

CPC Código de Processo Civil

CPP Código de Processo Penal

EUc Sujeito comunicante

EUe Eu enunciador

MPE Ministério Público Estadual

OAB Ordem dos Advogados do Brasil

STF Supremo Tribunal Federal

STJ Superior Tribunal de Justiça

TJMG Tribunal de Justiça de Minas Gerais

TUd Sujeito destinatário

TUi Sujeito interpretante

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 23

2 DELIMITAÇÕES CONCEITUAIS, O CORPUS E A METODOLOGIA .................... 29

2.1 O Gênero de discurso Petição e outros gêneros correlatos ........................................... 29

2.2 A relação dialógica e a interação verbal no gênero do discurso petição ..................... 35

2.3 Abordagem metodológica ................................................................................................ 42

2.3.1 O Corpus selecionado e categoria de análise ................................................................. 42

2. 3.2 O problema e a hipótese ................................................................................................. 46

2.3.3 Objetivos .......................................................................................................................... 47

2.3.3.1 Objetivo geral: .............................................................................................................. 47

2.3.3.2 Objetivos específicos: ................................................................................................... 48

3 REFERENCIAIS TEÓRICOS ........................................................................................... 51

3.1 Relação dialógica, concepção identitária e relação de poder no discurso ................... 51

3.2 Aspectos discursivos e ideológicos no controle social .................................................... 62

3.3 A enunciação discursiva e dialógica no gênero petição ................................................. 73

3.4 Correlação entre aspectos linguísticos e jurídicos da pesquisa .................................... 75

3.5 A alteridade e a polifonia intrínsecas na enunciação discursiva .................................. 80

3.6 Semiotização ideológica no sistema jurídico .................................................................. 84

3.7 Os influxos da argumentação mudando a natureza das coisas .................................... 95

3.8 Aspectos inerentes à identidade social e discursiva ....................................................... 98

4 DA ANÁLISE DO MATERIAL SELECIONADO ........................................................ 103

4.1 Questões polêmicas acerca de julgamentos no âmbito do Tribunal do Júri ............. 103

4.2 Das Petições e seus aspectos linguístico-discursivos .................................................... 110

4.3 Operadores argumentativos, modalizadores e recursos linguísticos persuasivos .... 122

5 CONCLUSÃO ................................................................................................................... 135

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 141

ANEXOS 1 - Petição 01 ...................................................................................................... 145

ANEXOS 2 - Petição 02 ...................................................................................................... 149

ANEXOS 3 - Petição 03 ...................................................................................................... 151

ANEXOS 4 - Petição 04 ...................................................................................................... 153

ANEXOS 5 - Petição 05 ...................................................................................................... 161

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1 INTRODUÇÃO

Este trabalho está inserido na perspectiva da enunciação discursiva, tendo como

propósito questionar os julgamentos no âmbito do Tribunal do Júri, cuja competência

institucional restringe-se à prática de crimes dolosos contra a vida.

Tendo em vista inúmeros julgamentos com repercussão na mídia, quiçá até mesmo

pelo fenômeno midiático relacionado a programas televisivos sensacionalistas envolvendo a

violência, chama-nos a atenção uma questão relevante voltada para o funcionamento júri, bem

como a influência da argumentação nas decisões proferidas a partir dos votos dos membros que

compõem o Conselho de Sentença, na perspectiva da Análise do Discurso - AD.

Optamos por este tipo de julgamento exatamente por ser ele proveniente do ponto de

vista de jurados sem formação jurídica, portanto o que tem repercussão na análise são as

enunciações a partir dos modos de dizer, bem assim as interpretações individuais acerca dos

discursos proferidos por testemunhas, policiais, advogados, assistentes de acusação, promotores

de justiça, juízes que presidem a sessão, levando-se em conta a concepção de justiça que norteia

o julgamento à vista dos discursos proferidos por todos quantos tenham relação com os fatos e

suas versões.

Considerando que a argumentação das partes é fator preponderante para persuadir o

jurado a proferir seu voto em consonância com o discurso empreendido, e que as técnicas de

oratórias visam ao convencimento das pessoas a mudarem ou não sua opinião, faz-se imperioso

repensar o sistema dando ao réu condenado ou ao próprio Ministério Público Estadual – MPE

a oportunidade de novo julgamento em grau de recurso rediscutindo o mérito, como de resto é

o que ocorre nas demais ações.

Justifica essa preocupação o fato de que não se pode afiançar que uma única chance de

se provar a inocência ou a culpabilidade possa não ser suficiente, carecendo, pois, de nova

oportunidade de apreciação do mérito. Ora, se das decisões de turmas recursais nas demais áreas

do direito cabem recursos a serem apreciados por outros colegiados de instâncias superiores,

qual a razão de não haver essa possibilidade em relação ao júri popular?

Por conseguinte, o presente estudo tem por objetivo avaliar o discurso em algumas das

petições do processo envolvendo o julgamento do acusado pelo assassinato de Denise Lafetá,

que por fim culminou na condenação do réu, ressaltando que as estratégias utilizadas pelas

partes são comuns em processos dessa natureza. Nesse sentido, pautamos os estudos na

denúncia do promotor de justiça, na petição do delegado responsável pelo inquérito policial, no

recurso interposto pelo promotor em face da impronúncia do réu, no acórdão do Tribunal de

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Justiça e, finalmente, nas considerações tecidas pelo Relator quando do julgamento do recurso

impetrado pelo condenado.

Assim, o objetivo da pesquisa centra-se na hipótese de que a enunciação discursiva

pode, em determinadas situações, mudar a natureza das coisas, pois um argumento bem

engendrado consegue persuadir quem esteja em dúvida quanto aos fatos e suas versões mesmo

quando a parte não tenha razão, assim como também pode ocorrer em sentido inverso, na

medida em que uma construção discursiva desidiosa, pouco convicta, também pode acabar por

tornar quem tivesse razão numa demanda judicial a perder adeptos à tese defendida, por mais

que ela se coadunasse com a verdade.

Essa lógica, tanto num norte quanto em outro, ou seja, tanto para favorecer o autor ou

o réu, conforme o caso, por si já daria ensejo à necessidade de se repensar o ordenamento

jurídico no âmbito do tribunal do júri, tendo em vista que nas demais causas, cíveis ou penais,

aquele que tenha sido vencido em sua tese terá outras instâncias para reavaliar a decisão

recorrida, o que não acontece no júri, pois uma decisão ali tomada por maioria de votos será

peremptória, sem direito a recurso, mesmo quando o resultado seja motivado pela superação de

uma tese argumentativa que não se coadune com a verdade real – locução técnica no âmbito do

direito penal -, em detrimento do que efetivamente fosse o justo e razoável.

A incongruência em questão confirma o problema vislumbrado nessa pesquisa, sendo

que a hipótese plausível a sanar essa falha estaria em alterar o sistema processual penal vigente,

permitindo recursos em relação à decisão dos jurados, o que, aliás, iria ao encontro do que

preconiza a própria Constituição da República – CF/88, eis que o duplo grau de jurisdição é

uma garantia processual, a despeito de não ocorrer no âmbito do tribunal do júri quanto aos

crimes dolosos contra a vida.

O que nos motivou a adentrar nessa seara foi a percepção de que o sistema em questão

se nos configura injusto, uma vez que não é dado às partes, ou seja, ao Ministério Público como

representante da sociedade e ao réu, o direito de recorrer quanto ao mérito das decisões tomadas

por maioria dos jurados, o que pode perpetuar uma injustiça, haja vista que os votos são por

óbvio oriundos de interpretações discursivas diversas, ora em determinado viés, ora noutro, o

que por si daria ensejo à recorribilidade da sentença como acontece nos demais julgamentos.

Essas ponderações serão demonstradas pautando-se na perspectiva discursiva

externada no gênero textual petição, considerando as estratégias linguístico-discursivas

constitutivas da argumentação, o pathos e o ethos dos agentes, à vista da construção das imagens

dos interlocutores projetadas nas enunciações, sobretudo em relação ao vozeamento, polifonia,

dialogismo, interação verbal e alteridade, sem nos olvidar dos aspectos atinentes à ideologia e

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produção de sentidos, construindo significados de natureza política.

Buscamos respaldar nossa pesquisa em Bakhtin/Volochinov (1990), Foucault

(1972), Pêcheux (2009), Bronckart (1999) dentre outros, até porque os estudos relacionados à

prática discursiva apresentam vieses de várias vertentes no âmbito da argumentação jurídica,

haja vista a construção identitária visando à adesão do enunciatário, a dialética engendrada em

pontos de vista antagônicos, vislumbrando a interpretação resultante da interseção dos eixos

sintagmáticos e paradigmáticos, remetendo-nos outros teóricos da análise discursiva, como

Amossy (2008), Koch (2006), Ducrot (1987), que também nos respaldaram neste trabalho.

A título de ilustração, a pesquisa em tela centrou-se em julgamento emblemático que,

pela peculiaridade, teve grande repercussão na mídia à época da divulgação dos fatos, inclusive

dando ensejo à citada obra de Tibúrcio Délbis, que, a propósito, atuou no caso como Promotor

de Justiça e, posteriormente, como advogado do assistente de acusação. Tal profissional atuou

com afinco e determinação no julgamento do acusado pelo assassinato da jovem Denise Lafetá,

crime acontecido na cidade de Uberlândia no fim da década de oitenta. Poderíamos citar outros

inúmeros casos, mas por questões didáticas o corpus está centrado nas petições trazidas à

colação, buscando identificar aspectos ideológicos nos discursos empreendidos.

Assim, a situação em questão é mera referência, pois há inúmeros julgamentos

similares com resultados distintos, ora pela absolvição, ora pela condenação do réu, portanto

nos pautamos especificamente nas petições discutidas no capítulo 04, embora pudéssemos nos

reportar a outras. Frisa-se que o gênero textual petição foi escolhido porque nele se externam

os argumentos empreendidos pelas partes, dando ensejo inclusive ao contraditório e à ampla

defesa, o que nos remete ao dialogismo pela tensão entre pontos de vista distintos.

O gênero petição foi considerado na pesquisa em sentido amplo, ou seja, as peças

relativas ao corpus, ainda que em sentido estrito sejam classificadas como contestações,

recursos, inquéritos, neste estudo foram todas tratadas como pertencentes ao gênero discursivo

petição por não estarmos enfatizando aspectos eminentemente técnicos no âmbito jurídico e sim

relacionados ao âmbito linguístico, ressaltando que o gênero petição ilustra de forma cabal o

conceito bakhtiniano segundo o qual todo gênero pertence a uma esfera de atividade humana,

sendo, por isso, relativamente estável, na medida em que se sedimenta ganhando autonomia em

relação a outros gêneros semelhantes.

Para galgarmos nossos objetivos, estruturamos a pesquisa em duas partes distintas, a

primeira voltada para as noções teóricas atinentes tanto à área jurídica quanto linguística, esta

voltada para a prática linguageira inerente às estratégias discursivas, argumentativa, persuasiva,

ao controle social, política, enquanto aquela, a jurídica, vislumbrando aspectos sociais, legais,

26

processuais, demonstrando o funcionamento do ordenamento jurídico. A segunda parte cuida

da análise das petições trazidas à colação, apontando alguns pontos relevantes que merecem

destaques em face do discurso empreendido pelos enunciadores, ressaltando sobretudo a

perspectiva interpretativa.

Quanto ao referencial teórico em si, procedemos a uma abordagem metodológica no

segundo capítulo, tecendo considerações sobre o objetivo geral e objetivos específicos da

pesquisa, demonstrando a importância vislumbrada no problema, bem como a hipótese que

tenderia a uma alternativa capaz de minimizar consideravelmente os influxos negativos do

ordenamento jurídico em função de eventuais falhas de ordem interpretativa do discurso, além

de evidenciarmos questões de ordem ideológica visando à manutenção do status quo, dada a

conotação política nesse propósito, ou seja, por ser onerosa a hipótese em questão, o sistema

tende a não discuti-lo, como de fato ocorre em outras situações similares.

Na consecução da pesquisa, pautamo-nos na análise de cunho qualitativo-

interpretativo, tendo como referência as petições em anexo, levando-se em conta o sistema

jurídico atinente ao tribunal do júri, a semiotização inerente ao ordenamento social como um

todo, seja na perspectiva de Maingueneau, seja na concepção de Bakhtin/Volochinov, sem nos

desvencilharmos por óbvio da concepção discursiva e enunciativa de correntes linguísticas

diversas.

Ainda no capítulo 2, adentramos nos conceitos jurídicos que dão suporte à pesquisa,

visando respaldar a correlação existente entre os vários pontos de vista relacionados ao tema

sob a ótica da linguística, notadamente na perspectiva da AD.

Em seguida, tecemos considerações sobre os elementos linguísticos que guardam

relação intrínseca com o gênero petição, mais precisamente no que tange ao dialogismo

enquanto ponto de tensão existente entre interlocutores, mormente no antagonismo existente

entre autor e réu, ressaltando a concepção identitária dos sujeitos comunicantes, bem como o

controle social e ideológico a poder do Estado e da sociedade, o que se evidencia na

semiotização de conceitos jurídicos, traçando nesse propósito um paralelo entre a linguística e

o direito.

Finalmente procuramos demonstrar a importância da formação identitária dos sujeitos

interactantes, o ethos do enunciador e o pathos do enunciatários, vislumbrando as estratégias

argumentativas e interpretativas em questão, tendo como norte o material selecionado, que

consistiu em petições em sentido lato, no caso, a denúncia emanada do representante da

sociedade – o órgão do MPE -, no Inquérito Criminal – Relatório do Delegado -, na decisão de

Impronúncia exarada pelo Juiz de primeira instância, que, aliás, não acatou a denúncia como

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incursa no âmbito do Júri, sobretudo por não haver comprovação cabal da participação do

acusado, enfim, no excerto do Voto do Relator, especificamente em relação aos argumentos

explorado para justificar eventual erro judicial no caso sob análise, sob o argumento de supostas

compensações em favor do condenado, como indenizações do Estado por danos morais, haja

vista prisão por condenação injusta, o que, por consequente, dá azo a questionamentos quanto

à incerteza dos fatos, tanto de um lado quanto de outro, fatos esses que respaldam a tese ora

empreendida. Nesse propósito, procedemos a uma análise mais detida das peças do corpus,

focando os operadores argumentativos e os modalizadores, conforme quadros em anexo

demonstrando os recursos linguístico-discursivos utilizados pelos enunciadores visando

influenciar o enunciatário.

Na Conclusão, trazemos à colação matéria jornalística recente que vem corroborar

nossa tese, o que, de certa forma, nos afigura como um alento, pois ao iniciarmos a pesquisa

sequer se cogitava de uma reviravolta no mais emblemático julgamento ocorrido no país, no

caso, o massacre do Carandiru, que, há mais de vinte anos, culminou com a condenação de

vários praças e oficiais da polícia militar do estado de São Paulo pela morte de 111 presos,

sendo que recentemente tal julgamento foi anulado, dando ensejo a novo julgamento, o que não

ocorreria se nosso ordenamento jurídico tivesse implementado o duplo grau de jurisdição no

âmbito do Júri , como propomos, daí a plausibilidade da hipótese defendida na presente

pesquisa.

29

2 DELIMITAÇÕES CONCEITUAIS, O CORPUS E A METODOLOGIA

No presente capítulo tecemos considerações acerca da enunciação discursiva que dá

suporte à pesquisa, notadamente sob a ótica do discurso jurídico em julgamentos no âmbito do

tribunal do júri, ressaltando aspectos jurídicos relacionados ao julgamento que serviu de

referência para a pesquisa empreendida, traçando um paralelo entre nuances intrínsecas aos

aspectos linguístico-discursivos e jurídicos que guardam relações entre si, mormente no que

tange às práticas linguageiras, ao dialogismo, interação verbal, alteridade e polifonia.

2.1 O Gênero de discurso Petição e outros gêneros correlatos

Como o presente estudo visa examinar os efeitos semântico-discursivos advindos das

estratégias argumentativas empreendidas nas enunciações, foram selecionadas algumas peças

extraídas do livro em questão, sendo que várias delas, ainda que com outras nomenclaturas,

foram tratadas como pertencentes ao gênero petição em sentido lato, até porque, na maioria das

vezes, encerram-se pedindo à autoridade competente o deferimento do que se pleiteia. Ademais,

no âmbito da análise da prática discursiva, todo gênero de discurso é relativamente estável

(Bakhtin, 2003), portanto ele navega de um viés a outro em face de suas semelhanças, até se

firmar e ganhar autonomia, como procuramos demonstrar no decorrer da pesquisa.

Sobral (2009, p. 115-133), na mesma perspectiva de Bakhtin/Volochinov (1995, p.

262), assevera que o gênero se define como formas ou tipos relativamente estáveis em face de

enunciados discursivos que guardam sua lógica própria que, por sua vez, migram-se para outros

tipos a ele correlatos e, ao longo do tempo, cristalizam-se ganhando autonomia em termos de

formas de textualização, mas ainda assim sem fixidez, na medida em que eles próprios se acham

suscetíveis a mutação em consonância com seu próprio ritmo.

Nesse sentido, o gênero de discurso Petição, objeto precípuo da presente pesquisa, é

exemplo cabal dessa instabilidade, pois, em princípio, era tido como um mero requerimento,

posteriormente passou à condição de petição, contudo, para distingui-los entre si, dependendo

da parte que o subscreve, ele migra de petição para se consubstanciar em uma contestação, um

agravo, recurso, embargo etc., que, a despeito de serem petições em sentido lato, são

documentos correlatos mas com nomenclatura distintas. Na pesquisa em tela, salvo em

situações específicas, serão tratados como petição por questões didáticas.

Chamou-nos atenção a relação interdiscursiva existente no gênero de discurso petição,

pois nele se evidenciam importantes aspectos que demandam conceitos discursivos de alta

30

relevância, como o dialogismo, polifonia, alteridade, interação verbal, que fomentam a doutrina

e a jurisprudência.

Como se percebe, são sem dúvida dimensões que apontam para respaldar argumentos

em favor do enunciador e, em contrapartida, os demandados também se valem deles na mesma

perspectiva como enunciadores, ensejando, pois, uma relação dicotômica e dialógica, sobretudo

na perspectiva da responsividade inerente aos sujeitos da relação interdiscursiva, porquanto

todos, estando em polos distintos, utilizam-se dos mesmos artifícios em constante

reciprocidade, de sorte que há inevitáveis trocas de posições em relação ao emissor/receptor,

ou seja, enunciador e enunciatário trocam-se desse status a cada intervenção no exercício do

contraditório.

Ao tratarmos de questões jurídicas, vale frisarem aspectos ideológicos de alta

relevância, pois, como é cediço, todo discurso é ideológico e arraigado de intenções, como

ressaltou Bakhtin/Volochinov (BAKHTIN, 1995, p. 123), para quem “... O discurso escrito é

de certa maneira integrante de uma discussão ideológica em grande escala: ele responde a

alguma coisa, refuta, confirma, antecipa as respostas e objeções potenciais, procura apoio

etc.”.

Esse gênero do discurso foi prestigiado na Carta Magna por força do art. 5º, inciso

XXXIII, alínea “a”, que assegura a todos o direito de peticionar, nesse caso, sem qualquer

formalismo, senão vejamos:

XXXIV – são a todos assegurados, independente de pagamento de taxas: a) O direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou

contra ilegalidade ou abuso de poder; b) A obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de

direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoa.

(Constituição da República Federativa do Brasil, 1988)

Aduz-se do preceito em tela que esse direito é inalienável, na medida em que está

insculpido nos direitos e garantias fundamentais do cidadão, especificamente no art. 5º da

CF/88. Importante frisar que o dispositivo supracitado não impõe a necessidade de advogado

para peticionar nesse mister, portanto qualquer cidadão que vise pleitear junto às repartições

públicas algum direito tem a prerrogativa de fazê-lo subscrevendo o documento em questão

sem assistência de um procurador nesse sentido. Ressalte-se que nesse propósito o peticionário

vai se valer das mesmas estratégicas argumentativas na consecução de seu intento, até porque

os modos de dizer são inerentes a todo enunciado, não obstante o maior ou menor grau de

desenvoltura no enunciar de cada pessoa.

31

Outro dispositivo legal garantido pelo supracitado artigo 5º da CR/88 de suma

importância quanto aos aspectos enunciativos diz respeito ao habeas corpus, que por sua vez

também pode ser interposto por qualquer pessoa que se ache em situação arbitrária, de prisão

ilegal ou sob ameaça nesse sentido, cuja petição também não demanda qualquer formalismo,

nem mesmo ser subscrita por advogado ou defensor público, podendo ser elaborada por

qualquer interessado que se encontre nessa situação, senão vejamos:

Art. 5º (...) LXVIII – conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se

achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de

locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder. (Constituição da

República Federativa do Brasil, 1988)

Para melhor interpretação do artigo em questão, faz-se imperioso reportarmos aos

artigos 647 e 654 do Código de Processo Penal - CPP, a saber:

Art. 647. Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar

na iminência de sofrer violência ou coação ilegal na sua liberdade de ir e

vir, salvo nos casos de punição disciplinar. Art. 654. O habeas corpus poderá ser impetrado por qualquer pessoa,

em seu favor ou de outrem, bem como pelo Ministério Público. (Código

de Processo Penal, 1941)

Vale destacar o preceito primário do artigo 654 em epígrafe que a petição em questão

também não exige a subscrição por advogado, pois o próprio interessado, mesmo sendo leigo,

pode elaborar a peça e fazer com que ela chegue ao conhecimento do juiz.

Por essas especificidades, o instituto jurídico em questão guarda relevância para a

análise discursiva, pois são os argumentos empreendidos pelo interessado que vão pautar a

decisão do juiz, portanto não há que se cogitar de conhecimentos técnicos ou jurídicos para esse

mister, bastando a narrativa dos fatos mediante argumentos os mais convincentes possíveis.

A petição em habeas corpus, por exemplo, corrobora outro interessante brocardo

jurídico que também nos remete à prática discursiva vinculada ao gênero petição, qual seja: "dê-

me os fatos que lhe direi o direito". Ora, uma petição bem fundamentada, com argumentos

plausíveis, mesmo subscrita por qualquer pessoa ameaçada de prisão sem fundamentação legal,

ao chegar ao conhecimento do juiz, de pronto já surte os efeitos jurídicos almejados pelo

emissor, sanando se for o caso eventuais vícios ou ilegalidades.

A propósito da máxima supramencionada - Dê-me os fatos que lhe darei o direito -

vale ressaltar nela uma estratégia enunciativa de grande relevância quanto aos aspectos

32

identitários, pois os fatos não falam por si, mas pelas circunstâncias que o motivam,

considerando inclusive as versões que o norteiam, daí a importância dos argumentos

empreendidos visando à persuasão do enunciatário. Aduz-se do brocardo que ele tem viés

identitário e ideológico com o condão de valorizar o juiz, transpassando a ideia o agente público

em questão seria onisciente, ou seja, tem resposta para tudo, o que não é bem assim por questões

óbvias.

No que tange ao habeas corpus, em se tratando de um instituto secular, podendo

qualquer indivíduo elaborar essa petição de cunho jurídico mesmo sem ser advogado, vem à

tona a importância da argumentação para se chegar a bom termo. Ressalte-se que qualquer

pessoa está suscetível a uma prisão ilegal, sendo compelida a pleitear sua liberdade, ainda que,

por circunstâncias diversas, não possa o peticionário contar com a assistência jurídica de um

defensor público ou advogado.

Recentemente, a imprensa noticiou um fato pitoresco de um preso que, julgando estar

detido ilegalmente por decurso de prazo, sem condições de contratar um advogado, resolveu

por conta própria elaborar um habeas corpus em petição redigida em um rolo de papel

higiênico. Pode parecer grotesco, risível ou irônico, até mesmo vexatório aos olhos de quem

não convive no meio, mas há de se convir que a lei permite esse recurso em situação urgente,

sem distinção quanto aos meios a serem utilizados, obviamente quando feito com urbanidade e

respeito.

Para comprovação do fato, trazemos à baila umas das várias matérias jornalísticas

sobre o caso em questão:

Preso envia pedido de habeas corpus ao STJ escrito em papel higiênico FOLHA DE SÃO PAULO 21/04/2015 18h40 Um preso de São Paulo enviou ao STJ (Superior Tribunal de Justiça) um

pedido de habeas corpus feito em um pedaço de papel higiênico. A

correspondência, que foi entregue na tarde desta segunda-feira (20), aparentava

ser escrita pelo próprio detento e estava "caprichosamente dobrada", segundo

o órgão. O preso, que não teve o nome informado, contou em cerca de um metro de

papel higiênico que está preso há nove anos, no CDP (Centro de Detenção

Provisória) de Pinheiros 1, e que participou de uma rebelião em 2006. Ele ainda

falou que está preso de forma irregular porque o crime que cometeu já estaria

prescrito. Pela legislação brasileira, pedidos de habeas corpus podem ser feitos por

qualquer pessoa, em qualquer meio, sem que seja necessário um advogado.

Dessa forma, o STJ informou que o papel higiênico foi fotocopiado e

digitalizado, e o processo será distribuído a um ministro relator em breve. Segundo a assessoria de imprensa do STJ, um outro preso usou um lençol para

formular seu pedido de liberdade há cerca de um ano. Assim como aconteceu

33

com o lençol, o pedido feito no papel higiênico deve ser encaminhado para o

museu do STJ.1

Ora, uma petição dessa natureza, elaborada por um leigo, mas que surte os mesmos

efeitos de tantas outras elaboradas por advogados devidamente constituídos, corrobora a tese

de que o prestígio da peça jurídica não residiria exclusivamente no profissional que a elabora,

mas sim na argumentação empreendida visando ao êxito no seu desiderato, assim como na

importância que ela representa diante de situações-limite. É nesse viés que a dissertação em tela

se justifica, pois não se está aqui prestigiando a advocacia em si, tanto que o leigo também pode

peticionar em causa própria, vislumbrando o mesmo êxito que um advogado devidamente

constituído, sem contar também que é uma forma de prestigiar o letramento, pois qualquer

pessoa alfabetizada pode peticionar a seu favor, não só oralmente, mas também por meios

formais.

O que se pretende no presente estudo é focar na argumentação como o meio para se

chegar a um resultado satisfatório, seja ao autor seja do réu, embora saibamos que numa

demanda jurídica o sucesso de uma das partes implica necessariamente o insucesso da outra,

em tese, ambas tiveram as mesmas oportunidades, valendo-se dos mesmos artifícios e dos

mesmos códigos que disciplinam a matéria, portanto logrará êxito aquele que melhor conduzir

suas estratégias argumentativas, sobretudo em situações polêmicas como as citadas.

Ainda em relação à petição de habeas corpus redigida em papel higiênico, vale frisar

a estratégia utilizada pelo enunciador, pois se aduz do fato que a intenção do impetrante foi

exatamente criar um factoide, algo que chamasse a atenção, quiçá ironizando o Judiciário ou os

Poderes constituídos, bem como o sistema social como um todo. Com essa atitude inusitada, o

autor da petição se impôs como enunciador, construindo sua posição identitária, fato um tanto

quanto arriscado, mas que, no caso em apreço, não lhe trouxe maiores problemas, pelo

contrário, haja vista a própria repercussão na mídia.

Essa lógica se respalda na ousadia do enunciador, ou seja, chamar a atenção da mídia

por utilizar-se de meio inusitado, no caso, valer-se de papel higiênico para elaborar uma petição

tão importante em um recurso de importância ímpar, que é o próprio habeas corpus, cuja

tradução literal equivale a “tenha o corpo livre”, repercutindo, quando provido, na liberdade do

peticionário, no caso, o preso.

1 Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/04/1619357-preso-envia-pedido-de-habeas-

corpus-ao-stjescrito-em-papel-higienico.shtml

34

Ora, por que se utilizar de papel higiênico para fim tão nobre quando não haveria

maiores empecilho ao interessado em fazê-lo de outra forma, caso tivesse ele a iniciativa de

solicitar a qualquer agente carcerário autorização para subscrever essa petição em papel ofício,

ainda que manuscrita, e endereçá-la ao juiz de execução penal? A intenção do peticionário foi

exatamente chocar, chamar a atenção, quiçá provocar, o que de certa forma repercutiu

favoravelmente a ele, como também poderia ocorrer o contrário dependendo da reação do

enunciatário, no caso, o juiz.

Como é de conhecimento geral, o direito é uma ciência que atua proeminentemente no

campo da retórica, da dialética, valendo-se de argumentos e de estratégias de convencimento,

tendo como objeto precípuo o diálogo, a comunicação inter partes, autor e réu, administração

pública e administrado, acusador e acusado.

No âmbito do direito penal, que mais nos interessa em face do corpus, a petição inicial,

tecnicamente denominada notitia criminis, é documento elaborado por qualquer pessoa que

tenha o conhecimento de um fato ilícito, antijurídico e punível, comunicando o ocorrido às

autoridades – delegados, promotores, policiais. A partir dessa peça, instaura-se o inquérito para

apuração da autoria, os indícios, circunstâncias etc., não havendo maiores preocupações de

natureza técnico-formal para sua confecção. Assim, para efeito do presente estudo, a queixa-

crime também compõe o rol de petições como gênero de discurso.

Em suas manifestações, valendo-se dos princípios jurídicos da ampla defesa e do

contraditório inerentes à perspectiva responsiva preconizada por Bakhtin (2011, p. 259-306), as

partes manifestam-se demonstrando suas razões, buscando sobretudo desqualificar os

argumentos do outro. Os interactantes utilizam-se de estratégias discursivas visando persuadir

a todos quantos tenham interesse direto ou indireto na demanda jurídica, sempre imprimindo

um ar verossímil em suas alegações, procurando ser o mais convincente possível, sobretudo

porque, em situações como a vivenciada no caso concreto sob análise, não se tem a plena certeza

dos acontecimentos. Assim, em tese, a dúvida é fator favorável ao acusado, como bem explicita

a máxima do in dubio pro reu.

Em função das incertezas, há todo um processo comunicacional em que se afloram

conjecturas, ilações, deduções, pistas, testemunhas, depoimentos, ou seja, perspectivas de toda

ordem no afã de aferir a verdade dos fatos, bem como imprimir credibilidade nos discursos

empreendidos, sendo que, pelas circunstâncias, tratando-se de situação limite, o campo é fértil

a explicitar o dialogismo, haja vista a tensão existente em posicionamentos antagônicos. Nesse

sentido, adentraremos a seguir na relação discursiva entre os enunciadores e enunciatários

envolvidos no embate em questão.

35

2.2 A relação dialógica e a interação verbal no gênero do discurso petição

A linguagem enquanto atividade social compreende os polos distintos correlacionados

ao eu e ao tu na concepção benvenistiana (Benveniste 1970), na vertente discursiva atinente aos

interactantes na relação de trabalho ressaltada por Bronckart (2009) face à relação interpessoal

dialógica nesse contexto. Intencionalmente, os sujeitos da relação interdiscursiva externam suas

pretensões, suas intenções, levando-se em conta as representações linguísticas explicitadas em

signos, mormente no que tange à semiótica social, fenômeno importante no âmbito do direito e

no gênero de discurso petição. Nessa perspectiva, faz-se imprescindível vislumbrar a

semiotização social sob a ótica ideológica preconizada por Bakhtin/Volochinov (1977).

Pautando-se na esfera discursiva propriamente dita, não há comportamento humano

alheio a uma pretensão intrínseca à satisfação de uma vontade, seja por ato comissivo ou

omissivo, respectivamente por ações ou omissões, de sorte que sempre há uma intenção no agir

humano, o que se externa pela linguagem, pelo discurso empreendido. Por conseguinte, não há

que se cogitar sequer de indiferença nesse agir, pois, mesmo na suposta apatia, há sempre uma

postura motivada pela intenção implícita ou explícita entre interlocutores.

Nesse sentido, a pesquisa centra-se no destaque a certas especificidades da prática

discursiva em face dos modos de dizer perceptíveis nos enunciados, nas estratégias discursivas

nos processos judiciais, inclusive no âmbito dos processos administrativos, levando-se em conta

a prerrogativa inalienável do direito de liberdade de expressão, bem como da ampla defesa, do

contraditório, devido processo legal, aspectos esses que, no Brasil, são resguardados pela CR/88

sob a égide dos Direitos e Garantias Individuais amparados principalmente no artigo 5º da Carta

Magna.

Visando elucidar alguns institutos jurídicos e linguísticos importantes, teceremos

comentários conceituais acerca do tema, ressaltando, todavia, que não aprofundaremos nesses

pressupostos por não estarmos voltados a um público específico, mas a todos quantos se

interessem pela AD e seus influxos no gênero textual petição.

O estudo em tela busca demonstrar que as práticas discursivas na relação jurisdicional

exploram estratégias argumentativas para influenciar os envolvidos nas decisões, mormente nos

julgamentos em si, visando sobretudo conquistar a empatia do auditório, bem assim de outros

enunciatários do discurso envolvidos direta ou indiretamente, mais precisamente daqueles que

tenham influência direta ou indireta na solução do conflito. Nesse mister, focamos a utilização

pelo enunciador de operadores argumentativos e modalizadores, bem como marcadores de

pressuposição, que são mecanismos que possibilitam engendrar a enunciação numa construção

36

lógica, com intenção persuasiva. Para explicitarmos esse viés, recorreremos a Ducrot (1977) e

Koch (2006), que tratam do tema de forma inequívoca.

Deve-se frisar que o agenciamento de recursos linguístico-discursivos provoca efeitos

polifônicos, possibilitando diversos pontos de vista pautados em outros dizeres, mesmo quando

antagônicos. Com efeito, o fenômeno redunda em diversas vozes, que, por conseguinte,

apontam para muitas instâncias discursivas, como religião, política, família, para o sistema

jurídico como um todo, sem nos esquecer do senso comum, da sabedoria popular, da cultura.

Na visão de Ducrot, o enunciador é na verdade o sujeito empírico que não se expressa por si,

mas por intermédio do locutor, portanto o sujeito discursivo é responsável por diversas vozes

advindas de outros enunciadores, sendo o enunciado o resultado da dicotomia entre as vozes e

discursos de outrem, ensejando, pois, a relação polifônica, que por sua vez também nos remete

à alteridade.

Para se alcançar êxito em suas pretensões discursivas, tanto na oralidade quanto nas

petições escritas, por razões as mais diversas, faz-se imprescindível investir na consciência

identitária do enunciador, primando-se pela adesão do auditório, vislumbrando teses

argumentativas a serem defendidas, sem se descuidar dos artifícios também suscetíveis pelos

enunciatários quando do momento de suas manifestações, que, por sua vez, valem-se dos

mesmos artifícios em seu favor no momento da responsividade. Nesse sentido, torna-se

imperioso atentar-se para as perspectivas da consciência identitária relacionada ao ethos e

pathos, que se posicionam em constante permuta entre os actantes no processo comunicacional,

como assevera Bronckart (1999, p. 217-248).

Outro fator relevante na pesquisa diz respeito aos aspectos semânticos envolvidos na

situação concreta sob análise e em outros tantos na mesma perspectiva, à medida que não se

pode adentrar na AD e na seara dos gêneros textuais julgamento e petição sem se vislumbrar o

fazer justiça em consonância com os preceitos do que efetivamente seja justo, até porque o justo

para uns pode não o ser para outros, ressaltando que nem sempre a própria lei é justa, e por

conseguinte o que é legal pode não se consubstanciar justo na acepção semântica. Por sua vez,

uma sentença sem vícios processuais, ainda que proferida na melhor das intenções, também

pode não se configurar justa na acepção semântica do termo, embora formalmente o seja em

relação ao sistema jurídico-processual vigente no momento em que seja proferida.

Assim, qualquer que seja o resultado de um julgamento, ele sempre será sujeito ao

duplo grau de jurisdição, ou seja, da decisão, não sendo em última instância, caberá recurso a

uma instância superior, cujo julgamento caberá a um colegiado, às turmas recursais, ampliando

assim o espectro do julgamento, com o propósito de minimizar a possibilidade de erros, embora

37

até mesmo das decisões das turmas ainda caibam recursos suscetíveis à reforma da referida

decisão. Ainda que haja reforma da decisão recorrida, não se pode afirmar que aquela decisão

tenha sido injusta ou proferida de forma errônea, pois formalmente foi proferida dentro dos

preceitos legais.

Em face dessas especificidades os posicionamentos enunciativos são de suma

relevância visando influenciar o legislador na elaboração de projetos de leis que em tese vão ao

encontro da acepção da justiça, lembrando-se que essa iniciativa externa responsividade a uma

demanda da sociedade, procurando, em última instância, tornar mais justo ou menos injusto o

ordenamento jurídico como um todo, pois toda ciência está sempre em evolução, procurando

aperfeiçoar o sistema, e é nessa perspectiva que trabalhamos no presente estudo, visando chamar

a atenção para julgamentos inerentes ao tribunal do júri, aliás, um instituto jurídico milenar

arraigado a certas tradições, daí a resistência em promover mudanças, embora todos saibam da

necessidade de se repensá-lo à vista de novos tempos, em consonância com a dinâmica evolutiva

nessa perspectiva.

Assim, faz-se importante atentar-se para digressões de natureza semântico-discursiva

para melhor compreensão da relação intrínseca entre a AD e a semântica, pois não há como

tratar uma dessas dimensões sem correlacioná-las no que couber à outra, até porque elas estão

imbricadas pela própria natureza, embora cada qual detenha sua autonomia e especificidades.

Dessa forma, cabe um paralelo sobre alguns aspectos atinentes ao Direito

Constitucional, Penal e Tribunal do Júri, bem como à prática linguageira no âmbito do

julgamento, considerando inclusive a responsividade preconizada por Bakhtin (1997, p. 272),

como se depreende do caso que serviu de parâmetro para discutirmos o gênero de discurso

petição, numa análise discursivo-enunciativa relacionada às práticas linguageiras, elegendo

dimensões como a polifonia, a alteridade, a interação verbal etc.

Para melhor situar o leitor sobre os fatos e suas versões, traçamos um panorama do

julgamento utilizado como referência para ilustrar nosso ponto de vista sobre o tema. Em que

pese termos nos centrado nesse caso, a situação por si ilustra de forma geral as práticas

discursivas que norteiam as pretensões tanto de uma parte quanto de outra nos discursos

proferidos para galgar seus objetivos no gênero de discurso julgamento, seja ele na esfera penal,

cível, trabalhista, empresarial, etc.

Salientamos que procedemos à análise na perspectiva interpretativo-discursiva de viés

antropológico, pautando-nos em Maingueneau (2004, p. 15-39), bem como nos preceitos

filosóficos e discursivos externados por M. Foucault na Arqueologia do Saber (1.986), para

quem o discurso pode ser considerado como “Um conjunto de regras anônimas, históricas,

38

sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em dada época, e para uma área

social, econômica, geográfica ou linguística dada, as condições de exercício de função

enunciativa”. (Foucault, 1972, p. 136)

Importante ressaltar a enunciação enquanto fenômeno linguístico-discursivo,

principalmente quando se cogita em relacioná-la ao âmbito jurídico. Para se entender as nuances

jurídicas vinculadas ao corpus faz-se imperioso atentar-se para a trilogia que a consubstancia à

relação processual. Nesse contexto, reportamo-nos a Flores (2009), que por sua vez cita

Authier-Revuz (1998, p. 99), in verbis:

A enunciação, concebida como um campo heterogêneo do conhecimento, põe

em jogo o sujeito e sua relação com a língua e com o sentido. É então,

considerada lugar de uma inevitável heterogeneidade teórica, que leva a

linguística, entendida em seu sentido restrito, a ter que recorrer a teorias

exteriores a seu campo para apoiar a descrição dos fatos enunciativos. Tais

teorias exteriores são: a teoria do sujeito de J. Lacan, o dialogismo de M.

Bakhtin e a noção de interdiscurso de M. Pêcheux. (Flores, 2009, p. 99)

A trilogia que respalda a enunciação por si justifica a tese ora empreendida, pois no

âmbito de um julgamento esses matizes se evidenciam por estarem presentes neles aspectos

atinentes às concepções psicológicas, a intenção externada no discurso proferido, o sentido

intrínseco a um determinado objetivo e a construção semântica e sintática utilizadas

estrategicamente com a finalidade de auferir um resultado junto aos enunciatários – juiz, autor

e réu, bem como agentes periféricos dessa relação tripartite.

No que tange à visão crítica relacionada ao controle social vislumbrado no

ordenamento jurídico social, pautamos nossas considerações em Bakhtin/Volochinov

(Marxismo e Filosofia da Linguagem, 1990), em especial no primeiro capítulo – Estudo das

Ideologias e Filosofia da Linguagem – fls. 31/38.

Na concepção bakhtiniana, todo enunciado é resultado de intenções, cabendo ao

enunciatário captar por sua conta e risco essas especificidades discursivas emanadas do discurso

proferido, vislumbrando as finalidades explícitas ou implícitas na perspectiva do emissor-

enunciador. É claro que a representação externada pelo enunciador implica uma responsividade

que, por sua vez, emana daquele que antes se posicionava na condição de enunciatário, mas

cuja reação responsiva o desloca ao status de enunciador, numa troca constante de posições

enunciativas – emissor-receptor, receptor-emissor, daí a riqueza vislumbrada na argumentação

como fator preponderante no macro gênero julgamento, de cuja espécie no âmbito jurídico a

petição é mecanismo de se externar a enunciação, cujo resultado coincide ou não à expectativa

das partes.

39

O corpus nos remete ao liame intrínseco ao julgamento no âmbito do direito penal e às

estratégias discursivas utilizadas pelos sujeitos dessa relação comunicacional visando ao

convencimento do outro, daí essa relação íntima entre o direito e a linguística, na medida em

que o discurso a ser empreendido e os argumentos de sustentação cênica que darão suporte à

relação dialógica estão relacionados à interpretação das ações humanas, justificando o porquê

da importância em traçar essas considerações preliminares sobre o tema.

Por questões didáticas, faz-se conveniente adentrarmos em alguns conceitos jurídicos

ainda que em linhas gerais, mormente em relação ao direito penal e processual, dentre outros

correlatos. Essas digressões são importantes à vista do gênero textual petição, pois, ao se adotar

o sistema acusatório, significa que o Brasil adotou a sistemática de somente instaurar um

processo quando haja uma acusação formal, seja por iniciativa da própria vítima, de um parente,

de quem tenha conhecimento do fato delitivo, por iniciativa da própria polícia civil,

tecnicamente denominada polícia judiciária, bem como por provocação do MPE na pessoa do

Promotor de Justiça, que atua como representante da sociedade.

Nesse sentido, não cabe ao Juiz, por iniciativa própria, investigar um crime e por sua

conta e risco acusar o réu, pois, se assim o fosse, estaria ele avocando para si uma

responsabilidade considerável, que seria julgar com isenção, haja vista o interesse que já se

configuraria pelo próprio ato primeiro, no caso, o de acusar para depois julgar, algo

praticamente impossível. Ademais, essa lógica tem um propósito, pois não sendo o juiz o

acusador, terá ele a isenção para presidir a ação, o que dificilmente ocorreria se a inciativa de

acusação partisse dele, em que pese ser aceita essa prática em outros ordenamentos jurídicos.

Essas considerações são importantes exatamente para que não haja descontrole nesse

mister, inclusive para se compreender a lógica do sistema, sendo que tais mecanismos

processuais, de certa forma, influenciam na interpretação dos fatos, daí a coerência processual

que impõe a prescrição do procedimento previamente, até para não se incorrer em casuísmo.

Ademais, se um juiz tem conhecimento da prática de um crime, na condição de

cidadão, ele não só pode como deve prestar queixa-crime contra o acusado, porém não o faz de

forma institucional, mas sim como um cidadão comum. Aliás, em flagrante delito, qualquer

cidadão pode dar voz de prisão ao que se encontre nessas condições, sendo a ocorrência uma

petição em sentido lato visando, se for o caso, dar início a um processo criminal a partir da já

mencionada notitia criminis.

Nas situações em que haja suspeita da prática de um crime, geralmente a vítima ou

qualquer outra pessoa apresenta notitia criminis perante uma autoridade policial, no caso o

delegado de polícia, que, por sua vez, tem a obrigação de instaurar um inquérito cuja finalidade

40

é auscultar, inquirir, investigar, seja ele próprio ou por investigadores de polícia, peritos,

técnicos etc. Nessa relação dialógica começa a engendrar estratégias discursivas relevantes ao

processo como um todo, de sorte que passam a ter importância não só os fatos em si, mas

também as versões dos fatos sob a ótica dos enunciadores.

Ao vislumbrar a hipótese da prática do crime e de sua autoria, cabe à autoridade policial

concluir o inquérito e encaminhá-lo para o promotor natural, ou seja, a autoridade competente

para acusar o réu perante o Poder Judiciário. Sendo o crime doloso, com intenção de ceifar a

vida de alguém sem qualquer conotação patrimonial, cabe ao promotor de justiça apresentar a

denúncia ao juiz de primeira instância, requerendo a pronúncia do acusado e, por conseguinte,

o encaminhamento dos autos ao Tribunal do Júri. É o caso que norteia a pesquisa objeto da

presente dissertação, cujo corpus nos traz à tona a perspectiva dialética, porquanto na relação

dicotômica vislumbrada no processo há sempre que se resguardar a prerrogativa da ampla

defesa e do contraditório.

Entende-se por pronúncia o acatamento da acusação do Órgão do Ministério Público

em relação ao fato delituoso, no caso, crime doloso contra a vida - doloso por haver intenção

deliberada do acusado em atentar-se contra a vida de outrem sem qualquer conotação

patrimonial; em caso de se praticar o crime com a intenção de apropriar-se de um bem, por

exemplo, descaracteriza-se o homicídio doloso na perspectiva, passando o réu a responder por

latrocínio, ou seja, matar para roubar, para apropriar-se de coisa alheia móvel.

Assim, caso o réu incorra em latrocínio (matar para roubar, ou tecnicamente para se

apropriar de coisa alheia móvel), não há que se falar em julgamento perante o tribunal do júri,

pois nesse caso, será o réu acusado perante o juiz natural da vara criminal específica, cabendo

ao juiz togado presidir o processo e julgar o caso sem que se cogite da participação do júri, ou

seja, a decisão é monocrática. Sendo condenado, o réu pode recorrer ao Tribunal de Justiça;

Superior Tribunal de Justiça – STJ e Supremo Tribunal Federal - STF, conforme a circunstância,

sendo que quaisquer desses recursos serão interpostos por aquele que tenha sido parte vencida,

seja para reparar eventual erro processual, seja para recorrer do mérito.

Essas vicissitudes ilustram as razões do trâmite do caso trazido à baila, explicitando o

porquê da divergência crucial de natureza processual, comparando, por exemplo, um crime

motivado por questões patrimoniais com um crime tentado ou praticado contra a vida de

alguém, nesta situação a competência é exclusiva do tribunal do júri. Não estamos aqui nos

referindo a recursos de natureza processual, obviamente, pois para falhas relacionadas ao rito

propriamente dito cabem recursos naturalmente em qualquer situação, sendo que dos

julgamentos do júri não cabem recursos no mérito a outras instâncias, o que é uma exceção.

41

Ora, se todos estão suscetíveis a equívocos interpretativos, a erros, por que o corpo de

jurados não estaria por óbvio vulnerável a essas mesmas possibilidades? E mais, se se admite

que todos erram ou se equivocam, inclusive as turmas recursais compostas por juízes togados,

desembargadores, ministros, tanto que de suas decisões cabem recursos, por que não se admitir

que o tribunal do júri, composto por jurados (juízes leigos), também não incorreria em erros ou

equívocos suscetíveis de reparos? A celeuma mais uma vez não se resumiria em questões

jurídicas, mas em grande parte em questões linguísticas, discursivas, interpretativas,

considerando inclusive aspectos atinentes ao controle social? Eis a questão.

Vários fatores corroboram essa perspectiva e questionamentos, a saber:

• a dialogicidade, porquanto não há julgamento sem tensões voltadas por pontos

de vista divergentes, na medida em que enunciadores e enunciatários estão em

constantes conflitos de interesses, opiniões, argumentos;

• a dialética argumentativa, pois, se há posicionamentos doutrinários que

embasam votos favoráveis ao autor, também há em sentido contrário, favoráveis

ao réu, o que por si justifica o dialogismo supracitado;

• a interação verbal, uma vez que o ordenamento jurídico-processual e a legislação

como um todo são resultantes de uma política engendrada pela sociedade

mediante iniciativa de projetos de lei motivados pela demanda responsiva,

considerando a contextualização inerente a aspectos culturais, sociais,

psicológicos, tanto que a legislação de um país diverge consideravelmente em

relação a de outros;

• a polifonia, tendo em vista que todo julgamento permite às partes, por meio de

manifestações orais ou por petições, externarem diferentes pontos de vista, ou

seja, embora o enunciador seja o sujeito discursivo, atuando como locutor; na

verdade, sua enunciação é resultante de outros discursos, de outras enunciações

que se confrontam ou se apoiam, ensejando, pois, outro fenômeno que

descrevemos a seguir;

• a alteridade, que implica a inter-relação entre as pessoas numa concepção social.

No âmbito do direito, a alteridade se externa e se aflora no gênero de discurso

petição, considerando-a em sentido lato, ou seja, na petição propriamente dita,

na contestação, recurso, agravo, embargos, etc. Faz-se oportuno ressaltar que as

petições de grandes juristas, daqueles reconhecidamente dotados de notória

especialização, servem de supedâneo a outros advogados; as sentenças

proferidas também são subsídios a argumentos empreendidos em situações

42

similares; as obras jurídicas, por sua vez, prestam-se inclusive para formar

opinião, para respaldar sentenças, que, por outro prisma, embasam petições,

recursos, sentenças etc., daí a formação de opinião, a influência de uma

enunciação a outras enunciações, de um discurso a outro, e assim

sucessivamente, de sorte que o eu-individual parte do tu-enunciador e vice-versa,

ensejando a máxima de Benveniste segundo a qual não há o eu sem o tu, como

também não haveria o tu sem o eu. Enfim, o ato de linguagem é um fenômeno

de troca entre parceiros – enunciadores e enunciatários – cada qual em suas

semelhanças e diferenças.

Esses fenômenos linguísticos serão evidenciados amiúde ao longo da pesquisa,

contudo, em princípio, estamos nos atendo a aspectos jurídicos, bem como ao corpus, sobretudo

para que o leitor leigo possa melhor compreender as razões que nos levaram a vislumbrar o

problema e, por conseguinte, a hipótese.

Essa situação por si impõe vários questionamentos, na medida em que, em processos

comuns, sendo as decisões contrárias ao interesse de uma das partes, o contraditório e a ampla

defesa se consubstanciam em recursos os mais diversos, o que não é possível quando se trate

de decisões do júri, haja vista a aura soberana a que estão estereotipadas.

2.3 Abordagem metodológica

2.3.1 O Corpus selecionado e categoria de análise

O corpus centra-se no julgamento do acusado pelo assassinato da jovem Denise Lafetá,

tendo como referência as peças extraídas do Processo que culminou com a condenação do

acusado, posteriormente dando origem ao livro Homicídio sem Cadáver.

Selecionamos algumas peças para demonstrar estratégias argumentativas destinadas a

formar opinião dos enunciatários com poder de decisão sobre o caso, citando os Anexos e as

páginas do referido livro em que elas se encontram, até pela dificuldade em ter acesso aos autos

originais do processo pelo decurso de prazo.

No que tange especificamente ao material de análise, selecionamos as petições de

maior relevância à acusação, como a denúncia formulada pelo Promotor do caso – Petição 01 –

p. 27-29; a Petição 02, que relata os fatos sob a ótica do Delegado de Polícia responsável pelo

Inquérito Policial – p. 27/27; a Petição 03, relativa ao acatamento pelo Juiz do requerimento

43

feito pelo Promotor de Justiça pleiteando a prisão preventiva do acusado – p. 31/32; Petição

04 relativa às alegações finais - p. 35/47; a Decisão do Tribunal de Justiça do Estado de Minas

Gerais configurando o trânsito em julgado – p. 108/112.2

A título de esclarecimento, o julgamento seguiu o trâmite na cronologia dos fatos

elencados na seguinte sequência: os parentes mais próximos da vítima suspeitam de seu

desaparecimento; por conseguinte suspeitam que o responsável pelo sumiço da vítima tenha

sido seu companheiro - DAP; no afã de desvendar as causas do desaparecimento, comparecem

à delegacia da cidade de Uberlândia para apresentarem queixa-crime, tecnicamente denominada

notitia criminis; o delegado acolhe por dever de ofício a representação feita pelos interessados;

a partir de então, instaura-se o inquérito criminal; em seu mister, os policiais procedem às

investigações diligenciando o inquérito com buscas, apreensões, intimações do acusado,

depoimentos, perícia, ouvindo testemunhas. A despeito de todo o empenho, os policiais não

logram êxito em descobrir o paradeiro da vítima, nem encontram seu corpo, portanto não houve

como fazer o exame pericial conhecido como exame de corpo de delito; na impossibilidade de

exame pericial, conclui-se o inquérito por provas indiretas, testemunhais, pistas, conjecturas

etc., encaminhando o inquérito ao promotor de justiça responsável pela acusação, no caso

Tibúrcio Délbis - titular na Comarca de Uberlândia à época (autor do livro que serviu de suporte

ao presente estudo); o promotor procede à representação do acusado DAP narrando em

minúcias os acontecimentos, discorrendo sobre as evidências do crime, embora sem que o corpo

da vítima tenha sido localizado, contudo apresentando farta doutrina e jurisprudência acerca da

possibilidade de acusação por homicídio mesmo sem provas diretas; por seu turno, o juiz de

primeira instância à época - Comarca de Uberlândia - não se convence da prática do crime pelo

acusado e não o “pronuncia” (dialogismo), apresentando também dispositivo legal que o

autoriza a não fazê-lo – o que evidencia um dos mais importantes fatos a ensejar o dialogismo

no âmbito linguístico: o promotor de justiça se insurge (dialogismo) contra a decisão do juiz e

recorre ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais, órgão de segunda instância responsável por

julgar recursos dessa natureza; o Tribunal de Justiça dá provimento ao recurso, o que significa

reforma da decisão do juiz da comarca de Uberlândia, de sorte que o caso passa efetivamente a

ser julgado pelo tribunal do júri daquela comarca; o réu também se insurge contra tal decisão,

inclusive contra sua prisão antes mesmo do julgamento fundamentada em suposta obstrução

aos trabalhos da justiça, o que motiva seu desaparecimento temporário, impetrando habeas

corpus, recurso interposto por prisões arbitrárias - prisão supostamente ilegal; o STJ lhe nega

2 Délbis, Tibúrcio. Homicídio sem cadáver: o caso Denise Lafetá/Tibúrcio Délbis – Belo Horizonte: Del Rey,

1999.

44

provimento apresentando também doutrinas, jurisprudências e argumentações que respaldariam

a negativa do habeas corpus nessas circunstâncias; enfim, o processo efetivamente é julgado

pelo Tribunal do Júri, sendo o réu condenado a 13 anos de prisão, tendo se apresentado

espontaneamente para o cumprimento da pena que lhe fora imposta.

Toda essa trajetória demonstra que o julgamento passou por vários estágios antes de

haver a pronúncia do acusado, haja vista divergências interpretativas entre o promotor e o juiz,

assim como entre os advogados de defesa e a promotoria, portanto todo esse antagonismo

evidencia o dialogismo fomentado pela tensão discursiva, pontos de vista díspares que ensejam

relações dialógicas.

Sanadas as divergências preliminares sobre a pronúncia ou impronúncia do acusado,

são escolhidos sete jurados sorteados dentre vinte e sete cidadãos, dos quais, dependendo do

perfil do jurado, pois, considerando-se ainda a especificidade do crime, pode ser conveniente

aos advogados de defesa ou à promotoria mantê-lo ou não, tudo a depender das estratégias

argumentativas a serem utilizadas pelas partes, que, dadas essas circunstâncias, podem recusar

até três jurados dentre os que foram sorteados.

A recusa ou manutenção desses jurados guarda relação intrínseca com as questões

discursivas, com as estratégias argumentativas, haja vista que, em face da situação concreta, as

partes vislumbram questões ideológicas, pessoais, filosóficas, religiosas, valores os mais

diversos ligados à cultura, à economia, à política, machismo, feminismo, dentre outros.

Nesse sentido, vale ressaltar os aspectos linguísticos inerentes às questões identitárias,

o ethos, pathos e logos, que têm implicações na situação concreta, haja vista sua relação com a

imagem dos enunciadores e enunciatários e a preocupação com o que dizer e com o modo de

dizer, com o discurso em si.

Importante frisar que o presente estudo filia-se a uma perspectiva metodológica de viés

qualitativo-interpretativo, cujo corpus nos remete às petições atinentes ao julgamento no âmbito

do Tribunal do Júri. Nesse viés, como asseveramos anteriormente, pautamo-nos pela análise

expositiva e argumentativa, de cunho interpretativo, na linha preconizada por Salvador (1980,

p. 35), a quem Marina de Andrade Marconi e Eva Maria Lakatos (2010) se reportam em sua

renomada obra Fundamentos de Metodologia Científica, senão vejamos:

Para Salvador (1980, p. 35) a dissertação pode ser:

• Expositiva. Quando reúne e relaciona material obtido de diferentes

fontes, expondo o assunto com fidedignidade e demonstrando

habilitada não só de levantamento, mas também de organização.

• Argumentativa. Quando requer interpretação das ideias apresentadas

e posicionamento do pesquisador. (Sem destaque no original)

45

Por vislumbrar plausibilidade na demanda em questão pelas razões externadas, bem

como perspectivas quanto ao aperfeiçoamento do ordenamento jurídico nessa linha, mormente

em tema tão relevante, pautamo-nos ainda na consecução da pesquisa no viés qualitativo-

argumentativo, por entendê-lo como o mais adequado e oportuno nesse objetivo.

Tendo em vista que o ordenamento jurídico é semiotizado em razão de questões

ideológicas, filosóficas e políticas, tratamos o tema em questão em consonância com as lições

preconizadas por Charaudeau, mormente no que concerne à semiolinguística atinente à

construção do mundo, levando em conta a relação semântico-cognitiva inerente à estruturação

do mundo social em seus aspectos psicolinguísticos, sociolinguísticos e psicossociais.

Nessa linha de raciocínio, o referido autor explicita o duplo processo de semiotização

do mundo, subdividindo-o no processo de transformação e no processo de transação, que

respectivamente implicam mundo a significar e mundo significado, bem como correlação do

sujeito falante e sujeito destinatário.

Nessa correlação de fatores, o processo de transformação demanda identificação dos

seres: identidades nominais; qualificação: identidades descritivas; a ação: identidades

narrativas; causação: relação causa e efeito, ao passo que o processo de transação se

consubstancia à vista de quatro princípios, a saber: princípio de alteridade, pertinência,

influência e regulação, que são intrínsecos ao corpus.

A alteridade implica fenômeno linguageiro relacionado à troca enunciativa entre dois

parceiros comunicantes, quer estejam ou não em diálogo diante um do outro, mas cada qual

respeitando a individualidade do outro, face à mútua relação de semelhança e dessemelhanças

entre os enunciadores, de sorte que haja troca de saberes partilhados e finalidades comuns e

incomuns, havendo reciprocidades mútuas e respeito às diferenças.

O princípio de pertinência de certa forma correlaciona-se com o da alteridade, na

medida em que haja reconhecimento dos universos de referência, sendo que os parceiros do ato

linguageiro compartilham dos saberes sem que necessariamente os adotem nas mesmas

perspectivas: são saberes sobre o mundo, valores psicológicos, sociais, comportamentais.

No que tange ao princípio da influência, aduz-se que os sujeitos do ato discursivo

visam atingir o interlocutor, sempre com um propósito, ou para afetá-lo de forma emotiva ou

para induzi-lo a um agir, a uma reação, ou mesmo para lhe orientar na forma de pensar. Assim,

o princípio da influência visa a uma finalidade intencional.

Por fim, o princípio da regulação, que por sua vez guarda relação com o princípio de

influência, diz respeito ao conhecimento dos interlocutores acerca da dimensão da linguagem

utilizada no discurso, das estratégias de persuasão. Esse princípio permite a compreensão de

46

ambos quanto às práticas linguageiras utilizadas, o que impõe limites aos interlocutores, de sorte

que eles não se excedam à margem do bom senso. Por exemplo: entre o advogado e o promotor

em um júri a relação deve ser institucional, não extrapolando a esfera de atuação.

2. 3.2 O problema e a hipótese

O problema reside no fato de que, no âmbito do Poder Judiciário, todas as ações são

suscetíveis ao duplo grau de jurisdição, valendo dizer que o julgamento de primeira instância

pode chegar ao STF pelo inconformismo das partes em relação ao mérito, haja vista as

possibilidades de equívocos interpretativos por parte dos juízes e desembargadores, ou

independentemente de equívocos, por divergências de teses.

Ocorre que no âmbito do Tribunal do Júri não há essa possibilidade, portanto, havendo

eventual equívoco de ordem interpretativa, não há como recorrer da decisão proferida pelos

jurados, exceto em relação a erros grosseiros de natureza processual ou procedimental. Tal

posicionamento se ancora na supracitada soberania conferida ao conselho de sentença formado

por jurados leigos, portanto as partes ficam em certa medida vulneráveis a um único e

irrecorrível julgamento, o que representa grave problema, pois não há uma outra oportunidade

para se rediscutir o caso como ocorre nos demais julgamentos.

A hipótese plausível a mitigar os efeitos da vulnerabilidade em questão estaria na

implantação do júri em instâncias superiores, de sorte que sua condição soberana seria

preservada pelo princípio da unicidade que lhe seria conferida formalmente, como ocorre com

o próprio Ministério Público - MPE, desde que essa nova perspectiva fosse devidamente

disciplinada pelo legislador, ou seja, pelo ordenamento jurídico nesse sentido.

Essa nova formatação do júri propiciaria à sociedade maior segurança jurídica,

porquanto uma das funções dos recursos é exatamente minimizar as possibilidades de equívocos

motivados por interpretações discursivas divergentes. Com a implantação do duplo grau de

jurisdição no âmbito do júri, garantir-se-ia a todo cidadão o direito inalienável da ampla defesa

e do contraditório em outras instâncias, como ocorre nas demais esferas jurisdicionais, haja

vista que o júri é uma exceção, na medida em que não se cogita de recurso de suas decisões no

que tange ao mérito.

47

2.3.3 Objetivos

2.3.3.1 Objetivo geral:

O objetivo da pesquisa centra-se em demonstrar que as estratégias argumentativas

agenciadas pelas partes são em certa medida responsáveis pelo resultado auferido pela sentença

judicial que condena ou absolve o réu, sobretudo em questões polêmicas que admitam tanto

uma versão quanto outra, de sorte que o melhor argumento pode se sobrepor à realidade dos

fatos e, por conseguinte, implicar inevitável vulnerabilidade das partes envolvidas nos conflitos

jurídicos, haja vista posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais ora numa vertente, ora

noutra, o que se justifica até mesmo pelo fenômeno linguístico atinente à polifonia e alteridade

na relação discursiva.

Nesse sentido, há uma relativa insegurança jurídica aos jurisdicionados – autor e réu -

uma vez que nem sempre logra êxito na demanda judicial aquele que efetivamente tenha razão,

mas sim a parte que tenha se valido de argumentos mais convincentes em suas petições escritas

ou orais, persuadindo os enunciatários que detenham o poder de decidir, no caso os jurados,

juízes, desembargadores, ministros, bem como promotores de justiça, delegados, enfim,

autoridades competentes envolvidas em julgamentos dessa natureza.

Por oportuno, faz-se relevante ressaltar que os membros do conselho de sentença são

leigos, jurados sem formação jurídica, fato que por si denota peso considerável no discurso e

em sua interpretação, mormente porque pesam em suas decisões aspectos culturais de toda

ordem, como formação religiosa, classe social, grau de instrução, gênero etc.

Dessa forma, a pesquisa visa provocar uma discussão acerca da viabilidade do duplo

grau de jurisdição nos julgamentos atinentes à esfera do tribunal do júri, a exemplo do que

ocorre nas demais ações judiciais cíveis ou penais, sendo o júri uma exceção, na medida em que

não se permite rediscutir o caso a partir do veredito, a menos que tal propósito se justifique em

face de erros formais ou processuais, a exemplo de nulidades, o que não diz respeito ao mérito

em si.

Portanto, a pesquisa evidencia uma abordagem semiolinguística, levando-se em conta

as características gerais do discurso empreendido e assimilado pelas partes em julgamentos de

competência do júri, cujo veredito compete a jurados com ou sem formação jurídica, na maioria

das vezes sem qualquer formação nessa área, de sorte que os votos resultam mais da

sensibilidade interpretativa dos fatos, de suas versões e do senso comum de justiça de cada

jurado.

48

Nesse sentido, a pesquisa, em certa medida, prima-se pelo que preconiza Charaudeau

quanto às práticas sócio-discursivas, considerando o postulado de intencionalidade, os

princípios de interação e pertinência relativos ao ato de linguagem, senão vejamos:

Na abordagem semiolinguística, enfim, o princípio de pertinência – que

implica o ato de reconhecimento recíproco por parte dos parceiros e um saber

comum – vai muito além da instância de enunciação do ato de linguagem:

inclui todo um conhecimento prévio sobre a experiência do mundo e sobre os

comportamentos dos seres humanos vivendo em coletividade, conhecimento

este que não precisa ser expresso, mas que é necessário à produção e

compreensão do ato de linguagem. Tal abrangência nos leva a afirmar que o

ato de linguagem se realiza num duplo espaço de significância, o externo e o

interno à sua verbalização, determinando dois tipos de sujeitos de linguagem:

os parceiros, que são os interlocutores, sujeitos de ação, seres sociais que têm

intenções – que chamamos de sujeito comunicante e sujeito interpretante; e os

protagonistas, que são os intra-locutores, os sujeitos de fala, responsáveis pelo

ato de enunciação – os quais chamamos de (sujeito) enunciador e (sujeito)

destinatário. E embora haja uma relação de condição entre esses dois tipos de

sujeitos, não há entre eles uma relação de transparência absoluta.3

Não resta dúvida que o campo jurídico atinente a julgamentos de competência do júri

é fértil à Análise do Discurso, mormente em relação ao gênero petição, haja vista as estratégias

argumentativas utilizadas com propósitos persuasivos, considerando sobretudo a interface entre

sujeito comunicante e sujeito interpretante.

2.3.3.2 Objetivos específicos:

a) evidenciar que a enunciação discursiva pode mudar a natureza das coisas, tornando

formalmente o justo em injusto ou vice-versa, daí a vulnerabilidade dos jurisdicionados – autor

e réu - bem como toda a sociedade, pois ninguém está isento de se ver diante de uma situação

limite que lhe obrigue a se defender de uma acusação, até mesmo perante o tribunal do júri,

dadas as vicissitudes do dia a dia em um mundo tão conturbado;

b) demonstrar que aspectos linguístico-discursivos têm peso considerável nas decisões

jurisdicionais, mormente no âmbito do tribunal do júri, cujos integrantes são pessoas leigas em

relação a aspectos jurídicos em sentido stricto, portanto o que pesa em suas decisões são as

interpretações acerca dos discursos proferidos pelas partes;

c) apontar as estratégias argumentativas utilizadas no gênero de discurso petição, bem

como a construção da imagem pelo enunciador e enunciatário, na perspectiva do ethos e pathos,

3 CHARAUDEAU, Patrick. Uma análise semiolinguística do texto e do discurso. In: PAULIUKIONIS, M. A. L.

e GA VAZZI, S. (Orgs.) Da língua ao discurso : reflexões para o ensino. Rio de Janeiro : Lucerna, 2005, p. 11-

27

49

evidenciando a força cênica do eu enunciador perante o auditório, o tu enunciatário;

d) alertar para o fato de que, mesmo agindo em conformidade com os preceitos legais, as

decisões judiciais muitas vezes são antagônicas, como demonstram jurisprudências que dão

suporte aos jurisdicionados em polos distintos, ou seja, autor e réu, cada qual se valendo de

decisões que lhes sejam favoráveis, portanto o fiel da balança pode pender em razão da eficácia

enunciativa. Comprovam esse antagonismo os recursos interpostos nas várias instâncias cíveis

e penais, até exauri-los na Suprema Corte, que, por sua vez, também apresenta divergências de

entendimento entre seus ministros, tanto que a composição do colegiado é sempre formada por

número ímpar para se evitar o constrangimento de empate em julgamentos dessa natureza;

d) evidenciar que, a despeito de nuances inerentes a cada caso, o ordenamento jurídico

confere legitimidade às decisões judiciais tanto a favor quanto contra em situações análogas ou

díspares, mormente quando se observam o devido processo legal, a ampla defesa e o

contraditório;

e) fomentar a ideia e viabilidade de se implantar o duplo grau de jurisdição no âmbito do

Tribunal do Júri, visando facultar de forma efetiva a ampla defesa e o contraditório na mais

ampla acepção da expressão, visando rediscutir o mérito em grau de recurso perante o Júri em

instância superior, ou seja, no mínimo, no Tribunal de Justiça.

51

3 REFERENCIAIS TEÓRICOS

O propósito deste capítulo é demonstrar a base teórica sobre a qual procuramos nos

respaldar para evidenciar a influência da argumentação visando auferir um resultado

satisfatório, bem como os meios discursivos para confrontar outros pontos de vista em sentido

inverso, ressaltando a plausibilidade tanto em um quanto em outro vértice, porque, não fosse

por essas possibilidades, sequer haveria razões para se discutir a demanda na via judicial,

porquanto uma das partes se resignaria à sua condenação ou absolvição do outro, conforme o

caso, sem que se procedesse ao exercício do dialogismo inerente às demandas judiciais.

3.1 Relação dialógica, concepção identitária e relação de poder no discurso

O corpus nos permite explicitar a realidade dos fatos e, a partir dela, tirar conclusões

acerca de situações semelhantes, entendendo melhor o ordenamento jurídico, bem como a

relativa vulnerabilidade do sistema a partir dessa perspectiva, ressaltando que os

acontecimentos tendem a se repetir a ponto de sugerirem novas leis aperfeiçoando o sistema

como um todo, portanto a pesquisa vislumbra chamar a atenção para a realidade, visando

modificá-la no que for possível, sem a pretensão de querer mudar só por mudar.

Ademais, não nos cabe tão somente a posição apática e passiva de aceitar as coisas tais

como elas se nos apresentam sem nos posicionarmos em relação àquilo que possa ser

melhorado. Ouvimos os discursos emanados de nossos parlamentares enunciadores, que, no afã

de disciplinar o ordenamento jurídico, editam leis que nem sempre se coadunam com nossas

demandas, portanto podemos e devemos questionar o sistema sempre que entendermos

necessário.

Em sua obra Estética da Criação Verbal, Bakhtin (2011, p. 271) afiança que “A

compreensão passiva do significado do discurso ouvido é apenas um momento abstrato da

compreensão ativamente responsiva real e plena, que se atualiza na subsequente resposta em

voz real alta (...)”, mas muitas vezes essa resposta se dá a posteriori, portanto é sempre

oportuno questionar o status quo primando-se por uma posição responsiva oportuna, até porque,

segundo o referido autor, “Os gêneros da complexa comunicação cultural, na maioria dos

casos, foram concebidos precisamente para essa compreensão ativamente responsiva de efeito

retardado. Nesse propósito, voltaremos a esse tema ao questionarmos o sistema do tribunal do

júri, principalmente ao discorremos sobre os argumentos empreendidos pelo Relator no Anexo

05.

52

Assim não nos cabe ser apenas uma caixa de ressonância à vista do processo legislativo

ou em face dos discursos proferidos por nossos parlamentares, de sorte que os questionamentos

em pauta são oportunos a uma atuação responsiva, e esse é um dos propósitos da presente

pesquisa.

Ao tratarmos de um caso concreto, de certa forma, estamos vislumbrando outros

similares, haja vista que o comportamento humano, em geral, tende-se a voltar-se para o bem,

mas nas distorções também há similitudes em relação ao mal. Tanto assim o é que o caso Eliza

Samudio, em certa medida, assemelha-se em vários aspectos ao caso Denise Lafetá ora em

comento, ambos com grande repercussão na mídia.

Nesse intento, ao nos reportarmos ao julgamento em comento, partimos do micro para

exemplificarmos o macro, do particular para o geral, na medida em que haja uma simetria nas

situações, o que se constatará ao longo da pesquisa. Vale ressaltar que o fenômeno da polifonia,

em parte, se justifica em face dos fatos que por sua vez se repetem, daí a importância de

centrarmos em uma situação fática como referência empírica em situações concretas da mesma

natureza.

Para subsidiar a pesquisa, perscrutamos as enunciações doutrinárias e jurisprudências

atinentes às petições objetos do julgamento em si, tanto num viés quanto noutro, o que fomenta

a perspectiva da polifonia e alteridade inerentes ao vozeamento. Por oportuno, pesquisamos

obras voltadas para a AD visando respaldar nossas conjecturas sobre o tema tratado, não nos

esquecendo de recorrer também a obras literárias que tratam sobre a concepção de justiça, bem

assim sobre a burocracia estatal, mormente no âmbito do Judiciário, servindo como parâmetros

obras como O Processo e O Castelo de Franz Kafka, que de certa forma denunciam a burocracia

estatal e o controle social preconizado na semiotização externada por Bakhtin/Volochinov em

Marxismo e Filosofia da Linguagem.

Também nos reportamos à questão da formação identitária, tanto na perspectiva do

ethos quanto do pathos, bem como na valoração de um suposto prestígio social engendrado

artificialmente para respaldar estrategicamente determinadas funções de estado, a exemplo de

juízes, promotores, delegados, procuradores, advogados, como enfatizou Foucault em A

Arqueologia do Saber em relação a outros saberes, a exemplo da posição identitárias do médico,

do economista, do cientista nas respectivas épocas, haja vista sua pesquisa num viés diacrônico.

Tais estratégias também foram evidenciada por Amossy (2005) - A Imagem de Si no Discurso

- a construção do ethos, ressaltando inclusive a consciência da relação identitária vislumbrada

no auditório, que, por sua vez, implica percepção do pathos.

A pesquisa aguça questionamentos de interesse geral, sobretudo por se tratar de

53

questões polêmicas, no caso, um crime difícil de ser desvendado, sem provas materiais de sua

autoria, o que, por óbvio, demanda confrontos de ordem argumentativa de ambas as partes,

tanto da promotoria quanto da defesa, daí o porquê de se tratar de campo fértil aos estudos

linguísticos voltados para a dialética, haja vista as enunciações discursivas que perpassam pelo

crivo da veracidade dos fatos narrados, de juízos de valor, legalidade, interpretação da lei, dos

fatos e suas versões.

Vislumbrando essas circunstâncias, que por sinal não se resumem exclusivamente na

interpretação da lei em si, mas também dos fatos e suas versões, o gênero petição se

consubstancia oportuno a se conjecturar sobre a concepção de justiça, tendo em vista que quem

decide no âmbito do júri são jurados leigos que farão suas ponderações para dar o veredicto

sobre a condenação ou absolvição do acusado acerca de um crime cuja autoria lhe seja

imputada. É bom ressaltar que o dilema em questão não se dá exclusivamente em julgamento

oriundo do júri, pois mesmo em relação a decisões emanadas de juízes togados a celeuma

sempre estará presente, pois o conceito de justo é relativo, qualquer que seja a decisão tomada

em consonância com os preceitos processuais definidos nos respectivos códigos.

Nesse propósito, optamos pelo caso concreto em questão, visando demonstrar a

vulnerabilidade das partes à vista da interpretação dada às enunciações discursivas, sobretudo

em situações polêmicas que admitam tanto um viés quanto outro, haja vista que nem sempre há

unanimidade nas decisões dos jurados, como ocorreu no processo em análise, cujo resultado foi

cinco votos pela condenação e dois pela absolvição, sendo que a interpretação desses dois votos

vencidos não partiu do acaso, mas também de outros pontos de vista que devem ser sopesados

e respeitados por razões óbvias.

Deve-se frisar que, mesmo tratando em grande medida de direitos inerentes às partes,

incluindo as vicissitudes atinentes à acepção de justiça, de direito, de julgamento, de

argumentações jurídicas, de doutrinas e jurisprudências, a essência residirá sempre nos aspectos

linguísticos, haja vista que o direito se consubstancia em vários fatores, mormente no

contraditório, na dialética, na retórica, na responsividade, no dialogismo, na interação verbal,

na polifonia, na alteridade, daí a relação intrínseca com a linguística e a análise do discurso.

Nesse sentido, convém ressaltar que, ao tratarmos de temas voltados para o direito, na

essência, as questões linguístico-discursivas estão a ele subjacentes, imbricadas, como de resto

ocorre no campo da psicologia, sociologia, antropologia, comunicação, publicidade etc.

A propósito, toda a trajetória do processo em referência demonstra as vicissitudes de

julgamentos em geral, pois no caso sob análise estão intrínsecos aspectos atinentes à prática

linguageira, aos discursos, à interpretação dos fatos, dos posicionamentos enunciativos,

54

evidenciando o dialogismo em toda a sua dimensão por questões óbvias, especialmente pelo

direito à ampla defesa, pelo contraditório, isonomia processual entre as partes, pelas estratégias

argumentativas empreendidas tanto pelo autor quanto pelo réu.

No processo em referência evidenciamos o dialogismo em face da flagrante celeuma

envolvendo o crime, o que se vislumbra no trabalho das autoridades policiais, do promotor, juiz

de primeira instância, do colegiado nos tribunais superiores, bem como nos depoimentos das

testemunhas, do próprio réu, e nas alegações emanadas do advogado. Contudo, outros aspectos

discursivos serão evidenciados oportunamente, como a interação verbal, a polifonia, alteridade,

a perspectiva identitária formatada a partir do ethos, e pathos.

Ademais, na esfera do direito penal, por razões as mais diversas, há juízos de valor que

são levados em conta, como aspectos emotivos, principalmente quando envolvem questões

familiares, perda de entes queridos, a angústia de amigos, conhecidos e por que não até mesmo

dos profissionais que se empenham de forma sobre-humana no desvendar do crime, inclusive

as agruras da própria sociedade que se revolta contra a prática de delitos dessa natureza, o que

provoca comoção social pela repercussão do caso.

Todo esse procedimento nos dá a dimensão dos fatos, mormente no que sugere a

relação dialógica existente em toda a contextualização processual, sem nos olvidarmos da

interação verbal intrínseca aos procedimentos, ao julgamento em si, à contextualização dos fatos

e fundamentos externados na doutrina e jurisprudência que servem de parâmetros para respaldar

argumentos favoráveis e contra uma linha de raciocínio, fatos esses que nos remetem à

alteridade e polifonia, conceitos a serem explicados no decorrer da pesquisa.

Por razões óbvias, não há como negar a importância da linguagem, dos discursos e de

seus influxos em relação ao gênero de discurso mais abrangente que é o julgamento em si e, por

conseguinte, o gênero a ele imbricado, no caso, a petição, foco da pesquisa, porquanto toda

movimentação processual se faz por meio dela, daí sua riqueza, motivando-nos a embrenhar

nessa seara que, pelas circunstâncias dialéticas e antagônicas, nos afligem enquanto profissional

dessas áreas: letras e direito.

Antes de adentrarmos no corpus, faz-se oportuno tecer considerações acerca do

julgamento, que, pelas circunstâncias, culminou com grande repercussão midiática, dado à

especificidade do caso – o desaparecimento da jovem Denise Lafetá sem qualquer pista sobre

o ocorrido - tendo a vítima deixado uma filha de apenas seis meses de idade, sem que seu

companheiro tenha informado aos familiares e à própria polícia qualquer pista sobre o paradeiro

de sua amásia, a não ser a informação sumária de que a última vez que a teria visto foi quando

a deixou na rodoviária da cidade de Uberlândia-MG.

55

Contribuiu também para a repercussão do julgamento outro fato incomum, que, por

sua vez, aguçou a curiosidade geral, qual seja: o julgamento do acusado DAP sem o exame de

corpo de delito direto da vítima, porquanto o corpo jamais foi encontrado, fato esse que gerou

controvérsias de toda ordem, tornando muito mais difícil o trabalho da acusação, haja vista as

incertezas num primeiro momento quanto à autoria do crime, considerando a máxima do direito

penal relativa ao brocardo jurídico in dubio pro reu.

Pelas circunstâncias elencadas, mormente pela dificuldade de obtenção de provas, bem

assim pela negativa de autoria, não restam dúvidas de que, somente com muito empenho e

determinação e mediante argumentos contundentes por parte da acusação, chegar-se-ia a um

resultado favorável à acusação, o que demandaria estratégias enunciativas convincentes no

campo da prática linguageira, sobretudo no que concerne à perspectiva persuasiva nesse mister,

daí a importância da linguística nessa relação discursiva aflorada, aliás abrangente em qualquer

demanda jurídica, uma vez que a jurisdição implica demanda de interesses antagônicos, cuja

solução impõe debates, argumentos, estratégias persuasivas a todos os envolvidos na demanda.

No caso em tela, a jovem nascida na cidade de Coração de Jesus-MG viera para Belo

Horizonte em 1986 para estudar, tendo conhecido DAP, um alto funcionário da Petrobrás à

época, com quem passou a se relacionar. Nessa ocasião, o acusado teria sido transferido para a

cidade de Uberlândia-MG, local onde passou a conviver maritalmente com a jovem Denise

Lafetá. Ocorre que DAP era casado à época com N, com quem teve filhos, fatos que trouxeram

outras complicações, pois sua amásia engravidou-se nesse período.

Como noticiado no inquérito, a então esposa de DAP passou a questionar essa relação

extraconjugal, sendo que ele se comprometera em “resolver a situação” logo após o nascimento

de sua filha. Fato é que assim que, a criança completou seis meses de vida, a jovem Denise

Lafetá desapareceu, gerando as desconfianças quanto à culpabilidade do acusado,

principalmente por parte dos parentes da jovem desaparecida.

Por não haver qualquer pista da jovem, mesmo com o empenho dos familiares,

vizinhos e amigos nessa empreitada, houve a denúncia junto à delegacia de homicídio de

Uberlândia, cujo inquérito fora de pronto instaurado, tendo se empenhados no caso tanto o

delegado da cidade quanto o promotor de justiça daquela Comarca, Dr. Tibúrcio Délbis, dando

por instaurado o julgamento como crime de assassinato e ocultação de cadáver, julgamento

emblemático pelo fato de não se ter notícia do corpo da vítima, não possibilitando o

imprescindível exame de corpo de delito.

A repercussão do julgamento foi motivada sobretudo pelo fato incomum, inusitado à

época face à acusação da prática de um crime de homicídio sem prova cabal do assassinato e

56

sobretudo do envolvimento do acusado, embora houvesse suspeita. Nesse sentido, a acusação

ancorou-se em provas testemunhais, bem assim em outras pistas consideráveis, embora bem

mais frágeis que provas diretas.

Confirma essa dificuldade o fato de o processo só se ter consumado com o trânsito em

julgado após percorrer todas as instâncias possíveis, ou seja, do Tribunal do Júri da Comarca

de Uberlândia ao STF, cujo veredicto do Conselho de Sentença foi pela condenação do réu,

culminando na pena de 13 (treze) anos de reclusão, sendo 12 (doze) anos pelo crime de

homicídio e 01 (um) ano pelo crime de ocultação do cadáver, num veredicto de 05 (cinco) votos

a favor da condenação e 02 (dois) votos pela absolvição.

Se no campo jurídico-processual se evidencia a complexidade de um processo dessa

natureza, não se pode ignorar os influxos dessa demanda sob o ponto de vista linguístico, haja

vista os matizes relacionados ao processo de comunicação, as celeumas criadas pelas partes

visando auferir um resultado positivo, de sorte que o acusador se embrenha no propósito de

desqualificar a defesa, e na mesma perspectiva, a defesa atua com afinco para neutralizar

aquelas estratégias e ao mesmo tempo incrementar suas intenções enunciativas noutro viés,

visando à absolvição.

Releva frisar que nessa relação discursiva antagônica há uma cortina de fumaça

atinente à ética, porquanto não se pode ignorar essa conduta por razões as mais diversas. Um

dos fatores preponderantes nesse sentido diz respeito à representação das partes, pois na relação

processual há uma situação atípica, qual seja: os interessados na demanda, as partes

propriamente ditas, não falam por si, eis que elas são representadas por outrem, no caso, por

procuradores, o que tem outras implicações na medida em que o advogado tem compromisso

consigo mesmo, com o Conselho de Classe da categoria, no caso a Ordem dos Advogados do

Brasil – OAB, com o código de ética, portanto não pode agir discursivamente sem se preocupar

com essas especificidades.

Lado outro, o réu, em princípio, não teria maiores compromissos nesse sentido, pois o

que lhe importa é auferir o resultado almejado, no caso, sua absolvição e, por conseguinte, sua

liberdade. Nesse sentido, há uma relação “incestuosa”, em que se imbricam dois narradores, o

narrador de primeira pessoa, quando o réu presta depoimentos; o narrador de terceira pessoa na

condição de advogado do réu.

Essa dicotomia impõe restrições na prática discursiva, pois o discurso está adstrito a

certas condições, à moral, à ética, a códigos e procedimentos, embora se perceba muitas vezes

a inobservância desses princípios nessa relação dialógica, o que em certa medida mitiga a

relação enunciativa como um todo.

57

O julgamento em tela, pelas próprias circunstâncias, demonstra polêmicas as mais

diversas, não só pela especificidade relativa ao desaparecimento da vítima e ao fato de o corpo

jamais ter sido encontrado, mas também pela impronúncia do réu pelo juiz da vara criminal

daquela Comarca, cuja decisão se baseara na falta de prova cabal quanto à materialidade e

indícios suficientes de autoria, motivando, pois, recursos ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais

- TJMG, inclusive ao STJ.

Interessante ainda frisar que, na apuração dos votos, dois jurados absolveram o réu

nesse julgamento entendendo de forma semelhante ao posicionamento do juiz que não acatou a

petição pelo pronunciamento do réu, logo, em termos hipotéticos, se esse juiz fosse um dos

jurados do Conselho de Sentença que julgou o réu DAP, certamente ao invés de dois votos o

acusado passaria a ter três votos a favor da absolvição, ou seja, o resultado que foi de cinco a

dois já passaria a ser quatro a três; isso posto, bastaria que houvesse outro jurado pensando da

mesma forma para que houvesse a absolvição do réu, pois haveria 04 (quatro) votos a favor da

absolvição contra 03 (três) pela condenação, demonstrando pois o quão polêmico é um

julgamento como esse, o que só vem a corroborar a importância do gênero petição, dadas as

estratégias argumentativas tanto da defesa quanto da acusação.

Com o advento da Lei 11.689 de 2008, hoje basta a contagem de quatro votos

favoráveis à condenação ou quatro pela absolvição que já não carece da contagem dos demais

votos, pois já se teria a maioria suficiente, o que contribui para fomentar o sigilo no Tribunal

do Júri, evitando, por conseguinte, a hipótese de explicitar eventual unanimidade, que, por

razões óbvias, daria a certeza dos votos de todos os jurados, o que poderia ser comprometedor,

mormente em casos envolvendo crime organizado, formação de quadrilha, etc.

Essas questões de altas indagações, por si, ensejam debates de toda ordem, como se

depreende do corpus e do livro Homicídio sem Cadáver. A narrativa dos fatos corrobora

também a dialética argumentativa, visando à persuasão dos interlocutores, o que, por sua vez,

demonstra que a questão não reside exclusivamente na seara jurídica, mas em grande parte e

principalmente em questões semântico-discursivas.

Nesse propósito, convém tecer considerações preliminares acerca do Tribunal do Júri.

Como assevera um dos maiores penalista do direito brasileiro, mormente na área do processo

penal, o jurista Antônio José Miguel Feu Rosa, "O júri faz parte da própria história do homem

desde os tempos mais remotos, nas civilizações mais antigas, o homem era julgado por seus

semelhantes. Sempre foi este o modo de se fazer justiça" - (FEU ROSA, 1999, p. 554). Trata-

se, pois, de um instituto secular que se reporta inclusive ao antigo testamento.

58

Vale trazer à colação alguns exemplos de julgamentos populares dessa natureza para

ilustrar os meios utilizados pelo homem para fazer justiça há milênios. O próprio Feu Rosa se

reporta ao livro do Êxodo, § 18, para explicitar esse procedimento. Ao trazermos esse exemplo,

estamos nos inspirando também na Arqueologia do Saber de Foucault, que alertou para a

necessidade de se vislumbrar a trajetória dos saberes diacronicamente, para compreensão de

como pensava o homem em determinada época, bem assim dissecar como são constituídas as

formações discursivas e o controle social.

Na descrição arqueológica, Foucault conclui o seguinte:

Finalmente, a arqueologia não procura reconstituir o que pôde ser pensado,

desejado, visado, provado, almejado pelos homens no instante mesmo em que

proferiam o discurso; ela não se propõe a recolher esse núcleo fugidio onde

autor e obra trocam de identidade; onde o pensamento permanece ainda o mais

próximo de si, na forma ainda não alterada do mesmo, e onde a linguagem não

se estendeu ainda na dispersão espacial e sucessiva do discurso. Em outras

palavras, não tenta repetir o que foi dito reencontrando-o em sua própria

identidade. Não pretende se apagar na modéstia ambígua de uma leitura que

deixaria voltar, em sua pureza, a luz longínqua, precária, quase extinta da

origem. Não é nada mais diferente de uma reescrita: isto é, na forma mantida

da exterioridade, uma transformação regulamentada do que já foi escrito. Não

é o retorno ao segredo da origem; é a descrição sistemática de um discurso-

objeto. (FOUCAULT, 1972, p. 172)

Assim, ao nos reportarmos às reminiscências relativas ao julgamento do homem pelo

homem por um tribunal constituído por pessoas do povo, estamos corroborando a

discursividade polifônica e sobre a interação verbal preconizadas por Ducrot (1987) e Bakhtin

(1990), na medida em que a história se consubstancia numa sequência de atos, fatos, versões

dos fatos e de enunciações, redundando, pois, nas práticas discursivas ao longo da história da

humanidade.

Esse singelo histórico acerca do Tribunal do Júri nos dá a dimensão da extensão desse

instituto milenar, que se resume, em última instância, na máxima democrática segundo a qual

todo poder emana do povo, nos termos do parágrafo único do art. 1º da CF/88. Não obstante

essa máxima, há de se levar em conta a semiotização social que, direta ou indiretamente, traça

parâmetros para disciplinar o ordenamento jurídico visando sobretudo ao controle social.

Nessa seara, poder-se-ia questionar o próprio Tribunal do Júri, como o fazem muitos

de seus críticos, asseverando que, se o poder emana do povo, que o exerce por meio de seus

representantes, por que não constituir o Tribunal do Júri por juízes togados que, pelo próprio

axioma em questão, estariam cumprindo essa máxima preconizada no dispositivo legal

supracitado, por representação? A questão se nos configura polêmica e se justifica pela

59

semiotização discursiva ideológica visando ao controle social, como alega Bakhtin:

Os signos também são objetos naturais, específicos, e, como vimos, todo

produto natural, tecnológico ou de consumo pode tornar-se signo e adquirir,

assim, um sentido que ultrapasse suas próprias particularidades. Um signo não

existe apenas como parte de uma realidade; ele também reflete e refrata uma

outra. Ele pode distorcer essa realidade, ser-lhe fiel, ou apreendê-la de um

ponto de vista específico, etc. Todo signo está sujeito aos critérios de avaliação

ideológica (isto é: se é verdadeiro, falso, correto, justificado, bom, etc.). O

domínio do ideológico coincide com o domínio dos signos: são mutuamente

correspondentes. Ali onde o signo se encontra, encontra-se também o

ideológico. Tudo que é ideológico possui um valor semiótico'

(BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1990, p. 32).

Assim, podemos vislumbrar os influxos do Tribunal do Júri, inclusive quanto a sua

independência, tanto que a sentença do juiz togado se reveste tão somente de efeitos

homologatório do veredicto do conselho de sentença, ou seja, a decisão do povo tem o condão

de ser intocável, até mesmo pelo juiz togado, não podendo haver recurso, ainda que o

magistrado seja favorável à absolvição ou condenação do réu, entendendo em seu íntimo que o

julgamento tenha sido injusto por essa ou aquela razão, a despeito de ter seguido os trâmites

processuais em questão.

A propósito, o livro Homicídio sem Cadáver não se resume em mero suporte para a

presente pesquisa, mas sim como gênero discursivo relato, portanto com relevância na

constituição do corpus, constituindo ele próprio objeto de análise. As petições que compõem o

Anexo foram consideradas na pesquisa tanto em sentido stricto quanto lato, até porque, como

sabemos, o gênero de discurso é relativamente estável na concepção bakhtiniana, portanto não

é de se estranhar a similitude entre gêneros afins. Nesse sentido, como a diferenciação se

encontra tão somente na nomenclatura, trataremos essas peças como petição por questões

didáticas.

No capítulo seguinte adentramos no gênero em questão, apresentando algumas nuances

relevantes nesse propósito, trazendo à colação as supramencionadas petições, ou seja: o relato

conclusivo do inquérito policial, a sentença de impronúncia do juiz de primeiro grau, o recurso

interposto no Tribunal de Justiça de Minas Gerais pelo promotor de justiça, as narrativas das

testemunhas, bem como considerações acerca da condenação do réu e de eventual erro crasso,

caso no futuro a vítima aparecesse viva, como já ocorrera em outros casos.

Para melhor compreensão dos aspectos linguísticos inerentes às estratégias

argumentativas presentes no corpus, pautamo-nos nas petições extraídas dos autos do processo.

Apresentamos na presente pesquisa uma abordagem metodológica de natureza interpretativa,

focando o estudo no gênero de discurso petição, exemplo cabal do conceito preconizado por

60

Bakhtin (2003), segundo o qual todo gênero possui formas relativamente estáveis.

Faz-se imperioso atentar-se para o fato de que a petição é utilizada por qualquer

cidadão para resguardar direitos perante o Judiciário e também junto à Administração Pública,

seja para apresentação de uma denúncia junto aos órgãos de fiscalização, corregedorias,

conselhos fiscais, tribunais de contas, auditorias e controladorias, seja nas esferas judiciais em

sentido estrito, a exemplo do caso em apreço, no qual consideramos como petição todos os

documentos emanados das autoridades, assim como das partes, entendendo a petição em

sentido lato, porquanto uma contestação, por exemplo, será aqui tratada como petição por

questões didáticas.

Na presente pesquisa, nos concentramos em petições relacionadas especificamente ao

julgamento do acusado pelo crime de assassinato da jovem Denise Lafetá, contudo vale ressaltar

que as mesmas estratégias argumentativas utilizadas em um julgamento como esse, respeitadas

as especificidades de cada situação, são válidas para outras situações, uma vez que o cerne da

questão reside nas estratégias discursivas, considerando enunciações empreendidas, os modos

de dizer, os sujeitos da relação discursiva, o Eu comunicante (Euc) e o Tu Interpretante (TUi),

como na concepção de Charaudeau (2009), ou na perspectiva de Benveniste (2005) que

preconiza a impossibilidade na enunciação do Eu sem o Tu, e do TU sem EU (sem mim); e

ainda em Bronckart (2009), na relação entre os actantes, no caso o EU, o TU – respectivamente,

sujeito enunciador (EUe) e o sujeito destinatário (SUd) ou tu interpretante (TUi) e o ELE, mais

especificamente na relação de trabalho, sendo que todas essas acepções direta ou indiretamente

visam à persuasão do enunciatário com intenções dirigidas a um determinado propósito.

Ao nos reportarmos ao direito de peticionar resguardado pelo inciso XXXIV do art. 5º

da Constituição da República, vislumbramos nesse dispositivo um dos mais importantes direitos

do cidadão, pois ele faculta ao interessado o direito de peticionar perante a Administração

Pública ou ao Judiciário para salvaguardar direitos que possam estar sendo violados, aviltados

arbitrariamente. Essa iniciativa, por si, cria uma relação processual entre o cidadão e o Estado,

na qual vai se aflorar um diálogo que se inicia com a iniciativa do enunciador (Peticionário),

ensejando, pois, o dialogismo na concepção bakhtiniana, porquanto na maioria das vezes o

gênero em questão está relacionado a conflitos de interesses, gerando uma esfera de tensão

acerca de pontos de vista divergentes ou antagônicos.

O art. 5º da CF/88 faz parte do rol das garantias fundamentais do cidadão, sendo que o

inciso XXXIV garante o direito de petição, a saber:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,

garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a

61

inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à

propriedade, nos termos seguintes: XXXIV - são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra

ilegalidade ou abuso de poder; (Constituição da República Federativa do

Brasil, 1988)

Da leitura atenta do dispositivo legal em epígrafe, percebem-se claramente alguns

princípios jurídicos cuja observância por todos é imprescindível. São preceitos republicanos

emanados de uma Assembleia Constituinte em pleno exercício da democracia, portanto direitos

irrefutáveis e, por conseguinte, inalienáveis.

Para o resguardo desses direitos, assim como de tantos outros relacionados com os

direitos e garantias da pessoa humana, faz-se imperioso o exercício da cidadania de forma

efetiva, ressaltando que formalmente ou teleologicamente todos são iguais perante a lei e

titulares de direitos e deveres.

Para se exercer o direito de petição sequer necessita da assistência de advogado perante

a Administração Pública, assim como para impetrar um habeas corpus por prisão ilegal,

portanto cabe ao interessado a iniciativa de peticionar, apresentando argumentos que lhe sejam

favoráveis, com clareza, objetividade, utilizando-se de recursos linguísticos estratégicos como

os operadores argumentativos, modalizadores, primando-se pela coerência, coesão e conexão

discursiva.

Com o advento do novo Código de Processo Civil de março de 2016, a petição passou

a ser disciplinada pelo art. 319, cujas minúcias têm razões de ser, inclusive em relação a aspectos

linguísticos, pois ao se observarem literalmente esses pressupostos, resguarda-se ao intérprete

juiz-enunciatário o quantum se pede, nem a mais, nem a menos, nem fora do que se pleiteia,

mormente no que tange aos fatos e fundamentos, restringindo-se ao pedido, suas especificações,

eis que são esses os parâmetros para se julgar em relação ao interesse do autor.

Assim, a petição deve estar adstrita a seus pressupostos, a saber:

Art. 319. A petição inicial indicará: I - o juízo a que é dirigida; II - os nomes, os prenomes, o estado civil, a existência de união estável, a

profissão, o número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas ou no

Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica, o endereço eletrônico, o domicílio e a

residência do autor e do réu; III - o fato e os fundamentos jurídicos do pedido; IV - o pedido com as suas especificações; V - o valor da causa; VI - as provas com que o autor pretende demonstrar a verdade dos fatos

alegados; VII - a opção do autor pela realização ou não de audiência de conciliação ou

de mediação. § 1o Caso não disponha das informações previstas no inciso II, poderá o

62

autor, na petição inicial, requerer ao juiz diligências necessárias a sua

obtenção. § 2o A petição inicial não será indeferida se, a despeito da falta de informações

a que se refere o inciso II, for possível a citação do réu. § 3o A petição inicial não será indeferida pelo não atendimento ao disposto no

inciso II deste artigo se a obtenção de tais informações tornar impossível ou

excessivamente oneroso o acesso à justiça. (Código de Processo Civil, 2015)

Como salientamos, essas minúcias quanto à petição têm relação intrínseca com

aspectos linguísticos na medida em que a inobservância de alguns desses pressupostos, seja pelo

peticionário, seja pelo juiz, pode ensejar embargos de declaração, que são recursos contra

sentenças confusas, mal elaboradas, que não observaram a contento o que se pediu, muitas vezes

por interpretação equivocada do enunciatário, no caso o juiz, que, ao proferir a sentença, passa

de enunciatário a enunciador, de sorte que sua peça não pode ir além nem aquém do que se

pede, assim não pode a sentença fugir ao que se pleiteia. Por óbvio, os embargos declaratórios

são motivados por questões linguísticas, haja vista a relação dialógica inerente à petição em si,

bem como a interpretação dos fatos pelo enunciatário.

No âmbito do direito processual penal, a petição inicial seria vulgarmente a queixa

apresentada ao delegado, à autoridade policial, tecnicamente denominada notitia criminis, que

também pode ser apresentada diretamente à promotoria pública, não havendo maiores

formalidades, até pelo fato de ser documento elaborado por qualquer interessado. Podendo em

certas circunstâncias ser apresentada por qualquer pessoa, sem exigências técnicas nesse

sentido, a petição é sem dúvida uma peça fundamental aos estudos linguísticos, na medida em

que por meio dela a enunciação retrata a intenção do enunciador, seus propósitos, suas

estratégias enunciativas, sempre externando pontos de vista favoráveis ao interessado.

Assim, faz-se imprescindível imprimir nesses documentos estratégias argumentativas

eficazes visando à persuasão do enunciatário - juiz, delegado, promotor público, funcionário

público - sendo que, em face do princípio da ampla defesa e do contraditório, dar-se-á ensejo a

outras petições em sentido inverso, daí as razões inerentes ao dialogismo, pois certamente a

contestação, que é outra petição, refutará os argumentos iniciais criando um clímax que redunda

no exercício interpretativo por parte de quem vai decidir a demanda.

3.2 Aspectos discursivos e ideológicos no controle social

Como é cediço, o homem age motivado por seus ideais com intenções

preestabelecidas, portanto prima por projetos de vida e de poder moldados desde sempre. Nessa

trajetória, há um longo caminho a ser percorrido, contando inclusive com percalços inerentes

às circunstâncias, estando vulnerável aos contratempos, eis que nem sempre as expectativas

63

correspondem ao esperado. Assim, considerando a vida em sociedade, o homem está sujeito às

intempéries sociais das mais diversas naturezas, sendo que suas reações são pautadas à vista

dos aspectos sócios-culturais.

Levando-se em conta essas perspectivas, não se pode ignorar que os conflitos de

interesse sejam inevitáveis, eis que a vida em sociedade impõe demandas de toda ordem,

portanto não há como ignorá-las. Assim, buscando disciplinar os conflitos inerentes aos

interesses individuais e coletivos, a sociedade tratou de se organizar, e nesse mister procurou

disciplinar as condutas, os direitos, o exercício dessas prerrogativas sociais por meio de

preceitos, normas, ordenamentos jurídicos, religiosos, em suma, vislumbrando ações que se

coadunem com suas pretensões.

Para tanto, não se pode ignorar o papel da linguagem, vez que, por meio dela, o homem

se organiza, agrupando-se socialmente de acordo com interesses comuns, sem ignorar que, em

qualquer meio, haverá em contrapartida interesses individuais díspares, até porque cada pessoa

se pauta por projetos de vida próprios, daí o porquê dos conflitos. Ora, o homem enquanto ser

social não consegue viver isolado, mas, vivendo em sociedade, não consegue conviver

harmoniosamente em todos os sentidos sem que houvesse códigos de conduta ético-morais que

disciplinassem a relação social entre os indivíduos, logo, por convenções nesse desiderato, são

elaboradas as normas de convivência, como por exemplos as leis, regulamentos, regimentos,

convenções etc.

Nesse sentido, faz-se oportuno reportarmos ao Contrato Social preconizado por

Rousseau (1999), segundo o qual os homens, reunidos em sociedade, convencionaram em

estabelecer normas de convivência entre si, facultando ao Estado a prerrogativa de disciplinar

normas jurídicas que minimizassem os influxos negativos resultantes dos conflitos de interesses

existentes. De forma tácita, o homem abriu mão de sua liberdade plena, passando a tê-la de

acordo com a convenção instituída pela lei, vislumbrando uma contrapartida que seria motivada

pela autoridade do Estado para discipliná-la como convencionado pela própria sociedade.

Dessa forma, o Direito enquanto ciência que visa resguardar a justiça passa a ter

importância ímpar nesse contrato social, eis que ele se consubstancia no conjunto de regras que

disciplinam a vida em sociedade, limitando, pois, os poderes estatais às dimensões estritas do

estado democrático de direito, embora até mesmo nos estados totalitários também haja uma

parcela dessa convenção ficta do contrato social, porquanto, de outra forma, os concidadãos

poderiam se rebelar quanto a esse estado de coisa e promover revoluções ou mesmo guerras

civis para implantar a democracia ou outra forma de governo, inclusive apresentando

argumentos convincentes a esse propósito.

64

Logo, enquanto não haja essa iniciativa, entende-se tacitamente que não tenha havido

vontade ou oportunidade para tal propósito. Ressalte-se que, em qualquer circunstância, as

iniciativas são sempre respaldadas por discursos nesse ou naquele norte visando dar

legitimidade aos propósitos em questão.

A partir dessa digressão sumária acerca da vida em sociedade, adentramos nos influxos

da linguagem como fator primordial na solução dos impasses, o que se justifica pelo fato de o

direito disciplinar as relações conflituosas, sendo a linguagem a responsável por explicitar os

aspectos semântico-discursivos acerca do que seja efetivamente justo na concepção jurídica e

moral.

Aduz-se dos fatos sociais que o direito, por óbvio, não é um fim em si mesmo, pois

não basta dizer que ele se materializa no que a lei designa como sendo o certo ou o errado, mas

sim no que a sociedade convenciona por entender o que seja justo ou não, portanto esse conceito

de justiça se coaduna com a cultura de cada povo. Em tese, o ordenamento jurídico é apenas o

mecanismo utilizado para consubstanciar a justiça segundo a vontade da sociedade, haja vista

que o justo, ou o caráter de justiça, em si, já fora concebido na acepção semântica do termo

antes mesmo de haver uma lei que o defina como tal, portanto a linguagem e a semiotização

representativa dos fatos constroem a ordem jurídica à vista das demandas sociais que clamam

pela mudança ou manutenção do status quo.

Nesse propósito, podemos afiançar que são os discursos, as argumentações, as práticas

linguageiras, a interpretação do comportamento humano que vão interferir no processo

legislativo, culminando em leis, doutrinas e jurisprudências motivadas pela responsividade a

que mencionamos anteriormente na concepção bakhtiniana.

Ressaltamos que o foco principal da pesquisa em tela reside na linguagem e seus

influxos, assim como nas argumentações das partes envolvidas como fatores preponderantes

para o convencimento e a persuasão do enunciatário, portanto é nesse prisma que os estudos

serão vislumbrados, daí o porquê de focarmos no gênero petição em sentido lato, embora

pudéssemos optar por um gênero de discurso mais abrangente e correlato às petições, que seria

o julgamento, por sua vez, o macro gênero em relação a esses a que nos referimos, que também

guarda relações intrínsecas com a responsividade, haja vista o contraditório, a ampla defesa,

dialogismo, interação verbal, dentre outros aspectos, categorias essas que pertencem à esfera de

atividades e práticas discursivas.

Bronckart (2008, p.88) alerta para as características semiotizadas de indexações

sociais, uma vez que cada gênero é objeto de avaliações sociais, sendo visto e adaptado para

determinado agir, podendo ser mobilizado em uma ou outra situação de interação ou até mesmo

65

como um determinado valor estético. É nessa perspectiva que a petição se enquadra como objeto

de processos de conhecimento dotada do rótulo de maior ou menor estabilidade, conforme o

caso.

Na relação dialógica, não se pode ignorar sua contextualização social, valendo dizer

que em qualquer segmento da sociedade - religião, política, publicidade, jornalismo, e por óbvio

o direito -, há sempre tensões conflituosa motivadas por opiniões divergentes, até porque

inexiste discurso eminentemente autônomo, na medida em que há sempre interações verbais

que nos remetem a outros dizeres, a outras perspectivas, de sorte que a pretensa autonomia

discursiva não passa de uma ficção, porquanto todo texto traz em si a marca de outrem, daí o

porquê de opiniões díspares, sendo todo discurso ideológico e polifônico.

Na concepção bakhtiniana o homem é produto do intertexto, pois está inserido em uma

aldeia global, ainda que viva em uma comunidade isolada, uma vez que, mesmo nessas

condições, ainda haveria situações que o remetem a questionar o porquê das diferenças, da

cultura distinta, do receio em relação ao outro, enfim, todos esses questionamentos existem em

face da relação dialógica, da interação verbal e polifônica, fenômenos linguísticos distintos mas

que guardam relação intrínseca entre si.

Não é despiciendo frisar que a linguagem é a gênese de todos os propósitos

ideológicos, o que se vislumbra até mesmo na acepção teológica, segundo a qual, no princípio

era o verbo, numa simbiose semântica que representa tudo na palavra, no verbo enquanto

metonímia da linguagem ou das profecias. Portanto não há nada mais importante ao homem

que a comunicação, pois sem ela o ser humano não existiria com a consciência identitária, eis

que seria ele um solitário, daí a impossibilidade do discurso adâmico.

Utilizando-se do gênero petição em julgamentos ou em outras circunstâncias possíveis,

os interessados resguardam seus direitos apresentando argumentos que, a seu juízo, são

plausíveis a persuadir outrem, seja esse destinatário -TUi o juiz, o promotor de justiça, um

desembargador, jurados, delegados, autoridades administrativas ou até mesmo um servidor

público que apreciará o pedido externado pelo referido documento. Nesse propósito, os

argumentos persuasivos empreendidos pelos enunciadores são ancorados em proposições que

vão influenciar na decisão pleiteada visando sempre a um resultado seja favorável ao autor da

demanda, o requerente.

No afã de apresentar suas razões, as partes procuram utilizar-se de recursos discursivos

que foram objeto da pesquisa em pauta na perspectiva da AD, mormente no que tange aos

modos de organização, à construção da posição identitária do locutor/enunciador, utilizando-se

das modalizações, dos operadores argumentativos, dentre outros recursos. Noutro norte,

66

recorrem-se muitas vezes a argumentos falaciosos, à dialética, retórica, aos silogismos como

estratégias argumentativas visando sempre ao êxito na demanda.

A partir dessa digressão, adentrando na seara do processo criminal, deve-se atentar

para o fato de que os julgamentos de crimes dolosos contra a vida, tentados ou consumados,

não são julgados pelo juiz togado, mas sim pelo Tribunal do Júri, mais precisamente pelo

Conselho de Sentença composto por sete jurados, nesse caso juízes leigos, a quem basta

comprovação de serem alfabetizados e de boa conduta, sendo nomeados dentre cidadãos

comuns, atuando nesse mister sem ônus para o Estado, sendo que eles agem em nome da

sociedade, a quem cabe decidir pela condenação ou absolvição de acusados em crimes dessa

natureza.

Frisa-se que a Semiotização discursiva confere soberania aos julgados torna

irrecorríveis as decisões dos jurados a instâncias superiores, exceto quanto a erros formais,

processuais e decisões interlocutórias, mas nunca em relação ao mérito. Tal situação pode levar

a graves consequências, pois, não obstante a soberania a que nos referimos, vários fatores de

natureza discursiva podem contribuir para um resultado que não se coadune com a justiça na

acepção do termo, pois o resultado em julgamento desse viés depende muito de enunciações,

de modos de dizer, da interpretação dos fatos a partir da argumentação. Se por um lado essas

questões se nos apresentam como sendo eminentemente jurídica, por outro, e é neste que nos

interessa, elas têm relação intrínsecas com questões linguísticas, mais precisamente discursivas,

o que interfere diretamente no fazer justiça, em consonância com o direito na acepção do termo.

Nesse sentido, nunca é inoportuno lembrar-se do emblemático julgamento dos irmãos

Naves, em que a suposta vítima havia desaparecido, sendo os réus condenados pelo homicídio

e submetidos à pena de reclusão por vários anos após condenação pelo júri, até que veio à tona

o reconhecimento do erro judicial. O erro na verdade é tido como judicial por questões óbvias,

mas em sua essência houve erros interpretativos dos fatos e suas versões, na medida em que só

se condena alguém depois de haver toda uma discussão sobre verdades e mentiras ditas e

empreendidas pelos enunciadores e enunciatários, numa troca nesses polos, considerando que

em momentos distintos enunciadores passam a ser enunciatários e estes enunciadores.

Uma vez condenado em julgamentos emanados do júri, não resta ao réu outra

alternativa senão o cumprimento da pena, pois não há como recorrer a instâncias superiores

quanto ao mérito, exceto quanto a questões processuais ou, em situação extrema, como no

aparecimento de quem teria sido assassinado. Ora, se qualquer outro fato antijurídico, cível ou

penal, ao ser apreciado pelo Poder Judiciário, por juízes togados, desembargadores ou ministros

de cortes superiores, das decisões cabem recursos a outras instâncias, por que razão não poderia

67

haver o mesmo contra decisões emanadas do Conselho de Sentença? Assim como fora

semantizada a autonomia do júri tal como ele formatado atualmente, por outro prisma, poderia

também semantizá-lo nesse mesmo viés em segunda instância, considerando, inclusive, sob a

égide do princípio da unicidade que já resguarda o próprio Ministério Público, desde que tudo

em conformidade com a lei, o que, aliás, viria ao encontro da ampla defesa e do contraditório

insculpido nos direitos e garantias preconizados no art. 5º da CF/88.

Trata-se de um problema grave, embora pouco discutido, até porque, como é cediço, o

direito não é uma ciência dinâmica e responsiva em tempo hábil quanto deveria, haja vista o

tradicionalismo, o conservadorismo, e também porque as leis não acompanham o ritmo da

sociedade na mesma velocidade demandada, tanto que ainda vigora em nosso ordenamento

jurídico o Código Penal brasileiro promulgado na década de 50 do século passado, embora todos

saibamos que os costumes tenham sido alterados a olhos vistos, e cada vez em ritmo mais

acelerado, o que representa um descompasso inaceitável nessa relação dialógica, porquanto a

responsividade na concepção bakhtiniana não tenha correspondido às expectativas no que tange

à legislação. O próprio sistema do Tribunal do Júri é exemplo cabal dessa inércia, pois pouco

se mudou em relação a sua atuação, a despeito da demanda nesse mister, não obstante o

reconhecimento geral de sua importância.

Releva considerar que os julgamentos no âmbito do júri implicam situação limite de

alta relevância, porquanto lidam com dois direitos fundamentais, o direito à vida e à liberdade.

Sua importância ímpar se justifica em face de julgamentos envolvendo a liberdade ou a prisão

de acusados de práticas de crimes dolosos contra a vida, muitas vezes praticados de forma

hedionda, contudo, a depender das circunstâncias, não havendo evidências quanto à autoria, o

julgamento fica à mercê de análises interpretativas de enunciações discursivas que serão

responsáveis pela condenação ou absolvição do acusado, sendo que falhas interpretativas em

julgamento dessa natureza implicam condenações de inocentes ou absolvições de culpados.

Há de se frisar que sentenças equivocadas são comuns, contudo elas são reparáveis em

instâncias superiores, suscetíveis de recursos, até que se configure o trânsito em julgado,

podendo o julgamento chegar à instância máxima do Poder Judiciário, no caso ao STF. No

entanto, em relação ao Tribunal do Júri, como asseveramos anteriormente, não há o duplo grau

de jurisdição, logo é impossível recorrer, exceto quando se apele por novo júri por falhas

processuais, o que não é o caso aqui questionado, pois erros procedimentais não são

necessariamente vinculados a questões interpretativas do fato em si, mas de outras

circunstâncias. Nessas excepcionalidades, novo júri se dá porque o processo apresentou vícios

de nulidade, portanto não há que se cogitar de duplo grau de jurisdição ou de julgamento, como

68

ocorre em outras situações.

O que nos interessa aqui são as falhas interpretativas nos júris, essas, sim, irrecorríveis,

e muitas delas se dão por questões de ordem discursivas, de interpretação dos fatos à vista da

argumentação empreendida pelas partes. Todos sabemos que não há discursos gratuitos,

sobretudo em casos da mais alta relevância, como em julgamentos cujas manobras e estratégias

retóricas visam defender um ponto de vista, uma tese, sempre implicando intenções voltadas

para um ou outro viés.

Nesse sentido, o enunciador tem por propósito acusar um suspeito visando à sua

condenação, ou lado outro defendê-lo da acusação buscando sua absolvição. Há de se frisar

também que, entre dois debatedores, um sempre sobrepõe ao outro, seja pela competência

discursiva, seja pelas circunstâncias fáticas, mas qualquer que seja a razão, não se podem perder

de vista as estratégias enunciativas utilizadas pelos sujeitos comunicantes, ressaltando inclusive

aspectos psicológicos relevantes que interferem direta ou indiretamente no discurso

empreendido, como bem ressalta Bronckart (2009) ao tratar dos tipos psicológicos e linguísticos

atinentes ao mundo do narrar e mundo do expor.

Visando corroborar esse entendimento, a título de ilustração trazemos à baila um erro

judicial que ilustraria bem essa suscetibilidade no tribunal do júri, embora também possa ocorrer

mesmo em outros julgamentos que não sejam de sua alçada, sendo que, nesta hipótese, a

vantagem do duplo grau de jurisdição minimiza as chances de erros.

Especificamente em relação ao júri, um exemplo interessante que ilustra o propósito

dessa nossa pesquisa foi evidenciado por Paulo Rangel (2009) em sua obra Tribunal do Júri –

visão linguística, o que nos remete à polifonia, porquanto se ancora em outras obras, senão

vejamos:

O jurado João Lourenço Sardemberg denunciou que a votação sobre um dos

quesitos tinha sido concluída em sete votos contra o réu e cinco a favor. Com

esse resultado, o réu não podia ser condenado à morte, porque a pena máxima

exigia um mínimo de dois terços dos votos em todos os quesitos. Alguém teria

tentado convencer um dos jurados a mudar seu voto, mas o homem disse que

não mudaria, porque, se o fizesse, seriam atingidos os dois terços do único

quesito que não tinha essa maioria – assim, o réu poderia ser condenado à

morte (e esse jurado, por qualquer tipo de convicção moral ou religiosa, não

queria permitir isso). A pessoa, então, garantiu-lhe que os dois terços previstos

na lei não seriam alcançados com oito votos contra o réu, mas apenas com

nove ou mais votos. Assim persuadido, o jurado mudou seu voto e, com essa

mudança, foi possível, afinal, mandar Flor para o patíbulo. Essa

irregularidade legal se somaria a tantas outras e nunca seria reconhecida

nos recursos aos tribunais superiores” (MARCHI, Carlos. Fera de Macabu:

a história e o romance de um condenado à morte. 2. Ed. Rio de Janeiro: Record,

1999, p. 218) – Grifos acrescidos.

69

Esse exemplo demonstra a influência da linguagem como tentativa de assimilar tensões

entre facticidade e validade, segundo preconiza Habermas (1997). Para Habermas essa tensão

migra para o Direito quando, na discussão de teses entre dissidentes, cada qual se respalda em

razões que lhes sejam favoráveis.

Conforme assevera Rangel (2009), o consenso habermasiano só é alcançado pela

superioridade do melhor argumento, ou seja, entre interlocutores há um que possui

superioridade intelectual ou discursiva em relação ao outro, ou pelo menos consegue esse

intento em determinadas ocasiões, a exemplo da sustentação oral em um julgamento.

Aduz-se, pois, que os argumentos bem engendrados acabam prevalecendo, o que vem

a corroborar nossas ponderações sobre o que seja justo ou injusto em julgamentos que não

passem pelo crivo de instâncias recursais, na medida em que as teses argumentativas nem

sempre se coadunam com a realidade dos fatos, mas possam prevalecer como verdades em face

do convencimento sobre o outro, o que induz a resultados no mínimo questionáveis. Uma

argumentação bem construída tem a força de mudar formalmente a natureza das coisas, porque

pode prevalecer sobre aquelas enunciações que representariam o justo, mas que não foram

exitosas a transmitir essa realidade perante os enunciatários com poder de voto, com poder de

decidir, o que implica questionamentos de alta relevância, uma vez que uma boa tese torna o

justo em injusto ou o injusto em justo, relativizando a verdade.

É claro que essas ponderações valem para muitas situações similares, como, por

exemplo, na relação discursiva e antagônica entre um vendedor e um comprador de uma

empresa comercial. Ora, muitas vezes, nessa relação dicotômica entre vendedor e comprador,

ambos têm argumentos divergentes, ainda que nem sempre verdadeiros, pois o vendedor se

utiliza de estratégias as mais diversas visando persuadir o comprador a adquirir determinados

produtos, incutindo no enunciatário “certas verdades” que por si deixam o comprador

desconfiado ou não. O comprador, por sua vez, tende a relutar a aderir ao discurso do vendedor,

apresentando contra-argumentos, mas acaba por se convencer do suposto bom negócio e

adquire os produtos em questão. Ocorre que pouco tempo depois descobre ter feito um mal

negócio, pois as alegações do vendedor não corresponderiam à realidade, contudo já não há o

que fazer senão utilizar-se das mesmas estratégias para repassar seu produto ao consumidor

final.

Essa luta diária entre a verdade real e verdade relativizada, entre o certo e o errado, o

justo e o injusto, ocorre a todo momento, com repercussões de toda ordem. Contudo, no campo

do direito, lida-se com situações-limite, pois estão em jogo os dois bens mais caros ao ser

humano, no caso a vida e a liberdade, portanto é nesse sentido que vislumbramos o problema e

70

tentamos atenuá-lo apresentando sugestões ou hipóteses plausíveis a minimizá-lo, o que por sua

vez também implica inconformismo com o status quo, situação essa que demanda atitude

responsiva, quiçá sugerindo edição de lei incutindo no sistema atual o duplo grau de jurisdição

no âmbito do tribunal do júri, como asseveramos.

No exemplo supracitado relacionado à relação antagônica entre vendedor e comprador,

quem eventualmente tenha sido prejudicado por acreditar num argumento falacioso, quando

muito terá um certo prejuízo financeiro, o que é reparável. No entanto, aquele que tenha sido

injustiçado, condenado por um julgamento cujo resultado advenha de interpretações de um ou

outro jurado que, em tese, nada tem a perder a não ser em relação a sua própria consciência,

estaria privado de sua liberdade, de sua honra e, em países que admitem a pena de morte,

privado do direito à vida, eis que condenado à pena capital sem direito a recurso, dada a

formatação do tribunal do júri, porquanto não haveria a possibilidade de recurso a outro júri de

instância superior, dando ensejo ao duplo grau de jurisdição como propusemos na hipótese pelas

razões já externadas.

Posto isso, colocando-se em xeque o problema, a hipótese plausível a essa

inconsistência seria a alteração do sistema atual, possibilitando recursos em relação ao mérito

de sentenças condenatórias emanadas do Tribunal do Júri, de forma a institucionalizar essa

possibilidade em instâncias superiores, como ocorre nas demais ações, julgando em grau de

recurso as decisões desfavoráveis ao réu ou ao Ministério Público quando esses interessados

entendessem ser plausível o recurso a outro júri em instância superior, ressaltando-se que nem

sempre há interesse em fazê-lo, haja vista o conformismo e a resignação de quem assuma as

evidências dos fatos.

Ora, por que não poderia haver o duplo grau de jurisdição em relação aos julgamentos

do Tribunal do Júri, ainda que se restringisse esse novo júri somente ao âmbito Tribunal de

Justiça de cada Estado? Poder-se-ia incutir a mesma lógica da unicidade do Júri, como de resto

ocorre com o Ministério Público, que goza da prerrogativa da unidade como um todo, mesmo

quando o órgão pertença a esferas distintas – estadual ou federal, conforme o caso, dando ao

júri, com o trânsito em julgado, o mesmo status de soberania do veredito.

A questão é de natureza política, conveniência administrativa, sobretudo porque essa

hipótese se tornaria aos olhos de muitos, e principalmente do Poder Judiciário, dispendiosa ao

erário e, por consequente, ao cidadão, como de resto já o é toda a estrutura judiciária. Assim, a

política implementada coadunou-se com a semiotização do ordenamento jurídico tal como se

encontra, até porque não há mobilização da sociedade nesse sentido, de sorte que se perpassa

uma aura que coroa o júri como uma Corte popular soberana, aliás, que de fato o é, mas isso

71

não significa ser infalível, ou que não possa, por essa circunstância, estar adstrito a recursos em

instâncias distintas, como nas demais situações jurisdicionais.

Frisa-se que não se está aqui a cogitar da extinção do júri, pelo contrário, estamos na

verdade valorizando-o, no entanto, dependendo do ponto de vista do ordenamento jurídico, isso

poderia até ocorrer, passando os crimes a serem julgados pelo próprio juiz togado. No entanto,

lado outro, a intenção é fomentar a ideia de modernizá-lo, tornando-o menos suscetível a falhas

motivadas pela interpretação discursiva, como ressaltamos. Em sendo implementado o duplo o

grau de jurisdição no âmbito do Júri, há menos chances de injustiças, eis que as estratégias

argumentativas empreendidas com ou sem sucesso na instância inicial possam ensejar novas

perspectivas, tornando o julgamento mais justo.

De fato, uma vez condenado pelo Conselho de Sentença, não resta ao réu outra

alternativa senão o cumprimento da pena, pois não há como recorrer da sentença condenatória,

exceto quanto a questões processuais eivadas de vícios de ilegalidades, como já ressaltamos. Se

em qualquer outro fato antijurídico, cabe recurso a instâncias outras, por que em nome da já

citada soberania do júri popular não se admite recorrer de suas decisões em relação ao mérito?

Por que não poderia haver júri em sede de recurso? São questionamentos que nos levam a

refletir sobre a semiotização e semantização social de um instituto que não tem acompanhado

o ritmo dos avanços da sociedade. A resposta a essas indagações se resume no controle social

e nos aspectos ideológicos incutidos no inconsciente coletivo, até mesmo para a manutenção do

status quo, uma vez que não é conveniente mudar algo que possa ser oneroso ao sistema como

um todo, a menos que haja provocação nesse sentido, ou mesmo uma demanda que justificasse

uma reação responsiva imprescindível, embasada em argumentos convincentes a justificar a

mudança perante o Congresso.

O instituto do Júri é exemplo cabal da inércia em questão, pois pouco se mudou em

relação a sua atuação, a despeito da demanda nesse mister, de sua importância, mormente por

ser ele responsável por julgamentos envolvendo a liberdade ou a prisão de acusados de práticas

de crimes dolosos contra a vida, quando todos sabemos do dano moral de uma condenação

injusta. Ademais, todo julgamento culmina na condenação ou absolvição do réu, sendo que, em

qualquer das duas situações, erros são suscetíveis de acontecer, como o exemplo do julgamento

relativo aos Irmãos Naves tão divulgado pela mídia, além de outros tantos ocorridos, o que

representa um peso considerável, tanto quando culmine na condenação de um inocente, quanto

na absolvição de um culpado.

Todavia, o que nos interessa no âmbito do presente estudo é questionar o porquê de

não se poder rediscutir a matéria resultante de interpretações acerca de discursos empreendidos,

72

cujas enunciações possam dar margem a posicionamentos diversos. Todos sabemos que não há

discursos gratuitos, e não é diferente em casos da mais alta relevância como os são julgamentos

dessa natureza. Sabe-se também que todo discurso tem por escopo defender um ponto de vista,

uma tese, portanto todos têm uma intenção deliberada, daí a importância da hipótese de se

rediscutir o tema no mínimo em esferas distintas, o que se coaduna com o escopo da ampla

defesa e do contraditório, institutos jurídicos que têm ampla conotação linguístico-discursiva.

Em face dessas especificidades, questiona-se até que ponto julgamentos se

consubstanciam justos quando há decisões jurisdicionais ou jurisprudenciais antagônicas entre

si, ora favoráveis ao autor, ora favoráveis ao réu, mesmo quando os fatos são similares, quando

não o sejam idênticos, e ainda assim nem quem fora absolvido nem quem fora condenado

possam recorrer no mérito a outro julgamento em instâncias superiores. A questão reside no

controle social a que nos mencionamos, bem assim na forma como foi estereotipado o instituto

do júri como sendo soberano, uma espécie de cláusula pétrea, levando-se em conta inclusive

os signos linguístico-ideológicos, como ressalta Bakhtin/Volochinov em Marxismo e Filosofia

da Linguagem, senão vejamos:

É justamente o problema da consciência que criou as maiores dificuldades e

gerou a formidável confusão que encontramos em todas as discussões

relativas tanto à psicologia quanto ao estudo das ideologias. De maneira

geral, a consciência tornou-se o ‘asylum ignorantiae’ de todo edifício

filosófico. Foi transformada em depósito de todos os problemas não

resolvidos, de todos os resíduos objetivamente irredutíveis. Ao invés de se

buscar uma definição objetiva da consciência, esta foi usada para tornar

subjetivas e fluidas certas noções até então sólidas e objetivas.

(...) A consciência adquire forma e existência nos signos criados por um grupo

organizado no curso de suas relações sociais. Os signos são o alimento da

consciência individual, a matéria de seu desenvolvimento, e ela reflete sua

lógica e suas leis. A lógica da consciência é a lógica da comunicação

ideológica, da interação semiótica de um grupo social. Se privarmos a

consciência de seu conteúdo semiótico e ideológico, não sobra nada. A

imagem, a palavra, o gesto significante, etc. constituem seu único abrigo. Fora

desse material, há apenas o simples ato fisiológico, não esclarecido pela

consciência, desprovido do sentido que os signos lhe conferem.

(BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1995, p. 35)

Corrobora essa dicotomia e contradições a que nos referimos a juntada em cada

processo de jurisprudências que vão ao encontro da pretensão do autor, assim como também

em relação à pretensão do réu, o que nos remete aos aspectos polifônicos preconizados tanto

também por Ducrot (1988). No Tribunal do Júri, por óbvio, impera a discursividade, o

dialogismo e a interação verbal, portanto essa preocupação se nos afigura mais evidente, haja

vista que o caso sempre será decidido por maioria de votos entre sete jurados, número ímpar

73

exatamente com o propósito de evitar o constrangimento de empates, como afiançamos alhures,

fomentando e aguçando ainda mais os questionamentos que deram ensejo à presente pesquisa.

Não é inoportuno ressaltar que os votos vencidos também têm seu peso, foram

pautados na mesma concepção de justiça, levaram em conta o discurso que se coadunou com a

coerência percebida pelos jurados nesse propósito, contudo foram minoria, coerentes com a

enunciação no mesmo desiderato. Essa dicotomia de entendimento deriva-se dos aspectos

polifônicos, na medida em que haja vários pontos de vista sobre determinado tema, logo as

vozes que se afloram e se sedimentam num posicionamento doutrinário têm seu peso, como

também o têm as vozes que se destoam nessa relação dialógica que constrói o discurso.

Vale dizer que mesmo havendo interpretação da própria lei em sentido diverso e, por

conseguinte, julgamentos antagônicos entre si, não significa que tenha havido ilegalidade, erro

judicial propriamente dito, porquanto o juiz julga de acordo com a lei e com o seu livre

convencimento, sendo a interpretação de ambas as situações questões de natureza discursiva,

dialógica e de interação verbal, levando-se em conta aspectos culturais, bem assim a

semiotização do sistema como um todo. O problema se nos aflige quando sabemos que da

decisão tomada em um julgamento no âmbito do tribunal do júri não se possa dela recorrer

porque ela foi estereotipada como imutável e insuscetível de revisão, “doa a quem doer”.

3.3 A enunciação discursiva e dialógica no gênero petição

Em relação à enunciação discursiva na concepção preconizada por Bakhtin (2011), faz-

se imperioso atentar-se para o fato de que esse fenômeno linguístico não se resume na simples

formulação de um enunciado, uma frase ou mesmo qualquer palavra contextualizada. Numa

visão mais ampla, a enunciação seria um processo discursivo que implica discursos imbricados

na interação verbal relativa a vários dizeres e em circunstâncias diversas, considerando-se os

ditos e o que ainda há de se dizer, porque todo discurso se faz a partir de contextos diversos, de

sorte que não há nada de tão novo assim, a não ser o estilo intuitu personae que seria a marca

personalíssima de cada enunciador, o que sugere inclusive a alteridade.

A enunciação guarda relação direta com a interação verbal, com o dialogismo e a

polifonia, com os modos de dizer, sem nos olvidar da citada alteridade, impondo, por

conseguinte, cumplicidades com outros discursos, o que sugere acatar ou não posicionamentos

diversos, assimilando-os ou rejeitando, dando ensejo ao dialogismo e também a posições

responsivas entre enunciadores e enunciatários, doutrinas e jurisprudências, o que se evidencia

nos processos judiciais. Assim, para melhor compreensão do estudo em tela, torna-se imperioso

compreender a enunciação em suas características primordiais, considerando a interação verbal

74

entre os agentes comunicantes e outros dizeres – doutrina e jurisprudências díspares entre si -,

sugerindo o contraditório sob o prisma da dialética e da retórica.

Reportando-se aos elementos supramencionados, verbais e extra verbais, depreende-

se dos fatos linguísticos que eles são formatados na sociedade à vista da cultura que os

influencia, daí o porquê da importância de se vislumbrar mecanismos de controle inerentes à

concepção de mundo numa perspectiva ideológica, o que se constrói a partir de discursos

enunciados num ou noutro norte, sempre se valendo da argumentação e da retórica que nos

remetem ao interdiscurso.

Ainda no que concerne aos aspectos extra verbais, há de se ater ao fato de que tal

fenômeno está intrínseco aos mecanismos de representação, aos signos, à semiótica, à ideologia

imposta pelo uso da palavra com a intenção deliberada e fomentada nos discursos, nos modos

de persuadir outrem, visando ao controle social, num viés político, como se depreende do

discurso religioso, jurídico, midiático, e por que não dizer do projeto de poder, etc.

Nesse sentido, não é difícil perceber que não há discursos isolados, à medida que toda

enunciação guarda relação intrínseca ou extrínseca com outros discursos, o que leva Bakhtin

(1952/1953) a asseverar que nenhum enunciado seria o primeiro ou o último, já que, mesmo o

pretensamente original resulta de influxos de outros posicionamentos na mesma vertente ou

noutras que tenham causado a responsividade em sentido diverso, sendo que também não será

o último, porque este mesmo fenômeno repercutirá em controversas ou assimilações noutras

perspectivas, num ciclo permanentemente mutável pelas razões externadas.

Nesse propósito, Bakhtin se reportou à polifonia, termo inspirado na música medieval,

cujas ressonâncias demandavam tons semelhantes e em certa medida harmônicos entre notas,

sugerindo, pois, uma orquestração instrumental com similitudes no contexto musical. Essa

pluralidade de notas, de sons, sugere ecos também harmônicos, daí o porquê da analogia feita

entre discursos que, por conseguinte, guardam vozeamentos ressonantes e dissonantes, dando

ensejo à interação verbal e ao dialogismo – dada a tensão discursiva respaldadas em

perspectivas diversas. A polifonia, portanto, não significa que os discursos sejam sempre na

mesma toada, pois as divergências enunciativas também são respaldadas em outras

circunstâncias que as reforcem, de sorte que, em cada perspectiva, seja a favor ou contra, há

sempre posicionamentos que ancora o ponto de vista discursivo.

Para melhor explicitar a dicotomia existente entre ressonância e dissonância nessa

metáfora, há de se levar em conta que os discursos se pautam por enunciações no mesmo ponto

de vista, sem ignorar a relação dialógica que, por sua vez, sugere a existência de outros discursos

que se relacionem entre si pelo mesmo efeito polifônico, portanto dando ensejo à dialética.

75

Nesse sentido, a discursividade em ambos os polos se vale também da polifonia por ecoar

pontos de vista simétricos entre si e em afronta a outros em sentido contrário, que também se

respaldam em perspectivas que lhes dão suportes.

Pode-se dizer que até mesmo na discordância há pontos convergentes entre os

enunciados, haja vista que, em quaisquer das perspectivas, a origem da enunciação parte do

mesmo princípio, do mesmo norte, ainda que para divergir a posteriori, em consonância com

os preceitos da dialética. Se assim não fosse, todos concordariam entre si, o que não se

coadunaria com a lógica comunicacional. Nesse diapasão, o Direito é uma ciência

eminentemente responsiva, à medida que ele se vale da retórica, do contraditório, da ampla

defesa e do devido processo legal, como está devidamente disciplinado no âmbito do art. 5º da

CF/88 e no ordenamento jurídico como um todo, mormente nos códigos de processos cíveis ou

penais.

3.4 Correlação entre aspectos linguísticos e jurídicos da pesquisa

No presente capítulo, reportamo-nos a referências teóricas atinentes tanto à esfera

linguístico-discursiva quanto jurídica, uma vez que elas repercutem direta e indiretamente no

gênero de discurso petição, especificamente no que tange às práticas argumentativas visando à

persuasão do enunciatário. Nesse sentido, discorremos sobre a interação verbal, polifonia,

alteridade, vozeamentos e estratégias argumentativas, fenômenos discursivos que envolvem a

retórica na busca do convencimento.

A pesquisa centrou-se nos aspectos discursivos intrínsecos ao gênero de discurso

Petição, notadamente em face das táticas argumentativas com fincas em convencer e persuadir

os jurados envolvidos no julgamento em si. Nesse propósito, o corpus evidencia nuances

comuns a outros julgamentos da mesma natureza, respeitadas as especificidades de cada

situação concreta.

O julgamento em tela, por exemplo, assim como outros na mesma perspectiva,

evidencia situação pitoresca sobretudo por gerar expectativas de toda ordem, sendo que

ninguém tem certeza do resultado. Em julgamentos complexos no âmbito do tribunal do júri,

mormente em casos como o enfrentado pela promotoria, a dificuldade da acusação se torna

evidente dada a complexidade em provar a ocorrência do fato sem evidência cabal do ocorrido,

principalmente pelo desaparecimento da vítima, o que inclusive impossibilitou o exame de

corpo de delito direto, situação especialíssima pela excepcionalidade.

No afã de demonstrar as estratégias argumentativas, teceremos considerações de

76

natureza técnica sobre determinados termos e procedimentos jurídicos sem, contudo,

aprofundarmos nesse propósito, haja vista que o objeto precípuo da pesquisa se centra no gênero

de discurso petição e nas enunciações destinadas ao convencimento e adesão dos enunciatários

diretos – jurados e autoridades -, assim como do auditório.

Frise-se inclusive que, muitas vezes, os aspectos técnico-jurídicos frequentemente

estão adstritos à relação semântico-discursiva, como a distinção entre um crime culposo e

doloso, que se diferenciam pela intenção do agente. Ora, esse liame inerente à intenção do

agente pode ser objeto de discussões homéricas tanto no campo jurídico quanto linguístico, daí

o foco da pesquisa sob a ótica do gênero de discurso petição, como veremos a seguir.

O tema em apreço nos sugere uma reflexão acerca dos aspectos inerentes ao gênero de

discurso e suas nuances, as características que o definem como tal, o estágio por que passa a

sua evolução, considerando o fato de que todo gênero de discurso é dinâmico por excelência,

sobretudo por estar sempre suscetível a mudanças, na medida em que haja necessidade de outros

gêneros proximais e correlatos, o que se se coaduna com a máxima que os definem como formas

relativamente estáveis e normativas de enunciado (Bakhtin 2003, p. 286), o que também foi

frisado por Sobral (2009) em artigo denominado Ver o mundo com os olhos dos gêneros.

A semelhança proximal entre gêneros afins sugere partilhar gêneros correlatos que

migram espontaneamente até que se firmam de forma autônoma, daí o porquê de estarmos no

presente estudo tratando do gênero petição não só em sentido stricto, mas também lato sensu.

Em sentido stricto, petição seria, no âmbito do direito, um pedido formulado a um juiz à vista

de um suposto direito do autor (reclamante, peticionário), em consonância com o art. 319 do

Código de Processo Civil.

Ao leigo possa parecer desnecessário o legislador ter adentrado em minúcias quanto

ao documento em questão, conforme ressaltamos anteriormente, mas exatamente à vista de

aspectos linguístico-discursivos é que se faz imprescindível esse intento, pois, para se ter a

dimensão do que se esteja pleiteando em uma ação judicial, não se deve, por óbvio, pedir nem

mais do que se pretende, nem menos, nem algo que não seja objeto precípuo da demanda, assim

como ao juiz também não cabe decidir nem além, nem aquém, nem fora do que seja

efetivamente o interesse do autor da demanda, portanto é vedado ao juiz julgar ultra, citra ou

extra petita, expressões que correspondem respectivamente à supracitada dimensão do que se

pede.

Essa preocupação do legislador guarda intrínseca relação com aspectos linguístico-

discursivos, na medida em que a questão reside na interpretação dos fatos e suas versões,

portanto, o rigor no formalismo em apreço é inerente ao gênero e, por óbvio tem suas razões de

77

ser, principalmente para se evitar um recurso processual muito comum nos julgamentos

denominado embargo de declaração.

Denomina-se embargo pelo inconformismo de quem se sinta prejudicado com a

sentença, seja o autor, seja o réu, recurso esse cujo nome induz ao dialogismo, uma vez que o

advogado tenha elaborado sua petição pleiteando um suposto direito, contudo o juiz lhe

concedera algo que não corresponda ao pedido, incorrendo o enunciador, no caso, o juiz, em

obscuridade, contradições, omissões ou incongruências, o que, por óbvio, tem natureza

linguística.

Não fosse pela interposição desses embargos, a sentença seria equivocada por má

interpretação do juiz ou por enunciação divergente em relação ao que se pleiteou, o que enseja

uma relação dialógica na acepção do termo, ou seja, uma tensão entre pontos de vista

divergentes, fato que sugere o dialogismo linguístico.

Por estarmos tratando do gênero de discurso petição no âmbito da AD, e o estudo em

pauta ser de interesse geral, faz-se oportuno esclarecer, sempre que possível, alguns termos

jurídicos para melhor compreensão do enunciatário que, não tendo formação jurídica, carece de

singelas considerações sobre o tema, sem o propósito de aprofundar-se nessa seara por questões

obvias.

Para esclarecimento desse recurso, reportamo-nos ao atual Código de Processo Civil,

a saber:

DOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO Art. 1.022. Cabem embargos de declaração contra qualquer decisão

judicial para: I. esclarecer obscuridade ou eliminar contradição; III. suprir omissão de ponto ou questão sobre o qual devia se pronunciar

o juiz de ofício ou a requerimento; III - corrigir erro material. Parágrafo único. Considera-se omissa a decisão que: III. deixe de se manifestar sobre tese firmada em julgamento de casos

repetitivos ou em incidente de assunção de competência aplicável ao

caso sob julgamento; IV. incorra em qualquer das condutas descritas no art. 489, § 1o.

(Código de Processo Civil, 2015)

Como se depreende desse artigo do CPC, nem sempre as sentenças ou acórdãos são

claros em seus dispositivos, tanto que o legislador cuidou de disciplinar os meios para que as

partes possam se valer desses embargos para esclarecer o que foi sentenciado, saneando

dúvidas, ambiguidades, contradições, obscuridades. Ora, ninguém incorre nessas falhas de

forma consciente e deliberada, sobretudo quando se esteja discutindo a concepção de justiça, o

direito em si, exceto quando haja má fé por parte do enunciador.

78

Aduz-se, pois, que incongruências que ensejam às partes a prerrogativa de interposição

de embargos declaratórios são motivadas, muitas vezes, por questões de natureza linguístico-

discursiva, pois o cerne desse recurso reside na enunciação desprovida da objetividade. Há de

se ressaltar que as eventuais falhas que motivem embargos desse viés podem, por sua vez, serem

motivadas também por enunciações das partes, que também nem sempre não ser claras em

relação ao objeto da demanda, daí o porquê de o legislador ter-se atentado para os pressupostos

do art. 319 do atual Código de Processo Civil, tecendo em minúcias os requisitos da petição

inicial.

A propósito, no âmbito do direito civil, o gênero petição recebe o nome de Petição

Inicial, ao passo que os demais requerimentos são denominados recursos, contestação, agravo,

dentre outros, mas, na essência, todos fazem parte do gênero de discurso petição, daí as razões

de alertarmos para esse fato corroborando a ênfase dada anteriormente quanto ao gênero em

sentido stricto e amplo.

As razões que ensejam a interposição dos supracitados embargos declaratórios, em

certa medida, explicam as dicotomias discursivas que, por si, corroboram a ideia de que

incongruências dessa natureza interferem na concepção de justiça no sentido mais amplo da

palavra.

A título de ilustração, basta recorrermos à celeuma causada recentemente quanto à ação

interposta no STF em relação à suposta ilegalidade quanto ao rito adotado pela Câmara dos

Deputados no que tange à votação de abertura de processo de impeachment da então Presidente

da República Dilma Rousseff.

No caso em apreço, o Governo questionou no STF o rito adotado na Câmera, tendo

logrado êxito nessa demanda. Insatisfeito com a votação, tendo em vista divergências as mais

diversas, foi interposto no próprio STF embargo de declaração para esclarecimento quanto à

extensão da decisão, visando dirimir dúvidas no Acórdão. Tendo sido levado ao Plenário da

Suprema Corte, esses embargos foram julgados, tendo os Ministros esclarecido a decisão,

demonstrando não ter havido omissão, inconsistência, obscuridade ou qualquer interpretação

equivocada, em que pesem entendimentos em sentido diverso que ainda persistem.

A digressão em tela visa demonstrar a finalidade dos embargos declaratórios que, na

maioria das vezes, guardam relação com aspectos linguísticos, mormente por se vislumbrar no

julgamento obscuridade quanto ao alcance da decisão judicial. É nesse sentido que a petição

deve estar adstrita às imposições do Código de Processo Civil ou, conforme o caso, em

regimentos interna corporis, exatamente para se evitarem dúvidas ou eventuais interpretações

equivocadas quanto aos procedimentos adotados.

79

No âmbito do direito penal, que por sua vez nos interessa em face do julgamento do

acusado pelo crime de Denise Lafetá, os embargos de declaração são disciplinados pelos arts.

619 e 620, impondo observância dos preceitos processuais, senão vejamos:

DOS EMBARGOS Art. 619. Aos acórdãos proferidos pelos Tribunais de Apelação, câmaras ou

turmas, poderão ser opostos embargos de declaração, no prazo de dois dias

contados da sua publicação, quando houver na sentença ambiguidade,

obscuridade, contradição ou omissão. Art. 620. Os embargos de declaração serão deduzidos em requerimento de que

constem os pontos em que o acórdão é ambíguo, obscuro, contraditório ou

omisso. § 1o O requerimento será apresentado pelo relator e julgado,

independentemente de revisão, na primeira sessão. § 2o Se não preenchidas as condições enumeradas neste artigo, o relator

indeferirá desde logo o requerimento. (Código de Processo Penal, 1941)

Da leitura atenta dos embargos, seja no âmbito do processo civil, seja no processo

penal, aduz-se que tal recurso está por óbvio adstrito não a questões jurídicas em si, mas também

a questões linguísticas com repercussão jurídica. Comprovam essa assertiva a existência,

respectivamente, de ambiguidade, obscuridade, pontos contraditórios ou omissos. Saliente-se

que o substantivo embargo deriva-se do verbo embargar, que se traduz em insatisfação, em

afronta quanto ao entendimento exarado pelo enunciador, no caso juiz, desembargador ou

ministros, divergências essas que induzem ao dialogismo, como já externamos anteriormente.

Ora, o dialogismo não se resume no mero diálogo entre as partes, mas sim numa

relação relativamente antagônica, em tensões comunicacionais motivadas por posicionamentos

discursivos que vão de encontro com enunciados acerca de determinado tema, ensejando

discussões sobre esse ou aquele ponto de vista, que por sua vez também se ancoram em outros

posicionamentos, tanto num viés quanto em outro, sugerindo também a polifonia ou,

dependendo da circunstância, até mesmo a alteridade.

Qualquer que seja uma enunciação, mormente em situações limites como no caso de

demanda judicial, são inadmissíveis equívocos dessa natureza, e que, por conseguinte,

comprometem consideravelmente o escopo da sentença. No entanto, há de se levar em

consideração que esses equívocos não ocorrem de forma deliberada, mas sobretudo pela

complexidade das situações específicas, o que explica interpretações as mais diversas,

independentemente de se cogitar de ilegalidade em face de posicionamentos divergentes entre

si.

80

3.5 A alteridade e a polifonia intrínsecas na enunciação discursiva

A alteridade guarda relação intrínseca com a polifonia e, por conseguinte, com o

interdiscurso, à medida que o vozeamento está imbricado em outros dizeres, seja de forma

explícita ou latente, consciente ou inconsciente, no mesmo direcionamento ou em sentido

diverso em consonância com o contexto adotado pelos enunciadores, portanto fenômenos

linguísticos indissociáveis do funcionamento do gênero de discurso petição.

Em artigo elucidativo, Beth Brait (2001) se reporta aos estudos de Authier-Revuz para

melhor explicar a alteridade e sua importância no fenômeno da enunciação discursiva. Nesse

ensaio, a autora demonstra a relação imbricada entre alteridade, dialogismo e heterogeneidade,

asseverando que o outro não é o mesmo em face do interdiscurso, até porque a voz do outro

advém de outras vozes, de outras enunciações, de sorte que esse fenômeno linguístico atinente

à alteridade implica vozeamentos que dão suporte ao enunciador, em contrapartida com outras

vozes que, por sua vez, também se respaldam por dizeres diversos propiciados pela prática

discursiva, dando ensejo inclusive à polifonia preconizada por Ducrot e Bakhtin.

Assevera Brait:

Assim sendo, a reflexão começa com traços gerais a respeito da teoria de

Authier-Revuz, aportando na fundamentação a partir da assunção do 'outro'

como constitutivo do sujeito e da linguagem; recupera o caminho bakhtiniano

para a constituição de uma concepção de linguagem em que dialogismo e

polifonia são alicerces necessariamente calcados num conceito de 'outro'

discursivo, ideológico e interacional; ensaia, com muitos “dedos”, a concepção

lacaniana em que inconsciente e linguagem autorizam o conceito de “outro”; e

por fim, volta a Authier para surpreender os momentos de sua teoria em que

Bakhtin é a contribuição, e não Lacan. (BRAIT, 2005, p. 7)

A propósito, o posicionamento em questão corrobora a tese da interdiscursividade,

aflorando a metalinguística, uma vez que se percebe claramente o código explicando o próprio

código, tendo em vista que Beth Brait se reporta a Authier-Revuz, que por sua vez se ancora

em Bakhtin/Volochinov e Lacan, o que por si comprova esse fenômeno linguístico da

intertextualidade, sem se olvidar da polifonia e da própria alteridade.

Não há como nos desvencilhar dessa especificidade, uma vez que ninguém age sozinho

na área do conhecimento, mormente quando se trata de estudos de natureza linguístico-

discursiva, o que se justifica pelo fato de a língua ser a primeira e mais importante das atividades

humanas.

Ressalte-se que a evolução a que nos referimos, por sua vez, também é relativa, pois,

em muitos casos, valendo-se dos mesmos recursos linguísticos, percebe-se, na verdade, um

processo inverso que se coaduna com a involução do homem, como se aduz de discursos

81

fundamentalistas, assim como de políticas revolucionárias retrógradas implantadas de forma a

fomentar o terror, visando instituir um estado radical, religioso, advindo de potestade, como

ultimamente tem sido noticiado pela mídia, assim como por estudos avançados sobre

religiosidade e política.

Tais contradições, por sua vez, também se amparam nos recursos linguísticos,

pautando-se nos signos, na semiótica, na semântica, na representação. Essa é a essência da

alteridade, que, por conseguinte, guarda relação imbricada com a polifonia preconizada em

primeira mão por Bakhtin (1929). Nesse propósito, para Authier, a alteridade se consubstancia

na trilogia linguagem, sujeito e sentido, considerando as diferenças entre os enunciadores e

enunciatários, respeitando suas especificidades enunciativas e interpretativas.

Essas nuances enunciativas são oportunas ao presente estudo por não se conceber a

ciência jurídica sem pensar nas semelhanças e divergências, porquanto o direito se

consubstancia em discursos, em enunciações, na dialética, cujo escopo é em última instância o

fazer justiça, considerando nesse mister os fatores intrínsecos à interação verbal, eis que a

atividade em si é eminentemente social e se vale em grande medida de posicionamentos

jurisprudenciais e doutrinários já sedimentados por juristas de escolas distintas, bem assim por

enunciados oriundos de correntes minoritárias que resistem a tendências já consagradas, o que

proporciona quebra de paradigmas, traduzindo-se na responsividade de que já tratamos neste

trabalho.

No decorrer do presente estudo, vamos voltar ao tema da alteridade e polifonia, tendo

em vista que ambas têm importância ímpar a respaldar a discursividade, mormente para reforçar

argumentos que visem a corroborar enunciados destinados a prestigiar determinados pareceres

num ou noutro viés, como se depreende do corpus, considerando as citações trazidas à colação

nas respectivas petições.

Outro fenômeno linguístico interessante que nos remete à interdiscursividade diz

respeito à heterogeneidade constitutiva que, segundo Authier-Revuz, diz respeito à

exterioridade não marcada na linearidade do dizer, mas que constitui o binômio sujeito e

discurso. Trata-se de uma simbiose entre dois ou mais discursos, uma harmonia nos dizeres, de

forma que não se possa identificar claramente a autoria primária do discurso.

Nessa perspectiva, Flores (2009) se reporta ao posicionamento de Authier-Revuz

(1998), in verbis:

O percurso pelo continuum de formas explicitamente marcadas da presença da

alteridade no discurso, passando por sequências nas quais a presença do outro

é sinalizada apenas de maneira implícita, conduz a um ponto-limite, em que a

alteridade não é nem localizável, nem representável na superfície linguística.

82

(...) A relação entre as formas de heterogeneidade mostrada marcadas e/ou

sugeridas e esse ponto-extremo, em que as palavras dos outros; as outras

palavras estão constitutivamente presentes no discurso, sem se representar na

superfície, não se dá por progressão linear de um plano a outro. A

heterogeneidade constitutiva é uma dimensão do heterogêneo de ordem

estruturada, fundamental, condição de existência do fato enunciativo. (...)

Recorre, assim, a duas abordagens em que se encontra um questionamento

radical - ainda que sobe bases diferentes - das noções de discurso como

homogêneo e de locutor como fonte de sentido: o dialogismo do Círculo de

Bakhtin e a teoria do sujeito estruturalmente clivado, elaborada por Lacan, a

partir da leitura de Freud. Essa ancoragem permite entender a fala como sendo

determinada para além da vontade do sujeito falante, que, ilusoriamente,

acredita ser a fonte de seu dizer, quando não é mais do que seu suporte e seu

efeito. (FLORES [et al], 2009, 135)

Em petições jurídicas ou administrativas, percebemos muitas vezes o uso frequente do

imbricamento de falas do enunciador associada ao discurso de outrem sem uma delimitação

explícita de quem efetivamente está enunciando, ou seja, não se identifica de forma clara a

origem do discurso, o que enseja a alteridade correlacionada à heterogeneidade constitutiva em

questão, eis que discurso de outrem se dá no enunciado de forma latente ou difusa, às vezes até

mesmo sem essa consciência.

No âmbito do direito, como se depreende do corpus, ao se recorrer à doutrina ou

jurisprudência, são comuns enunciações discursivas que coincidem em face dessa

heterogeneidade constitutiva, de sorte que o discurso de um está contido na enunciação de outro,

configurando a alteridade em questão. Esse fenômeno se dá pela associação de ideias, pelo fato

de haver convergência acerca do tema em discussão, assim como divergência em relação aos

que pensam de outra forma, ou seja, a alteridade está presente entre os que comungam do

mesmo posicionamento, assim como entre aqueles que divergem desse posicionamento, mas

que, por sua vez, encontram guarida em tese que lhes sejam favoráveis.

Em função desse fenômeno, há enunciações divergentes entre si, à medida que

determinado enunciador se pauta por pontos de vista de determinados doutrinadores, enquanto

o interlocutor pode entender de outra forma por se pautar em outros doutrinadores ou

enunciadores com outra concepção sobre o tema. Assim, considerando que cada qual adota

aquela corrente que mais se assemelha ao seu modo de ser, à que mais lhe convenha, há uma

tendência a se incorporar esse discurso como sendo também o seu, obviamente sem se cogitar

de plágio ou má fé, mas de uma identificação discursiva propriamente dita que dá ensejo ao

interdiscurso.

A título de ilustração, basta considerar que, no âmbito do direito penal, há aqueles

juristas que adotam ou simpatizam com direito penal mínimo como uma política inerente ao

controle social, entendendo a pena como um mal necessário que se deve aplicar de forma o mais

83

branda possível, enquanto há outros que fomentam o rigor da lei, primando-se pela aplicação

da pena não só com o caráter punitivo e retributivo, mas também como uma espécie de

vingança, visando inibir a prática de conduta antijurídica. Essa especificidade se dá pela

influência cultural, ideológica, política, bem assim pela simpatia a uma linha de conduta voltada

para esse ou aquele viés.

Em suma, é nesse sentido que a comunicação se faz interativa, o que se coaduna

inclusive com a polifonia, pois não há nada que, de uma ou de outra forma, já não tenha sido

dito, ainda que com outras palavras. A língua, por óbvio, evolui e, consequentemente, a cultura

que leva a uma adequação dos institutos, dos conceitos, proporciona enunciados semelhantes a

esse ou àquele discurso, contudo com certo aperfeiçoamento e adequação. Tal fenômeno

linguístico, por sua vez, nos remete também à alteridade sugerida por Charaudeau.

Para o referido autor “... todo ato de linguagem emana de um sujeito que gere sua

relação com o outro (princípio da alteridade) de modo a influenciá-lo (princípio de influência),

tendo de gerir uma relação na qual o parceiro tem seu próprio projeto de influência (princípio

de regulação).4

No entanto, por óbvio, nem sempre o enunciador consegue persuadir o interlocutor, de

sorte que a relação dialógica emerge dessa dicotomia existente entre pontos de vista antagônico,

o que sugere o dialogismo preconizado por Bakhtin, sobre o qual Flores externa sua visão, a

saber:

O dialogismo é constitutivo de todo discurso. É uma propriedade da linguagem

(discurso) que estabelece inter-relação permanente com outros discursos e o

discurso do outro. Isso se deve ao fato de o discurso trazer ressonâncias de já-

ditos, responder a dizeres diversos (passados, presente, futuros) e fazer

projeções e/ou antecipações do discurso-resposta. Essa inter-relação

permanente com discursos de outrem caracteriza a dinamicidade da linguagem,

sua natureza heterogênea e a instauração de áridas relações de sentido. A

constituição dialógica da linguagem evidencia que todo enunciado é um elo na

cadeia da comunicação discursiva, inscrito em um determinado momento

sócio-histórico, ‘povoado de palavras do outro em diferentes graus de presença,

o que garante a sua inconclusividade, no inacabamento orgânico. O

dialogismo, sendo um princípio intrínseco do discurso, aparece nas diferentes

noções desenvolvidas pela teoria bakhtiniana, como ‘linguagem, palavra, signo

ideológico, enunciado, sujeito, estilo e compreensão’. (FLORES [et al], 2009,

p. 80)

Ora, o Direito é exemplo cabal dessa concepção linguística. Os ensinamentos jurídicos,

por si, em qualquer época, se reportam ao Direito Romano, base do direito Civil, norteado por

seus jurisconsultos. Doutrinas e jurisprudências são colacionadas às petições, sentenças,

4 Charaudeau, 2005, p. 12 [2006, p. 16] in: http://www.patrick-charaudeau.com/Uma-analise-semiolinguistica-

do.html

84

recursos e outras peças. O que são esses dispositivos jurídicos senão a alteridade e a

discursivização intrínsecas ao dialogismo? Raramente se vê uma sentença que não traz em sua

fundamentação um julgado sedimentado em outras decisões no mesmo sentido emanadas dos

tribunais, significando, pois, que a alteridade se dá de forma explícita ou implícita, consciente

ou inconsciente, mas não há como ignorá-la no interdiscurso, assim como não se pode olvidar

do dialogismo que, por óbvio, vai muito além do diálogo na acepção do vocábulo.

Por jurisprudência entenda-se julgamentos com a devida cautela, pautando-se em

outros julgados relativos a situações análogas, ancorando-se em pontos de vista que corroboram

a argumentação empreendida, o que, por si, comprova o fenômeno da alteridade, assim como

da polifonia preconizada por Bakhtin. Verdade que, se há decisões judiciais num norte, também

há noutro sentido, mas ambas primando-se em outras vozes já ditas que se coadunem entre si

com entendimentos exarados em casos concretos em face de fatos e fundamentos que as

justifiquem, até que as circunstâncias fáticas acabem por se firmarem sem maiores divergências,

não obstante haver em qualquer situação independência do juiz em julgar conforme sua livre

convicção.

É fato inconteste que, para se chegar a bom termo, sabendo-se que, nas situações

concretas levadas às barras dos tribunais, há sempre polos antagônicos, seja o Estado como

autor e o cidadão como réu ou vice-versa, seja um demandante contra outro, haverá em princípio

o pressuposto do devido processo legal, facultando-se às partes as mesmas oportunidades, como

já ressaltamos anteriormente, o que, por si, demanda o dialogismo, uma vez que cada parte se

manifesta, cabendo à outra contestar. Essa relação antagônica linguisticamente sugere o

dialogismo, a interação verbal, o interacionismo de forma mais abrangente, bem como a

responsividade tratada por Bakhtin como forma de reação ao discurso do outro.

A propósito, Bakhtin asseverou que toda assertiva induz a uma resposta e, nesse

sentido, ele criou o neologismo responsividade. Todavia, há de se atentar-se que, no diálogo

entre as partes, nem sempre há uma intenção de persuadir o enunciatário, diferentemente do que

ocorre na esfera jurídica ou na atividade de trabalho, em que, na maioria das vezes, há sempre

esse interesse. A responsividade em questão abrange em os aspectos linguísticos supracitados,

haja vista os princípios da ampla defesa e do contraditório como prerrogativas inalienáveis.

3.6 Semiotização ideológica no sistema jurídico

Na prática discursiva, todo enunciador procura adequar sua fala à situação concreta,

sempre vislumbrando em certa medida a consciência identitária dos envolvidos no processo

85

enunciativo, principalmente a sua, pois não se podem ignorar os vários pontos de vista possíveis

em relação a determinado tema e ao posicionamento do receptor. Ademais, todos têm

consciência de que um discurso sempre se destina a um enunciatário específico, a um

determinado público, uma plateia ou uma coletividade, enfim, a um interlocutor que pode

concordar ou não com a mensagem transmitida, aderindo ou não a ela.

Sabendo-se dessas suscetibilidades, o enunciador tende a construir uma identidade

discursiva que possa interferir positivamente a seu favor. Visando a essa adesão ao discurso

proferido, faz-se imperiosa a construção da consciência identitária que se vincula aos saberes,

à autoridade de quem enuncia, o que, de certa forma, implica a formatação do ethos, sugerindo,

pois, um modo de dizer que busque a empatia do auditório consubstanciada no pathos.

Nesse sentido, não se pode ignorar que os interlocutores participam do processo de

comunicação em situações concretas, buscando fazer valer suas posições pessoais a partir da

referida consciência identitária, porque não é só o enunciador-locutor que tem essa iniciativa de

criar uma imagem positiva a seu favor, pois o TUi, por sua vez, não recebe a mensagem de

forma apática ou apolítica sem qualquer posicionamento responsivo, haja vista que o processo

de comunicação é dinâmico e consubstanciado em uma via de mão dupla.

Conforme leciona Amossy (2005), o ethos implica a construção de uma imagem do

enunciador no discurso, de forma que o emissor externa uma maneira própria de dizer, um modo

de enunciação personificado, desenvolvendo uma forma articulada de se expressar em

consonância com a situação cenográfica concreta, de sorte que cada caso específico demanda

uma maneira de enunciar reconhecido pelo modo de enunciar vinculado à adequação verbal

inerente a todo processo de comunicação indistintamente, não ignorando o estilo próprio do

enunciador, que deve ser considerado como relevante.

Corroborando essas assertivas, faz-se oportuno trazer à baila as lições da referida

autora, a saber:

A construção de uma imagem de si, peça principal da máquina retórica, está

fortemente ligada à enunciação, colocada no centro da análise linguística pelos

trabalhos de Emile Benveniste. Efetivamente, o ato de produzir um enunciado

remete necessariamente ao locutor que mobiliza a língua, que a faz funcionar

ao utilizá-la. Também é importante examinar a inscrição do locutor e a

construção da subjetividade na língua. Continuando esses trabalhos Catherine

Kerbrat-Orecchioni examinou os ‘procedimentos linguísticos” (shifters,

modalizadores, termos avaliativos etc.) pelos quais o locutor imprime sua

marca no enunciado, se inscreve na mensagem (implícita ou explicitamente) e

se situa em relação a ele (problema da distância enunciativa’. Se a autora se

coloca no interior de uma linguística da enunciação que privilegia o parâmetro

o locutor, ela não visa menos à interdependência dos parceiros da interlocução

e assim permanece fiel ao projeto de Benveniste, que havia introduzido a noção

de ‘quadro figurativo’. O autor entendia dessa maneira que a enunciação,

86

‘como forma de discurso, [...] instaura duas ‘figuras’ igualmente necessárias,

uma origem e outra destino da enunciação’. De fato, a enunciação é por

definição alocução; de uma forma explícita ou implícita, ‘ela postula um

alocutário’ e consequentemente estabelece uma ‘relação discursiva com o

parceiro’ que coloca as figuras do locutor e do alocutário em relação de

dependência mútua. (AMOSSY, 2008, p. 11)

A referência em questão, por sinal, exemplo inquestionável de polifonia e alteridade,

demonstra de forma cabal a cumplicidade entre os sujeitos da relação discursiva, o que se

evidencia no corpus. Nesse sentido, há de se ressaltar a percepção da subjetividade discursiva

mediante procedimentos linguísticos pelos quais o locutor imprime sua marca enunciativa,

como nas petições de outro gênero textual mais abrangente - o julgamento em si -, a exemplo

do caso trazido à colação. A propósito, pode-se afiançar que o gênero petição está contido em

um gênero mais amplo, elástico, no caso o julgamento, como de resto, em outras situações, o

gênero petição pode estar inserido no âmbito do gênero de discurso Processo Administrativo.

Assim, há de se considerar que o locutor age sobre o outro e a recíproca é verdadeira,

na medida em que quem é receptor, enunciatário ou alocutário - expressões sinônimas que

variam de autor para autor - tem sobre si o ônus da responsividade, que, por conseguinte, reverte

essa perspectiva na relação dialógica, inclusive em consonância com o dialogismo, sendo que,

no exercício da responsividade, passa a ser o enunciador (emissor/locutor/enunciador). Nesse

propósito, faz-se oportuno se reportar às lições de Maingueneau (1993) e Goffman (2001), de

quem Amossy (2005) também se vale para explicitar o fenômeno da construção identitária que

visa sobretudo ao envolvimento do outro, primando-se por legitimar as asserções discursivas.

Trata-se, pois, da relação interdiscursiva existente entre os actantes, sujeitos esses

compostos não só pelo eu e o tu ressaltados por Benveniste, mas também pelo ele, que seria a

influência de outros ditos acerca do tema, sugerindo por conseguinte a polifonia na concepção

bakhtiniana, ressaltando que o auditório representaria o “ele”. Por oportuno, esses fenômenos

linguageiros sugerem a interação verbal, valorizando aspectos sociais importantes às relações

interpessoais.

No âmbito do direito, são comuns as construções identitárias dos enunciadores, mais

precisamente na perspectiva bakhtiniana relacionada a identidades sociais, visando respaldar o

discurso, como por exemplo a suposta austeridade social motivada por certa eloquência no

dizer, no proferir palavras não tão comuns ao dia a dia, na imagem de si externada por

indumentárias, imponência dialógica às vezes até com relativa arrogância, o que se vislumbra

nas próprias petições que compõem os autos etc.

No afã de construir essa consciência identitária movida pelos modos de dizer, de se

expressar, de se apresentar, percebem-se aspectos semióticos que sem dúvida também fazem

87

parte do contexto discursivo nesse mister. Como é cediço, o interdiscurso não se resume em

palavras, mas também em gestos, em se apresentar, por modos de enunciar, modos de agir, de

se vestir, de tratar com o outro.

Assim, há de se questionar: por que os advogados só se apresentam em juízo trajando

ternos, assim como juízes, promotores e outros profissionais da área? Qual a razão de os

membros dos Tribunais atuarem sempre de togas em sessões plenárias? E os juízes ingleses e

do País de Gales que ainda atuam com suas perucas de crina de cavalos, indumentárias que

datam do século XVIII? Ora, esses artifícios só se justificam em face da construção identitária,

que se faz não unicamente por palavras ou discursos, mas por rituais, gestos, tradições, cultura

etc., além dos aspectos semióticos adstritos aos signos linguísticos e à semiotização social.

Ademais, não se pode olvidar dessa construção identitária com o objetivo de prestigiar

um suposto status, induzindo a um espírito de corpo, o que não foge à mesma seara da prática

discursiva e do controle social de que tratou Volochinov/Bakhtin em Marxismo e Filosofia da

Linguagem (1995). A título de ilustração, podemos citar duas profissões cuja prática já se

consagrou culturalmente nesse sentido, que são médicos e advogados, os dois únicos

profissionais que, em função do exercício de seu mister, têm a faculdade de serem tratados por

doutores, mesmo sem sequer terem defendidos uma tese ou até mesmo uma dissertação de

mestrado.

Nesse sentido, há críticas contundentes sobretudo a esse tratamento ao advogado, não

havendo maiores ressalvas no que tange a ao tratamento em questão quanto aos médicos,

embora a situação seja similar. Todos sabemos que o tratamento de doutor somente é conferido

stricto senso a quem defenda tese de doutorado, portanto seria uma impropriedade a situação

em questão.

Ocorre que esse tratamento de doutor tanto a médicos quanto a advogados tem como

justificativa o fato de serem eles os únicos profissionais que, no exercício da profissão,

defendem teses em sentido lato, daí o porquê dessa situação atípica. A título de ilustração, tais

profissionais atuam, de modo geral, em atividade meio e não de resultado, ou seja, um médico

ou um advogado, em regra, não têm a obrigação de auferir um resultado positivo com seus

clientes, mas têm a obrigação de empenhar-se ao máximo para conseguir um resultado

satisfatório.

Um paciente em consulta médica terá um diagnóstico sobre os problemas que está

sentindo, os sintomas, contudo, o médico vai lhe pedir os exames que eventualmente possam

indicar o problema. Esse paciente, assim como outros com os mesmos sintomas, ao procurarem

outros médicos, podem ter outros diagnósticos, ter outros tratamentos recomendados, todos se

88

utilizando de meios para tentar a solução do problema, portanto, cada qual defende uma tese,

um prognóstico, um diagnóstico sobre o caso sob análise, daí o porquê de já se ter

institucionalizado culturalmente o tratamento de doutor aos médicos. Essa digressão ilustra a

semiotização cultural para legitimar uma circunstância fática de acordo com a conveniência

institucional, sem nos olvidarmos da semantização social nesse mister, o que se legitima por

convenções discursivas, como discorremos acima.

Em relação aos advogados, também ocorre o mesmo, pois a atividade da advocacia,

como dito anteriormente, por ser atividade meio e não de resultado, o profissional utilizará de

todos os recursos processuais para obter um resultado favorável a seu cliente, porém esse

resultado esperado pode não corresponder às expectativas, pois a “tese” defendida em relação

ao fato jurídico em questão pode não lograr êxito. Tanto que em uma ação penal, a exemplo da

que foi objeto da presente pesquisa, a promotoria de justiça defendeu a tese de crime doloso

contra a vida da vítima, assassinato com a ocultação de cadáver. Lado outro, o advogado do réu

defendeu a tese de inocência, de desaparecimento espontâneo da vítima ou por outro motivo

alheio a seu conhecimento, sendo que o Tribunal do Júri acatou a tese do crime doloso em

questão, ao passo que o juiz de primeira instância, em princípio, foi favorável à impronúncia do

réu por não admitir a tese de crime de homicídio, porquanto não houve exame de corpo de

delito.

Vejam que tanto em relação ao médico quanto em relação ao advogado tais

profissionais têm obrigação de se empenhar ao máximo visando ao resultado mais favorável

aos clientes, contudo isso não é uma garantia de obtenção do resultado perseguido, pois a tese

defendida por ambos em relação ao problema, e os esforços olvidados pelos envolvidos, podem

não lograr êxito, ao passo que a tese em outra seara, por sua vez, pode ser a vitoriosa.

Tendo explicado essa lógica, faz-se oportuno tecer algumas considerações pertinentes

ao tema sob a ótica linguística, mais precisamente em relação à prática discursiva voltada para

o controle social, tanto na perspectiva de Foucault quanto na empreendida por Bakhtin. Assim,

a sociedade assimilou esse tratamento aos médicos e advogados à vista de esforços semióticos

engendrados pelo corporativismo de classe, considerando a necessidade circunstancial de

prestigiá-los em cada época, embora ainda se note certa restrição mais em relação aos

advogados, como se aduz de algumas críticas explícitas ou veladas, questionando que só seria

facultado tal tratamento a quem tenha defendido tese perante uma banca acadêmica, logo não

haveria porque tratar advogados como doutores.

De fato, em sentido estrito, sim, mas o que garante esse status quo é na verdade a

legitimação e a chancela conferida pela sociedade nesse sentido, tanto que raramente se vê

89

algum cliente ou paciente se dirigindo a tais profissionais sem os tratar por doutores, o que

corrobora o processo de reconhecimento lato sensu formatado pela instituição de classe, bem

como pelos usos e costumes, por conseguinte, pela própria sociedade. Outros argumentos

embasam esses questionamentos, mas os mais plausíveis vão ao encontro desse entendimento.

Lado outro, pode ocorrer comportamento em sentido inverso, como no caso dos

professores, por exemplo. Até o início do século XX, esses profissionais eram tratados por

mestres, independentemente de haverem concluído mestrado ou doutorado. Na verdade, essa

inversão também se deu pelo desprestígio da profissão perante a sociedade, o que demonstra

um retrocesso que significa certo descaso para com a profissão, o que, de certa forma, também

implica uma postura cultural da sociedade nesse propósito, infelizmente. Outro contrassenso

nesse sentido é o fato de que mesmo os professores que têm doutorado não serem tratados com

esse pronome de tratamento pelas razões já externadas, exceto em correspondências formais.

Essa explanação visa esclarecer, sob a ótica linguística, a questão da formação

identitária de que vários linguistas tratam, como Patrick Charaudeau, Maingueneau, Amossy,

dentre outros. A questão é cultural, inclusive vinculada a um espírito de corpo, haja vista que

essa mesma lógica relativa às defesas de tese em sentido lato também poderia ser defendida por

outras categorias, como a dos psicólogos, sociólogos, antropólogos etc., portanto qual seria a

razão de apenas médicos e advogados receberem esse tratamento no dia-a-dia?

Na realidade, essa legitimação se dá, como asseveramos antes, pela semiotização e

semantização sociais enquanto mecanismos de controle, à vista de uma chancela conferida

culturalmente, o que a propósito nos remeteria às obras Marxismo e Filosofia da Linguagem

(Volochinov/Bakhtin, 1929), e Arqueologia do Saber (Foucault, 1969). Trata-se de um prestígio

conferido em face da construção identitária, não do indivíduo propriamente dito, mas dos

saberes que são prestigiados em determinada época ou cultura em função de interesses sócio-

políticos, o que se externa no signo linguístico e, por conseguinte, na semiotização a ele

inerente.

Nesse sentido, focamos o que assevera Volochinov/Bakhtin acerca da ideologia e

filosofia da linguagem:

Os signos também são objetos naturais, específicos, e, como vimos, todo

produto natural, tecnológico ou de consumo pode tornar-se signo e adquirir,

assim, um sentido que ultrapasse suas próprias particularidades. Um signo não

existe apenas como parte de uma realidade; ele também reflete e refrata uma

outra. Ele pode distorcer essa realidade, ser-lhe fiel, ou apreendê-la de um

ponto de vista específico, etc. Todo signo está sujeito aos critérios de avaliação

ideológica (isto é: se é verdadeiro, falso, correto, justificado, bom, etc.). O

domínio do ideológico coincide com o domínio dos signos: são mutuamente

correspondentes. Ali onde o signo se encontra, encontra-se também o

90

ideológico. Tudo que é ideológico possui um valor semiótico. Cada signo

ideológico é não apenas um reflexo, uma sombra da realidade, mas também

um fragmento material dessa realidade. Todo fenômeno que funciona como

signo ideológico tem uma encarnação material, seja como som, como massa

física, como cor, como movimento do corpo ou como outra coisa qualquer.

Nesse sentido, a realidade do signo é totalmente objetiva e, portanto, passível

de um estudo metodologicamente unitário e objetivo. Um signo é um

fenômeno do mundo exterior. O próprio signo e todos os seus efeitos (todas as

ações, reações e novos signos que ele gera no meio social circundante)

aparecem na experiência exterior. Este é um ponto de suma importância. No

entanto, por mais elementar e evidente que ele possa parecer, o estudo das

ideologias ainda não tirou todas as consequências que dele decorrem.

(BAKHTIN, 1990, p. 32)

O tema se nos configura intrigante, até por se ater a um fenômeno recorrente ao longo

da história. Corrobora essa perspectiva vinculada à semiotização social o que Foucault externou

na Arqueologia do Saber, haja vista sua tese centrada na análise diacrônica relativa aos saberes

em um corte temporal para compreender o que, em cada, época foi uma referência cultural para

prestigiar ou até mesmo desprestigiar um conhecimento específico, bem como sua valoração

em relação à sociedade em um momento histórico.

Nesse sentido, reportando-se à arqueologia preconizada por Foucault, temos que os

saberes são referências também semantizadas pelos valores culturais em determinado momento

histórico, tanto que a obra em questão enfatizou a importância da medicina, das ciências naturais

e da economia, o que enseja inclusive aspectos inerentes à interação verbal.

Para o autor, e isso é inquestionável, a arqueologia implica relações entre formações

discursivas e domínios políticos que abrangem instituições, acontecimentos sociais, práticas e

processos econômicos, bem assim as positividades emanadas de um contexto sociocultural de

determinada época, senão vejamos a seguir.

Segundo Foucault, a medicina clínica instaurada no Século XVIII estaria vinculada a

fatos e organizações sociais inerentes a acontecimentos políticos, econômicos e sociais,

portanto haveria um link entre tais fatos e as ideias médicas de solidariedade orgânica de coesão

funcional. Nesse sentido, considerando o capitalismo industrial aflorado, torna-se imperiosa a

necessidade de mão-de-obra, portanto as doenças passaram a ter significação em face da

dimensão econômico-social.

Nesse viés, assevera Foucault:

(...) em uma época em que o capitalismo industrial começava a recensear suas

necessidades de mão-de-obra, a doença assumiu uma dimensão social: a

manutenção da saúde, a cura, a assistência aos doentes pobres, a pesquisa das

causas e dos focos patogênicos, tornaram-se um encargo coletivo de que o

Estado deve, por um lado, se encarregar e, por outro, supervisionar. Disso,

seguem-se a valorização do corpo como instrumento de trabalho, o cuidado de

racionalizar a medicina pelo modelo das outras ciências, os esforços para

91

manter o nível de saúde de uma população, o cuidado recebido pela

terapêutica, pela manutenção de seus efeitos, pelo registro dos fenômenos de

longa duração. (FOUCAULT, 1972, p. 200)

O excerto em tela corrobora o que externamos acerca do prestígio conferido a

determinadas áreas do conhecimento em épocas específicas, motivado por circunstâncias

ideológicas em face de um contexto sócio-político e econômico. A arqueologia engendrada por

Foucault vislumbra esse corte temporal visando uma análise que explicaria os saberes e sua

importância para a sociedade em determinado momento, bem como a valorização desse saber a

serviço de pressupostos políticos de controle social.

Essa valorização, que aliás foi vislumbrada em grande parte na medicina, na economia

e na política se aplica por óbvio a outros saberes, conforme eles possam ter importância no

controle social, mormente no que tange aos modos de dizer, à forma de se patentear uma

asserção de interesse sócio-político. Nessa seara, não por acaso, Foucault centrou-se na

enunciação discursiva relacionada ao saber médico, que, mutatis mutandis, no que coubesse,

valeria para o saber jurídico por razões outras na mesma época e na atualidade.

Depreende-se da arqueologia foucaultiana que nada ocorre ao acaso, pois as práticas

discursivas de cunho ideológico têm o condão de sugerir a manutenção do controle social, bem

assim o status quo em face das perspectivas econômicas e políticas em determinada época, daí

o porquê da valoração de certos segmentos da sociedade, a exemplo da economia, medicina e

ciências naturais no século XVIII, o que se faz estrategicamente para endossar as práticas

sociais chanceladas pelos saberes que estariam a serviço da sociedade em cada tempo, senão

vejamos:

Se a arqueologia aproxima o discurso médico de um certo número de práticas,

é para descobrir relações muito menos 'imediatas' que a expressão, mas muito

mais diretas que as de uma causalidade substituída pela consciência dos

sujeitos-que-falam. Quer mostrar não como a prática política determinou

o sentido e a forma do discurso médico, mas como e a que título ela faz parte

de suas condições de emergência, de inserção e de funcionamento. (...) Finalmente, podemos compreender tal relação na função que é atribuída ao

discurso médico, ou no papel que se requer dele, quando se trata de julgar

indivíduos, de tomar decisões administrativas, de dispor as normas de

uma sociedade, de traduzir - para 'resolvê-los' ou mascará-los - conflitos de

uma outra ordem, de dar modelos de tipo natural às análises da sociedade e às

práticas que a concernem. Não se trata, portanto, de mostrar como a prática

política de uma sociedade dada constituiu ou modificou os conceitos médicos

e a estrutura teórica da patologia, mas como o discurso médico como prática

que se dirige a um certo campo de objetos, que se encontra nas mãos de

um certo número de indivíduos estatutariamente designados, que tem,

enfim, que exercer certas funções na sociedade, se articula com práticas que

lhe são exteriores e que não são de natureza discursiva. (...)

92

Em outras palavras: a descrição arqueológica dos discursos se desenrola na

dimensão de uma história geral; ela procura descobrir todo o domínio das

instituições, dos processos econômicos, das relações sociais com as quais

pode-se articular uma formação discursiva; ela tenta mostrar como a autonomia

do discurso e sua especificidade não lhe dão, entretanto, um estatuto de pura

idealidade e de total independência histórica; ela quer revelar o nível singular

em que a história pode dar lugar a tipos definidos de discurso, que têm seus

tipos próprios de historicidade, e que estão relacionados com todo um conjunto

de historicidades diversas. (FOUCAULT, 1972, p. 202) Grifos acrescidos.

Nesse propósito, vale ressaltar que o saber médico no século XVIII, assim como outros

saberes em épocas distintas, foi evidenciado com o status em questão pela necessidade de

disciplinar as relações de trabalho em face da revolução industrial, ensejando, pois, o

nascimento das clínicas, legitimando, em certa medida, a segregação de pessoas que não

poderiam trabalhar, de sorte que a função desse profissional guardava relação intrínseca com as

práticas discursivas que endossassem essa necessidade premente naquele momento histórico.

Assim, ao se levar em conta os saberes, não há como desvencilhar-se da prática

discursiva do momento histórico, porquanto o que a sociedade convenciona em valorizar em

um momento pode não corresponder a outro, ressaltando que o saber na concepção arqueológica

foucaultiana tem por escopo legitimar a enunciação a serviço das instituições, o que

corresponderia à positividade do discurso.

Para Foucault (1972, p. 157), "A positividade de um discurso - como a da história

natural, da economia política, ou da medicina clínica - caracteriza-lhe a unidade através do

tempo, e muito além das obras individuais, dos livros e dos textos", o que explica a supra

valorização dos saberes institucionalizados conforme o interesse de controle social em questão.

É nesse contexto que vislumbramos o porquê das positividades em discursos latentes

do médico, do advogado, bem como de outros profissionais como o economista, que

implicitamente, ainda que de forma inconsciente, estaria a serviço de uma ideologia política,

vinculada ao ordenamento social legitimando pela semiotização de controle.

Em sentido inverso, quiçá pela mesma questão de desprestigiar um saber adstrito ao

conhecimento, o professor antes tido como mestre deixou de ter esse status exatamente por não

haver interesse em valorar devidamente seu conhecimento perante a sociedade, mormente em

países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, haja vista o desinteresse da sociedade e de

sua classe dominante em fomentar o conhecimento a quem o buscasse na escola. Nesse sentido,

de forma inversa, estaríamos diante da arqueologia do saber num viés inverso, ou seja,

desprestigiando o saber do mestre em face de controle social ao avesso.

93

Ainda em relação à arqueologia na concepção foucaultiana, poderíamos nos reportar a

fato pitoresco ocorrido no Brasil, que bem ilustra a relação médica vinculada à segregação de

pessoas que representariam sob a ótica preconceituosa do capitalismo um estorvo à sociedade.

O saber médico foi privilegiado como já dissemos, assim como o saber da biologia e ciências

naturais, como de resto se evidenciou na economia. No Brasil, por exemplo, tivemos a

segregação de pessoas que sofriam da hanseníase, haja vista as colônias existentes em locais

longínquos das cidades até recentemente. Da mesma forma, eram segregados os loucos ou tidos

como doentes mentais, bem como pessoas marginalizadas, vadias, que não representariam um

retorno econômico para o país, bastando lembrar que a vadiagem já foi tipificada como crime

pelo Código Penal brasileiro.

Dentre vários exemplos que ilustrariam a tese de Foucault, no campo da medicina,

poderíamos citar como exemplo o caso do artista de rua Arthur Bispo do Rosário, um sergipano

que viveu na cidade do Rio de Janeiro desde sua adolescência, tendo ingressado na Marinha,

sido boxeador, trabalhador no cais, motorneiro de bonde, empregado doméstico, até que passou

a ter alucinações, visões de anjos, passando a colecionador de coisas, artista, daí ser considerado

por uns como louco e por outros como um gênio.

A partir de seu comportamento supostamente esquizofrênico, Bispo do Rosário foi

internado na Colônia Juliano Moreira, instituição que segregava doentes mentais, alcoólatras e

pessoas que não se encaixavam no paradigma dos tidos como normais. Esse artista alegava que

escutava vozes, que era um enviado de Deus, que tinha por missão julgar os vivos e os mortos.

Após se apresentar ao Mosteiro de São Bento com essas ideias esdrúxulas, acabou sendo

internado no Hospício Pedro II, aliás, uma das maiores instituições oficiais destinadas a

segregar pessoas com esse perfil. Em seguida, foi internado em outras Colônias destinadas a

pacientes paranoicos e esquizofrênicos, onde permaneceu por mais de cinquenta anos.

Por muito tempo passou a produzir objetos diversos oriundos de lixo, - hoje reciclagem

-, até que sua obra passou a ser valorizada como obra de vanguarda, sobretudo pela forma

inusitada, pela beleza e estilo diferenciado. Uma de suas principais obras foi o Manto da

Apresentação, em que ele produzira com a intenção de se apresentar a Deus no Juízo Final,

portanto o manto seria uma referência de sua passagem pela terra.

Se hoje objetos desprezados pela sociedade têm sido reciclados por uma consciência

ecológica, a postura de Bispo do Rosário nos anos trinta do século passado era por assim dizer

revolucionária, no entanto, o artista pernambucano, incompreendido pela sociedade, fora

internado como louco, segregado do convívio em sociedade, até que sua obra fora reconhecida

como uma referência.

94

Hoje ele é uma referência artística póstuma, cuja obra, por seu turno, é referência da

arte contemporânea brasileira a ponto de inspirar um dos mais renomados artistas plásticos da

atualidade, Ronaldo Fraga, o estilista mineiro reconhecido mundialmente, que, a propósito,

passou a ser reconhecido exatamente a partir de trabalhos valorizando a obra de Bispo do

Rosário, sobretudo o manto sagrado que seria a túnica, a roupa especial de sua apresentação no

Juízo Final.

Ora, é inacreditável que um artista tido como louco, desprezado pela sociedade,

discriminado, internado em manicômios, alijado do sistema, na verdade, era um artista

incomparável, um gênio, cujo reconhecimento só viera uns trinta anos após sua morte. Se

tivesse aparecido na mídia hoje, certamente seria devidamente valorizado, quiçá um artista de

reconhecimento internacional, contudo, à época, tendo em vista a política praticada pela

sociedade ocidental, nos termos ressaltados por Foucault, não passou de um indivíduo

marginalizado, cuja obra não despertou qualquer interesse à sociedade capitalista. Contudo,

hoje há uma estátua em sua homenagem em sua terra natal Japaratuba, Sergipe.

A legitimação dos saberes tem, pois, um cunho ideológico que chancela seu significado

sócio-político. Da mesma forma, a profissionalização o tem na medida em que só se considera

o profissional legitimado a externar seu saber a partir do reconhecimento pelo Estado, porquanto

por maior que seja a competência empírica para contemplar uma demanda em face de um saber,

ele só será legitimado se devidamente institucionalizado pelas instâncias próprias vinculadas à

classe dominante, pela mídia ou pelo mundo acadêmico.

A título de ilustração, aquele que detinha ou ainda detenha um conhecimento empírico

adquirido pela experiência de longos anos, sobretudo no passado, era reconhecido como um

mestre, mormente pelo reconhecimento cultural nesse sentido, a exemplo de um pescador que,

por esforços próprios, enfrentava e ainda enfrenta mares revoltos em pescarias homéricas, de

um carpinteiro, que sem noções técnicas de geometria constrói obras que resistem por séculos,

assim como mestres que também detenham conhecimentos acerca da meteorologia sem sequer

conhecer minimamente da astrologia.

O exemplo nos serve ainda para ilustrar a dicotomia das positividades asseveradas por

Foucault na Arqueologia do Saber, embora o renomado filósofo tenha se embrenhado no

reconhecimento do saber institucionalizado, haja vista suas digressões sobre a medicina, a

economia, as ciências naturais, ressaltando que esses conhecimentos não eram por óbvio os

únicos a serem prestigiados numa análise diacrônica acerca do discurso empreendido em

relação a elas, mas o foram, naquele período, pelas circunstâncias políticas do momento. São

essas circunstâncias que ensejam as positividades na perspectiva foucaultiana.

95

Sabendo-se dessas vicissitudes, ainda que intuitivamente as pessoas se valham dessa

especificidade para engendrar suas enunciações, seus modos de dizer, por conseguinte, suas

construções discursivas, o que se depreende do discurso do advogado, juízes, médicos,

professores, políticos e por que não dos saberes inerentes às camadas menos institucionalizadas

da sociedade, como na relação discursiva dos trabalhadores com seus sindicatos, com as

associações de classe etc.?

Trata-se, pois, de questão relevante que demanda uma atenção especial na seara da

enunciação discursiva, que, de certa forma, corrobora o caráter sócio-político intrínseco ao

processo de comunicação. Nesse mister, vale confirmar essas asserções trazendo à baila na

próxima seção algumas ponderações acerca da identidade social e identidade discursiva, bem

como o fundamento da competência enunciativa na perspectiva de Patrick Charaudeau.

Na seção seguinte, vamos adentrar no cerne do julgamento, tecendo considerações

sobre fatos relevantes inerentes à argumentação como fator preponderante ao êxito do

enunciador.

3.7 Os influxos da argumentação mudando a natureza das coisas

No julgamento que trazemos à baila, o veredicto do Conselho de Sentença decidiu por

cinco votos a dois pela condenação do réu, o que traduz na percepção do que seria justo para a

maioria dos jurados, aliás, maioria considerável a dar certa tranquilidade ao titular da ação

penal, no caso ao Ministério Público, haja vista ter sido uma maioria qualificada por margem

de segurança, diferentemente do que ocorreria se fosse um resultado apertado de quatro votos

a três pela condenação, pois desses votos, bastaria um em sentido inverso e, nessa hipótese,

implicaria absolvição do réu por margem ínfima.

Esses resultados são, por óbvio, motivados em grande parte pela enunciação discursiva

empreendida pelos enunciadores, bem como pela percepção do senso de justiça assimilado

pelos enunciatários, no caso, pelos jurados, porquanto foi, em função das práticas discursivas,

das estratégias argumentativas externadas pelos sujeitos enunciadores, que se chegou ao

resultado, ao veredito.

Ora, nessa digressão, o resultado do julgamento em tela poderia ter sido outro, ou seja,

por quatro a três a favor da absolvição do réu, como ressaltamos anteriormente, o que também

seria diferença ínfima. Essas ponderações dão conta de que a questão é polêmica e adstrita não

só aos aspectos jurídicos como se possa imaginar, mas em grande medida a questões

enunciativas, semânticas, argumentativas e interpretativas dos fatos e de suas versões, em

96

última instância, centrando-se em questões linguístico-discursivas.

Nessa seara, há de se ponderar acerca da extensão do caráter justiça na acepção do

termo, ou seja, processualmente falando, um julgamento que obedeça aos preceitos jurídicos

são justos, mas a interpretação dos fatos pode levar a um julgamento que não o seja, uma vez

que ninguém tem o dom da onisciência, portanto julga pela interpretação dos fatos à vista de

suas versões, sabendo-se que cada pessoa interpreta de seu jeito, assimilando as circunstâncias

à sua maneira, a partir de sua cultura, sua conduta, sua moral. Nesse sentido, há de se considerar

que o certo para um pode não o ser para outro, como a interpretação de conduta moral e ética

também possa variar de pessoa por pessoa, o que interfere inclusive no julgamento acerca do

agir, da culpa, do dolo, do honesto, etc., fatores esses que estão intrinsecamente voltados para

questões de foro íntimo.

Esses matizes nos remetem à Lógica Jurídica de Perelman (2004), uma vez que ela não

aponta para o certo ou errado em situações antagônicas, mas para uma justificativa a meio

termo, vislumbrando o bom senso, sem taxar como justa ou injusta essa ou aquela decisão, mas

alertando para a necessidade premente de se procurar errar o menos possível quando não der

para acertar, até porque o erro é inerente às atividades humanas, mas, em situações limites,

mormente quando se lida com a liberdade, com a vida, com direitos fundamentais, a injustiça

se consubstancia um mal irreparável, muitas vezes motivada por questões retóricas e políticas.

Nesse propósito, recorremos a Mieczyslaw Manelli (2004), um dos grandes

colaboradores de Perelman, senão vejamos:

A Nova Retórica não toma nada como certo. E a luta de Perelman contra todos

os vestígios abertos ou ocultos da teoria de que a verdade é 'aquilo que vejo

clara e distintamente' tornou-se a batalha mais importante no novo e

consistente intelectualismo contra a intelectualização dissimulada do séc. XX. (...) Portanto, a razão deve ser fortalecida pela nova teoria da argumentação e as

soluções razoáveis devem ser pluralísticas. A Nova Retórica tem consciência

de que muitas pessoas tomam como certo, óbvio e racional o que ainda precisa

ser provado. Elas aceitam ideias tradicionais, embora as circunstâncias mudem

radicalmente. (...) A partir do ponto culminante da teoria da argumentação, os fatos designam o

que foi acordado por uma determinada audiência como incontroverso. Mas um

'fato' pode deixar de ser um fato porque dúvidas foram levantadas sobre

ele pelo público específico ou porque o público original se expandiu e seus

novos membros vieram a questionar o que para

outros era incontestável. (MANELLI, 2004, p. 25) Grifos acrescidos.

Assim, ancorando-se nos preceitos supra e nas bases filosóficas e metodológicas da

Nova Retórica, que, de certa forma, se coadunam com a semiotização social, não se pode

afiançar que o justo, na acepção do vocábulo, seja o que se decidiu nesse ou naquele norte, seja

97

no âmbito do Tribunal do Júri, no STJ, seja no próprio STF, até mesmo quando haja

unanimidade nas votações, assim como em decisões por maioria, pois aqueles que são votos

vencidos podem ter vislumbrado outras perspectivas que ensejariam outra decisão, como de

resto ocorre em casos distintos com vários recursos, como ocorreu no julgamento, objeto desta

dissertação.

A entender de forma taxativa esse desiderato, chegar-se-ia à conclusão de que as

decisões judiciais primariam pelo que seja o mais próximo do justo possível, porque a medida

precisa de justiça só se alcançaria numa acepção teológica, transcendental, com a prerrogativa

da onisciência e onipresença, obviamente inacessível ao homem.

Por oportuno, vale trazer à colação os ensinamentos de Foucault nessa seara, que, por

óbvio, não se direciona exclusivamente ao direito, à jurisdição, mas aos saberes

institucionalizados na ordem política, econômica, médica e por que não jurídica, segundo suas

proposições, a saber:

1. A ideologia não é exclusiva da cientificidade. Poucos discursos deram

tanto lugar à ideologia quanto o discurso clínico ou o da economia política: não

é uma razão suficiente para apontar erro, contradição, ausência de objetividade

no conjunto de seus enunciados. 2. As contradições, as lacunas, as faltas teóricas podem assinalar o

funcionamento ideológico de uma ciência (ou de um discurso com pretensão

científica); podem permitir determinar em que ponto do edifício esse

funcionamento se dá. Mas a análise de tal funcionamento deve-se fazer ao

nível da positividade e das relações entre as regras da formação e as

estruturas da cientificidade. 3. Corrigindo-se, retificando seus erros, estreitando suas

formalizações, um discurso não anula forçosamente por isso sua relação

com a ideologia. O papel desta não diminui à medida que cresce o rigor e

que a falsidade se dissipa. 4. Entregar-se ao funcionamento ideológico de uma ciência para fazê-

lo aparecer e para modificá-lo não é revelar os pressupostos filosóficos que

podem habitá-lo; não é retornar aos fundamentos que a tornaram possível e que

a legitimam: é repô-la em questão como formação discursiva; é entregar-

se não às contradições formais de suas proposições, mas ao sistema de

formação de seus objetos, de seus tipos de enunciação, de seus conceitos,

de suas escolhas teóricas. É retomá-la como prática entre outras práticas.

(FOUCAULT, 1971, p. 225) Grifos acrescidos.

A questão não é pacífica, haja vista a impossibilidade do homem em abarcar as

inumeráveis contradições e solucioná-las em definitivo. Por todo o exposto, poder-se-ia afirmar

que a ciência jurídica, dadas as inquietudes e contradições, poderia também ter sido objeto de

uma análise diacrônica na perspectiva foucaultiana, pois a Arqueologia do Saber enquadraria

perfeitamente nessa teoria. Não há ciência mais política que a ciência jurídica, haja vista seu

conteúdo ideológico atinente ao controle social, além do fato de ela estar adstrita ao contexto

98

das elaborações de leis, portanto não se desvencilhando do mister emanado do Parlamento.

Prova disso são obras clássicas relacionadas a fatos jurídicos, cujos romances tiveram

por escopo denunciar a politização da ciência jurídica sob a égide do controle social motivado

pelos influxos da atuação do Estado. Nesse propósito, essas obras criticam a burocracia estatal,

a veneração a uma elite de poder, bem como a ideologização dos Poderes. Corroboram essa

asserção obras clássicas de Kafka, como "O processo" e "O Castelo", assim como a Revolução

dos Bichos e "1984", de George Orwell, dentre outras, que são referências irrefutáveis nesse

sentido.

3.8 Aspectos inerentes à identidade social e discursiva

Em princípio, Charaudeau (2009) acena para a questão da identidade do enunciador

externada pela fala, pelo discurso empreendido, justificando, pois, a identidade social, a

consciência discursiva e a competência comunicacional, que, por sua vez, também remeteriam

ao ethos do enunciador, cujo propósito visa chancelar suas asserções, seus argumentos e, por

conseguinte, a adesão do auditório, vislumbrando a perspectiva do pathos como enunciatário.

Assim, o autor se reporta à visão que o indivíduo tem acerca de si, do outro e do meio,

permitindo-lhe a tomada de consciência de sua existência, de sua cultura, suas crenças, juízos

de valor, suas potencialidades e seus saberes, não ignorando essas mesmas prerrogativas no

outro, na inter-relação entre logos e pathos, ressaltando, pois, o status tanto do conhecimento

formal quanto empírico na prática discursiva, bem como o contexto sócio discursivo

engendrado pelo sistema comunicacional como um todo.

Nessa tomada de consciência, faz-se imprescindível o reconhecimento das diferenças

existentes entre os sujeitos, considerando-se inclusive a percepção de mundo, o que sugere a

alteridade reconhecida nos dizeres do outro e de si, daí as razões de se endossar a enunciação

com o enunciado alheio, ainda que de forma inconsciente. Dessa forma, o indivíduo reconhece

semelhanças e diferenças nos discursos afetos à realidade circundante, o que o motiva a se valer

de enunciados seus, mas que foram também objeto de enunciações de outrem, na medida em

que nenhum discurso está adstrito a uma originalidade que não advenha de outros ditos.

Nessa perspectiva, Charaudeau também se reporta a Benveniste para reforçar que as

divergências e semelhanças se complementam, uma vez que não há eu sem tu, nem tu sem o eu,

o que por si justifica a alteridade na perspectiva bakhtiniana vinculada ao dialogismo. Fato é

que as diferenças são inevitáveis e até mesmo elogiáveis e salutares sob o ponto de vista da

dialética, pois corrobora a máxima de que ninguém é dono de verdades absolutas. Nesse

99

conflito, torna-se inevitável a constatação de que as diferenças sempre representam uma certa

ameaça, daí a importância de se constituir a identidade inerente ao eu que o distingue do tu,

sugerindo, pois, o dilema preconizado por Benveniste.

Esse dilema envolvendo a consciência identitária no discurso enunciativo demonstra

que na prática dialógica há uma constante construção ou avaliação da identidade social que

perpassa entre os sujeitos comunicantes, haja vista que, no ato de enunciar, que não se confunde

com o ato de fala, o enunciador procura imprimir certa confiança em si, porque tem convicção

de que tal iniciativa lhe será favorável no ato de persuadir o enunciatário e, por conseguinte,

conquistar sua adesão.

Para sedimentar a identidade social em consonância com o sistema, imbrica-se um

discurso ao discurso do outro e, ao mesmo tempo, refutam-se outros discursos em sentidos

diversos, ensejando, pois, o fenômeno da dialética e do contraditório. A confluência entre

identidade discursiva e identidade social funda-se na competência enunciativa em situações

explicitadas por Charaudeau, senão vejamos:

Os exemplos acima nos mostram, por outro lado, que a identidade social não

explica a totalidade da significação do discurso, pois seu possível efeito de

influência não está inteiramente dado por antecipação; por outro lado, é certo

que o discurso não é apenas linguagem, sua significação depende também da

identidade social de quem fala. A identidade social necessita ser reiterada,

reforçada, recriada, ou, ao contrário, ocultada pelo comportamento linguageiro

do sujeito falante, e a identidade discursiva, para se construir, necessita de uma

base de identidade social. Postulamos, pois, que existe uma diferença entre

estes dois tipos de identidade, e que é pela sua combinação que se constrói o

poder de influência do sujeito falante.5

A partir de alguns exemplos que reforçam seus argumentos acerca da importância da

identidade social na prática discursiva, Patrick Charaudeau demonstra que essa especificidade

é conferida em face de reconhecimentos de natureza acadêmica, do saber empírico, pela cultura

propriamente dita. Segundo o autor, a legitimidade se faz pela força do reconhecimento por

parte dos integrantes de determinada comunidade, à vista do valor conferido por seus membros.

Essa identidade se consubstancia por traços de natureza psicossocial, ou seja, legitimidade

conferida pela palavra, pelo engajamento pessoal de natureza política, pela participação

ostensiva em determinado grupo sociopolítico, enfim pela posição de poder, militância e status

social, dentre outros fatores importantes nesse propósito.

5 http://www.patrick-charaudeau.com/Identidade-social-e-identidade.html

100

Ressalte-se que, de certa forma, Charaudeau se reporta aos posicionamentos de

Foucault na Arqueologia do Saber, na medida em que haja relativo status a quem tenha prestígio

identitário de cunho ideológico, como ocorreu no século XVIII em relação aos saberes

conferidos à medicina, à economia, à ciência biológica.

Nesse sentido, discorre Foucault em Arqueologia do Saber:

Saber e ideologia Uma vez constituída, uma ciência não retoma a seu cargo e nos encadeamentos

que lhe são próprios tudo que formava a prática discursiva em que aparecia;

não dissipa tampouco - para remetê-lo à pré-história dos erros, dos

preconceitos ou da imaginação - o saber que o cerca. A anatomia patológica

não reduziu e reconduziu às normas da cientificidade a positividade da

medicina clínica. O saber não é o canteiro epistemológico que desapareceria

na ciência que o completa. A ciência (ou o que passa por tal) localiza-se em

um campo de saber e nele tem um papel. Papel que varia conforme as diferentes

formações discursivas e que se modifica com suas mutações. Aquilo que, na

época clássica, era considerado como conhecimento médico das doenças do

espírito ocupava no saber da loucura um lugar muito limitado: não era mais

que uma de suas superfícies de afloramento, entre muitas outras

(jurisprudência, casuística, regulamentação policial, etc.); em compensação, as

análises psicopatológicas do século XIX, que também passavam por um

conhecimento científico das doenças mentais, desempenharam um papel muito

diferente e muito mais importante no saber da loucura (papel de modelo e de

instância de decisão). Do mesmo modo, o discurso científico (ou supostamente

científico) não garante a mesma função ao saber econômico do século XVII e

no do século XIX. Encontra-se uma relação específica entre ciência e saber em

toda formação discursiva; a análise arqueológica, em lugar de definir entre eles

uma relação de exclusão ou de subtração (buscando o que se esconde do saber

e resiste ainda à ciência, o que da ciência ainda está comprometido pela

vizinhança e influência do saber), deve mostrar positivamente como uma

ciência se inscreve e funciona no elemento do saber. (FOUCAULT, 1971, p.

223)

Essas ponderações reforçam, inclusive, a incorporação da consciência identitária na

prática discursiva, na medida em que os saberes atinentes aos enunciadores não estariam a

serviço da sociedade ao acaso, mas sobretudo em face da semiotização ideológica, visando ao

controle social, ainda que de forma latente e inconsciente. Esse fenômeno social ocorre nos

Poderes constituídos, na medicina, no mundo acadêmico, na mídia, enfim, nos formadores de

opinião em geral.

Vê-se, pois, que são vários os fatores que interferem no processo enunciativo,

mormente a semiotização social de cunho ideológico, a representação que se consubstancia no

mundo dos signos, inclusive no que tange à acepção de justiça, tendo em vista que a jurisdição

em si, objeto inerente à presente pesquisa, implica dizer o direito no caso concreto, o que nos

leva a questionar o que seria, para casos concretos específicos, a dimensão do justo, vez que

101

decisões externadas em situações concretas nem sempre se coadunam efetivamente com o que

seria reto, haja vista jurisprudências antagônicas em situações correlatas.

Dessa forma há de se ponderar: se os fatos e suas versões são similares, por que as

decisões não o são na mesma medida? Trata-se, por conseguinte, de questão de alta indagação

ou de alta relevância, como se depreende do corpus.

Para melhor compreendermos a influência do discurso sobre o outro, visando

sobretudo a persuasão do enunciatário pelo enunciador, faz-se oportuno atentar-se para as lições

de Aristóteles em suas convicções discursivas acerca da virtude do homem honesto e sincero,

enaltecendo a equidade como referência, ressaltando que oradores inspiram confiança quando

seus argumentos e conselhos são dignos, pautados pela razoabilidade, consciência, honestidade

e equanimidade, transpassando a ideia de solidariedade para com outro e com o auditório.

Reportando-se a Gadamer, Amossy ressalta a aparência do expor com virtudes, ou seja,

para o enunciatário, os argumentos empreendidos pelo orador devem no mínimo parecer

plausíveis, verossímeis. Segundo Amossy (2005, p. 34), o orador persuadirá mais à medida que

o ouvinte tiver a convicção de que ele parece expor esses argumentos com virtude, isto é,

honesta e sinceramente, o que, por sua vez, também nos remete à retórica aristotélica.

No que concerne a essa relação discursiva, seja ela inerente à oralidade, seja vinculada

ao texto em si, mormente no gênero petição, sem excluir outros gêneros que também apresentam

características semelhantes, devemos considerar a dicotomia entre a identidade discursiva e a

identidade social, como bem deixou patente Charaudeau (2009), ao tratar do tema.

103

4 DA ANÁLISE DO MATERIAL SELECIONADO

A partir deste capítulo, adentraremos mais precisamente na análise do material

selecionado. Dentre as várias peças do processo, destacamos cinco petições que, em certa

medida, dão a dimensão das estratégias discursivas utilizadas pelos sujeitos comunicantes

envolvidos no julgamento. São petições produzidas pelos enunciadores representantes das

personagens envolvidas no enredo, as quais, em determinadas situações, não falam por si, mas

por outrem, por advogados, promotores, juízes, testemunhas, cada qual numa esfera enunciativa

pertinente a suas perspectivas enunciativas, uns com maior grau de envolvimento na situação

concreta, outros de forma periférica, mas com importância relevante em face do contexto sócio-

discursivo.

4.1 Questões polêmicas acerca de julgamentos no âmbito do Tribunal do Júri

Sem dúvida, o ordenamento jurídico é resultante da demanda social, levando-se em

conta o peso da opinião pública influenciada ou não pela mídia, o que, por sua vez, vem ao

encontro dos influxos dos discursos, debates, matérias jornalísticas acerca de determinado tema,

sugerindo, pois, edições de leis, posicionamentos jurisprudenciais e doutrinários.

O julgamento, objeto das petições em anexo, foi polêmico em face de posicionamentos

díspares, contraditórios, que oscilam tanto num viés quanto noutro, inclusive perante a opinião

pública. No caso em tela, a polêmica residiu mormente no fato de se deflagrar um julgamento

no âmbito do tribunal do júri sem sequer ter a certeza do homicídio, sobretudo por não ter sido

encontrado o corpo da vítima, tanto que até o juiz de primeira instância não pronunciou o réu.

Tratando-se de homicídio, o normal seria a confirmação do crime a partir do exame de

corpo de delito, porém, no caso em estudo, isso não ocorreu pelo desaparecimento da vítima, o

que por si já sugere questionamentos, pontos de vista que se destoam em relação à doutrina,

jurisprudência e opinião pública. Nesse sentido, as polêmicas vivenciadas nos discursos

proferidos pelas partes, conforme se depreende das petições, são exemplos cabais do dialogismo

evidenciado por posicionamentos antagônicos, ora a favor da condenação, ora a favor da

absolvição, tendo em vista a ausência de prova cabal do crime, até pela inexistência de corpo

para exame pericial, tanto que não houve unanimidade no resultado do julgamento.

Oportuno lembrar que um caso como o ora analisado sob a ótica da AD se nos

configura emblemático sobretudo por ser julgado por juízes leigos, ou seja, pelo Tribunal do

Júri - Conselho de Sentença -, portanto por pessoas comuns do povo, escolhidas ou designadas

104

quase que aleatoriamente, não fosse por análise criteriosa sob a conduta pessoal de cada um,

sem se adentrar no grau de escolaridade dos jurados, se têm ou não conhecimentos específicos

da matéria, se exercem ou não cargos compatíveis com a função a ser exercida, se são

funcionários públicos ou não, empregados ou desempregados. O importante é que sejam

cidadãos comuns com conduta ilibada, aptos ao exercício de atos civis.

Interessante o instituto do Tribunal do Júri, na medida em que ele representa a vontade

popular externada por jurados leigos, portanto suas decisões implicam avaliação quanto à

conduta do acusado. Para efeito do julgamento no âmbito do júri faz toda diferença avaliar se o

acusado agiu deliberadamente com um propósito, se o fato foi motivado por culpa ou por dolo,

se houve intenção ou não na ação delituosa, se a ação foi motivada por um propósito ou outro,

se o réu agiu por vingança, para roubar ou furtar, daí a importância em se formular quesitos a

serem respondidos pelos jurados, o que, em si, sugere análise sob a ótica da enunciação

discursiva, porquanto tem repercussão a diferença entre uma coisa e outra, por mais sutis que

sejam essas nuances, ou seja: roubo ou furto, dolo ou culpa, assassinato ou latrocínio, o que

comprova a relevância do gênero de discurso petição e a análise semântico-discursiva em

julgamentos desse viés.

Nesse sentido, esses jurados estão afetos aos enunciados oriundos dos agentes

envolvidos no procedimento criminal em apreço, à fala do promotor, delegado, juiz de

pronúncia, testemunhas, assistente de acusação, da própria repercussão na mídia. Daí a

importância da eloquência discursiva inerente tanto à tese da acusação quanto da defesa,

primando-se por evidenciar as teses jurídicas empreendidas pelo advogado de defesa e pelo

Ministério Público, assim como pelo assistente de acusação.

Tais profissionais imprimem sua marca por características personalíssimas atinentes

aos modos de dizer, algo que, por excelência, é intuito personae, sobretudo porque cada pessoa

se expressa de forma singular, não obstante a influência de outrem em cada enunciação

discursiva, haja vista que somos o resultado de interdiscursos, da interação verbal propriamente

dita.

Cada enunciador apresenta-se com suas vicissitudes, com suas peculiaridades e

idiossincrasias, sempre visando à defesa de seu ponto de vista, sendo eloquente em suas

ponderações, cujas emoções perpassam ao auditório, primando-se sobretudo pela autoridade e

legitimidade no externar seu discurso, dando a ele ares de veracidade, bem como autenticidade

identidária capaz de persuadir o enunciatário mediante argumentos plausíveis a esse mister.

Ademais, o Eu Comunicante se vale de uma realidade psíquica que envolve os

enunciatários, que, no júri, são o auditório, o próprio réu, promotores, testemunhas, o juiz e,

105

principalmente, os membros do Conselho de Sentença, no caso, os jurados propriamente ditos

que, em última instância, são os responsáveis pelo veredicto.

Ao enunciar no júri, o locutor, por óbvio, não tem certeza de auferir um resultado

satisfatório quanto ao convencimento do alocutário, mas há sempre um esforço nesse sentido,

levando-se em conta a responsividade inerente à percepção do outro, que, por conseguinte, pode

vislumbrar outras perspectivas, ou seja, de outros discursos, já que o contraditório implica

pontos de vista díspares, antagônicos, no caso, o da acusação e o da defesa, contudo, apenas um

logrará êxito em sua enunciação discursiva, ressaltando-se que, se há estratégias argumentativas

de uma das partes, por óbvio, também há em relação à outra, mas as competências discursivas

dependem de cada enunciador, o que, aliás, faz a diferença, podendo ser o fiel da balança.

A partir do que já demonstramos acerca dos conceitos fundantes, do referencial teórico,

seja em relação aos aspectos linguísticos, seja em relação aos preceitos jurídicos externados,

vamos adentrar na análise das peças jurídicas em questão sob a ótica da enunciação discursiva.

O corpus é fértil em relação aos aspectos linguageiros, de sorte que, nas petições objeto

da análise, vislumbram-se a interação verbal, alteridade, vozeamento, polifonia, o agenciamento

de operadores argumentativos e modalizadores, bem como outros elementos relacionados às

estratégias discursivas responsáveis pelos efeitos de natureza persuasiva, o que realça tanto

aspectos linguísticos quanto jurídicos atinentes à dialética e à retórica.

Nesse sentido, teceremos considerações em relação à petição primeira, no caso, a

Petição-Denúncia que ensejou a abertura do inquérito e, por conseguinte, do processo relativo

ao julgamento do crime de homicídio. Adentrando no mérito no que tange ao procedimento em

si, entende-se por pronúncia o acatamento das razões externadas pelo Ministério Público quanto

à prática de um crime doloso contra a vida da vítima.

Respeitadas algumas condições mínimas, tal documento não teria maiores

formalidades na esfera penal, portanto ele em si depende basicamente do estilo de redigir de

cada enunciador, do Eu Comunicante – EUc, que, nessa peça, seria subscrita pelo promotor de

justiça, que, mutatis mutandis, atuaria como advogado da sociedade, assim como, em ações

comuns, seria o advogado da parte. Nessa condição, o Eu comunicante - EUc dá voz a seu

representado – o povo, a sociedade, porquanto quem tem a competência institucional para falar

nesses autos, representando o autor da ação – o Estado - é sempre o promotor – sujeito

enunciador, o EUc.

Por outro prisma, a enunciação é direcionada, em princípio, ao juiz – o TUd

interpretante – TUi ou o Tu Destinatário - TUd, conforme autores, que, no caso, apreciará os

fatos, cotejando-os com a legislação vigente, apreciando as circunstâncias, para, enfim, acatar

106

ou não a ação. Nessa relação dialógica, percebe-se um processo interacional existente entre

enunciadores e enunciatários que sistematicamente trocam de status no processo

comunicacional, até que o ciclo se complete em cada etapa, senão vejamos: ao apresentar a

petição relativa à acusação, à denúncia propriamente dita, o sujeito comunicante é o promotor

de justiça. Lado outro, o TU destinatário é o juiz de primeira instância, o responsável por acatar

ou não a petição a ele dirigida. Assim que são avaliados os pressupostos de admissibilidade, ao

se convencer da realidade dos fatos, quem fala nos autos é o juiz, passando, pois, à condição de

EUc, ao passo que o promotor à posição de enunciatário ou TUd.

Como estamos lidando com uma situação polêmica, aliás, relativamente comum, a

relação dialógica, por óbvio se evidencia quando o juiz não acata as razões externadas pelo

promotor, o que se consubstancia com a impronúncia do réu. Para melhor compreensão dos

fatos, a impronúncia é um termo técnico, que significa a não aceitação da denúncia, ou seja, ao

final da petição, o promotor “pede” (requer) e “espera” ‘seja o ora réu pronunciado como

incurso nas penas do art. 121, § 2º, inciso II (motivo fútil), mais art. 211 caput, ambos do

Código Penal, em concurso material de delitos, nos termos do art. 69 do mesmo códex, e via

de consequência seja o mesmo submetido a julgamento perante o Tribunal do Júri desta

comarca, como manda a lei”. (Anexo 01)

Ocorre que o juiz, o TUd ou TUi dessa relação dialogal, enquanto receptor da petição

– destinatário -, não comunga desse entendimento, e não acata a denúncia por entendê-la

insubsistente, desprovida de comprovação cabal e irrefutável dos pressupostos indispensáveis

a dar prosseguimento ao julgamento no âmbito do tribunal do júri, tendo em vista a não

convicção formada quanto ao falecimento da vítima e o envolvimento do réu nesses termos.

Ressalte-se a constante troca de posições existente nessa relação juiz/promotor –

promotor/juiz; advogado/juiz; juiz/advogado; juiz/testemunha, testemunha/juiz, em permanente

relação discursiva constitutiva do ethos, o que por si sugere a construção identitária de todos

que se inter-relacionam no interdiscurso – o ethos do advogado, do juiz, da testemunha etc.

Para melhor ilustrar práticas discursivas dessa natureza, Charaudeau (2009) destacou

a dicotomia entre identidade social e identidade discursiva, o que ilustra relação similar em

julgamentos em geral, notadamente no âmbito do júri, pois vários são os sujeitos comunicantes

exercendo papéis os mais diversos, em que enunciadores ou enunciatários atuam no papel de

testemunha, policial, delegado, juiz, promotor de justiça, advogado, assistente de acusação,

jornalista, o público que se interessa pelo julgamento e faz questão de assistir a ele, portanto

são situações inusitadas aos olhos de uns e corriqueiras na visão de outros.

107

Na tomada de consciência, os enunciadores têm a convicção da diferença de papéis e,

por conseguinte, da diferença entre os sujeitos, considerando, segundo Charaudeau, que A

percepção da diferença do outro constitui de início a prova de sua própria identidade, que

passa então a ‘ser o que não é o outro’, daí um certo respeito nessa percepção, assim como

uma relativa angústia identitária, pois o indivíduo começa a questionar a si próprio, na medida

em que vislumbra no outro as diferenças, o que dá ensejo ao fenômeno linguageiro da alteridade.

É nessa perspectiva que o referido autor vislumbra a máxima de Benveniste, segundo a qual

“não há ‘eu’ sem ‘tu’, nem ‘tu’ sem eu, o ‘tu’ constitui o ‘eu’. Também nessa correlação

discursiva inerente à consciência identitária é que se dá outro relevante dilema, no caso, a

atração e rejeição inerentes aos sujeitos interactantes.

Para melhor explicar o fundamento da competência comunicacional, o referido autor

dá exemplos didáticos que explicitam diferenças entre identidade social e discursiva, que, em

julgamentos, por exemplo, são evidenciadas circunstâncias parecidas. A título de ilustração,

temos na figura do promotor de justiça, assim como na posição do juiz, a identidade social

consubstanciada na autoridade reconhecida institucionalmente, tanto pelo ordenamento

jurídico-administrativo quanto na legitimação dessas competências conferidas pelo cidadão.

Lado outro, no exercício de seu mister, tais profissionais externam seus pareceres, seus

discursos, ordens, despacho, que, por força da própria lei, precisam ser fundamentados. Essa

fundamentação apresenta certas características discursivas que variam conforme cada

enunciador no contexto de suas profissões, ou seja, cada juiz, promotor ou delegado, ainda que

em situações semelhantes, vai enunciar à sua maneira, a seu modo, com características próprias,

o que, segundo Charaudeau (2009, p. 309-326), seria a identidade discursiva, enquanto aquela

ensejaria a identidade social.

A partir de exemplos didáticos sobre a correlação dessas identidades, das

representações sociais, assevera o autor o seguinte:

Vê-se nestes exemplos que a identidade do sujeito comunicante é compósita.

Ela inclui dados biológicos (‘somos o que nosso corpo é’), dados psicossociais

atribuídos ao sujeito (‘somos o que dizem que somos’), dados construídos por

nosso próprio comportamento (‘somos o que pretendemos ser’). Entretanto,

como, do ponto de vista da significação, os dados biológicos adquirem as

significações que os grupos sociais lhes atribuem, pode-se reduzir estes

componentes a dois: o que chamaremos, por comodidade, de identidade social

e o que chamaremos de identidade discursiva.6

6 http://www.patrick-charaudeau.com/ Identidade-social-e-identidade.html

108

A partir dessa correspondência discursiva, da representação relativa às identidades

discursivas em sentido amplo, teceremos algumas considerações intrínsecas aos sujeitos e seus

papéis identitários no gênero petição.

Na primeira petição transcrita no Anexo 01, temos a figura do promotor de justiça que

é o principal agente de acusação no processo como um todo, embora outros sujeitos também

atuem com o mesmo propósito, contudo há diferenças consideráveis em termos de

representações sociais, porquanto, institucionalmente, uns são autoridades, cujo papel social

está devidamente articulado em Estatutos, na Constituição, nos Regimentos, com respaldos

perante a sociedade, a exemplo de juízes, promotores, delegados.

Outros sujeitos discursivos são, do ponto de vista social, pessoas comuns do povo, sem

um viés institucionalizado no controle social, a exemplo das testemunhas, vizinhos, religiosos,

jornalistas, profissionais liberais, servidores públicos, etc. A cada agente comunicante há,

conforme o momento, uma identidade discursiva e uma identidade social, independentemente

da hierarquia do enunciador no processo em questão.

Segundo Charaudeau (2009, p. 4), A identidade social tem como particularidade a

necessidade de ser reconhecida pelos outros. Ela é o que confere ao sujeito seu ‘direito à

palavra’, o que funda sua legitimidade. A legitimidade advém das circunstâncias, do momento,

do ritual, do procedimento, portanto há situações formais que impõem a observância de normas

preestabelecidas em situações concretas, como, por exemplo, na oitiva de testemunhas, no

momento de se pedir a palavra, na oportunidade de recorrer, de interferir num discurso do outro.

Assim, a identidade social guarda relação intrínseca com procedimentos, com a ética,

com o ritual, legitimidade no agir, com a norma. Nesse sentido, Charaudeau faz uma digressão

do domínio jurídico para explicitar a identidade social em face desse domínio, senão vejamos:

Por exemplo, no domínio jurídico, que é regido por uma lógica da lei e da

sanção, os atores são legitimados pela obtenção de um diploma e o status

institucional é adquirido através de um sistema de ingresso por concurso,

aliado a um sistema de nomeação pelos pares ou pelos superiores hierárquicos. Desse modo, a profissão está protegida pelas regras da instituição. Mas no caso

de haver uma desobediência a uma destas regras (o segredo profissional, por

exemplo) ou um comportamento que esteja em divergência com relação a uma

norma esperada (como a ‘perseguição judiciária’ a jornalistas que denunciam

irregularidades), imediatamente se põe em questão a legitimidade da ação dos

juízes. O mesmo ocorre no domínio de certas profissões liberais. No caso da

medicina, por ser regida pela lógica da expertise e ter por finalidade lutar contra

o sofrimento e a morte, a legitimidade de alguns de seus atores seria

questionada se estes viessem a cometer erros médicos ou a priorizar seus

interesses financeiros em detrimento de sua atuação como médicos.7

7 http://www.patrick-charaudeau.com/ Identidade-social-e-identidade.html

109

A identidade social não está necessariamente relacionada especificamente a uma

função institucionalizada, como nos exemplos supracitados relacionados aos advogados e

médicos, obviamente, mas no próprio status do enunciador em face de uma função

institucionalizada no momento de sua enunciação. Por exemplo, uma testemunha terá

legitimidade para falar se ela estiver em condições de fazê-lo por uma circunstância que lhe dê

essa prerrogativa, ou seja, assistiu ao fato, teve conhecimento por ter visto algo de interesse ao

objeto questionado. Essa especificidade lhe confere o status identitário nessa perspectiva, ou

seja, a identidade social está devidamente legitimada, o que lhe confere credibilidade. Contudo,

se tiver algum interesse no resultado, certamente essa legitimidade fica mitigada,

comprometida, o que via de consequência afeta a identidade social e, por conseguinte, a

identidade discursiva.

Nesse propósito, é comum em audiências o advogado questionar as testemunhas se

elas têm interesse no resultado da ação, pois qualquer manifestação, ainda que de forma indireta,

compromete a credibilidade, por conseguinte, compromete também sua identidade discursiva,

cujo depoimento pode inclusive ensejar nulidade. Assim, para legitimidade institucional tanto

a identidade social quanto a discursiva têm interferências óbvias na enunciação.

No caso em apreço, por exemplo, foram ouvidas testemunhas, sendo que a fala de uma

delas fora desqualificada pelas próprias autoridades por imprimir conotações de cunho

religioso, juízos de valor, forte emoção, ou seja, fatores que direta ou indiretamente interferem

no julgamento, o que mitiga a isenção, ou seja, a identidade social da testemunha, em princípio,

não a desabonaria, contudo, a identidade discursiva já não se coaduna com o propósito do

processo e do julgamento.

Lado outro, aduz-se da fala do promotor de justiça toda uma carga semântica que, por

razões de ofício, poderia ser interpretada como uma forma de fomentar um juízo de valor

exacerbado em desfavor do acusado. Nesse caso, as identidades social e discursiva não

comprometem a legitimidade no processo, pois, por óbvio, o enunciador, na condição de

acusador, tem por objetivo imprimir um discurso voltado para o convencimento do enunciatário,

ainda que para isso tenha que explorar recursos emotivos, patêmicos, persuasivos em relação

ao pathos do enunciatário, mesmo ao se utilizar de juízo de valor.

Em contrapartida, o advogado do réu, não se restringindo à situação em apreço, mas

em qualquer julgamento no âmbito do júri, tem por função defender seu cliente, e nessa função

também se vale dos mesmos mecanismos utilizados pela acusação, por óbvio, impondo um

discurso que sensibilize os jurados, bem como o auditório, porquanto toda audiência relacionada

ao júri tem uma plateia assistindo, cujo público é formado por qualquer do povo, notadamente

110

familiares da vítima, estudantes, profissionais da área, a própria mídia. Assim, é interessante ao

advogado procurar sensibilizar a todos, inclusive a mídia em casos de repercussão, visando

sobretudo buscar adesão a um discurso favorável a seu cliente, dando ênfase ao ethos do

enunciador.

Nessa condição, vislumbra-se identidade social, na medida em que o advogado

devidamente inscrito na Ordem dos Advogados exerce legalmente a profissão e, nessa condição,

suas enunciações são legitimadas pelo uso da palavra, ainda que em nome da parte, porquanto

pressupõe-se a enunciação precípua da parte, e a narrativa por quem a representa, no caso, o

advogado, que, em última instância, enuncia com a legitimidade conferida institucionalmente.

Sua tese, por sua vez, deriva-se da legitimidade discursiva, como bem ressaltou Charaudeau.

Na situação discursiva, há uma constante construção identitária, um envolvimento dos

atores cênicos do discurso, envolvendo as figuras aristotélicas relacionadas ao ethos, pathos e

logos, cujas imagens se engendram numa cumplicidade retórica. Nessa trilogia, os

interlocutores formam imagens recíprocas e, nessa lógica, Amossy (AMOSSY, 2011, p. 5) se

reporta a Pêcheux (1969), para afirmar que A e B (enunciadores e enunciatários) nas duas pontas

da cadeia de comunicação, fazem uma imagem um do outro: o emissor A faz uma imagem de

si mesmo e de seu interlocutor B; reciprocamente o receptor B faz uma imagem do emissor A

e de si mesmo. (...) Não podemos expor mais claramente o jogo de espelhos que funda o quadro

figurativo.

4.2 Das Petições e seus aspectos linguístico-discursivos

Considerando as petições sob a ótica dos gêneros de discurso, tratando especificamente

das peças extraídas dos autos do processo de julgamento e que constam do livro Homicídio sem

Cadáver, de Tibúrcio Délbis, tomemos como referência a petição relativa à inicial, ou seja, à

peça de acusação, que, mutatis mutandis, serve para ilustrar as estratégias argumentativas em

outras petições do caso concreto sob análise.

A petição inicial interposta pelo promotor de justiça alterna sequência narrativa e

descritiva, em princípio, não externando juízo de valor, o que vem a acontecer quando o

enunciador sente a necessidade de ser mais convincente, tendo em vista que esta primeira

petição não logrou o êxito esperado, haja vista a negativa do juiz em pronunciar o réu, sendo

que, num segundo momento, em grau de recurso, o enunciador enfatiza aspectos atinentes à

conduta do acusado de forma mais enfática.

111

Nessa perspectiva, faz-se imperioso atentar-se para a trilogia relacionada ao ethos,

pathos e logos, uma vez que ela compõe o todo do discurso, bem como a relação interativa entre

os agentes comunicativos em questão, associando a ideia de caráter íntegro do enunciador,

legitimando seu discurso pela autoridade vinculada a seu modo de dizer, cujo enunciatário será

impactado pela emoção que lhe é incutida no discurso empreendido, mormente em face das

estratégias utilizadas no dizer, ou seja, o que será dito, as razões do que é dito, além da

pertinência no contexto, que consubstanciará o logos, fechando os elementos discursivos dessa

trilogia.

Reforçando o que evidenciamos anteriormente, a análise empreendida na presente

pesquisa é de cunho qualitativo-interpretativo pautada na perspectiva do interacionismo

sociodiscurso preconizado por Bronckart (2009), enfatizada por ele em razão da atividade de

linguagem em sentido amplo, tendo em vista aspectos inerentes às condutas humana, bem como

o processo histórico de socialização que nos remete a aspectos inerentes à semiotização social

arraigada às práticas discursivas no âmbito de julgamentos ou situações semelhantes,

principalmente nas relações de trabalho. Ressalte-se, por oportuno, que procuramos descrever

as características gerais do funcionamento do discurso, bem assim sua influência na consecução

dos objetivos, não priorizando a análise sistêmica particularizada.

Essa visão intrínseca à historicidade do ser humano, por sua vez, nos induz a

compreender melhor a visão de Foucault na perspectiva da Arqueologia do Saber, na medida

em que ele promoveu uma retrospectiva diacrônica vinculada ao comportamento humano em

determinada época, o que por si sugere o interacionismo, inclusive sob a ótica da antropologia.

Segundo Bronckart, a abordagem interacionista guarda relação direta com os sistemas

semióticos, o que, por sua vez, nos remete a Volochínov/Bakhtin (1990), mormente em relação

à semiotização social preconizada nos primeiros capítulos de Marxismo e Filosofia da

Linguagem.

Bronckart (2009, p. 141), por sua vez, reporta-se a Volochinov/Bakhtin/ (1977, 1978),

cuja abordagem também se coaduna com o ponto de vista de Foucault, entendendo que, em

relação à interação verbal propriamente dita, a substância linguística não se constitui de um

sistema abstrato de formas linguísticas, assim como também não se efetiva pela enunciação

isolada, nem mesmo pelo ato psíquico-fisiológico de produção, mas sim pelo fenômeno social

da interação linguística que se realiza mediante enunciações, ou seja, pela enunciação em si

imbricada de enunciações diversas num ou noutro sentido (Bronckart, p. 141), daí a consagrada

acepção bakhitiniana segundo a qual "Todo enunciado tomado isoladamente, bem entendido, é

individual, mas cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis

112

de enunciados, e é a estes que chamamos de gêneros do discurso" (BAKHTIN, 1984, p. 265).

Assim, as análises interpretativas relacionadas às petições infra (quadros 01 a 05) têm

como foco a produção do discurso enquanto trabalho psíquico-linguístico, de sorte que a

engenharia textual em questão, considerando a intenção dos enunciadores, leva em conta

aspectos linguageiros indissociáveis a essas áreas do conhecimento, centrando-se sobretudo na

visão de mundo inerente ao interacionismo sócio-discursivo, não havendo como se desvencilhar

dessa especificidade.

Ressaltamos, pois, a identidade social do agente principal responsável pela acusação,

no caso, o Promotor de Justiça. Essa identificação primeira tem uma razão de ser, cujo escopo

é construir sua identidade social e discursiva a partir do lócus de onde fala. Frise-se que outro

promotor, por mais que quisesse, não poderia adentrar no mérito dessa causa, pois somente o

titular estaria investido nessa prerrogativa, portanto imbuído da competência legitimada pela

identidade social, o que por sua vez afasta a hipótese de nulidade por incompetência

jurisdicional.

Trouxemos à colação petições que ajudam a compreender melhor o caso objeto da

análise e que elucidam as nuances de um julgamento no âmbito do tribunal do júri, bem como

as estratégias argumentativas utilizadas pelos enunciadores no afã de auferir um resultado

positivo ao autor ou ao réu, dependendo de quem subscreve a petição.

Na petição 01, ao empregar "no exercício de seu ministério" (“Exmo. Sr. Dr. Juiz de

Direito da 2ª Vara Criminal da Comarca de Uberlândia/MG O Promotor de Justiça, perante esta Vara,

no exercício de seu Ministério, com base no incluso inquérito policial, vem perante esse Juízo oferecer

denúncia contra:), o enunciador ressalta o seu mister, fazendo questão de demarcar

metaforicamente seu território, sua obrigação "de fazer", aliás, de atuar numa posição

institucional que outro não poderia exercer, a menos que designado em virtude de um

regimento, por férias do titular, licença médica, afastado temporariamente, dentre outras

hipóteses possíveis, mas tudo legitimado pela identidade social preconizada por Charaudeau.

Contudo, no caso em tela, a obrigação é do promotor, sendo natural, portanto, que ele faça essa

ressalva já de pronto, afastando qualquer desconfiança sobre sua competência institucional, o

que inclusive reforça a confiança perante o auditório, ensejando, pois, a correlação intrínseca

do ethos e do pathos, sem nos olvidar da esfera atinente ao logos, justificando por conseguinte

essa relação imbricada desses três pressupostos, como ressaltado por Amossy, 2005.

Essas ponderações fazem parte da consciência identitária do enunciador, bem assim da

formação dessa consciência perante o auditório, numa relação intrínseca à percepção consciente

ou não do ethos e do pathos, porque ninguém se identifica ou se qualifica para si próprio, mas

113

para outrem, haja vista que cada qual tende a se conhecer a si próprio, tendo consciência do que

é, de suas prerrogativas, suas competências, sem nos adentrarmos na seara da psicanálise

propriamente dita, porquanto não é esse nosso objetivo. Contudo, para efeito de discurso, de

argumentação, essa impressão deve ser passada ao enunciatário, imprimindo-lhe uma

autoridade que Charaudeau chamou de identidade social evidenciada pela identidade discursiva,

uma competência institucionalizada, quiçá provocando uma admiração, um respeito, uma certa

reverência a si pelo outro, o que funciona como estratégia de reforço com o fito de evidenciar a

autoridade enunciativa.

Assim, nessa construção identitária, o enunciador se apresenta como o Promotor da

referida Comarca, na Vara Criminal, em face de um incluso inquérito policial, portanto,

demonstra que também não foi ele que, a seu bel prazer, deu início à investigação, mas sim a

partir de denúncias, de hipóteses plausíveis dos fatos, da provocação de terceiros interessados,

tendo em vista uma queixa crime interposta por parente da vítima, pelo próprio inquérito policial

instaurado pela autoridade competente, por indícios etc.

Esse tipo de postura ilustra bem o que Bronckart (2009, p. 208) ressalta ao tratar os

tipos de discurso. Nesse sentido, comungando da mesma opinião de Authier-Revuz (1992) e

Cohn (1981), ele ressalta a característica comum em reproduzir um número considerável de

propriedades do discurso interativo, mormente no que tange a pronomes dêiticos, haja vista os

elementos indicativos do lugar do discurso, do seu tempo, da tempestividade, dos partícipes, do

eu enunciador e do tu enunciatário.

Esses matizes discursivos ressaltados na figura do promotor de justiça também são

evidenciados na fala de outras autoridades, como nas petições do delegado, do juiz e

desembargadores e ministros dos tribunais superiores, ressaltando que o julgamento em questão

não ficou adstrito à Comarca de Uberlândia, porquanto houve recursos aos tribunais superiores,

no caso, ao TJMG, ao STJ e ao STF, todos confirmando que a competência para o julgamento

seria de fato do Tribunal do Júri da Comarca de Uberlândia, onde o fato teria ocorrido.

Ressalte-se ainda que as demais petições apresentam aspectos semelhantes, portanto,

no que caiba, as asserções relativas aos aspectos linguístico-discursivos são estendidas a elas.

Ao falarmos preliminarmente do propósito do enunciador na petição 01, ficou clara a intenção

do promotor em delimitar sua atuação, ressaltando que o caso está tutelado em uma jurisdição

própria e perante um juízo também competente em termos institucionais. Assim funcionou nas

petições emanadas do delegado de polícia, juiz de primeira instância, relator nos recursos, cada

qual apresentando suas razões, sua identidade social – essa de forma consciente e proposital -,

sua identidade discursiva – que nem sempre é consciente, mas implicitamente todo enunciador

114

o faz na medida em que queira dar legitimidade a seu discurso -, de sorte que o gênero petição

proporciona uma análise bem rica em termos enunciativos.

Por sua vez, noutra esfera, o enunciador, promotor de justiça, passa a identificar o Réu,

em princípio de forma objetiva, sem imprimir qualquer juízo de valor até então, o que muda de

perspectiva na parte expositiva da petição, no decorrer da marcha processual em instâncias

superiores, ou seja, nos recursos interpostos, nas fundamentações perante o Tribunal de Justiça,

nas turmas recursais. Nesses momentos, será construída uma personificação identitária do

acusado perpassada por adjetivações que denotam juízos de valor que reforçariam perante o

auditório uma probabilidade da prática do delito pelo réu, assim como uma conduta ardilosa,

perspicaz no seu agir, discurso esse visando influenciar o auditório, os enunciatários em geral.

São exemplos dessa formação identitária do réu, a partir da visão do promotor de

justiça: “ficou enrolando; efetuou vários telefonemas para o denunciado na Petrobrás onde

trabalhava e ele não atendia, dizendo sempre que não estava, tinha saído, ainda não tinha

chegado, ... ; O denunciado assustou-se muito quando viu Maria Irene e seu pai ali; durante

as investigações, descobrimos que D é o mais frio e cínico mentiroso com quem já trabalhamos;

chegando inclusive a perguntar se Maria Denise não estava lá, fingindo-se chorar naquele

momento”. (...)

Lado outro, cuida o enunciador de proceder à identificação da vítima, em princípio,

também de forma objetiva, tentando não emitir juízos de valor, mas, no decorrer do processo,

da mesma forma como procedeu em relação ao réu, ao se referir à vítima, tenta demonstrar a

ingenuidade dela, o seu caráter honroso, mormente de uma pessoa lutadora, que, desde cedo,

vinda do interior para a capital com o propósito de vencer na vida - teria vindo para a casa de

seu tio em Belo Horizonte para estudar -, procurava ganhar a vida de forma honesta, ou seja,

procura o enunciador evidenciar suas características positivas, o que também é mecanismo de

persuasão, haja vista o efeito patêmico, senão vejamos: Maria Denise tinha a filha de seis meses

de idade, a quem tinha todo amor e carinho. Inacreditável que o coração de mãe de Maria

Denise tivesse a coragem de abandonar a filha e sumir sem deixar notícias; Maria Denise não

levou seus objetos de uso pessoal; Maria Denise tinha muito medo do denunciado.

Quanto à escolha lexical “sumiço”, ressalte-se inclusive que há um efeito psicológico

intencional em se utilizar um substantivo por outro, ou seja, sumiço perpassa a ideia de ação

impetrada por alguém, ao passo que desaparecimento teria uma carga semântica menos

contundente, vez que em desaparecimento poderia incutir a ideia de vontade própria da jovem,

logo melhor seria utilizar-se do vocábulo sumiço ao invés de desaparecimento, eis que a

intenção seria sensibilizar os enunciatários no afã de demonstrar a prática do crime. Ora, essas

115

nuances constituem modos de dizer, o que sugere intrigar os enunciatários, ainda que de forma

subliminar.

Ao utilizar em seu discurso "o sumiço da jovem sem deixar quaisquer notícias a quem

quer que seja", o enunciador utiliza-se do operador argumentativo “a quem quer que seja”

traspassando um argumento forte em termos enunciativos, mormente sob a ótica de quem recebe

essa informação, sejam os jurados, seja o juiz, seja o público que eventualmente assistira ao

julgamento e ouvira essa mesma expressão no discurso oral.

Os operadores argumentativos não guardam relação sintática propriamente dita, mas

de sentido, denotando, pois, uma força argumentativa com a intenção de influenciar o

enunciatário, visando persuadi-lo de forma irrefutável ou, no mínimo, dando ares de ação

engendrada com essa finalidade. Nesse sentido, o operador argumentativo "quer viva, quer

morta" denota certa censura à ação delituosa, pois imprime a ideia de reprovação da conduta

investigada, na medida em que o desaparecimento da vítima agrava ainda mais o crime, uma

vez que os parentes da vítima são penalizados duplamente, uma vez pela morte do ente querido,

outra pela impossibilidade de prestar-lhe a homenagem póstuma em sepultamento digno.

Frise-se ainda que o promotor/enunciador procura sensibilizar os enunciatários

deixando claro o fato de a vítima ter deixado uma filha de apenas seis meses "a quem tinha todo

amor e carinho", o que denota, na expressão “todo amor e carinho” uma pressuposição, um juízo

de valor, estabelecendo o efeito patêmico. E mais: "Inacreditável que a mãe de Maria tivesse a

coragem de abandonar a filha e sumir". No adjetivo inacreditável, vê-se que o enunciador se

utiliza de um índice de avaliação como recurso retórico, como manobra argumentativa, que,

aliás, pode ser também utilizado em outras perspectivas linguageiras visando a imprimir força

argumentativa destinada a influenciar o auditório.

Informações dessa natureza tendem a sensibilizar o público, e essa é a intenção

precípua do enunciador, eis que ele precisa convencer o enunciatário acerca de suas conjecturas

e de suas razões, portanto percebe-se a dicotomia evidenciada nos polos extremos da relação

discursiva, qual seja, o enunciador e o \enunciatário. Por óbvio, não se está aqui afiançando que

essa estratégia se faz por falsas conjecturas, muito pelo contrário, pois, a partir de suas

perspicácias, até mesmo de suas experiências nesse mister, não é difícil perceber aspectos

psicológicos associados a informações colhidas do inquérito, dando conta do perfil dos

envolvidos na questão, o que é transmitido a todos que tenham interesse no caso: delegado, juiz,

jurados, assistentes, o público em geral, inclusive o ex adversa, no caso o advogado de defesa

do réu.

116

Nos dois parágrafos seguintes, 10 e 11 – Anexo 01 -, o enunciador, narrando a

sequência dos fatos, utiliza-se do operador argumentativo com força cênica discursiva

apontando ou assinalando inclusão, soma, no caso, por meio dos advérbios inclusive e também.

São estratégias argumentativas que enfatizam o discurso, reforçam as conjecturas, dão

efetividade às informações, à medida que equivalem a fatos enumerados cujos efeitos ligados

ao pathos impressionam o enunciatário.

Verifica-se, por sua vez, que o "aliás" da fala do Promotor no item 12 do mesmo Anexo

(Maria Irene, inconformada com as explicações do denunciado, aliás contraditórias e cínicas,

resolveu dar queixa à Polícia), denota argumento favorável a uma conclusão peremptória,

taxativa; trata-se pois de mecanismo persuasivo, convincente, cuja finalidade é concluir sua

conjectura reforçando suas desconfianças e, por conseguinte, as dos parentes da vítima face às

contradições em desfavor ao réu, o que é partilhado em termos de suspeitas por parte dos

familiares de Denise.

Por fim, no 14º tópico de sua petição, o enunciador narra os acontecimentos, mais

precisamente o diálogo que DAP teria tido com sua esposa em detalhes, a ponto de prometer a

ela que, após Denise dar à luz a criança, ele pegaria a criança e "dispensaria" Maria Denise. O

verbo utilizado – dispensa - sugere uma ilação sob a extensão de seu significado semântico,

conotação de descarte, sumiço, conjecturas essas por parte do locutor-enunciador.

O emprego de verbos no futuro do pretérito (pegaria a criança e dispensaria a vítima)

atua como modalizador discursivo com efeitos de pressuposição gerada pelo tempo verbal da

ação. O uso do futuro do pretérito orienta para uma não afirmação cabal, para uma hipótese. Os

modalizadores, como afiança Koch (2000), podem produzir sentidos de atenuar algo que

poderia ser dito de forma mais enfática, mais grave, mas que, pelas circunstâncias, seria

conveniente mitigar a enunciação comprometedora, incisiva, portanto são modalizações

argumentativas num viés estratégico, inconcluso, quiçá com duplo sentido.

O item 15 da petição 01 chama-nos a atenção, senão vejamos: "15º) Por último, a

impressão obtida pela autoridade policial nas investigações policiais, durante o respectivo

inquérito, tais como: '... durante as investigações, descobrimos que D é o mais frio e cínico

mentiroso com quem já trabalhamos...'(.,.), constata-se, a partir da enunciação, além do juízo

de valor, um exemplo efetivo do discurso direto que se dá, não pelo sinal de travessão, mas

pelas aspas existentes na petição sob análise.

Ao analisarmos o todo da petição em tela, temos os dois tipos de discurso, o discurso

direto em face da narração do enunciador, o discurso indireto empregado com o uso da partícula

integrante "que”; não fosse pela especificidade do gênero petição, cujas circunstâncias assim o

117

exigem, teríamos o vício de linguagem relativo ao "queísmo", que certamente empobrece

qualquer texto, mas, no gênero discursivo em análise, alimenta uma sequência cronológica

recursiva, com poder de reforço aos argumentos, além de se coadunar com o formalismo

inerente às petições relativas a depoimentos ou narrativas, comuns em processos judiciais e

administrativos.

Chama-nos a atenção também o argumento utilizado pelo Relator ao adentrar no mérito

relativo ao Voto externado nas Notas Taquigráficas relativas à decisão em grau – recurso -, uma

vez que ela retrata a incerteza quanto ao fazer justiça na acepção do termo, o que não se pode

censurar de antemão, tendo em vista o fato de que ao homem não lhe foi dada por óbvio a

prerrogativa da onisciência. Assim, como asseverou Kelsen (2009) in Teoria Pura do Direito,

fazer justiça é escolher uma das hipóteses possíveis, ou seja, há mais de um caminho para

decidir uma demanda, sendo que cabe ao julgador escolher a opção mais provável e verossímil.

Dessa forma, reportamo-nos a alguns excertos do julgamento - Anexo 05 - para melhor

compreendermos a vulnerabilidade da concepção de justiça, bem como das próprias partes

envolvidas na demanda judicial – autor e réu -, senão vejamos:

"No seu aspecto fático, a questão é realmente complexa. Isso ocorre sempre

que o corpo da vítima desaparece sem deixar vestígios. Fica sempre a dúvida:

será que a vítima realmente morreu? Será que ela foi assassinada e o cadáver

destruído ou oculto? Será que a vítima apenas escafedeu-se sem deixar e sem

dar notícias? E se algum dia ela aparecer viva?!...8 (Sem destaque no original)

Como se depreende do parágrafo supra, o próprio Relator da decisão (Desembargador)

reconhece que a questão é complexa, dando azo a um certo consolo às partes, mormente ao réu,

que foi a parte vencida e que, pelo menos, não obstante a condenação, teria ele um certo alento,

pois perdera a ação, mas numa decisão em que houve o reconhecimento dos próprios julgadores

da dificuldade em decidir pelas circunstâncias fáticas, caso o erro viesse à tona, teria outras

“compensações”. Aduz-se que somente o réu teria a plena certeza de sua atuação ou não em

relação ao crime, ou seja, nem mesmo seus advogados teriam essa convicção, como de resto

nenhum advogado tem a plena certeza do que alegam seus representados.

A complexidade é corroborada pelas dúvidas ensejadas, portanto há de se levarem em

conta algumas especificidades, pois, se os juízes que compõem a turma recursal ainda teriam

dúvidas, ou pelo menos não teriam a absoluta certeza, por que também não as teriam os jurados?

Ademais, é de conhecimento geral o brocardo in dubio pro reu, portanto teria sido esse um

argumento contumaz a favor do recorrente nesse sentido. Contudo, ainda que a lógica lhe

8 Anexo 5 – DÉLBIS, Tibúrcio. Homicídio sem cadáver – O caso Denise Lafetá, Ed. Inédita, 1999, p. 110

118

pudesse ser favorável face ao benefício da dúvida, mesmo assim ele não logrou êxito em sua

empreitada, uma vez que o recurso por ele interposto não foi provido, daí a condenação pela

maioria dos jurados.

Em termos de estratégias argumentativas em sentido lato, certamente o brocardo

jurídico in dubio pro reu teria sido valoroso ao réu, ao passo que a observação do relator

representaria certa dificuldade à promotoria. Não bastasse essa assertiva, outras vieram no

mesmo norte, conforme se aduz da Petição relativa ao Anexo 05, dando ensejo a conjecturas

que também favoreceriam a defesa, conforme destacamos à frente.

Sem adentrar no mérito, até porque esse não é o propósito do presente estudo, além de

não ser ético fazê-lo, na medida em que não teríamos todas as peças, além de estarmos

analisando a contextualização em tela na perspectiva linguístico-discursiva, nessa linha,

podemos questionar a fala do Relator acerca dos supostos benefícios, caso, no futuro,

deparassem com um eventual erro judicial, se eventualmente a vítima aparecesse

inesperadamente, o que, a nosso sentir, implica em certa medida conjectura de natureza retórica,

mas verossímil enquanto conjectura, senão vejamos:

No caso concreto, entretanto, a única maneira possível de se constatar um

possível erro judiciário seria o aparecimento da vítima, viva. Afora tal caso, há

de prevalecer a decisão do Tribunal Popular. Se, entretanto, os ventos do

destino soprarem para o rumo diverso, isto é, se algum dia Maria Denise

reaparecer viva (talvez por pessimismo, creio que isto jamais acontecerá),

duas situações novas surgirão, uma a compensar a outra. O erro judiciário

ficará patenteado, mas, em compensação, uma vida humana (no caso de Maria

Denise) ressurgirá das cinzas. Deus queira que isso aconteça ... para o bem de

todos. Do réu, porque se livrará de vez da pena imposta pelo Júri de

Uberlândia e terá direito a indenização por parte do Estado. Dos familiares

de Maria Denise, porque voltarão a vê-la entre eles. Dos jurados porque o

destino terá evitado persistir o erro coletivo por eles praticado. Dos juízes

togados, porque o direito imperou, ainda que tardiamente.9 (Anexo 05, sem

destaque no original)

Ora, o excerto do Acórdão em tela dá a dimensão do fazer justiça na dimensão da

natureza humana, tendo em vista nossas limitações. Esse parágrafo, rico em expressões

metafóricas, [Se, entretanto, os ventos do destino soprarem pra o rumo diverso (...)... Se,

entretanto, os ventos do destino soprarem para o rumo diverso (...), O erro judiciário ficará

patenteado, mas ‘em compensação’, uma vida humana (no caso de Maria Denise) ressurgirá

das cinzas, (...)] demonstra a vulnerabilidade de que falamos ao questionarmos o fato de que

tanto há doutrina favorável a um determinado viés quanto a outros; jurisprudências favoráveis

a um determinado ponto de vista quanto em sentido oposto; argumentos partidários a um norte

9 Anexo 05 – Petição 05

119

assim como noutro norte. Enfim, vemos no caso em tela argumentações favoráveis ao autor,

como também favoráveis ao réu, porquanto sequer foi possível a realização do exame pericial

no corpo da vítima, haja vista não a terem encontrado “viva ou morta”, o que, por si, não

significa motivo para entender a decisão como equivocada, até porque já se passaram mais de

vinte anos sem que fatos supervenientes desqualificassem a decisão.

Ademais, as conjecturas e metáforas em destaque seriam também argumentos que

poderiam ser utilizados em favor do réu em eventual recurso, caso o ordenamento jurídico

permitisse o duplo grau de jurisdição no âmbito do tribunal do júri, como, aliás, é o que

propomos para, de fato, fomentar e consubstanciar a ampla defesa e o contraditório

preconizados pelo Constituição da República, nos termos do Art. 5º, XXXVIII, que, a propósito,

vale transcrever:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,

garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a

inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à

propriedade, nos termos seguintes:

XXXVIII - é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der

a lei, assegurados:

a) a plenitude de defesa;10 (Grifo acrescido)

Ora, como destacado no dispositivo legal supra, por plenitude de defesa pressupõe-se

o que a doutrina sedimentou na locução “ampla defesa e o contraditório”, o que não se

consubstancia em um único julgamento sem direito a recurso a instância superior, como ocorre

nos julgamentos de competência do júri. Para se fazer jus à expressão, o veredito soberano do

júri deveria ocorrer com o trânsito em julgado, considerando a hipótese de recurso a outro júri

em instância superior, como ocorre em qualquer outra situação, inclusive recursos de decisões

de turmas colegiadas e até mesmo do plenário de cortes superiores, exceto quando não haja

interesse do vencido em recorrer, como é comum acontecer.

Ao trazermos essa tese à esfera da AD, não o fazemos por acaso, mas sim por levarmos

em consideração os influxos linguageiros atinentes à formação de opinião, à posição responsiva

preconizada por Bakhtin (2011, p. 272) suscetível, inclusive, ao Parlamento, mediante

proposições de leis, porquanto a resposta (responsividade) viria ao encontro dos anseios da

sociedade, que prima pela ampla defesa, ressaltando que essa resposta nem sempre se faz de

imediato, mas muitas vezes a longo prazo, como se aduz das palavras do citado autor,

obviamente sem conotação pejorativa, ou seja, responsividade “com efeitos retardados”, senão

vejamos:

10 Constituição da República Federativa do Brasil

120

Os gêneros da complexa comunicação cultural, na maioria dos casos, foram

concebidos precisamente para essa compreensão ativamente responsiva de

efeito retardado. Tudo o que aqui dissemos refere-se igualmente, mutatis

mutandis, ao discurso escrito e ao lido. Portanto, toda compreensão plena real

é ativamente responsiva e não é senão uma fase inicial preparatória da resposta

(seja qual fora a forma em que ela se dê). O próprio falante está determinado

precisamente a essa compreensão ativamente responsiva: ele não espera uma

compreensão passiva, por assim dizer, que apenas duble o seu pensamento em

voz alheia, mas uma resposta, uma concordância, uma participação, uma

objeção, uma execução, etc. (os diferentes gêneros discursivos pressupõem

diferentes diretrizes de objetivos, projetos de discurso dos falantes ou

escreventes). O empenho em tornar inteligível a sua fala é apenas o momento

abstrato do projeto concreto e pleno de discurso do falante. Ademais, todo

falante é por si mesmo um respondente em maior ou menor grau: porque ele

não é o primeiro falante, o primeiro a ter violado o eterno silêncio do universo,

e pressupõe não só a existência do sistema da língua que usa mas também de

alguns enunciados antecedentes- dos seus e alheios – com os quais o seu

enunciado entra nessas ou naquelas relações (baseia-se neles, polemiza com

eles, simplesmente os pressupõe já conhecidos do ouvinte). (BAKTIN, 272)

(Grifos acrescidos)

Se o Júri decide não tão só pelos fatos e suas versões, mas em grande parte pelos

argumentos e estratégias discursivas emanados dos enunciadores, mormente advogados,

defensores, promotores de justiça, sem dúvida, esses fatores podem ser preponderantes à

condenação ou absolvição do réu, ainda que a verdade real não se consubstancie nos discursos

empreendidos. Assim, por que não dar aos interessados a chance de novo júri, no mínimo, para

sedimentar a decisão como a mais justa possível, depois de se esgotarem todas as instâncias

recursivas, diferentemente do que acontece no sistema vigente que não admite rediscutir o caso

quanto ao mérito em instância superior, uma vez que não há tribunal do júri ou conselho de

sentença em instâncias superiores. E não há essa possibilidade porque o ordenamento jurídico

semiotizou o júri como soberano, semantizando argumentos nesse viés, esquecendo-se que a

justiça como um todo, as sentenças, os acórdãos, em quaisquer instâncias, também são

soberanos.

Os argumentos do relator do caso dão sustentação a essa perspectiva quando da

conjectura de eventual erro judicial. A seu juízo, tendo decidido equivocadamente,

considerando a hipótese de aparecimento da vítima, nessa hipótese, haveria compensações, seja

pelo aparecimento da vítima, seja pela indenização ao réu, tais fatos, nesse ou em outros

julgamentos, ensejam a necessidade de se repensar o duplo grau de jurisdição, não pelo exemplo

em si, pela conjectura do Relator, mas por outras situações que sugerem a possibilidade de

revisar uma decisão em primeiro grau.

No exemplo em questão, caso a vítima aparecesse, configurando erro judicial, o

prejuízo ao réu teria sido irreparável, incomensurável, pois, dentre os bens mais valorosos a

serem contemplados pelo homem, certame estariam elencados entre eles a vida e a liberdade.

121

Como não há pena de morte no Brasil, quiçá até por essas vicissitudes, a privação de liberdade

teria um efeito devastador ao homem, mormente quando aplicada injustamente.

Assim, nas palavras do Relator – Anexo 05, Petição 05, “se algum dia Maria Denise

(a vítima) reaparecer viva ...”, certamente não haveria indenização estatal alguma que

compensaria o tempo que “injustamente” (índice de avaliação) - o acusado tivesse passado na

prisão, isso a se levar em conta os argumentos do Relator no último parágrafo da decisão. Aduz-

se desse argumento que a questão é de fato polêmica, assim como o é o discurso empreendido

na seara jurídica, porquanto, na maioria dos casos levados às barras dos tribunais, tanto há

razões para respaldarem posicionamentos discursivos em favor do autor quanto favoráveis ao

réu, daí a dificuldade de se aferir inequivocamente com quem está a justiça na acepção do termo,

mormente quando haja outras decisões jurídicas endossando discursos antagônicos entre si.

Para maior segurança do operador do direito em situações relativamente voláteis,

percebe-se que as enunciações vêm sempre respaldadas por outros julgados, pela doutrina e

também por jurisprudências que dão suporte à pretensão dos interessados, como se depreende

especificamente do próprio Anexo 5 (Petição 5).

Os destaques nessa petição têm por objetivo demonstrar como o locutor se respalda em

posicionamentos de outrem para dar sustentação a suas convicções. Essa especificidade é

comum em julgamentos, principalmente na esfera penal, dada a responsabilidade maior dos

envolvidos ao julgar pessoas que se veem frente a situações limites, como privação da liberdade

ou, noutro norte, com a absolvição em relação a acusações gravíssimas.

Esse dilema nos remete aos questionamentos acerca do julgamento relativo a crimes

dolosos contra a vida, considerando que argumentos podem relativizar a natureza das coisas, na

medida em que um culpado possa ser absolvido e um inocente ser incriminado, daí a

responsabilidade de todos quanto à legislação vigente, que, a despeito de sua importância, tem

sido pouco repensada, não havendo em relação à lei a responsividade visando adequações

demandadas.

Nesse mister, sugerimos no presente estudo avaliar a hipótese do duplo grau de

jurisdição em relação aos julgamentos na esfera do Tribunal do Júri, mormente quanto a

decisões com pelo menos um voto pela absolvição ou condenação. Nesse sentido, seria

plausível que a lei concedesse a oportunidade de o caso ser apreciado por outro conselho de

sentença em grau de recurso, ou seja, por júri na instância superior, até porque todo voto

divergente, ainda que em minoria, tem uma razão de ser. Esses questionamentos endossam o

viés sócio-antropológico vislumbrado no presente estudo, considerando inclusive a perspectiva

interpretativa sob a ótica da AD aqui adotada.

122

Há de se ressaltar que, ao iniciarmos a presente pesquisa, pautamo-nos numa análise

dos fatos por observarmos certas contradições no ordenamento jurídico, o que, por conseguinte,

implica, de nossa parte, posição responsiva, como asseveramos anteriormente. Ressalte-se que

recentemente a mídia divulgou a anulação do Júri relativo ao julgamento de policiais

condenados pelo “massacre do Carandiru”, sob a alegação de vícios processuais.

Tal fato foi denunciado pela Anistia Internacional, cujo advogado, Marcos Fuchs, essa

aberração “Passa uma mensagem de que existe impunidade, de que um policial militar pode

entrar em um estabelecimento penitenciário atirando, pois depois é absolvido, alegando falta de

provas e legítima defesa. Vamos esperar a decisão dos outros dois desembargadores –

esperamos justiça e uma condenação”.

Aduz-se, pois, que episódios dessa natureza que grassam país afora só vem a

corroborar nossa tese de que o ordenamento jurídico brasileiro deve ser repensado, mormente

no âmbito do Tribunal do Júri e nas demais esferas do Direito Penal.

4.3 Operadores argumentativos, modalizadores e recursos linguísticos persuasivos

Como sabemos, o uso da linguagem em situações específicas, formais, tem sempre a

marca da intencionalidade, portanto nenhuma enunciação é gratuita, sem um propósito

almejado pelo locutor-enunciador. Em última instância, o que o locutor-enunciador pretende é

atuar sobre o outro visando à obtenção de um resultado a ser alcançado, de sorte a linguagem

empreendida utiliza-se de argumentos persuasivos que primam pela adesão de outrem, do

próprio enunciatário, inclusive na expectativa de eventual reação dos destinatários em algum

sentido, como a apresentação de outros argumentos que refutem os seus, ensejando, pois, o

exercício do contraditório, fomentando, por conseguinte, a posição responsiva de que trata

Bakhtin (2011).

Na construção das petições é imprescindível a utilização de operadores argumentativos

e modalizadores discursivos, consoante lições de Ducrot (1988) e Koch (2000). Esses

mecanismos linguísticos são responsáveis pela construção de um texto coeso, bem engendrado,

coerente com o propósito semântico-discursivo vislumbrado pelo enunciador, na medida em

que permite ao enunciatário uma compreensão da enunciação em face de uma lógica arquitetada

com a finalidade de convencimento.

A teoria da argumentação da língua idealizada por Ducrot (1988) demonstra que os

operadores argumentativos atuam como mecanismos que servem para construir o argumento

necessário à compreensão dos interlocutores, de sorte que a escala em questão implica uma

123

avaliação entre dois ou mais enunciados à vista de sua gradação de força, ou seja, entre dois

enunciados que se complementam, a gradação se mede do mais forte para o mais fraco, numa

relação descendente, visando a uma mesma conclusão do destinatário final marcada pelas

estratégias discursivas do enunciador.

Analisando as petições, aduz-se que de fato seria um trabalho hercúleo do promotor

de justiça convencer o Júri, o juiz de primeira instância, bem como os membros da turma

recursal do Tribunal de Justiça, de que o réu seria realmente o autor do crime, haja vista tratar-

se de situação atípica, dada a circunstância de suposto crime de homicídio sem que houvesse

encontrado o cadáver da vítima. Com todas as adversidades, o promotor como principal ator da

acusação, contando com outras autoridades engajadas no caso, alcançou o objetivo em questão,

o que demonstra que suas estratégias discursivas se consagraram exitosas não só na perspectiva

jurídica, mas em grande parte pelas estratégias linguístico-discursivas.

A título de ilustração, apresentamos a seguir exemplos de situações relacionadas à

construção enunciativa a partir de operadores argumentativos utilizados na petição, reforçando,

pois, exemplos de recursos argumentativos necessários à construção de um texto elaborado

seguindo uma lógica compatível com os propósitos do enunciador, o que visa, dentre outros

fatores, persuadir os enunciatários a aderirem ao discurso enunciado.

Nesse sentido, vamo-nos ater a aspectos linguísticos relacionados às petições em tela,

vislumbrando os operadores argumentativos, bem como o direcionamento a que eles apontam,

conforme demonstrados nos quadros 01 e 02.

Quadro 01 - Operadores Argumentativos – (Petição 04), (Anexo 04):

Operadores argumentativos: Objetivo/orientação

a) ... e até hoje não foi

encontrada,

...

quer viva, quer morta, ... (p.22) Anexo

04

operador argumentativo (até) que

sinaliza para uma conclusão; ele

demonstra a força argumentativa da

enunciação.

operador que introduz alternância

(argumento alternativo), ideia de

somatório de hipóteses a favor de uma

mesma conclusão.

b) tais como: 1º ... (...) 15º (p. 23) operador de enumeração; comparação,

fatores que corroboram a hipótese

defendida pelo enunciador para se

chegar a uma conclusão; introduz

exemplos para se chegar a uma

124

conclusão.

c) R não precisava, pois, telefonar

para... (p. 23)

Explicação, justificativa que enseja uma

conclusão; ancora-se em argumentos

empreendidos anteriormente.

d) inclusive deixava R recado para ele

ligar para ela, mas ele ... (p. 24)

Assinala argumento mais forte de uma

escala orientada a uma conclusão; o

operador adiciona argumento a favor da

conclusão.

e) aliás contraditórias e cínicas... (p.

25)

Introduz argumento decisivo, taxativo,

inquestionável e peremptório. Reforça

um argumento apresentado

anteriormente, como xeque mate.

f) Por último, a impressão obtida pela

autoridade policial (...) (p. 25)

Aspecto dêitico, encerra uma

enumeração, uma sequência de

argumentos no mesmo diapasão,

confirmando existência de vários pontos

favoráveis ao argumento.

g) Assim, (...) (p. 25) Operador que introduz modo conclusivo

relativamente a enunciados e

argumentos já empreendidos,

demonstrando conformidade entre si,

visando a uma conclusão comum.

Tabela 01

Além dos operadores argumentativos utilizados como recursos inerentes à boa técnica

enunciativa, visando sobretudo à ênfase nos modos de dizer direcionada ao fim a que se propõe

o enunciador, não se pode olvidar de outro recurso valioso na produção textual, que são os

modalizadores discursivos, elementos esses também indicadores de intencionalidade,

sentimentos e atitudes.

Os modalizadores discursivos induzem juízos de valor externados pelo enunciador-

locutor mediante expressões que evidenciam intenção, lástima, desejo, considerações, em certa

medida, certeza ou dúvida, ou seja, são recursos que norteiam o discurso para um determinado

fim, direcionando a uma conclusão ou sentido, cujo escopo, em última instância, visam à adesão

do enunciatário.

São exemplos de modalizadores discursivos: espero que; de fato; certamente;

provavelmente; eventualmente; lamentavelmente; não obstante; acho que ..., penso que ...,

assim como expressões afins, verbos utilizados no subjuntivo, no futuro do pretérito, etc. No

âmbito das petições jurídicas, os modalizadores discursivos muitas vezes tendem a externar

posições assertivas do enunciador sugerindo aspectos deônticos que denotam obrigatoriedade,

125

força cogente, evidências, asserções, como: evidentemente, certamente, sem dúvida, é

incontestável, irrefutável, obrigatório, etc.

Tendo como referência a mesma petição anterior, na qual demonstramos os operadores

argumentativos relativo ao quadro acima, ressaltamos abaixo alguns modalizadores discursivos

que denotam ilações, sentimentos, obrigações, dentre outros, cuja finalidade visa manifestar

intenções e atitudes em face do enunciado, classificáveis como epistêmica, deôntica e afetiva:

Quadro 02 - Modalizadores discursivos – (Petição 04), (Anexo 04):

Modalizações: Objetivo/orientação

a) "... de fato." (p. 22)

modalização epistêmica assertiva

que denota confirmação.

b)"... indícios veementes ..." (p. 22) certeza, convencimento, portanto

também epistêmica assertiva.

c)"...inacreditável que o coração de

mãe..." (p. 23)

modalizador afetivo – juízo de valor;

externa emoções; intersubjetivo.

d) " "O denunciado chegou a dizer que

..."(p.23)

imprime atenuação; quase assertivo

e) "... e inclusive ficou "enrolando" R

quando esta lhe pediu o telefone de

...(p.23)

divagação, ponderação, conjectura;

f) "... durante investigações,

descobrimos que D é o mais frio e

cínico mentiroso com quem já

trabalhamos." (p. 25)

juízo de valor; assertivo afirmativo,

que orienta, pela comparação, para o

grau máximo;

juízo de valor;

g) "... devidamente citado, ..." (p. 25) conformidade, modalização

deôntica.

Tabela 02

No preâmbulo de sua Petição, a autoridade policial já externa suas conjecturas, dando

a entender que, mesmo sem prova cabal até então, tudo indica que o acusado, sob sua ótica,

fora realmente o responsável pelo crime, demonstrando que, a seu sentir, o indiciado é o único

suspeito de ter dado fim à vítima.

Nesse 2º parágrafo da Petição 02 – (Anexo 02), o enunciador valoriza os sentimentos

fraternais da vítima, seus hábitos religiosos, sua moral, a conduta digna e respeitosa em relação

aos familiares, ou seja, imprime juízo de valor emitido sobre ela por sua família, aspectos esses

corroborados pela autoridade policial em seu relato, conforme ressaltamos anteriormente. Lado

outro, em sentido inverso, aponta os pontos negativos relacionados à conduta do acusado,

126

ponderando sobre sua moral, apresentando seus defeitos nessa perspectiva, apontando-o como

cínico, mentiroso, frio e calculista, incutindo no enunciatário uma ideia de repulsa pelo acusado.

O relato como um todo está arraigado de termos pejorativos dando conta de que o

suspeito não era bom caráter, alegando que só quem acompanhou as investigações daria conta

de mensurar esses defeitos do acusado, fato esse que já denota juízo de valor, causando certa

repugnância em relação ao indiciado, o que, certamente, influencia os enunciatários, mais

propriamente no próprio auditório, porquanto o júri seria informado dessas características do

acusado nas palavras do promotor do caso quando da defesa oral de sua, fato que por si também

ensejaria a polifonia – discurso polifônico em que se imbrica a voz tanto do delegado quanto

do promotor (Anexos 02 e 04).

Essas estratégias linguístico-discursivas do enunciador apontam o réu como

mentiroso, o que, por conseguinte, já o coloca sob suspeita em relação a seus depoimentos, à

sua credibilidade em relação a seus enunciatários no momento de depoimentos, ainda que nesse

momento ele ainda se posicione como réu e não como o culpado, como de fato o fora pela

condenação imposta pelo Conselho de Sentença.

Não tendo uma prova efetiva acerca da culpabilidade do acusado, a autoridade começa

o 6º parágrafo com o uso do modalizador epistêmico – acreditamos -, que, pelo contexto, orienta

para uma avaliação do locutor, denotando dúvida. Nesse sentido, nota-se o emprego da

modalização enunciativa, pois sua fala não é taxativa, peremptória, incisiva nesse momento.

Ora, uma coisa é dizer que se acredita, outra é afirmar com convicção e certeza absoluta.

Percebe-se, pois, que a modalização utilizada atenua até certo ponto a fala do enunciador, bem

assim a credibilidade em relação a suas assertivas, no mínimo, levantando certa dúvida em seu

discurso.

Ainda no 6º parágrafo, em "... simplesmente contratou uma babá", o advérbio funciona

como modalização avaliativa em relação ao conteúdo proposicional, ou seja, externa uma

censura à ação do acusado sem imprimir caráter deôntico ou epistêmico à afirmação precedente

(“Acreditamos que ele seja o responsável pelo sumiço da vítima porque, segundo ele, ela foi

embora em 8/10/88. Ele não avisou ninguém. Simplesmente contratou uma babá...”).

No 8º parágrafo da Petição em apreço, uma escolha lexical agencia um “modo de

dizer” que fortalece a avaliação negativa (“quando a família telefonava, ele enrolava todo

mundo”). Trata-se de uma metáfora, uma gíria, um modo pejorativo utilizado para desenhar o

perfil do acusado, denotando alguém sem compromisso, de caráter duvidoso, capaz de

engendrar histórias, desculpas. Nesse viés, o enunciador constrói uma formatação identitária do

acusado, ensejando uma perspectiva que não lhe fosse favorável na visão dos enunciatários,

127

principalmente dos jurados.

Em seguida (17º §), incute o enunciador a ideia de sentimento de culpa por parte do

acusado em face da alegação da empregada D. V. quando do seu depoimento à autoridade,

segundo a qual ele sempre chorava ao apanhar sua filha. Questiona o enunciador – o delegado

-: "Seria sentimento de culpa?". Ora, outra conjectura poderia ser feita em lugar daquela: Seria

saudade de sua amásia? Por certo, este último questionamento desconstituiria sua linha de

raciocínio, uma vez que um viúvo, por exemplo, poderia chorar de saudade, por compaixão,

mas essa pressuposição não contribuiria para sua lógica enunciativa, ao contrário, ensejaria

dúvidas a todos, então mais eficaz seria optar pelo sentimento de culpa ou simulação do

acusado.

Feitas essas considerações (18º § da Petição, Anexo 02), com a perspicácia de um

profissional experiente, o delegado alega com certa resignação que tudo que pôde fazer foi feito,

contudo sem lograr êxito em seu propósito. Alega que a família também se empenhou ao

máximo, mas todas as empreitadas foram em vão, inclusive com o auxílio da Polícia

Especializada, tudo sem resultado plausível, a despeito de muitas diligências até mesmo em

estados vizinhos, perícia em corpos, esqueletos encontrados, sem nenhuma resposta efetiva.

Feita toda a narrativa do caso e já finalizando sua argumentação, o delegado volta à

narrativa, quiçá o tenha feito com o propósito de chamar a atenção do juiz (enunciatário direto),

frisando aspecto que, a seu sentir, seria relevante. Ora, se ele já havia terminado a narrativa e já

tecendo as considerações finais, não haveria motivo para voltar a outro fato que já deveria

constar da sequência narrativa anterior. Portanto nota-se nessa iniciativa uma estratégia

enunciativa para finalizar sua peça, desta feita voltando a narrar fato relevante, quebrando a

lógica de suas alegações, senão vejamos:

"Outra pista que D tentou desfazer foi a seguinte: Denise tinha

em Belo Horizonte um telefone que era locado pela Minas Fone,

de Belo Horizonte. Após o desaparecimento de Denise,

exatamente dois meses depois ele descobriu isso, pois contas,

digo, ordens de pagamento vinham para Uberlândia, e, assim,

tentou vender o telefone. Dessa forma, não havia necessidade da

locadora procurar Denise para renovar contratos.”

“Então, meritíssimo, todas as evidências são contra ele. A menor

continua com o suspeito, hoje, sendo criada pela esposa do

mesmo, pois voltaram a viver juntos.

A Petrobrás também investigou o caso, e com base nesse

inquérito policial o demitiu. Só posso dizer uma coisa com

absoluta certeza: tudo o que podíamos fazer em termos de

diligências para localizar ou saber o que aconteceu com a

desaparecida foi feito.

No momento, não vejo mais nada que eu possa fazer,

128

portanto remeto os presentes autos a vossa douta

apreciação". (Grifamos)

A petição supra relata toda a trajetória do inquérito policial, portanto é peça

fundamental na consecução dos trabalhos da promotoria de justiça e, por conseguinte, do

julgamento como um todo. Levando-se em conta o relato do Delegado, bem assim a Petição do

Promotor de Justiça – Anexo 04 -, percebem-se vários pontos correlatos imbricados nesse

enredo, demonstrando aspectos polifônicos entre as falas desses profissionais, cujo escopo é

comum à acusação na medida em que ambos atuam com o mesmo propósito, qual seja: a

condenação de DAP.

Como se percebe, o relato do delegado é eminentemente técnico, não obstante adentrar

em juízo de valor acerca da percepção que tem das características do acusado, o que não deixa

de fazer parte de suas estratégias argumentativas inerentes à profissão. Nesse aspecto, há que

se considerar que o relatório, em sentido stricto, é gênero do discurso que, a despeito da suposta

objetividade a que deveria estar adstrito, porquanto toda objetividade é ilusória quando se trata

de discurso – subjectus -, ele também apresenta nuances subjetivas, com estratégias externadas

tanto por operadores discursivos quanto por modalizações, portanto, na mesma seara da Petição

01, também cabe demonstrar nos quadros a seguir a utilização desses recursos linguístico-

discursivos, senão vejamos:

Quadro 03 – Operadores argumentativos – (Petição 01), (Anexo 01)

Operadores argumentativos: Objetivo/orientação

a) e deixado sua filha menor com o

amante, que aliás, neste caso, é

o único suspeito de ter dado fim

à desaparecida. (p. 27)

b)... A família alegou que, por

questões de educação, (...)

Denise jamais teria deixado sua

filha com o amante e

simplesmente desaparecido. (p.

27)

aliás: operador que introduz argumento

decisivo, visando a uma conclusão

peremptória, inquestionável.

jamais: operador que assinala para

hipótese remota, operador

argumentativo assertivo negativo;

simplesmente: modalização epistêmica;

índice de avaliação.

b)... trabalhamos porque muitas

pessoas interessadas

acompanharam as

investigações, inclusive juízes e

promotores. (p. 27)

inclusive: operador que assinala

argumento mais forte de uma escala

orientada para uma conclusão em face da

asserção anterior.

129

c) Não tenho nem como relatar...

(p. 27)

nem: assertivo negativo; soma argumento

favorável a uma conclusão.

d) Após o sumido de Denise, D se

mudou (...), porém, comprou

outra casa no bairro ... sem que

ninguém soubesse disso. (p. 28)

Operador que, no contexto, contrapõe a

argumento orientado para conclusão

oposta.

e) A senhora que cuidou da criança

também foi enrolada por D. (p.

28)

Também: indica argumento que soma,

indica, subentendendo uma escala com

outros argumentos antecedentes.

f) Ela sempre pedia (...), mas ele

nunca levou nada. (p. 28

operador que contrapõe argumento em

sentido contrário, diverso.

Tabela 03

Operadores argumentativos são formados por conectivos classificáveis em

conformidade com as normas gramaticais. Contudo, no que tange à Teoria da Argumentação

na Língua preconizada por Ducrot, não há uma relação intrínseca entre essas conjunções e os

operadores argumentativos, embora às vezes possa coincidir a relação de sentido, haja vista que

os operadores argumentativos porém e embora denotam sintaticamente conjunções

adversativas e concessivas, respectivamente, mas enquanto operadores argumentativos

representam simultaneamente ideia de contradição.

A diferença reside no fato de que as conjunções são descritas, em geral, pelo viés da

gramática tradicional, como conectores ou elementos de caráter circunstancial, presos a uma

sintaxe formal, ao passo que os operadores argumentativos são examinados sob o prisma das

relações de sentido e pela força argumentativa que imprimem ao discurso, daí serem

considerados estratégias persuasivas, de natureza semântico-discursiva. Na realidade, os

argumentadores denotam intenções, ou seja, contribuem para construção lógica visando à

conclusão direcionada pelo enunciador.

Feitas essas considerações acerca dos operadores argumentativos na peça do inquérito

policial, adentramos a seguir nos modalizadores, que, como já evidenciado, funcionam como

indicadores de intenções, atitudes e sentir do locutor, externando em seu discurso essas

vicissitudes, visando persuadir o enunciatário, mormente utilizando-se de mecanismos

estratégicos em sua argumentação, ou seja, uma assertiva no preceito primário que implica uma

conclusão no preceito secundário do enunciado, obedecendo a uma lógica entre essas premissas.

130

Quadro 04 – Modalizadores discursivos – (Petição 01), (Anexo 01):

Modalizadores discursivos: Objetivo/orientação

a) Se tivesse ido embora, não teria

levado o seu anel de formatura,

suas boas roupas boas, seu amuleto,

seu terço? p. 28

As expressões em epígrafe sinalizam para

uma hipótese, uma conjectura, portanto

atuam como modalizações discursivas

com o condão de externar0 dúvida,

incerteza, imprecisão, questionamentos.

b) Então, meritíssimo,

todas as evidências são contra ele. p. 29

Então: modalizador assertivo conclusivo.

c) A menor continua com o suspeito,

hoje sendo criada pela esposa do

mesmo, pois voltaram a viver juntos. p.

29

pois: modalizador assertivo causal

imprimindo uma justificativa.

d) Só posso dizer uma coisa com

absoluta certeza: p. 29

Só: modalização epistêmica delimitadora.

Perpassa a ideia de delimitação.

Tabela 04

Como demonstrado nas análises supra, as modalizações são tidas como epistêmicas na

medida em que externam condições propositivas atinentes ao conhecimento, a um pressuposto,

uma crença, verdades preconcebidas a que se vinculam as enunciações em questão, externando

uma valoração de sentido em suas asserções, visando a sensibilizar, persuadir ou até mesmo

auferir a adesão ou empatia do enunciatário.

As assertivas podem ser afirmativas ou negativas, no entanto as assertivas negativas

acabam também por afirmar algo, embora mediante modalizadores de cunho negativo, como:

de jeito nenhum, jamais, de forma alguma. Ex.: De jeito nenhum esse acordo ilegal vai prosperar

perante a lei, ou seja, trata-se de enunciação afirmativa, mas precedida de modalizador de cunho

negativo: De jeito nenhum.

Lado outro, as assertivas afirmativas apresentam esse duplo sentido, ou seja,

modalizadores afirmativos coadunando-se com a própria proposição afirmativa. Ex.: com

certeza, de fato, claro, óbvio, sem dúvida, certamente, evidentemente. Já as modalizações

epistêmicas quase-assertivas introduzem as afirmações mediante modalizadores (advérbios ou

locuções adverbiais) que denotam suscetibilidade, conjectura, possibilidade. Ex.:

eventualmente, provavelmente, quiçá etc. Por seu turno, as modalizações delimitadoras

restringem a asserção a uma esfera específica (geralmente por advérbios ou locuções

adverbiais). Ex.: cientificamente, politicamente, nesse contexto, dessa forma. As modalizações

deônticas advêm de um princípio, conceito, de uma proposição de natureza legal, denotando

uma obrigação, um axioma. Ex.: indubitavelmente, necessariamente, obrigatoriamente.

131

Feitas essas considerações, aduz-se que todo discurso é ideológico e se pauta por

intenções, sendo engendrado mediante estratégias argumentativas evidenciadas nas

modalizações discursivas e nos operadores argumentativos, bem como mediante outros

recursos enunciativos linguístico-discursivos, a exemplo do fenômeno da polifonia.

No afã de demonstrar efeitos polifônicos no âmbito das enunciações discursivas no

caso concreto sob análise, que a propósito também corrobora a tese de que a argumentação

bem-sucedida muda a natureza das coisas persuadindo o enunciatário a aderir ao discurso

empreendido, reportamo-nos às Petições 04 e 05 – Anexos 04 e 05 -, para demonstrar que o

enunciador recorre a outras situações similares para reforçar suas razões numa via de mão dupla

– enunciador – enunciatário, respectivamente.

A Petição 04, a partir das Alegações finais, baseia-se em grande parte na enunciação

exarada pelo delegado de polícia, com fincas nas Provas dos Autos, na qual o enunciador, o

Promotor de Justiça do caso, traça toda a trajetória dos fatos, seja em sua própria visão, seja na

versão das testemunhas, seja no relato do delegado de polícia que atuou no caso.

Em seguida, apontam os indícios do crime e da autoria, conforme relatos em sequência

cronológica – item 1º ao 15º da referida petição. Como aqui nos interessa a evidência de

aspectos polifônicos em que estejam imbricados no discurso de outrem, vamo-nos ater a essas

vozes que reforçam a enunciação do promotor de justiça nesse viés.

Para reforçar a importância dos indícios de prova no processo penal, sobretudo quando

não haja a prova cabal do alegado, o enunciador se reporta a doutrinadores outros, bem como à

jurisprudência dominante, daí o efeito de polifonia, ou seja, vozes ou enunciações que se

coadunam no mesmo propósito, nos mesmos vieses.

O enunciador, logo após o subtítulo relativo aos Indícios como Prova do Processo

Penal, Anexo 04, Petição 04, assevera o seguinte:

Os indícios são meios hábeis de prova no direito Processual Penal,

consoante o art. 239 do CPP.

O grande mestre Eduardo Espínola Filho, em sua obra Código de

Processo Penal Brasileiro Anotado (Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1942,

v (p. 138/151), dá-nos uma grande lição a respeito da prova indiciária.

Diz o mestre, citando Whitaker:

‘... O raciocínio constitui a indução indiciária, como presunção.

Presunção é a consequência tirada, pelo legislador ou pelo Juiz, do

fato certo para o incerto, que depende de prova. E acrescenta: na

presunção, há trabalho de raciocínio guiado pela lógica. De um fato

certo de existência incontestável é tirada, pela relação de

causalidade, a prova do fato incerto. O fato certo chama-se indícios;

o raciocínio que liga o fato certo ao probando é a presunção. A prova

indiciária une o abstrato ao concreto; de um fato conhecido a um

132

desconhecido. A premissa menor, concreta, certa e provada,

baseando-se nos dados da experiência ou do bom sendo comum,

leva à premissa maior abstrata, como conclusão lógica e segura.’

(Anexo 04, Petição 04) Grifos acrescidos.

Não resta dúvida de que os exemplos supra são por excelência polifônicos, haja vista

que compactuam do mesmo entendimento o promotor de justiça, ora enunciador, bem como

aqueles a quem recorre para reforçar sua tese. Tendo ou não citado tanto Eduardo Espínola

quanto Whitaker, certamente os estudos empreendidos pelo promotor anteriormente já teriam

evidenciado esse entendimento.

Para reforçar essa asserção, vale dizer que o raciocínio do promotor já direcionava para

esses pressupostos, contudo, para evidenciá-los dando ares de credibilidade, com mais razão,

seria oportuno citá-los, inclusive demonstrando a fonte, o que corrobora a tese da polifonia.

Em seguida, ainda visando ratificar esse entendimento, externando-o a outros

enunciatários, o enunciador, no caso o promotor de justiça, continua seu raciocínio com a

intenção de persuadir seus enunciatários:

Sustenta, com absoluta segurança o Ministro Bento de Faria (Código de

Processo Penal, v. 1, 1942, p. 309) que ‘se o espírito humano, na maioria

das vezes, não atinge a verdade senão por argumentos probatórios

indiretos, para evidenciar a circunstância ignorada com o nexo da

causalidade, ou de identidade específica (Sabatini Malatesta), não

poderia, pois, ser desprezada, nos Juízos criminais, a prova indiciária,

desde que cada vez mais a inteligência, a prudência e a cautela dos

criminosos dificultam a prova direta’.

(Anexo 04, Petição 04)

Ora, ainda corroborando posicionamento defendido pelo enunciador, que, por sua vez,

se reportou a dois outros enunciadores – Eduardo Espínola e Whitaker -, desta feita o promotor

recorre ao próprio Código de Processo Penal de 1942, p. 309 e a outro respeitável jurisconsulto,

Ministro Bento de Faria, sem nos olvidar de Sabatini Malatesta, ou seja, todo esse emaranhado

de posicionamento jurisprudencial e doutrinários emanado dos mais diversos matizes dá suporte

à enunciação discursiva empreendida com a intenção de reforçar o posicionamento do promotor

de justiça, todos ancorados em outros enunciados, daí a evidência da polifonia, que, aliás, é

típica do discurso do direito. Raramente uma petição, uma contestação, uma sentença ou

acórdão deixam de citar tanto posicionamentos doutrinários quanto jurisprudenciais,

corroborando assim a tese da polifonia na argumentação discursiva.

Ainda nesse mesmo diapasão:

133

Também o professor Antônio José Miguel Feu Rosa, da Universidade

Federal do Espírito Santo e Desembargador aposentado do Tribunal de

Justiça do mesmo Estado, em sua recente obra: Processo Penal (Nova

Letra, 1992, v. II, p. 253/256), no seu estimo moderno, ajustado à

realidade dos dias atuais, leciona que: ‘... a verdadeira prova é a que se

harmoniza com o conjunto, levando o Juiz ao seu convencimento...’.

(Anexo 04, Petição 04)

Ao se recorrer a Feu Rosa, também o enunciador não o faz por acaso, mas precisamente

pelo fato de que há sintonia nos dizeres de ambos, no entendimento que têm acerca de fato

similar, polêmico, mas verossímil e que se coadunam na enunciação do Promotor do caso sob

análise. São, pois, exemplos de polifonia na concepção bakhtiniana.

Reforçando ainda sua enunciação, sem qualquer receio de afetar sua originalidade, o

Promotor Tibúrcio Délbis, de forma didática, recorre a posicionamentos doutrinários que

corroboram seu entendimento, e que, certamente, influenciará os enunciatários, pois, ainda que

tivesse dúvidas, pensariam: ora, se pessoas renomadas, respeitáveis, experientes em casos

complexos dessa natureza assim já tenham decidido, certamente assiste razão ao promotor.

Nesse propósito, o enunciador traz à colação decisões no mesmo norte, senão vejamos:

Nesse sentido:

Prova indiciária – A prova indiciária é admissível quando os indícios são

coerentes e convergentes para um ponto comum, podendo fundamentar o

despacho de pronúncia.’ (TJ-MG, JM 111/287) Mais

Ainda:

‘Prova indiciária -

condenação – Condenação - Os indícios autorizam decreto condenatório

quando por eles se alcança o máximo de habilidade de haver o agente

cometido o crime ou de ter dele participado.’ (TJ-SC, In COAD 32.437)

(Anexo 04, Petição 04)

Tendo em vista que a ciência jurídica é complexa porque os fatos do dia a dia também

o são, suscitando entendimentos diversos, faz-se imperioso ressaltar que, se há posicionamentos

doutrinários tanto num viés quanto noutro, ambos reforçados por outros pontos de vista no

mesmo norte de acordo com o posicionamento do enunciador, o ex-adversa também se vale da

polifonia apresentando argumentos e decisões que lhe sejam favoráveis, portanto a polifonia

atende a ambos os lados por razões óbvias.

Para concluir a petição apresentando seus argumentos, suas razões corroboradas por

outros entendimentos exarados tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência, o enunciador

finaliza sua peça com outros posicionamentos que também nos remetem à polifonia.

Primeiramente o enunciador tece suas considerações acerca da situação concreta e assevera que

134

“Daí, o exame de corpo de delito há de ser substituído pela prova testemunhal e indiciária

constante dos autos, dada a impossibilidade de fazê-lo pela ocultação do cadáver pelo réu. Nesse

sentido:

“Perícia – Exame de corpo de delito – Impossibilidade de realização ante

o desaparecimento dos vestígios – Possibilidade, em linha supletiva, de

comprovação do crime investigado por prova testemunhal. Aplicação do

art. 167 do CPP.’ (Tacrim-SP, RT 673/336) Mais ainda:

‘Perícia – Exame de corpo de delito – suprimento pela comprovação

testemunhal somente quando desaparecidos os vestígios – Inteligência do

art. 167 do CPP;’ (TJ-SP, RT 684/307)

(Anexo 04, Petição 04)

Finalmente, o promotor encerra sua petição citando artigos do Código Penal, que

também ensejam polifonia, na medida em que todo dispositivo legal não deixa de ser uma

enunciação de outrem, no caso, do legislador, que, em tese, representa os anseios da sociedade,

senão vejamos:

Do pedido final

Dito tudo isso, este representante do Ministério Público pede e espera seja

o ora réu pronunciado como incurso nas penas do art. 121, § 2º, inciso II

(motivo fútil), mais art. 211, caput, ambos do Código Penal, em concurso

material de delitos, nos termos do art. 69 do mesmo códex, e via de

consequência seja o mesmo submetido a julgamento perante o Tribunal

do Júri desta comarca, como manda a lei.

JUSTIÇA!!!

(Anexo 04, Petição 04)

Dito isso, partimos para a conclusão, ressaltando que por óbvio esta dissertação não

esgota o tema, haja vista sua riqueza, como de resto assim o é toda pesquisa que explora

estratégias de cunho linguístico-discursivo a serviço da força argumentativa de discursos.

135

5 CONCLUSÃO

Como é incontestável, não há atividade humana que não esteja vinculada direta ou

indiretamente ao uso da linguagem, até porque, não fosse por esse fenômeno, certamente

estaríamos nas mesmas condições do homem ancestral, que, aliás, a partir dele, à vista da

faculdade discursiva em constante evolução, chegamos aonde estamos e certamente

avançaremos de forma inexorável, ainda que a passos lentos.

Pautando-nos no preceito metodológico que norteou a pesquisa em questão,

vislumbrando o gênero de discurso petição e sua inserção no macro gênero julgamento,

procuramos demonstrar que, na relação discursiva inerente à demanda judicial, as partes

empreendem argumentos visando influenciar o sujeito destinatário da relação discursiva, no

caso, o enunciatário propriamente dito, tendo em vista que ele, por sua vez, tende a influenciar

na decisão de mérito.

Nesse procedimento, ficam evidentes as relações dialógicas entre os interlocutores -

enunciador e enunciatário, sujeito comunicante e sujeito interpretante, eu comunicante e tu

destinatário - que, em cada momento, ocupam polos distintos na interação discursiva, seja como

autor, réu, autoridades constituídas, como delegado de polícia, promotor de justiça, juiz,

advogado, testemunha, numa constante troca enunciativa, pois ora o delegado externa seu ponto

de vista como enunciador, ora atua como enunciatário quando da oitiva de testemunhas; o

mesmo ocorrendo com o promotor de justiça que, em grande parte, atua como enunciador, mas

em outros momentos, como enunciatário. Ainda a título de ilustração, o juiz, em sua primeira

participação no julgamento, posiciona-se como enunciatário, ouvindo as partes, seus

advogados, promotores, para em seguida atuar como enunciador, emitindo uma ordem judicial,

um parecer, um despacho, uma sentença.

A relação dialógica se faz constante no julgamento, o que se consubstancia no gênero

de discurso petição, objeto precípuo da pesquisa, considerando inclusive sua dinâmica

evolutiva, pressuposto indispensável a todo gênero de discurso em razão de sua esfera de

atuação, mormente em vista de sua transformação contínua, a exemplo do que ocorre no meio

jurídico, cuja petição pode ser vislumbrada, em sentido amplo, como contestação, recurso,

agravos, embargos, sentenças, acórdãos, requerimentos etc. Nesse sentido, oportuno frisar que

Bakhtin asseverou que todo gênero de discurso é dinâmico e de relativa estabilidade, vale dizer,

instável por natureza.

Procuramos demonstrar a importância das estratégias argumentativas como meio para

se lograr êxito na demanda judicial, ressaltando que essa situação implica questionamentos

136

diversos, tanto de natureza jurídica quanto linguística. No que tange aos aspectos jurídicos, a

questão se atém à aplicação da lei propriamente dita, já no que concerne aos aspectos

linguísticos, a celeuma centra-se na interpretação da lei, dos fatos, dos discursos, assim como

na interpretação da conduta humana, na intenção do agente, dos sujeitos do discurso, bem como

na argumentação empreendida e em sua compreensão pelos enunciatários.

Trata-se, pois, de questões complexas, mormente quando se envolvem julgamentos

relacionados a crimes dolosos contra a vida, que, por conseguinte, são julgados pelo Tribunal

do Júri, Corte de Justiça Popular composta por juízes leigos responsáveis por julgar não por

critérios eminentemente técnicos, mas de acordo com a convicção e consciência de cada jurado

que a compõe, considerando inclusive os quesitos que lhes são formulados e que norteiam suas

convicções e decisões.

Optamos por questionar os julgamentos de competência do Tribunal do Júri não por

acaso, mas principalmente pelo fato de se tratar de julgamentos que envolvem direta ou

indiretamente pessoas comuns do povo, que, a despeito de estarem investidas de conhecimentos

não técnicos, são capazes de discernirem sobre uma situação das mais complexas, vez que

julgam a conduta de quem tenha sido acusado por um crime doloso, praticado com uma intenção

deliberada, visando objetivo específico que não seja o patrimônio em si, mas motivos outros,

vingança, desavenças, preconceitos, herança, etc.

Pela especificidade desse tipo de julgamento, percebe-se que aspectos linguístico-

argumentativos são responsáveis em grande escala pelo veredito, à vista do efeito promovido

pelas ações linguageiras, seja pela condenação, seja pela absolvição do acusado. Isso porque os

jurados têm que conjecturar acerca de fatos narrados por outrem, pela acusação, pela defesa,

pelos depoimentos dos envolvidos, pelo inquérito, ou seja, todo o contexto inerente aos

acontecimentos é objeto de ponderações dos jurados a partir de discursos proferidos.

A dinâmica do júri demonstra de forma inequívoca a importância da linguagem, pois

nele a relação dialógica se faz presente a todo tempo, de sorte que as petições escritas ou orais

externam pareceres de autoridades, assim como dos advogados, das partes interessadas, do réu,

sendo que todo esse aparato linguageiro será objeto de avaliações promovidas por quem tenha

a competência institucional para julgar. Esses fatores têm relevância no resultado do

julgamento, na medida em que nele se decide pela maioria de votos, o que, por si, aguça questão

intrigante, uma vez que votos antagônicos são frutos de interpretações distintas, sendo que

quaisquer que sejam os vieses que os nortearam, há um peso interpretativo que deve ser

respeitado.

A questão se torna menos polêmica quando a decisão se dá por unanimidade, seja para

137

condenar, seja para absolver, contudo, hoje já não há a possibilidade de evidenciar a

unanimidade, sobretudo pela alteração do rito, porquanto, ao se chegar ao quarto voto dos sete

possíveis, seja para condenar, seja para absolver, já se divulga o resultado, até mesmo para não

demonstrar a unanimidade, que, por consequente, acabaria por revelar o voto de cada jurado, o

que, por questões óbvias, deve ser evitado para não haver represálias, sobretudo quanto à

condenação, represálias essas que também poderia haver quanto à eventual absolvição, haja

vista interesses mútuos – autor e réu.

Quando optamos por trabalhar os aspectos argumentativos nas petições atinentes ao

tribunal do júri não o fizemos sem um propósito, pois, por óbvio, toda pesquisa deve ter por

objeto uma finalidade, que, no caso, seria aguçar a curiosidade e formar opinião sobre algo

relevante no âmbito do direito e que tem relação intrínseca com a linguagem, com a

interpretação dos discursos, com a dialética, ampla defesa e contraditório. Esses pressupostos

têm corolário no dialogismo, na interação verbal, na polifonia e na alteridade, pois nem sempre

a maioria sinaliza para o que é certo ou errado, até porque a certeza deve ser relativizada dada

a sua subjetividade.

Se em um julgamento em colegiado a decisão não é unânime, sintomático concluir que

a divergência foi motivada por pontos de vista divergentes, interpretações antagônicas, díspares,

portanto, quem garante que a maioria é que está correta? De certa forma a decisão por maioria

está semiotizada como sendo justa, mas justa sob o ponto de vista do que se institucionalizou

pelo ordenamento jurídico ou pelos usos e costumes ou, noutras searas, o resultado por maioria

tem mais chances de estar correto, mas isso não é garantia de infalibilidade.

Por oportuno, dada a suscetibilidade de incorreções em julgamentos, o ordenamento

jurídico já prevê o duplo grau de jurisdição, pois, se um juiz decide a causa dando-a por

procedente ou não, a parte vencida pode se insurgir contra a decisão e dela recorrer,

apresentando falhas na interpretação, apontando argumentos e posicionamentos doutrinários

que lhe sejam favoráveis, assim como jurisprudências que vão de encontro com a decisão

proferida, ou seja, contrária à sentença, o que por si demonstra que o trânsito em julgado só se

efetiva quando já não haja mais condições de recorrer.

A despeito dessas considerações, de forma atípica, não há como recorrer no mérito em

relação às decisões do Júri, decisões essas emanadas do Conselho de Sentença em face de

crimes dolosos contra a vida. O sistema definiu que tais decisões são soberanas, cujo julgamento

é insuscetível de reforma, o que só seria possível em face de erros formais, nulidades

processuais, como já afiançamos anteriormente.

Ocorre que essa decisão por maioria pode estar equivocada no mérito, engendrada

138

discursivamente por estratégias de natureza enunciativa e argumentativa, contudo, por mais que

tenha havido interpretações errôneas, por mais bem intencionados que sejam os jurados, no

mérito, a coisa julgada se consubstanciou formalmente, o que implicará prejuízo

incomensurável a uma das partes, em última instância, para a sociedade representada pelo

Ministério Público e pela assistência de acusação, ou para o réu, representado por seu advogado

ou defensor público.

Esses aspectos, pela própria complexidade, dão a dimensão do problema, cuja solução

deve passar por discussão em fóruns próprios, com a ampla participação da sociedade, ouvindo

juristas, representantes da própria Ordem dos Advogados, a Defensoria Pública, o próprio

Ministério Público, para enfim amadurecer a ideia de repensar o modelo atual do Júri, se assim

for o entendimento nesse propósito.

Nesse sentido, vislumbrando essa possibilidade, portanto o propósito foi questionar o

ordenamento jurídico nesse mister, no mínimo com a intenção de provocar discussões sobre

essa sistemática, inclusive sugerindo aos formadores de opinião atentar-se para essas hipóteses,

aguçando a necessidade de mais pesquisas com esse intento. Não se trata, por óbvio, de levantar

polêmica de forma gratuita, pois os argumentos aqui empreendidos são plausíveis a justificar

estudos nesse desiderato, até porque a dinâmica das relações sociais se faz por ponderações as

mais diversas, valendo ressaltar que a linguagem, em suas possibilidades, em seus vários

segmentos, é caminho legítimo para fazê-lo, porque o discurso é meio de que dispõe a

humanidade para interferir no mundo engendrado socialmente.

Faz-se oportuno frisar que os estudos linguísticos naturalmente têm relevância na seara

jurídica, assim como o têm a sociologia, a antropologia, a psicologia, a política, a religião, a

mídia, a bem da verdade, toda área do conhecimento, portanto não é diferente em relação ao

direito.

Corroborando essa assertiva, são oportunas as lições de Lopes, a saber:

A Linguística é uma ciência interdisciplinar. Ela toma emprestada a sua

instrumentação metalinguística dos dados elaborados pela Estatística, pela

Teoria da Informação, pela Lógica Matemática, etc. e, por outro lado, na sua

qualidade de ciência-piloto, ela empresta os métodos e conceitos que elaborou

à Psicanálise, à Musicologia, à Antropologia, à Teoria e Crítica Literária, etc.:

enfim, ela se dá, como linguística aplicada, ao Ensino das Línguas e à Tradução

Mecânica. Sem pretender ser exaustiva, a Fig. 2, adaptada de Peytard (1971 p.

73), mostra o posto que lhe corresponde no interior do campo semiológico.

(LOPES, p. 24)

Assim, face às minhas experiências pessoais nessas duas áreas do conhecimento - letras

e direito -, vislumbrei a possibilidade de conciliá-las no presente estudo, dando minha

contribuição mediante sugestões que se coadunam com a hipótese vinculada ao problema.

Nesse sentido, faz-se oportuno proceder a reformas no sistema atinente ao Tribunal do Júri,

139

facultando em seus julgamentos a oportunidade do duplo grau de jurisdição conforme interesse

das partes, mormente daquela que se tornou vencida na demanda judicial, seja o Ministério

Público, seja o Réu.

Dadas as vicissitudes, seria oportuno o duplo grau de jurisdição em instância superior,

ainda que sob a égide de uma Corte colegiada também composta por jurados leigos, fato esse

que sequer implicaria em onerar consideravelmente o Estado, pois, como é cediço, jurados

atuam sem remuneração nesse mister, portanto não seria esse o empecilho. Ademais, ainda que

onerasse o Estado, deve-se ressaltar que a justiça, na acepção do termo, não tem preço, sendo

que qualquer recurso no âmbito do Judiciário tem por propósito ou ratificar uma decisão

recorrida ou retificá-la.

Por todo o exposto, aduz-se que o cerne da questão tratada na presente pesquisa reside

não em questões estritamente jurídicas, mas sim em aspectos eminentemente linguístico-

discursivos, haja vista que os responsáveis pelo julgamento dessas demandas no âmbito do

Tribunal do Júri se pautam nas enunciações de todos quantos estejam direto ou indiretamente

envolvidos na apreciação dos fatos, de acordo com seu ponto de vista em face do caso concreto

sob análise. Conclui-se, por conseguinte, que não se concebe plausibilidade em desvincular os

influxos da argumentação como pressupostos das decisões de méritos oriundas de Cortes

Populares, mais especificamente dos Conselhos de Sentença, o que corrobora a importância do

gênero do discurso petição imbricado no macrogênero julgamento.

141

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145

ANEXOS 1 - Petição 01

“Exmo. Sr. Dr. Juiz de Direito da 2ª Vara Criminal da Comarca de Uberlândia/MG

O Promotor de Justiça, perante esta Vara, no exercício de seu Ministério, com base no incluso

inquérito policial, vem perante esse Juízo oferecer denúncia contra:

DAP, brasileiro, separado judicialmente (à época do crime), economista, com 42 anos de idade

nascido a 1/5/49, natural de Estrela/RS, filho de AHP e OEP, e que, segundo consta, residia na Rua

Alexandre Marquez, 1.017 – B. Martins, nesta cidade e/ou na Rua Urucânia, 447 – B. Saraiva, também

nesta cidade pelo seguinte fato delituoso:

Consta do incluso inquérito policial que o denunciado acima ficou conhecendo em Belo

Horizonte, capital mineira, em maço de 1986, a jovem Maria Denise Lafetá Saraiva, nascida aos

18/2/60, natural de Coração de Jesus/MG, filha de José Gonçalves Saraiva e Maria Joaquina Lafetá

Saraiva, que se achava em BH, na casa de seu tio, para estudar.

O denunciado era, à época, casado, entretanto apaixonou-se por Maria Denise e com ela passou

a conviver maritalmente. Em junho de 1987, o denunciado resolveu trazer Maria Denise para residir

com ele nesta cidade de Uberlândia, para onde tinha sido transferido como funcionário da Petrobrás

tendo separado de fato de sua mulher e aqui residira na Rua Alexandre Marquez, 1.017, como acima

referido, até 8/10/88, quando então o ‘sumiço’ de Maria Denise.

Tiveram uma filha, AEP, nascida aos 17/4/88. O casal não tinha empregada doméstica.

Segundo consta, Maria Denise sumiu no dia 8/10/88, desaparecendo sem deixar quaisquer

notícias a quem quer que seja e até hoje não foi encontrada, quer viva, quer morta, não obstante os

esforços de seus familiares e da Polícia, evidenciados à sua procura.

Os indícios que se extraem da prova colhida no presente inquérito policial são veemente, fortes

e coerentes a indicarem o denunciado como responsável pelo 1sumiço’ de Maria Denise, dando fim à

sua ida e ocultando o seu cadáver, tais como:

1º) O denunciado era amasiado com Maria Denise e com ela convivia maritalmente, sob o mesmo

teto, e segundo as próprias palavras do denunciado, no dia 8/10/88, ele a levou à rodoviária e a deixou

no saguão da referida rodoviária, dizendo que não sabia o destino dela, e que não sabe para onde ela

foi. Inclusive, diz eu houve brigas e discussões entre ambos (f. 4/v).

Assim, Maria Denise sumiu em plena convivência com o denunciado.

2º) Maria Denise tinha a filha de seis meses de idade, a quem tinha todo amor e carinho.

Inacreditável que o coração de mãe de Maria Denise tivesse a coragem de abandonar a filha e sumir

sem deixar notícias.

3º) O denunciado não noticiou o desaparecimento de Maria Denise à polícia, aos seus familiares

e à sociedade; pelo contrário, procurava sempre esconder, dando as suas versões, que eram

contraditórias.

4º) Maria Denise não levou seus objetos de uso pessoal, bem como vestimentas, calçados, etc.

haja vista que os mesmos foram apreendidos como objetos de prova no inquérito (f. 42), os quais foram

restituídos à sua família (f. 254).

5º) O denunciado chegou dias antes do ‘sumiço’ de Maria Denise a contratar uma senhora para

servir de babá à filha de seis meses de idade do casal (... ‘que prefere não dizer o nome...’).

6º) O denunciado informou para R, amiga de Maria Denise, que a mesma estava na casa de seus

pais em Coração de Jesus/MG. Daí, já desconfiada, telefonou para Coração de Jesus, mantendo contato

com Maria Irene Saraiva de Moura, irmã de Maria Denise, o que fez vir à tona, o ‘sumiço’ de Maria

Denise.

7º) O denunciado chegou a dizer a R que Maria Denise não desejava falar com ela; R não

precisava, pois, telefonar para Coração de Jesus e inclusive ficou ‘enrolando’ R, quando esta lhe pediu

146

o telefone ou o sobrenome de Maria Denise ou de seus pais para descobrir o telefone em Coração de

Jesus. R conseguiu com seus próprios esforços o número do telefone e pra lá ligou, vindo a descobrir o

desaparecimento de Maria Denise.

8º) Logo que se deu o ‘sumiço’ de Maria Denise, o denunciado mudou de endereço, deixado a

casa da rua Alexandre Marquez, 1.017 – B. Martins, indo para Rua Urucânia, 447 – B. arava, ambos

nesta cidade.

9º) Denise tinha muito medo do denunciado.

10º) Após o telefonema entre R e Maria Irene, R efetuou vários telefonemas para o denunciado

na Petrobrás onde trabalhava e ele não atendia, dizendo sempre que não estava, tinha saído, ainda não

tinha chegado, etc., inclusive deixava R recado para ele ligar para ela, mas ele não ligou. Daí, R,

desconfiada, telefonou para Coração de Jesus, mantendo contato com a irmã de Maria Denise, Maria

Irene Saraiva de Moura, o que veio dar publicidade ao ‘sumiço’ de Maria Denise.

11º) Maria Irene, irmã de Maria Denise, também tentou por diversas vezes falar por telefone com

o denunciado, na Petrobrás, onde trabalhava, mas não conseguiu. As informações eram as mesmas:

não tinha chegado, não tinha saído etc., inclusive pediu para ele ligar em Coração de Jesus, mas não

ligou. Até que Maria Irene e seu pai vieram a esta cidade de Uberlândia, precisamente no dia 27/2/89,

e ficaram à porta da Petrobrás à espera do denunciado, para uma conversa ou explicações deste para

com a família da desaparecida. O denunciado assustou-se muito quando viu Maria Irene e seu pai, ali.

Aí, Maria Irene perguntou notícias de Maria Denise e o denunciado disse que Maria Denise o tinha

largado em outubro de 1988 e disse que ia para a casa de seus pais em Coração de Jesus. O próprio

denunciado já havia informado por telefone, para Maria Irene, em janeiro de 1989 que Maria Denise

estava bem e estava sem com ela comunicar porque estava sem empregada, mas iria entrar de férias

naquele mês de janeiro e iam passar uns dias lá com eles. Maria Irene indagou sobre a divergência de

informação; ele, denunciado muito cínico disse que era engano de Maria Irene, chegando inclusive a

perguntar se Maria Denise não estava lá, fingindo-se chorar naquele momento.

12º) Maria Irene, inconformada com as explicações do denunciado, aliás contraditórias e cínicas,

resolveu dar queixa à Polícia. Na Delegacia, em audiência que Maria Irene, seu pai e o denunciado

tiveram com o delegado, Maria Irene pôde sentir que o denunciado deu um ‘sumiço’ em Maria Denise

e armou um plano para que ninguém procurasse Maria Denise, pois disse para Maria Irene que Maria

Denise estava bem; disse para R que Maria Denise não desejava falar com ela; disse para G que Maria

Denise havia mudado para o bairro Umuarama; disse que AM e M da Botique que Maria Denise e ele,

denunciado, tinham mudado para Belo Horizonte; disse para o médico que atendia a filha AEP, o Sr.

M da Pediatria do Hospital Santa Genoveva, que Maria Denise tinha ido fazer compras, quando ele

levou a criança ao hospital.

13º) O denunciado, em medos de outubro de 1988, esteve em Belo Horizonte, tentando vender um

telefone de Maria Denise.

14º) O denunciado, em dezembro/88, voltou a conviver com sua ex-esposa, NIP, com quem Maria

Irene esteve conversando e lhe afirmou que sabia do caso entre o denunciado e Maria Denise, que o

denunciado havia prometido a ela N que assim que Maria Denise desse à luz a criança, o denunciado

pegaria a criança e dispensaria Maria Denise.

15º) Por último, a impressão obtida pela autoridade policial nas investigações policiais, durante

o respectivo inquérito tais como:’... durante as investigações, descobrimos que D é o mais frio e cínico

mentiroso com quem já trabalhamos...’.

Assim, tendo o denunciado incorrido nas sanções do art. 121, § 2º, inciso II (motivo fútil) do

Código Penal, mais art. 211 do mesmo códex, requer esta Promotoria de Justiça seja o mesmo

denunciado devidamente citado para interrogatório e defesa que tiver ouvidas as testemunhas abaixo

arroladas, cumpridas as demais formalidades da lei e, afinal, condenado nas penas que lhe couber.

Rol de Testemunhas:

(...) Oito testemunhas.

147

Termo em que

Pede deferimento.

Uberlândia/MG, 26 e agosto e 1991.

a.) Tibúrcio Délbis Promotor de Justiça.”11

11 Délbis, Tibúrcio. Homicídio sem cadáver: o caso Denise Lafetá/Tibúrcio Délbis. - Belo Horizonte: Del Rey,

1999, ps. 22/26

149

ANEXOS 2 - Petição 02

Secretaria do Estado de Minas Gerais

16ª Delegacia Regional de Segurança Pública de Uberlândia/MG

3º Distrito Policial/Luizote de Freitas

Inquérito Policial n. 064/89

Vítima/Desaparecida: Maria Denise Lafetá

Suspeito: DAP

MM Juiz,

Em março de 2989, a família de Maria Denise nos procurou alegando que esta havia

desaparecido desde outubro de 1988 e deixado sua filha menor com o amante, que aliás, neste

caso, é o único suspeito de ter dado fim à desaparecida.

A família alegou que por questões de educação, formação pessoal e religiosa Denise

jamais teria deixado sua filha com o amante e simplesmente desaparecido.

O amante, DAP, era um homem casado, pai de família e alto funcionário da Petrobrás

(gerente regional), mas, naquela época, se encontrava separado de fato de sua esposa.

Durante as investigações, descobrimos que D é o mais frio e cínico mentiroso com quem

já trabalhamos, e, digo, trabalhamos porque muitas pessoas interessadas acompanharam as

investigações, inclusive juízes e promotores.

Não tenho nem como relatar esmiuçadamente as mentiras de D. É necessário que se leia

os autos, ainda que os conheça, mas não dá para se ter ideia de como ele é, somente quem

presenciou e acompanhou as investigações pode ter essa noção.

Acreditamos que ele seja o responsável pelo sumiço da vítima porque, segundo ele, ela

foi embora em 8/10/88. Ele não avisou ninguém. Simplesmente contratou uma babá, a Sr.ª V,

para tomar conta da criança e na casa desta. Enquanto isso, se preparou psicologicamente

para receber o impacto das investigações que sabia que existiriam posteriormente. Pagou todas

as dívidas da desaparecida, por certo para que ninguém o procurasse.

Quando os amigos perguntavam cadê a Denise, ele só dizia que ela tinha viajado.

Quando a família telefonava, ele enrolava todo mundo.

D é um homem culto, inteligentíssimo, ao ponto de arriscar os mais altos negócios para

a Petrobrás e, ao final, dá tudo certo por obra e graça de sua visão futurista e audaciosa, e

assim tem desculpas para tudo. Arruma explicações e justificativas para todas as mentiras e

omissões.

Os vizinhos informaram que Denise via dentro de casa como se estivesse sempre com

medo de alguma coisa e D não permitia que ela se relacionasse com ninguém.

Após o sumiço de Denise, D se mudou para outra residência no bairro Umuarama,

porém, comprou outra casa no bairro Sana Mônica e a arrumou, sem que ninguém soubesse

disso, da forma que Denise gostava, até nos pequenos detalhes. Arrumou tudo, transferiu os

móveis e coisas de Denise para esta casa e escondeu isso de todo mundo como se quisesse

preservar uma lembrança, somente sua, numa atitude característica de um psicótico.

Nesta casa estavam as melhores roupas de Denise, seu anel de formatura, seus livros,

seus discos e eu terço, pendurado na cabeceira da cama como ela gostava aí deu pergunto:

Se ela tivesse ido embora, não teria levado o seu anel de formatura, suas boas roupas e

150

seu amuleto – o terço?

Usamos, em todas as residências e locais suspeitos, até sondagem de infravermelho,

visando descobrir alguma sepultura, e muita escavação foi feita pelo Corpo de Bombeiros da

Polícia Militar e nenhuma prova conseguimos contra o suspeito.

Agora, ele pode tê-la matado em qualquer lugar do Brasil e aí sumido com o corpo, de

alguma forma, pois viajava sempre em carro da empresa e para muitos lugares do país.

A senhora que cuidou da criança também foi enrolada por D. Ela sempre pedia a ele que

lhe mandasse os documentos da menina a fim de que ela fizesse o cadastro da mesma, mas ele

nunca levou nada, sempre dando uma desculpa qualquer e ainda faia a babá presumir que um

pobre homem abandonado pela mulher.

Dª V conta que D sempre chorava quando ia apanhar a filha: ‘Lilisa’, com ela. Seria

sentimento de culpa?

Todas as diligências que pude empreender, e que os nossos ínfimos recursos permitiam

foram realizadas. A família, não contente, buscou Polícia Especializada em Belo Horizonte e

assim rodaram o país em busca de alguma prova, meses a fio, com o inquérito, e nada

conseguiram. Devolveram o inquérito.

Fizemos então muitas diligências pela região e outros estados vizinhos, checando corpos

e esqueletos, e também nada encontramos e, até o presente momento, estávamos aguardando

fatos novos, mas, até então, não descobrimos nada.

Outra pista que D tentou desfazer foi a seguinte: Denise tinha em Belo Horizonte um

telefone que era locado pela Minas Fone, de Belo Horizonte. Após o desaparecimento de

Denise, exatamente dois meses depois ele descobriu isso, pois as contas, digo, ordens de

pagamento vinham para Uberlândia, e, assim, tentou vender o telefone. Dessa forma, não havia

necessidade da locadora procurar Denise para renovar contratos.

Então, meritíssimo, todas as evidências são contra ele. A menor continua com o suspeito,

hoje, sendo criada pela esposa do mesmo, pois voltaram a viver juntos.

A Petrobrás também investigou o caso, e com base nesse inquérito policial o demitiu.

Só posso dizer uma coisa com absoluta certeza: tudo o que podíamos fazer em termos de

diligências para localizar ou saber o que aconteceu com a desaparecida foi feito.

No momento, não vejo mais nada que eu possa fazer, portanto remeto os presentes autos

a vossa douta apreciação.

Uberlândia-MG, 18 de julho de 1991.

Bel. G. S. Freitas

Delegado de Polícia Classe II.”12

12 Délbis, Tibúrcio. Homicídio sem cadáver: o caso Denise Lafetá/Tibúrcio Délbis. - Belo Horizonte: Del Rey,

1999, ps. 27/29

151

ANEXOS 3 - Petição 03

Decisão MM Juiz

Autos n. 790/91 – Prisão Preventiva

Acusado: DAP

O Dr. Promotor de Justiça requereu a prisão preventiva de DAP, o qual figura como

acusado no processo crime n 790/91 pela prática de homicídio qualificado e ocultação de

cadáver, previstos nos artigos 121, § 2º, inciso II (motivo fútil) e 211, respectivamente, ambos

do Código Penal.

Compulsando os autos, verifica-se que o ora acusado encontra-se foragido sem motivo

plausível que justificasse o seu desaparecimento repentino, dificultando, com isso, a

instrução criminal para a apuração da verdade dos fatos e posterior aplicação da norma

penal, bem como insegurança na ordem pública, já que tal crime teve grande repercussão na

sociedade.

Segundo consta dos autos, a vítima desapareceu no dia 8/10/88 sem deixar qualquer

notícia, sendo relevante destacar que na época do seu desaparecimento tinha uma filha de

apenas seis meses de idade.

Até hoje não se sabe nada a respeito do paradeiro de Maria Denise, que não foi

encontrada, nem viva e nem morta, não obstante os esforços de familiares, amigos, e

principalmente a Polícia, no sentido de localizá-la.

Os indícios que se extraem dos autos são fortes e coerentes a indicar o acusado como

responsável pelo desaparecimento da vítima.

Embora não sendo encontrado o corpo da vítima, não havendo nos autos o laudo de

necropsia, as demais provas, principalmente as testemunhais, convergem harmonicamente

no sentido de que a vítima foi morta pelo acusado, tendo este ocultado o cadáver da mesma.

Ademais, consoante as informações obtidas pelo zeloso r. do Ministério Público, o

acusado, conforme indica o ofício de f. 18 remetido pela Cia de Telefone do Brasil

Central, encontra-se nesta cidade, residindo atualmente com sua família na Rua dos

Canarinhos, 387 – B. Cidade Jardim, já que seu nome consta na lista telefônica deste

Município.

Assim sendo, a aplicação de tal medida faz-se necessária, razão pela qual decreto a

prisão preventiva do acusado DAP, nos termos do art. 311 e segs. do Código de Processo

Penal.

Espeça-se o competente mandado de prisão.

Cumpra-se.

Uberlândia, 5 de agosto de 1993.

a.) Bel. Paulo Batista Braga

Juiz de Direito.”13 (Fl. 32)

13 Délbis, Tibúrcio. Homicídio sem cadáver: o caso Denise Lafetá/Tibúrcio Délbis. - Belo Horizonte: Del Rey,

1999, ps. 31/32

153

ANEXOS 4 - Petição 04

Processo n. 890

R: DAP

V: Maria Deise Lafetá Saraiva

Alegações Finais

O réu, DAP, está sendo processado perante esse douto Juízo por ter dado sumiço à sua

amásia, a vítima Maria Denise Lafetá Saraiva, dando fim à sua vida, e ocultando o cadáver da

mesma. Isto em outubro de 1988, nesta cidade de Uberlândia.

Denúncia oferecida em 26/8/91 com base no inquérito policial que a instrui, a qual foi

recebida em 11/11/93 – fl. 2/287.

O réu não foi encontrado nos endereços por ele fornecidos aos autos, pelo que foi citado

por edital, e também não compareceu, ficando, portanto, revel.

Audiência inquirição testemunha em 7/6/93.

(...)

Audiência complementar inquirição testemunhas, em 10/8/93 – 393/404

Veio os autos a carta precatória oriunda de Belo Horizonte, que foi juntada aos autos –

f. 407/430, sendo que já tinha vindo a de Coração de Jesus/MG.

O processo veio-nos, com vista, para as alegações finais.

Este é o sucinto relatório.

Das Provas dos Autos

O acusado presente era casado civilmente com NIP e residiam em Porto Alegre/RS.

Em princípio de 1986, o acusado presente, deixando a sua esposa em Porto Alegre/RS,

passou a residir em Belo Horizonte, para trabalhar na Petrobrás, onde fora concursado.

Em março de 1986, o acusado conheceu a vítima destes autos, a jovem Maria Denise

Lafetá, moça solteira, nova, bonita, natural da cidade do interior do norte de Minas, Coração

de Jesus, e que se achava em Belo Horizonte, na casa de seu tio, Roossevelt Santos Lafetá, para

estudar.

Aí, conquistou Denise e passou a ter com ela um romance, a que pese ser homem casado,

com família constituída, ocultando para Denise este seu estado civil de homem casado.

Posteriormente, o acusado fora transferido de seu emprego na Petrobrás, de Belo

Horizonte para esta cidade de Uberlândia, e em junho de 1987 resolveu trazer Denise, também

para residir com ele nesta cidade, passando então a residir na Rua Alexandre Marquez, 1017

- B. Martins, nesta cidade.

Em maio de 1987, o acusado presente separou-se de sua mulher, com quem era casado

civilmente, NIP, judicialmente, sendo que, em fins de 1986, ela veio a residir em Uberlândia,

na Rua Tapuios, 16, - B. Saraiva, e em 15/12/87 passou a residir em Porto Alegre/RS, com os

seus filhos, retornando a essa cidade de Uberlândia/MG para moradia com os filhos, em

dezembro de 1988.

154

Ocorre que Denise desapareceu em plena convivência marital com o acusado,

misteriosamente, e até hoje não foi encontrada, quer viva, quer morta.

Os indícios apurados na prova carreada aos autos indicam como responsável pelo

sumiço de Denise o ora acusado, que pôs fim em sua vida e ocultou o seu cadáver para lhe

garantir a impunidade.

Dos Indícios

Confiram-se os indícios.

1º) O denunciado era amasiado com Maria Denise e com ela convivia maritalmente, sob

o mesmo teto, e segundo as suas próprias palavras, no dia 8/10/88, ele a levou à rodoviária

local e lá a deixou no saguão da referida rodoviária, dizendo que não sabia o destino dela, não

sabendo para onde ela foi. Inclusive, dizendo que houve briga e discussões entre eles, antes (f.

11/v). Assim, Maria Denise sumiu em plena convivência com o acusado.

2º) Maria Denise tinha a filha de seis meses de idade, àquela época, a quem tinha todo

amor e carinho. Inacreditável que o coração de mãe de Maria Denise tivesse coragem de

abandonar a filha e sumir, sem deixar notícias a ninguém.

3º) O acusado não noticiou o desaparecimento de Maria Denise à Polícia, aos seus

familiares e à sociedade, pelo contrário, procurava sempre ocultar qualquer informação que

pudesse vir a divulgar o desaparecimento, dando as suas versões, que eram contraditórias e

mentirosas.

4º) Maria Denise não levou seus objetos de uso pessoal, suas vestimentas, seus calçados,

seus pertences, etc., haja vista que foram apreendidos como objetos de prova no inquérito

policial (f. 55), os quais foram restituídos à sua família (f. 260).

5º) O acusado chegou dias antes do 'sumiço' da vítima a contratar uma senhora para

servir de babá a filha de seis meses de idade que prestou depoimento testemunhal à f. 42,

informação às f. 115, afirmando que cuidou da criança no período de 4.10.88 a 12.12.88, no

horário de 8:00 às 17:00 horas, e fl. 256. E, agora na fase da instrução do processo, em Juízo,

infelizmente não foi encontrada em que pesem os esforços desprendidos para tanto.

6º) O acusado informou para R, amiga de Maria Denise, que a mesma estava na casa de

seus pais em Coração de Jesus. Daí, R, já desconfiada, telefonou para Coração de Jesus,

mantendo contato com Maria Irene Saraiva de Moura, irmã de Maria Denise, fazendo com que

viesse "à tona" o sumiço de Maria Denise (fl. 20, 29/30, 43, 355/356 e 394/396).

7º) O acusado chegou a dizer a R que Maria Denise não desejava falar com ela; R, então,

não precisava telefonar para Coração de Jesus/MG e inclusive ficou 'enrolando' R, quando

esta lhe pediu o telefone ou o sobrenome de Maria Denise, ou de seus pais para descobrir o

telefone em Coração de Jesus. R conseguiu com seus próprios esforços o número do telefone e

para lá ligou, vindo a descobrir o desaparecimento de Maria Denise.

8º) Após o telefonema entre R e Maria Irene, R efetuou vários telefonemas para o

denunciado na Petrobrás onde trabalhava e não atendia, dizendo sempre a informação de que

não estava, tinha saído, ainda não tinha chegado, etc., inclusive deixava R recado para ele

ligar para ela, mas não telefonou. Daí, R, desconfiada, telefonou para Coração de Jesus,

mantendo contato com a irmã de Maria Denise, Maria Irene Saraiva de Moura, que então veio

a dar publicidade ao sumiço de Maria Denise.

9º) Maria Irene, irmã de Maria Denise, também tentou por diversas vezes falar por

telefone com o acusado, na Petrobrás, onde trabalhava, mas não conseguiu. As informações

eram sempre as mesmas de que não tinha chegado, não estava, tinha saído, etc., inclusive pediu

155

para ele ligar em Coração de Jesus, mas ele não ligou. Até que Irene e seu pai vieram a esta

cidade de Uberlândia, precisamente no dia 17/2/89, e ficaram à porta da Petrobrás à espera

do denunciado, para uma conversa ou explicações deste para com a família da sumida. O

denunciado assustou-se muito quando viu Irene e seu pai ali. Aí, Irene perguntou notícias de

Denise e o denunciado disse que Denise tinha o abandonado em outubro de 1988 e disse que

ia para a casa de seus pais em Coração de Jesus. Ora, o próprio acusado já havia informado

por telefone para Irene, em janeiro de 1989, que Denise estava bem e estava sem comunicar

porque estava sem empregada, mas que iriam entrar de férias naquele mês de janeiro e iam

passar uns dias lá com eles. Irene indagou-lhe sobre essa sua divergência de informação, e,

muito cínico, disse que era engano de Irene, chegando inclusive a perguntar se Denise não

estava lá, fingindo-se chorar naquele momento, como se fossem as 'lágrimas da lenda o

crocodilo.'

10º) Irene, inconformada com as explicações do acusado, aliás contraditórias, cínicas e

mentirosas, resolveu dar queixa à Polícia. Daí iniciaram as investigações a respeito do

misterioso sumiço de Denise. Na Delegacia de Polícia, em audiência a que Irene, seu pai e o

acusado tiveram com o Delegado, Irene pôde sentir que o acusado deu um sumiço em Denise

e armou um plano para que ninguém encontrasse Denise e assim ele ficaria impune, pois disse

para Irene que Denise estava bem; disse para R que Denise não desejava falar com ela; disse

para G que Denise havia mudado para o bairro Umuarama; disse para AM e M da Botique

que Denise e ele, denunciado, tinham mudado para Belo Horizonte; disse ainda para o médico

que atendia a filha AEO, Dr. M d pediatria do hospital Santa Genoveva, que Denise tinha ido

fazer compras, quando ele levou a criança ao hospital.

11º O acusado, em meados de outubro de 1988, esteve em Belo Horizonte, portanto, logo

após o desaparecimento de Denise, tentando vender um telefone de Denise, sendo que pegou

ali na firma locadora os impressos para tanto, e assim que fosse colhida a assinatura de Denise

e reconhecida a sua firma, estava apto a vendê-lo. Entretanto, lá não retornou.

12º) O acusado em dezembro de 1988 voltou a conviver com sua ex-esposa, NIP, com

quem Irene esteve conservando e esta lhe afirmou que sabia do caso amoroso entre o acusado

e a vítima, sendo que o acusado havia lhe prometido que assim que Denise desse à luz a criança,

o acusado pegaria a criança e dava um sumiço em Denise.

13º) Chama-se a atenção a impressão obtida pela autoridade policial, quando das

investigações policiais, durante o desenrolar do inquérito policial, que coaduna com o conjunto

probatório das provas colhidas, que registrou em seu relatório final: 'durante as investigações,

descobrimos que D é o mais frio e cínico mentiroso com quem já trabalhamos...'(f. 283).

14º) Logo após o sumiço de Denise, o acusado mudou de endereço, saindo da Rua

Alexandre Marquez, 1.017 - B. Martins, tirando os móveis e utensílios à noite em seu veículo

e, aos poucos, gerando uma verdadeira confusão de tudo, data vênia para enganar a todos,

inclusive com vários endereços nesta cidade, dando a toda evidência de enganar as autoridades

e garantir-lhe a impunidade; assim constam dos autos cinco endereços declarados por ele, tais

como: Rua Alexandre Marquez, 1.017 - B. Martins; Rua Urucânia, 447 - B. Saraiva; Rua

Tapuios, 16 - B. Saraiva; Rua Jorge Martins Pinto, 956 - B Santa Mônica; e Av. África, 1.441

- B. Tibery, todos nesse curto espaço de tempo do sumiço de Denise.

15º) O acusado D e sua ex-esposa N ajuizaram no foro desta comarca de Uberlândia uma

ação de separação judicial consensual, em maio de 1987, que foi homologada em 27/5/87,

declarando que residiam na Rua Tapuios, 16 - B. Saraiva, nesta cidade. Em junho de 1987, o

156

acusado trouxe Denise par conviver com ele na Rua Alexandre Marquez, 1.017 - B. Martins,

nesta cidade. Em 8/10/88, o acusado deu o sumiço em Denise.

Daí, esses indícios são fortes e coerentes, nada havendo nos autos o que possa contrariá-

los, nenhum contra-indício é apontado de que o acusado não seja o responsável pelo sumiço

de Denise, dando fim à sua vida e ocultando o seu cadáver par garantia de sua impunidade, e

consequentemente liberando-o para a saída extraordinária e arquitetada por ele, como saída

a normalizar a sua situação conjugal com sua ex-esposa N, não lhe importando que a tudo

isso custasse o sacrifício da vida da pobre e infeliz moça do Coração de Jesus, que caiu na

malha de sua consciência má, fria e cínica, que não teve sequer piedade em lhe tirar a vida e

esconder o seu corpo, deixando um vazio na indagação de que a sociedade quer de si uma

resposta: o que ele, acusado, fez com Denise?

Mas, data vênia, dele nunca saíra a verdade, porque a esconde a todo custo, assim como

escondeu o cadáver. Somente a Justiça pode dar esta resposta à sociedade, analisando o crivo

da prova colhida que conduz à certeza de que realmente ele deu um sumiço em Denise, pondo

fim em sua vida e ocultando o seu cadáver, com todo o seu peculiar cinismo e a frieza de um

homem de índole má, conseguindo encobrir a verdade, querendo ficar impune por falta do

cadáver da vítima, que ele misteriosamente deu sumiço, e que só ele pode dizer o que fez com

o corpo de Denise.

Não se pode premiar bandido como herói.

Se o acusado não fosse a julgamento perante o Tribunal do Júri, o que se diga apenas en

passant, como responsável pela morte de Denise, passaria então a ser o herói do crime de

homicídio impune pela sua conduta criminosa premeditada.

Dos Indícios como Prova do Processo Penal

Os indícios são meios hábeis de prova no Direito Processual Penal, consoante o art.

239 do CPP.

O grande mestre Eduardo Espínola Filho, em sua obra Código de Processo Penal

Brasileiro Anotado (Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1942, v (p. 138/151), dá-nos uma grande

lição a respeito da prova indiciária. Diz o mestre, citando Whitaker:

‘... O raciocínio constitui a indução indiciária, como presunção.

Presunção é a consequência tirada, pelo legislador ou pelo Juiz, do

fato certo para o incerto, que depende de prova. E acrescenta: na

presunção, há trabalho de raciocínio guiado pela lógica. De um fato

certo de existência incontestável é tirada, pela relação de causalidade,

a prova do fato incerto. O fato certo chama-se indícios; o raciocínio

que liga o fato certo ao probando é a presunção. A prova indiciária une

o abstrato ao concreto; de um fato conhecido a um desconhecido. A

premissa menor, concreta, certa e provada, baseando-se nos dados da

experiência ou do bom senso comum, leva à premissa maior abstrata,

como conclusão lógica e segura.’

Sustenta, com absoluta segurança o Ministro Bento de Faria (Código de Processo

Penal, v. 1, 1942, p. 309) que ‘se o espírito humano, na maioria das vezes, não atinge a verdade

senão por argumentos probatórios indiretos, para evidenciar a circunstância ignorada com o

nexo da causalidade, ou de identidade específica (Sabatini Malatesta), não poderia, pois, ser

157

desprezada, nos Juízos criminais, a prova indiciária, desde que cada vez mais a inteligência, a

prudência e a cautela dos criminosos dificultam a prova direta.’

Também o professor Antônio José Miguel Feu Rosa, da Universidade Federal do

Espírito Santo e Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do mesmo Estado, em sua

recente obra: Processo Penal (Nova Letra, 1992, v. II, p. 253/256), no seu estilo moderno,

ajustado à realidade dos dias atuais, leciona que: ‘... a verdadeira prova é a que se harmoniza

com o conjunto, levando o Juiz ao seu convencimento...’.

Os nossos tribunais têm decidido de forma constante e reiterada de que a prova

indiciária é meio hábil e seguro à condenação do acusado, desde que harmônica e coerente com

toda a prova colhida.

Neste sentido:

“Prova indiciária – A prova indiciária é admissível quando os

indícios são coerentes e convergentes para um ponto comum,

podendo fundamentar o despacho de pronúncia.’

(TJ-MG, JM 111/287) Mais

ainda:

‘Prova indiciária – Condenação – Os indícios autorizam decreto

condenatório quando por eles se alcança o máximo de habilidade

de haver o agente cometido o crime ou de ter dele participado.’

(TJ-SC, In COAD 32.437)

Ora, MM Juiz, em resumo é fato conhecido, certo e provado de que Maria Denise

sumiu em plena convivência marital com o acusado. Pelas circunstâncias indiciárias colhidas

e provadas nos autos, a conclusão lógica e certa é de que o acusado deu sumiço em Denise,

pondo fim em sua vida e ocultando o seu cadáver para garantir a sua impunidade, esta é a

grande verdade que se extrai dos autos.

Da falta de prova da materialidade do homicídio

É bem verdade que o art. 158 do CPP exige o exame de corpo de delito, quanto a

infração deixar vestígios.

Entretanto, em inteligência com o art. 167 do mesmo CPP, diz este que ‘não sendo

possível o exame do corpo de delito, por haverem desaparecido os vestígios, a prova

testemunhal poderá suprir-lhe a falta’.

Ora, MM Juiz exigir, in casu, a prova material do corpo de delito do cadáver da vítima

seria exigir a prova impossível, a ser comprovada pela acusação, pois o acusado ocultou o

cadáver da vítima, não deixando vestígios onde pudesse a Polícia encontra-lo, para submetê-lo

a exame de necropsia.

Ora, se o acusado eliminou a vítima e ocultou o seu cadáver, de modo que este não foi

encontrado, data vênia, é porque planejou o crime com toda astúcia e com todos os caprichos

da ‘pista’ a um caminho para encontrar o cadáver e aí fazer a perícia de autópsia,

consequentemente, garantindo-lhe a impunidade por falta da prova material do cadáver da

vítima.

Ora, estamos diante de um crime de homicídio em que o réu arquitetou o crime,

prevenindo-se para que não fosse ele descoberto.

Ora, se in casu, fosse exigira a materialidade do crime, em que o próprio réu planejou

158

o crime para não deixar condições desta prova ser feita, nós estaríamos premiando o sucesso

criminoso do réu, a sua astúcia criminosa, transformando-o de criminoso a herói do crime.

Só a ele cabe dizer onde está o cadáver da vítima. Mas ele não diz porque ele

propositadamente escondeu o cadáver da vítima para esconder também a sua impunidade.

Sem dúvida que teve uma grande inteligência em arquitetar tudo como arquitetou, de

modo que não fossem descobertos o crime e o cadáver.

O crime tornou-se impossível encobri-lo, pois, embora não desse queixa à Polícia do

sumiço de Denise, escondendo o fato, os vizinhos e os parentes da vítima deram pela falta dela

e aí começaram a indagar do réu a respeito dela, e ele com suas respostas contraditórias, cínicas

e mentirosas, facilmente chegou-se à conclusão de que ele, réu, dera um sumiço em Denise,

pelo que surgiram as investigações policiais e, consequentemente, este processo.

Mas, o cadáver ele escondeu dos familiares da vítima, da sociedade, da Polícia e da

Justiça, para esconder com ele a verdade real da história do crime.

Ora, se um agente comete um crime de homicídio e não esconde o cadáver da vítima,

a lei naturalmente exige a sua punição. Com muito mais razão e rigor há de ser punido o agente

que comete o homicídio ou dele participa e esconde o cadáver para não ser punido.

O primeiro, talvez por um momento de ímpeto que gerou violência, quer da vítima,

quer do agente, quer de ambos, o certo é que o fato aconteceu. E aí pudesse até caber, como

prevê a lei uma justificativa de conduta, como é o caso das excludentes da ilicitude (legítima

defesa, etc.).

Mas o agente que friamente, na calada da tomada de sua consciência deliberada para o

mal, premeditou dar um sumiço na vítima e esconder o seu cadáver para que ninguém

descobrisse a sua conduta criminosa, ficando então impune, não tem justificativa de sua

conduta, porque se a tivesse não teria escondido o corpo da vítima para tentar a sua impunidade.

Esta conduta, como é o caso destes autos, o que cremos ser um caso raro na história do

crime de homicídio, em que o réu dá um sumiço na vítima, sem que ninguém consiga descobrir

o que ele fez com o corpo dela, revela aos olhos da sociedade uma reprovação muito maior do

que o crime em que o cadáver foi encontrado e periciado.

Sem dúvida, revela o agente que isto fez ser um elemento de alta periculosidade, que

a sociedade pede que ele seja punido a todo rigor da lei, porque não teve piedade com sua

amásia, eliminando a sua vida e escondendo o seu cadáver e, com isso, ficaria tranquilamente

convivendo com sua primeira mulher, solucionando o problema que ele próprio criou com o

romance que teve com Denise, sendo um homem casado, com família constituída.

Daí, o exame de corpo de delito há de ser substituído pela prova testemunhal e

indiciária constante dos autos, dada a impossibilidade de fazê-lo pela ocultação do cadáver pelo

réu.

Neste sentido:

‘Perícia – Exame de corpo de delito – Impossibilidade de

realização ante o desaparecimento dos vestígios – Possibilidade,

em linha supletiva, de comprovação do crime investigado por

prova testemunhal. Aplicação do art. 167 do CPP.’ (Tacrim-SP,

RT 673/336) Mais ainda:

“Perícia - Exame de corpo de delito – Suprimento pela

comprovação testemunhal somente quando desaparecidos os

vestígios – Inteligência do art. 167 do CPP.’ (TJ-SP, RT

684/307)

(...)

159

Do pedido final

Dito tudo isso, este representante do Ministério Público pede e espera seja o ora réu

pronunciado com incurso nas penas do art. 121, § 2º, inciso II (motivo fútil), mais art. 211 caput,

ambos do Código Penal, em concurso material de delitos, nos termos do art. 69 do mesmo

códex, e via de consequência seja o mesmo submetido a julgamento perante o Tribunal do Júri

desta comarca, como manda a lei.14

JUSTIÇA !!!

Uberlândia/MG, 4/10/93.

O Promotor de Justiça,

Tibúrcio Délbis

14 Délbis, Tibúrcio. Homicídio sem cadáver: o caso Denise Lafetá/Tibúrcio Délbis. - Belo Horizonte: Del Rey,

1999, ps. 34/47

161

ANEXOS 5 - Petição 05

Apelação Criminal n.0.116.258-5.

Ementa: Júri - Decisão manifestamente contrária à prova dos autos - Caso concreto - Provas -

Decisão manifestamente contrária à prova dos autos é aquela escandalosa, arbitrária e sem nenhum

liame lógico com as demais provas do processo - Se a decisão popular tem respaldo em uma das versões

existentes, não pode o órgão revisor cassá-la, sob pena de negar vigência ao princípio constitucional

da soberania do Júri - Quem lida com o direito corre sempre o risco do erro judiciário; prevendo isso

é que a própria lei instrumental criou a ação rescisória e a revisão criminal - Recurso conhecido e

improvido. (Grifamos)

Vistos etc., acorda, em Turma, a Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de

Minas Gerais, incorporando neste o relatório de fl., na conformidade de ata dos julgamentos e das notas

taquigráficas, à unanimidade de votos, em rejeitar preliminar, negar provimento.

Belo Horizonte, 26 de maio de 1998.

Des. G. B. - Relator.

Notas taquigráficas O Sr. Des. G. B. (Relator):

Voto.

Na comarca de Uberlândia, DAP, já qualificado, foi denunciado e processado como incurso nas

sanções do art. 121, § 2º, inciso II e art. 211, todos do Código Penal, acusado de ter assassinado e dado

sumiço definitivo ao corpo de sua amásia Maria Denise Lafetá Saraiva. Os fatos, segundo a denúncia,

teriam ocorrido na primeira quinzena de outubro de 1988.

Após regular instrução criminal, foi o acusado impronunciado à consideração de que não

restaria provada, a contento, a materialidade do delito. (Grifamos)

Esta Câmara, no julgamento do Recurso em Sentido Estrito n. 26.111-5, deu provimento ao

recurso ministerial e pronunciou o réu, nos termos da capitulação inaugural.

Levado a julgamento por seus pares, viu-se o réu condenado, por maioria simples (5x2), à pena

de 12 anos de reclusão pelo homicídio qualificado e mais um ano de reclusão pela ocultação de cadáver.

Irresignada, apela a defesa com fulcro nas letras a e d do inciso III, do art. 593, do Código de

Processo Penal. Nas razões de recurso não levanta preliminar de nulidade alguma, pedindo apenas a

cassação do veredicto popular por manifestamente contrário à prova dos autos.

O recurso foi contra-arrazoado, tendo a ilustrada Procuradoria de Justiça opinado pelo seu

conhecimento e improvimento.

Recurso próprio, tempestivamente manifestado, com processamento e remessa regulares.

É, em síntese, o relatório.

Preliminarmente. Conheço do recurso porque presente todos os pressupostos do juízo de sua admissibilidade.

Desacolho a preliminar de inexistência do recurso, levantada pelo recorrido quando de suas

contrarrazões. Houve substabelecimento válido a advogado regularmente inscrito na OAB. Ainda que

assim não fosse, não seria nunca o caso de dar o recurso por inexistente. Quando muito, poderia se

baixar o processo em diligência para que o réu contratasse novo defensor que pudesse ratificar o

recurso; isso apenas demandaria desperdício de tempo e de prestação jurisdicional.

Conheço.

Embora o recorrente tenha fulcrado sua irresignação também na letra a, do inciso III, do art.

593, do Código de Processo Penal, ele não explicou qualquer preliminar de nulidade. Verificando o

aspecto formal do julgamento, não consegui divisar qualquer irregularidade de ordem pública que

pudesse ser decretada.

Mérito

162

No seu aspecto fático, a questão é realmente complexa. Isso ocorre sempre que o corpo da vítima

desaparece sem deixar vestígios. Fica sempre a dúvida: será que a vítima realmente morreu? Será que

ela foi assassinada e o cadáver destruído ou oculto? Será que a vítima apenas escafedeu-se sem deixar

e sem dar notícias? E se algum dia ela aparecer viva? !. (Grifamos)

No aspecto técnico-jurídico, entretanto, a questão é singela. É da jurisprudência uníssona dos

tribunais do país, e da doutrina unânime, que as decisões do Júri só podem ser cassada pelo órgão

revisor quando elas são totalmente bizarras, escandalosas, arbitrárias e sem nenhum nexo lógico com

as provas coletadas no processo.

Nesse sentido, as lições de Heleno Cláudio Fragoso - Jurisprudência criminal, p. 378, n. 320 -,

de Júlio Fabbrini Mirabete - Processo Penal, p. 612/613 -, de Damásio Evangelista de Jesus - Código

de Processo Penal anotado, 9. ed., p. 383, 1991 -, de Frederico Marques - Tratado de direito processual

penal, v. IV, p. 245 -, de Espínola Filho - Código de Processo Penal brasileiro - Anotado, v. IV, n. 1.238-

, etc.

Havendo duas ou mais versões, todas razoáveis, em confronto com as provas, pode o Tribunal

do Júri optar pela que lhe pareça mais verossímil ou a que melhor ajuste ao caso concreto, sem vez

para que o órgão revisor possa cassar a decisão por manifestamente contrária à prova dos autos

(STF, HC n.º 70.129-9-RJ, Rel. Min. Paulo Brossard, DJU de 16/10/89, p. 15.859).

No caso concreto, qualquer que fosse a decisão dos jurados, não havia como pudesse este

Tribunal cassá-la por manifestamente contrária à prova dos autos, posto que existem provam num e

noutro sentido. (Grifo nosso, enfatizando dando realce à tese empreendida, eis que o melhor argumento

tende a prevalecer quando há provas, doutrina e jurisprudência para ambos os lados).

Como é de costume, nesses casos a defesa sempre se aferra ao famoso Caso dos Irmãos Naves,

de Araguari, o mais famoso erro judiciário do país. É um risco que todos nós, que lidamos com a área

do direito, somos obrigados a correr. Toda atividade humana é falível como o próprio homem. Na

aplicação da lei não é diferente, mesmo porque não há nunca Justiça humana absoluta, em face da

notória e incontornável falibilidade do homem - quia humanum errar est. (Este último parágrafo

externa de forma cabal o dilema questionado na presente pesquisa, uma vez que as versões dos fatos,

em inúmeros casos levados às barras dos tribunais, tem argumentos antagônicos e verossímeis, daí o

porquê de prevalecer o mais convincente, ainda que não seja o mais justo ao caso concreto, daí o porquê

da enunciação crucial do Relator da petição em comento: quia humanum errar est, ou seja, porque

errar é humano).

No caso concreto, entretanto, a única maneira possível de se constatar um possível erro judiciário

seria o aparecimento da vítima, viva. Afora tal caso, há de prevalecer a decisão do Tribunal Popular.

Se, entretanto, os ventos do destino soprarem para o rumo diverso, isto é, se algum dia Maria Denise

reaparecer viva (talvez por pessimismo, creio que isto jamais acontecerá), duas situações novas

surgirão, uma a compensar a outra. O erro judicial ficará patenteado, mas, em compensação, uma

vida humana (no caso de Maria Denise) ressurgirá das cinzas. (Figura de retórica) Deus queira que

isso aconteça ... para o bem de todos. Do réu, porque se livrará de vez da pena imposta pelo Júri de

Uberlândia e terá direito a indenização por parte do Estado. Dos jurados, porque o destino terá evitado

persistir o erro coletivo por eles praticado. Dos juízes togados, porque o direito imperou, ainda que

tardiamente.

De qualquer sorte, no caso concreto, não há como cassar a decisão do júri. Ela não é

manifestamente contrária à prova dos autos, pois se alicerça na maioria lógica do conjunto probatório.

Assim, e acolhendo o parecer ministerial, nego provimento ao recurso.

Custas, pelo réu.

Participaram do julgamento os desembargadores E S e S R.

Súmula: Rejeitaram preliminar, negaram provimento".

O referido acórdão transitou livremente em julgado (f. 887).

O processo chegou à Comarca de origem.

163

O réu, DAP, surpreendentemente apresentou-se para cumprir a sua pena de prisão de 13 anos de

reclusão, tendo sido recolhido à Cadeia Pública da Comarca de Uberlândia, e assim deu início à

execução da pena, inicialmente em regime fechado.15 (Sem grifo no original)

15 Délbis, Tibúrcio. Homicídio sem cadáver: o caso Denise Lafetá/Tibúrcio Délbis. - Belo Horizonte: Del Rey,

1999, ps. 108/112