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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Maria Lúcia Chaves Lima
O uso do nome social como estratégia de inclusão escolar de
transexuais e travestis
DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL
SÃO PAULO
2013
MARIA LÚCIA CHAVES LIMA
O uso do nome social como estratégia de inclusão escolar de
transexuais e travestis
DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL
Tese apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
como exigência parcial para a obtenção do título
de Doutora em Psicologia Social, sob a
orientação da Profa. Dra. Mary Jane Paris Spink.
SÃO PAULO
2013
Banca examinadora
____________________________________________
____________________________________________
____________________________________________
____________________________________________
____________________________________________
Á minha mãe, Helena Pessoa, por ter me
ensinado a desconfiar das supostas
evidências da vida.
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar e de maneira muito especial, agradeço à Profa. Dra. Mary Jane Spink,
pela compreensão e paciência nesse processo de orientação quase sempre à distância.
Agradeço pela acolhida, confiança, orientações cuidadosas e por me tranquilizar nos
momentos mais angustiantes.
Ao Prof. Dr. Ricardo Pimentel, à Profa. Dra. Cintya Ribeiro e à Profa. Dra. Denise
Sant’Anna pelas considerações feitas a esse trabalho quando do exame de qualificação. Ao
Ricardo, agradeço também, por ter acompanhado de maneira sempre muito generosa o meu
percurso acadêmico desde a graduação em Psicologia.
À CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), pela bolsa de
doutoramento concedida.
A todas as pessoas que ajudaram a produzir as informações apresentadas na presente
pesquisa. Em especial, a todas as travestis e transexuais que se disponibilizaram a partilhar
comigo um pouco de suas vidas.
À Symmy Larrat, por todo apoio concedido durante a realização desta pesquisa.
Ao Núcleo de Práticas Discursivas e Produção de Sentidos da PUC-SP, pela acolhida e
instigantes discussões estabelecidas.
Ao Instituto de Ciências da Educação da Universidade Federal do Pará, pela colaboração
durante esse percurso de formação profissional.
Agradeço também à minha mãe Helena Pessoa, e à minha irmã, Rosa Chalí, por serem meu
porto seguro, por me apoiarem em tudo e por admirá-las tanto.
Ao meu pai, Wladilson Lima, e à Sarah Rachid, pela generosidade e apoio oferecidos
desde o primeiro momento em que souberam da aprovação no doutorado.
Aos meus irmãos Artur, Adriano, Rafael e Rômulo, pois mesmo distantes, torcem pelo
meu sucesso.
Às amigas: Angela Di Paolo, Larissa Medeiros, Ana Carolina Secco, Christianne Souza,
Elaine Arruda, Danielle Miranda, Ingrid Ventura, Daniele Vasco, Cláudia Xerfan, Ana
Lúcia Santos, Érika Morhy, Márcia Soares, Auzy Cleyce. Sem vocês, a vida seria um
deserto.
À Alyne Alvarez, pela comovente ajuda oferecida nesse processo solitário que é a escrita
acadêmica. Obrigada pelas leituras, sugestões, críticas, cuidados e pela inestimável
amizade.
À Milena Lisboa, Jullyane Brasilino, Fernando Moragas, Camila Avarca, Fabrício
Doravante e George Moraes por terem tornado a vida mais leve, alegre e intensa durante o
período na PUC-SP. Ao George e à Jullyane, agradeço também pela leitura carinhosa
realizada no texto final desta tese: obrigada pelas críticas, sugestões e horas sem dormir.
À Gabriela Santos, Allan Matos, Rafael Batalha e à graciosa Morena, pela generosa e
divertida acolhida em São Paulo durante o último mês de escrita. Obrigada pelo apoio,
conversas e comidinhas.
Em especial, agradeço ao meu companheiro Eric Alvarenga, por ser a minha calma.
Obrigada pelas constantes leituras, incentivos, assim como pela deliciosa convivência e por
se lançar comigo nessa aventura que é viver.
Somos ingovernáveis. Nosso único senhor propício é o
Relâmpago, que ora nos ilumina, ora nos fende.
René Char
RESUMO
LIMA, Maria Lúcia Chaves. O uso do nome social como estratégias de inclusão escolar de
transexuais e travestis.
Em 2008, o governo do Estado do Pará autorizou o uso do nome social para travestis e
transexuais em todas as unidades escolares da rede pública. Diante desse acontecimento,
fez-se uso das teorizações do filósofo Michel Foucault para analisar os efeitos da política
do nome social como estratégia de inclusão escolar de travestis e transexuais. Parte-se de
histórias de vida de oito travestis/transexuais entrevistadas, além de outras informações
produzidas em situações diversas, para problematizar o governo de travestis e transexuais
por meio de uma política de inclusão. Para a construção do campo no qual este estudo se
insere, apresentam-se os saberes que produzem a travestilidade e a transexualidade como
um problema. Do mesmo modo, circunscreve-se a Portaria do nome social como uma
estratégia de governamentalidade, dando visibilidade ao seu processo de formulação, assim
como as oposições e dificuldades de implementação encontradas. Por fim, apresentam-se
aos efeitos da legislação em questão, efeitos estes não redutíveis à almejada inserção do
seu público-alvo nas escolas, pois abrangem também o seu potencial em produzir modos
de subjetivação. Procura-se demonstrar que tal política cria zonas de tensão entre
estratégias de normalização das formas de viver e as práticas de resistência a elas
direcionadas. Defende-se que a inclusão escolar da diversidade de modos de viver depende
de múltiplos fatores, sendo as políticas de inclusão existentes apenas um dentre esses
muitos aspectos.
Palavras-chave: travestis e transexuais; governamentalidade; inclusão escolar.
ABSTRACT
LIMA, Maria Lúcia Chaves. The use of social name as a school inclusion strategy of
transsexuals and transvestites.
In 2008, the Government of Pará authorized transvestites and transsexuals to use their
social names at public schools. Focusing on this event, we grounded on theories developed
by the philosopher Michel Foucault to examine the effects of social name policy as a
strategy for school inclusion of travestities and transsexuals. We describe life stories of
eight travestites/transsexuals interviewed, and also present pieces of information produced
in various situations, to problematize the government of transvestites and transsexuals
through inclusion policy. To build the field in which this study is situated, we discuss how
knowledge of transvestites and transsexuals experiences are fabricated as a problem. The
ministerial order that establishes the social name is, as well, understood as a
governamentality strategy and we give visibility to their elaboration process as well as
oppositions and difficulties faced in implementation process. Finally, we present the
effects of this legislation. These effects are not reducible to the desired insertion of the
target public at schools because they also cover their potential to produce modes of
subjectification. We intend to demonstrate that such policy creates tension zones between
normalization strategies of modes of living and practice of resistance. It is argued that
educational inclusion of diverse modes of living depends on multiple factors, and inclusion
policies are only one of these many aspects.
Keywords: transvestites and transsexuals; governmentality; school inclusion.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 11
1 A TRAJETÓRIA DE UMA GENEALOGIA 18
1.1 Deixando-se afetar pelo campo-tema 21
1.1.1 Nas entrelinhas da elaboração da Portaria do Nome Social 22
1.1.2 Encontros e desencontros com as histórias de travestis e transexuais 25
Interlúdio 1: O caso Soares 28
1.2 Sobre as entrevistas 32
1.3 Interação com os registros 33
1.4 Considerações éticas 35
2 A INVENÇÃO DA TRAVESTILIDADE E DA TRANSEXUALIDADE 36
Interlúdio 2: Jenifer, Brenda e suas diferenciações identitárias 43
2.1 “Precisamos verdadeiramente de um verdadeiro sexo?”:
patologização da travestilidade e da transexualidade
44
Interlúdio 3: O psicológico feminino de Nayara 53
2.2 A psicologia e a produção da norma: identidades e gêneros 55
Interlúdio 4: Leila e sua crítica à cidadania cirúrgica 62
2.3 Nomes e gêneros em trânsito: processos de normalização da
existência
63
3 A PORTARIA DO NOME SOCIAL COMO ESTRATÉGIA DE
GOVERNAMENTALIDADE
71
Interlúdio 5: Raica: o que pode um nome na chamada? 72
3.1 A governamentalidade e as formas de conduzir a conduta 73
Interlúdio 6: “Na minha época era bem pior”: Babete e suas indigestões
escolares
80
3.2 Diversidade sexual e políticas educacionais de inclusão: um breve
recorte histórico
81
Interlúdio 7: A insistência pelo nome Bianca 89
3.3 A formulação da Portaria do Nome Social 91
4 EFEITOS DE SUBJETIVAÇÃO NO GOVERNO DE TRAVESTIS E
TRANSEXUAIS
105
Interlúdio 8: Valesca, sua vida, sua identidade 108
4.1 Efeitos de identidade 110
Interlúdio 9: Raica volta à escola 119
4.2 Efeitos disciplinares e de regulação 120
Interlúdio 10: Histórias, resistências, diferenças... 129
4.3 A ser feito: formas de resistências aos mecanismos de normalização 130
CONSIDERAÇÕES TRANSITÓRIAS 138
REFERÊNCIAS 148
APÊNDICES 160
ANEXO 185
11
INTRODUÇÃO
Em abril de 2008, o governo do Estado do Pará, através de sua Secretaria de Estado
de Educação (Seduc), promulgou a Portaria Estadual nº 016/2008-GS, que autoriza o uso
do nome social para travestis e transexuais em todas as unidades escolares da rede pública
do Estado. O nome social é o nome através do qual a pessoa deseja ser identificada, uma
vez que o nome civil já não condiz com o modo de vida que a travesti ou a/o transexual
assume na atualidade.
Travestis e transexuais são pessoas que borram as fronteiras de gênero, que
interrogam a heteronormatividade1, aquela que tem como única matriz de inteligibilidade
corpos homens e corpos mulheres (WARNER, 1993). São modos de viver definidos por
uma série de dispositivos: médicos, psicológicos, legais, morais etc. De modo geral, tais
dispositivos definem travestis e transexuais como pessoas que usam adereços, falam e
gesticulam de forma considerada do “outro sexo” e provocam modificações corporais para
se aproximar esteticamente da identidade almejada. Se partindo de algumas perspectivas
tais modos de viver são considerados como patologias (psíquica, mental ou simplesmente
moral), aqui são consideradas como um dos modos possíveis de viver2.
A Portaria Estadual nº 016/2008-GS, conhecida como Portaria do Nome Social, é
uma estratégia pioneira no Brasil, cujo intuito é incentivar a permanência ou retorno de
travestis e transexuais para as escolas. Tal estratégia se fez necessária diante da patente
dificuldade que essa população enfrenta no cotidiano escolar: desde a resposta da chamada
e do relacionamento com colegas e professores/as, até a “escolha” de qual banheiro
utilizar: o feminino ou o masculino?
A pesquisa Preconceito e Discriminação no Ambiente Escolar realizada pela
Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas, publicada em 2009, traz dados alarmantes
sobre essa questão. Baseando-se em uma amostra nacional de 18,5 mil alunos, pais e mães,
1 “Por heteronormatividade entendemos aquelas instituições, estruturas de compreensão e orientações
práticas que não apenas fazem com que a heterossexualidade pareça coerente – ou seja, organizada como
sexualidade – mas também que seja privilegiada. Sua coerência é sempre provisional e seu privilégio pode
adotar várias formas (que às vezes são contraditórias): passa desapercebida como linguagem básica sobre
aspectos sociais e pessoais; é percebida como um estado natural; também se projeta como um objetivo ideal
ou moral” (BERLANT; WARNER, 2002, p. 230). 2 A produção das categorias travesti e transexual será amplamente tratada no Capítulo 2 deste trabalho.
12
diretores, professores e funcionários, revelou que 87,3% dos entrevistados têm preconceito
com relação à orientação sexual3.
Segundo Henriques e colaboradores (2007), os casos mais evidentes de preconceito
no contexto escolar têm sido os vividos pelas travestis e transexuais. Essa população tem
sido foco de discriminação sistemática e ostensiva por parte de colegas, professores/as,
dirigentes e servidores/as escolares. Diversos estudos mostram que no segmento LGBT
(sigla para se referir à lésbica, gays, bissexuais, travestis e transexuais), as pessoas que têm
maiores dificuldades de permanência nas escolas e de inserção no mercado de trabalho são
as travestis e as/os transexuais, quer pelo preconceito quer pelo seu perfil socioeconômico
(PARKER, 2000; PERES, 2004).
Além disso, travestis e transexuais não têm a opção de permanecer camuflados/as,
“no armário” (Cf. SEDGWICK, 1993), sem evidenciar a divergência entre seus modos de
viver e a norma sexual que dualiza as experiências identitárias entre homens e mulheres.
Os modos de ser travesti ou transexual, embora sejam múltiplos e apresentem várias
especificidades, expressam no corpo suas diferenças à heteronormatividade, divergência
esta que está arraigada no andar, no falar, nas roupas, no corpo, na pele.
Diante desse cenário aparentemente hostil para as pessoas que violam a norma
heterossexual, cabe questionar se, na perspectiva de travestis e transexuais, a Portaria do
Nome Social se configura como uma estratégia de inclusão escolar. Com essa finalidade,
optei por utilizar as ferramentas fornecidas por Michel Foucault, para quem legislações,
como a portaria em questão, são estratégias de governamentalidade.
O conceito de governamentalidade, neologismo introduzido pelo filósofo francês,
está intrinsecamente relacionado com a concepção de poder que embasa seus trabalhos. No
domínio genealógico das pesquisas de Foucault (2003a), o poder é definido como uma
prática social e, como tal, construída historicamente por dispositivos diversos. Não possui,
portanto, uma natureza ou essência passível de ser definida por suas características
universais. Não é algo unitário e global; apresenta-se como fluxo de forças em formas
díspares, heterogêneas e em constante transformação. Nesse sentido, poder não é uma
propriedade individual e nem exclusiva do Estado4. Ao contrário, o poder é pensado como
uma relação, como estratégia que circula em todo o tecido social.
3 Disponível em: http://www.abglt.org.br/port/pesquisas.php. Acesso em: 1
o jun. 2011.
4 Em uma entrevista, Foucault (2010a, p. 268), instigado sobre a suposta centralidade do Estado nas relações
de poder, rebate: “Como se pode dizer que derivam do poder de Estado o conjunto das relações de poder que
existe entre os dois sexos, entre os adultos e as crianças, na família, nos escritórios, entre os doentes e os
13
Porém, a partir dos cursos no Collège de France intitulados Segurança, Território,
População e Nascimento da Biopolítica, houve um deslocamento importante na analítica
foucaultiana do poder: de relações de forças, o poder passa a ser compreendido como
governo. O termo governo aqui referido está relacionado ao sentido amplo que possuía no
século XVI. Como explica Foucault (2010b, p. 288): “Ele não se referia apenas às
estruturas políticas e à gestão dos Estados, mas significava a maneira de dirigir a conduta
dos indivíduos ou dos grupos: governo das crianças, das almas, das comunidades, das
famílias, dos doentes [...]. Governar, nesse sentido, é estruturar o eventual campo de ação
dos outros”5.
Portanto governo se refere tanto ao governo de um Estado, quanto de uma casa, da
alma, da consciência ou de si. Dessa forma, a teorização sobre governamentalidade
empreendida por Foucault (2004, 2008a) diz respeito ao governo não apenas dos outros,
mas também ao governo de si. A noção de governamentalidade se estabelece justamente no
entrelaçamento das relações de poder, o governo dos outros e o governo de si
(FOUCAULT, 2004).
Com efeito, o conceito de governamentalidade está situado na interação entre as
tecnologias políticas de dominação sobre os outros (por exemplo, as políticas públicas que
visam conduzir a conduta da população) e as tecnologias de si, ou seja, as formas pelas
quais as pessoas vivenciam, compreendem, julgam e conduzem a si mesmas. As
tecnologias de si são responsáveis pela forma como o sujeito se relaciona consigo mesmo,
transformando-se em objeto de conhecimento para si próprio6. Foucault (2004, p. 323) as
define como um conjunto de técnicas
que permitem aos indivíduos efetuar, com seus próprios meios ou com a
ajuda de outros, um certo número de operações em seus próprios corpos,
almas, pensamentos, conduta e modo de ser, de modo a transformá-los
com o objetivo de alcançar um certo estado de felicidade, pureza,
sabedoria, perfeição ou imortalidade.
saudáveis, entre os normais e os anormais? Se queremos mudar o poder de Estado, é preciso mudar as
diversas relações do poder que funcionam na sociedade. Se não, a sociedade não muda. Por exemplo, na
URSS, a classe dirigente mudou, mas as antigas relações de poder permaneceram. O que é importante são
essas relações de poder que funcionam independentemente dos indivíduos que têm o poder de Estado”. 5 Alfredo Veiga-Neto (2005), ao analisar a concepção de governo na obra de Michel Foucault, propõe a
utilização do termo governamento quando o governo se refere à ação ou ato de governar. Dessa forma,
marcar a diferença entre governo e governamento é fundamental para estabelecer a distinção proposta por
Foucault entre aquilo que é a instância governamental e a ação de governar. 6 É digno de nota que esse “si” a que o autor se refere não remete a nenhuma substância, a nenhuma
interioridade, mas a uma reflexividade prática: uma maneira de se relacionar consigo mesmo para se
construir, se elaborar. Esse “si” não é espontâneo ou natural, mas histórico e culturalmente contingente
(GROS, 2008).
14
Essas tecnologias são importantes para o governo dos outros, para a estruturação do
eventual campo de ação dos outros, pois, como indica a analítica de poder foucaultiana, o
governo de si é o próprio operador da governamentalidade atual (FOUCAULT, 2010b). Se
na sociedade disciplinar – tão bem analisada por Foucault (2003a) em Vigiar e Punir – o
controle era exercido a partir de instituições fechadas, na atualidade tal controle passa a ser
exercido “ao ar livre”, ou seja, o controle disciplinar estabelecido pela vigilância do outro é
substituído pelo controle “interno” de cada pessoa (SÁNCHEZ; RICO; MARTÍNEZ,
2004).
Trata-se de uma incitação à responsabilidade pessoal sobre a sua vida. É preciso ser
competitivo, flexível e preservar um determinado estilo de vida. Ou seja, somos (ou
deveríamos ser) participantes ativos de nossas vidas. Em suma, a atualidade, chamada por
Deleuze (1992a) de sociedade de controle, funciona ao modular permanentemente a
experiência de si para empregá-la a seu favor, conectando os objetivos e ambições pessoais
com os objetivos socialmente valorizados: consumo, enriquecimento e ordem social. Nesse
caso, o controle não se estabelece pela coerção, mas, pela persuasão das imagens de vida e
de eu que oferecem.
Portanto, na tecnologia de governo (neo)liberal, para se governar os outros é
imperioso moldar as tecnologias de si, visto que o controle está em assumir e seguir uma
determinada identidade. É preciso se vincular a alguma categoria identitária para vir a ser
alguém: homem, mulher, travesti, transexual... E para cada um desses segmentos há
normas de condutas, estilos de vida apropriados, desejos específicos. A identidade – seja
sexual, de gênero, de raça, de classe social ou profissional etc. – se torna uma prática
regulatória que busca governar as pessoas a partir das características que as definem como
um “eu” (ROSE, 2001a). É dessa forma que o governo de si se integra a uma prática de
governo dos outros.
Nesta tese, parto do pressuposto de que a Portaria do Nome Social se configura
como uma política de governo dos outros, no caso, travestis e transexuais. É relevante
notar que ela não é direcionada para todas as pessoas, mas somente para travestis e
transexuais. Ou seja, há um interesse em governar essas categorias identitárias. Por quê?
Por que incluir nas escolas travestis e transexuais?
No atual cenário neoliberal, a inclusão é um imperativo para manutenção de
todos/as na rede de mercado e a educação encarna um dos papéis fundamentais nessa
história (ROOS, 2009). Não é produtivo que uma parcela considerável da população – por
15
exemplo, pessoas com deficiência, travestis e transexuais – fique apartada, enclausurada ou
na marginalidade A escola, instituição na qual as pessoas (de preferência, todas as pessoas)
frequentam por um tempo considerável de suas vidas, apresenta-se como espaço
privilegiado para o gerenciamento da população.
Além disso, a educação escolarizada vem adquirindo cada vez mais importância na
vida social. “A educação é um direito de todos e um dever do Estado [...]”, assevera a
Constituição Brasileira de 1988. E o Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990
reafirma a escola como um direito da criança e do adolescente e um dever social e familiar.
Porém, travestis e transexuais usufruem desse direito? Houve um retorno ou permanência
da população trans após a vigência da Portaria do Nome Social?
Portanto, o objetivo da presente pesquisa é analisar os efeitos da política do nome
social como estratégia de inclusão escolar de travestis e transexuais. Almejamos, com isso,
identificar as relações de poder e as possíveis práticas de resistência na efetivação dessa
política no cotidiano de seu público-alvo.
A tese defendida é que a inclusão escolar da diversidade de modos de viver (sexual,
de gênero, racial, de pessoas com deficiência etc.) depende de múltiplos fatores, sendo as
políticas de inclusão existentes, entre as quais a do nome social, apenas um dentre esses
muitos aspectos. Em contrapartida, tal estratégia legislativa provoca efeitos de subjetivação
diversos, gerando processos de capturas identitárias ao mesmo tempo em que ensaiam
possibilidades de resistência.
Para apresentar tais considerações, o texto segue como linha-mestra a noção de
genealogia utilizada por Foucault (2000a), para quem a pesquisa genealógica consiste em
problematizar o processo de naturalização dos objetos e dos sujeitos. Percorro assim, os
três domínios que caracterizam a obra do autor: o domínio dos discursos que inventam
sujeitos, ou seja, os saberes que criaram a travestilidade e a transexualidade; o domínio das
práticas que regulam as condutas; e o domínio da ética, que correlaciona saberes e poderes
que produzem os modos de subjetivação, destacando as técnicas de si mediante as quais
travestis e transexuais se elaboram enquanto sujeitos dessa sexualidade (FOUCAULT,
2006a; 2010c).
O primeiro capítulo, no qual a noção de genealogia é aprofundada, tem por objetivo
apresentar os procedimentos utilizados nesta pesquisa. Nele apresento os caminhos
percorridos em busca tanto das pessoas envolvidas no processo de elaboração da Portaria
16
do Nome Social quanto do público que poderia usufruir de seus efeitos, ou seja, de
travestis e transexuais.
É importante sinalizar que após o capítulo metodológico não há separação entre
capítulos teóricos e analíticos. As referências consultadas e os elementos produzidos na
inserção do campo-tema (SPINK, P., 2003) se entrelaçam ao longo do texto. Além disso,
os capítulos são estruturados a partir de interlúdios, pequenas histórias que dão o tom e as
pistas das considerações por vir. Com efeito, são essas histórias, fruto do meu encontro
com diversos interlocutores, que animam as análises desenvolvidas.
O segundo capítulo é dedicado aos saberes que inventam a travestilidade e
transexualidade. Apresentam-se os discursos e as práticas que objetivam essas experiências
identitárias, transformando-as em um problema, em uma questão. O dispositivo da
sexualidade analisado por Foucault (2003b) no primeiro volume de sua História da
sexualidade é o ponto de partida para a produção das identidades sexuais, entre elas a
travesti e a transexual, tendo por base a crença de que reside no sexo a suposta “essência”
do ser humano.
Elegemos três regimes de verdade que atualizam o dispositivo de sexualidade, ou
seja, que continuam a inventar a travestilidade e a transexualidade: a medicina, a
psicologia e a dificuldade de alteração do nome na documentação civil. A medicina captura
as experiências travestis e transexuais como patológicas; a psicologia, além de reafirmar o
diagnóstico médico, coloca-se, muitas vezes, a serviço da regulação das existências tendo
uma suposta “normalidade” como guia de ação; e o problemático processo de alteração do
nome civil que reafirma a vinculação entre sexo-gênero-sexualidade-desejo a partir da
heteronormatividade.
O terceiro capítulo tem por foco analisar a Portaria do Nome Social, compreendida
como uma estratégia de governamentalidade. Primeiramente, abordaremos a própria noção
de governamentalidade, apontando as três principais formas identificadas por Foucault
(2008a; 2008b): uma proto-governamentalidade caracterizada pelo poder pastoral, a
governamentalidade presente na razão de Estado, e a governamentalidade (neo)liberal. Em
seguida, o foco se volta para as políticas que visam à inserção sobre a diversidade sexual
no âmbito educacional, uma vez que estas formam as condições de possibilidade para a
emergência de uma legislação cujo alvo é a inclusão escolar de travestis e transexuais. Por
fim, apresento o processo de formulação da Portaria do Nome Social, assim como as
17
oposições e dificuldades de implementação encontradas nessa tentativa de governo das
experiências trans.
O quarto capítulo se volta mais especificamente aos efeitos da legislação em
questão. Tais efeitos não se reduzem à almejada inserção do seu público-alvo nas escolas;
incluem também o seu potencial em produzir modos de subjetivação. Tal política é o
disparador para se percorrer a dobra analítica entre o governo de si e o governo dos outros
no que se refere à vida de travestis e transexuais.
O que procuro apresentar é que a política em questão cria zonas de tensão entre
estratégias de normalização das formas de viver e as práticas de resistência a elas
direcionadas. A autorização do uso do nome social remete, por um lado, à luta pelo direito
à diferença, de efetivar outros modos de ser diferentes dos hegemônicos (homem X
mulher). Entretanto, tal política também é enredada ao dobramento do poder, uma vez que
força o sujeito a se voltar para si próprio e assim, a assumir uma identidade de modo
coercitivo (FOUCAULT, 2010b).
Dessa forma, a portaria tem efeitos políticos importantes ao mostrar uma
preocupação com a escolarização das pessoas trans. A Portaria do Nome Social pode ser
pensada como uma resistência à produção da travestilidade e transexualidade como
patologia moral e, portanto, àqueles e àquelas acometidos/as por essa “doença” só caiba
ocupar lugares marginalizados, seja na prostituição ou subempregos. Em contrapartida,
pode produzir efeitos de poder normalizadores ao aceitar tais experiências subjetivas
contanto que estejam de algum modo reguladas pelos dispositivos neoliberais de controle.
Em suma, esta tese questiona sobre os limites e as potencialidades envolvidas na
política de inclusão escolar em análise. Em última instância, esta pesquisa trata das
transformações e da manutenção de formas de viver, do governo de si e dos outros, das
práticas de capturas que governam a vida e das possíveis formas de resistência às relações
de poder normalizadoras.
18
CAPÍTULO 1
A TRAJETÓRIA DE UMA GENEALOGIA
As verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são.
Friedrich Nietzsche
Com Foucault (2000a) não se pode trabalhar com a ideia de que as coisas tenham
uma origem histórica que deve ser buscada. A procura de uma origem pressupõe a
existência de algo essencial, algo à espera de ser encontrado. Dessa forma, é herdeiro de
Nietzsche (2009) e de sua obstinada recusa à pesquisa da origem. Esta se esforça para
recolher a essência exata das coisas, sua forma imóvel e anterior a tudo o que é externo,
acidental e sucessivo. Tenta reencontrar o “aquilo mesmo” e deseja retirar todas as
máscaras para desvelar enfim uma identidade primeira.
Fazendo referência à obra nietzschiana O andarilho e sua sombra, Foucault (2000a,
p. 18) nos diz que a história, tal como concebida pelo filósofo alemão, ensina a rir das
solenidades de origem:
A alta origem é o “exagero metafísico que reaparece na concepção de que
no começo de todas as coisas se encontra o que há de mais precioso e de
mais essencial”: gosta-se de acreditar que as coisas em seu início se
encontram em um estado de perfeição; que elas saíram brilhantes das
mãos do criador, ou na luz sem sombra da primeira manhã.
Portanto, a busca da origem – da essência, da verdade etc. – não está nos horizontes
de pretensão da presente pesquisa. Com Nietzsche (1974) podemos afirmar que as
verdades são valores que esqueceram seu passado de ponto de vista e se transformaram em
verdade. Para o filósofo, cada valor é simplesmente uma avaliação que se impôs, se
alastrou e se tornou hegemônica. Em outros termos, na filosofia nietzschiana, a verdade é
resultado de um ponto de vista, mas se apresenta como absoluta, necessária, autônoma,
suprema. Oculta-se sua origem prosaica, metafórica e diz ser tudo aquilo que não é:
universal, abstrata, independente de quem a enuncia.
Daí a crítica severa do filósofo alemão à ciência e à sua pretensão de descobrir algo
que ela mesma faz existir. Todo o conhecimento tem uma forma humana
(demasiadamente), mas lhe atribuímos uma universalidade. Trata-se de uma presunção
19
antropocêntrica, uma desmesura humana na ênfase que dá à sua visão do mundo, tendo a
própria humanidade como medida de todas as coisas. Como diz Nietzsche (1974, p. 58):
“Quando alguém esconde uma coisa atrás de um arbusto, vai procurá-la ali mesmo e a
encontra, não há muito que gabar nesse procurar e encontrar: e é assim que se passa com o
procurar e encontrar da ‘verdade’ no interior do distrito da razão”.
A pesquisa genealógica, portanto, não se destina a procurar o segredo essencial e
sem data, mas sim, objetiva evidenciar que as coisas não têm essência ou que essa suposta
essência foi construída historicamente. Ou seja, a genealogia problematiza o processo de
naturalização dos objetos e dos sujeitos. Como nos diz Foucault em A verdade e as formas
jurídicas: “as condições políticas, econômicas de existência não são um véu ou um
obstáculo para o sujeito de conhecimento, mas aquilo através do que se formam os sujeitos
de conhecimento e, por conseguinte, as relações de verdade” (FOUCAULT, 2005, p. 27).
Em O sujeito e o poder, Foucault (2010b) afirma que a constituição do sujeito
moderno foi o tema geral de sua preocupação filosófica. Portanto, o objeto privilegiado das
pesquisas do autor está na genealogia do sujeito moderno a partir de uma série de práticas
históricas de objetivação e de subjetivação. Por objetivação, entende-se os processos pelos
quais o ser humano é constituído enquanto um objeto, seja por meio do discurso científico,
por procedimentos disciplinares, de regulação etc. Já os processos de subjetivação são as
práticas que fazem do ser humano um sujeito preso a uma identidade que lhe é atribuída
como própria (FONSECA, 2011).
De maneira geral, Foucault (2010b) sistematiza sua genealogia do sujeito moderno
a partir de três domínios: 1) Domínio denominado com arqueologia do saber, no qual o
interesse está centrado nas práticas epistêmicas que objetivam o ser humano como sujeito
da razão; 2) Domínio caracterizado por genealogia do poder, no qual o autor analisa a
objetivação do sujeito a partir de “práticas divisoras” que individualizam os sujeitos em
torno de um eixo de normalização que separa o louco do são, o doente do saudável, o
sexualmente normal do perverso; 3) E o domínio da ética, este destinado à análise das
práticas de si por meio das quais um ser humano torna-se um sujeito, tomando a si próprio
como objeto de saber e de poder.
Tentei destacar três grandes tipos de problemas: o da verdade, o do poder
e o da conduta individual. Esses três grandes domínios da experiência só
podem ser entendidos uns em relação aos outros, e não podem ser
compreendidos uns sem os outros (FOUCAULT, 2010d, p. 253).
20
Dito isto, ressalta-se que o terceiro domínio foucaultiano não ignora ou abre mão
dos domínios anteriores. Pelo contrário, a subjetivação se estabelece entre as técnicas de
governo dos outros (saber e poder) e as técnicas de governo de si. Tais práticas de si não
são fruto de algo inerente ao indivíduo, mas sim, “esquemas que ele encontra em sua
cultura e que lhe são propostos, sugeridos, impostos por sua cultura, sua sociedade e seu
grupo social” (FOUCAULT, 2004, p. 276).
A governamentalidade de travestis e transexuais, fruto da articulação do governo
dos outros e do governo de si, produtora dos modos de subjetivação, será o foco da
presente pesquisa. Ou seja, investigar a transexualidade e a travestilidade a partir dos três
eixos que as constituem: os domínios de saber que as inventam, os sistemas de poder que
regulam suas condutas e as formas de subjetivação mediante as quais travestis e
transexuais se elaboram enquanto sujeitos dessa sexualidade (FOUCAULT, 2006a).
Com efeito, levou-se em consideração um duplo movimento: de um lado o processo
de objetivação da travestilidade e da transexualidade por meio da rede de saberes e das
relações de poder que as constituíram enquanto modos de ser específicos, de onde se retira
um conhecimento a partir do qual se investe em técnicas de governo; de outro lado,
destaca-se os procedimentos de subjetivação de travestis e transexuais capazes de colocá-
los/las em relação consigo próprio/a. Isto é, deve-se pensar nos processos que tomam essas
experiências como objeto de conhecimento e alvo de investimentos de governo, assim
como nas táticas que promovem a autorreflexão, a auto-observação, o autoconhecimento,
que tomam tais modos de ser como sujeitos de um determinado tipo, subjetivando-os como
“travestis” ou “transexuais”.
A história, genealogicamente dirigida, não tem por fim reencontrar as
raízes de nossa identidade, mas ao contrário, se obstinar em dissipá-la; ela
não pretende demarcar o território único de onde nós viemos, essa
primeira pátria a qual os metafísicos prometem que nós retornaremos; ela
pretende fazer aparecer todas as descontinuidades que nos atravessam
(FOUCAULT, 2000a, p. 34).
Com o intuito de fazer aparecer as descontinuidades que atravessam o campo dessa
pesquisa, apresento a trajetória percorrida organizada da seguinte forma: 1.1) deixando-se
afetar pelo campo-tema; 1.2) sobre as entrevistas; 1.3) interação com os registros; 1.4)
considerações éticas.
21
1.1 Deixando-se afetar pelo campo-tema
Peter Spink (2003) desenvolve o conceito de “campo-tema” para propor que o
campo da pesquisa (ou a pesquisa de campo) não inicia somente quando o/a pesquisador/a
sai de sua casa para entrevistar, observar, participar de uma determinada ação. O campo da
pesquisa começa quando nos vinculamos à temática estudada.
Como nos interessamos por um dado tema? Quando começa a pesquisa
propriamente dita? É difícil saber, de forma clara e precisa, o momento a partir do qual
passamos a nos interessar por um determinado assunto, ou o lugar que produziu em nós a
vontade de saber e de investigar o que nos instiga. Há uma vinculação fundamental entre o
tema estudado e o campo de pesquisa e, para percebê-la, basta estarmos abertos/as para
deixar-se afetar pelos elementos que compõem esse campo-tema.
Usar a perspectiva do campo-tema não pressupõe que eu seja capaz de abarcar
todos os elementos do tema “o uso do nome social como estratégia de inclusão escolar de
travestis e transexuais”, ou que este seja um instrumento finalmente eficaz para a
dissolução da dicotomia sujeito que pesquisa versus objeto pesquisado. Entretanto, é uma
ferramenta de pesquisa que possibilita deixar-se afetar pelos diversos agenciamentos que o
tema invoca. Matérias da imprensa, informações veiculadas pelos meios de comunicação,
mídias sociais, filmes, documentários, músicas, programas de televisão, autobiografia de
transexuais, blogs e sites de grupos de travestis e transexuais, charges (especialmente a
série Muriel/Hugo do cartunista Laerte7), livros, artigos, dissertações e teses consultadas,
conversas, conversas sobre estas conversas, além das anotações e sensações registradas em
diário de campo. Tudo isso, além de tantos outros elementos, fez parte do campo-tema
dessa pesquisa.
Nesse sentido, estamos sempre potencialmente no campo de nossa investigação,
uma vez que o campo não é um lugar específico, delineado, para o qual nos deslocamos.
Um assunto, antes estranho, passa a ser paulatinamente mais familiar devido aos contatos
estabelecidos. Tais contatos podem proceder de formas mais intencionais ou casuais, como
receber de um amigo a letra de uma música que trata de uma travesti ou assistir a um
7 O cartunista Laerte Coutinho criou uma série chamada Muriel/Hugo, na qual apresenta as histórias de um
homem que passa a assumir uma identidade feminina. Muriel/Hugo brinca com os estereótipos de gênero
uma vez que exagera e imita a performance feminina e masculina. É digno de nota que o próprio cartunista
passou, desde 2009, a usar roupas e assessórios femininos.
22
programa de televisão que alude à questão. Peter Spink (2003) fala sobre as posições que
podemos estar no campo-tema, ora mais densas ora mais periféricas:
Nada acontece num vácuo; todas as conversas, todos os eventos, mediados
ou não, acontecem em lugares, em espaços e tempos, e alguns podem ser
mais centrais ao campo-tema de que outros, mais accessíveis de que outros
ou mais conhecidos de que outros. Algumas conversas acontecem em filas
de ônibus, no balcão da padaria, nos corredores das universidades; outras
são mediadas por jornais, revistas, rádio e televisão e outras por meio de
achados, de documentos de arquivo e de artefatos, partes das conversas do
tempo longo presentes nas histórias das ideias. Alguns até podem acontecer
com hora marcada, com blocos de anotações ou gravadores (SPINK, P.,
2003, p. 29).
No intuito de adentrar em regiões mais densas da temática pesquisada, recorri a
conversas – com hora marcada, bloco de anotações e gravador de voz – com pessoas
consideradas informantes privilegiados para a pesquisa. Nas próximas páginas, portanto,
apresento os passos percorridos no campo-tema. Não apenas os elementos que chegaram
até mim, mas principalmente, apresentarei os caminhos e descaminhos percorridos em
busca das pessoas com as quais considerei fundamental encontrar. São os detalhes dessa
trajetória, com seus desvios, atalhos, ultrapassagens, paradas e alguns atropelos que
compartilho a seguir.
1.1.1 Nas entrelinhas da elaboração da Portaria do Nome Social
Meu primeiro movimento foi entender as relações de forças que culminaram na
promulgação da Portaria Estadual nº 16/2008-GS, o incidente crítico8 dessa investigação.
Portarias são atos administrativos expedidos pelos chefes de órgãos que, geralmente,
contêm instruções acerca de aplicação de leis ou regulamentos, aprovação de documentos
de caráter interno etc. A Portaria em questão foi assinada pela secretária de Educação da
época. As portarias possuem fundamento de validade em decretos, estes privativos do
chefe do Poder Executivo (presidente da República, governador e prefeito). A Portaria do
Nome Social foi posteriormente validada pelo Decreto nº 1.675, que amplia a permissão do
uso do nome social de travestis e transexuais em todos os órgãos da administração pública
do Estado do Pará.
8 Inspirando-se na Teoria Ator-Rede, o conceito de incidente crítico pode ser definido como um evento que
dá visibilidade às diferentes posições de atores sociais situados em uma controvérsia e às possibilidades de
negociação entre eles (GALINDO; RIBEIRO; SPINK, 2007).
23
Para entender o processo de formulação dessa legislação e principalmente o
pioneirismo do Pará em uma ação dessa natureza, fui em busca de informantes
privilegiados. Essa etapa foi realizada durante o segundo semestre de 2010.
Minha inserção no campo-tema já me dava algumas pistas por onde começar a
investigar a formulação da Portaria. Sabia que a mesma havia sido uma ação da Secretaria
de Educação do Estado do Pará (Seduc) em 2008, quando Cláudia Farias, uma mulher
transexual9, era assessora da secretária de Educação em exercício.
Eu já conhecia a Cláudia. Durante todo o período da graduação e do mestrado em
Psicologia na Universidade Federal do Pará (UFPA) encontrava aquela mulher alta, um
pouco diferente da maioria das mulheres do Norte do Brasil (que têm uma estatura média
mais baixa), pelos corredores do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Ela é
funcionária da UFPA e exerceu várias funções, principalmente locada neste Instituto.
Devido à sua previsível importância na elaboração da Portaria, assim como pela
facilidade de acesso, foi por Cláudia que iniciei as conversas nessa primeira fase da
pesquisa. No dia combinado, ela me recebeu na secretaria da Pós-Graduação em
Antropologia da UFPA, local onde atualmente trabalha, e falou sobre a rapidez do
processo de produção da Portaria do Nome Social. O fato de ela, uma mulher transexual,
ocupar um cargo privilegiado na Seduc se mostrou como um fator determinante para a
criação dessa legislação.
Depois, fui em busca dos órgãos do Estado que estavam ligados à temática. Dessa
forma, conversei com a coordenadora da Diretoria de Ensino para a Diversidade, Inclusão
e Cidadania (DEDIC) da Seduc e com o coordenador da Coordenadoria de Proteção à
Livre Orientação Sexual (CLOS) da Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos
(Sejudh), departamento responsável pelos assuntos referente à diversidade sexual do
Estado.
Como recentemente havia sido inaugurado o Centro de Referência de Prevenção e
Combate à Homofobia do Pará10
, resolvi entrar em contato e consegui conversar com o
assessor de articulação de tal órgão, que, por sinal, é um homem transexual.
9 Quando me refiro a uma mulher transexual, estou levando em consideração a identidade requerida pela
pessoa, independente do sexo biológico. Ou seja, uma mulher transexual é aquela pessoa que nasceu com um
corpo considerado masculino, mas constrói uma identidade feminina para si. 10
Centro de Referência de Prevenção e Combate à Homofobia do Pará, através de um convênio firmado com
a Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH) da Presidência da República e a Defensoria Pública do
Estado do Pará.
24
A partir daí, fui em busca de uma aproximação com os movimentos sociais. Entrei
em contato com um integrante do Movimento LGBT do Estado do Pará que, tendo tomado
conhecimento de minha pesquisa se prontificou a participar, e com o Grupo de Resistência
Travesti e Transexual da Amazônia (GRETTA). Falei com a presidente do grupo, uma
mulher transexual, que informou sobre a pouca articulação do movimento na formulação
da portaria, mas enfatizou a mobilização do grupo na fiscalização do cumprimento dessa
norma nas escolas. Desse modo, no total, estabeleci conversas com seis pessoas ligadas,
direta ou indiretamente, à formulação da Portaria do Nome Social.
O objetivo dessa primeira fase da pesquisa foi entender os elementos em jogo na
formulação de uma legislação que traz o benefício do uso do nome para aqueles/as que já
não se reconhecem com o nome inscrito em seus documentos civis. Ou seja, foi buscar os
nós das redes de relações que culminaram na elaboração da Portaria Estadual nº 016/2008-
GS. Por isso, investiguei a conexão de uma série de dispositivos visando entender o
pioneirismo do Pará em uma decisão dessa natureza. Em resumo, essa etapa proporcionou
entender os mecanismos e as relações de forças que objetivaram a formulação da
legislação em questão.
Neste movimento, as maiores dificuldades foram contatar alguns/mas informantes.
Na maioria das vezes, marcava os encontros previamente por telefone e ia ao encontro
dos/as informantes nos locais mais cômodos para eles/as, geralmente o local de trabalho.
Quando não conseguia contatar por telefone, ia até o local, apresentava-me e pedia um
pouco do tempo para conversar sobre a pesquisa. Nos ambientes mais restritos, como na
Seduc, foi preciso pedir ajuda de colegas que conheciam pessoas que trabalhavam lá para
poder ter acesso a algumas informações importantes. Todas as conversas foram gravadas e
depois transcritas. A exceção foi a entrevista realizada com a coordenadora da DEDIC, que
apesar de consentir a utilização da entrevista na pesquisa (assinando, inclusive, o termo de
consentimento livre esclarecido), não autorizou o registro em áudio.
É digno de nota que as informações produzidas nesses encontros vão permear
vários momentos dessa tese, porém, serão particularmente abordadas no Capítulo 3, no
qual será analisada a formulação da Portaria do Nome Social como uma política pública
educacional, ou seja, como uma estratégia de governamentalidade.
25
1.1.2 Encontros e desencontros com as histórias de travestis e transexuais
Realizada a primeira etapa da pesquisa, parti em busca de travestis e transexuais
que cursam o ensino fundamental ou médio da rede pública de ensino, com o objetivo de
compreender os efeitos da autorização do uso do nome social entre eles/as.
Durante o segundo semestre de 2011, passei a estabelecer contato com as
participantes por meio de diferentes vias. O ponto de partida foi o GRETTA. No contato
anterior com a presidente do grupo, percebi que este era um espaço privilegiado para ter
acesso a travestis e transexuais, uma vez que conta com cerca de 80 associadas (travestis
ou transexuais femininas), sendo o grupo de maior representatividade dessa população no
Estado.
Dessa forma, entrei em contato com a presidente do grupo e marquei um encontro
para apresentar a pesquisa no escritório onde trabalha uma integrante do GRETTA, Laura,
que também participou da reunião. Elas gostaram muito da iniciativa da pesquisa e
prontamente se prontificaram ajudar. Porém, infelizmente não conheciam nenhuma travesti
ou transexual que ainda estivesse na escola. Perguntei se sabiam de alguma escola que
geralmente recebe essa população e novamente a resposta foi negativa. Mas se
comprometeram em pesquisar, seja entre as pessoas conhecidas ou indo às ruas conversar
com as que se prostituem. Saí desse encontro feliz com a parceria firmada.
Nos contatos realizados posteriormente, elas me informaram não ter conhecimento
de travestis ou transexuais ainda estudando, com exceção de Raica, uma travesti que voltou
a estudar após a vigência da Portaria. Portanto, meu próximo passo seria contatá-la. Algo
que se revelou bastante complicado. Todos os telefones indicados para falar com Raica
sempre estavam fora de área de serviço. A questão do contato telefônico é problemática
devido às frequentes mudanças do número por causa dos não menos frequentes assaltos
sofridos.
Paralelamente à busca de Raica, continuei a procurar outras pessoas na mesma
situação. Como estava organizando um seminário sobre diversidade sexual e educação em
conjunto com o GRETTA, constantemente estava no local de trabalho de Laura, lugar que
funciona, ainda que informalmente, como um ponto de encontro ou mesmo sede do
GRETTA. Trata-se do escritório de um deputado federal para o qual Laura trabalhava
como assessora. Em um desses momentos, aparece Jenifer, uma travesti, toda molhada da
26
forte chuva que caía em Belém. Perguntei se ela poderia dedicar alguns minutos para
conversar comigo sobre sua vida. Em uma sala reservada, com um gravador na mão,
apresentei a pesquisa e passamos muito tempo falando sobre a sua vida, a escola, o
trabalho, a prostituição etc.
Como não conseguia encontrar possíveis participantes da pesquisa que cursavam o
ensino fundamental ou médio, passei a contatar aquelas que estavam cursando o ensino
superior. Pelo GRETTA, consegui o contato da Brenda, estudante de Direito de uma
universidade particular de Belém. Além dela, falei com Leila, jovem estudante de
Psicologia que eu já conhecia pelos corredores da graduação do curso. As entrevistas com
as duas jovens foram feitas nas respectivas universidades onde estudam.
Nessas três primeiras entrevistas, com pessoas que já haviam passado pela escola,
uma informação foi recorrente: elas não eram travestis ou transexuais durante os anos da
escola. Elas se identificavam na época como homens gays, ou seja, elas falaram de suas
lembranças escolares como um rapaz gay, mas ainda não como travesti ou transexual. Tais
identificações só se concretizaram após o período escolar.
As histórias relatadas foram tão interessantes que resolvi não atrelar a pesquisa
somente com aquelas que estavam na escola ou fazendo faculdade. Se o objetivo da
pesquisa é investigar os efeitos da Portaria do Nome Social entre travestis e transexuais,
logo, é importante escutar uma variedade de pessoas que vivenciam tais experiências
identitárias: as que estudam e as que não estudam mais, as que terminaram o ensino médio
e as que abandonaram a escola, as que desejam se graduar e as que estão na prostituição...
A partir dessa nova configuração, a presidente do GRETTA me forneceu uma lista
com o contato telefônico de mais de 80 associadas do grupo. Porém, optei por não utilizá-
la. Achei pouco confiável discar um número aleatório e marcar um encontro. Preferi
realizar a técnica snowball (bola de neve), na qual cada pessoa entrevistada indica outras
que poderiam participar da pesquisa. Dessa forma, pedi a Jenifer, Brenda e Leila, as três
primeiras participantes da pesquisa, que sugerissem outras travestis ou transexuais para
participarem da pesquisa. A partir do número telefônico indicado, entrava em contato com
outras possíveis participantes.
Porém, o procedimento de snowball não funcionou como o esperado. O contato via
telefone foi difícil, pois muitas vezes os números informados não eram mais das pessoas
procuradas, ou ninguém atendia as ligações ou estava permanentemente fora da área de
serviço. Consegui falar com duas pessoas indicadas. Apresentei-me como pesquisadora,
27
disse quem havia me informado seu número, explicava os objetivos da pesquisa e
finalmente perguntava sobre a disposição e interesse de participar como informante dessa
investigação. Uma delas se mostrou resistente e disse que retornaria a ligação quando
tivesse disponibilidade de tempo. Esta nunca ligou. A outra, prontificou-se a participar,
porém, ela não compareceu nos dois encontros marcados. Procurando sempre respeitar as
questões éticas que indicam que a decisão de participar ou não do estudo cabe ao
participante, não voltei a procurá-la para uma terceira tentativa.
Esse processo foi sofrido, pois queria muito conhecer a vida dessas pessoas. E
passei a questionar o motivo de tantas faltas. Penso que o desencontro estava nos interesses
envolvidos. Para mim era fundamental ouvi-las, conhecer suas vidas, as dificuldades e
alegrias, a trajetória escolar etc. Mas, o que elas ganhavam com isso? Percebi que as
pessoas que aceitavam participar da pesquisa estavam engajadas no movimento LGBT e
viam na pesquisa um instrumento político, uma produção acadêmica que poderia ajudar na
visibilidade de seus estilos de vida e assim, na diminuição do preconceito que sofrem. Em
contrapartida, as que não iam aos encontros marcados, não estavam tão diretamente
vinculadas ou simplesmente ignoravam a existência de tal movimento, não percebendo
nenhuma vantagem em participar ou não do estudo.
Devido os problemas apresentados, optei por outras técnicas de aproximação com o
público-alvo da pesquisa diferentes do snowball. Assim, tentei me inserir nas reuniões
quinzenais do GRETTA, porém, iam sempre as mesmas pessoas. As organizadoras
ficavam se desculpando, dizendo que haviam chamado “as meninas” (como elas se referem
às travestis e transexuais do grupo), mas que as mesmas não compareciam. A presidente do
grupo chegou a dizer que sentia pena de mim, pois elas (incluindo ela mesma) eram muito
difíceis. Justifica a dificuldade em participar dos encontros principalmente em decorrência
do trabalho noturno na prostituição. Em algumas etnografias com travestis, tal como a
realizada por Larissa Pelúcio (2005), percebe-se o quanto elas não circulam livremente
pela cidade, restringindo-se aos espaços nos quais exercem sua profissão. Como nos fala o
dito popular: à noite todos os gatos são pardos. Ou seja, sem a luminosidade do dia, fica
mais fácil circular pelas ruas sem ser alvo de tantos olhares, preconceitos e até mesmo
violência.
Durante esse processo de procura por participantes, foi realizada em Belém a II
Conferência Estadual de Políticas Públicas e Direitos Humanos de Lésbicas, Gays,
28
Bissexuais, Travestis e Transexuais11
. Laura, como uma das organizadoras da referida
Conferência, inscreveu meu nome como delegada no evento. Para mim, foi uma
excelente oportunidade para realizar entrevista com várias pessoas que antes não
conseguia acessar.
Neste ano, 2011, a pauta da referida conferência girava em torno da efetivação do
programa “Pará sem homofobia”, principalmente no que se refere ao combate à violência
contra a população LGBT, e de algumas propostas em direção ao que se convencionou
chamar de “Educação sem homofobia”. Apesar dessa discussão estar na pauta da
conferência, pouco se debateu sobre a efetivação do uso do nome social de travestis e
transexuais nas escolas públicas.
Antes de iniciar a conferência, Laura me apresentou para várias possíveis
participantes da pesquisa. Foi um evento importantíssimo para mim, pois pude conversar
com várias travestis e transexuais. Uma, ao saber do tema da pesquisa, foi à minha procura,
pois, segundo ela, tinha muito a dizer sobre a vida escolar de uma transexual.
No total, realizei seis entrevistas durante a Conferência. Porém, só utilizarei três por
considerá-las mais completas e relevantes para os objetivos dessa tese. As demais
ocorreram de forma mais rápida do que gostaria, durante os intervalos da programação do
evento, e acabaram enveredando por assuntos outros. As histórias selecionadas, portanto,
foram a de Raica, a já citada travesti que voltou a estudar após a vigência da Portaria do
Nome Social; a de Babete, uma transexual que chegou a estudar o ensino médio e a
trabalhar em um prostíbulo simultaneamente; e a de Valesca, uma jovem transexual que
faz graduação em Biologia no interior do Estado do Pará.
Interlúdio 1: O caso Soares
Até aqui, concentrei-me em apresentar o meu movimento em direção às
informantes para a pesquisa: as diversas investidas em conseguir contatos e
entrevistas. Pois agora, apresento o que chamei de “caso Soares”. Mais do
que um caso, foi fruto do acaso que a imersão no campo-tema potencializou. 11
As conferências estaduais e nacionais são espaços de diálogo com a sociedade visando a construção de
políticas públicas. Tal prática foi iniciada no governo Lula e continuada no governo Dilma. A conferência
realizada em Belém foi uma ação do Conselho Estadual da Diversidade Sexual e pela Coordenadoria de
Proteção à Livre Orientação Sexual (CLOS), da Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos
(SEJUDH).
29
23 de setembro de 2011, final de tarde de uma sexta-feira. Estava a
caminho de uma loja para comprar uma cadeira de escritório mais confortável
para escrever esta tese. Passando por uma importante avenida de Belém,
fiquei parada no engarrafamento, típico desse horário, em frente a uma escola
da rede estadual de ensino. O que me chamou a atenção foi a presença de um
aluno (ou seria uma aluna?), aparentemente do “sexo masculino”, mas que
portava acessórios e características consideradas socialmente como
femininas: cabelos grandes, unhas pintadas, brincos e maquiagem.
Como relatado acima, sempre que eu perguntava às pessoas do
movimento LGBT, mais especificamente às integrantes do GRETTA, elas me
diziam que não conheciam travestis ou transexuais nas escolas. Já tinha quase
perdido as esperanças de conseguir entrevistar pessoas que ainda estivessem
cursando o ensino fundamental ou médio.
Mas estava ali, diante de mim, este/a estudante uniformizado/a em frente
à escola. Hesitei em descer do carro. “Como eu iria abordar essa pessoa? O
que vou dizer? Onde vou conseguir estacionar? Até achar uma vaga, com o
transito caótico dessa cidade, ele/ela já vai ter saído de lá!” Mas não podia
deixar escapar essa oportunidade. Desci do carro e fui ao encontro dele/a, que
já estava se deslocando, em companhia de uma amiga. Quando o/a alcancei,
apresentei-me como professora e pesquisadora. Perguntei seu nome, ao que
me respondeu apenas com seu sobrenome: Soares. Expliquei rapidamente os
objetivos da pesquisa, uma vez que estávamos no meio de uma calçada
rodeada de pessoas que andavam apressadas. Ele/a demonstrou interesse em
participar da pesquisa e prontamente me deu o seu telefone para marcamos
um encontro.
Estava muito feliz. Gostei de ter encontrado alguém que até então não
tinha tido acesso. Não sabia como defini-lo: travesti, transexual, gay
afeminado ou um rapaz com acessórios femininos? Pouco importava. O
importante de fato era a possibilidade de conversar com ele/a e entender como
funcionava sua vida escolar.
Na segunda-feira, como combinado, telefonei e marcamos um encontro.
Seria para o outro dia, em uma praça bem movimentada de Belém. Perto do
30
horário agendado, liguei para confirmar a entrevista, porém ele/a não
atendeu. Mesmo assim fui ao local no horário acertado. Ele/a não apareceu.
Desde aí, retornei a ligação várias vezes e ele/a nunca estava em casa.
Presumi que me evitava e não liguei mais, respeitando seu direito de não
participar da pesquisa.
Porém, após quase dois meses de greve dos professores da rede estadual
de ensino, resolvi contatar Soares novamente. Ele/a se lembrava de mim e,
assim como no primeiro contato, se prontificou me encontrar. Foram vários
desencontros. Até que resolvi ir até a sua escola na tentativa de encontrá-lo/a.
Para entrar na escola, tive que me identificar e dizer qual o meu objetivo
ali. Encaminharam-me à sala da diretoria para que pudesse falar com alguém
responsável em dar informações dos/as estudantes. Quem me atendeu foi o
vice-diretor da escola, que se mostrou gentil e solícito. Perguntei sobre Soares,
mas ele não conseguia lembrar-se de ninguém com as características que
apresentei. Porém, enquanto conversávamos, ele chamou “dois alunos” (como
se referia a eles/as) que passavam por nós e perguntou se gostariam de
participar de uma pesquisa.
Tratava-se de uma moça e de um rapaz. Ela era travesti e ele, gay. O
vice-diretor não sabia como se referir a eles/as. Ora usava o pronome
feminino ora o masculino, esse prioritariamente. E ainda presumia que
ambos/as fossem travestis, sendo que o rapaz não tinha nenhum sinal de tal
categoria identitária. Era um rapaz de calça jeans, tênis, cabelos curtos e nem
usava brinco. Mas assumidamente gay. Portanto, era notória a confusão que o
vice-diretor tinha ao tratar de questões como identidade, gênero, orientação
sexual etc.
Depois do mal entendido ter sido resolvido, apenas a aluna ficou para
conversar comigo. Enquanto procurávamos uma sala reservada na qual
pudéssemos conversar, o vice-diretor trouxe outra aluna travesti interessada
em participar da pesquisa. Perguntei se elas não se incomodavam em perder o
restante do intervalo e me prontifiquei em esperar o término do horário de
aula para realizar a entrevista. Elas disseram que não teriam mais aulas
naquela tarde e assim que nos ofereceram uma sala na qual pudéssemos ter
31
privacidade, começamos a conversar. Como eram amigas, decidimos realizar
a entrevista em dupla.
As histórias de Bianca e Nayara são de duas adolescentes que estão
passando pelo processo de transformação. Definem-se como travesti, levando
em consideração não ter realizado a cirurgia de transexualização12
. Os relatos
escolares que tanto queria no começo da pesquisa foram construídos ali.
Essa inserção na escola foi interessante por diversos motivos. Um deles
foi perceber a falta de informação da escola sobre a Portaria Estadual nº
016/2008-GS. O vice-diretor disse que “até tinha escutado falar sobre”, fez
uma busca na internet, mas nada achou sobre a regulamentação do uso do
nome social nas escolas públicas do Pará. Então, deixou de lado. Nessa
ocasião, entreguei uma cópia tanto da Portaria quanto do Decreto nº 1.675
que amplia tal permissão para todos os órgãos da administração pública do
Estado do Pará.
O outro elemento interessante nesse encontro com a escola foi a
possibilidade de falar com duas travestis adolescentes que não estão
vinculadas ao movimento LGBT. Elas nem mesmo tinham conhecimento de um
grupo de travestis e transexuais na cidade. Ou seja, por meio do GRETTA eu
só teria acesso àquelas que, de alguma forma, já haviam tido algum contato
com o grupo, seja através de suas ações de prevenção às DST/aids13
ou pela
aproximação ao movimento LGBT. Neste caso, as duas adolescentes
entrevistadas ainda não tinham tido acesso ou mesmo ainda não haviam se
deparado com a necessidade de entrar no movimento LGBT.
Conclusão do caso Soares: não consegui falar com o/a próprio/a Soares,
mas por meio dele/a, conheci duas travestis adolescentes. Esse encontro com
12
A cirurgia de transexaulização, chamada pelo SUS de “processo transexualizador”, compreende um
conjunto de técnicas envolvido no processo de transformação dos caracteres sexuais para aqueles/as que
desejam transitar entre os gêneros. Optou-se por utilizar a expressão “cirurgia de adequação sexual”, pois é a
forma como o movimento LGBT prefere denominar o procedimento. Trata-se de uma adequação do corpo à
identidade já vivida pelas/os candidatas/os ao procedimento. 13
Seguindo as recomendações da Coordenação Nacional de DST e Aids, utilizarei o termo aids em caixa
baixa. No Brasil, já se iniciou o processo de dicionarização do termo, em que AIDS deixa de ser uma sigla e
passa a ser grafada como substantivo comum: aids.
32
Soares, ao acaso, em meio a um tráfego engarrafado, tornou-se um
acontecimento14
mesmo sem ter conseguido falar com ele/a.
1.2 Sobre as entrevistas
Como apresentado acima, a principal técnica empregada para obtenção das
informações foi a entrevista. A entrevista foi escolhida como recurso por propiciar uma
interação constantemente negociada entre a pesquisadora e as/os entrevistadas/os: é um
exercício de manter, transformar e desafiar os posicionamentos envolvidos.
Posicionamento é aqui entendido como as diferentes maneiras de se apresentar e se
colocar nas também diferentes situações vivenciadas. Os posicionamentos assumidos são
fluídos e contextuais. Fluídos porque dinâmicos, sendo, portanto, mais adequado falar em
jogos de posicionamentos. E contextuais porque se refere aos posicionamentos que uma
pessoa assume em uma interação social. Em uma entrevista, por exemplo, o que uma
pessoa diz posiciona a outra e vice-versa. São posicionamentos negociados durante a
interação, assumidos, portanto, como produções conjuntas (SPINK, M., 2004).
Além disso, os posicionamentos assumidos na entrevista não incluem apenas
alguém que fala e alguém que ouve, mas outros enunciados que atravessam a fala e a
escuta das pessoas envolvidas (PINHEIRO, 2000). Para responder às perguntas feitas, os
participantes recorrem às informações que circulam em seus meios, constituídas durante
suas experiências de vida e que, na relação da entrevista, são agrupadas, categorizadas e
ressignificadas. É um processo de negociação de posicionamentos, de pontos de vista, de
versões sobre os assuntos e acontecimentos tratados.
Assim, de modo a propiciar momentos de construção e transformação de sentidos,
as entrevistas realizadas foram feitas de forma semiestruturada, ou seja, a partir de um
roteiro preestabelecido (disponível no Apêndice A), mas aberto às interrogações que foram
surgindo no seu desenrolar. Essa estratégia para a obtenção de informações permitiu maior
flexibilidade, uma vez que se pôde alterar a ordem das perguntas e foi possível fazer outras
intervenções livremente, de acordo com o andamento do diálogo.
14
O acontecimento é o inesperado, o imprevisível, o singular. Segundo Foucault (2000b, p. 28): “é preciso
entender por acontecimento não uma decisão [...], mas uma relação de forças que se inverte, um poder
confiscado, um vocábulo retomado e voltado contra seus utilizadores, uma dominação que se enfraquece [...]
e uma outra que faz sua entrada, mascarada”.
33
Como as perguntas iniciais eram muito abertas, os temas tendiam a reaparecer
durante a entrevista. Avalio esta situação como um ponto positivo, pois as participantes
podiam falar das mesmas questões a partir de pontos de vistas diferentes, apresentando
outras informações ainda não mencionadas ou mesmo ressignificando as afirmações
anteriores.
No total, foram realizadas catorze entrevistas: seis na primeira etapa, concernente
ao processo de elaboração da Portaria do Nome Social, e oito na segunda etapa, sobre os
efeitos da referida legislação na vida de travestis e transexuais. As entrevistas tiveram
duração entre uma e duas horas. Como recurso de visualização de algumas informações
relevantes das participantes da segunda etapa da pesquisa, apresento o quadro a seguir:
Nome Categoria
identitária
Idade Ocupação Escolaridade Indicação Local da
entrevista
Jenifer
Travesti 29 anos Prostituta Ensino médio
incompleto
GRETTA Escritório
“sede” do
GRETTA
Brenda
Transexual 24 anos Estudante de
Direito
Cursando
graduação de
Direito
GRETTA Faculdade
onde estuda
Leila
Transexual 30 anos Estudante de
Psicologia
Cursando
graduação de
Psicologia
Já a conhecia
do curso de
Psicologia
Faculdade
onde estuda
Valesca Transexual 22 anos Estudante de
Biologia
Cursando
graduação de
Biologia
Laura II Conferência
Estadual
LGBTT
Raica
Travesti 37 anos Autônoma Cursando o
ensino médio
GRETTA II Conferência
Estadual
LGBTT
Babete Transexual 40 anos Prostituta Ensino médio
completo
Laura II Conferência
Estadual
LGBTT
Nayara
Travesti 19 anos Estudante Cursando o
ensino médio
Vice-diretor
da escola onde
estuda
Escola onde
estuda
Bianca Travesti 16 anos Estudante Cursando o
ensino médio
Vice-diretor
da escola onde
estuda
Escola onde
estuda
1.3 Interação com os registros
Não houve uma separação bem demarcada das fases tradicionalmente nomeadas de
coleta de dados e a posterior análise, interpretação e relato desses supostos dados. Nada foi
dado “de mão beijada”, como se diz comumente, durante a pesquisa; mas sim produzido
34
(SPINK, P., 2003). Todos os registros analisados foram produzidos nos encontros
ocorridos (assim como nos desencontros), a partir da interação de variados elementos: as
minhas teorias e concepções prévias, as questões problematizadas pela orientadora e
posteriormente pelas/os integrantes da banca de qualificação, as pessoas que participaram
das conversas e entrevistas, a função que tais pessoas projetavam na pesquisa, os locais
onde foram realizadas etc.
Apesar de os diferentes materiais que compuseram o campo-tema desta pesquisa –
tais como conversas, livros, artigos, meios de comunicação etc. – estarem presentes nas
análises, implícita ou explicitamente, detenho-me aqui a descrever a interação com os
registros produzidos a partir das principais fontes de informação do presente estudo, qual
seja, as oito entrevistas realizadas com as travestis e transexuais participantes.
A interação com as entrevistas foi um processo de aproximação crescente, visando
uma maior familiaridade com os registros. O processo ocorreu basicamente em cinco
etapas, assim definidas:
1. Escuta preliminar das entrevistas.
2. Uma segunda escuta com transcrição sequencial e temática das entrevistas.
Sequencial, pois obedeci à ordem dos acontecimentos da forma como foram
relatados. Temática, pois transcrevi apenas os conteúdos diretamente relacionados ao
tema da pesquisa.
3. Elaboração de um mapa temático, recurso de visualização do material da pesquisa,
cujo objetivo é sistematizar e orientar o processo de análise. Tal mapa contém três
colunas. A primeira comporta os trechos sequenciais das entrevistas; na segunda,
identifica-se a temática que está sendo abordada no trecho em questão; e a terceira
coluna serve para orientar sobre um provável capítulo para o qual aquela informação
seria relevante (Apêndice B).
4. Construção de uma tabela contendo os temas recorrentes, assim como relevantes, das
oito entrevistas feitas. A partir desse panorama, pude selecionar as histórias que
melhor apresentavam as temáticas a serem desenvolvidas.
5. Produção de uma narrativa para cada uma das histórias escolhidas. A produção das
histórias é um recurso para apresentar as participantes da pesquisa sem utilizar, pelo
menos de forma recorrente, as transcrições literais de suas falas. Com isso, pretende-
se evitar usar a literalidade como forma de comprovar as análises desenvolvidas,
como se essas fossem uma apreensão menos mediada, mais pura, das participantes.
35
1.4 Considerações éticas
O projeto de pesquisa foi apresentado e aprovado pelo Comitê de Ética de Pesquisa
da PUC-SP (Protocolo de Pesquisa nº 099/2011). Ao iniciar cada entrevista, eu apresentava
para as/os participantes o documento que comprova a aprovação da pesquisa pelo referido
Comitê de Ética, assim como as informações contidas no Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido (Apêndice C): que a participação era voluntária, podendo ser interrompida no
momento em que a entrevistada desejasse, sem ser em nada prejudicada; que a entrevista
seria gravada, mas que eu me comprometia em preservar o anonimato das/os informantes.
Todas as pessoas contatadas, nas duas fases da pesquisa, formalizaram sua aceitação em
participar da pesquisa assinando o referido termo.
Para me referir às/aos informantes da primeira etapa da pesquisa, remeto aos cargos
ocupados ou funções exercidas, uma vez que foi devido a tais posições que recorri a essas
pessoas. Já na segunda etapa, embora a maioria das entrevistadas tenha manifestado o
desejo de ser identificadas por seus nomes sociais, tão caros a elas, optei por utilizar
pseudônimos. Como é habitual nas pesquisas acadêmicas utilizar nomes fictícios para os/as
participantes, achei oportuno fazer o mesmo para que não se compreenda equivocadamente
que o nome social já seja um pseudônimo. Tentei, na medida do possível, criar nomes que
remetesse de alguma forma aos nomes sociais das entrevistadas. O nome civil não foi
inquirido em nenhum momento. O “nome de homem”, como elas chamam, remete a uma
identidade, a um passado que muitas lutam cotidianamente para esquecer.
Outra preocupação ética foi utilizar os pronomes, artigos e adjetivos coerentes com
a identidade que a pessoa entrevistada atribuía a si, qual seja, o feminino, uma vez que
todas as participantes se identificaram enquanto travestis ou mulheres transexuais15
. Esta
atitude, para além da perspectiva ética, foi um elemento importante para o sucesso das
entrevistas, pois as participantes ficavam mais à vontade para falar e compartilhar
informações de suas vidas. Meu respeito e simpatia eram sinceros e isso, de alguma
maneira, reverberou na fluidez das trocas efetuadas.
15
Infelizmente não tive acesso a nenhum transexual masculino. O único a participar da pesquisa foi o
assessor do Centro de Referência, que contribuiu com informações sobre a formulação da Portaria.
36
CAPÍTULO 2
A INVENÇÃO DA TRAVESTILIDADE E DA TRANSEXUALIDADE
Tudo o que me caracteriza é apenas o modo como sou mais
facilmente visível aos outros e como termino sendo
superficialmente reconhecível por mim.
Clarice Lispector
Ao tomarem conhecimento do tema de minha pesquisa, a primeira coisa que me
perguntam, em tom de surpresa ou estranhamento, é sobre a diferença entre travestis e
transexuais. No começo tentava responder, mas ficava incomodada com as classificações,
sempre tão definitivas, tão prontas e tão pouco problematizadas. Caracterizar o que é ser
travesti ou transexual era, de certa forma, incoerente com a minha perspectiva teórica e
política. Se não há um conceito fundamental que caracterize o que é ser homem ou mulher,
por que haveria de ter uma definição clara e categórica do que é ser travesti ou transexual?
As múltiplas diferenças e particularidades vivenciadas pelas pessoas consideradas
travestis e transexuais não podem ser reduzidas a categorias unificadoras com intenção de
universalização. Nesse caso, a produção da subjetividade de travestis e transexuais obedece
às mesmas regras que produzem as demais subjetividades. Não há uma lei, uma essência
que oriente esses modos de ser. Até porque, aquilo que chamamos de “gênero” só existe na
prática: é a repetição de ações consideradas masculinas ou femininas que produz o efeito
homem ou mulher nos corpos. Nossas práticas fazem gêneros (BUTLER, 2003).
Em princípio, optei por utilizar o termo “transgênero” que aparentemente
açambarcava, sem especificar e aprisionar, as experiências identitárias de trânsito de
gênero. Entretanto, logo no início da pesquisa, esse termo mostrou seu aspecto
problemático. Utilizar tal terminologia, amplamente empregada nos estudos norte-
americanos (transgender) nada diz, pelo menos no contexto brasileiro, sobre as
especificidades das reivindicações das pessoas transexuais (BENTO, 2008) ou da
dimensão conflituosa de assumir-se travesti (BENEDETTI, 2005)16
. Ou seja, “transgênero”
16
Regina Facchini (2005) comenta que a adoção do termo “transgênero” teve uma reação bastante negativa
no Brasil por parte de travestis e transexuais. A frequente associação ao termo “transgênico” – produtos
modificados geneticamente e geralmente associados aos males à saúde – também foi um forte elemento que
inviabilizou a identificação de travestis e transexuais à nova terminologia.
37
não é um termo com o qual travestis e transexuais brasileiros/as se identificam e se
definem. Tanto que nenhuma pessoa entrevistada se reconhece como “transgênero”. Trata-
se de um termo acadêmico e muitas vezes não reconhecido pelos movimentos LGBT.
Diversas pesquisas sobre travestis e transexuais trazem definições ou um eixo
norteador para apresentar a população da qual está se falando. Benedetti (2005), seguindo a
lógica do grupo estudado – qual seja, travestis que se prostituem nas ruas de Porto Alegre
(RS) – define travestis como pessoas que promovem modificações nas formas de seu corpo
visando deixá-lo o mais parecido possível com o das mulheres. Apesar de se vestirem e
viverem cotidianamente embasadas pelo que se reconhece socialmente como gênero
feminino, as travestis não demonstram desejo de realizar a cirurgia de transexualização17
,
aspecto supostamente fundamental para as pessoas transexuais. Eis, portanto, a diferença
mais notável, em termos médicos, entre travestis e transexuais. Porém, tal diferença é
relativizada, pois, como será visto, há transexuais que não desejam se submeter a nenhum
tipo de procedimento cirúrgico.
A tentativa de diferenciação entre travestis e transexuais não permeia apenas o
universo acadêmico. As/os próprias/os integrantes do movimento de travestis e transexuais
se veem questionando esses limites identitários. A presidente do GRETTA, em entrevista
para esta pesquisa, diverte-se ao lembrar uma tentativa de classificação do movimento, na
qual era estipulado que a transexual não podia falar alto ou ser escandalosa, pois tais
características eram específicas das travestis. Ela defendeu, então, que assim como há
vários tipos de mulheres, das comportadas às “barraqueiras”, há vários modos de ser uma
travesti ou mulher transexual.
Viver no processo de transformação de gênero não significa compartilhar os
mesmos valores, experimentar os mesmos sentimentos, conviver em ambientes
semelhantes ou ter práticas sociais análogas. Pelo contrário, as diferentes formas de viver e
construir o gênero são influenciados por fatores variados, tais como classe social, nível
educacional, fatores econômicos, sociais, familiares entre outros (BENEDETTI, 2005).
Parafraseando Clarice Lispector (fazendo uso de licença poética): Tudo o que caracteriza
travestis e transexuais é apenas o modo como são mais facilmente visíveis aos outros e
como terminam sendo superficialmente reconhecíveis por si mesmas.
17
O processo para conseguir esse procedimento cirúrgico de “mudança de sexo” será mais amplamente
abordado no final deste capítulo.
38
Por isso, além de utilizar a definição pela qual o público entrevistado se reconhece
– travestis e transexuais, portanto – utilizarei também o termo guarda-chuva “pessoas
trans” para abarcar os vários modos de ser que transitam, resistem ou subvertem o
binarismo identitário fruto da heteronormatividade, ou seja, de um conjunto de instituições
tanto linguísticas quanto médicas ou domésticas que produzem constantemente corpos-
homem e corpos-mulher (PRECIADO, 2002). O uso de tal termo guarda-chuva surge do
incômodo com os rótulos que aprisionam os modos de ser, produzindo verdades e gerando
estratégias de poder e de controle. Portanto, “pessoas trans” se apresenta como definição
abrangente, quase imprecisa, que abre a possibilidade para uma pluralidade de modos de
ser e de identificações.
Deparo-me aqui com uma questão inquietante: por que as questões ligadas à
sexualidade são transformadas em categorias, identidades, tipos de pessoas? Por que o fato
de preferir ter relações sexuais com homens ou com mulheres se torna o cerne identitário
daquele/a que a pratica? Por que a sexualidade passa a ser um elemento fundamental na
caracterização do ser humano?
Michel Foucault (1999, 2003b, 2006a), em sua História da sexualidade, fornece
pistas importantes para tais questionamentos ao afirmar que os desejos sexuais são
constituídos no curso de práticas sociais específicas, produzidas historicamente. Foucault
(2003b) localiza no século XVIII a emergência da (ainda) atual concepção de que o sexo é
o reduto da individualidade humana. Nesse período histórico, surge um erotismo
discursivo generalizado, uma aparelhagem para produzir discursos sobre o sexo a tal ponto
que, a partir do século XIX, o sexo passou a conter a verdade última de nós mesmos.
Esse processo foi mobilizado por um interesse público diante da nova configuração
política em formação na Europa Ocidental: explosão demográfica, processo de
industrialização e emergência do capitalismo. Em resumo, esses são os elementos
fundamentais para a passagem de um poder soberano para o biopoder.
O biopoder se refere ao período histórico no qual a vida entra no campo das
técnicas políticas, “isto é, a entrada dos fenômenos próprios à vida da espécie humana na
ordem do saber e do poder” (FOUCAULT, 2003b, p. 133). Enquanto que o regime de
soberania se constituía no direito de se apropriar das coisas, do tempo, dos corpos, da vida
para a defesa da conservação de um Estado, o biopoder se apoia na incitação, no controle e
na vigilância para criar, otimizar e ordenar as coisas. O que está em jogo é a garantia da
sobrevivência de uma população.
39
Os governantes percebem que não têm que lidar simplesmente com
sujeitos, nem mesmo com um “povo”, porém, com uma “população”,
com seus fenômenos específicos e suas variáveis próprias: natalidade,
morbidade, esperança de vida, fecundidade, estado de saúde, incidência
de doenças, formas de alimentação e hábitat (FOUCAULT, 2003b, p. 28).
Nesse contexto do biopoder, as questões relativas à sexualidade obtiveram uma
especial atenção entre os fenômenos da população, passando a ser objeto de análise e alvo
de intervenção. Faz-se necessário “analisar a taxa de natalidade, a idade do casamento, os
nascimentos legítimos e ilegítimos, a precocidade e a frequência das relações sexuais, a
maneira de torná-las fecundas ou estéreis [...]” (FOUCAULT, 2003b, p. 28). Tal
importância atribuída à sexualidade está na sua capacidade de abranger as duas tecnologias
de intervenção pelas quais o biopoder se desenvolveu: a disciplina e a biopolítica.
O poder disciplinar toma como objeto de ação o corpo-organismo dos indivíduos,
que precisam ser adestrados por meio de técnicas de vigilância, de sanções normalizadoras
e de uma organização panóptica18
do espaço das instituições: escolas, hospitais, fábricas,
prisões etc. A disciplina se exerce sobre corpos individuais, adestrando-os, ampliando suas
aptidões, extorquindo suas forças, e, ao mesmo tempo, fazendo crescer sua utilidade e
docilidade (FOUCAULT, 2003b).
Já a biopolítica é uma forma de governo que se destina à população e seus
fenômenos de massa com o propósito de governar sua vida. Portanto, a biopolítica se
ocupará da gestão da saúde, higiene pública, sexualidade e de todas as questões referentes
à população que se tornarem apostas políticas (CASTRO, 2009).
Desse modo, a sexualidade articula os dois eixos desse poder sobre a vida: a
disciplina do corpo individual e a regulação da espécie. A sexualidade abrange tanto os
desejos e atos do indivíduo, produzindo efeitos individualizantes, como as condutas
coletivas mais gerais da população, que, ao fazer uso das estatísticas, intervém para gerir a
vida e a morte com pretensão totalizante (FOUCAULT, 2003b).
Desse modo, a hipótese defendida no primeiro volume da História da Sexualidade
é que, ao invés de repressão, os discursos sobre o sexo foram incitados, incentivados,
18 Em Vigiar e Punir, Michel Foucault (2003a) utiliza a concepção arquitetural do Panóptico, de Jeremy
Bentham, como um princípio geral do poder disciplinar. Arquitetado em 1791, o Panóptico consistia em um
edifício em forma circular, no meio do qual havia um pátio com uma torre no centro. A parte circular se
dividia em pequenas celas, destinadas a abrigar um detento ou um operário ou mesmo uma criança, uma vez
que essa arquitetura poderia ser aplicada a uma prisão, fábrica, escola ou qualquer instituição que desejasse
manter sob vigilância um determinado grupo de pessoas. Tal vigilância era realizada a partir da torre central,
na qual se localizava um vigilante.
40
proliferados durante a Idade Clássica. Se na era do biopoder gerir a sexualidade se tornara
algo fundamental, logo, devia-se falar dela, compulsiva e minuciosamente; é necessário
fazer circular os discursos para, assim, controlá-los. Dessa forma, insere-se a sexualidade
em sistemas de utilidade, fazendo-a funcionar a partir de um padrão ótimo: assegurando o
povoamento, reproduzindo forças de trabalho, formando uma sexualidade economicamente
útil e politicamente conservadora.
Foucault (2003b) apresenta o colégio do século XVIII como um exemplo de
instituição na qual o sexo é intensamente colocado em questão, apesar de aparentemente
ser um assunto proibido ou silenciado nesse espaço. A arquitetura dos colégios, os
regulamentos, a organização disciplinar, a disposição das carteiras, a distribuição dos
dormitórios... Em todos esses aspectos o sexo das crianças e adolescentes fora levado em
consideração.
A produção discursiva sobre o sexo faz da sexualidade um objeto de investigação
científica, alvo de controle administrativo e de preocupação social. Esse processo é
denominado por Foucault (2003b) de dispositivo da sexualidade. Por dispositivo, Foucault
(2000c, p. 244) entende
um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos,
instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis,
medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas,
morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do
dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes
termos.
Já para explicar o significado do dispositivo de sexualidade, Foucault (2003b)
aborda quatro grandes conjuntos estratégicos de produção de sexualidades periféricas: a
histerização do corpo da mulher (análise exaustiva do corpo feminino e a consequente
expansão do discurso médico sobre o sexo), a pedagogização do sexo da criança (combate
rigoroso à masturbação infantil), a socialização das condutas de procriação (a decisão e
prática de reprodução deixa de ser da esfera privada do casal) e a psiquiatrização do prazer
perverso (distinção entre os instintos sexuais normais e os anômalos). Foi por meio desse
conjunto de práticas e saberes que a sexualidade se tornou um domínio coerente e uma
dimensão fundamental do ser humano. Portanto, a partir dessas quatro figuras, Foucault
mostra que a sexualidade não é algo essencial, mas sim, um dispositivo histórico, fruto da
41
incitação ao discurso sobre o sexo, da estimulação dos corpos, da formação de
conhecimentos específicos etc. (FOUCAULT, 2003b)19
.
E mais, seguindo essa concepção, o sexo não é uma instância real, biológica,
autônoma que produz secundariamente os múltiplos efeitos da sexualidade. Ao contrário, o
sexo se encontra na dependência histórica da sexualidade, ou seja, o dispositivo da
sexualidade, que esmiuçou a sexualidade em seus mínimos detalhes, tanto inventou o sexo
quanto a crença de que no sexo reside a “essência” do ser humano (FOUCAULT, 2003b).
O dispositivo da sexualidade produz também um pareamento entre sexo e verdade a
partir da apropriação do sexo em termos médico-científicos. Principalmente a partir da
figura do perverso, inicia-se a produção de um discurso verdadeiro sobre o sexo. A
medicina, e posteriormente a psiquiatria, além de produzirem certas “irregularidades
sexuais”, passam a anexá-las ao domínio das doenças mentais. Entre os séculos XIX e XX
houve “[...] uma dispersão de sexualidades, um reforço de suas formas absurdas, uma
implantação múltipla das ‘perversões’. Nossa época foi iniciadora de heterogeneidades
sexuais” (FOUCAULT, 2003b, p. 38).
Considerando que as patologias sexuais não são imediatamente observáveis pelo
exame médico, era necessário fazer uso da confissão do paciente. E, como a partir da
formação do dispositivo da sexualidade do século XIX o sexo foi produzido como o
segredo individual por excelência, era preciso confessá-lo para ter acesso à verdade de si.
A vontade de saber a verdade sobre nós mesmos, própria à nossa cultura,
instiga-nos a falar a verdade; as confissões que se sucedem, confissões
que fazemos aos outros e a nós mesmos, e essa colocação em discurso
instauram uma rede de relações de poder entre aqueles que afirmaram ser
capazes de extrair a verdade dessas confissões, através da posse de
chaves de interpretação (DREYFUS; RABINOW, 2010, p. 229).
A confissão se torna, assim, uma técnica que liga o discurso científico às
tecnologias do eu, uma vez que instaura a crença de que é possível acessar a verdade sobre
si mesmo com a ajuda de um perito. A sexualidade, portanto, é performada pela crença de
que o sexo é a chave da individualidade humana, de que há sexualidades normais e outras
anormais, de que é preciso falar de sua sexualidade para conhecer a si mesmo.
19 Para dar um exemplo da abrangência do dispositivo da sexualidade, ter relações sexuais com pessoas do
mesmo sexo deixou de ser uma prática, um incidente, passando a ser o cerne identitário daquele/a que a
pratica. A partir do século XIX, nada do que o homossexual é escapa da sua sexualidade (FOUCAULT,
2003b). Portanto, percebe-se o quanto a sexualidade passa a ser um elemento fundamental na caracterização
do ser humano.
42
A travestilidade e a transexualidade são fruto desse dispositivo. Só existem travestis
e transexuais – e as demais formas de categorizar as experiências de vida tendo como foco
a sexualidade – devido ao biopoder e sua ênfase na categorização populacional para
controlar a vida, devido a esse dispositivo da sexualidade que produziu a crença de que no
sexo reside a “essência” do ser humano e devido a tantos outros dispositivos que
inventaram essas experiências como “identidades de gênero”.
Portanto, travestis e transexuais, assim como toda experiência de si, são frutos de
um complexo histórico de fabricação no qual se entrecruzam os discursos que definem a
verdade do sujeito, as práticas que regulam comportamentos e formas de subjetividade.
Ian Hacking (2009), seguindo as proposições foucaultianas, chama a esse processo
de “inventando pessoas”. Segundo o autor, há dois vetores em disputa nessa “invenção” de
formas de vida. Há o vetor de rotulação que é orientado de cima para baixo, ou seja, é a
fabricação de categorias de pessoas feita por especialistas: médicos, psicólogos,
pedagogos, jornalistas, oficiais de todas as ordens etc. Mas há também o vetor que
pressiona por baixo, no qual as próprias pessoas rotuladas não aceitam de forma passiva os
rótulos recebidos. Há críticas, modificações, análises e transgressões diversas nesse
processo de rotulação. O nome, dado por alguém revestido de autoridade por um saber,
acaba por criar um tipo de existência. A rotulação promove um processo de identificação
da pessoa com a categoria a ela atribuída.
Nessa perspectiva, não são apenas travestis e transexuais que são inventados/as.
Todos os modos de ser são inventados. O que somos, desejamos, pensamos, é governado
por diversos dispositivos que agenciam nossos modos de pessoalidade contemporânea.
Dessa forma, não há “uma história geral a ser contada sobre inventar pessoas. Cada
categoria tem sua própria história” (HACKING, 2009, p. 128). Portanto, cabem muitas
versões no processo de invenção de pessoas.
Em se tratando das categorias travestis e transexuais, cabe destacar, pelo menos,
três dispositivos importantes nessa invenção: a medicina, a psicologia e o nome civil. A
medicina porque as experiências travestis e transexuais são capturadas e patologizadas pelo
discurso médico; a psicologia, porque é a ciência privilegiada de regulação das existências
pela determinação de condutas normais e anormais, e a imposição do nome na
documentação civil, porque a reivindicação do uso do nome social só existe devido à
dificuldade (quase impossibilidade) com que travestis e transexuais se deparam para alterar
o nome civil nos documentos de identidade.
43
Dessa forma, tendo como foco esses três elementos, busco apresentar a invenção e
o governo da travestilidade e da transexualidade por meio de certo número de saberes,
jogos de verdade e práticas de poder. Esse percurso pela invenção dessas categorias é
importante, pois, só há políticas que visam à inclusão escolar de travestis e transexuais
porque tais formas de viver foram (e são) categorizadas e transformadas em um problema,
em identidades “diferentes”, “anormais”.
Interlúdio 2: Jenifer, Brenda e suas diferenciações identitárias
Jenifer, 29 anos, travesti e prostituta. Sua saída da escola coincidiu com
seu processo de transformação pessoal. A presença na escola se tornou
insustentável e a vida na rua, na pista, cada vez mais atrativa. Se na escola era
discriminada, na rua era desejada. Trabalhando pela noite adentro, ficou cada
vez mais difícil acordar cedo para estudar. Além disso, concluiu que seria
impossível conseguir um emprego formal com a nova identidade travesti. Não
valia mais estudar. Interrompeu os estudos no 2º ano, faltando apenas um ano
para terminar o ensino médio.
Diz que na época da escola não sabia que “era” travesti: “Eu achava
que eu era uma coisa assim, abstrata. Não sabia o que era. Não me
identificava ainda. Eu gostava de me vestir com roupa de mulher, mas nunca
pensava que isso era ser travesti”. Para ela, conhecer o movimento LGBT e as
categorias identitárias foi apaziguador. “Saber o que se é” e conhecer outras
pessoas que não aceitam estritamente as normas de gênero instituídas foi
importante para Jenifer. Não era mais “algo” abstrato.
Hoje, define-se como travesti porque vive da prostituição e sente prazer
com seu órgão sexual masculino, ou seja, não deseja fazer a cirurgia para uma
suposta “adequação sexual”, pois gosta de ser travesti, gosta da ambiguidade.
Brenda, 24 anos, transexual, estudante de Direito. Ela diz que só
encontrou seu “verdadeiro eu” quando passou a assumir uma identidade
feminina, a partir do momento em que começou a construir seu corpo, a se
vestir da forma que queria, a ter o relacionamento amoroso da forma que
44
desejava. A identidade masculina foi apenas um estágio para a conquista de
Brenda.
Aos 20 anos decidiu começar a tomar hormônios femininos. Como a
situação em casa ficou insustentável, ela abandonou a faculdade de Direito e
foi tentar a sorte na Europa. Continuou o uso de hormônios, fez cirurgia para
inserir uma prótese de silicone nos seios, fez depilação a laser no rosto e
trabalhou como prostituta por um ano. Então, resolveu voltar ao Brasil. “Por
que toda travesti/transexual tem que ser puta?”, questiona-se Brenda. Voltou
para fazer diferente. Retomou o curso de direito e, em 2012, foi lançada como
candidata a vereadora em Belém.
Define-se enquanto transexual por não se reconhecer na figura de uma
travesti. Confessa ter horror da imagem de um homem simplesmente vestido de
mulher. Só conseguiu sair de casa como Brenda quando avaliou que podia
passar despercebida ou que pelo menos tivesse a seu favor o benefício da
dúvida. Convoca elementos tanto médicos quanto morais para justificar sua
identidade transexual. Diz que sua “personalidade é totalmente feminina”,
não tem comportamento sexual promíscuo e não sente prazer com seu órgão
sexual masculino. Além disso, almeja fazer a cirurgia para “adequar” sua
genitália ao seu corpo e sua subjetividade feminina.
2.1 “Precisamos verdadeiramente de um verdadeiro sexo?”: patologização da
travestilidade e da transexualidade
No curso Os anormais, ministrado em 1975, no Collège de France, Foucault (2001)
descreve com detalhes a universalização do desvio sexual e da entrada da sexualidade no
domínio da psiquiatria. Identificar, distribuir e patologizar as sexualidades consideradas
desviantes da norma até o extremo de nominá-las como anormais.
O filósofo analisa o aparecimento da anomalia, ou mais propriamente, do anormal,
por meio de três figuras: o monstro humano, o indivíduo incorrigível e a criança
masturbadora. Durante o século XIX esses três personagens, que já existiam desde longas
45
épocas, vão se coadunar na figura do anormal, tornando-se um problema a ser tratado e não
simplesmente um objeto de curiosidade.
A primeira figura relatada por Foucault (2001) é o monstro humano. O monstro
humano combina o impossível com o proibido e, durante boa parte do medievo, serve
como o grande modelo de todas as pequenas discrepâncias. É o misto de dois reinos:
animal e humano. Trata-se de uma exceção na população que viola tanto as leis da
sociedade quanto as leis naturais.
Foucault (2001) considera o hermafrodita como uma figura privilegiada para a
análise do monstro humano durante a Idade Clássica. Por meio de vários exemplos
históricos, o autor mostra a mudança na concepção e, principalmente, modos de punição do
hermafrodita. Até o século XVI, o/a hermafrodita era condenado/a simplesmente por ser
hermafrodita. Já a partir do século XVII, pediam-lhe que escolhesse um sexo, e se usasse o
outro sexo, expresso por meio de roupas ou práticas sexuais, incorria nas leis penais e era
condenado por sodomia. Ou seja, não se condena mais a monstruosidade da natureza, mas
a de comportamento. A monstruosidade passa a ser alojada no plano moral.
A segunda figura, ou melhor, personagem importante para o aparecimento do
anormal, é o indivíduo incorrigível. Enquanto o monstro é sempre uma exceção e remonta
ao domínio dos estudos sobre as deformações ou monstruosidades orgânicas, a existência
do indivíduo a ser corrigido é um fenômeno normal. É um fenômeno corrente que nasce
dentro da família e mantém relações com instituições vizinhas. Como diz ironicamente
Foucault (2001, p. 72): “é regular na sua irregularidade”. Ele é espontaneamente
incorrigível, o que demanda a criação de tecnologias para a reeducação que lhe permita a
vida em sociedade20
.
Por fim, o terceiro personagem é o responsável pela universalização do desvio
sexual e da entrada da sexualidade no domínio da psiquiatria. Trata-se da criança e do
adolescente masturbador. Data da passagem do século XVIII para o XIX e envolve
exclusivamente a família burguesa. Esse era um personagem quase universal de tão
corrente que era o seu aparecimento na sociedade.
A prática do onanismo, segundo o ideário médico burguês vitoriano, é tida como a
causa de qualquer patologia corporal, nervosa, psíquica ou moral. Foucault salienta que no
20
É válido ressaltar que a exposição dessa segunda figura acabou por ser pouco explorada por Foucault
durante o curso de 1975.
46
fim do século XVIII não há nenhuma doença que não esteja relacionada, de uma forma ou
de outra, à masturbação.
No século XVIII, inicia-se o que Foucault (2001) chama de campanha
antimasturbatória mobilizada pela crença de que a masturbação era a causa de uma série de
enfermidades, tanto físicas quanto mentais. Apareceram textos, panfletos, livros e até
manuais dirigidos aos pais sobre a masturbação infantil. Ainda não se trata de uma
psicopatologia sexual, pois a sexualidade está praticamente ausente. É a própria
masturbação, sem nenhum vínculo com a sexualidade, que é o problema a ser combatido,
ou seja, trata-se mais de uma patologização do que uma moralização da prática onanista.
O foco está na criança e no adolescente burguês e a origem desse “vício” está no
desejo dos adultos pelas crianças. Nesse contexto, a culpa vem do exterior, do adulto, mais
exatamente, da criadagem. Inicia-se uma empreitada contra a criadagem doméstica e a
responsabilização dos pais pela masturbação dos filhos. É a ausência de cuidados, a
preguiça e desatenção dos pais que estão envolvidos nesta prática.
Esse discurso exige uma nova configuração do espaço familiar e, de acordo com o
argumento defendido por Foucault (2001), foi esse controle da masturbação da criança que
possibilitou o surgimento da família nuclear, sólida e afetiva. Porém, esse controle
parental, interno à família, passa a ser subordinado à intervenção médica. É por meio da
família que se estabelece o encontro entre a medicina e a sexualidade.
Em suma, um movimento de intercâmbio que faz a medicina funcionar
como meio de controle ético, corporal, sexual, na moral familiar e que faz
surgir, por outro lado, como necessidade médica, os distúrbios internos
do corpo familiar, centrado no corpo da criança (FOUCAULT, 2001, p.
321).
Foi pela infância que a psiquiatria veio a se apropriar do adulto. Aumentou seu
campo de ingerência ao mostrar que o instinto sexual está no cerne de todas as doenças
mentais.
Ainda de acordo com Foucault, a partir de meados do século XIX, a psiquiatria
abandona aquilo que havia se constituído o essencial na justificação da medicina mental: a
doença. O que ela assume agora é o comportamento, seus desvios, suas anomalias a partir
de um desenvolvimento normativo já instituído. É o poder médico sobre o não patológico.
É a psiquiatria abrangendo em seu campo de ação uma população que não apresenta
nenhum sintoma de doença, mas que apresentam algumas características que passam a ser
analisadas enquanto anomalias. “Assiste-se assim, nessa segunda metade ou nesse último
47
terço do século XIX, ao que poderíamos chamar de consolidação das excentricidades em
síndromes bem especificadas, autônomas e reconhecíveis” (FOUCAULT, 2001, p. 395).
Esse período, portanto, é marcado pelo aparecimento de vários tratados médicos
sobre os desvios sexuais. Em 1870, Westphal descreve sobre os “invertidos” no Arquive de
Neurologie. Segundo Foucault (2001), é a primeira vez que a homossexualidade aparece
como síndrome no interior do campo psiquiátrico, dando início, assim, ao que podemos
chamar de psiquiatrização da homossexualidade.
Nesta intensa procura da identidade na ordem sexual, Foucault (2001) dá ênfase à
análise da obra Psychopathia sexualis de Heinrich Kaan, publicada em 1844 e a sua
formulação da noção de instinto sexual. Porém, outra obra, também intitulada Psycopathia
sexualis, é particularmente interessante para a discussão sobre a invenção da travestilidade
e transexualidade. Trata-se do livro do psiquiatra alemão Richard Von Krafft-Ebing escrito
em 1886. Esta obra é destinada à categorização das patologias das funções sexuais, tais
como lesbianismo, delírio erótico, necrofilia, bestialidade, entre outros “desvios sexuais”.
Apresenta o diagnóstico de 238 casos coletados pelo próprio autor, assim como
comentários e observações finais sobre a patologia. De acordo com Leite-Júnior (2008),
este livro se tornou a bíblia sobre as perversões.
Entre os casos relatados em sua obra (principalmente os casos 129 e 133), Krafft-
Ebing (2001) traz dados significativos sobre as futuras (agora atuais) nomeações e
classificações do que é ser travesti ou transexual, como inicialmente apresentado pelas
autodefinições de Jenifer e Brenda. Portanto, o campo para a criação da travestilidade e
transexualidade estava em franco desenvolvimento, haja vista a dedicação médico-
científica à categorização das “anomalias sexuais”.
O livro Die Transvestiten, de 1910, traduzido para o inglês como Transvestites:
theerotic drive tocross-dress, do médico e psicólogo alemão Magnus Hirschfeld, é a
primeira publicação destinada a analisar especificamente a relação entre vestimenta e
sexualidade. Neste estudo, “travestismo”21
é definindo como um forte impulso para usar as
roupas do sexo que não pertence à estrutura relativa a seu corpo como um fim em si
mesmo (HIRSCHFELD, 1991).
Hirschfeld (1991) analisa o “travestismo” como uma variante da sexualidade
“normal”, uma vez que os/as travestis, mesmo vestindo esporadicamente ou
21
O sufixo “ismo” é usado, a partir do século XIX, para qualificar os supostos “transtornos de sexuais”. O
movimento LGBT efetua uma troca nas terminologias “travestismo” e “transexualismo” para “travestilidade”
e “transexualidade”, desvinculando, assim, o caráter patológico presente no sufixo “ismo”.
48
cotidianamente vestimentas do “outro sexo”, tem consciência de não pertencem ao sexo ao
qual pertencem as roupas utilizadas.
Dessa sua primeira aparição para a atualidade, a travestilidade tem sido objeto de
estudo e intervenção de um saber que se orienta pela patologização e medicalização das
condutas. Tanto que, atualmente, é categorizada como uma patologia, seja pelo Manual
Diagnóstico e Estatístico de Doenças Mentais (DSM), produzido pela Associação
Psiquiátrica Americana (APA), seja pelo Código Internacional de Doenças (CID),
elaborado pela Organização Mundial de Saúde.
No DSM-IV, a travestilidade é definida no item “Fetichismo transvéstico”, tendo os
seguintes critérios diagnósticos:
A. Por um período de 6 meses, em um homem heterossexual, fantasias
sexualmente excitantes, recorrentes e intensas, impulsos sexuais ou
comportamentos envolvendo o uso de roupas femininas; B. As fantasias,
impulsos sexuais ou comportamentos causam sofrimento clinicamente
significativo ou prejuízo no funcionamento social ou ocupacional ou em
outras áreas importantes da vida do indivíduo (LEITE-JÚNIOR, 2008, p.
183).
No CID-10, o “travestismo” está contemplado no item “Transtornos da preferência
sexual”, sob a denominação de “travestismo fetichista”. Este é considerado uma parafilia –
termo contemporâneo para perversão – e descrito como o hábito de vestir roupas do sexo
oposto com o objetivo de obter excitação sexual e de criar a aparência do sexo oposto22
.
É interessante notar que as definições trazidas no DSM-IV e na CID-10 pouco se
referem às travestis brasileiras. Como destaca Leite-Júnior (2008), no Brasil, a categoria
que mais se enquadraria nas definições de travestismo fetichista da CID-10 ou de
fetichismo transvéstico do DSM-IV seria a de crossdresser. Trata-se de uma moderna
nomenclatura para se referir às pessoas que, independente de orientação sexual, gostam de
se vestir com roupas do sexo considerado oposto ao seu e que não promovem alterações
definitivas no corpo, contentando-se na “montagem”23
durante um período do dia ou da
semana.
Algumas pesquisas (SILVA, H., 1993; BENEDETTI, 2005; KULICK, 2008;
LIONÇO, 2009; PELÚCIO, 2009) apontam que, no Brasil, ser travesti é investir
22
Disponível em: http://www.datasus.gov.br/cid10/v2008/cid10.htm. Acesso em 19/maio/2011. 23
Termo que denomina o processo de se vestir, maquiar e usar de outras estratégias para se assemelhar ao
outro sexo.
49
permanentemente na construção de um corpo a ser reconhecido como feminino, apesar de
não sentirem necessidade de “corrigir” a genitália cirurgicamente.
Além disso, no Brasil há um entrelaçamento forte entre a travestilidade e a
prostituição. Tal associação é tão intensa que até em 2008, como atesta a tese de Leite-
Júnior (2008), na Classificação Brasileira de Ocupações do Ministério do Trabalho e
Emprego havia, dentro da categoria 5198-05 - Profissionais do sexo, os seguintes títulos:
Garota de programa, Garoto de programa, Meretriz, Messalina, Michê, Mulher da vida,
Prostituta, Puta, Quenga, Rapariga, Trabalhador do sexo, Transexual (profissional do
sexo), Travesti (profissional do sexo) (grifos nossos). Atualmente, retiraram os termos
Puta, Quenga, Rapariga, Transexual e Travesti24
.
Apesar da forte vinculação entre travestilidade e prostituição, há pessoas que se
definem enquanto travesti e não estão na prostituição, tais como Bianca e Nayara, que se
dizem travestis por ainda não terem realizado a cirurgia de transexualização; há outras, no
entanto, que são prostitutas e se afirmam enquanto transexual. É o caso de Babete, que há
25 anos vive da prostituição e se define uma mulher transexual. Como dito anteriormente,
em nenhum momento dessa pesquisa há um julgamento de quem é travesti ou transexual.
Trata-se de uma autodefinição mobilizada por discursos diversos: a atuação na
prostituição, o desejo ou não de realizar a cirurgia de transexualização, sentir-se uma
mulher, vinculação com o movimento LGBT etc.
Um exemplo dessa complexidade de nomeações é trazido pelo cartunista Laerte
Coutinho. Desde 2009 ele se veste e utiliza acessórios considerados femininos, não tem
nenhuma relação com a prostituição, afirma-se bissexual e vive com sua namorada. Em
entrevista ao programa “Provocações” (TV Cultura), em 1º de março de 2011, Laerte
rejeita a nomenclatura crossdressing, pois para ele, é uma forma de denominar travesti de
classe média. Ou seja, pessoas que se travestem, mas que não estão na marginalidade ou
prostituição. Porém, como é difícil de concebê-lo como travesti, uma vez que ele foge dos
estereótipos que esse termo agrega, prefere dizer, então, que é uma pessoa que se traveste.
De qualquer forma, vê-se que a vinculação entre travestis e prostituição é patente.
Muito antes da discussão sobre crossdressing ou da polêmica lançada por Laerte, a
inserção de outras categorias que não a de travesti para definir aqueles/as em trânsito de
gênero começa a ser empreendida no Brasil a partir dos anos de 1980 com a aparição
24
Disponível em: http://www.mtecbo.gov.br/cbosite/pages/pesquisas/BuscaPorTituloResultado.jsf. Acesso
em 16/maio/2011.
50
midiática e espetacularizada de Roberta Close. Ela transmitia os valores morais e estéticos
de feminilidade de uma mulher burguesa. Em nada se assemelhava com o estereótipo de
travesti que dominava na época. Não havia nenhuma associação da sua imagem com a
prostituição ou criminalidade. Ao contrário, foi considerada uma das mulheres mais
bonitas do Brasil, sendo matéria de reportagens e de programas de televisão voltados para
a classe média (BENTO, 2006; LEITE-JÚNIOR, 2008).
Não havia rótulo para enquadrar Roberta Close. Não era mulher, nem homem, nem
homossexual ou mesmo travesti. O que se percebe é que o campo estava propício para a
inserção de uma nova noção: transexualidade. Mais uma categoria para emoldurar as
experiências subjetivas de vivenciar gênero, sexualidade e desejo.
O termo “transexual” aparece pela primeira vez em 1949, usado pelo médico David
Oliver Cauldwell para se referir ao caso de uma mulher que apresentava o desejo de se
“masculinizar” (Cf. LEITE-JÚNIOR, 2008). Nesse trabalho são produzidas algumas
características que viriam a ser consideradas exclusivas dos/as transexuais, pois até aquele
momento não havia uma distinção conceitual entre as definições transexual, travesti e até
mesmo homossexual (BENTO, 2006).
Porém, de acordo com a pesquisa de Leite-Júnior (2008), a atenção à
transexualidade passa a ganhar notoriedade mundial em 1952, quando o jornal The New
York Daily News traz a reportagem de uma jovem americana de 26 anos que havia passado
por um tratamento hormonal e realizado cirurgias para remoção do pênis e testículos e
criado os lábios vaginais. Christine Jorgensen25
foi o primeiro caso tratado pelo médico
Christian Hamburger, na Dinamarca, com a cirurgia de transgenitalização.
Ao voltar aos Estados Unidos, Christine se torna uma celebridade, pois passa a ser
manchete de jornais e tema de revistas que divulgavam a incrível história do militar que se
transforma em mulher, sendo eleita, em 1954, a mulher do ano. Essa espetacularização do
caso Christine é um importante marco na história da transexualidade, pois milhares de
pessoas, em várias partes do mundo, passam a saber que era possível, cientificamente,
passar de um sexo para outro. O caso Christine Jorgensen torna a transexualidade um tema
popular, tal como ocorreria com o caso Roberta Close no Brasil. Isso provocou um
aumento significativo nas demandas por tratamento e assim contribuiu para a reflexão
sobre a identidade sexual e a construção da categoria de gênero.
25
A jovem adota o nome de Christine em homenagem a seu médico-cirurgião (LEITE-JÚNIOR, 2008).
51
Porém, a especificação e definição categórica do que é a transexualidade se deve à
publicação, em 1966, do livro O fenômeno transexual, de autoria de Harry Benjamin,
médico alemão radicado nos Estados Unidos. Nele, além de teorizar sobre o chamado
“transexualismo”, lança as bases para a padronização de seu tratamento, utilizado até a
atualidade (BENTO, 2006; LEITE-JÚNIOR, 2008).
Benjamin elabora uma escala para classificar “o fenômeno transexual” em tipos que
vão desde o “pseudo-travesti” até o “transexual de intensidade alta”. Esse último é
considerado o/a transexual exemplar: “vive como o outro gênero, deseja alterar o corpo,
especialmente com cirurgia, considera-se uma ‘mulher em corpo de homem’ (ou vice-
versa), não possui libido e é extremamente infeliz” (LEITE-JÚNIOR, 2008, p. 147).
As pesquisas de Benjamin se transformaram em referência para o diagnóstico
daquilo que se considera “transexual verdadeiro” e, logo, para avaliar os discursos dos/das
candidatos/as à cirurgia. De acordo com Bento (2004), o trabalho de Benjamin, produziu
uma universalização do/a transexual, ou seja, a construção de um perfil do/a “transexual
verdadeiro/a”. Nas palavras da autora:
O/a verdadeiro/a transexual, para Benjamin, é fundamentalmente
assexuado e sonha em ter um corpo de homem/mulher que será obtido
pela intervenção cirúrgica. Essa cirurgia lhe possibilitaria desfrutar do
status social do gênero com o qual se identifica, ao mesmo tempo em que
lhe permitiria exercer a sexualidade apropriada, com o órgão apropriado.
Nesse sentido, a heterossexualidade é definida como a norma a partir da
qual se julga o que é um homem e uma mulher de verdade (BENTO,
2004, p. 163).
Atualmente o “transexualismo” é definido no CID-10, que entrou em vigor em
1993, como uma patologia que acomete aqueles que desejam viver como o outro gênero,
receber intervenções hormonais e cirúrgicas e nutrem um profundo mal-estar (ou aversão)
em relação a seu sexo anatômico. Já o DSM-IV, publicado em 1994, substitui o termo
“transexualismo” pelo “transtorno de identidade de gênero”. Para ser diagnosticado por
essa patologia
deve haver evidências de uma forte e persistente identificação com o
gênero oposto, que consiste do desejo de ser, ou a insistência do
indivíduo de que ele é do sexo oposto. (...) Também deve haver
evidências de um desconforto persistente com o próprio sexo atribuído ou
uma sensação de inadequação no papel de gênero deste sexo. Para que
este diagnóstico seja feito, deve haver evidências de sofrimento
clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social ou
ocupacional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo
(BENTO, 2008, p. 81).
52
É digno de nota que a 5ª versão do DSM, prevista para ser publicada em maio de
2013, substitui a definição “transtorno de identidade de gênero” por “disforia de gênero”,
visando descrever o estado de sofrimento emocional daqueles/as que vivem uma
incongruência entre sexo e gênero, ou seja, passa a ser uma condição e não mais um
transtorno. Por outro lado, o DSM-V mantém a travestilidade como um transtorno,
mudando apenas de nomenclatura: de “fetichismo transvéstico” para “distúrbio
transvéstico”. Essa alteração no DSM-V carrega os efeitos da Campanha Internacional
Stop Trans Pathologization. Segundo Berenice Bento e Larissa Pelúcio (2012), há mais de
100 organizações e quatro redes internacionais – na África, na Ásia, na Europa e nas
Américas do Norte e do Sul – engajadas na campanha pela retirada da transexualidade do
DSM e do CID26
.
O importante a se destacar é que tais documentos, DSM e CID, dão instruções e
apresentam indicadores para reconhecer e elaborar um veredicto sobre a travestilidade e
transexualidade. Para fazer o diagnóstico, deve ser encontrado um conjunto de
componentes que indique que se trata de uma ou de outra patologia. A tarefa do psiquiatra,
ou dos demais profissionais interessados na determinação identitária-patológica, consiste
em seguir as instruções destes manuais e coletar os sintomas e sinais suficientes para emitir
uma sentença (MARTÍNEZ-GUZMÁN; ÍÑIGUEZ-RUEDA, 2010).
Porém, para essas “patologias”, o saber médico não pode justificá-las por nenhuma
disfunção fisiológica. Todos os critérios diagnósticos são práticas ou comportamentos
regidos pelas normas de gênero criadas social e coletivamente. Como observam Martínez-
Guzmán e Íñiguez-Rueda (2010), esses manuais convertem práticas, preferências e desejos
em sintomas e critérios diagnósticos.
Nesse sentido, esses textos não representam a travestilidade e a transexualidade.
Eles são dispositivos que “inventam pessoas”, fabricam as experiências que dizem apenas
descrever. Travestis e transexuais, com seus inúmeros sintomas e características, estão
sendo produzidos por meio dessa escrita “científica”.
26 As reivindicações dessa campanha se organizam em torno de cinco pontos: 1) retirada do Transtorno de
Identidade de Gênero (TIG) do DSM-V e do CID-11; 2) retirada da menção de sexo nos documentos oficiais;
3) abolição dos tratamentos de normalização binária para pessoas intersexo; 4) livre acesso aos tratamentos
hormonais e às cirurgias (sem a tutela psiquiátrica); e 5) luta contra a transfobia, propiciando a educação e a
inserção social e laboral das pessoas transexuais (BENTO; PELÚCIO, 2012, p. 573).
53
Em meio a esse processo de definições, “transexualismo” e “travestismo”, apesar
de constantemente confundidos, têm características diferenciais importantes. O
“travestismo” seria uma patologia daqueles que “parecem, mas não são”. Está associado ao
fetichismo, tendo como foco o prazer erótico. Trata-se de uma disfunção sexual, em
contraste com o “transexualismo”, caracterizado como um transtorno de identidade. Neste
segundo caso, o foco está em saber o quanto uma pessoa é transexual, saber o grau de
pertencimento ao “outro sexo”. Ou seja, tanto aqueles/as que têm prazer na transgressão
quanto aqueles/as que “desviam” das normas de gênero por sofrerem de uma “desconexão”
entre o psicológico e o corpo são definidos como “patológicos”. De um lado a perversão
sexual, de outro, uma doença mental (LEITE-JÚNIOR, 2008).
O que está em questão nessas definições e terminologias para caracterizar as formas
de viver travesti e transexual é a manutenção do caráter normativo de tais experiências
subjetivas e a apropriação médico-científica no que se refere ao trânsito de gênero.
Tamanha insistência na categorização, delimitação e patologização integram a tarefa do
biopoder em fazer da sexualidade a questão central de nossas vidas.
O que se percebe é o crescimento de uma ciência sexual que procura
incessantemente produzir verdades sobre o sexo (FOUCAULT, 2001, 2003b, 2010b).
Pergunta-se Foucault: “Precisamos verdadeiramente de um verdadeiro sexo? Com uma
constância que beira a teimosia, as sociedades do Ocidente moderno responderam
afirmativamente a essa pergunta” (FOUCAULT, 2010e, p. 82).
Interlúdio 3: O psicológico feminino de Nayara
Nayara, 19 anos, começou o seu trânsito de gênero aos 17 anos, quando
começou a se automedicar com anticoncepcionais para ingerir hormônios
femininos. Define-se como travesti, pois ainda não realizou a cirurgia de
transexualização, ou seja, ser travesti é um estágio para alcançar o que ela
deseja ser: uma mulher transexual. Relata que desde criança gostava de se
vestir com as roupas de suas mãe e irmã, usava seus assessórios e
maquiagens. Quando alguém chegava a casa, era preciso se “desmontar” com
rapidez, pois ao contrário levaria uma surra da mãe.
54
Quando ela tinha 15 anos, sua mãe perguntou se “ele” era gay. Nayara
disse que não. Diz que não mentiu, pois nunca se sentiu gay. Havia alguma
coisa estranha nessa categoria. Sentia atração por homens, mas não se sentia
gay. Afirma que internamente sempre se sentira como uma menina. Por isso,
Nayara era sempre alvo de questionamentos e discussões familiares. Ninguém
entendia seu comportamento, seus gestos, seus mistérios. Ela usou roupas “de
homem” enquanto era obrigada a fazê-lo. Hoje, o seu guarda-roupa é
inteiramente feminino, havendo doado qualquer vestígio de vestimentas
masculinas.
Atualmente, ela cursa o 1º ano do ensino médio em uma escola pública
localizada em um dos bairros mais movimentados de Belém. Gosta da escola e
diz não sentir preconceito no ambiente escolar. O que realmente a incomoda é
a não aceitação de que ela use o banheiro feminino. “Eu, uma mulher assim,
no banheiro de homem? Nem combina”. E diz que sente mais preconceito por
parte dos professores do que dos alunos. Muitos professores não a chamam
pelo nome social, o que a deixa chateada. No mais, são as piadas ou
comentários maldosos de alguns colegas. Mas isso, ela nem considera
preconceito. Diz que adolescente é assim mesmo, vai “tirar sarro de tudo o
que é diferente”, ou seja, não se sente discriminada por ser travesti. Justifica a
suposta ausência de preconceito pelo fato de sua transformação ter sido
gradual. Começou usando calças jeans femininas, depois deixou o cabelo
crescer, passou a usar brincos, maquiagem, até que um dia foi à escola de
sutiã, momento em que se definiu de fato como travesti.
Sente-se lisonjeada quando a chamam de Nayara. Diz se sentir à
vontade, que o tratamento no feminino a conecta com seu “verdadeiro eu”.
“Eu sou afeminada, tô querendo me transformar em uma mulher, porque o
meu psicológico é de mulher, uso roupa de mulher, então, não fica legal uma
pessoa me chamar de Naldo”, protesta com um sorriso.
55
2.2 A psicologia e a produção da norma: identidades e gêneros
A psicologia é outro forte agenciamento na invenção da travestilidade e da
transexualidade. Além de definir normalidades e anormalidades, comportamentos
apropriados e inapropriados, constrói tipos de pessoas: homens (ativos, viris, fortes...),
mulheres (recatadas, mães, delicadas...), crianças (em desenvolvimento, frágeis,
educáveis...), homossexuais (fruto de um complexo de Édipo mal resolvido?), travestis (se
prostituem e usam o órgão genital masculino), transexuais (desejam realizar a cirurgia de
transexualização) etc.
A psicologia é herdeira do dispositivo da sexualidade analisado por Foucault
(2003b), uma vez que foi por meio desse dispositivo que houve a associação da
sexualidade com o dizer verdadeiro. Por isso saber quem é Nayara – qual sua identidade, o
porquê de sua resistência em se conformar ao seu corpo masculino ou ao nome que fora
registrada ao nascer etc. – é sempre tão instigante. Olhares curiosos, suspeita frequente.
A psicologia e sua autoridade em regular as existências via determinação de
condutas é herdeira também de uma tecnologia de si, inaugurada pelo cristianismo, que
suspeita de que há um núcleo central do ser humano desconhecido por ele mesmo. Logo, é
necessário o auxílio de um guia, seja o padre ou o psicólogo, para conseguir decifrar-se.
Com efeito, o cristianismo retoma os temas do pastorado, que advém do Oriente
pré-cristão, caracterizado pela metáfora do pastor que guia cuidadosamente seu rebanho.
Trata-se de um tipo de relação fundamental existente entre Deus e seus súditos. É um tipo
de poder que se exerce sobre um rebanho em movimento, guiando seus deslocamentos. Ou
seja, é exercido sobre uma multiplicidade e não sobre um território delimitado. É um poder
benfazejo, de cuidado, de zelo e de dedicação. “Sendo o poder pastoral, a meu ver,
inteiramente definido por seu bem-fazer, ele não tem outra razão de ser senão fazer o bem.
É que, de fato, o objetivo essencial, para o poder pastoral, é a salvação do rebanho”
(FOUCAULT, 2008a, p.170).
O responsável pela salvação do rebanho é o pastor. Ele está a serviço do rebanho. É
ele quem zela para que tudo ocorra da melhor maneira possível. Para tanto, precisa
conhecer e vigiar cada uma de suas ovelhas. Deduz-se daí mais uma característica
apontada por Foucault (2008a) do poder pastoral: é um poder individualizante. O pastor
deve estar atento para que nenhuma ovelha se desgarre, tome um caminho diferente. A tal
56
ponto que, para salvar uma ovelha, pode ser obrigado a descuidar de todo o rebanho. É
uma forma de poder que visa todos e cada um.
O cristianismo organiza esse poder pastoral em instituições e mecanismos,
transformando-o tanto em uma doutrina como em uma prática política no que diz respeito à
condução da vida de cada pessoa. O poder pastoral, implantado durante o Império
Romano, ganhando maior importância durante a Idade Média, desenvolveu uma arte de
conduzir, de guiar e de controlar a vida. Estabeleceu uma forma de direção da conduta
humana a partir de uma modulação cotidiana: observação, vigilância e condução das
“ovelhas”. Tal direção contínua da conduta através de um mecanismo que, se não é
propriamente novo, é estabelecido de forma diferente. Trata-se da direção de consciência.
A novidade da direção de consciência do cristianismo é seu caráter permanente,
obrigatório e interiorizado. Produz um modo específico de individualização ao produzir
uma verdade interior, secreta e oculta, ou seja, a verdade escondida da alma de cada
pessoa.
O pastorado cristão inaugura um saber decifratório de si mesmo, tendo confissão e
exame de consciência como as chaves para desvendar a verdade oculta acerca de si
mesmo. Portanto, é um poder que tem no conhecimento suas armas fundamentais: o
conhecimento de si e o conhecimento que o pastor deve ter de seu rebanho como um todo,
ao mesmo tempo em que deve conhecer cada ovelha em particular. “Essa forma de poder
não pode ser exercida sem o conhecimento da mente das pessoas, sem explorar suas almas,
sem fazer-lhes revelar os seus segredos mais íntimos” (FOUCAULT, 2010b, p. 280).
Em resumo, o poder pastoral cristão produz um modo específico de
individualização ao produzir uma verdade interior, secreta e oculta. O cristianismo, como
religião de salvação, pregaria que o indivíduo deve saber quem é, assumindo seus defeitos,
reconhecendo as tentações, identificando seus desejos etc. E para tal, precisaria da ajuda
(interpretação) do padre para purificar-se e livrar-se de seus pecados. Nesse processo, a
técnica mais valorizada para produzir a verdade sobre si mesmo passou a ser a confissão.
“Como reconhecer se um pensamento é bom? [...] Há apenas um único caminho: confessar
todos os nossos pensamentos ao nosso diretor, obedecer ao nosso mestre em todas as
circunstâncias, e engajarmo-nos na constante verbalização de nossos pensamentos”
(FOUCAULT, 2004, p. 358).
A confissão concede ao mestre um conhecimento e este, por sua sabedoria e
experiência, fornece conselhos que devem ser seguidos. Cria-se, dessa forma, uma nova
57
tecnologia de si: a obediência ao mestre. Obediência que faz com que a pessoa renuncie à
sua vontade e assim, renuncie a si mesmo. Tem-se, então, uma correlação entre a revelação
de si e a renúncia de si.
A obediência incondicional, o exame ininterrupto e a confissão exaustiva
formam, portanto, um conjunto onde cada elemento implica os dois
outros; a manifestação verbal da verdade que se esconde no fundo de si
mesma aparece como uma peça indispensável ao governo dos homens
uns pelos outros [...]. Mas é preciso sublinhar que essa manifestação não
tem a finalidade de estabelecer o domínio soberano de si; o que se espera
dela, ao contrário, é a humildade e a mortificação, o distanciamento em
relação a si e a constituição de uma relação a si que tende à destruição da
forma do si (FOUCAULT, 1997, p. 105).
Nasce, assim, o sujeito moral cristão, sujeito cindido de si mesmo por um segredo.
Busca responder a inalcançável questão “quem é você?”. Para tanto, é persuadido de que é
possível acessar a verdade sobre si mesmo com a ajuda de um perito (GROS, 2006).
Inaugura-se uma tecnologia da obediência: o outro sabe de mim e, portanto, preciso dele.
Tal tecnologia, que suspeita de que a consciência que tenho de mim não coincide
com o que verdadeiramente sou, espraiou-se por diversas áreas, passando a ser “utilizada
em toda uma série de relações: crianças e pais, alunos e pedagogos, doentes e psiquiatras,
delinquentes e peritos” (FOUCAULT, 2003b, p. 62). É negado a Nayara, tal como a todos
nós, a autoridade de saber quem se é. Dessa forma, ela supostamente precisa do outro para
ajudá-la nessa decifração de si. Seja a medicina, psiquiatria, psicologia, religião, entre
tantos outros saberes que se arvoram no direito de regular as existências pela determinação
de condutas.
A psicologia surge no final do século XIX como uma disciplina científica
responsável em “falar a verdade” sobre os seres humanos. Reitera, assim, a concepção de
que há um domínio interior, psicológico, em cada pessoa (FIGUEIREDO; SANTI, 2004).
Portanto, as disciplinas psi têm um papel importante na criação das condições para a
emergência da capacidade de cada um se relacionar consigo mesmo. A psicologia tem
fornecido diversos modelos de eu e receitas praticáveis de condução da conduta a ponto de
ser “impossível conceber a pessoalidade, sentir a própria pessoalidade ou a alheia ou
governar a si ou aos outros sem as disciplinas ‘psi’” (ROSE, 2001a, p. 46).
Como nos diz Nikolas Rose (2001a, p. 51), “é característico de nosso presente
regime de eu refletir e agir sobre todos os diversos domínios, práticas e agenciamentos em
termos de uma personalidade ‘unificada’, de uma ‘identidade’ a ser revelada, descoberta ou
58
trabalhada em cada um deles”. A psicologia assume um papel fundamental em nosso atual
regime de subjetivação ao fornecer perfis de identidades, gêneros ou ainda identidades de
gênero, categoria na qual posicionam travestis e transexuais. Dois representantes das
disciplinas “psi” exerceram especial influência na categorização identitária das pessoas
trans. Trata-se de Jonh Money e Robert Stoller.
Em 1955, o psicólogo John Money utiliza pela primeira vez o termo “gênero” para
se referir às diferenças sexuais entre as pessoas (BENTO, 2006; LEITE-JÚNIOR, 2008).
Após lidar com vários casos de crianças com sexualidade ambígua, os/as chamados/as
intersexuais, no famoso Hospital John Hopkins27
, Money conclui que o gênero e a
identidade sexual são moldados até os 18 meses de vida28
.
Money defendia a tese de que a educação era responsável pela instauração das
diferenças sexuais. Entretanto, o aparente teor revolucionário de afirmar que o gênero não
é algo inato ao organismo logo se mostra contestável, uma vez que não se tratava de uma
“determinação do social sobre o natural, mas como o social, mediante o uso da ciência e
das instituições, poderia assegurar a diferença entre os sexos” (BENTO, 2006, p. 41).
Dessa forma, Money mantinha e reafirmava a tradicional dicotomia de gênero.
Além disso, as intervenções nos corpos de crianças intersexuais tinham como
matriz de inteligibilidade a heterossexualidade como norma, ou seja, pessoas com pênis
deveriam ser masculinas, desejar e manter relações sexuais com mulheres. A cirurgia
dessas crianças geralmente fabricava “meninas”, devido à maior facilidade técnica de criar
genitais femininos do que masculinos. Portanto, era criada a vagina e posteriormente, na
adolescência, o canal vaginal, tendo como pressuposto a futura penetração de um pênis.
Consequentemente, está-se produzindo cirurgicamente uma mulher, que será educada
enquanto tal e deverá sentir atração sexual por homens. À cirurgia, segue-se uma
persistente e vigilante educação dos papéis sociais adequados ao sexo atribuído (LEITE-
JÚNIOR, 2008).
O “tratamento” realizado por Money ganhou um impressionante relato feito por
John Colapinto (2001). Este jornalista apresenta um dos casos mais famosos de Money.
Trata-se da história de David, um rapaz, gêmeo idêntico de Brian, que, devido a uma
27
Segundo Leite-Júnior (2008, p. 144), “foi nesta clínica que a temática transexual ficou indissociável do
nome deste psicólogo, que acompanhou vários pacientes, e onde foi realizada a primeira cirurgia de
transgenitalização dos Estados Unidos em 1965”. 28 Embora as teses de Money tivessem como foco bebês intersexuais, suas teorizações provocaram
ressonâncias importantes na constituição científica da transexualidade (BENTO, 2006).
59
circuncisão mal feita quando ainda era bebê, teve seu pênis queimado e destruído pelo
aparelho do procedimento. Os pais, atônitos com a (não) possibilidade de criar um menino
sem pênis, confiaram na promessa do dr. Money de que por meio de cirurgia, tratamento
hormonal e educação adequada, reforçando os atributos e estereótipos considerados
femininos, poderiam transformar um bebê biologicamente masculino em uma menina.
O texto, apesar da forte ênfase biológica e essencialista, denuncia os absurdos que
permeavam o “tratamento” supostamente bem sucedido de Money. Colapinto (2001)
oferece um relato sobre os conflitos familiares vividos por Bruce, que se tornou Brenda e
aos 14 anos, se torna David. O desfecho trágico dessa história é o suicídio tanto de Brian, o
gêmeo criado como menino, quanto de David, dois anos depois da morte do irmão.
Paralelamente aos trabalhos de Money, o psiquiatra e psicanalista norte-americano
Robert Jesse Stoller cria, em 1964, o conceito de “identidade de gênero”. O conceito
referia-se à mescla de masculinidade e feminilidade que todas as pessoas possuem,
ocorrendo apenas uma diferença no grau em que essas características são apresentadas em
cada pessoa. É um tipo de identidade psicológica que pode se manifestar em “desacordo”
com o sexo fisiológico. Porém, em 1968, Stoller retifica seu conceito anterior ao formular
o conceito de “identidade de gênero nuclear”. Enfatiza, dessa forma, que há um gênero
nuclear que se desenvolve na primeira infância, tornando-se, assim, imutável.
Jorge Leite-Júnior (2008) conta a história de tal mudança conceitual. Agnes, uma
jovem de 19 anos, afirma-se como uma mulher intersexual e chega até à equipe de Stoller
reivindicando a cirurgia de transgenitalização. Agnes explica que apesar de ter pênis e
testículos, ela sempre se sentiu uma mulher e que na adolescência, sem nenhuma
explicação aparente, começa a desenvolver caracteres femininos, tais como seios, formas
corporais arredondadas etc. O relato de Garfinkel (1984) sobre o caso de Agnes apresenta
com detalhes as características femininas de Agnes. Ela impressiona a todos pela sua
feminilidade “natural”, muito diferente das figuras “caricatas” representadas pelas
travestis.
A cirurgia foi realizada e considerada bem sucedida. Entretanto, sete anos após o
procedimento, Agnes admite que mentiu para a equipe. Os caracteres femininos que
apresentava não apareceram naturalmente; foram provenientes de ingestão de estrogênios
desde os 12 anos de idade, além de uma intensa reeducação comportamental para adquirir
os trejeitos femininos. Apresentou-se como uma mulher intersexual, pois já tinha
60
conhecimento de que com este diagnóstico era mais fácil conseguir a cirurgia de
transgenitalização do que se apresentasse como transexual.
Com essa revelação, o psicanalista passa a intensificar sua busca pelo “verdadeiro
sexo” e a desenvolver estratégias cada vez mais rígidas para identificar as/os falsas/os
transexuais demandantes de cirurgia. Com a nova terminologia, “identidade de gênero
nuclear”, o autor afirma que tal identidade é fixada entre os 2 e 3 anos de idade. A tese
defendida é que existe um gênero central, nuclear, desenvolvido na primeira infância e que,
então, torna-se imutável. Com este conceito, é possível detectar o “verdadeiro” transexual.
Em seu livro A experiência transexual, de 1975, Stoller conclui que o homem
transexual29
é alguém que possui um pai ausente e uma mãe superprotetora e
masculinizada. Para o autor, as mães de pessoas transexuais sentem “a mais poderosa
inveja do pênis e, quanto aos pais, não são apenas incapazes de tomar parte na família
como homens masculinos, mas seu relacionamento com as esposas é distante e mal-
humorado” (STOLLER, 1982, p. 68).
Como a identidade de gênero nuclear é construída na primeira infância, o
verdadeiro transexual é aquele no qual o gênero “errado” foi instalado. Para estes casos,
Stoller acreditava que um tratamento terapêutico seria capaz de induzir o complexo de
Édipo e, assim, fazer brotar a feminilidade ou masculinidade “normal”30
. O tratamento
terapêutico só é recomendado às crianças, pois dificilmente é possível tal efeito
normalizador em adultos. Dessa forma, a cirurgia de transexualização seria uma opção
(ainda que em último caso) no “tratamento” da transexualidade.
A partir desses estudos iniciais, uma série de experts “psi” passa a analisar e tratar,
a partir de diferentes perspectivas e motivações, aqueles que ousam transitar entre os ideais
de gêneros, identidades e binarismo de corpos (Cf. Jöel Dor (1991); Catherine Millot
(1992); Colette Chiland (1998); Paulo Roberto Ceccarelli (2008), entre outros).
29
Para Stoller, o homem transexual é a pessoa com genitais masculinos que deseja eliminá-los e obter os
genitais femininos. Porém, como dito anteriormente, denomino esta mesma pessoa de “mulher transexual”,
respeitando o gênero requerente e coadunando com a terminologia utilizada pelo movimento LGBT. 30
Stoller (1982) nomeia tal tratamento como “complexo de Édipo terapeuticamente induzido”. Para tanto,
deve-se ressaltar os elementos estruturantes do que é considerado hegemonicamente como masculino e,
assim, agregar novos e positivos significados a sua genitália. Destaca que um indicador do sucesso
terapêutico é o aparecimento de hostilidade em relação à mãe e às demais mulheres. Posteriormente, a
criança passa a ter comportamentos e atração por brincadeiras agressivas, o que para Stoller, é um sinal de
masculinidade.
61
A partir deste breve percurso por algumas tecnologias psi31
que produzem a
travestilidade e transexualidade, pode-se verificar o quanto esses modos de viver estão
ancorados em um sistema de sexo e gênero que pretende estabelecer fronteiras e limites
entre “normais” e “anormais”. Há nas tecnologias psicológicas um afã de ordenação do
mundo, estabelecimento de normas, adequação das pessoas às normas instituídas. Há
normas para ser homem ou mulher, assim como há normas para ser travesti ou transexual.
Quer vir a ser um desses tipos de gente? Então, entre em uma dessas caixinhas identitárias!
Em contrapartida, não é justo generalizar a multiplicidade de práticas psicológicas
somente a partir de um viés patologizante. Há frentes de resistência contra a submissão da
psicologia à lógica binária orientada pela medicina, como exemplificado em várias
pesquisas produzidas por profissionais da psicologia (Cf. PERES, 2004; ARÁN, 2006;
LIONÇO, 2009; JESUS, 2010; MURTA, 2011; PORCHART, 2012).
Outro exemplo desse enfrentamento foi o evento promovido pelo Conselho
Regional de Psicologia de São Paulo (CRP 06), cujo objetivo era refletir sobre a prática
psicológica junto ao atendimento a pessoas trans32
. Entraram em discussão vários
posicionamentos da psicologia, desde os mais submetidos aos ditames médicos,
principalmente entre as psicólogas que atuam nos serviços que oferecem o processo
transexualizador, até os mais subversivos, que afirmam a travestilidade e transexualidade
como uma das maneiras de viver, sem nenhuma associação com a patologia. Prevaleceu,
portanto, o posicionamento da psicologia a favor da despatologização de tais experiências
identitárias e o seu compromisso em construir práticas que rompam o caráter inquisitivo de
descobrir se a pessoa é ou não um/a transexual verdadeiro/a.
Portanto, se as práticas psi produzem regimes de verdade que passam a fabricar
modos de ser (HÜNING, GUARESCHI, 2005), elas também podem ser ferramentas para
questionar o viés normalizador pela qual a sexualidade é analisada, provocando rupturas
nos rótulos patologizantes, e assim, evocar a potência que as múltiplas formas de viver
podem assumir.
31 É importante demarcar que tal produção de sujeitos não é exclusividade de psicólogos/as; é também fruto
da ação de assistentes sociais, gerenciadores pessoais, conselheiros, terapeutas e todo aquele/a que se intitula
capaz de compreender a subjetividade humana. Esses profissionais, chamados por Rose (1988) de
“engenheiros da alma”, agem por meio da persuasão de suas verdades, pela atração exercida pelas imagens
de vida e do eu que oferecem. 32
Evento Identidades trans e políticas públicas de saúde: contribuições da psicologia, realizado no dia 14 de
março de 2013, na sede do CRP 06, em São Paulo.
62
Interlúdio 4: Leila e sua crítica à cidadania cirúrgica
“Eu não sou a favor de rótulos. Dá vontade de dizer que eu sou Leila e
pronto”. Foi dessa forma que Leila me respondeu quando perguntei como ela se
definia.
Leila é estudante do último ano de Psicologia, curso tão pleno de
categorias, identidades e patologias, mas também com algumas brechas críticas a
essas mesmas delimitações. Além disso, é militante do movimento LGBT e
participante no grupo de trabalho sobre diversidade sexual do Conselho Regional
de Psicologia (10ª Região). Tudo isso a faz uma pessoa crítica à patologização
das experiências identitárias divergentes das hegemônicas. Tanto que foi a única
a se mostrar avessa a definições e categorias. As demais participantes dessa
pesquisa responderam prontamente que eram travesti ou transexual e logo
justificavam suas respostas explicando as diferenças entre essas categorias,
muitas vezes utilizando com bastante propriedade o discurso científico.
Em nossas conversas, Leila relata, com perplexidade, um tema presente em
um fórum de discussão de uma das redes sociais das quais participa. Uma jovem
havia publicado em sua página de relacionamento que aquele era o dia mais feliz
de sua vida, pois acabara de receber o diagnóstico médico de “transexualismo”.
“Como uma pessoa pode ficar feliz com o diagnóstico de uma doença?”. Com
essa indignação, Leila se coloca em uma posição crítica frente à imposição de ter
que ser diagnosticada como transexual para poder ter acesso à cirurgia de
transexualização e a consequente troca do nome nos documentos de identidade.
Para ela, inclusive, a troca do nome é mais importante do que a cirurgia, uma vez
que, segundo ela, diferentemente dos órgãos sexuais, os documentos são
convocados e expostos a todo o momento.
Leila fala com tristeza que sua solicitação para a mudança do prenome nos
documentos de identidade tinha sido indeferida recentemente. O impedimento à
alteração do nome é devido Leila ainda ter os órgãos sexuais masculinos.
Segundo o juiz que analisou seu caso, é impossível ter um nome feminino sem
alteração do sexo. Leila critica a concepção que o sistema jurídico tem de que
mudança de gênero é mudança da genitália. Em suas palavras: “Gênero está
63
ligado a apenas um órgão entre tantos que possuímos no nosso corpo? E se eu
não quiser fazer a cirurgia? Eu terei que me mutilar para ter o meu nome na
carteira de identidade?”.
2.3 Nomes e gêneros em trânsito: processos de normalização da existência
Os documentos de identificação são objetos indispensáveis na atualidade. Não basta
afirmar ser quem se é: faz-se necessário provar quem se é, ou seja, ter testemunhos
materiais que comprovem a veracidade da nossa “identidade". A concomitância dos
elementos básicos dos documentos de identificação – o nome, a foto e a assinatura – serve
para eliminar as ambiguidades na correspondência entre o documento e seu/sua portador/a
(PEIRANO, 2009).
Como nos diz Mary Jane Spink (2011), a história dos registros civis está associada
a estratégias biopolíticas, uma vez que os Estados-nação passam a depender de cálculos,
previsões e estimativas para analisar os nascimentos e mortes, a distribuição de doenças, as
migrações, a taxa de homens e mulheres etc. Tais informações passam a ser
imprescindíveis para o gerenciamento das populações. Dessa forma, seria necessário saber
quem são cada uma das pessoas que formam a população. Nasce, assim, o registro civil
como instrumento para o governo dos outros (SPINK, M., 2011).
Na maior parte dos países europeus, até o século XIX, os registros de nascimento
eram feitos pela Igreja: são os registros de batismos. No Brasil, foi em 07 de março de
1888 que os efeitos civis dos registros de batismos foram suspensos, surgindo o Registro
Civil. Atualmente, o recém-nascido passa por duplo processo de registro: a declaração de
nascidos vivos (emitida na maternidade) e o registro civil (emitido pelo cartório). Como
diz a Lei 9.053, de 25 de maio de 1995 (que altera a redação do artigo 50 da Lei de
Registros Públicos, Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973):
Todo nascimento que ocorrer no território nacional deverá ser dado a
registro, no lugar em que tiver ocorrido o parto ou no lugar da residência
dos pais, dentro do prazo de quinze dias, que será ampliado em até três
meses para os lugares distantes mais de trinta quilômetros da sede do
cartório33
.
33
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9053.htm#art1. Acesso em: 7 dez. 2012.
64
Seguindo a análise feita por Spink (2011), além dos dispositivos biopolíticos, o
registro civil aciona dispositivos de pessoalidade. A Certidão de Nascimento dá acesso ao
“direito da personalidade” que, juridicamente envolve “o direito à vida, à privacidade e ao
nome”. Destaca-se aqui o nome como um elemento fundamental para a produção da
pessoalidade.
Em termos jurídicos, quando se fala em nome se reporta a um direito
personalíssimo, ao da própria identificação pessoal (DINIZ, 2006). Além disso, o nome é o
carro-chefe dos dados que constam em qualquer documento. Tudo, do ponto de vista
social, começa pelo nome. Sem ele a pessoa não se faz reconhecer nem é reconhecida
(MARTINS, 1991).
De acordo com Francisco Martins (1991), o prenome34
funciona como um elemento
que diferencia a pessoa dos demais membros da família. Marca a diferença de sexo e a
própria individuação da pessoa em seu grupo familiar. Já o sobrenome, é o nome de
família. É uma marca simbólica que agrega a pessoa a uma determinada família,
diferenciando-a em relação aos outros grupos em termos de parentesco.
A escolha do nome é um momento no qual os pais (ou as pessoas responsáveis
pelo/a recém-nascido/a) podem manifestar seus desejos em relação ao filho ou à filha. O
nome é escolhido a partir dos mais variados temas e razões, desde a repetição de uma
tradição até o fato de um determinado nome estar na moda ou simplesmente por sua
sonoridade. “Voluntária ou involuntariamente, no entanto, o prenome é relacionado às
fantasias dos pais” (MARTINS, 1991, p. 125).
Considerando que muitas vezes há o registro de nomes vexatórios, o parágrafo
único do artigo 56 da Lei dos Registros Públicos assim orienta os oficiais de cartório:
Os oficiais do registro civil não registrarão prenomes suscetíveis de expor
ao ridículo os seus portadores. Quando os pais não se conformarem com a
recusa do oficial, este submeterá por escrito o caso, independente da
cobrança de quaisquer emolumentos, à decisão do Juiz competente35
.
O incômodo com o nome pode ter origens diversas. Pode ser determinado por um
acontecimento histórico traumático36
, ter significados vexatórios, dúbios ou ainda devido
ao fato de que o nome atribuído à pessoa quando do seu nascimento ser incompatível com
sua situação adulta, como no caso das pessoas travestis e transexuais.
34
Denominado neste trabalho simplesmente por “nome”. 35
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6015original.htm. Acesso em: 11 dez. 2012. 36
Como exemplo, várias pessoas no pós-II Guerra Mundial solicitaram a mudança do nome Hitler ou mesmo
Adolphe devido à alusão nazista.
65
Com efeito, os pais escolhem o nome da criança recém-nascida e ela precisa se
tornar esse nome. Nome este que carrega uma série de características: bonito ou feio,
tradicional ou moderno, nativo ou estrangeiro, interessante ou estranho, e principalmente,
masculino ou feminino. Em nossa língua vernácula, os nomes próprios indicam com muita
clareza, exceto raras exceções, o sexo da pessoa a qual se refere. Por isso, travestis e
transexuais sofrem uma série de constrangimentos por permanecerem com um nome nos
documentos e outro na vida social. Vivem situações de angústias e de conflitos que lhes
dificultam exercer as mais simples atividades cotidianas (SZANIAWSKI, 1998;
ZAMBRANO, 2005).
Dessa forma, a alteração do nome civil é uma das reivindicações mais importantes
para aqueles/as que vivem no trânsito de gêneros, como apresentado pela história de Leila.
A mudança do nome nos documentos de identidade é de suma relevância para ela, pois o
uso de documentos adequados ao seu modo de viver pode ser um significativo instrumento
para minimizar as humilhações que vivencia diariamente.
Porém, mesmo sendo explícito que o nome próprio é fruto de uma escolha alheia à
vontade daquele que o/a carrega, este é considerado um bem inalienável e não é possível
renunciar a ele. A mudança de nome está condicionada à comprovação de que o mesmo
causa prejuízo à pessoa (DINIZ, 2006).
Seguindo Mário Carvalho (2011), atualmente há duas possibilidades de alteração de
nome ou de nome e sexo no registro civil para travestis e transexuais. A primeira é pleitear
judicialmente a inclusão do nome feminino como “apelido público notório”, previsto no
artigo 58 da referida Lei de Registros Públicos. Com este procedimento não se exclui os
outros nomes e, muito menos, altera o sexo nos documentos de identificação. Interessante
notar que todos/as entrevistados/as nessa pesquisa citaram o nome social de pessoas
famosas como uma forma aceita socialmente de utilização de um nome que não aquele
com o qual fora registrado/a ao nascer, tais como o caso do Lula, Xuxa, Pelé etc.
A segunda maneira é por meio de um processo judicial de alteração de nome ou de
nome e sexo, que na maioria dos casos só é possível após a realização da cirurgia de
transgenitalização (CARVALHO, 2011).
O Ministério da Saúde, por meio da Portaria GM nº 1.707, de 18 de agosto de 2008
(BRASIL, 2008), formalizou diretrizes técnicas e éticas para a atenção ao Processo
Transexualizador no Sistema Único de Saúde (SUS) em consonância aos critérios
66
estipulados pelo Conselho Federal de Medicina37
. O Processo Transexualizador
compreende um conjunto de técnicas envolvido no processo de transformação dos
caracteres sexuais pelos quais passam pessoas transexuais. Refere-se ao estabelecimento de
diretrizes para as ações necessárias à garantia do direito à saúde exclusivamente
circunscrita ao trânsito de gênero (LIONÇO, 2009).
O acesso à cirurgia é condicionado ao diagnóstico de “transexualismo”. Este
diagnóstico é realizado a partir de uma série de exigências que o/a candidato/a à cirurgia
deve obrigatoriamente se submeter. Os protocolos para o processo transexualizador
envolvem, além da terapia hormonal, exames de rotina e teste de vida real – que consiste
na obrigatoriedade do/a candidato/a usar durante todo o dia as vestimentas do gênero
identificado –, a submissão por um determinado tempo de terapia, assim como de testes de
personalidade. Esse procedimento visa eliminar o diagnóstico de outros transtornos de
identidade e para que a equipe não tenha dúvida de que se trata de um/a “verdadeiro/a
transexual”. Dessa forma, pretende-se assegurar que não haverá arrependimento do/a
candidato/a.
Entretanto, passar por todos esses procedimentos não garante a aptidão à cirurgia.
Esta será concedida se a equipe responsável (médicos, psiquiatras, psicólogos etc.) for
convencida de que o/a candidato/a é realmente um/a transexual. Porém, além dos
procedimentos realizados pela equipe, o/a candidato/a constrói uma narrativa de vida capaz
de convencer a equipe hospitalar, durante os dois anos de acompanhamento, que se trata de
um homem/uma mulher em um corpo equivocado (BENTO, 2006).
A exemplo disso, o filme Transamérica traz uma cena interessante, na qual Bree,
personagem principal, está em uma das entrevistas para a obtenção da autorização para
realizar a cirurgia. Ela mede suas palavras e responde às perguntas do médico seguindo
aquilo que a encaixa no perfil de uma transexual “verdadeira”. Esta cena ilustra uma
prática bem comum, pois as/os candidatas/os à cirurgia já conhecem os protocolos e fazem
uso desse conhecimento para alcançar o que tanto almejam: a cirurgia para sanar a
ambiguidade sexo/gênero (BENTO, 2006).
Além disso, essa cena mostra que as pessoas candidatas à cirurgia não são vítimas
passivas de um diagnóstico friamente dado pela equipe médica. Elas são parte fundamental
na construção de seu diagnóstico, pois são as descrições de suas sensações que são
37 O Conselho Federal de Medicina estabelece os critérios de viabilidade do procedimento de
transgenitalização e demais intervenções sobre caracteres por meio da Resolução nº 1.652, de 2002.
67
tomadas como material para o trabalho do diagnóstico clínico (BARONI; VARGAS;
CAPONI, 2010).
De maneira geral, o que se percebe é que todos esses protocolos estão orientados
por normas de gênero, de comportamentos e de desejos supostamente adequados para um
gênero ou para o outro. Portanto, espera-se que uma pessoa que reivindica a cirurgia para
se “transformar” em uma mulher, por exemplo, tenha os atributos considerados como
femininos: delicada, desejar casar-se, ter filhos (adotados), cuidar da casa e do marido etc.
O que se tem aí são normas comportamentais consideradas socialmente como femininas,
construções sociais forjadas coletivamente ao longo do tempo. Ou seja, não há nada
essencialmente feminino, uma vez que o próprio conceito de “feminino” é uma invenção.
Um instigante acontecimento durante um encontro intitulado “Transexualidade,
Travestilidade e Direito à Saúde”, promovido pela Comissão de Cidadania e Reprodução
(CCR) em março de 2010 em São Paulo, anima esse debate. Uma mulher transexual
perguntou ao público presente, a grande maioria composta por mulheres cisgênero38
, se
alguém, nascida biologicamente mulher, se encaixava na descrição do que é pertencer ao
sexo feminino presente nos protocolos para a autorização da cirurgia. O silêncio imperou,
mas foi posteriormente quebrado pelas risadas diante da constatação do quão obsoleto é o
padrão de mulher reconhecido. Ficou claro que não há uma maneira essencial de ser
mulher. Por que haveria, então, um verdadeiro modo de ser mulher transexual?
Esse padrão de mulher exigido de uma transexual contrasta com a intensa luta que
essas pessoas enfrentam para viver da maneira que elas desejam. Como exigir submissão a
essas mulheres que enfrentam a família, os seus valores religiosos, os preconceitos sociais
para viver da maneira que se identificam?
Além disso, o condicionamento da aplicabilidade da resolução 1.652/02, do
Conselho Federal de Medicina para alteração dos caracteres sexuais exclusivamente para
os casos diagnosticados como “transexualismo” excluem as travestis desse procedimento.
Como as travestis não demandam necessariamente a cirurgia de transgenitalização, elas são
excluídas do acesso aos recursos médicos para as transformações corporais, como a
hormonioterapia. A exclusão do acesso aos serviços de saúde submete as travestis à
automedicação ou à ação das "bombadeiras” – pessoas, geralmente travestis mais velhas,
que injetam silicone industrial para a modelagem dos corpos das travestis (LIONÇO,
38
Cisgênero (do latim cis = do mesmo lado) é um adjetivo usado para se referir a uma pessoa na qual sua
identidade de gênero está em concordância com o gênero que lhe foi atribuído ao nascer. Dessa forma, uma
pessoa cisgênero é alguém que está adequado ao sistema binário de gêneros.
68
2009). Ou ainda, as travestis ficam refém dos parcelamentos e juros abusivos no
pagamento dos serviços de modificações corporais oferecidos por clínicas de estética para
essa população.
Lionço (2009) defende a ideia de que a aplicabilidade dos procedimentos médicos-
cirúrgicos aos casos de “transexualismo” está orientada por uma concepção corretiva dos
corpos. Faz-se necessário adequar o corpo à subjetividade identificada, sendo a cirurgia o
tratamento reparador do transtorno identitário apresentado.
A hipótese aqui sustentada é a de que a regulamentação da aplicabilidade
dos procedimentos médico-cirúrgicos sobre caracteres sexuais é restrita a
casos de transexualismo porque se compreende, mediante a reparação
cirúrgica, que uma certa normalidade poderia ser restituída. Como as
travestis não demandam essa correção, reafirmando a insuficiência da
lógica binária em dar conta das experiências subjetivas de
posicionamento diante da diferença sexual, são excluídas do acesso aos
serviços e aos recursos médicos em seus processos de transformação
corporais, não dispondo de iguais oportunidades no acesso aos serviços e
tecnologias disponíveis no campo médico (LIONÇO, 2009, p. 55).
Vê-se, então, a manutenção do binarismo identitário. O processo transexualizador
ofertado pelo SUS visa à reparação, a conformação dos corpos às normas de gênero que
associam sexo-corpo-gênero-desejo-identidade. Tal processo opera a partir da
normatização das condutas, na qual a travestilidade não tem inteligibilidade. De acordo
com a heteronormatividade, não há espaço para uma mulher com pênis, logo, não cabe à
medicina ou ao Estado alimentar à “anormalidade”. É visível, pois, o teor moral e
normativo que abrange as delimitações da vida travesti. Aqueles/as que apoiam sua
identidade na ambiguidade, que sustentem também os recursos para a sua vivência
supostamente não verdadeira, falsa, incoerente, anormal.
Já àqueles/as que desejam corrigir seus corpos equivocados, abrem-se os portões da
ciência médica. Essas pessoas são consideradas doentes, transtornadas psicologicamente e
para elas a única alternativa é a cirurgia para diminuir a ambiguidade e possibilitar uma
vida “normal”, ou seja, casar-se (com uma pessoa do outro sexo), ter filhos (adotivos),
constituir uma família... Entretanto, de acordo com relatos de várias transexuais operadas,
mesmo a realização da cirurgia não apaga a sombra da “anormalidade”. Vive-se sempre na
borda, no limite, na suspeita de “parecer ser o que não se é”.
Por tudo exposto, considera-se que a exigência de alteração de nome no registro
civil condicionada à cirurgia de transexualização se configura como uma “cidadania
cirúrgica”, ou seja, pessoas trans só têm acesso a direitos se cumprirem uma série de
69
requisitos médicos e se submeter a um procedimento cirúrgico para apagar os incômodos
da ambiguidade no que se refere à suposta coerência entre corpo-gênero-sexualidade
(CABRAL, 2010)39
. Tal exigência para a mudança do nome exclui um grande número de
pessoas que se identificam com o sexo diferente daquele em que foram registradas ao
nascer, mas que não desejam se submeter à referida cirurgia. Essa situação é abordada por
Márcia Arán e Daniela Murta (2009, p. 21):
Assim, constatamos que alguns homens e mulheres transexuais podem
desejar a cirurgia de transgenitalização pela exclusiva necessidade de
reconhecimento social mais amplo, o que nos faz pensar que a cirurgia
não necessariamente seria indicada se vivêssemos num mundo onde a
diversidade de gênero fosse possível. Estas pessoas não apenas já têm
uma vida afetiva e sexual satisfatória, como também já são reconhecidas
pelo gênero a que dizem pertencer e em outras condições poderiam
permanecer como estão, desde que pudessem realizar a mudança do nome
civil.
Dois Projetos de Lei tentaram regulamentar a alteração do nome civil sem a
exigência da cirurgia de transexualização, porém sem resultados até o presente momento.
O primeiro é o Projeto de Lei nº 6.655, de 2006, de autoria do então deputado federal
Luciano Zica (PT-SP), que exclui a necessidade de realização da cirurgia para a alteração
de prenome, mas ainda requer um laudo médico que reconheça que se trata de um/a
transexual. Há ainda o Projeto de Lei nº 2.976, de 2008, cuja autoria é da então deputada
federal Cida Diogo (PT-RJ), que possibilita que pessoas com “orientação de gênero
travesti” possam acrescentar um prenome ao nome de registro, sem mencionar nenhuma
alteração de sexo (CARVALHO, 2011).
Como não houve continuidade das discussões sobre os projetos acima citados, a
falta de uma legislação clara a respeito do assunto serve de pretexto para o exercício de
posturas conservadoras e preconceituosas, uma vez que as decisões judiciais refletem os
valores trazidos pelos julgadores. Não são raros os casos de transexuais que, mesmo
operadas/os, tiveram negado o seu pedido de retificação do registro civil. Em
contrapartida, há casos de decisões favoráveis à retificação do registro civil por pessoas
transexuais ainda não operadas, mas já em tratamento para a cirurgia.
39 Como disse o ativista Mauro Cabral, no debate de uma das mesas redondas durante o seminário
“Transexualidade, Travestilidade e Direito à Saúde”, organizado pela Comissão de Cidadania e Reprodução
(CCR): “[...] e se a cirurgia marca o ingresso na cidadania, prefiro morrer sendo estrangeiro, não é porque
faço uma cirurgia que me transformo em cidadão. Com isso não quero dizer que as pessoas não tenham
direito a essas cirurgias, mas sim que a cidadania não pode depender dessas cirurgias. E se depender dessas
cirurgias, não é uma vitória e, sim, um problema” (CABRAL, 2010, p. 313).
70
Porém, há pessoas com a Leila, que não têm a intenção de realizar a cirurgia de
transgenitalização, seja por criticar essa cidadania cirúrgica ou por não se sentir
incomodada por seus órgãos sexuais de nascença ou mesmo sentir prazer com eles, ou
porque não querem se submeter ao procedimento, que envolve riscos, como qualquer
intervenção cirúrgica de grande complexidade etc. Então, por que negar a alteração do
nome civil a pessoas que, mesmo não operadas, são reconhecidas socialmente por um
nome que não condiz com os presentes em seus documentos?
Percebe-se que a mudança do nome civil é alvo de muitas críticas e de receios por
parte do Estado. Trata-se de uma segurança jurídica que visa evitar fraudes, sobretudo,
impedindo o uso do novo nome por pessoas que tivessem a finalidade de buscar possível
isenção de responsabilidade civil ou penal. Entretanto, no caso de travestis e transexuais, a
alteração do nome se reveste de maior complexidade, uma vez que é enviesada pela
questão da sexualidade: preconceitos, discriminações, não complacência com as escolhas
de travestis, transexuais e demais seres abjetos (BUTLER, 2003).
Com a dificuldade em torno da alteração do nome, percebe-se também a
manutenção do binarismo identitário, a ênfase nos aspectos biológicos na produção dos
modos de ser. Alterar ou não o nome nos registros civis é uma forma de controle da
população, transformando alguns modos de ser viáveis e outros inviáveis; uns normais e
outros abjetos. É por meio dessa produção da abjeção que se autoriza que as pessoas
“normais” discriminem as “anormais”, aqui exemplificadas pelas travestis e pelas/os
transexuais.
71
CAPÍTULO 3
A PORTARIA DO NOME SOCIAL COMO ESTRATÉGIA DE
GOVERNAMENTALIDADE
As leis não bastam. Os lírios não nascem da lei.
Carlos Drummond de Andrade
Em 10 de abril de 2008, o Governo do Estado do Pará, através da Secretaria de
Educação, promulga a Portaria Estadual nº 016/2008-GS, que estabelece que “a partir de
02 de janeiro de 2009, todas as Unidades Escolares da Rede Pública Estadual do Pará
passarão a registrar, no ato da matrícula dos alunos, o prenome social de Travestis e
Transexuais” (Diário Oficial nº 31148 de 14/04/2008, exposto no Anexo A). O prenome
social – o nome pelo qual a pessoa deseja ser identificada – deverá ser utilizado no registro
de chamada e adotado nas cadernetas escolares, históricos, declarações e demais registros
das instituições de ensino.
A Portaria do Nome Social é uma intervenção que visa à permanência ou retorno de
travestis e transexuais para as escolas. É uma estratégia que visa estruturar um possível
campo de ação, tanto de travestis e transexuais, quanto da escola em um sentido mais
amplo, uma vez que professores/as, estudantes, profissionais e regulamentações diversas
passam a ser envolvidos nessa ação. Nesse sentido, a portaria é uma estratégia de governo,
mais precisamente, de governamentalidade (FOUCAULT, 2008a).
O conceito de governamentalidade é o fio condutor que perpassa o argumento desta
pesquisa, uma vez que articula as duas esferas analíticas fundamentais para o
desenvolvimento da tese: as tecnologias de dominação dos outros e as tecnologias de si.
Portanto, em um primeiro momento farei uma discussão panorâmica acerca da
teorização sobre governamentalidade empreendida por Michel Foucault, uma vez que será
a chave analítica que dará base para as articulações posteriores. Apresentar a emergência
da progressiva governamentalização do Estado é útil para a discussão sobre o governo da
conduta, sobre os modos como somos governados. Em seguida, destaco algumas políticas
que visam à inserção sobre a diversidade sexual no âmbito educacional. Tais políticas
72
formam as condições de possibilidades para a emergência de uma legislação que tem como
alvo de intervenção a vida de travestis e transexuais. Por fim, apresento o processo de
formulação da Portaria do Nome Social: emergência, obstáculos, efeitos e críticas.
Interlúdio 5: Raica: o que pode um nome na chamada?
Show de calouros no programa televisivo de Sílvio Santos. Em um
domingo qualquer, Raica, entre 7 e 8 anos de idade, foi apresentada a uma
forma de vida ainda não conhecida. Cores, brilhos, expressão de alegria e
uma pessoa que transgredia a fronteira aparentemente tão demarcada entre
homens e mulheres. Aquela apresentação de dublagem de música feita por
um/a transformista foi decisiva na vida de Raica. A partir daí ela soube o que
queria ser e fazer da vida: ir a São Paulo e viver para se produzir, fazer
shows, dançar, brilhar.
E começou prontamente a planejar a concretização desse sonho.
Perguntou a uma travesti que morava em sua rua o que ela fazia para “dá
peito”. Desvendado o mistério, passou a roubar os anticoncepcionais das suas
irmãs mais velhas e os tomava escondido. Depois, passou a usar o próprio
dinheiro, que sua mãe lhe dava esporadicamente, para comprar os hormônios.
Entre 15 e 16 anos, almejando ter a vida idealizada desde o fatídico dia
do programa Silvio Santos, partiu para São Paulo. Viajou de carona por três
dias e três noites até descer na Marginal Pinheiros. E como era de se esperar,
a nova vida foi bem diferente do brilho transmitido pela televisão. Começou a
vida na prostituição. Aplicou, de forma caseira, silicone no seio e nos glúteos.
Contraiu o vírus HIV. Foi presa por um ano e meio no Complexo Presidiário
do Carandiru. Sofreu um acidente de moto, quebrou a clavícula, teve o
pescoço rasgado, levou tiro, tornou-se viciada em drogas, mendigou pelas
ruas e seu silicone no seio estourou.
Diante de tanta violência, voltou para Belém, para sua casa, para sua
mãe. E quis voltar a estudar. Havia abandonado a escola quando os efeitos
dos hormônios se tornaram aparentes e a violência sofrida na escola
insuportável. Quis voltar para a escola para ter outras oportunidades de vida.
73
Acreditava que, voltando para a escola, conheceria os seus direitos e teria
instrumentos para desmontar algumas barreiras que se formaram na sua
frente. Voltou para cursar a 3ª série do ensino fundamental, mas interrompeu
os estudos por diversas vezes. Reclamava do preconceito vivido, das greves, da
falta de apoio por parte dos/as professores/as e por não ser chamada por seu
nome social.
Somente retomou os estudos quando soube que a escola iria aceitar o
nome que ela desde garota havia adotado como seu: Raica. Foi o incentivo
que faltava para o retorno à sala de aula. Raica, durante a 1ª Conferência
GLBT do Estado do Pará, quando foi assinada a Portaria do Nome Social,
declarou: “O meu nome vai estar na chamada. Agora sim, tenho motivos para
voltar a estudar”40
.
3.1 A governamentalidade e as formas de conduzir a conduta
Como somos governados? Como nos governamos? Quais as estratégias utilizadas
para governar? Por que somos governados (e nos governamos) dessa forma e não de outra?
Eis as questões que orientam a discussão sobre a governamentalidade aqui apresentada.
Para compreensão da noção de governamentalidade – esse conjunto de técnicas
cujo objetivo é conduzir as condutas da população nas sociedades ocidentais –,
acompanharei o percurso traçado por Foucault (2008a) no curso Segurança, Território,
População, ministrado em 1978 no Collège de France. Nesse curso, o autor aponta três
principais formas de governamentalidade: uma proto-governamentalidade caracterizada
pelo poder pastoral; a governamentalidade presente na razão de Estado; e a
governamentalidade liberal41
.
Para Foucault (2008a), o poder pastoral, já apresentado no capítulo anterior, é um
esboço da governamentalidade, por isso, uma proto-governamentalidade. O destaque dado
ao poder pastoral durante o curso Segurança, Território, População tem como objetivo
40
Raica aparece em um vídeo institucional produzido pela Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do Pará
sobre a 1ª Conferência GLBT do Estado do Pará afirmando que ia retorna aos estudos, pois sabia que seu
nome seria finalmente respeitado pela escola. 41
Para a discussão sobre a governamentalidade liberal será usado como base, além do curso de 1978, o curso
intitulado Nascimento da Biopolítica, de 1979, no qual Foucault (2008b) centraliza seus esforços analíticos
sobre o neoliberalismo.
74
mostrar o processo pelo qual essa forma de poder deu lugar a uma arte de conduzir, de
controlar e manipular as pessoas. Dito de outro modo, o poder pastoral foi o pano de fundo
para a governamentalidade que será desenvolvida a partir do século XVI.
Desse modo, Foucault (2008a) analisa a passagem do pastorado para o governo
político das populações a partir das insurreições de conduta do século XVI, mais
especificamente, a Reforma e a Contrarreforma. Segundo o autor, as insurreições não
provocaram o desaparecimento do pastorado, mas sim, uma proliferação geral das técnicas
de conduta, uma vez que a Reforma e a Contrarreforma possibilitaram ainda mais controle
e influência na vida das pessoas.
Não houve, portanto, passagem do pastorado religioso a outras formas de
conduta, de condução, de direção. Houve uma verdadeira intensificação,
multiplicação, proliferação geral dessa questão e dessa técnica de
conduta. Com o século XVI, entramos na era das condutas, na era das
direções, na era dos governos (FOUCAULT, 2008a, p. 309).
Além da dissidência religiosa, esse período foi marcado pelo processo de
concentração estatal, uma vez que a estrutura política feudal foi gradualmente substituída
pela formação dos Estados e pela centralização do poder político. Esta instabilidade social,
provocada pelas mudanças históricas em desenvolvimento, tornou o problema de como ser
governado, por quem, de que forma, uma questão fundamental. Em que medida o poder
soberano deve encarregar-se do governo das pessoas? De acordo com que racionalidade o
soberano deve governar? A racionalidade pastoral deve ser substituída por uma
racionalidade de governo? Essas são algumas questões colocadas por Foucault no intuito
de mostrar que o século XVI é marcado pela busca de uma definição de governo que seja
específica ao exercício da soberania. Ou seja, “o governo deve buscar sua razão”
(FOUCAULT, 2008a, p. 318).
Tal razão de governo começa a ser arquitetada a partir do século XVI através de um
grande número de tratados que não se caracterizam como conselhos aos príncipes, comuns
na Idade Média, mas ainda não se assemelhavam com as teorizações do que vinha a se
tornar a ciência política dos séculos posteriores. Tais tratados, definidos por Foucault
(2008a) por “arte de governar”, constituíam-se em um conjunto de saberes que procuravam
encontrar uma razão de Estado.
75
Na famosa aula de 1º de fevereiro de 197842
, Foucault se apoia no livro Le miroir
politique (1567), de Guillaume La Perrière, no qual há a seguinte definição de governo: “a
correta disposição das coisas, das quais alguém se encarrega para conduzi-las a um fim
adequado” (FOUCAULT, 2008a, p. 130). Desse modo, já se percebe uma diferença
fundamental entre essa forma de exercer o governo daquela encontrada na soberania. Se na
soberania a preocupação central do soberano era a de conservar seu território, nesta nova
“arte de governar” é a disposição de todas as coisas que compõe o poder. Por “coisas”, La
Perrière se referia à complexidade de “homens e coisas”, ou seja, a relação entre a
população e as riquezas, os recursos, o território, os costumes etc.
Ao longo do século XVII estas artes de governar43
irão se cristalizar em torno da
problemática de uma razão de Estado44
. Razão de Estado diz respeito à racionalidade
própria e particular da atuação estatal. Foucault (2008a) destaca o texto de Chemnitz que
data de 1647 no qual define razão de Estado como:
Certo cuidado político que se deve ter em todos os negócios públicos, em
todos os conselhos e em todos os desígnios, e que deve tender
unicamente à conservação, à ampliação e à felicidade do Estado, para o
que há que empregar os meios mais fáceis e mais prontos (FOUCAULT,
2008a, p. 343).
Trata-se, portanto, de outra maneira de pensar o poder, outro princípio de
inteligibilidade de governar cujo caráter conservatório tem no Estado sua finalidade última:
integridade, fortalecimento, ampliação.
O século XVII precisou desenvolver um conjunto de meios através dos quais o
Estado pudesse crescer e ao mesmo tempo manter sua ordem. Formaram-se, então, dois
conjuntos de tecnologias políticas: o dispositivo diplomático-militar e a polícia. O primeiro
possibilitou o processo denominado por Foucault (2008a) de equilíbrio europeu, ou seja,
uma limitação externa da mobilidade, da ambição, da ampliação dos Estados. Esse
equilíbrio se dava por meio de um cálculo de forças para que o incremento de cada Estado
42
Publicada anteriormente com o título “A governamentalidade”, último e enigmático capítulo da coletânea
de textos de Michel Foucault intitulada Microfísica do poder, publicada em 1979, sob organização e tradução
de Roberto Machado. 43
É digno de nota que tal “arte de governar” só conseguiu se exercer em sua plenitude a partir do século
XVIII e esteve ligada à expansão demográfica europeia, à abundância monetária oriunda do mercantilismo,
ao aumento da produção agrícola etc. Em síntese, Foucault (2008a) credita o que ele chama de “desbloqueio
da arte de governar” à emergência da população como um problema a ser governado, como finalidade última
do governo. 44
É importante ressaltar que a razão de Estado a que Foucault (2008a) se refere não é entendida na acepção
moderna do termo, ou seja, como aquilo que justifica o desrespeito às regras formais do jogo político em
nome de um interesse superior onde, em geral, está presente o arbítrio e a violência.
76
não provocasse a ruptura do conjunto. Trata-se, então, de uma estratégia externa de
conservação do Estado.
A polícia, outra tecnologia política nesse período, era responsável pelo crescimento
ordenado das forças internas do Estado. Diferente do conceito atual, a polícia tinha a
função de dispor de um conjunto de mecanismos que visavam assegurar a ordem, o
crescimento das riquezas e as condições de manutenção da saúde da população. A polícia é
o conjunto das “leis e regulamentos que dizem respeito ao interior de um Estado e
procuram consolidar e aumentar o poderio desse Estado, que procuram fazer um bom uso
das suas forças” (FOUCAULT, 2008a, p. 422). Em resumo, o objetivo da polícia era a
garantia do bom uso das forças do Estado.
Portanto, a polícia visava todas as atividades da população que tivessem relação
com o Estado, uma vez que a atividade das pessoas era considerada um elemento
constitutivo das forças do Estado. Nesse sentido, a polícia era responsável em saber o
número de habitantes de uma população, os meios de subsistência e a saúde, assim como
da circulação das mercadorias, fruto das atividades das pessoas.
O que a polícia abrange assim é, no fundo, um imenso domínio que,
poderíamos dizer, vai do viver ao mais que viver. Quero dizer com isso: a
polícia deve assegurar-se de que eles tenham de que viver e, por
conseguinte, tenham de que não morrer muito, ou em não morrer em
quantidade demais (FOUCAULT, 2008a, p.438).
Para cumprir seu objetivo é fundamental que a polícia conheça a população em
todos os seus âmbitos. A população e suas regularidades, tais como taxa de natalidade,
mortalidade, longevidade etc., aparecem como um novo objeto de atuação do poder. É o
embrião do biopoder (FOUCAULT, 2003b): um investimento político sobre a vida. O
autor indica que o biopoder se desenvolveu a partir do século XVII apoiando-se em dois
polos: a disciplina e a biopolítica.
O Estado de polícia é um exemplo do poder disciplinar. Foucault (2008a) nos
descreve um Estado de polícia regido através do regulamento permanente e intensamente
detalhado da população, onde a disciplina era a estratégia política de controle.
Estamos no mundo do regulamento, estamos no mundo da disciplina. Ou
seja, é necessário ver que essa grande proliferação das disciplinas locais e
regionais a que pudemos assistir desde o fim do século XVI até o século
XVII nas fábricas, nas escolas, no exército, essa proliferação se destaca
sobre o fundo de uma tentativa de disciplinarização geral, de
regulamentação geral dos indivíduos e do território do reino, na forma de
uma polícia que teria um modelo essencialmente urbano (FOUCAULT,
2008a, p. 458).
77
Porém, esse Estado de polícia do século XVII começa a se desarticular devido a
alguns problemas econômicos. Os economistas, particularmente os fisiocratas, criticavam a
prática regulatória da polícia, considerando-a inútil, pois há uma regulação espontânea do
curso das coisas. Seguindo essa concepção, a população teria uma naturalidade própria,
efeito do vínculo espontâneo entre os indivíduos, com mecanismos próprios de regulação e
transformação que independem do Estado (crescimento, decrescimento, deslocamentos).
O que se percebe é a emergência de uma nova racionalidade política, uma nova
governamentalidade praticamente oposta ao Estado de polícia disciplinar. Se com a
disciplina há uma divisão bem demarcada do que é proibido e do que é permitido – uma
vez que ela concentra, encerra, protege, regula até os menores detalhes –, no emergente
Estado de governo, também chamado de Estado de seguridade, não há proibições nem
prescrições; sua função é regular a realidade como esta se apresenta45
.
O campo está fértil para a emergência do liberalismo que, em linhas gerais, tem
como principal referência e instrumento da prática governamental o modelo econômico.
Foucault (2008b, p. 42) nos fala de uma “conexão da economia política à razão de Estado”,
na qual o Estado se beneficia ao interferir o mínimo possível nas práticas de mercado. Esse
novo exercício do governo “é atravessado pelo princípio: ‘sempre se governa demais’ – ou,
ao menos, é preciso sempre suspeitar que se governa demais” (FOUCAULT, 2008a, p.
433).
A função do Estado não é mais proibir, decretar, regulamentar, mas tão somente
regular os processos naturais da população. “Essa gestão terá essencialmente por objetivo,
não tanto impedir as coisas, mas fazer de modo que as regulações necessárias e naturais
atuem, ou também fazer regulações que possibilitem as regulações naturais”
(FOUCAULT, 2008a, p. 474).
Um dos traços mais importantes do liberalismo é o princípio de liberdade. Como
nos diz Foucault (2008b, p. 86), a sociedade liberal é consumidora de liberdade “na medida
em que só pode funcionar se existe efetivamente certo número de liberdades”: do mercado,
do vendedor e do comprador, de propriedade, de discussão etc.
45
É importante ressaltar que não há uma sucessão simples e linear entre a soberania, a disciplina e a
sociedade de segurança. Esta última abarca as velhas estruturas da lei, da soberania, como também incorpora
os mecanismos disciplinares (FOUCAULT, 2008a).
78
Com efeito, se há o consumo de liberdades, faz-se necessário, de um lado, produzir
tais liberdades e de outro, organizá-las e controla-las. A governamentalidade liberal fará
uso, portanto, de dispositivos de segurança para determinar até que ponto as liberdades
individuais vão constituir um perigo para o interesse coletivo. Tal jogo entre liberdades e
segurança é central para a governamentalidade liberal que ora emergia (FOUCAULT,
2008a).
Foi a partir da emergência dos dispositivos de segurança – essas técnicas de
governo que se destinam aos fenômenos variáveis da população, tais como natalidades,
mortes, crescimentos, reprodução etc. – que a biopolítica, outro eixo do biopoder, pôde se
desenvolver. Pode-se perceber, então, a articulação fundamental entre o nascimento da
biopolítica e a governamentalidade liberal que tem nos dispositivos de segurança seu
instrumento técnico essencial. Nesse sentido, a biopolítica é imanente ao liberalismo, uma
vez que é preciso dispor de dispositivos de segurança para que a população não morra em
demasia, para que tenham empregos, para que se estabeleça o consumo e para manter o
mercado.
É interessante retomar a discussão sobre o pastorado, uma vez que Foucault
(2010b) afirma que o Estado de governo liberal herdou algumas características do poder
pastoral. Nessa nova configuração de governo, não se trata mais de conduzir o rebanho
para a salvação no plano pós-morte, mas de assegurá-la neste mundo. “E, nesse contexto, a
palavra salvação tem significados diversos: saúde, bem-estar (isto é, riqueza suficiente,
padrão de vida), segurança, proteção contra acidentes” (FOUCAULT, 2010b, p. 281).
A preocupação com tal “salvação” começa pela infância, oferecendo condições de
educação a todos; em seguida serão criadas políticas de emprego e seguridade social,
acesso à moradia, à saúde, entre outras ações. Tais políticas visam manter os padrões de
vida e de consumo das pessoas. Trata-se do Estado de Providência (EWALD, 1993) ou do
Estado de bem-estar social, que consolida uma nova face da biopolítica ao ratificar o pacto
de segurança entre as instituições políticas e os cidadãos.
A partir desse pacto, as instituições reguladas pelo Estado tentam garantir
que a vida está protegida diante das mais diversas incertezas, acidentes,
prejuízo e riscos. Se o indivíduo está doente, ele tem a seguridade social;
se ele não tiver trabalho, pode ser beneficiado pelo seguro desemprego, se
houver muitos delinquentes na sociedade, é garantida sua correção e uma
boa vigilância policial (CANDIOTTO, 2011, p. 92).
79
Porém, não vivemos mais no liberalismo clássico caracterizado pelo Estado de
providência. Foucault (2008b) mostra como o liberalismo se transformou, a partir de
meados do século XX, para o que se convencionou chamar de neoliberalismo46
. Enquanto
no liberalismo a liberdade de mercado era considerada espontânea, devendo deixar livres
para que se estabeleça a ordem natural das coisas, no neoliberalismo, a liberdade não é
vista como natural e por isso deve ser continuamente governada.
No neoliberalismo, “a economia é essencialmente um jogo [...] e o Estado tem por
função essencial definir as regras econômicas do jogo e garantir que sejam efetivamente
bem aplicadas” (FOUCAULT, 2008b, p. 277). O jogo neoliberal tem como propósito
principal convocar a todos/as para participar de redes sociais e de mercado.
Seguindo a problematização foucaultiana, Maura Lopes (2009) fala das normas
neoliberais instituídas com a finalidade de criar e conservar o interesse de cada indivíduo
de entrar e se manter no jogo neoliberal. A primeira regra desse jogo é se manter sempre
em atividade. Não é permitido que ninguém fique fora das malhas que dão sustentação aos
jogos de mercado. O Estado e o mercado estão cada vez mais articulados e dependentes na
tarefa de educar a população para que ela viva em condições de sustentabilidade. A
segunda regra é a de que todos devem estar incluídos, mas em diferentes níveis de
participação. Não se admite que alguém perca tudo ou que fique sem jogar. É necessário
que se permaneça no jogo. A terceira regra é desejar permanecer no jogo. É o desejo que
faz com que ninguém fique de fora e para que isso aconteça, a capacidade de consumir
deve estar instalada.
No neoliberalismo, o ponto em comum entre o econômico e o social é a regra da
não exclusão. Portanto, a inclusão é um imperativo neoliberal para manutenção de todos/as
na rede do mercado (ROOS, 2009). Incluir para vigiar, governar, administrar. Como nos
diz Sílvio Gallo (2009, p. 9):
Parece ser necessário que a sociedade defenda-se das diferenças,
contenha-as num padrão de normalidade, para que possam ser
administradas, governadas, para que não fujam ao controle, uma vez que
não teríamos como saber as consequências de um acontecimento dessa
natureza.
46
O neoliberalismo do século XX, seja na forma do neoliberalismo alemão (chamado de ordoliberalismo) ou
do neoliberalismo norte-americano, emerge como resposta à “crise do liberalismo”, em síntese caracterizada
pelas ameaças à liberdade produzida pelo aumento do custo econômico do exercício da própria liberdade,
assim como pelo socialismo, nacional-socialismo e fascismo (FONSECA, 2012).
80
É nesse cenário que a educação encarna um dos papéis fundamentais da biopolítica.
A educação e suas políticas de inclusão funcionam como um dispositivo biopolítico a
serviço da segurança das populações, assegurando um padrão de normalidade. Na
atualidade, a escola é um espaço fundamental para o gerenciamento do risco social, para o
controle do tempo dos “grupos sociais privados dos bens culturais e materiais” (BRASIL,
2004, p. 18).
A expansão do ensino fundamental para nove anos, implantação na escola de uma
série de projetos que envolvem questões como o trânsito, as drogas, saúde e prevenção nas
escolas, saúde dental, bullying, entre tantos outros que atravessam o currículo escolar,
atestam o fortalecimento da escola como lócus fundamental para o gerenciamento do risco
social. Talvez porque a escola seja a instituição que se estende de forma ampla e duradoura
a todos as pessoas desta sociedade (KLAUS, 2009).
Dessa forma, a convocação de travestis e transexuais para as escolas serve como
instrumento de controle do risco econômico que representaria a permanência desse
contingente da população fora de circulação. Não é produtivo que uma parcela
considerável da população – desde pessoas com deficiências até pessoas trans – fique
apartada, enclausurada ou na marginalidade.
Interlúdio 6: “Na minha época era bem pior”: Babete e suas indigestões escolares
Conversei com ela na véspera de seu aniversário. Estava apreensiva com
a nova idade e não queria revelá-la, mesmo eu garantindo o anonimato ao
contar a sua história. Depois de uma leve insistência, mas motivada por
curiosidade do que por exigências metodológicas, ela me disse: “amanhã faço
40 anos”. E riu.
Lembrou que tinha apenas 15 anos quando saiu de casa. Era
insustentável continuar vivendo com a família depois que passou a se vestir
com roupas femininas. Diante da rejeição de casa, o acolhimento na
prostituição. Passou a trabalhar em um prostíbulo e não parou de estudar.
Estava certa que iria terminar o ensino médio.
A vida no prostíbulo dava forças a Babete aguentar a escola. Gostava de
atender os clientes, beber, fumar, falar palavrão. Ao contrário de muitos
81
relatos que afirmam a prostituição como algo penoso, feito somente pela
questão de sobrevivência, a festa de Babete era o seu dia no prostíbulo,
restando à escola apenas algumas horas de indigestão.
Se na atualidade a vida escolar de uma pessoa trans é permeada de
situações de preconceito e humilhação, pode-se deduzir que na década de
1980, período em que Babete cursava o ensino fundamental, era ainda pior.
Babete, rindo, diz que a vida escolar de uma travesti ou de um/a transexual
hoje é um conto de fadas perto do que vivera quando estudante. Não havia
nenhum documento oficial no Brasil sobre diversidade sexual na educação,
muito menos alguma legislação que se pretendia assegurar o reconhecimento
do nome social de travestis e transexuais nas escolas.
O que a fez continuar os estudos foi a determinação em provar para sua
mãe que ela, uma transexual, terminaria o ensino médio, feito que seus irmãos
heterossexuais, ou seja, “normais”, não haviam conseguido. Ela se define
como “carne de pescoço”; isto é, não se rende com facilidade. E assim, entre
o prostíbulo e a sala de aula, Babete completou o ensino médio.
3.2 Diversidade sexual e políticas educacionais de inclusão: um breve recorte
histórico
Uma das estratégias de governamentalidade atual se estabelece por meio do que se
convencionou chamar de políticas públicas. Tais políticas são fruto de relações de forças
diversas, poderes, intensidades, jogos de poder e de verdades que as produziram e não
simplesmente a imposição de uma lei protagonizada verticalmente por um suposto Estado
centralizador. Com a discussão sobre a governamentalidade, percebe-se que o Estado não é
uma fonte autônoma de poder. “O Estado não é nada mais que o efeito móvel de um
regime de governamentalidades múltiplas” (FOUCAULT, 2008b, p. 106).
Portanto, o que será apresentado a seguir é um recorte sobre o campo de
possibilidades para o surgimento de políticas públicas que têm como alvo a inserção da
temática sobre diversidade sexual no contexto educacional. Apesar da aparente linearidade
dos acontecimentos, estes foram produtos de relações de forças, de embates, de disputas
entre crenças, pressões de movimentos sociais, interesses políticos etc.
82
Segundo Helena Altmann (2001), a sexualidade das crianças e dos adolescentes é
preocupação escolar desde o século XVIII, momento em que esta questão se torna um
problema público.
Porém, a inserção da educação sexual nas escolas brasileiras só se tornou possível a
partir de uma nova concepção sobre a sexualidade de crianças e adolescentes. Entre 1920 e
1930, os problemas de “desvios sexuais” deixam de ser percebidos como crime para ser
concebidos como doença. Nesse sentido, a escola se torna um espaço privilegiado para a
intervenção preventiva da medicina higiênica, devendo cuidar da sexualidade de criança e
adolescentes a fim de produzir comportamentos considerados normais (ALTMANN,
2001). Estratégias biopolíticas infiltrando-se na escola.
No Brasil, desde 1928 há leis que estipulam a educação sexual nas escolas. Tal
educação sexual, mesmo com teor higienista, enfrentou forte resistência por partes
conservadoras da sociedade, especialmente da Igreja Católica (NARDI, 2008). Com efeito,
o tema “educação sexual” nas escolas foi alvo de intensas discussões, enfrentando avanços
e retrocessos.
Um pouco da trajetória desse debate nos é apresentado por Fúlvia Rosemberg
(1985). De acordo com a autora, na segunda metade dos anos 1960, algumas escolas
públicas desenvolveram experiências de educação sexual. Porém, tal iniciativa sofre um
forte abalo em 1970 quando a Comissão Nacional de Moral e Civismo, uma criação da
ditadura militar, declarou-se contrária ao projeto de lei que propunha a inclusão obrigatória
da disciplina Educação Sexual nos currículos escolares. Tal resistência foi efeito da aliança
entre os militares e o grupo conservador da Igreja Católica que impôs um regime de
controle e moralização dos costumes (CÉSAR, 2009).
A posição oficial sobre essa questão data de 1976, quando a conselheira Edília
Coelho Garcia representou o Brasil no 1º Seminário Latino-Americano de Educação
Sexual. Em seu discurso, diz que o Brasil, de maneira geral, é contrário às aulas de
Educação Sexual. Este tema pode (ou não) ser inserido apenas nos programas gerais de
educação em saúde. Em síntese, repassa à família a responsabilidade pela educação sexual
de crianças e adolescentes (ROSENBERG, 1985).
O tema foi alvo de fervorosos debates ou mesmo de silenciamento durante a década
de 1970. Rosemberg (1985) destaca que o maior argumento utilizado contra a inserção
curricular da sexualidade na educação formal era o quesito “prioridade”, uma vez que tal
83
debate era considerado menos importante frente aos demais (e realmente relevantes!)
problemas da educação brasileira.
Essa movimentação surgida na década de 1970 foi impulsionada pela ação do
movimento feminista que reivindicava uma educação não sexista nas escolas para, assim,
superar as desigualdades de gênero (LOURO, 2010). Tais discussões, apesar de
produzirem algumas experiências pontuais, não resultaram na incorporação das discussões
de gênero e sexualidade nos documentos de política educacional (HENRIQUES et. al.,
2007).
Somente a partir da segunda metade da década de 1980 que o tema sexualidade foi
abordado nos projetos pedagógicos. É importante reconhecer o advento da aids como um
acontecimento que impulsionou tais discussões. Vários organismos oficiais, tais como o
Ministério da Educação e o Ministério da Saúde, passaram a estimular projetos de
educação sexual visando prevenir a infecção do HIV via relações sexuais. Outro foco de
preocupação para o incentivo de uma “educação sexual” era a gravidez precoce ou
indesejada. O que se realizava, portanto, era uma abordagem biologizante do corpo e do
sexo, tendo como referência norteadora a ideia de risco (de infecção ou de gravidez). Com
efeito, a inclusão governamental dessa temática não contemplava a discussão da
construção social da sexualidade e sua inserção no campo dos direitos humanos (NARDI,
2008).
Além da reação estatal, o advento da aids provocou ações dos movimentos LGBT,
que, a partir do final da década de 1980, demonstrou sua capacidade estratégica na
prevenção da aids e reivindicou a questão da sexualidade nos debates públicos. Henrique
Nardi (2010, p. 82) enfatiza a importância dos movimentos sociais nesse processo:
Genealogicamente, as condições contemporâneas para a emergência da
inclusão de um debate em torno da diversidade sexual na educação (no
contexto brasileiro) estão associadas à ação dos movimentos sociais que
defendem os direitos sexuais e que nasceram ou renasceram no Brasil no
final da década de 1980 em relação direta ou indireta com a epidemia da
aids e com a redemocratização do país. Neste cenário social e político, a
reação dos movimentos sociais foi fundamental para reverter à lógica
estigmatizante dos chamados “grupos de risco” na primeira fase da
epidemia.
No mais, esse processo reverbera, de certa forma, o contexto internacional de
fortalecimento dos movimentos feministas e LGBT. No âmbito nacional, a Constituição
Brasileira de 1988 representa o marco institucional-legal mais relevante na história recente,
84
pois provocou mudanças conceituais e deu ênfase ao campo dos direitos humanos
(HENRIQUES et al., 2007). A “Constituição Cidadã” eclode dos movimentos sociais e
marca o reconhecimento de transformar o processo discriminatório que marcava a
organização social hierárquica brasileira (NARDI, 2010).
Paralelamente, consolida-se a compreensão da escola, instituição cujo acesso se
democratizou durante o século XX, como um espaço privilegiado de formação cidadã e de
enfrentamento a toda forma de preconceitos. Com efeito, a escola foi adquirindo uma
importância fundamental na vida social. Segundo a Constituição de 1988, a educação é um
direito fundamental. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990, também
ressalta que a escola é um direito da criança e um dever social e familiar. Esses
documentos se adiantaram à Declaração de Salamanca, que em 1994 prescreve que “todas
as escolas deveriam acomodar todas as crianças, independente de suas condições físicas,
intelectuais, sociais, emocionais, linguísticas ou outras”.
A Conferência Mundial sobre Necessidades Educativas Especiais em Salamanca,
1994, foi um evento decisivo para a reivindicação por uma escola inclusiva, capaz de
acolher a diversidade de características e necessidades dos/as mais diferentes estudantes,
sem segregação por classes “especiais” (QUARTIERO, 2009).
De acordo com Eliana Quartiero (2009), as políticas em relação à educação
inclusiva no Brasil tomam forma a partir do Programa de Educação Inclusiva: direito à
diversidade e do Projeto Educar na Diversidade, ambos formalizados pela Secretaria de
Educação Especial do MEC em 2003. Há nesses programas a concepção de que inclusão
não se refere exclusivamente a pessoas com deficiência, mas a todas as pessoas que sofrem
qualquer tipo de exclusão educacional. Com efeito, progressivamente a educação inclusiva
passa a ser um elemento de inclusão e controle de pessoas em situação de vulnerabilidade.
Portanto, a população LGBT, em especial travestis e transexuais, passa a ser alvo
em potencial de tais políticas, uma vez que vários estudos destacam que a essa população
sofre intenso preconceito e discriminação no ambiente escolar. Duas pesquisas realizadas
pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO)
dão uma dimensão do preconceito em relação às expressões da sexualidade diferentes da
heterossexual. Um dela é a pesquisa Perfil dos Professores Brasileiros, realizada entre abril
e maio de 2002, em todas as unidades da Federação brasileira, na qual foram entrevistados
5 mil professores das redes pública e privada. Tal pesquisa revelou, entre outras coisas, que
85
para 59,7% dos/as entrevistados/as é inadmissível que uma pessoa tenha relações
homossexuais (UNESCO, 2004).
Na outra pesquisa, realizada em 13 capitais brasileiras e no Distrito Federal,
envolvendo 16.422 estudantes, 241 escolas, 4.532 pais e 3.099 professores e funcionários
de escolas, apresenta os efeitos da extensão da rejeição da homossexualidade. Os
resultados da pesquisa não são homogêneos: há variações significativas de acordo com a
região e o sexo do/a entrevistado/a. Por exemplo, o percentual de estudantes do sexo
masculino que não gostariam de ter colegas de classe homossexuais varia de 33,5% em
Belém a 44,9% em Vitória. A diferença de sexo também é significativa. Em Belém, 33,5%
dos jovens dizem não querer ter homossexuais como colegas de classe, contrastando com o
percentual de 15,0% das jovens entrevistadas frente a mesma pergunta (CASTRO;
ABRAMOVAY; SILVA, 2004).
Outras pesquisas também apresentam faces da difícil relação da diversidade sexual
e a escola. A investigação realizada por Sérgio Carrara e Sílvia Ramos (2004) na 9ª Parada
do Orgulho Gay do Rio de Janeiro, diz que, de um total de 629 entrevistados/as, 26,8%
relatou que foi marginalizado/a por professores/as ou colegas na escola ou faculdade.
Antes mesmo da estruturação dos programas de educação inclusiva citados acima, a
pressão dos movimentos LGBT mobilizou a criação de políticas destinadas à população
alvo de preconceito devido à orientação sexual no âmbito escolar. Em 1997 o Ministério da
Educação e do Desporto (MEC) cria os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) com o
objetivo de estabelecer uma referência curricular para as escolas integrantes dos sistemas
de ensino.
Dentre os conteúdos dos PCN há os chamados “temas transversais”, ou seja, temas
que não se inserem como disciplina autônoma, mas devem ser trabalhados de forma
integrada, contínua e sistemática, incorporados às áreas já existentes ao longo de todos os
ciclos de escolarização (PEREIRA; BAHIA, 2011). A orientação sexual, ao lado da ética,
meio ambiente, saúde, pluralidade cultural e trabalho e consumo são os temas considerados
transversais na educação formal. A fim de atingir os objetivos propostos pelos PCN, o
tema “orientação sexual” deve impregnar toda a área educativa do ensino fundamental e
ser tratado por diversas áreas do conhecimento (ALTMANN, 2001).
O fascículo sobre Orientação Sexual dos PCN provoca, ou pretende provocar, uma
explosão discursiva sobre a sexualidade, uma vez que “deve impregnar toda a área
educativa”. Com Foucault (2003b) podemos dizer que é por meio da incitação do discurso
86
sobre o sexo que se instalam mecanismos de controle dos corpos e indivíduos,
principalmente no sentido de produzir a forma ideal de viver a sexualidade: heterossexual,
monogâmica e reprodutiva (CÉSAR, 2009).
Além disso, Helena Altmann (2001) critica a motivação principal do tema
Orientação Sexual nos PCN: crescimento de casos de gravidez indesejada entre
adolescentes e do risco de infecção pelo HIV. Nesse caso, não há necessariamente uma
preocupação ética orientada pela perspectiva dos direitos humanos. Portanto, os PCN ainda
trazem as marcas da abordagem biologizante da sexualidade, na qual a discussão sobre a
diversidade sexual é marginal (NARDI, 2010).
Outras críticas dirigidas aos PCN vão em direção aos aspectos de sua execução. A
pesquisa de Quartiero (2009) constata que as/os professoras/es não se sentem aptos a tratar
assuntos relativos à sexualidade no âmbito escolar ou simplesmente ignoram os conteúdos
dos PCN, isto é, a crítica recai na não incorporação da prática escolar dos conteúdos e
objetivos previstos nos PCN.
Ainda que os PCN sejam considerados um dos marcos mais consistente quanto às
políticas públicas educacionais sobre a sexualidade no Brasil, eles não se referem em
nenhum momento sobre as chamadas “identidades de gênero”. Neste caso, os PCN só
abordam a questão da orientação sexual e não contemplam uma discussão sobre as
experiências travestis e transexuais. Se a presença de alunos/as homossexuais na escola já é
problemática, travestis e transexuais são simplesmente ignoradas/os, silenciadas/os.
Para tentar suprir as lacunas existentes na atenção e respeito à diversidade sexual,
em 2002 o governo federal lançou a segunda versão do Programa Nacional de Direitos
Humanos (PNDH II)47
no qual há um capítulo específico sobre a população LGBT. Se na
primeira versão do documento só havia referência aos “homossexuais”, na segunda versão
já se fala em lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. Tanto que no PNDH II
existe a proposta de regulamentar a cirurgia de transexualização e a alteração no registro
civil para os casos de transexualidade, algo que só se formalizou em 2008.
Em relação à educação, uma das medidas previstas é o apoio a programas de
capacitação de profissionais de educação e operadores do direto para promover a
compreensão sobre as diferenças individuais e a eliminação dos estereótipos depreciativos
com relação aos LGBT. Além disso, fala-se em incentivar programas de orientação
47
O primeiro Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH I) foi criado em 1996, durante o governo do
presidente Fernando Henrique Cardoso. É a primeira referência ao termo “homossexuais” em um documento
do governo federal (Cf. DANILIAUSKAS, 2011).
87
familiar e escolar para a resolução de conflitos relacionados à orientação sexual, com o
objetivo de prevenir atitudes hostis e violentas (BRASIL, 2002).
Porém, o PCN sobre Orientação Sexual e o PNDH II, apesar de serem marcos
importantes para a inserção da temática sobre diversidade sexual na educação, poucas de
suas propostas e ações foram efetivadas. O XI Encontro Brasileiros de Gays, Lésbicas e
Transgêneros (EBGLT), realizado em 2003, em Manaus, foi um evento que marcou o
início da pressão do movimento social para a criação não só de cartilhas sobre os direitos
LGBT, mas principalmente de práticas, de políticas públicas efetivas (DANILIAUSKAS,
2011).
A partir de tais reivindicações, o governo federal lança, em 25 de maio de 2004, o
Programa Brasil sem Homofobia (BSH). O Programa, como consta na introdução do seu
documento-texto, tem o “objetivo de promover a cidadania de gays, lésbicas, travestis,
transgêneros e bissexuais, a partir da equiparação de direitos e do combate à violência e à
discriminação homofóbicas, respeitando a especificidade de cada um desses grupos
populacionais” (CONSELHO, 2004, p. 11). Percebe-se assim que o foco não está somente
na questão da violência e discriminação aos LGBT, mas também contempla a necessidade
de cidadania e problematiza a desigualdade de direitos.
O processo de elaboração do BSH foi protagonizado pela Secretaria Especial de
Direitos Humanos48
, como representante do governo, e pela Associação Brasileira de
Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), representante da sociedade
civil. Além da parceria governo e sociedade civil, o BSH contou com a participação de
onze ministérios, na qual cada um deles estabelece um compromisso de criar políticas que
viabilizem o programa49
.
No BSH há um item específico para a área da Educação, intitulado “Direito à
Educação: promovendo valores de respeito à paz e à não discriminação por orientação
sexual”. Porém, como destaca Marcelo Daniliauskas (2011), não há no texto do BSH um
detalhamento sobre o que se espera que a educação faça para superar a homofobia.
48
Durante o primeiro ano do governo Lula, foram criadas as secretarias especiais ligadas diretamente à
Presidência da República. Tais secretarias, como a Secretaria Especial de Direitos Humanos (atualmente
somente nomeada como Secretaria de Direitos Humanos), possuem status de ministério e visam um
acompanhamento mais próximo da Presidência às políticas e ações realizadas. 49
Assinaram o Programa Brasil sem Homofobia os Ministérios da Educação, da Justiça, Saúde, Cultura,
Trabalho e Emprego, Relações Exteriores, Ministério Público, Ministério Público do Trabalho, e as
Secretarias Especiais dos Direitos Humanos, Políticas para Mulheres e de Promoção da Igualdade Racial,
além da participação direta de representantes de diversos movimentos LGBT (CONSELHO, 2004).
88
Para articular o BSH e as questões da educação, o Ministério da Educação designa
a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD) como a
responsável pela tradução das diretrizes do programa em políticas educacionais
(DANILIAUSKAS, 2011).
Entre outras ações, a SECAD formulou, em 2008, o projeto Escola sem
Homofobia50
. Tal projeto tem dois focos principais de ação. Um primeiro voltado à
formulação e implementação de políticas públicas que enfoquem a questão da homofobia,
assim como a realização de seminários e pesquisas integrantes das comunidades escolares.
O outro campo de ação está centrado na criação de um kit de material educativo abordando
aspectos da homofobia no ambiente escolar, além da capacitação dos/as interessados/as
para a apropriada utilização do kit junto à comunidade escolar.
Este projeto foi causa de grande polêmica no início de 2011, principalmente no que
se refere à distribuição do chamado kit anti-homofobia. Trata-se de um material composto
por cartilhas e vídeos sobre diversidade sexual e identidade de gênero a serem distribuídos
nas escolas públicas. Um dos vídeos, intitulado Bianca, é sobre a vida escolar de uma
travesti. Os kits são ferramentas a serem utilizadas por professores/as ao tratar sobre
respeito à diferença sexual e combate à homofobia nas escolas.
De um lado, os opositores ao projeto alegam que o kit é uma propaganda que visa
induzir alunos e alunas ao “homossexualismo”. Do outro lado, os defensores afirmam que
este é um instrumento para combater o preconceito vinculado à orientação sexual ou
identidade de gênero e assim, favorece a permanência da população LGBT nas escolas.
A principal frente contra a distribuição do kit anti-homofobia é a chamada bancada
religiosa da Câmara dos Deputados Federais. Em contrapartida, diversos órgãos se
manifestaram em favor do projeto. Entidades integrantes do movimento LGBT, a
UNESCO, o Conselho Federal de Psicologia – entre tantas outras organizações –
elaboraram notas, pareceres ou manifestos favoráveis à distribuição do kit, considerando-o
um dispositivo qualificado e necessário para a discussão do preconceito contra LGBT no
ambiente escolar51
.
50
O Projeto foi planejado e executado em parceria entre a rede internacional Global Alliance for LGBT
Education – GALE; a organização não governamental Pathfinder do Brasil; a ECOS – Comunicação em
Sexualidade; a Reprolatina – Soluções Inovadoras em Saúde Sexual e Reprodutiva; e a ABGLT – Associação
Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. 51
Essa discussão continua em andamento, sendo cotidianamente noticiada pela mídia e alvo de debates
acadêmicos, políticos, religiosos etc.
89
O que se percebe com essa série de políticas direcionadas ao público LGBT é um
cenário progressivamente mais sensível às questões sobre a diversidade sexual. Porém, a
ampliação da discussão sobre a legitimidade de outras formas de exercício da sexualidade,
além da heterossexual, e de identidade de gênero, também gera um processo de obstinada
resistência na aceitação de modos de vida não hegemônicos. Desse modo, não é um
processo linear, mas cheio de idas e vindas, lutas políticas e reivindicações sociais,
conquistas e retrocessos.
E é nesse processo que a Portaria Estadual nº 016/2008-GS foi produzida, em um
cenário de discussão e formulação de políticas voltadas à atenção à diversidade sexual no
contexto educacional. É sobre o processo de formulação, efetivação e sobre alguns de seus
efeitos que é dedicado o item a seguir.
Interlúdio 7: A insistência pelo nome Bianca
Bianca tem 16 anos e cursa o 2º ano do ensino médio em uma escola
pública de Belém. Seu nome lhe foi dado por um grupo de colegas travestis
que estudavam nesse colégio em anos anteriores. Foi batizada por Bianca e
ela gostou. Hoje, fica constrangida quando a chamam pelo nome masculino.
Ao contrário, adora ser chamada de Bianca: “Me sinto uma mulher”.
Todos os dias, depois do almoço, começa a se arrumar para ir à escola.
Maquia-se, coloca um prendedor de flor vermelha nos cabelos cacheados,
calça jeans e a camiseta do uniforme escolar bastante justo ao corpo e sai
andando tranquilamente para a escola. Nesse trajeto, não é apontada ou alvo
de piadas homofóbicas, pois não é reconhecida como travesti.
Tal como apresentado no filme Tomboy, o maior obstáculo para Bianca
permanecer despercebida era a perseverante reiteração do nome promovida
pela escola. No filme, Laure, uma garota de 10 anos, apresenta-se aos/às
colegas da cidade onde é recém-chegada como um garoto. Durante as férias
sua “farsa” foi relativamente bem sucedida. Porém, o fim daquela deliciosa
vida como menino tinha data marcada: o início das aulas. Na lista dos/as
alunos/as matriculados/as estava inscrito o seu nome feminino, assim como
estaria nos demais documentos da escola. Todos descobririam que ele era ela.
90
Por isso, Bianca passou a negociar com cada professor/a a possibilidade
de chamá-la por seu nome social. Nome que a acolhe ao gênero que deseja. A
maioria, mesmo considerando um pedido excêntrico, aceitou sua demanda.
Porém, uma professora recusou vivamente chamá-la por Bianca, alegando ser
uma prática “contra a lei”. Enquanto não tivesse em sua carteira de
identidade a comprovação que seu nome era Bianca, continuaria a chamá-la
por Pedro José. Se antes tal professora só a chamava de Pedro, depois desse
incidente, passou a acrescentar seu segundo prenome: José. Ratificava assim o
nome masculino que ela tanto queria esquecer.
Bianca não se incomoda de ser chamada por Pedro José no serviço de
saúde ou em qualquer outro lugar que frequenta esporadicamente e que
precisa apresentar um documento de identificação. Porém, na escola, seu
espaço cotidiano, ela exige ser chamada como se reconhece. Bianca, portanto.
Ela parte então a uma obstinada busca por um nome. Mas não o nome
de uma desconhecida, como o faz o personagem de José Saramago em Todos
os nomes. Ela procura o seu próprio nome. Ou melhor, que o seu nome
próprio seja respeitado. Assim, mesmo desconhecendo a portaria que desde
2009 autoriza o uso do nome social para travestis e transexuais nas escolas
públicas, foi até a diretora solicitar a mudança de seu nome na lista de
chamada. A diretora, porém, nada fez. Disse que é impossível fazer isso devido
ao programa de computador usado na escola etc. Além disso, temia estar
fazendo algo irregular. O curioso é que justamente ao não acolher a
solicitação da aluna é que a diretora estava indo de encontro a uma
regulamentação da Secretaria de Educação.
Bianca sofre uma série de constrangimentos por permanecer com uma
identidade nos documentos e outra na vida social. Pelo menos na escola, ela
pode exigir ser chamada de Bianca. Porém, foi somente naquela tarde em que
conversamos que Bianca soube da Portaria Estadual nº 016/2008-GS.
Entreguei a ela uma cópia da referida portaria, assim como a do Decreto nº
1.675 que amplia tal permissão para todos os órgãos da administração
pública do Estado do Pará. Talvez agora a insistência pelo nome Bianca seja
finalmente atendida pela escola.
91
3.3 A formulação da Portaria do Nome Social
Segundo François Ewald (1993), Foucault não trabalha com a noção de direito. O
direito, propriamente dito, não existe, não designa nenhuma substância. O que existem são
práticas sociais de juízo. É no embate social, em meio a um jogo de forças, que certas
práticas de juízo são consideradas jurídicas e outras não (EWALD, 1993). Dessa forma,
compreender a noção de direito como prática é concebê-la indissociável do tipo de
racionalidade através da qual ela se reflete, se ordena, se finaliza.
O direito não preexiste às suas objetivações através das diferentes teorias
que se obstinam a abordá-lo. Pelo contrário, como prática sujeita a
incessantes transformações, matéria de relações de forças, vetor eminente
de permuta e de comunicações sociais, o direito tem necessidade de
refletir a sua sistematicidade, a sua deriva, tal como seu futuro (EWALD,
1993, p. 64).
Nesse sentido, leis, doutrinas, legislações, jurisprudências, são todas práticas de
juízo; isto é, o sistema jurídico está imenso na história, as leis têm uma história e estas
dizem de uma sociedade, de suas lutas, de seus jogos e relações de poder, de seus modos
de gestão e organização das práticas, das formas de governo e dos dispositivos
econômicos, políticos e culturais de uma dada época.
Portanto, a Portaria Estadual nº 016/2008-GS, que institui o uso do nome social
para travestis e transexuais nas escolas públicas no Pará, está imersa nessas redes de
relações, baseada em regimes de verdade imanentes às práticas sociais, pedagógicas,
médicas, econômicas, culturais e políticas. Isto é, está inserida em um processo histórico
que tem como mote de ação a visibilidade dos direitos sexuais como parte integrante dos
direitos humanos.
Para entender os mecanismos e as relações de forças que objetivaram a formulação
da legislação em questão, entrevistei algumas pessoas envolvidas direta e indiretamente
nesse processo, como apresentado no capítulo metodológico desta pesquisa.
Algumas questões se fazem presentes ao analisar a promulgação da Portaria do
Nome Social: Quais os motivos que culminaram no pioneirismo do Pará em uma
legislação dessa natureza? Como foi o processo de elaboração da Portaria? Como está
sendo efetivada tal política no cotidiano das escolas? Quais os seus efeitos na vida de
travestis e transexuais?
92
Para iniciar a análise do processo de elaboração da Portaria do Nome Social, cabe
destacar que todas as políticas relatadas acima sobre a inserção da temática da sexualidade
no âmbito da educação – Programa Nacional de Direitos Humanos I, em 1996; o fascículo
sobre Orientação Sexual dos Parâmetros Curriculares Nacionais, em 1997; Programa
Nacional de Direitos Humanos II, em 2002; o Programa Brasil sem Homofobia, em 2004,
entre tantas outras – configuram-se como um campo de possibilidades para a criação de
uma política que tem como foco a inclusão de travestis e transexuais na escola. A Portaria
do Nome Social não surgiu do nada: é fruto de pressões diversas dos movimentos sociais
brasileiros, assim como de uma maior aceitação da diversidade sexual em âmbito mundial,
particularmente entre os países do Ocidente.
Além desse cenário aparentemente mais sensível às questões relativas à
sexualidade, é preciso destacar um acontecimento fundamental para o pioneirismo do Pará
em uma legislação dessa natureza: a presença de uma mulher transexual como assessora da
secretária de Educação do Estado do Pará. Trata-se de Cláudia Farias, funcionária
concursada da Universidade Federal do Pará (UFPA), formada em Psicologia e Sociologia
pela mesma instituição. Em 2008, a governadora do Pará convidou a então pró-reitora de
Administração da Universidade Federal do Pará para assumir a Secretaria de Educação do
Estado (Seduc). Ela aceitou e levou consigo sua assessora, Cláudia Farias. Dessa forma,
Cláudia exerceu o cargo de assessora e chefe de gabinete da secretária de educação do
Estado do Pará entre 2008 e 2009, quando a secretária fora exonerada.
Com exceção de um participante52
, todos/as os/as demais entrevistados/as na
primeira etapa dessa pesquisa ligaram a formulação da Portaria Estadual nº 016/2008-GS
ao nome de Cláudia Farias. Em entrevista para esta pesquisa, Cláudia relata como foi
simples e rápido o processo de elaboração da portaria:
Quando eu cheguei a Seduc, cheguei com a secretária e disse assim
mesmo: “Que tal nós instituirmos o nome social no Estado do Pará nas
nossas mais de mil e duzentas escolas?” Aí, ela disse: “Cláudia, elabora
uma minuta, apresenta à assessoria jurídica da Seduc”. Não houve
nenhuma barreira, não houve nenhum senão da secretária ou da
governadora. Foi impressionante. O pessoal da assessoria jurídica do
governo e também da Seduc se reuniu, leram a minuta e pronto. Isso
durou três dias. Um dia aprontamos a minuta, no outro dia mandamos
analisar e no terceiro dia estava aprovado. Em três dias!53
52
Para o assessor de articulação do Centro de Referência de Prevenção e Combate à Homofobia do Pará a
criação da Portaria do Nome Social foi um efeito da organização do movimento LGBT no Pará. 53
É digno de nota que o texto da portaria é curto e direto. Destacando os direitos constitucionais de todo
cidadão, conforme preceitua as Constituições Estadual e Federal, a Portaria nº 016/2008 –GS estabelece que
93
É interessante destacar a receptividade que o tema obteve entre as autoridades em
questão: a secretária de Educação e a governadora do Estado do Pará. Em uma primeira
análise, pode-se dizer que a governadora da época, integrante do Partido dos Trabalhadores
(PT), teve sua gestão entre 2007 e 2010, ou seja, durante o segundo mandato do presidente
Lula. Por meio do recorte histórico realizado acima sobre a atenção à diversidade sexual na
educação, percebe-se que durante o governo Lula houve uma maior produção de
documentos, programas e planos que abordassem a diversidade sexual e os direitos
LGBT54
. Neste sentido, tratava-se de uma gestão aparentemente sensível a tais questões.
Além da receptividade por parte das autoridades locais, a Portaria do Nome Social
logo tomou proporções nacionais. Tal portaria, assinada pela secretária de Educação
durante a 1ª Conferência GLBT55
do Estado do Pará, no dia 10 de abril de 2008, foi a
primeira política que reconhece o nome social de travestis e transexuais no Brasil. Houve
ainda uma ampliação da abrangência do uso do nome social, através do Decreto Estadual
nº 1.675, assinado pela governadora do Estado no dia 21 de maio de 2009, que decreta o
respeito do nome social no atendimento de travestis e transexuais pelos órgãos da
administração pública do Estado.
A Portaria do Nome Social foi anunciada na I Conferência Nacional GLBT56
,
realizada entre 6 e 8 de junho de 2008 em Brasília, e o uso do nome social entre travestis e
transexuais se transformou em uma reivindicação nacional do movimento. Atualmente,
dezenove Estados brasileiros, além do Distrito Federal, já criaram legislações, em níveis
estaduais ou municipais, que autorizam o uso do nome social para a população em
questão57
.
Como efeito dessa mobilização em torno do nome social, desde 18 de maio de
2010, travestis e transexuais que trabalham como servidoras/es públicas/os federais têm o
“a partir de 02 de janeiro de 2009, todas as Unidades Escolares da Rede Pública Estadual do Pará passarão a
registrar, no ato da matrícula dos alunos, o prenome social de Travestis e Transexuais”. 54
Nesse período, além do Programa Brasil sem Homofobia, foram criadas as versões do Programa Nacional
de Educação em Direitos Humanos (2003, 2006 e 2007), nas quais há uma perspectiva de não discriminação
por orientação sexual no ambiente escolar, e o Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos
Humanos de LGBT (2009) (DANILIAUSKAS, 2011). 55
Até aquele momento, utilizava-se a sigla GLBT, sendo alterada para LGBT apenas na I Conferência
Nacional GLBT, realizada entre 6 e 8 de junho de 2008, em Brasília, para marcar o protagonismo do
segmento lésbico. 56
Foi nessa conferência que houve a alteração da sigla GLBT para LGBT, marcando a necessidade de
aumentar a visibilidade e protagonismo do segmento lésbico. 57
Conferir o site da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais:
http://www.abglt.org.br/port/nomesocial.php. Acesso em: 11 de março de 2013.
94
direito de utilizar o nome social nos crachás, endereço de e-mails, lista de ramais, sistemas
de informática e comunicações internas de uso social dos órgãos públicos, conforme a
Portaria nº 233 do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.
Em maio de 2012, o governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, assinou o
decreto que institui a Carteira de Nome Social para travestis e transexuais. Com a mesma
função de uma carteira de identidade, o documento permitirá que travestis e transexuais
sejam identificadas pelos nomes que desejam, porém, com validade exclusiva para o
Estado em questão. Consoante a esse projeto, o Conselho Estadual de Segurança Pública
do Pará aprovou, em novembro do mesmo ano, a implantação da Carteira de Identidade
Social para travestis e transexuais no Estado.
E, em 28 de janeiro de 2013, em apoio ao Dia da Visibilidade Trans (29/01), o
Ministério da Saúde anunciou que travestis e transexuais poderão usar o nome social no
Cartão Nacional de Saúde (Cartão SUS) no lugar do nome de batismo. Com tais
regulamentações, evidencia-se a proporção que a questão do uso do nome social teve em
nível nacional.
Além disso, a repercussão da aceitação do uso do nome social para travestis e
transexuais mostra a legitimação de um regime de verdade em relação às políticas de
inclusão da diferença. Nesse sentido, seria equivocado centralizar a formulação da Portaria
na figura de Cláudia Farias, como indica a maioria dos/as entrevistado/as e a própria
Cláudia. Sem dúvida, Cláudia é uma peça-chave na engrenagem que possibilitou a
construção da legislação em questão. Entretanto, ela não é a única peça responsável para
fazer com que a engrenagem se movimente. “Trata-se de romper com a tendência de
atribuição de causalidade única, para construir um ‘poliedro de inteligibilidade’, cujo
número de faces não está previamente definido e nunca pode ser concluído” (FONSECA et
al., 2006, p. 658).
Com efeito, a formulação da portaria em questão deve ser analisada a partir de uma
determinada correlação de práticas que simultaneamente concorreram para criar as
condições de sua emergência. Como afirma Foucault (2000d, p. 12):
Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” da
verdade, isto é, os tipos de discurso que ela aceita e faz funcionar como
verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os
enunciados verdadeiros ou falsos, a maneira como se sancionam uns e
outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para obtenção
da verdade; o estatuto daqueles que têm a função de dizer o que funciona
como verdadeiro.
95
A exemplo, pode-se inferir que Cláudia não ocuparia a função de assessora de
gabinete de uma Secretaria de Educação há 30 anos atrás, quando a discussão sobre
diversidade sexual ainda era incipiente no Brasil. Se a homossexualidade era alvo de forte
preconceitos e desconfianças, a transexualidade era relegada à marginalidade e à
prostituição, o que ainda hoje é uma concepção arraigada no senso comum.
Portanto, a Portaria do Nome Social deve ser analisada a partir de uma
inteligibilidade das lutas, das estratégias, das táticas de poder que formam um solo de
possibilidades para a emergência dos acontecimentos (FOUCAULT, 2000a). Nesse
sentido, a portaria não demorou três dias para ser produzida, mas sim, anos e, por que
não?, séculos para ser pensada, para entrar no regime de verdade que a aciona na
atualidade.
Porém, tal regime de verdade não é absoluto, sem contradições ou resistências. A
política em questão deve ser analisada como um processo inter-relacional e instável,
apresentando-se em formas díspares, heterogêneas e em constante transformação. Não é
algo unitário e global. A exemplo disso, pode-se dizer que a política do nome social foi
mais aclamada do que efetivamente concretizada.
Com base nas entrevistas, conversas com integrantes dos movimentos LGBT,
travestis e transexuais, gestores/as, além de professores/as, diretores/as de escolas e
estudantes, pode-se afirmar que a implementação dessa política foi insuficiente para se
produzir os efeitos esperados: a aceitação do uso do nome social por parte de gestores/as e
professores/as e a consequente permanência ou retorno de travestis e transexuais para as
escolas.
Os diferentes segmentos entrevistados elencam os obstáculos encontrados para a
plena efetivação da Portaria do Nome Social. Um primeiro obstáculo é apontado pela
própria Cláudia. Ela relata que durante o período em que trabalhou na Seduc visitou várias
escolas, inclusive no interior do Estado, para informar sobre a Portaria do Nome Social.
Era um acompanhamento da implementação da política no seu destino final, ou seja, nas
escolas públicas. Porém, em 2009, houve uma mudança na gestão. A secretária de
Educação foi substituída e assim, Cláudia Farias, aparentemente a pessoa mais interessada
no sucesso dessa política, saiu da Seduc e esse processo de divulgação e sensibilização
sobre a portaria foi interrompido.
Neste caso, a descontinuidade da gestão é indicada por Cláudia como um grande
obstáculo para o sucesso da política em questão. Em quatro anos do governo de Ana Júlia
96
Carepa (PT), houve cinco secretários/as da Seduc. Apesar de os/as secretário/as serem do
mesmo partido político, cada um/a tinha suas prioridades e perspectivas de ação.
Em entrevista para esta pesquisa, a coordenadora da Diretoria de Ensino para a
Diversidade, Inclusão e Cidadania (Dedic) da Seduc, ainda na gestão do PT, disse que não
houve continuidade no acompanhamento nas escolas sobre o nome social, pois não havia
sensibilidade da equipe atual a esse caso. As ações estavam mais voltadas à inclusão
escolar de negros, índios e ribeirinhos. Interessante notar a existência de uma diretoria
dentro da Seduc que traz em seu nome “Diversidade, Inclusão e Cidadania” e afirma não
haver sensibilidade com o tema da diversidade sexual nas escolas. Tal política foi
justamente empregada visando à inclusão da diversidade e à possibilidade de construção de
cidadania para a população travesti e transexual.
Em 2011, na gestão de outro governador (PSDB), fui novamente à Dedic pesquisar
sobre o acompanhamento da política do nome social. A informação foi semelhante à
anterior, uma vez que a atual diretora da Dedic disse que a discussão sobre a portaria
estava parada, uma vez que não havia nenhuma pessoa na Seduc mobilizada para realizar
esse trabalho.
Aproveitei a ocasião e pedi dados estatísticos sobre as requisições do nome social
nas matrículas escolares. No site da Seduc, no ambiente para matrícula e pré-matrícula de
novos e antigos alunos/as, há o espaço para inserção do nome social. Há inclusive um link
chamado “O que é o nome social?”, no qual consta a Portaria nº 016/2008-GS em formato
pdf. Depois de uma semana, fui informada que nenhuma pessoa solicitou o uso do nome
social via sistema da Seduc. Este dado, para a diretora do Dedic, indica que não há
travestis e transexuais nas escolas ou se há, eles/as não querem usar o nome social. Porém,
há travestis e transexuais nas escolas, mas de alguma maneira essas informações não
chegam à base de dados da Seduc.
A falta de interesse em dar prosseguimento ao acompanhamento da política do
nome social indica que a portaria foi um projeto isolado de Cláudia Farias dentro da Seduc.
Com efeito, a portaria saiu do gabinete da secretária de Educação e não da Dedic, órgão
responsável, como dito acima, por propor políticas em relação à diversidade sexual. Isto é,
parece ter sido uma política pouco debatida pelos demais órgãos da Seduc.
Tal isolamento também se observa em relação à participação do movimento LGBT
do Pará na elaboração dessa política. Interrogada sobre a participação do movimento
LGBT no processo de formulação da portaria, Cláudia é enfática:
97
Teve participação do movimento LGBT na elaboração da portaria?
Não, não, não, não. Quando instituímos a portaria, eu não fiz questão de
chamar o movimento pra conversar, porque não acho que isso dependa de
conversa com o movimento. Era um papel a ser cumprido pela Seduc e
foi cumprido. Eu sou transexual e sei o que eu passei na escola. Eu não
preciso chamar o movimento pra saber o que eles acham. É uma questão
de direitos. Independente do que o movimento pense ou deixe de pensar,
a ação tem que ser efetivada. Então, tem que acabar com isso de toda
hora que for fazer alguma coisa tem que chamar o movimento pra
discutir. Eu acho isso um absurdo. Eu não concordo.
Apesar de o movimento LGBT não ter sido convocado para debater e mobilizar a
implementação de tal política, a portaria foi assinada e divulgada, como já mencionado,
durante a I Conferência Estadual GLBT em 2008. Desse modo, precisou dos aplausos, do
reconhecimento e da colaboração da plateia LGBT. Com a saída de Cláudia da Seduc,
os/as maiores interessados/as pelo sucesso da portaria se tornaram os/as integrantes dos
movimentos sociais LGBT, principalmente aqueles protagonizados por travestis e
transexuais. Dessa forma, o monitoramento do cumprimento ou não da portaria acabou
sendo delegado aos movimentos sociais. Nas palavras do assessor do Centro de
Referência:
Você sabe se teve uma política de acompanhamento da Secretaria de
Educação nas escolas?
Não teve, não teve. Quem fez isso foi o movimento. E tem mais, o
movimento não fez de forma organizada, foram algumas pessoas da
direção do movimento que acharam por bem de discutir naquela escola,
naquela outra.
Com efeito, coube ao movimento social o papel de polícia: fiscalizar, ainda que de
forma aleatória e assistemática, a implementação da política do nome social nas escolas
públicas. O exercício policial também pode se observado na prática de receber denúncias
sobre o não cumprimento da determinação estatal que legitima o uso do nome social. As
denúncias eram recebidas pelo Centro de Referência, assim como pelas demais
organizações que têm como mote a diversidade sexual, tais como o Grupo de Resistência
Travesti e Transexual da Amazônia (GRETTA), a Coordenadoria de Proteção à Livre
Orientação Sexual (CLOS) da Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos
(SEJUDH) e o Grupo Homossexual do Pará (GHP). Nessas organizações, sempre que
havia queixa de não cumprimento da portaria, entregava-se uma cópia do documento ao
reclamante e recomendava-se que as travestis e as/os transexuais reivindicassem a
matrícula com o nome social. Porém, a mera informação sobre a portaria nem sempre é
98
suficiente para se garantir a matrícula com o nome social ou o seu respeito no cotidiano
escolar.
Nesse processo, ainda que precário de acompanhamento, os/as integrantes dessas
organizações colheram outras informações que os/as autorizaram a pontuar alguns
elementos que dificultaram o sucesso da Portaria do Nome Social nas escolas.
Um deles é a falta de informação sobre a portaria. Muitas travestis ou transexuais
que não estão vinculadas ao movimento social não sabem da existência da legislação em
questão. Isso porque há pouca mobilização das próprias pessoas trans no que tange às
questões de cidadania. Como exemplo, uma integrante do movimento LGBT entrevistada
cita algumas ações políticas que tinham como público-alvo travestis e transexuais que não
conseguiram atrair um número considerável de pessoas. Com isso, percebe-se uma falta de
mobilização das pessoas trans pelos seus direitos, justificada pela atuação na prostituição
por grande parte delas. O trabalho pela noite inviabiliza a ação coletiva durante o dia.
Porém, devem-se levantar outras questões que dificultam a permanência ou retorno
de travestis e transexuais nas escolas. Muitas acabam por ser expulsas de casa, como
Jenifer, Leila e Babete, e encontram na prostituição um espaço de sobrevivência e
aceitação. Diferente do que ocorre com as demais “minorias” sociais, travestis e
transexuais (e LGBT de maneira geral) geralmente não encontram na família um apoio à
discriminação que sofrem na sociedade. Neste caso, a família é um dos primeiros lugares
no qual se sente a opressão e a intolerância (MOTT, 2002).
De acordo com as falas das pessoas entrevistadas, muitas famílias, particularmente
as mais pobres, só aceitam uma travesti ou transexual de volta para a casa quando esta traz
consigo o dinheiro adquirido na prostituição. Como a história de Jenifer apresentou, o
trabalho na prostituição dificulta a permanência na escola. Não faz mais sentido, para
muitas delas, continuar a estudar. Até porque elas já pressupõem a impossibilidade de
conseguir um emprego formal após assumirem o modo de viver travesti ou transexual.
Então, qual é a razão de concluir os estudos se não for para conseguir posteriormente um
emprego? E mais, para que conseguir outro emprego quando já se tem um no qual, além de
retorno financeiro, elas são aceitas e desejadas?
Com efeito, essas pessoas que foram expulsas de casa, que são vistas como uma
abjeção, pois subvertem, em grande medida, a imposição corporal-biológica para o
exercício de si, que abandonam a escola e se desligam de uma série de vínculos sociais,
passam a criar e circular pelos espaços onde se sentem mais seguras e aceitas. Diante desse
99
cenário, elas acabam por desacreditar que as questões como escolarização e direitos
humanos sejam direcionadas a elas.
Além disso, outra dificuldade para a implementação da Portaria do Nome Social é o
forte preconceito direcionado às travestis e transexuais. O coordenador da CLOS relatou
que um professor, quando pressionado a chamar uma aluna por seu nome social, disse
preferir ser exonerado a acatar a portaria, alegando que sua religião condena qualquer
manifestação da sexualidade divergente da heterossexual.
A presidente do GRETTA reclama que não houve um processo de sensibilização
nas escolas públicas sobre a importância dessa política no sentindo de diminuir o impacto
da discriminação de travestis e transexuais nas escolas. Em suas palavras:
Aí vem o problema: o Pará foi o primeiro Estado a criar essa portaria, o
pioneiro, que foi aplaudido pelo Brasil inteiro, e é o primeiro Estado onde
não consegue... Os professores não conseguem obedecer a lei. Muitos
professores, a maioria, não quer chamar nós [sic] pelo nome social. A
maioria chama pelo número ou nem chama. Dizem que a secretária [de
Educação] tinha coisa mais importante pra fazer do que se preocupar com
viado [sic].
O que se percebe é a homofobia entranhada nas práticas escolares. A homofobia,
tais quais outras formas de preconceito – xenofobia, racismo, antissemitismo – é uma
manifestação arbitrária de designar o outro como contrário, inferior ou anormal. Esse
processo é promovido pela hierarquização das sexualidades na sociedade contemporânea,
sendo a heterossexualidade como o padrão para avaliar todas as outras formas de exercer a
sexualidade (BORRILLO, 2010). Por isso, não é somente os homossexuais que sofrem
homofobia, mas todos aqueles que desafiam à norma corpo-sexo-gênero-sexualidade-
desejo: bissexuais, travestis, transexuais, crossdressing, drag queens, drag kings e tantas
outras formas divergentes da heteronormatividade58
.
A homofobia revela o medo de que as formas de exercício da sexualidade
“desviantes” sejam reconhecidas e legitimadas. É o medo de que a heterossexualidade
perca seu status de ser o exercício da sexualidade normal, de perder seu lugar privilegiado
na hierarquia das sexualidades, de seu monopólio de normalidade (BORRILLO, 2010).
Um exemplo disso é a iniciativa de criar uma campanha que mobilize o orgulho de ser
heterossexual. O vereador Carlos Apolinário (DEM-SP), propôs um projeto de lei que
58
Para exprimir a complexidade do fenômeno e especificar cada modo de vida que sofre preconceito em
decorrência da orientação sexual, seria mais correto utilizar os termos gayfobia, lesbofobia, bifobia e
transfobia. Porém, optou-se por utilizar o termo homofobia para designar o conjunto desses fenômenos.
100
institui o Dia do Orgulho Heterossexual em São Paulo, que, nas palavras do vereador: "é
um protesto contra os privilégios dados aos gays"59
. O movimento LGBT considera tal
projeto, além de homofóbico, descabido, uma vez que nenhum heterossexual sente
preconceito ou é agredido devido a sua orientação sexual60
.
Figura 1: Charge do cartunista Arnaldo Branco que circulou pelas mídias sociais.
Armazenada em 07 de maio de 2012.
A homofobia é uma forma de preconceito tolerada e, às vezes, até incentivada.
Como nos fala Nilson Dinis (2011), na atualidade, poucas pessoas ousariam a expressar
publicamente o preconceito sexista contra mulheres ou racistas contra negros ou judeus.
Entretanto, ainda é “permitido” expressar repúdio contra homossexuais, haja vista as
declarações homofóbicas feitas pelo deputado federal Jair Bolsonaro (Partido Progressista-
RJ) em um programa televisivo de grande audiência nacional61
ou as pregações
midiatizadas do pastor Silas Malafaia, fundamentalista e assumidamente (e provavelmente
com orgulho) homofóbico. Como observa Dinis (2011, p. 41): “[...] dizer publicamente não
se simpatizar ou mesmo odiar pessoas homossexuais ainda é algo não só tolerado, como
constitui também uma forma bastante comum de afirmação e de constituição da
heterossexualidade masculina”.
59
Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,veto-de-kassab-ao-dia-do-orgulho-hetero-e-
publicado-no-diario-oficial-,766572,0.htm. Acesso em: 2/maio/2012. 60
Em 2 de agosto de 2011 o projeto foi aprovado pela Câmara Municipal de São Paulo, mas foi vetado logo
em seguida pelo prefeito Gilberto Kassab. 61
Em 17 de maio de 2012, Dia Internacional de Luta contra a Homofobia, o deputado federal Jair Bolsonaro
declarou-se homofóbico e disse que quem não se posiciona contra os kits anti-homofobia está no armário.
“Se defender a família e as crianças é ser homofóbico, eu sou com todo prazer e vou acabar usando uma
camiseta nesse sentido”. Disponível em: http://noticias.r7.com/brasil/noticias/no-dia-contra-a-homofobia-
bolsonaro-provoca-deputados-quem-esta-quieto-esta-no-armario-20110517.html. Acesso em: 21/maio/2012.
101
Dinis (2011) utiliza o conceito “amoladores de faca” elaborado por Luis Antonio
Baptista (1999) para falar de certos discursos que atuam como cúmplices da violência
dirigida a gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais.
O fio da faca que esquarteja, ou o tiro certeiro nos olhos, possui aliados,
agentes sem rostos que preparam o solo para esses sinistros atos. Sem
cara ou personalidade, podem ser encontrados em discursos, textos, falas,
modos de viver, modos de pensar que circulam entre famílias, jornalistas,
prefeitos, artistas, padres, psicanalistas etc. Destituídos de aparente
crueldade, tais aliados amolam a faca e enfraquecem a vítima, reduzindo-
a a pobre coitado, cúmplice do ato, carente de cuidado, fraco e estranho a
nós, estranho a uma condição humana plenamente viva (BAPTISTA,
1999, p. 46).
Educadores e educadoras fazem farte desses amoladores/as de faca, pois, embora
não empunhem a faca que ataca e mata diversas pessoas LGBT, eles/as produzem a
patologização desses modos de ser. Ao não aceitar o nome social de travesti e transexuais,
ao não permitir que um casal de garotas circule de mãos dadas no recreio (sendo o mesmo
ato permitido para casais heterossexuais), ao dizer que a sexualidade é algo pertinente à
vida privada, ao chamar os pais para uma reunião para expor o fato de um aluno gostar de
brincar com bonecas etc. Essas atitudes dizem que não há lugar para a diversidade sexuais
na escola, que esses/as estudantes são anormais, abjetos (BUTLER, 2003) e, portanto,
podem ser alvo de violência. Tais práticas “são genocidas porque retiram da vida o sentido
de experimentação e de criação coletiva. Retiram do ato de viver o caráter pleno de luta
política e o da afirmação de modos singulares de existir” (BAPTISTA, 1999, p. 49).
A homofobia, portanto, é o principal obstáculo para uma efetiva educação inclusiva
para as pessoas trans. Pode-se até convocar, aceitar e tolerar a presença de travestis e
transexuais nas escolas, porém, elas/es não são “o sujeito da pedagogia” (SKLIAR, 2001,
p. 17). Isto é, o sujeito da pedagogia continua sendo o/a heterossexual, aquele/a expresso/a
nos livros didáticos ou de literatura que apresentam exclusivamente casais heterossexuais;
nas aulas de ciências que abordam a sexualidade apenas pelo viés reprodutivo; nos cartazes
afixados nas paredes; nas cores adequadas para cada “gênero”; na separação do banheiro
entre meninos e meninas etc. Não há o reconhecimento dos modos de viver de travestis e
transexuais. As pessoas trans são observadas e tratadas tendo como ponto de partida a
suposta normalidade heterossexual.
Além da homofobia, percebe-se que muitos/as gestores/as escolares não sabem da
existência de tal legislação, como ilustrado com a história de Bianca. Ao falar com o vice-
102
diretor da escola na qual Bianca estuda, ele me disse que já tinha ouvido alguma coisa (por
alto) sobre nome social de travestis e transexuais, que até procurou na internet maiores
informações, mas não achou a portaria ou orientações de como proceder. De modo geral, o
que se percebe é que o cumprimento da portaria está à mercê do interesse de gestores/as e
professores/as das escolas.
Com efeito, outro aspecto elencado pelas pessoas ouvidas nesta pesquisa como
obstáculo para o sucesso da portaria é justamente a não estipulação de uma punição para
aqueles que não a acatarem. Em uma sociedade em que o principal instrumento de controle
é a lei – na qual há a determinação prévia de uma penalidade àqueles que a infligirem –
uma portaria que não contém uma cláusula punitiva é vista como ineficaz. Todos/as
entrevistados na primeira etapa da pesquisa, exceto Cláudia Farias, apontaram a falta de
fiscalização e de punição aos/às professores/as e funcionários/as que não legitimam o uso
do nome social como um sério entrave para a efetiva concretização da portaria no cotidiano
das escolas.
O movimento social pede mais fiscalizações e punições. Trata-se de uma gestão
policial da vida efetivando uma biopolítica orientada pelo clamor de mais castigos
(SCHEINVAR, 2011). A base, portanto, é o sistema judiciário, o qual é repleno de
elementos punitivos. Assim, percebe-se um lamento de que a portaria não funciona como
uma lei, ou seja, não pune.
Porém, é preciso ratificar que as mudanças sociais não se efetuam simplesmente
por exigências de uma lei. Como exemplo, destaca-se que desde 1989 vigora uma lei que
classifica o racismo como crime inafiançável e punível com prisão de até cinco anos e
ainda assim é possível ver cenas de descriminação racial cotidianamente, haja vista o caso
de um psicanalista que agrediu uma funcionária negra de um cinema na capital do Brasil,
ou de um deputado federal que publica em uma rede social que os africanos (a população
negra) são um povo amaldiçoado por Deus.
O que quero ratificar é que mesmos as leis, com punições estipuladas, não
asseguram o cumprimento do comportamento desejado. A Lei Maria da Penha não
conseguiu, até o momento, acabar com os casos de violência contra a mulher. Apesar da
radicalização da Lei Seca no Brasil, cotidianamente há acidentes provocados por
condutores/as alcoolizados/as. Mesmo com a Lei da Reforma Psiquiátrica, de 2001, ainda
vemos a existência e criação de manicômios, hospitais de custódia, entre tantos outros
serviços proibidos por esta lei.
103
Porém, mesmo com o questionamento sobre a eficácia das leis em seu potencial de
eliminar as condutas consideradas desviantes, verifica-se na atualidade uma multiplicação
de leis. Como as leis existentes são geralmente vistas como insuficientes, clama-se por
outras: lei contra a homofobia, contra a palmada, contra o bullying, a que criminaliza as
agressões de alunos contra professores etc. Tal inflação das legalidades se justifica pela
funcionalidade que a lei estabelece na era da biopolítica: é “a forma mais econômica, isto
é, menos onerosa e mais certeira, para obter a punição e a eliminação das condutas
consideradas nocivas à sociedade” (FOUCAULT, 2008b, p. 341). A celeuma que pede
cada vez mais leis é um efeito da sociedade de segurança, da governamentalidade
neoliberal de mercado e sua lógica mutante de curto prazo.
Há que se destacar uma especificidade do modo como muitas leis são formuladas
no Brasil. Criam-se as leis e somente depois há a participação social que vai acatar as
novas leis ou se utilizar dos direitos que elas oferecem. Ou seja, as leis que são feitas de
forma vertical, sem a participação social na discussão de suas propostas, provocam grande
resistência em sua efetivação. No caso da Portaria do Nome Social, não ouve participação
do movimento social, os/as agentes escolares não foram ouvidos/as e a maioria nem sequer
sabe da existência desta legislação. As leis são práticas discursivas e, portanto, apresentam
novos repertórios que não são absorvidos imediatamente; elas passam a ser apropriadas à
medida que circulam, criando-se uma base para sua concretização.
Por essa via é possível compreender as resistências que a Portaria do Nome Social
enfrenta na atualidade. O enunciado contido na legislação – aceitação do nome social de
travestis e transexuais nas escolas – entra em choque com uma norma social: a
heteronormatividade. Isto é, a heterossexualidade como norma, como forma normal e
universal de exercício da sexualidade.
Assim, pode-se afirmar que uma portaria, um decreto, uma lei, não produz
isoladamente mudança nas concepções, mentalidades. Ainda mais levando em
consideração que o tema da diversidade sexual encontra fortes resistências em vários
âmbitos sociais. Percebe-se, portanto, que a inclusão escolar da diversidade de modos de
viver (sexual, de gênero, racial, de pessoas com deficiência etc.) depende de múltiplos
fatores, sendo as políticas de inclusão existentes, entre as quais a do nome social, apenas
um dentre esses muitos aspectos.
Além disso, a crítica recai a uma esfera mais ampla que legislações desse tipo – que
autorizam o uso do nome social em escolas, universidades, departamentos públicos etc. –
104
não conseguem abranger. Berenice Bento (2012)62
chama essas legislações de “gambiarras
legais”, ou seja, uma solução “à brasileira” que não altera substancialmente a vida de
travestis e transexuais. Fora da escola, travestis e transexuais continuam se submetendo a
situações vexatórias e humilhantes por apresentarem nomes nos documentos de
identificação incompatíveis com suas aparências.
De qualquer forma, a Portaria do Nome Social produziu efeitos políticos
importantes, uma vez que legitima o direito ao uso do nome que travestis e transexuais
escolheram para si e assim, produz o reconhecimento das experiências trans no cotidiano
escolar. Outro efeito desta legislação pioneira foi a reivindicação nacional do movimento
LGBT pelo direito ao nome social de travestis e transexuais. Dessa forma, a crítica não
está na formulação ou na intenção da portaria, mas sim, na sua (não) implementação e na
ainda incipiente produção de inclusão escolar de travestis e transexuais.
62
Disponível em: http://www.cartapotiguar.com.br/2012/05/29/identidade-de-genero-entre-a-gambiarra-e-o-
direito-pleno. Acesso em: 30/maio/2012.
105
CAPÍTULO 4
EFEITOS DE SUBJETIVAÇÃO NO GOVERNO DE
TRAVESTIS E TRANSEXUAIS
Inventar aumenta o mundo.
Manoel de Barros
A Portaria do Nome Social, apesar dos modestos resultados obtidos no que se refere
ao retorno ou permanência de travestis e transexuais nas escolas, configura-se como um
elemento produtor de determinadas formas de ser: ser travesti ou transexual, ser estudante,
ser responsável por sua escolarização etc. Os efeitos de uma política de inclusão, tal como
a do nome social, não são encontrados apenas na almejada inserção do seu público-alvo
nas escolas, mas também no seu potencial em produzir modos de subjetivação.
Para seguir a concepção foucaultiana sobre a produção dos modos de subjetivação é
preciso adentrar o campo da ética. Foucault (2006a) define a ética como a própria relação
de si para consigo a partir de técnicas e de práticas a fim de se constituir como um sujeito
moral. O autor distingue, no entanto, três aspectos da moral: o código, o comportamento e
a constituição de si mesmo como um sujeito moral. Uma coisa é o código moral, com suas
prescrições de “valores e regras de ação propostas aos indivíduos e aos grupos por
intermédio de aparelhos prescritivos diversos” (FOUCAULT, 2006a, p. 26); outra coisa é o
comportamento moral, ou seja, a efetiva conduta adotada pela pessoa diante das
prescrições do código. Já a constituição de si como um sujeito moral é o que o autor chama
propriamente por ética, ou seja, as relações singulares por meio das quais os sujeitos
problematizam a experiência de si.
Em suma, para ser dita “moral” uma ação não deve se reduzir a um ato ou
a uma série de atos conformes a uma regra, lei ou valor. É verdade que
toda ação moral comporta uma relação ao real que se efetua, e uma
relação ao código a que se refere; mas ela implica também uma certa
relação a si; essa relação não é simplesmente “consciência de si”, mas
constituição de si enquanto “sujeito moral”, na qual o indivíduo
circunscreve a parte dele mesmo que constitui o objeto dessa prática
moral, define sua posição em relação ao preceito que respeita, estabelece
para si um certo modo de ser que valerá como realização moral dele
mesmo; e, para tal, age sobre si mesmo, procurando conhecer-se,
106
controlar-se, põe-se à prova, aperfeiçoa-se, transforma-se (FOUCAULT,
2006a, p. 28).
Se nos trabalhos dos domínios da arqueologia e da genealogia, Foucault
preocupava-se em analisar como o sujeito era constituído, respectivamente, pelas técnicas
discursivas do saber e pelos mecanismos de poder normalizador, a partir do domínio da
ética, o problema privilegiado para Foucault será como o sujeito se constitui a si mesmo a
partir de tecnologias de si em suas relações com o saber e com o poder (FONSECA, 2012).
Há, dessa forma, um deslocamento em sua genealogia do sujeito moderno: da dupla
ontologia saber-poder para uma tripla ontologia saber-poder-subjetividade (ORTEGA,
1999).
Portanto, no domínio da ética, Foucault privilegia as tecnologias de si por meio das
quais um sujeito se conhece e se transforma, visando alcançar uma forma de vida que lhe
pareça mais aceitável (WEINMANN, 2006). Por tecnologia de si, Foucault (1997, p. 109)
compreende os procedimentos “pressupostos ou prescritos aos indivíduos para fixar sua
identidade, mantê-la ou transformá-la em função de determinados fins, e isso graças a
relações de domínio de si sobre si ou de conhecimento de si por si”. Portanto, somente no
domínio da ética é possível falar em subjetivação e não em assujeitamento, em governo de
si e não apenas em governo dos outros.
Com tal definição de tecnologias de si, rejeita-se a afirmação de um sujeito
universal ao “mostrar que as pessoas são muito mais livres do que pensam, que elas tomam
por verdadeiros, por evidentes certos temas fabricados em um momento particular da
história, e que essa pretensa evidência pode ser criticada e destruída” (FOUCAULT,
2010h, p. 295). O que se pretende destacar, portanto, é que a subjetividade não é algo
primeiro, pronto, acabado, essencial. Trata-se de um processo, uma conquista difícil, fruto
de múltiplos agenciamentos entre saberes, práticas, governo de si e dos outros nas tramas
históricas de sua constituição.
Com efeito, compreendem-se os modos de subjetivação como frutos de
experiências históricas, coletivas, relacionados a múltiplas práticas sociais tanto de
governo dos outros como de governo de si. A subjetivação é situada, assim, no campo das
condições históricas de sua produção, da tensão estabelecida nas relações de poder que
possibilita modalidades de existência (FOUCAULT, 1999; 2010b).
Os modos de subjetivação perguntam pelas condições de produção do ser humano,
ligadas a fatores heterogêneos que permitem o surgimento de determinados modos de ser.
107
Percebe-se uma descentralização de qualquer interioridade psicológica em favor de uma
noção de subjetividade dotada de complexidade, uma vez que sua constituição leva em
consideração uma multiplicidade de elementos (linguísticos, institucionais, legais, sociais,
culturais, midiáticos). Sendo assim, os modos de subjetivação são frutos de múltiplos
agenciamentos sociais.
Um desses agenciamentos produtores de subjetivação é a educação escolarizada. As
teorias e práticas pedagógicas são operadores de tecnologias de si capazes de colocar em
funcionamento certas relações do sujeito consigo mesmo (LARROSA, 1994). Assim, as
práticas pedagógicas são operadoras de uma “experiência de si” ao produzirem e mediarem
alguma modalidade da relação consigo, como objetivo explícito de sua transformação.
O sujeito pedagógico ou, se quisermos, a produção pedagógica do sujeito,
já não é analisada apenas do ponto de vista da “objetivação”, mas
também e fundamentalmente do ponto de vista da “subjetivação”. Isto é,
do ponto de vista de como as práticas pedagógicas constituem e medeiam
certas relações determinadas da pessoa consigo mesma. Aqui os sujeitos
não são posicionados como objetos silenciosos, mas como sujeitos
falantes; não como objetos examinados, mas como sujeitos confessantes;
não em relação a uma verdade sobre si mesmos que lhes é imposta de
fora, mas em relação a uma verdade sobre si mesmos que eles mesmos
devem contribuir ativamente para produzir (LAROSA, 1994, p. 54).
Portanto, vê-se que a escola não é um mero espaço neutro para transmissão e
aquisição de conhecimento do “mundo exterior”, pois funciona como um aparato de
subjetivação a partir do qual o ser humano se fabrica (LARROSA, 1994). Daí pode-se
inferir a importância de uma legislação cuja intenção é atrair travestis e transexuais para a
educação formal. A escola é um dos elementos que compõem o dispositivo pedagógico,
uma tecnologia que produz governo de si.
Gerenciar o governo de si se reveste de importância devido a sua função na
governamentalidade atual. A partir da ideia de poder como governo, Foucault passa a
“considerar que relações de poder/governamentalidade/governo de si e dos outros/ relação
de si para consigo compõem uma cadeia, uma trama e que é em torno destas noções que se
pode articular a questão da política e a questão da ética” (FOUCAULT, 2011, p. 225).
Há, portanto, um entrelaçamento fundamental entre as tecnologias políticas de
dominação sobre os outros (por exemplo, as políticas públicas de regulação da vida, como
a Portaria do Nome Social) e as tecnologias de si. A relação entre o governo dos outros e o
governo de si é de tal forma estreita, que se pode afirmar que só é possível governar os
outros por meio das tecnologias de si. Nesse sentido, para se governar os outros, por meio
108
de políticas e práticas diversas, faz-se necessário governar as subjetividades, produzir
determinados modos de ser mais favoráveis aos objetivos da governamentalidade em
questão.
A partir de tais problematizações, pode-se compreender a questão que anima este
capítulo: quais os efeitos de subjetivação produzidos pela Portaria do Nome Social entre
aqueles/as a que tal legislação se destina? Tal política é o disparador para se percorrer a
dobra analítica entre o governo de si e o governo dos outros no que se refere à vida de
travestis e transexuais. Pergunta-se, portanto, sobre os efeitos de normalização e sobre as
possíveis práticas de resistência produzidas a partir da ação de autorizar o uso do nome
social de travestis e transexuais nas escolas.
Interlúdio 8: Valesca, sua vida, sua identidade
Ela cursa Biologia no Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia do Pará, no campus Tucuruí, município a 400 quilômetros de
distância da capital, Belém. Trabalha como secretária em um escritório de
contábeis e, como voluntária, ministra aulas de Biologia para turmas de 5ª a
8ª série em um projeto social. Além disso, é bolsista de iniciação científica e
pretende seguir a carreira acadêmica, ingressando no mestrado e
posteriormente no doutorado em Neurociências.
Mas não é só a atividade acadêmica que anima a sua vida. Nos finais de
semana trabalha em um salão de beleza como designer de sobrancelhas e
participa de um grupo de teatro e é backing vocal de uma banda regional. É
ainda ativista do movimento LGBT de Tucuruí, participando de reuniões,
encontros e conferências sobre diversidade sexual e direitos humanos.
Trata-se de Valesca, uma jovem transexual de 22 anos. A partir do
momento em que teve contato com os movimentos LGBT de Tucuruí e a
estudar sobre as “identidades de gênero” disponíveis, passou a se categorizar
como uma mulher transexual. Em suas palavras: “conversando com amigas
travestis, eu acabo não me reconhecendo naquele perfil, pelo fato de como elas
se relacionam sexualmente: se prostituem e ainda utilizam o genital masculino.
Isso é clássico das travestis”. Além disso, apoia sua transexualidade no fato de
109
só se relacionar com homens heterossexuais, como as “mulheres de verdade”
fazem. “Nunca namorei com gay”, ressalta Valesca.
Para ela a transexualidade é “algo que vem de dentro para fora e não de
fora para dentro”. Afirma que seu psicológico é 100% feminino: é muito
emotiva, cuidadosa, estudiosa, comportada e nunca foi promíscua. Planeja se
submeter ao processo transexualizador para poder “adequar” seu corpo à sua
alma feminina, mesmo que tenha que pagar por isso, no Brasil ou no exterior.
Diz que não tem tempo para esperar a cirurgia pelo SUS. Quer estudar,
trabalhar para, assim, poder pagar pelo corpo que considera apropriado para
si.
Valesca passou por várias situações discriminatórias durante sua vida
escolar: por ser gordinha, por ser “afeminada”, por chorar com facilidade,
por ter assumido a transexualidade como modo de vida. Hoje, Valesca diz que
não sentir preconceito em sua faculdade ou nos demais espaços que frequenta
diariamente. Acredita que conseguiu o seu espaço e o reconhecimento de seu
trabalho devido à sua dedicação aos estudos e por sua postura comportada e
“recatada de mulher”. Segundo ela, “é muito como o gay, o transexual, se
porta. Na escola, por exemplo, o uniforme era só a camisa e a parte de baixo
era livre. Mas eu não ia de short. Eu ia sempre de calça. Eu sempre tive pudor.
Nunca fui de andar nua por aí. Se vou pra praia, tudo bem. Mas tem local e
hora pra tudo, né?”.
Por meio de um plebiscito entre o alunado do instituto onde estuda,
decidiu-se permitir que ela e a irmã, também transexual, utilizassem o
banheiro feminino. É chamada pelo seu nome social, porém, não pelo pronto
cumprimento da Portaria do Nome Social ou das demais legislações que
garantem esse direito em âmbito federal, mas sim, devido à intervenção do
movimento LGBT junto ao instituto no qual estuda. Para ela, o nome social é
de fundamental importância. Só usa o nome masculino no último caso: “Nos
cadastros, sempre tem que ter aquele nome. Como se fosse uma sombra que
me persegue”. Sonha em trocar oficialmente de nome. “Não quero ter nome
social. Quero ter um nome e ponto”. Mas tem receio que a alteração de nome
invalide os certificados acadêmicos que tanto se orgulha de colecionar.
110
4.1 Efeitos de identidade
Quais os modos de subjetivação efetuados por Valesca? Quais as técnicas de si
propiciadas pelo uso do nome social? Essas técnicas de si são capturadas por tecnologias
de controle? Há espaço para a formação de resistentes modos de vida? Em que medida há
relação ética consigo e em que medida ela é gerida apenas pelo poder da norma?
Pode-se dizer que Valesca luta ativamente para ser chamada e identificada pelo
nome que escolheu para si e para usar o banheiro que considera apropriado para ela, ou
seja, nega-se a usar o nome com o qual fora registrada ao nascer, assim como a usar o
banheiro masculino. Recusa, dessa forma, a norma que liga de maneira coercitiva sexo-
gênero-desejo. Caso seguisse essa lógica, Valesca, nascida com um corpo “masculino”,
deveria ser um homem e desejar mulheres. Porém, ela se afirma como uma mulher e deseja
homens. Por que é tão inadmissível, seguindo a heteronormatividade, pensar a
possibilidade de existência de uma mulher com pênis?
Em uma primeira análise, pode-se dizer que o uso do nome social incita a uma
resistência nas práticas de Valesca. Usar o nome que ela escolheu, que ela acha mais
adequado para si, é uma prática de resistência, uma vez que ela não aceita um governo da
subjetividade que naturaliza a relação entre corpo, gênero e sexualidade orientada pela
heteronormatividade. Ou seja, a matriz de inteligibilidade que sustenta essa naturalização é
a heterossexualidade compulsória, a heterossexualidade como única possibilidade viável e
compreensível de ser e estar no mundo.
Dessa forma, Valesca recusa o sistema que localiza o centro das identidades nas
estruturas corporais. Ela, assim como outras pessoas trans, demonstra que não somos
predestinados a cumprir as normas impostas a partir de nossas estruturas corpóreas
(BENTO, 2008; MÉLLO, 2012). Até porque, tais estruturas corpóreas não indicam algo
substantivo, portador de características essenciais, idêntico a si mesmo. Tampouco gênero
é a expressão de uma “identidade” preexistente. Com efeito, tanto sexo quanto gênero em
nenhum sentido revelam uma ordem verdadeira das coisas (BUTLER, 2003).
A própria interpretação de que existem dois corpos diferentes, radicalmente
opostos, foi uma verdade que, para se estabelecer e se tornar hegemônica, empreendeu uma
luta contra outra interpretação sobre os corpos: o isomorfismo. A pesquisa de Thomas
Laqueur (2001) sugere que até o século XVIII imperava na Europa o modelo do sexo
111
único. Esse modelo, inspirado na filosofia de Galeno (129-200 d.C.), descrevia o corpo da
mulher como idêntico ao do homem, porém invertido: os ovários e a vagina das mulheres
eram o negativo imperfeito do pênis e dos testículos dos homens.
Somente no final do século XVIII é que se modifica essa maneira de descrever os
sexos. A distinção entre o feminino e o masculino passa a ser explicada pela biologia, por
propriedades consideradas “naturais”, específicas de cada sexo. De acordo com essa
concepção, cuja hegemonia se perpetua na atualidade, a mulher e o homem são portadores
de diferenças que não possuem nada em comum. A engenharia da diferença sexual –
espessura da pele, tamanho do crânio etc. – esquadrinhou os corpos com o objetivo de
provar as intensas diferenças entre o feminino e o masculino. É como se existisse uma
essência própria, singular a cada corpo, inalcançável ao outro.
Porém, a discussão de gênero trazida pelo movimento feminista, principalmente a
partir de 1960, veio denunciar que o gênero não deriva de forma determinista de um sexo.
Sendo a palavra sexo tradicionalmente associada ao conceito biológico, a noção de gênero
veio opor-se a esse determinismo anatômico nas relações entre os sexos, atribuindo-lhes,
agora, um caráter prioritariamente social (SCOTT, 1995; LOURO, 1995).
Não demorou muito para que a dicotomia sexo-natural versus gênero-cultural
também fosse radicalmente criticada. Beatriz Preciado (2002) afirma que postular nesses
termos a discussão sobre gênero é se apoiar na crença de que o corpo tem uma
materialidade biológica previamente dada. Como salienta Denise Sant’Anna (2000), o
corpo é alvo de infinitas e permanentementes descobertas, em um processo no qual ele
nunca é definitivamente revelado. O corpo, portanto, é um acontecimento histórico,
“relacionado aos receios e sonhos de cada época, cultura e grupo social” (SANT’ANNA,
2000, p. 237). A própria pesquisa de Laqueur (2001), ao mostrar a historicidade da
concepção de existência de dois sexos separados, afirma que o sexo também é produzido
socialmente por meio de nossos discursos, ciências, crenças. Portanto, não há sexo anterior
à cultura.
Segundo Judith Butler (2003), os atributos de gênero não são expressivos de
alguma substância essencial do ser humano, mas sim performativos: é a reiteração
constante de atos de fala (performativos) que levam à impressão de que certos enunciados
são “naturais”.
Se os atributos e atos de gênero, as várias maneiras como o corpo mostra
ou produz sua significação cultural, são performativos, então não há
identidade preexistente pela qual um ato ou atributo possa ser medido;
112
não haveria atos de gênero verdadeiros ou falsos, reais ou distorcidos, e a
postulação de uma identidade de gênero verdadeira se revelaria uma
ficção reguladora (BUTLER, 2003, p. 201).
A partir das reflexões de Butler (2003), é possível afirmar que não há uma essência
que embasa as performances que os sujeitos apresentam. Os elementos considerados de um
gênero ou de outro – masculino ou feminino – são frutos de uma produção histórica que
acabam por dar uma aparência de gênero nos corpos. As roupas, gestos, desejos expressam
uma identidade que, ao invés de essencial, é fabricada justamente pela utilização
performática desses elementos. Nesse sentido, o gênero não possui um status ontológico
separado dos vários atos que constituem sua realidade.
Em outras palavras, os atos e gestos, os desejos articulados e postos em
ato criam a ilusão de um núcleo interno e organizador do gênero, ilusão
mantida discursivamente com o propósito de regular a sexualidade nos
termos da estrutura obrigatória da heterossexualidade reprodutora
(BUTLER, 2003, p. 195).
Preciado (2002) propõe que, mais que performático, o gênero é protético, uma
prótese que não pode ser despregada da materialidade dos corpos. É nesse sentido que
Ricardo Méllo (2012) afirma que gênero não são performances, mas sim produtos
biopolíticos, pois não são os atos, as performances em si que interessam, mas o
governamento que produz gêneros. Os corpos não se separam da política e da
racionalidade produzidas sobre eles. O foco de análise não está no corpo, mas na rede que
o constitui.
Os corpos não contêm nenhum sexo e nenhuma performance definida,
mas se constituem no modo como são vividos em uma potencialização
política heterocentrada: medicalização, cirurgias, ornamentação, indústria
pornográfica, tecnologias jurídicas e midiáticas, congressos científicos
etc. Essas políticas mais que regular os corpos, os maquinizam. Corpo é
gerenciamento biopolítico, gestão (calculada) sobre os fluxos da vida.
Definiu-se que o corpo tem sexo e os usos diferenciados que se devem
fazer dele (MÉLLO, 2012, p. 202).
Tal controle político dos corpos se inicia mesmo antes de um corpo nascer. Antes
do nascimento, o corpo já está inscrito em um campo discursivo determinado, em um
conjunto de expectativas estruturadas em redes complexas de pressuposições sobre
comportamentos, interesses e subjetividades. Dizer o “sexo” do bebê (é menino ou
menina?) não revela simplesmente o sexo da criança, mas o produz. É uma tecnologia de
113
gênero, ou seja, um conjunto de instituições e técnicas que produzem masculinidade ou
feminilidade condicionada ao órgão genital (PRECIADO, 2002).
Tais masculinidade e feminilidade são produzidas por investimentos biopolíticos
que vão desde a escolha de cores, brinquedos e roupas adequados para cada “sexo” até as
expectativas sobre o futuro dessa criança, previsão de seus gostos, comportamentos, modos
de ser. Por outro lado, os corpos que ameaçam essa coerência sexo/gênero são
sancionados, como é o caso dos bebês intersexo. Logo ao nascer, é aconselhável que essa
criança se submeta a uma série de exames e processos químicos e cirúrgicos para eliminar
a ambiguidade, para se tornar um corpo inteligível, ou seja: um menino ou uma menina.
Como se não houvesse outra possibilidade de existência fora desse binarismo “essencial”.
Figura 2: Ilustração do cartunista Laerte. Armazenada no dia 25 de setembro de 2011.
Desse modo, o corpo já nasce atravessado pela cultura, na qual o sexo é uma das
normas pelas quais alguém simplesmente se torna viável, que qualifica um corpo para a
vida inteligível63
. Como afirma Bento (2011, p. 551): “a suposta descrição do sexo do feto
funciona como um batismo que permite ao corpo adentrar na categoria ‘humanidade’”.
Preciado (2002) sugere que todas as pessoas já nascem operadas por tecnologias
sociais precisas, uma vez que não existe corpo livre de investimentos discursivos e
políticos. Tal tecnologia de diferenciação sexual funciona como uma “mesa de operação
abstrata” pela qual todas as pessoas são submetidas (PRECIADO, 2002, p.102). Com
efeito, a cirurgia de transexualização – tão desejada por Valesca e por outras pessoas trans
– é uma mesa de operação secundária, na qual se renegocia o trabalho realizado sobre as
63
Atualmente há um movimento de resistência a esse binarismo identitário, como por exemplo, a não
revelação do “sexo” do bebê por parte dos pais. Para os defensores dessa prática, as crianças crescem sem a
prisão identitária de pertencer a este ou aquele gênero.
114
operações de gênero abstratas pela qual todas as pessoas passam, independentemente de
serem heterossexuais, homossexuais, bissexuais, transexuais ou travestis.
Os procedimentos médicos de “adequação sexual” asseguram a inclusão de todo
corpo em um dos dois sexos/gêneros reciprocamente excludentes. Percebe-se que no
interior dessa lógica dicotômica não há lugar para deslocamentos: o único lugar habitável
para o feminino é em corpos de mulheres, e para o masculino, em corpos de homens
(BENTO, 2008).
Como Valesca não se conforma às normas impostas culturalmente, ou seja, a
heteronormatividade, ela é analisada como uma falha, biológica ou moral, no
desenvolvimento. Nas palavras de Butler (2003, p. 39): “A matriz cultural por intermédio
da qual a identidade de gênero se torna inteligível exige que certos tipos de ‘identidade’
não possam ‘existir’ – isto é, aquelas em que o gênero não ‘decorre’ do sexo e aquelas que
as práticas do desejo não ‘decorrem’ nem do ‘sexo’ nem do ‘gênero’”.
Nesse sentido, Valesca é vista como um acidente sistemático produzido por uma
maquinaria heterossexual. Uma vez que o gênero não deriva (como se algum derivasse!)
do sexo biológico, o modo de ser de Valesca é estigmatizado como anormal, abjeto, em
benefício da estabilidade das práticas de produção do normal, natural (BUTLER, 2003).
Como nos diz Preciado (2002), diante da não existência de um “real masculino” ou “real
feminino”, toda aproximação imperfeita deve ser renaturalizada, normalizada, para
benefício do sistema sexo/gênero. Em contrapartida, todo distanciamento –
homossexualidade, transexualidade etc. – é considerado uma exceção perversa que
confirma a regularidade da suposta natureza sexual humana.
Porém, se entendemos a heterossexualidade como uma tecnologia biopolítica e não
como uma origem natural fundadora dos corpos e desejos, não há subversão em escapar da
maquinaria heteronormativa. A experiência identitária vivida por Valesca só é considerada
como uma subversão se levarmos em consideração um código sexual transcendental falso
(PRECIADO, 2002).
Além disso, é preciso relativizar a resistência à heteronormatividade vivida por
Valesca. Se resistir é antes de tudo inventar (FUGANTI, 2007), pode-se dizer que ela
resiste à heteronormatividade? Consegue resistir aos saberes e poderes que a constitui
enquanto mulher transexual? Ela cria formas de viver imprevisíveis às relações de poder
que visam cooptá-la? Há uma relação ética consigo ou ainda é orientada pelas normas
estabelecidas?
115
A partir das relações que Valesca estabelece consigo mesma na produção de si
enquanto mulher transexual, percebe-se o quanto ela está capturada pelo jogo de
identidades binárias. Se por um lado Valesca resiste a se adequar a um dos gêneros
inteligíveis – ou seja, “aqueles que, em certo sentido, instituem e mantêm relações de
coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo” (BUTLER, 2003, p.
38) –, por outro, ela sucumbe a esta mesma matriz de inteligibilidade ao se fixar em uma
postura (bastante conservadora, diga-se de passagem) de “ser mulher”.
A “identidade transexual” apresentada por Valesca está diretamente relacionada ao
modo de viver que se espera socialmente de uma mulher: é carinhosa, atenciosa, estudiosa,
decente, bem-comportada. Comporta-se, portanto, a um perfil identitário. Inclusive, credita
o preconceito vivenciado por muitos homossexuais (e demais segmentos LGBT) ao modo
como eles se comportam: usam roupas inapropriadas para o ambiente em questão, são
promíscuos e não dão prioridade aos estudos.
Trata-se então, de uma captura a um tipo de “dever-ser” mulher, como se houvesse
uma identidade inerente àquelas que nascem com uma anatomia considerada feminina. Ela,
portanto, esforça-se para alcançar esse ideal. Em outros termos, ela resiste à coerência
heteronormativa que liga sexo-gênero-desejo por ser uma mulher com um corpo
masculino, porém, na tentativa de redimir esse “erro da natureza”, assume um modelo
hegemônico de ser mulher que acaba por ser capturada pela norma que aparentemente
subverte.
A Portaria do Nome Social contribui para essa vinculação identitária, uma vez que
é preciso “se assumir” como travesti ou transexual para poder ter o nome pelo qual se
identifica na lista de frequência e demais documentos escolares. Valesca precisa, portanto,
confessar seu sexo, seu gênero, sua identidade para conseguir aquilo que considera um
direito. Nesses termos, a Portaria do Nome Social passa a ser um dispositivo confessional,
levando Valesca – e demais pessoas que desejam ser chamadas por um nome diferente do
registrado em cartório – a assumir uma identidade trans.
Em resumo, para ser açambarcada pela política do nome social, ela precisa aderir a
uma identidade, no caso, transexual. A política do nome social vincula Valesca a uma
identidade e é por meio dela que se estabelece uma série de tecnologias de controle. É
preciso se vincular a alguma categoria identitária para vir a ser alguém: homem, mulher,
travesti, transexual... E para cada um desses segmentos há normas de condutas, estilos de
vida apropriados, desejos específicos. Há uma mensagem social que diz: “as mulheres são
116
recatadas, sensíveis, carinhosas, cuidadoras etc. Desejam ser bonitas, poderosas e seduzir
homens. Logo, se você é uma mulher transexual, então, deve se adequar a esse perfil
identitário”.
Vale ressaltar que há um movimento que resiste a tais prescrições de gênero. Como
questiona Leonardo Tenório, presidente da Associação Brasileira de Homens Trans: “para
ser ‘diagnosticado’ como homem, eu tenho que ser bruto, cuspir no chão e ser
machista?”64
. Ou seja, se há tantas formas de homem ou mulher, por que haveria de ter
uma (e apenas uma) forma de ser trans?
Ainda hoje a referência para diagnosticar uma mulher transexual65
é a
categorização de Harry Benjamin, para a qual, para Valesca vir a ser considerada uma
verdadeira transexual, deve apresentar-se como uma pessoa assexuada, uma vez que
repudia seu órgão genital masculino. Por conta disso, deve sonhar em realizar a cirurgia
para adequar o seu corpo ao seu psicológico. Desse modo, há uma série de normas que
regulam o “dever-ser” transexual e Valesca acaba por ser capturada por tais prescrições.
Percebe-se, então, que o controle está na própria vinculação de um modo de vida a
um padrão de identidade. Neste caso, assumir uma identidade participa do dobramento do
poder, isto é, obedecer a essas construções identitárias de gênero e sexo é o próprio
operador do governo da alma:
O governo da alma depende de nos reconhecermos como, ideal e
potencialmente, certo tipo de pessoa, do desconforto gerado por um
julgamento normativo sobre a distância entre aquilo que somos e aquilo
que podemos nos tornar e do incitamento oferecido para superar essa
discrepância, desde que sigamos o conselho dos experts na administração
do eu (ROSE, 1988, p. 44).
Esse governo da alma – que busca governar as pessoas a partir das características
que as definem como “eu” – investe em identidades, diagnósticos e tratamentos, orientado
pela crença de que descobrir a “verdade de nós mesmos” tem um potencial de libertação,
uma vez que é um passo para a aceitação do que somos. Foucault (2003b, p. 149) finaliza o
primeiro volume de sua História da Sexualidade afirmando: “Ironia deste dispositivo: é
preciso acreditarmos que nisso está nossa ‘libertação’”.
64
Comunicação realizada durante o evento “Identidades trans e políticas públicas de saúde: contribuições da
psicologia”, promovido pelo Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, no dia 14 de março de 2013. 65
Dou o exemplo feminino, pois, para Benjamin (2011), os casos de transexualidade em mulheres biológicas
(homens trans) são raros, sendo compreendidos como casos extremos de homossexualidade feminina.
117
Porém, não há libertação em descobrir e assumir uma suposta identidade. Na
entrevista intitulada Da amizade como modo de vida, Foucault (2010f) critica a adesão a
uma identidade homossexual que pode facilmente ser estendida para a questão da
travestilidade e da transexualidade:
Outra coisa que constitui um desafio é a tendência de trazer a questão da
homossexualidade para o problema de “Quem sou eu? Qual o segredo do
meu desejo?”. Talvez fosse melhor perguntar: “Quais relações podem ser,
através da homossexualidade, estabelecidas, inventadas, multiplicadas,
moduladas?”. O problema não é descobrir em si a verdade de seu sexo,
mas antes usar sua sexualidade para chegar à multiplicidade de relações
(FOUCAULT, 2010f, p. 348).
Foucault (2010f) nos convoca a recusar uma determinada individualidade imposta e
a multiplicar as formas de vida. Eis por que tentar responder à questão “quem é você?” é
nossa maneira contemporânea de obedecer. “Quanto mais eu me procuro, tanto mais
obedeço ao Outro” (GROS, 2008, p. 137). E quanto mais eu obedeço ao clamor identitário,
mais eu renuncio a formas criativas de viver. Portanto, o que nos aprisiona é a própria
busca de uma identidade, pois nos fixa a um dispositivo de obediência a modos de ser já
estabelecidos.
O que se percebe com a vivência de Valesca é que a subjetividade se produz por
meio de um processo agonístico: é uma luta permanente. Há uma resistência frente à
heteronormatividade ao mesmo tempo em que há adesão à norma. Valesca mostra que não
há formas de vida completamente capturadas por relações de poder, assim como não há
vida totalmente livre das malhas do poder. As relações de poder têm fissuras, brechas, e é
justamente devido a essas falhas que o poder é tão eficaz. A vitalidade das relações de
poder está em seu inacabamento compulsório, uma vez que as tornam móveis, flexíveis,
tendo a reinvenção como sua característica constitutiva (AQUINO; RIBEIRO, 2009).
Dessa forma, a partir do momento que Valesca resiste à norma heterossexual ao se
assumir uma mulher transexual, as relações de poder são reinventadas e se oferecem de
outra forma: “Você não quer ser homem, então, que seja uma transexual. Mas perceba que
há várias características que precisam ser cumpridas para você adentrar a essa nova
categoria identitária”.
Tal controle também é feito pelas próprias travestis e transexuais. Em nossas
conversas, Leila reclama que Brenda, também entrevistada nesta pesquisa, não a considera
uma transexual, pois possui poucas modificações corporais. Brenda recrimina Leila
118
dizendo que ela é um homem vestido de mulher e ponto. Ou seja, não a autoriza como
membro da categoria transexual.
Diante dessas considerações, não se pretende direcionar uma crítica pessoal a
Valesca por sua adesão identitária. A identidade transexual se apresentou para ela como
uma linha de fuga de um modo de vida que a fazia sofrer, uma vez que ela era obrigada a
viver como um menino, sendo que se sentia uma menina. A “descoberta” da
transexualidade, dessa forma categorizada de vida, foi um alívio, um conforto para suas
questões e incompreensões, pois soube que havia outras pessoas passando por situações
semelhantes. A crítica recai, então, a essa fome identitária produzida pelo dispositivo da
sexualidade, que vincula os modos de vida a um determinado exercício da sexualidade.
Nesse sentido, as políticas de identidade podem se tornar cúmplices do sistema contra o
qual ela pretende se insurgir, ou seja, a identidade sexual como uma forma de controle da
vida, de padrões normalizantes de condução de si. Foucault, em uma entrevista concedida
em 1984, afirma:
Embora do ponto de vista tático seja importante poder dizer, em dado
momento, “eu sou homossexual”, não se deve, em minha opinião, por um
tempo mais longo e no quadro de uma estratégia mais ampla, formular
questões sobre identidade sexual. Não se trata, portanto, nesse caso, de
confirmar sua identidade sexual, mas de recusar imposição de
identificação à sexualidade, às diferentes formas de sexualidade. É
preciso recusar satisfazer a obrigação de identificação pelo intermédio e
com auxílio de uma certa forma de sexualidade (FOUCAULT, 2006b, p.
338).
Como nos diz Luiz Fuganti (2007), o que tem que ser destruído não sou eu nem o
outro, mas uma maneira de ser que nos atravessa. Uma maneira de ser (moral) que se liga à
obediência, que liga a existência ao que ela deve fazer e não ao que pode fazer. A crítica se
direciona, portanto, às limitações que a adesão identitária estabelece aos modos de vida
possíveis. Por exemplo, se Valesca é uma mulher transexual, logo ela deve desejar
homens. E se ela um dia se apaixonasse por uma mulher? Há os que dirão que isto é um
sintoma do que ela “realmente é”, ou seja, um homem, pois, partindo-se da
heteronormatividade, só homens desejam mulheres. Por que é tão difícil aceitar uma
mulher transexual que deseja uma outra mulher?
Com efeito, quanto mais se satisfaz a fome identitária, mais se renuncia a
possibilidades outras de vida criativas. Quantas forças são esmagadas quando se diz que é
necessário encontrar a verdadeira identidade em si? (FUGANTI, 2007). Por isso, Foucault
119
(2010g) nos convoca a recusar o que somos, a recusar o tipo de individualidade imposta e a
abrir as portas para as forças que nos atravessam. Ao invés de lutas identitárias, luta contra
a submissão da subjetividade, reinventando-se sem recorrer à identidade.
Interlúdio 9: Raica volta à escola
Raica, depois de tudo que passou durante sua vida na prostituição,
voltou a estudar. Com a notícia da Portaria do Nome Social, matriculou-se na
turma do EJA (Educação para Jovens e Adultos) em uma escola pública no
centro de Belém. Lá, pôde ter o prazer de ver o seu nome Raica Monteiro
Araújo na lista de frequência escolar. “Quando veio essa portaria, eu voltei a
estudar, mas na intenção de me politizar. Isso me motivou, porque eu sabia
que não ia ser chamada de Raimundo Nonato. Eu não ia ter que negociar com
professor, com diretor, com ninguém. Automaticamente, no ato da inscrição, o
meu nome já estava lá. Na minha escola foi respeitada a portaria. Eu não
posso te dizer das outras, porque eu não fiscalizei nas outras escolas”.
Antes da Portaria do Nome Social, Raica era alvo de uma série de
situações vexatórias na escola devido ao nome que carregava como um fardo.
Atualmente, apesar de ser chamada pelo nome Raica por professores e
colegas, sua presença na escola continua a provocar estranheza,
materializada nos olhares curiosos ou mesmo na insistente pergunta que os
mais audaciosos lhes dirigem: “Você é mulher de verdade?”. Quanto a isso
Raica é enfática: “Não quero ser mulher. As pessoas se enganam pensando
isso. É chato ser mulher. A mulher menstrua, sente dor de cólica, pra ter
neném. Eu sou travesti, um homem e uma mulher num corpo só. Não quero ser
mulher e nunca vou ser mulher. Eu sou travesti”.
A estratégia utilizada para se relacionar com as pessoas na escola é
fazer amizades. Gosta de agradar a todos. Assim, ela conquista o meio no qual
está inserida, sendo engraçada, divertida, estando sempre bem-humorada.
Acredita que adquire respeito das pessoas porque sabe se comportar. Por
exemplo, não usa roupas curtas ou provocantes para ir à escola.
120
Voltou a estudar, porque, segundo ela, “estava sendo rejeitada pela
sociedade”. A educação é vista como uma via para ter mais oportunidades de
trabalho, para conhecer seus direitos e buscar outras possibilidades de vida.
Atualmente, seu desejo é terminar o ensino médio e se candidatar a vereadora.
Ela está desacreditada com a luta pelos direitos das travestis por meio da ação
da sociedade civil organizada. Anseia ser vereadora para ajudar as travestis
que estão na prostituição, as que cotidianamente são violentadas pelo seu
modo de viver.
Apesar de ter voltado a estudar incentivada pela portaria, Raica critica
o alcance da mesma: “Poucas travestis voltaram a estudar. Elas nem sabiam
da portaria. A mídia nem divulgou isso. O que é interessante é mostrar travesti
na prostituição, marginalizada; não é interessante mostrar travesti na escola”.
De acordo com Raica, a escola já é algo distante da vida de muitas travestis,
pois, diante de tanta exclusão social, elas não acreditam que qualquer questão
de cidadania, como a inclusão escolar, seja algo dirigido para elas.
4.2 Efeitos disciplinares e de regulação
A Portaria do Nome Social convoca travestis e transexuais para a escola e Raica é
uma das poucas pessoas em Belém, pelo menos até o momento, que diz sim a esse convite.
Cabe, porém, questionar: por que facilitar a vida escolar de travestis e transexuais? Quais
os interesses envolvidos nessa convocação? Por que promover inclusão escolar para
pessoas consideradas abjetas, marginais, imorais? Em suma, por que incluir travestis e
transexuais nas escolas?
A escola é um espaço orientado, entre outras coisas, à constituição e à
transformação da maneira pela qual as pessoas se descrevem, se narram, se julgam ou se
controlam a si mesmas. Configura-se, portanto, como um dos elementos que compõem o
dispositivo pedagógico, uma tecnologia que produz governo de si (LARROSA, 1994).
O dispositivo pedagógico evoca uma pedagogização de si66
por meio de operações
discursivas que produzem subjetivação. Tal pedagogização de si está relacionada a um
processo de educar o viver, no sentido de uma regulação de si: faça isso, não faça aquilo,
66
Termo utilizado pela Profa. Dra. Cintya Ribeiro durante o exame de qualificação dessa tese.
121
respeite os mais velhos, use preservativo, cuide do seu corpo para não adoecer, tenha
precaução para não ser agredido etc.
Percebe-se então que a função da escola não é apenas ensinar; é também regular os
comportamentos, as emoções, a sexualidade, a vida. Resumindo, educar é controlar! E essa
pedagogização de si é operada tanto por dispositivos disciplinares como de regulação.
Como nos diz Julio Aquino e Cintya Ribeiro (2009, p. 61): “Trata-se de compatibilizar
dois níveis paralelos e complementares de gestão da vida social: o anátomo-político, por
meio do disciplinamento corpo-máquina, e o biopolítico, por meio da regulação do corpo-
espécie (previsões, estatísticas, medições globais etc.)”.
Cesar Candiotto (2011) reafirma essa compatibilidade ao dizer que seria
impossível, por exemplo, controlar as sexualidades dissidentes em termos de regulação
biopolítica se as instâncias disciplinares, como a escola, mas também a família, não
vigiasse o corpo a partir de um detalhamento espaço-temporal de suas atividades. Dessa
forma, percebe-se que a escola, apesar das intensas transformações contemporâneas,
continua mantendo um vínculo com a lógica disciplinar moderna.
Foucault (2003a) identifica a escola como uma das instituições disciplinares de
destaque na obra Vigiar e Punir. O autor cita diversas vezes a escola, ao lado da prisão,
hospital, manicômio, quartel, entre alguns outras, como uma instituição que tem por
objetivo direcionar a vida, o corpo, especialmente a partir de uma perspectiva individual.
Sendo a disciplina uma técnica para ordenar as multiplicidades humanas, a escola se
constitui como mecanismo de disciplinamento, serializando e conformando as pessoas a
partir de sanções, recompensas e exames.
A escola, entre outras instituições disciplinares, é considerada por Foucault (2005)
uma instituição de sequestro: sequestra as pessoas por um determinado tempo das suas
vidas na intenção de garantir que elas interiorizem determinadas normas. Se as instituições
de reclusão visam excluir as pessoas do círculo social do qual vivem, as instituições de
sequestro querem fixar tais pessoas em um aparelho de produção, correção, formação,
normalização. E o sucesso desses procedimentos está nos dispositivos de interiorização que
as instituições de sequestro lançam mão, ou seja, um olhar para si que não pode estar
desconectado da norma exigida. O novo objetivo das instituições de sequestro, emergente
no século XIX, não é excluir, mas sim, incluir as pessoas, porém, de acordo com a norma.
Desse modo, a escola quer incluir e normalizar. Incluir para normalizar. Incluir-
normalizando.
122
A insistência da norma é operacionalizada na escola por meio dos olhares
direcionados a Raica desde o momento em que ela entra na instituição. É um olhar
vigilante que constitui Raica como um ser irregular. Para que esse sistema de vigilância
produza o comportamento desejado em Raica, ela é alvo de formas sutis de punição, que
objetivam reduzir seu “desvio”. Punição expressa quando o/a professor/a se nega a se
referir a Raica pelo nome que ela deseja ser identificada; quando esse/a mesmo/a
professor/a recorrentemente chama Raica por seu nome masculino, ridicularizando-a em
sala de aula; quando os/as colegas fazem piadas, dirigem insultos a ela simplesmente pelo
fato de ela não obedecer à norma hegemônica de se vestir e de se relacionar com o corpo.
Raica é punida pelo seu modo de viver, por sua transgressão impressa em seu
corpo. Não são as atitudes de Raica que são punidas; pune-se o que ela é. Uma vez
estabelecido o padrão de normalidade, tenta-se fazer com que Raica, a desviante,
conforme-se a ele. O que se pretende com tais punições é que ela corrija o seu modo de ser
interpretado como irregular. Com efeito, a punição é um instrumento para que a norma se
estabeleça.
Percebe-se assim, elementos da tecnologia disciplinar, na qual o ponto de onde
emerge o processo de normalização é a norma. Há um aspecto prescritivo que determina
aquele a ser considerado normal ou anormal. É a norma que padroniza, que define um
modelo prévio a partir do qual todos devem ser categorizados. Nas palavras de Foucault
(2008a, p. 75):
A normalização disciplinar consiste em primeiro colocar um modelo, um
modelo ótimo que é construído em função de certo resultado, e a
operação de normalização disciplinar consiste em procurar tornar as
pessoas, gestos, atos, conformes a esse modelo, sendo normal
precisamente quem é capaz de se conformar a essa norma e o anormal
quem não é capaz.
Porém, não se pode dizer que vivenciamos uma escola eminentemente disciplinar
na contemporaneidade. Talvez a tecnologia disciplinar nunca tenha se estabelecido no
Brasil tal como analisado por Foucault (2003a) no contexto europeu67
. De todo modo, o
que se percebe é que a escola não é regida unicamente pelo dispositivo disciplinar, ainda
que faça uso de seus mecanismos, como analisado acima no caso de Raica. O principal
objetivo da escola na atualidade é governar os corpos, regulá-los a partir das tecnologias
biopolítica de intervenção na população. Portanto, elementos dos dispositivos disciplinares
67
Consideração feita pela Profa. Dra. Denise Sant’Anna durante o exame de qualificação desta tese.
123
e os de regulação atuam de forma sincrônica, em dosagens variadas dependendo do
contexto analisado, no atual cotidiano escolar.
Diferentemente da normalização disciplinar68
, a normalização da sociedade de
seguridade (neo)liberal (biopolítica) opera a partir do cálculo de um padrão normal para
cada grupo, fixando as pessoas em uma escala de normalidade e não na polaridade normal
versus anormal.
Com efeito, a norma não é tão rigidamente fixada na regulação biopolítica. Ao
contrário, a norma é moldável, dependente dos acontecimentos que a “realidade” apresenta
(FOUCAULT, 2008a). Neste caso, não se anseia a homogeneização das pessoas ou
comportamentos. O que ocorre é uma distribuição das diferentes normalidades com a
finalidade de reduzir as normalidades mais desfavoráveis, mais desviantes em relação à
curva normal, assim sendo, são as distribuições de normalidade que vão orientar a norma.
Assim, delimitam-se níveis aceitáveis de normalidade ao invés de impor uma norma e,
nesse sentido, a relação com a normalidade, ao invés de polarizada, torna-se pluralizada.
Há poucas esperanças, por exemplo, que travestis e transexuais retornem à norma
regulatória heterocentrada, uma vez que a maioria delas/es já se submeteu a intervenções
corporais para a fabricação de si (SANTOS, 2010). Objetiva-se, portanto, que elas/es se
enquadrarem em uma modulação normativa mais favorável: ao invés de viver na
prostituição e na marginalidade, que estudem e tenham empregos regulares, que paguem
impostos e entrem nos cálculos do Estado.
Portanto, há uma convocação da diversidade para a escola. “Persegue-se a
convocação à participação numa velocidade capaz de suprimir resistências, integrando a
todos” (PASSETI, 2004, p. 157). Reunidas, podem ser mapeadas e assim, tem-se um
panorama das multiplicidades de formas de ser possíveis. O objetivo é rastrear aquilo que
tende a escapar das modulações normativas mais prováveis e, dessa forma, ampliar a
modulação normativa para toda a parte (AQUINO; RIBEIRO, 2009). Não é uma
padronização, uma vez que é permitido experimentar diversos modos de vida, desde que
estejam, de algum modo, regulados por uma boa relação custo-benefício.
Não se trata simplesmente de vigiar e punir ou de expulsar a anormalidade na
atualidade escolar, mas de convertê-la em diversidade biopolítica. “Dito de outro modo, os
fazeres escolares visariam não apenas a exclusão dos diferentes, mas à adesão voluntária
68 Como é a partir da norma que se estipulam o normal e o anormal, Foucault (2008a) chama o processo de
normalização produzido pelo poder disciplinar de “normação”, diferenciando da “normalização” encontrada
na sociedade regida pelos dispositivos de segurança.
124
de todos, não apenas à coerção do disciplinamento, mas à cooptação do controle [...]”
(AQUINO; RIBEIRO, 2009, p. 65).
Na atualidade, chamada por Gilles Deleuze (1992a) de sociedade de controle, a
escola não visa simplesmente à produção de corpos dóceis, úteis e produtivos: ela quer
produzir trabalhadoras/es conectadas/os, competitivos/as e motivados/as. Em um
importante ensaio – Post-scriptum sobre as sociedades de controle –, Deleuze (1992a)
aponta que o próprio Foucault (2008b) já havia anunciado o provável enfraquecimento da
disciplina como modelo de análise da contemporaneidade.
Em o Nascimento da Biopolítica, Foucault (2008b) analisou os deslocamentos
contemporâneos e as novas capturas do biopoder: desde os anos 1960 vê-se o crescimento
de uma sociedade empresarial, efeito indissociável da política neoliberal. A racionalidade
política do neoliberalismo, especialmente em sua versão americana, generaliza a política
de mercado para todo o corpo social. Nesse sentido, a economia passa a ser a racionalidade
para organizar o cotidiano das pessoas. Há uma conversão das relações sociais em relações
econômicas e a educação, claro, não ficou de fora desse processo.
Maria Rita César (2004) apresenta uma série de propostas de reformas educacionais
ocorridas na década de 1990 realizadas com patrocínio de instituições financeiras69
,
demonstrando que a educação é alvo de preocupação do mercado e da economia. A autora
destaca que nessa época as reformas educacionais entraram na ordem do dia, pois os
índices educacionais dos países “em desenvolvimento”, como o Brasil, passaram a ser um
indicativo de sua “saúde econômica”. Como nos apresenta César (2004, p. 95): “As
instituições financeiras, tendo como base a melhora social e econômica dos países em
desenvolvimento, passaram a orientar tais países para uma grande reforma educacional de
dimensões globais, na medida em que se instalava uma nova ordem econômica mundial”.
Portanto, a escola foi açambarcada pela política de mercado neoliberal. Cabe à
escola ensinar essas técnicas de gestão, capturando os corpos e tornando-os viáveis para a
produção e consumo. E cabe ao Estado gerenciar as políticas educacionais que promovam
inclusão e permanência de todos/as na escola. Tais políticas são direcionadas
principalmente àqueles/as que imprimem riscos e geram custos sociais ao Estado. Como
sugere o lema “escola para todos”, deseja-se a permanência na escola do máximo de
69
Exemplo disso foi a Conferência Mundial sobre a Educação para Todos, ocorrida na Tailândia, que contou
com o financiamento, entre outras instituições, do Banco Mundial.
125
pessoas possível. Em uma sociedade neoliberal, não é interessante que uma parcela da
população fique excluída do mercado consumidor.
A normalização que almeja trazer os/as desviantes para níveis aceitáveis de
normalidade, objetiva também naturalizar a existência de tais desviantes no contexto onde
se inserem e, para tanto, criam-se estratégias que visam normalizar as irregularidades
presentes em uma população (LOPES, 2009). Dentre essas estratégias, destacam-se aqui as
de inclusão educacional desses “anormais”: pessoas com deficiências, com transtornos e
síndromes diversas, aqueles que não se conformam à matriz de inteligibilidade
heterocentrada, entre tantos outros.
Diversos estudos mostram que, no segmento LGBT, travestis e transexuais são
aquelas/es que têm maiores dificuldades de permanência nas escolas e de inserção no
mercado de trabalho, quer pelo preconceito quer pelo seu perfil socioeconômico
(PARKER, 2000; PERES, 2004). Raica, por exemplo, abandonou os estudos pela primeira
vez aos 15 anos, quando já eram visíveis as modificações corporais e assim, foram
intensificadas as situações de preconceito. Além disso, queria viver inteiramente como
travesti: a camuflagem necessária para o convívio escolar se tornara insustentável para ela.
A Portaria do Nome Social, apesar dos parcos efeitos obtidos, foi um incentivo a
Raica voltar à sala de aula. Ela retomou os estudos porque visualizou na escola uma
oportunidade de melhorar sua vida. Para ela, o conhecimento adquirido na escola lhe daria
maiores possibilidades de reivindicar seus direitos e assim, minimizar as adversidades que
a vida de uma travesti pobre lhe acarretou. Ao dizer sim ao governamento da inclusão,
Raica disse não a uma determinada forma de governo que delega a travestis e transexuais
ocuparem somente profissões e espaços marginalizados.
Além disso, parece estar claro para Raica que na atualidade o impedimento de
estudar não significa apenas não estar na escola; significa não ter valor (SANTOS, 2010).
Na lógica do “sou brasileiro, não desisto nunca”70
, ter interrompido os estudos diz que a
pessoa não se esforçou o bastante, é preguiçosa, não tem força de vontade ou capacidade
de resiliência, ou seja, de lidar com problemas que a escola e a vida apresentam, de superar
obstáculos ou resistir à pressão de situações adversas. Eis, a propósito, uma interpretação
que provoca a individualização do problema.
70
Campanha motivacional do governo federal brasileiro, iniciada durante o governo Lula, que mostrava
exemplos de superação de brasileiros/as que venceram diversos tipos de obstáculos para conseguirem
“crescer na vida”.
126
Nessa nova configuração política, na qual o mercado econômico é eixo de
regulação social, Foucault (2008b) atenta para uma forma de gestão do comportamento da
população a partir do que ele denomina de teoria do capital humano, para a qual as
competências e habilidades de uma pessoa constituem seu capital, assim sendo, cada
pessoa é capital para si mesma.
A aptidão a trabalhar, a competência, o poder fazer alguma coisa, tudo
isso não pode ser separado de quem é competente e pode fazer essa coisa.
Em outras palavras, a competência do trabalhador é uma máquina, sim,
mas uma máquina que não se pode separar do próprio trabalhador [...]
(FOUCAULT, 2008b, p. 309).
Trata-se da transmutação do sujeito moderno em um homo oeconomicus, um
empresário de si mesmo (FOUCAULT, 2008b). E para formar esse “homem econômico”,
essa espécie de competência-máquina, são necessários investimentos diversos, inclusive
(ou principalmente) educacionais. Assim, a educação é um investimento cuja acumulação
permitiria a maximização crescente dos rendimentos ao longo da vida do/a trabalhador/a.
Nesse sentido, tudo o que era tomado como despesa em educação passa a ser convertido
em investimento para o futuro. O status da cada pessoa é determinado pela quantidade de
capital humano acumulado através da educação (GADELHA, 2009).
A partir dessa moldura de compreensão, pode-se entender a máxima
contemporânea de formação permanente, educação continuada, na qual nunca se termina
nada (DELEUZE, 1992a). No que tange à escola, Deleuze (1992a, p. 225) afirma que a
sociedade de controle se caracteriza pelas “formas de controle contínuo, avaliação contínua
e a ação da formação permanente sobre a escola, o abandono correspondente de qualquer
pesquisa na universidade, a introdução da empresa em todos os níveis de escolaridade”.
Eis um efeito de subjetivação incitado pelo uso do nome social: manter-se na escola
e ser empreendedor de si mesmo. Para Raica, estar na escola significa ser gestora de si,
empreendedora de si, sendo ela mesma a responsável por sua aprendizagem, portanto, do
seu capital humano. Assim, a escola cumpre seu papel como uma das instituições
envolvidas na produção de uma subjetividade flexível e cambiante, moldada e
continuamente transformada (DELEUZE, 1992a). O homo oeconomicus é, nesse sentido,
um elemento básico para a tecnologia neoliberal, pois é um sujeito governável em função
da lógica econômica. É governável por meio de uma forma sutil de controle, exercida por
meio das regras neoliberais da economia de mercado.
127
A partir do momento em que as populações submetem sua conduta e seus
comportamentos cotidianos aos princípios do autoempreendedorismo da
teoria do capital humano, elas se tornam presas voluntárias de processos
de individuação e de subjetivação controlados flexivelmente pelo
mercado. Em suma, Foucault centrou sua análise das tecnologias
neoliberais de governamento a partir da discussão da seguinte questão: de
que maneiras o mercado pode se tornar um instrumento de governamento
da população, isto é, de que maneira o mercado econômico competitivo
pode atuar de maneira a regrar, a normalizar e a administrar a conduta da
população, estabelecendo-se assim padrões de normalidade e de
veridicção? (CÉSAR; DUARTE, 2009, p. 122).
Destarte, pode-se dizer que o “eu”, a identidade, as maneiras de pensar e agir de
cada pessoa, já não estão sendo produzidos apenas por uma normatividade “médico-psi”,
mas também, e cada vez mais, produzidos por uma normatividade econômico-empresarial
(GADELHA, 2009). Talvez por isso Raica insista em voltar à sala de aula. Talvez por isso
também seja possível que, na atualidade, travestis e transexuais terminem o ensino médio
ou mesmo concluam um curso superior tal como Valesca, Brenda e Leila. Tal
racionalidade econômica-empresarial demanda por políticas, leis, decretos, portarias,
reformas educacionais infindas, tendo como alvo de ação aqueles/as que não conseguem se
posicionar como homo oeconomicus, ou seja, que não conseguem acessar seus direitos por
meio de sua inserção no mercado econômico (GUARESCHI, LARA; ADEGAS, 2010).
Porém, mesmo com tal máxima contemporânea de empresariamento de si, a grande
maioria das pessoas trans acaba por sair da escola. Segundo as pessoas ouvidas nesta
pesquisa, não houve um retorno de travestis ou transexuais para a escola após a vigência da
portaria. Nem há registros na Seduc sobre a solicitação de uso do nome social. Apenas
Raica foi citada como alguém que retornou à escola incentivada pela portaria. Mesmo
assim, está há três anos tentando concluir o EJA do 1º e 2º ano do ensino médio. Ela
abandona anualmente os estudos devido aos elementos que a desestimulam: as frequentes
greves dos professores da rede pública de ensino, a não avaliação dos/as estudantes na
atual política de aprovação automática, e ainda seus estados de adoecimento devido ao
HIV.
Com isso, percebe-se que a intenção de inclusão escolar de travestis e transexuais,
materializada pela Portaria do Nome Social, acaba por não produzir os efeitos esperados na
vida das pessoas trans, isto é, chamar travestis e transexuais pelo nome que querem ser
reconhecidas/os não é capaz de garantir uma “educação inclusiva”.
128
De outro lado, apesar de seus parcos efeitos no sentido de promover a inclusão
escolar de travestis e transexuais, a legislação em questão tem uma importância política ao
mostrar alguma preocupação com a escolarização das pessoas trans. Com efeito, ela pode
ser uma forma de resistência a uma produção da travestilidade e transexualidade como
patologia moral e, portanto, àqueles e àquelas acometidos/as por essa doença só caiba
ocupar lugares marginalizados, seja na prostituição ou subempregos. Em contrapartida,
pode produzir efeitos de poder normalizantes ao atrair essa população à convocação social
do “estudar-trabalhar-consumir”. Dessa forma, aceitam-se essas experiências subjetivas
conquanto que enquadradas em um determinado modelo menos perigoso à sociedade.
Nesse cenário, ao invés de tratar a questão do nome social como uma lei que
precisa ser cumprida, a legislação em questão deveria ser trabalhada como um analisador
na escola, como um acontecimento que traz à tona as tensões e força em transformação do
cotidiano escolar (ROCHA, 2008). Não se trata simplesmente de promover a
sensibilização dos/as agentes escolares para o direito que travestis e transexuais têm de
usar o nome que desejam ser identificadas/os. Mais do que isso, faz-se necessário nos
desfamiliarizarmos com instituições como a heterossexualidade e com isso, produzir novas
estratégias de ação. O uso do nome social poderia ser um elemento de análise para se
problematizar a lógica heteronormativa e acessar as potencialidades de outros modos de
ser, pois simplesmente colocar pessoas com diversidades de orientação sexual e
“identidade de gênero” em um mesmo espaço não afasta a sombra da exclusão (VEIGA-
NETO; LOPES, 2007). Não há sentido em falar em “escola para todos” se alguns desses
“todos” continuam habitando sua margem.
Trabalhar a Portaria do Nome Social como um analisador – potencializando, assim
as intervenções e produzindo estratégias que respondam a novos regimes de verdade –
afastaria a questão de uma mera ratificação de uma conduta moral submetida a um código,
que, caso não cumprida, pode incorrer em punições. Como conduta moral, devem-se
incluir travestis e transexuais nas escolas porque há um código (a Portaria do Nome Social)
que regulamenta essa ação. Porém, seguindo por um via ética – que não se refere a regras
coercitivas, mas sim, a regras facultativas que avaliam o que fazemos ou dizemos em
função do modo de existência que isso implica (DELEUZE, 2006a) – a inclusão de
travestis e transexuais se daria pela aceitação das maneiras singulares por meio das quais as
pessoas são subjetivadas. Com efeito, trata-se de lidar com a inclusão de travestis e
transexuais pelo respeito a seus modos criativos de existência e não pela via de uma
129
inclusão necessária, regulamentada, que até abre as portas da escola para travestis e
transexuais, porém, pela rampa de deficientes71
.
Se a proposta é acolher a todos na escola, ou seja, a diversidade de modos de ser
possíveis, é preciso trabalhar pela diferença (ROCHA, 2008). De outro modo, os/as
“anormais” contemporâneos vão continuar a desconfiar de qualquer tentativa de inclusão,
pois não acreditam que temas como justiça e cidadania sejam dirigidos a eles/as.
Interlúdio 10: Histórias, resistências, diferenças...
Jenifer sente saudade da época da escola, do cheiro da lousa, do giz...
Mas não planeja voltar a estudar: a escola se tornou um lugar estranho para
Jenifer. Ou foi ela que se tornou estranha para a escola?
Leila se gradou em Psicologia, passou em um concurso público e planeja
fazer mestrado para continuar a questionar a patologização das experiências
trans.
Brenda desistiu da vida como prostituta na Europa e voltou para Belém
para fazer diferente: retomou a graduação em Direito e passou a atuar como
militante das causas trans.
Babete concluiu o ensino médio, mesmo vivendo em um prostíbulo.
Raica voltou a estudar quando o uso do seu nome foi assegurado pela
escola. Quer estudar para ter subsídios para lutar por situações de vida mais
justas às travestis.
Valesca quer ser doutora em neurociências.
Bianca, mesmo sem saber que ela tinha o direito em ser chamada pelo
nome que escolhera para si, foi à diretoria da escola e reivindicou o uso do
seu nome social na lista de frequência escolar.
Nayara utiliza o banheiro feminino na escola, e demais locais públicos,
mesmo com a forte vigilância e controle no uso do banheiro. Ela resiste e se
recusa a usar o banheiro que julga inadequado para si.
71
Metáfora utilizada pelo Prof. Dr. Ricardo Pimentel Méllo durante o exame da qualificação desta tese.
130
4.3 A ser feito: formas de resistências aos mecanismos de normalização
Se, por um lado, a escola é denunciada como espaço de pedagogização da vida,
gerida por dispositivos disciplinares e de regulação, por outro, não se abre mão da
escolarização. Critico as políticas identitárias que restringem um modo de viver por meio
da imposição de características que supostamente definem o “eu” individual, ao mesmo
tempo em que defendo a inclusão escolar de determinadas categorias identitárias: travestis
e transexuais.
Isso porque a crítica dirigida à escola e à estratégia de inclusão de travestis e
transexuais não significa uma recusa à escola ou à inclusão. A escola, mesmo com toda sua
maquinaria de controle e de produção de indivíduos em série, ainda é um espaço
reivindicado, pois, se há estratégias de controle, há também possibilidades de resistência
no cotidiano escolar. Reivindica-se, portanto, a inclusão escolar de travestis e transexuais,
levando-se em consideração a possibilidade de resistência à vida normatizada presente na
escola. Ou seja, a escola pode ser uma ferramenta produtora de críticas às formas de
governo da vida.
Na conferência intitulada O que é a crítica?, proferida em 1978, Foucault (2000e)
destaca que o processo de governamentalização não pode ser dissociado da questão de
"como não ser governado". Eis as duas faces da governamentalidade: como ser governado
e como não ser governado.
Vou dizer que em torno dessa grande inquietude relativa às maneiras de
governar, na procura de maneiras de governar, pode-se relevar uma
questão permanente: “Como não ser governado desse modo, em nome
desses princípios, em vista de tais objetivos e por meio de tais
procedimentos, não desse modo, não para isto, não por essas pessoas”
(FOUCAULT, 2000e, 171).
O autor identifica a recusa em ser governado como uma “atitude crítica”, que se
constitui na medida em que se opõe à submissão das artes de governar apoiadas em
mecanismos de normalização. Trata-se, pois, de recusar as formas de subjetividade
impostas, lutando contras as sujeições, contra o governo da individualização, o qual liga
cada pessoa coercitivamente a uma identidade facilmente governável.
Segundo Márcio Fonseca (2012), a atitude crítica é a noção que melhor expressa a
forma de resistência ao poder normalizador na obra foucaultiana. E sua potência de
131
resistência ao conjunto de mecanismos de condução da conduta está na medida em que a
atitude crítica remete ao domínio da ética.
O privilégio da ética nas últimas obras de Foucault está relacionado com o interesse
pela constituição do indivíduo em torno das técnicas de si vinculadas ao sexo (FONSECA,
2011). Na busca de compreender como o indivíduo ocidental se tornou um sujeito do
desejo, Foucault questiona quando o sexo se tornou objeto de uma preocupação moral.
Para tanto, o filósofo recorre à Antiguidade, porque, para ele, os gregos inventaram a
subjetivação, ou seja, a constituição ética de si (DELEUZE, 1992b).
Desse modo, Foucault (1999) parte do modelo helenístico de subjetivação, presente
na filosofia estoica e epicurista, para analisar a estruturação da relação ética consigo
mesmo a partir de um conjunto de práticas denominadas como “cuidado de si”.
Como nos diz Foucault (1997, p. 126), “em toda a filosofia antiga, o cuidado de si
foi considerado, ao mesmo tempo, como um dever e como uma técnica, uma obrigação
fundamental e um conjunto de procedimentos cuidadosamente elaborados”. Tais
procedimentos constitui aquilo que se poderia chamar de “serviço da alma”, que se realiza
através de múltiplas relações sociais, tais como a escuta, a escrita, a memorização daquilo
que foi aprendido, trocas de cartas, encontros para banquetes espirituais, exame de
consciência, acompanhamento de um mestre etc.
As práticas que constituem o cuidado de si variam de acordo com o período
histórico da Grécia ou Roma Antigas. Porém, o importante a se destacar é que o cuidado de
si era caracterizado como uma ética, ou seja, como dito no início do capítulo, por uma
relação consigo mesmo visando constituir-se como sujeito moral. São práticas de si que
visam o autoconhecimento, o controle, o aperfeiçoamento. Portanto,
... não se trata de descobrir uma verdade no sujeito, nem de fazer da alma
o lugar em que reside a verdade [...], não se trata tampouco de fazer da
alma o objeto de um discurso verdadeiro. Ainda estamos muito longe do
que seria uma hermenêutica do sujeito. Trata-se, ao contrário, de armar o
sujeito de uma verdade que não conhecia e que não residia nele; trata-se
de fazer dessa verdade aprendida, memorizada, progressivamente
aplicada, um quase-sujeito que reina soberano em nós mesmos
(FOUCAULT, 1997, p. 130).
Tais características da constituição ética do sujeito presentes no cuidado de si não
indicam, como uma análise prematura poderia supor, uma redenção de Foucault ao sujeito
que ele mesmo havia “matado” em As palavras e as coisas. Com a apresentação do
cuidado de si grego, Foucault mostra que esse “si” não remete a nenhuma substância,
132
nenhuma interioridade, mas a uma reflexividade prática: uma maneira de se relacionar
consigo mesmo para se construir, se elaborar. “O eu de que se trata de cuidar não é um
dado primeiro e esquecido, mas uma conquista difícil” (GROS, 2006, p. 132, grifos do
autor).
Além disso, o cuidado de si não constitui um eu solitário, autossuficiente e
indiferente aos outros. Seguindo com a análise de Gros (2006), o que interessa a Foucault
no cuidado de si é como ele se constitui em uma ação política, pois traz uma relação
inseparável com o tecido social.
Foucault não deixa de insistir sobre esse ponto: o cuidado de si não é uma
atividade solitária, que cortaria do mundo aquele que se dedicasse a ele,
mas constitui, ao contrário, uma modulação intensificada da relação
social. Não se trata de renunciar ao mundo e aos outros, mas de modular
de outro modo esta relação com os outros pelo cuidado de si (GROS,
2008, p. 132).
Com efeito, não se cuida de si para fugir do mundo, mas para agir como se deve.
“Aquele que cuidasse adequadamente de si mesmo era, por isso mesmo, capaz de se
conduzir adequadamente em relação aos outros e para os outros” (FOUCAULT, 2010g, p.
271). Dessa forma, a atenção direcionada a si não é a de um hermeneuta desconfiado
(como vemos na atualidade), mas a de um administrador meticuloso, que cuida de si para
poder cuidar dos outros.
Eis, portanto, a diferença entre o cuidado de si e o princípio délfico “conhece-te a ti
mesmo”. Para Foucault (2004), se existe um enunciado constitutivo da subjetivação antiga
é o “cuida-te de ti mesmo”. Neste caso, conhecer a si mesmo era uma consequência do
cuidado de si. Para um efetivo cuidado de si era imprescindível conhecer a si mesmo.
Porém, o “conhece-te a ti mesmo” acabou por se sobrepor ao “cuida-te de ti
mesmo”. Para Foucault (2004), o cristianismo via o cuidado de si como uma imoralidade,
pois era interpretado como um culto à individualidade. O si deveria ser rejeitado em prol
da relação com os outros. Em suma, houve uma inversão da hierarquia do cuidar de si para
o conhecer a si mesmo. “‘Conhece-te a ti mesmo’ obscureceu o ‘cuidado de si mesmo’
porque nossa moralidade, a moralidade do asceticismo, insiste que o si é o que deve ser
rejeitado” (FOUCAULT, 2004, p. 328).
A ênfase concedida ao “conhece-te a ti mesmo” abre espaço para uma compreensão
do ser humano muito diferente daquela proclamada pelo “cuidado de si”, da constituição
ética de si. Tais enunciados oferecem caminhos distintos de subjetivação. A obrigação de
133
conhecer a si mesmo liga o ser humano a uma suposta verdade de si que ele desconhece. E
na tentativa de conhecê-la, acaba por se vincular a dispositivos de confissão e obediência,
ou seja, o “conhece-te a ti mesmo” é a máxima que instaura o sujeito moderno, aquele
gerido por um suposto segredo essencial que está encravado em sua essência, em sua
identidade. Já o caminho proposto pelo cuidado de si, indica que o sujeito é fruto das
práticas de si efetuadas. Logo, não se trata de uma descoberta de si, mas sim, de uma
constituição de si mesmo de modo a conferir a sua vida certos valores (FOUCAULT,
2010c).
A genealogia do cuidado de si empreendida por Foucault (1999) é uma ferramenta
usada pelo autor para operar uma ontologia do presente. Foucault (1999; 2006a) remonta à
Antiguidade para ressaltar a marca fundamental da constituição do sujeito moderno, qual
seja, a ausência do cuidado ético. Portanto, o indivíduo moderno constituído pela norma,
difere do indivíduo antigo constituído pela ética. Tal diferença pode ser radicalizada e
entendida como uma oposição: o indivíduo moderno se opõe ao antigo da mesma forma
como a norma se opõe à ética, uma vez que “a ética é a relação consigo, enquanto o poder
da norma impede que tal relação se dê” (FONSECA, 2011, p. 132).
Entretanto, a ética do cuidado de si não se apresenta como uma alternativa para o
sujeito moderno normalizado. Com tal discussão, Foucault pretende “historicizar
completamente o eu profundo de modo a abrir a possibilidade de emergência de um novo
sujeito ético” (DREYFUS; RABINOW, 2010, p. 328). Portanto, a questão ética pode ser
compreendida como um convite a novas formas de subjetividade, recusando os tipos de
individualidade impostos por meio das tecnologias disciplinares e de normalização.
Neste sentido, pensar na questão da ética para Foucault é pensar no
sujeito moderno e em sua constituição normalizada, onde não há espaço
para a relação consigo. É pensar, em última instância, se há possibilidade
para que esse sujeito, voltando-se para a ética, possa opor-se ao poder da
norma que o institui, e possa, a partir daí, constituir-se de forma diversa
(FONSECA, 2011, p. 135).
Essa constituição ética de si é entendida por Foucault como o exercício de liberdade
(FOUCAULT, 2010g). Na entrevista A ética do cuidado de si como prática de liberdade, o
autor recusa o tema geral da libertação, contrapondo-a às práticas de liberdade. Segundo
Foucault (2010g, p. 265), é preciso ser prudente com o tema da libertação, uma vez que
[...] corre-se o risco de remeter à ideia de que existe uma natureza ou uma
essência humana que, após certo número de processos históricos,
econômicos e sociais, foi mascarada alienada ou aprisionada em
mecanismos, e por mecanismos de repressão. Segundo essa hipótese,
134
basta romper esses ferrolhos repressivos para que o homem se reconcilie
consigo mesmo, reencontre sua natureza ou retome contato com sua
origem e restaure uma relação plena e positiva consigo mesmo.
Foucault (2010g, p. 267) segue dizendo que a “liberação abre um campo para novas
relações de poder, que devem ser controladas por práticas de liberdade”. O que se
estabelece, portanto, são relações de poder e, consequentemente, formas de resistência.
Poder não entendido como negativo e resistência como tentativa de libertação ao poder.
Não é fundamentalmente contra o poder que nascem as lutas, mas contra algum efeito de
verdade produzido por esse poder, contra algum estado de dominação provocado pelo
poder. Desse modo, só há poder porque há resistência a ele; ao contrário, seria
simplesmente uma questão de obediência.
Seguindo essa concepção foucaultiana, a resistência pode provocar novas relações
de poder, assim como o poder pode suscitar formas outras de resistência. Porém, não é uma
relação de causa e efeito. “Esta resistência de que falo não é uma substância. Ela não é
anterior ao poder que ela enfrenta. Ela é coextensiva a ele e absolutamente contemporânea”
(FOUCAULT, 2000f, p. 241). Com efeito, o ato de governar só é possível a partir do jogo
de provocação e retroalimentação mútua entre poder e resistência. Aqui, é irresistível
evocar novamente as palavras de Foucault:
Trata-se precisamente de ver que as relações de poder não são alguma
coisa má em si mesmas, das quais seria necessário se libertar; acredito
que não pode haver sociedade sem relações de poder, se elas forem
entendidas como estratégias através das quais os indivíduos tentam
conduzir, determinar a conduta dos outros. O problema não é, portanto,
tentar dissolvê-las na utopia de uma comunicação perfeitamente
transparente, mas se imporem regras de direito, técnicas de gestão e
também a moral, o êthos, a prática de si, que permitirão, nesses jogos de
poder, jogar com o mínimo possível de dominação (FOUCAULT, 2010g,
p. 284).
Uma via de luta contra os efeitos de normalização da subjetividade pode ser
identificada no movimento queer72. Tal movimento surge, no início da década de 1990, na
interface entre uma corrente dos estudos culturais norte-americanos com o pós-
72 Queer é um termo da língua inglesa que denota estranheza, anormalidade, excentricidade, perversão e
desvio. Mas também é utilizado para se referir de forma depreciativa a gays, lésbicas, travestis, transexuais e
demais formas de vida destoante da heterossexualidade. O movimento queer recupera o termo como forma
positiva para identificar sua oposição e contestação contra a normalização focada na sexualidade. “Através da
‘estranheza’, quer-se perturbar a tranquilidade da ‘normalidade’” (SILVA, T., 2010, p. 105).
135
estruturalismo francês, herdando suas críticas às concepções clássicas de sujeito,
identidade, agência e identificação (LOURO, 2001; MISKOLCI, 2009).
Evoca-se o movimento queer devido a sua postura que vai na contramão de toda
normalização. Com efeito, a principal frente de luta queer é contra a normalização
existente em toda formação identitária. Com a nomeação queer, vários/as pesquisadores/as
oriundos/as dos próprios movimentos identitários passam a redefinir a luta e os limites do
sujeito político “feminista” e “homossexual”.
Por oposição às políticas “feministas” ou “homossexuais”, a política da
multidão queer não repousa sobre uma identidade natural
(homem/mulher) nem sobre uma definição pelas práticas
(heterossexual/homossexual), mas sobre uma multiplicidade de corpos
que se levantam contra os regimes que os constroem como “normais” ou
“anormais”: são os drag kings, as gouines garous, as mulheres de barba,
os transbichas sem paus, os deficientes ciborgues... O que está em jogo é
como resistir ou como desviar das formas de subjetivação sexopolíticas73
(PRECIADO, 2011, p. 16).
O movimento queer critica, portanto, toda ontologia do sujeito presente nas
políticas de identidades, uma vez que não há uma base natural da subjetividade (homem ou
mulher heterossexual, gay, lésbica, travesti, transexual...) que possa legitimar a ação
política. Dessa forma, “não existe diferença sexual, mas uma multidão de diferenças, uma
transversalidade de relações de poder, uma diversidade de potências de vida”
(PRECIADO, 2011, p. 18).
Tomaz Tadeu da Silva (2010) alerta que a perspectiva queer permite pensar não
apenas a multiplicidade e a fluidez das identidades sexuais e de gênero, mas também
sugere novas formas de pensar a cultura, o conhecimento, o poder e a educação:
Tal como o feminismo, a teoria queer efetua uma verdadeira reviravolta
epistemológica. (...) O queer se torna, assim, uma atitude epistemológica
que não se restringe à identidade e ao conhecimento sexuais, mas que se
estende para o conhecimento e a identidade de modo geral. Pensar queer
significa questionar, problematizar, contestar, todas as formas bem-
comportadas de conhecimento e de identidade. A epistemologia queer é,
neste sentido, perversa, subversiva, impertinente, irreverente, profana,
desrespeitosa (SILVA, T., 2010, p. 107).
73 Por sexopolítica, Beatriz Preciado (2011) se refere às ações biopolítica nas quais o sexo entra no cálculo do
poder e, dessa forma, estabelece um controle sobre a vida através das tecnologias de normalização das
identidades sexuais.
136
A referida reviravolta epistemológica, que problematiza toda normalização,
configura-se como uma ferramenta importante para pensar, por uma via ética, a inclusão de
travestis e transexuais na escola. Isso porque, como nos diz Guacira Lopes Louro (2001),
uma pedagogia e um currículo queer abordariam a instabilidade e a precariedade de todas
as identidades. A diferença deixaria de estar localizada no outro, “no diferente”, na
travesti, por exemplo, passando a ser analisada como indispensável para a constituição de
toda e qualquer pessoa. Desse modo, não se refere exclusivamente às questões sexuais,
mas ao processo de produção de identidades de modo geral.
Nesse sentido, a denúncia e a luta contra práticas homofóbicas – apontadas no
capítulo anterior como o maior obstáculo para a inclusão escolar de pessoas trans – ainda é
um alvo importante, porém, insuficiente para produzir relações mais igualitárias entre as
pessoas. Para uma pedagogia e um currículo queer, ultrapassando o combate à homofobia,
caberia desconstruir o processo pelo qual alguns sujeitos se tornam normalizados e outros
marginalizados, ou seja, dar visibilidade à heteronormatividade e seus dispositivos, os
quais necessitam de uma reiteração permanente das normas sociais regulatórias a fim de
garantir a identidade sexual legitimada (LOURO, 2001).
Nessa perspectiva, não se trata de pedir por mais tolerância a travestis e transexuais
nas escolas. “Queer representa claramente a diferença que não quer ser assimilada ou
tolerada e, portanto, sua forma de ação é muito mais transgressiva e perturbadora”
(LOURO, 2001, p. 547). Ao se falar em tolerância ou mesmo em respeito, ignora-se a
relação de poder na qual aquele que tolera o “diferente” se coloca em uma posição de
poder pouco intercambiável, estabelecendo a hierarquia do “normal” que tolera o
“anormal” (QUARTIERO; NARDI, 2011). Ao invés de se falar em tolerância, deve-se
discutir as relações de poder que produzem as diferenças a serem “toleradas”.
A política da tolerância não faz mais do que maquiar políticas e sentimentos
racistas de todo tipo e não resolve, dessa forma, a desigualdade do/a “diferente”. Portanto,
as políticas de direitos humanos baseadas na tolerância frente às “minorias” só instalam
formas de tratamento que dificilmente são capazes de gerar a paridade política contra a
desigualdade existente (FERNÁNDEZ, 2009).
Sem subestimar a importância de promover políticas que visam aliviar a
discriminação daqueles/as que a vivenciam cotidianamente, como a Portaria do Nome
Social, é preciso estar atento/a para que não seja criada mais uma política baseada na
137
tolerância, na qual o normal (heterossexual) tolera a presença dos desviantes (LGBT e
demais “anormais”) na escola.
Defende-se, então, a produção de diferenças, do diverso, da multiplicidade de
modos de viver na escola e na vida. Por essa via parece ser possível uma inclusão escolar
de travestis e transexuais que ultrapasse a mera tolerância, que deixa intocadas as relações
de poder, os processos e estruturas que definem a normalidade.
Se a genealogia da ética empreendida por Foucault (1999) através do cuidado de si
foi um convite à invenção de novas formas de viver, então, o movimento queer responde
afirmativamente a esse convite e tem na resistência à normalização suas tentativas de
despatologizar os modos de ser não hegemônicos e construir um outro projeto de
sociedade, articulada com outra proposta de mundo, de humanidade.
É um convite a seguir uma conduta ética, sem os códigos que produzem uma
recomendação moral para todos; mas sim, uma prática de liberdade, capaz de interromper a
previsibilidade dos modos de ser e instaurar o intempestivo, nas práticas escolares, nas
experiências de inclusão e nesse permanente ensaio que é viver.
138
CONSIDERAÇÕES TRANSITÓRIAS
Um dos meus objetivos é mostrar às pessoas que um bom número
de coisas que fazem parte de sua paisagem familiar – que elas
consideram universais – são o produto de certas transformações
históricas bem precisas. Todas as minhas análises se contrapõem à
ideia de necessidades universais na existência humana. Elas
acentuam o caráter arbitrário das instituições e nos mostram de
que espaço de liberdade ainda dispomos, quais são as mudanças
que podem ainda se efetuar.
Michel Foucault (2010h, p. 296).
O objetivo desta tese foi analisar os efeitos da Portaria do Nome Social como
estratégia de inclusão escolar de travestis e transexuais. Tal política, apesar de bem
intencionada, não conseguiu, pelo menos até o momento, produzir a esperada “educação
inclusiva” para travestis e transexuais, pois a autorização do uso do nome social não foi
acompanhada de outros investimentos necessários. A tese defendida é que a inclusão
escolar da diversidade de modos de viver depende de múltiplos fatores, não se limitando às
políticas de inclusão existentes.
Há fatores externos à escola que dificultam a inclusão escolar de pessoas trans. A
maioria é expulsa de casa quando começa a assumir a travestilidade/transexualidade. Com
isso, muitas recorrem à prostituição como forma de sustentar a vida e não enxergam as
vantagens na escola para seus futuros, nem mesmo para conseguir um emprego
considerado melhor, mais rentável e menos perigoso, visto a dificuldade de uma travesti ou
transexual conseguir um emprego formal. Com isso, a escola se afasta cada vez mais do
horizonte de possibilidades de muitas pessoas trans.
De outro lado, há também os fatores vivenciados no cotidiano escolar que
inviabilizam o sucesso da Portaria do Nome Social como estratégia de inclusão. A
homofobia que atravessa os vários âmbitos escolares provoca a sensação de que a escola
não é lugar para travestis e transexuais: o não respeito ao nome social, a proibição de usar
o banheiro que corresponda ao gênero identificado, o não reconhecimento da travestilidade
e da transexualidade como formas possíveis de estar no mundo. Além disso, a Portaria do
Nome Social é pouco conhecida entre professores/as, diretores/as e até mesmo pelas
139
pessoas trans. Esses, entre tanto outros elementos, não são atrativos para a permanência ou
retorno de travestis e transexuais para as salas de aula.
Um aspecto que perpassa todos os fatores acima elencados é o preconceito
direcionado a travestis e transexuais. Tal preconceito é fruto da patologização dessas
formas de viver. Atualmente, tudo é diagnosticado, haja vista o aumento das doenças
catalogadas no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM). Se em
1952, a primeira edição do DSM continha 106 categorias de desordens mentais,
organizadas em 130 páginas, na última edição, em 1994, o DSM-IV listou 297 transtornos
em 886 páginas. Quem duvida de que o DSM-V, a ser publicado em 2013, venha ainda
maior? Percebe-se, desse modo, que qualquer fenômeno, característica pessoal, gosto ou
preferências são observados pelas lentes da normalidade versus anormalidade, tendo como
referência e aval os saberes “médicos-psi”, que sequestram as experiências identitárias e as
reduzem a um transtorno.
E a escola precisa dar conta dos “anormais” produzidos por tais saberes. Por isso,
uma das máximas contemporâneas vivenciadas pela escola é a “educação inclusiva”, ou
seja, uma educação pretensamente capaz de incluir a todos os tipos de pessoas nas escolas.
Surgida no início da década de 1990, a “educação inclusiva” é uma proposta para substituir
a então vigente “educação especial” dedicada às pessoas com deficiência74
(SKLIAR,
2001; MENDES, 2006). Nesta última, a escolarização das pessoas com deficiência era
realizada em escolas ou salas específicas, separando as pessoas atendidas por categorias e
segregando-as das consideradas “normais”. A mudança trazida pela educação inclusiva
almejava superar a exclusão das pessoas com deficiência ao propor, entre outras ações, que
a escolarização ocorresse prioritariamente em salas regulares.
A partir de 2003, as políticas de educação inclusiva são alavancadas no Brasil com
projetos que preveem a inclusão não apenas para as pessoas com deficiência, mas para
todas as pessoas que sofrem alguma forma de exclusão educacional. Contudo, a inclusão
continua sendo um dos temas mais controversos na educação atual. Há leis (Constituição
de 1988, Lei de Diretrizes e Bases para a Educação Nacional de 1996 etc.), declarações
74 Segundo Sassaki (2003), na Convenção Internacional para Proteção e Promoção dos Direitos e Dignidade
das Pessoas com Deficiência, ficou decidido que o termo correto utilizado para se referir a essa população
seria “pessoas com deficiência”. Esse termo foi escolhido levando em consideração algumas questões, entre
elas: não esconder ou camuflar a deficiência, mostrar com dignidade a realidade e valorizar as diferenças e
necessidades decorrentes da deficiência. Tal termo já é utilizado amplamente no Brasil, tendo, inclusive, uma
Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência.
140
internacionais (Declaração de Mundial sobre Educação para Todos de 1990, Declaração de
Salamanca de 1994 etc.) e regulamentações diversas (Plano Nacional de Educação de
2001) sobre educação inclusiva, mas é visível que a escola não está preparada para acolher
a diversidade de formas de viver: capacitação profissional, salas e recursos especializados
etc. (SKLIAR, 2001; MENDES, 2006).
Porém, no caso de travestis e transexuais a questão da aprendizagem não depende
de recursos específicos, pois elas/es não são pessoas com deficiência, ainda que sejam
considerados/as, muitas vezes, como pessoas com deficiência moral. Para os primeiros, há
uma maior sensibilização para a temática da inclusão, pois são “vítimas” de uma doença
congênita, biológica ou adquirida; quanto ao segundo grupo, eles/as “escolheram” se tornar
anormais sexuais e, portanto, devem suportar as consequências de suas escolhas.
De todo modo, a inclusão é defendida considerando que a escola deve incluir “o/a
diferente”. No caso das pessoas com deficiência, elas são diferentes das pessoas sem
deficiência, ou seja, normais. No caso das pessoas trans, ela são diferentes das
heterossexuais, ou seja, normais. A heterossexualidade continua como parâmetro em
relação a qual as outras formas de viver são comparadas. É a condição de vida desejável,
normal, logo, todas as demais são vistas de modo negativo. Se, como dito acima, a Portaria
do Nome Social não conseguiu produzir a inclusão de travestis e transexuais, ao menos,
provoca alguma tensão no regime de verdade que nega às pessoas trans o direito ao nome e
à escola.
Dessa forma, dizer que os efeitos de inclusão escolar da Portaria do Nome Social
ainda se desenham como algo distante, não significa dizer que não houve efeitos. Por
exemplo, a partir dessa legislação pioneira no Estado do Pará, o uso do nome social se
tornou uma bandeira de reivindicação nacional do movimento LGBT, produzindo diversas
legislações nos âmbitos federal, estadual e municipal que regulamentam esse direito a
travestis e transexuais.
Além disso, destacam-se os diversos efeitos de subjetivação provocados por essa
portaria, gerando processos de capturas identitárias ao mesmo tempo em que ensaiam
possibilidades de resistência. Tais capturas se referem aos processos que vinculam o acesso
a um direito a uma identidade preestabelecida: é preciso “se assumir” como travesti ou
transexual para poder usar o nome social no cotidiano escolar. O problema em tal adesão
identitária reside nas tecnologias de controle que a ela são acopladas. Ao assumir uma
identidade, carrega-se o fardo de ter que seguir as prescrições adequadas para cada
141
categoria: ser homem, ser mulher, ser travestis/transexual, ser adulto etc. Tais prescrições
funcionam como controle das formas de viver, assim sendo, a política em questão entra no
dobramento do poder, uma vez que força o sujeito a se voltar para si próprio e assim, o liga
à sua identidade de modo coercitivo (FOUCAULT, 2010b).
Essa forma de poder aplica-se à vida cotidiana imediata, que categoriza o
indivíduo, marca-o com sua própria individualidade, liga-o a sua própria
identidade, impõe uma lei de verdade, que devemos reconhecer e que os
outros têm de reconhecer nele. É uma forma de poder que faz dos
indivíduos sujeitos. Há dois significados para a palavra sujeito: sujeito ao
outro através do controle e da dependência, e ligado à sua própria
identidade através de uma consciência ou do autoconhecimento. Ambos
sugerem uma forma de poder que subjuga e sujeita (FOUCAULT, 2010b,
p. 278).
Outros efeitos de subjetivação produzidos pela política do nome social residem nos
processos disciplinares e normalizadores operados pela escola. Atualmente, pode-se dizer
que a identidade já não está sendo produzida apenas por uma normatividade “médico-psi”,
mas também, por uma normatividade econômico-empresarial. O neoliberalismo visa
construir a figura de um sujeito que adere voluntariamente às demandas do mercado
econômico e, dessa forma, se torna um empreendedor de si mesmo. Nesse cenário, a escola
é um espaço para ensinar as técnicas de gestão de si, capturando os corpos e tornando-os
viáveis para a produção e consumo. Por isso a máxima da inclusão escolar contemporânea:
não é interessante que uma parcela da população fique excluída do mercado consumidor.
Todavia, se de alguma forma a Portaria do Nome Social, ao convocar à
escolarização de travestis e transexuais, participa dessa produção de subjetividade
empresarial, governável em função da lógica econômica, por outro lado, identifico efeitos
da portaria que ensaiam possibilidades de resistência aos mecanismos de normalização.
A autorização de usar o nome social remete à luta pelo direito à diferença, de
efetivar os modos de viver que a pessoa considera conveniente. De algum modo, há o
reconhecimento de formas de viver diferentes da heterossexualidade. Há também o
reconhecimento de que travestis e transexuais sofrem uma série de constrangimentos no
cotidiano da escola por terem uma aparência incompatível com o nome do registro civil e,
para tentar minimizar a “expulsão escolar”75
dessa população, criou-se a legislação em
75
Bento (2011) afirma que é limitado dizer que há evasão escolar de travestis e transexuais da escola, uma
vez que há uma diferença gritante entre alguém que deixa de estudar porque precisa trabalhar para ajudar a
família daquele outro alguém que abandona os estudos porque é diferente, por não aguentar a reiteração
dessa diferença cotidianamente, por não suportar se submeter às constantes tecnologias que o/a produzem
como anormal perante os supostos normais.
142
questão. E com tal tentativa de inclusão escolar, resiste-se também à produção da
travestilidade e da transexualidade como formas de vidas abjetas, que só são autorizadas a
viver na marginalidade e/ou prostituição.
Por isso, apesar de criticar a escola e seus mecanismos disciplinares e
normalizadores, defendo a escolarização de travestis e transexuais, pois na escola, como
espaço de complexidades, coexistem estratégias de controle com possibilidades de
resistência. É uma aposta na escola como um espaço ético, de produção de uma prática
refletida de liberdade, de incitação de uma atitude crítica. Desse modo, a escola pode ser
uma ferramenta produtora de críticas às formas de governamento da vida.
Em busca de construir esse cenário, como nos diz Foucault (2006c, p. 316):
“devemos começar por reinventar o futuro, mergulhando-o em um presente mais criativo”.
Nesse caso, só uma redescrição inédita das práticas escolares poderia ser um instrumento
contra a submissão da subjetividade e produção ética da vida.
Sílvio Gallo (2003), em um livro destinado ao diálogo entre a obra de Gilles
Deleuze e a educação, nos dá algumas pistas de como seria uma educação como resistência
aos procedimentos instituídos na escola. O autor realiza um deslocamento do conceito de
“literatura menor” – feita pelo filósofo em parceria com Félix Guattari na obra Kafka: por
uma literatura menor – para a área da educação. Gallo (2003) nos incita a pensar em uma
“educação menor” como enfrentamento à “educação maior”.
A educação maior é aquela materializada na macropolítica, nos planos
educacionais, nos parâmetros curriculares, das Leis de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional, dos grandes mapas e projetos. Em contrapartida, a educação menor é um ato de
revolta e resistência:
Revolta contra os fluxos instituídos, resistência às políticas impostas; sala
de aula como trincheira, como a toca do rato, o buraco do cão. Sala de
aula como espaço a partir do qual traçamos nossas estratégias,
estabelecemos nossa militância, produzindo um presente e um futuro
aquém ou para além de qualquer política educacional. Uma educação
menor é um ato de singularização e de militância (GALLO, 2003, p. 78).
Para se efetivar a educação menor faz-se necessário desterritorializar os princípios e
normas da educação maior nas ações cotidianas, opondo-se aos mecanismos de controle e
criando possibilidades outras. Produzir diferenças ao impedir que a produção do mesmo se
estabeleça. Gallo (2003) compara tal ação com a dos grevistas em uma fábrica: o objetivo é
impedir a produção bem-planejada da educação maior. É uma aposta nos atos cotidianos,
143
sem modelos a serem seguidos ou propostos; o objetivo da educação menor é estabelecer
conexões: entre professores/as e estudantes, dos/as estudantes entre si, dos/as
professores/as entre si.
Com efeito, a educação menor não tem espaço para atos solitários, posto que é um
exercício de produção de multiplicidades, no qual todo ato adquire valor coletivo. É uma
aposta nas multiplicidades conectadas: “não há sujeito, não há objeto, não há ações
centradas em um ou outro; há projetos, acontecimentos, individuações sem sujeito. Todo
projeto é coletivo. Todo valor é coletivo. Todo fracasso também” (GALLO, 2003, p. 84).
Nesse sentido, faz-se necessário uma intervenção coletiva para acionar outras forças na
atuação escolar. Frente à universalização da educação maior das políticas de inclusão, uma
educação menor, na invenção cotidiana de resistência.
Em relação à inclusão escolar de travestis e transexuais, um poderoso instrumento
de uma educação menor seria a desnaturalização das dualidades estanques produzidas pela
educação maior: o certo e o errado, o normal e o anormal (ROCHA, 2008). Para além de
qualquer política de inclusão, uma educação menor teria como instrumento a produção da
diferença nos fluxos cotidianos da ação.
A diferença aqui convocada é aquela entendida, sob inspiração deleuziana, como
diferença por si mesma e não aquela centrada no princípio de identidade, na qual, “se
dizemos que x é diferente, é porque ele é diferente de certa identidade previamente
definida, isto é, x é diferente de y” (GALLO, 2009, p. 8). Nesses termos, falar em diferença
pressupõe a referência a algo, um ser universal, do qual derivam as diferenças.
Homossexuais são diferentes? Travestis são diferentes? Diferentes de quem? Qual é o
referencial da diferença?
Seguindo essa lógica, não existe diferença de fato, mas uma simples variação do
mesmo. Como variação, a diferença não perturba a norma. Pelo contrário, ela reafirma a
norma, uma vez que, mesmo não estando “dentro” da norma, está sob a luz e interpretação
da norma. Travestis e transexuais são diferentes dos/as heterossexuais. Isto é, variam da
norma ao serem interpretados/as pelas lentes da heteronormatividade.
[...] a norma, ao mesmo tempo em que permite tirar, da exterioridade
selvagem, os perigosos, os desconhecidos, os bizarros – capturando-os e
tornando-os inteligíveis, familiares, acessíveis, controláveis –, ela permite
enquadrá-los a uma distância segura a ponto que eles não se incorporem
ao mesmo. Isso significa dizer que, ao fazer de um desconhecido um
conhecido anormal, a norma faz desse anormal mais um caso seu. Dessa
forma, também o anormal está na norma, está sob a norma, ao seu abrigo.
O anormal é mais um caso, sempre previsto pela norma. Ainda que o
144
anormal se oponha ao normal, ambos estão na norma. É também isso que
faz dela um operador tão central para o governo dos outros; ninguém
escapa dela (VEIGA-NETO, 2001, p. 29).
Com efeito, ao serem considerados/as “diferentes”, travestis e transexuais apenas
confirmam a norma que tem no homem branco, ocidental, cristão, heterossexual,
proprietário e consumidor seu eixo de referência. Ana Maria Fernández (2009) nos fala que
o mesmo processo no qual se distingue a diferença, institui-se a desigualdade. Dessa
forma, a diferença também é tida como o negativo do idêntico, pois não se trata de uma
mera diferença, mas de uma diferença desigual, produzida no interior de relações de poder
por dispositivos biopolíticos. Travestis e transexuais não são apenas diferentes: são
inferiores e precisam de políticas para que retornem ou permaneçam na escola.
A diferença é materializada “no diferente”, que passa a ser diagnosticado a partir de
padrões da suposta normalidade que estabelecem o mérito dos bem-sucedidos na escola e
na vida (ROCHA, 2008). A partir de uma característica considerada “diferente”, constrói-
se uma totalidade, uma identidade. Distingue-se uma característica de toda uma
multiplicidade de outras características e totaliza o ser em uma identidade “diferente”,
inferior.
Partindo de outra perspectiva, Deleuze (2006b, p. 57) afirma: “[é preciso] tirar a
diferença de seu estado de maldição”. Ou seja, é preciso não relacionar a diferença a uma
suposta normalidade, mas tomar a diferença em si mesma. Portanto, pensar a diferença sem
referência à identidade, mas sim, diferenças de diferenças sem nenhum centro referencial.
“Diferenças, sempre no plural. Diferenças que não podem ser reduzidas ao mesmo, ao uno;
diferenças que não estão para ser toleradas, aceitas, normalizadas. Diferenças pelas
diferenças, numa política do diverso” (GALLO, 2009, p. 9).
A questão é fazer diferenças, o que não significa produzir “o/a diferente”. São
sempre diferenças de diferenças, que, ao invés de fixar identidades, geram intensidades
diferenciais (forças, fluxos, movimentos), convocando à invenção de novas formas de
existência. Desse modo, não se trata de perguntar o que uma coisa é, mas sim, com quantos
elementos ela se conecta. Portanto, a concepção deleuziana da diferença é um convite a
deslocar o referencial da unidade para a multiplicidade (DELEUZE, 2006b).
Por meio de uma educação menor é possível pensar em uma escola que tenha como
princípio norteador a suspeita: de suas verdades, das diretrizes, do currículo, da produção
145
do certo e do errado. Em suma, uma escola que possa servir como instrumento de luta e
resistência aos processos de subjetivação que limitam a potência da própria vida.
Evoca-se aqui o papel que os/as agentes escolares podem (e devem) assumir nessa
educação menor, na reivindicação por práticas mais igualitárias no que tange a
escolarização das pessoas que fogem dos padrões heteronormativos. Agindo de modo a
desterritorializar as diretrizes da educação maior, o/a educador/a pode criar espaços
políticos no cotidiano de suas ações, nas relações que estabelece com as pessoas, tal como
ocorreu na luta pela inclusão de pessoas com deficiência ou mesmo na luta contra os
manicômios. O movimento de luta antimanicomial, por exemplo, não surgiu dos loucos
internados em condições precárias, mas sim dos trabalhadores/as da saúde mental. Com o
lema “por uma sociedade sem manicômios”, houve a ampliação do movimento de
trabalhadores da saúde mental para um movimento social pela reforma psiquiátrica e
cidadania dos doentes mentais, convocando o comprometimento da sociedade de maneira
geral para a atenção e desinstitucionalização da loucura (AMARANTE, 1996).
Com isso, quero destacar a ação que os/as agentes escolares podem desenvolver em
prol de uma efetiva inclusão escolar de travestis e transexuais. Professores/as, diretores/as,
psicólogos/as, assistentes sociais, funcionários/as de diversos setores da educação
poderiam formar uma frente de luta para as questões que envolvem a diversidade sexual.
Seria o começo para uma mobilização por práticas transformadoras e por reflexões críticas
sobre a presença da diversidade de formas de viver na escola.
Porém, os/as próprios profissionais trazem as marcas do preconceito contra pessoas
não heterossexuais em suas práticas. Não é difícil ouvir o discurso que diz: “eu não tenho
nada contra um homossexual, contanto que ele seja discreto”, ou seja, que não pareça ser
“o que é”. No caso das pessoas trans, é difícil essa discrição exigida: a diferença está
cravada na carne, visíveis nos atributos elegidos para compor sua forma de viver.
Contudo, não se pode culpabilizar isoladamente os/as educadores/as. O amor entre
pessoas do mesmo sexo, assim como a subversão dos gêneros inteligíveis, foi secularmente
considerado, dependendo do período histórico vivido, como crime hediondo ou pecado
abominável ou anormalidade sexual, provocando uma aversão quase generalizada aos não
heterossexuais (MOTT, 2002). Os/as profissionais de educação são também fruto dessa
socialização. Mas não é por isso que não são responsáveis em produzir rupturas nesse
regime de verdade. Eis, portanto, que um instrumento fundamental para a
146
desfamiliarização da heteronormatividade reside na formação profissional de futuros e
atuais educadores/as.
De outro modo, irá se perpetuar o efeito perverso de todo esse processo que reitera
a heteronormatividade e homofobia: a expulsão de travestis e transexuais das escolas. Aí,
condenam-se travestis e transexuais de serem marginais e por viverem majoritariamente na
prostituição. Porém, pouco se fala das situações que provocaram a saída da escola. A
marginalidade e prostituição são sintomas de exclusões continuadas pelas quais passam
aquelas/es que ousam transitar os gêneros inteligíveis.
O que se percebe é que sem movimentos de rupturas e práticas de resistência, irá se
perpetuar essa inclusão transtornada na qual são submetidas as pessoas trans. Ao serem
consideradas com algum transtorno (transtorno de identidade de gênero, como diagnostica
o DSM-IV, ou simplesmente um transtorno de ordem moral, como diagnostica o senso
comum), travestis e transexuais causam transtorno na escola: perturbam a ordem,
desorganizam os saberes e práticas, reviram os valores, confundem as cores e banheiros,
alteram os nomes... O transtorno, portanto, não está nas pessoas trans, mas sim, na
incapacidade da escola em lidar com a multiplicidade de experiências de vida.
A Portaria do Nome Social, apesar de bem intencionada, acaba sendo partícipe
dessa inclusão transtornada. A falta de implementação, acompanhamento e informação da
portaria nas escolas, sem dúvida, são elementos a serem considerados. Assim como as
condições precárias de vida que grande parte de travestis e transexuais são submetidas, que
inviabilizam o retorno ou permanência dessa população na escola. Porém, o elemento mais
importante é a ainda incipiente influência, porque isolada e sem a participação dos
movimentos sociais e escolares, que a portaria provocou no que tange à crítica contra a
normalização pela qual é interpretada a vida das pessoas trans.
Na contramão dessa inclusão transtornada, uma inclusão que force os limites do
possível. Não há modelos a seguir, mas há possibilidades a serem criadas. Inclusão como
atitude crítica, que possibilite problematizar as formas de ser governado/a e as de não ser
governado/a. Uma nova forma de inclusão, que funcione a partir da resistência ao rotineiro,
previsível, ordinário.
Se no começo desta pesquisa eu disse que ela abordaria as transformações e as
manutenções das formas de viver, agora a finalizo com as duas palavras que podem servir
como contribuição desta tese: suspeita e possibilidade. Suspeita das nossas certezas sobre
sexo, gênero, formas de viver viáveis e inviáveis, normais e anormais, aceitáveis ou
147
abjetas. Suspeitas que guiam as possibilidades de outras práticas no que diz respeito aos
modos de ser divergentes do “padrão” idealizado. Possibilidades de resistência às
normalizações que apequenam a vida e assim, possibilidades de novas práticas
pedagógicas que acolham as multiplicidades.
Mesmo que não possamos desinventar a nós mesmos,
possamos ao menos reforçar a questionabilidade das formas
de ser que têm sido inventadas para nós e começar a inventar
a nós mesmos de forma diferente.
Nikolas Rose (2001b, p. 198).
148
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160
APÊNDICE A
ROTEIRO DE ENTREVISTA
Como você se auto-define? Para que eu possa me remeter a você corretamente.
Gostaria que você me contasse um pouco sobre a sua vida. Quando você se percebeu
enquanto travesti ou transexual?
Conte-me sobre sua vida escolar? Você frequenta ou frequentou a escola? Até que série?
Quais as maiores dificuldades enfrentadas na escola? Você pode me contar um caso?
O que te faz permanecer na escola? Quais são seus planos?
Você teve interesse de retornar à escola? Por quê?
O que te afasta da escola?
O que te faria voltar à escola?
Você conhece a Portaria do Nome Social? O que você acha dela?
Qual é a importância do nome social para sua vida? Você pode me contar uma situação?
O que é inclusão escolar para você?
161
APÊNDICE B
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a vin
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vez
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ição
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Pra
mim
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me
inco
mo
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ão,
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urg
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das
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Mas
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s.
Não
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no
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s, a
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me,
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enti
dad
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a id
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me
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ela
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3
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, la
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ades
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io,
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pes
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. E
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om
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ncia
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va
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3
17
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No
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seu
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resp
eita
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Po
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Ho
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me
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mas
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ives
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ia n
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ão.
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mer
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mai
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tão
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vez
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ão
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Eu n
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as
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que
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,
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que
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17
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fo
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o.
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xual
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o c
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Alé
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mai
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var
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15
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ito
3
184
APÊNDICE C
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Título do estudo: O uso do nome social entre travestis e transexuais como estratégia
de inclusão da diferença
Declaro que fui informado/a sobre os objetivos da pesquisa. Entendo que esta
pesquisa visa investigar o uso do prenome social entre travestis e transexuais, utilizando-
se para isso de entrevistas com formuladores do decreto, além de funcionários/as,
professores/as, gestores/as e alunos/as da escola investigada.
Estou ciente de que as entrevistas serão gravadas em áudio, sendo que a
pesquisadora se comprometeu a utilizar os dados obtidos de forma a preservar o
anonimato, não divulgando minha voz ou revelando dados que permitam que eu seja
identificado/a e que possam me ocasionar prejuízos de qualquer natureza.
Entendo que minha participação é totalmente voluntária e que, durante a realização
da entrevista, poderei interrompê-la no momento em que desejar sem ser em nada
prejudicado/a.
Desse modo, concordo em participar do estudo e cooperar com a pesquisadora.
Entrevistado/a:
Nome: RG:
Data: ___/___/20___. Assinatura:
Testemunha:
Nome: RG:
Data: ___/___/20___. Assinatura:
Testemunha:
Nome: RG:
Data: ___/___/20___. Assinatura:
Pesquisadora:
Nome: Maria Lúcia Chaves Lima RG: 258020
Data: ____/___/20___. Assinatura:
185
ANEXO A