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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC – SP Isabel Marinangelo O Direito Penal na Tutela da Ordem Econômica MESTRADO EM DIREITO São Paulo 2015

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC – SP

Isabel Marinangelo

O Direito Penal na Tutela da Ordem Econômica

MESTRADO EM DIREITO

São Paulo

2015

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Isabel Marinangelo

O Direito Penal na Tutela da Ordem Econômica

MESTRADO EM DIREITO

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Direito, sob a orientação do Prof. Doutor Gustavo Octaviano Diniz Junqueira.

São Paulo

2015

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Banca Examinadora

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Ao meu amado marido, Alexandre, pelo

carinho, companheirismo e apoio

incondicional que me concede desde

que passou a fazer parte da minha vida.

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AGRADECIMENTOS

Ao professor Gustavo Octaviano Diniz Junqueira, agradeço pelos

ensinamentos compartilhados e pela atenciosa e precisa orientação.

Ao professor Oswaldo Henrique Duek Marques, pelas lições fundamentais

à realização deste trabalho e pela amizade demonstrada.

À minha mãe, agradeço pela generosidade e incentivo que muito me

auxiliou para a conclusão deste trabalho.

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RESUMO

MARINANGELO, Isabel. O Direito Penal na Tutela da Ordem Econômica.

2015. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade

Católica, São Paulo, 2015.

O presente trabalho versa sobre o papel do Direito Penal na tutela da Ordem

Econômica, abordando algumas das principais discussões e questionamentos

sobre a matéria. Para tanto, com o uso da já vasta bibliografia existente sobre o

tema, o estudo abarca: (i) a necessidade da adequada tutela penal da Ordem

Econômica para a atualidade, considerando os eventos históricos que

demonstraram o quão nocivas à sociedade podem ser condutas humanas

prejudiciais a este bem jurídico; (ii) a compatibilidade da existência de bens

jurídicos transindividuais com o ordenamento jurídico brasileiro, sob a ótica da

Teoria do Bem Jurídico; e (iii) a compatibilidade da tutela penal da Ordem

Econômica com os preceitos do Estado Democrático de Direito, refletindo sobre

a adequação das formas já utilizadas com esse desiderato, em especial, os

crimes de perigo abstrato. Este trabalho objetiva, assim, auxiliar de alguma forma

as discussões que têm sido travadas acerca do tema proposto, muito em voga

atualmente, por todas as repercussões e consequências que geram para o

mundo moderno.

Palavras chave: Direito Penal. Direito Penal Econômico. Ordem Econômica.

Bem jurídico. Bem jurídico transindividual. Teoria do Bem Jurídico.

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ABSTRACT

MARINANGELO, Isabel. The Criminal Law in the Protection of the Economic

Order. 2015. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Direito, Pontifícia

Universidade Católica, São Paulo, 2015.

This paper deals with the role of the Criminal Law in the protection of the

Economic Order, addressing some of the key discussions and questions on the

subject. Therefore, using the literature about the topic, which already is vast, this

study analyzes: (i) the actual need for appropriate criminal protection of the

Economic Order, considering the historical events that demonstrated how human

activities against this juridical good could be harmful to society ; (ii) the

compatibility of the existence of transindividual rights with the Brazilian legal

order, from the perspective of the Doctrine of the Protection of Legal Goods; (iii)

the compatibility of the criminal protection of the Economic Order with the

precepts of Democratic State of law, reflecting on the adequacy of the procedures

already used with this aim, in particular, the crime of abstract danger. Therefore,

this study aims at assisting the discussions that have been held on the proposed

theme, which is currently very popular, due to the repercussions and

consequences it generates in the modern world.

Key-Words: Criminal Law. Economic Criminal Law. Economic Order. Juridical

goods. Transindividual rights. Doctrine of the Protection of Legal Goods.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................... 9

CAPÍTULO I – EVOLUÇÃO DA ORDEM ECONÔMICA NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS ................................................................... 14

1 BREVE HISTÓRICO DAS CONSTITUIÇÕES ........................................... 14

1.1 Surgimento das constituições: constituição liberal ............................... 14

1.2 Primeira evolução: constituição social ................................................. 17

1.3 Tendência e configuração atual ........................................................... 19

2 HISTÓRICO DA ORDEM ECONÔMICA NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS............................................................................................... 23

2.1 Constituição do Império ....................................................................... 24

2.2 A Primeira República ........................................................................... 27

2.3 Constituição de 1934: a primeira constituição brasileira a disciplinar a ordem econômica ...................................................................................... 31

2.4 Constituição de 1937 ........................................................................... 33

2.5 Constituição Federal de 1946 .............................................................. 37

2.6 Constituição Federal de 1967 .............................................................. 41

2.7 Constituição Federal de 1988 .............................................................. 44

2.7.1 Constituição econômica de 1988 ................................................... 46

2.7.2 Princípios embasadores da ordem econômica vigente ................. 49

3 SOCIEDADE DE RISCO ............................................................................ 53

CAPÍTULO II – DIREITO PENAL NA TUTELA DA ORDEM ECONÔMICA: UMA APROXIMAÇÃO À TEORIA DO BEM JURIDICO.................................. 68

1 CONCEITO DE DIREITO PENAL ECONÔMICO ....................................... 68

2 TEORIA DO BEM JURÍDICO ..................................................................... 72

2.1 Conceito e evolução ............................................................................ 72

2.2 Princípios instrumentalizadores do bem jurídico .................................. 79

2.3 Proteção de bens jurídicos transindividuais ......................................... 82

3 CRIMES DE PERIGO ABSTRATO ............................................................ 95

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3.1 Delitos preparatórios ou de preparação ............................................. 101

3.2 Delitos cumulativos (ou de cumulação) ............................................. 103

3.3 Delitos de ação concretamente perigosa (ou de perigosidade concreta) ................................................................................................................. 106

CAPÍTULO III – ORDEM ECONÔMICA COMO BEM JURÍDICO-PENAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO ....................................................... 108

1 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO ................................................. 108

2 DIREITO PENAL ECONÔMICO NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO ..................................................................................................... 112

3 PRINCÍPIO DA TAXATIVIDADE .............................................................. 117

3.1 Normas penais em branco ................................................................. 118

3.2 Tipo penal aberto e a gestão temerária ............................................. 120

4 PRINCÍPIO DA LESIVIDADE ................................................................... 124

4.1 Princípio da Lesividade e crime de gestão temerária ........................ 129

5 PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA E SUBSIDIARIEDADE ........... 131

5.1 Princípio da intervenção mínima, princípio da subsidiariedade e gestão

temerária .................................................................................................. 134

6 PRINCÍPIO DA FRAGMENTARIEDADE ................................................. 135

6.1 Princípio da Fragmentariedade e gestão temerária ........................... 136

7 PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE ................................................ 137

7.1 Princípio da Proporcionalidade e crime de gestão temerária ............. 138

7.2 Proibição de Proteção Deficiente ....................................................... 139

CONCLUSÃO ................................................................................................ 140

BIBLIOGRAFIA ............................................................................................. 145

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INTRODUÇÃO

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 disciplinou as

diretrizes a serem adotadas pela Ordem Econômica brasileira, seguindo o

exemplo das constituições que a precederam desde 1934, que inaugurou o tema

(a exemplo de ordenamentos estrangeiros) após vários acontecimentos

históricos terem demonstrado a relevância de um regramento das atividades

econômicas realizadas pelos particulares.

Atualmente, constata-se que o texto constitucional se afasta de uma

ideologia de cunho eminentemente liberal, permitindo a intervenção estatal na

economia de diversas formas; dentre elas, podemos mencionar, no âmbito do

Direito Administrativo, (i) a exploração direta de atividade econômica pelo

Estado; (ii) a regulamentação, a normatização e a fiscalização de atividades

econômicas pela Administração Pública, utilizando-se de seu poder de polícia e

(iii) os incentivos fiscais concedidos à iniciativa privada.

Esses sistemas de controle, entretanto, nem sempre têm se mostrado

suficientes para tutelar os valores previstos na Constituição, razão pela qual o

Direito Penal tem sido cada vez mais chamado para fazer frente às condutas

consideradas de maior lesividade à ordem econômica e financeira nacional.

O presente trabalho se presta justamente à análise do uso do Direito Penal

para a proteção dos bens jurídicos relativos à Ordem Econômica. Pretendemos

ponderar, no presente estudo, com base em ideias de inúmeros juristas que já

escreveram sobre o assunto, se o Direito Penal é um meio idôneo – legítimo e

eficaz – para o manejo dessas espécies de ataques a valores constitucionais.

Para o estudo proposto, considerando que o Direito Penal tem por

finalidade a proteção dos bens jurídicos mais caros à sociedade, bem como que

estes estão previstos na Constituição Federal, começaremos o trabalho

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abordando, no Capítulo 1, um histórico acerca do início da contemplação da

Ordem Econômica nas constituições.

A partir dessa síntese, passaremos a realizar, nesse mesmo Capítulo, uma

análise histórica do surgimento e do desenvolvimento da ideia de crime

econômico, focando nossa atenção ao aparecimento e ao desenvolvimento

dessa modalidade penal na sociedade de risco em que vivemos atualmente.

Exploraremos, ainda nessa parte do trabalho, brevemente, algumas das

peculiaridades da sociedade de risco que alteram as características dos crimes

nela perpetrados, principalmente no que tange às vítimas atingidas pela conduta.

Com efeito, a sociedade de risco sucedeu a sociedade industrial, gerando

imensas transformações no estilo de vida da sociedade e dando início a uma

nova espécie de capitalismo, bastante diverso do que o antecedeu.

Essas modificações sociais e político-econômicas geraram para a

sociedade ameaças bastante diversas das que se conheciam anteriormente. Os

riscos deixaram de ser individuais para se tornarem transindividuais e passaram

a ter uma potencialidade lesiva que pode ultrapassar as fronteiras dos Estados.

Um bom exemplo do que se expõe está na crise que veio a público, em

2007: iniciada nos Estados Unidos da América em função de uma bolha no

mercado imobiliário (decorrente de falhas no sistema de créditos hipotecários),

rapidamente se espalhou por diversos outros países, gerando desemprego e

desespero para milhares de pessoas, em diversas regiões do globo.

Esse trágico evento histórico evidenciou, por um lado, a insuficiência do

sistema de controle das atividades econômicas estadunidenses e, por outro, a

gravidade e a proporção que falhas como essas podem gerar para uma

sociedade globalizada.

Esse primeiro Capítulo terá, portanto, não apenas a função de esclarecer e

elucidar como se deu o desenvolvimento da disciplina econômica no

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ordenamento jurídico, mas, também, o escopo de demonstrar a gravidade dos

danos causados pela falta de regulamentação e controle adequado das

atividades dos particulares no âmbito econômico, servindo de pano de fundo e

corroboração para os argumentos tecidos nos capítulos subsequentes.

Apresentado esse quadro, passaremos a analisar, no Capítulo 2, o papel

do Direito Penal nesse cenário, focando nossa atenção na tentativa de responder

às seguintes perguntas: (i) a ordem econômica pode ser considerada um bem

jurídico merecedor e apto a ser tutelado pelo Direito Penal brasileiro, nos moldes

como hoje ele se encontra estruturado?; (ii) à luz das bases principiológicas do

Direito Penal atual, são legítimas as formas já adotadas por esse ramo do Direito,

na tentativa de proteger os bens jurídicos em questão?

As respostas a essas perguntas serão lastreadas, em um primeiro

momento, no estudo da Teoria do Bem Jurídico e dos princípios que norteiam a

elaboração de tipos penais materialmente constitucionais, como, por exemplo, o

Princípio da Subsidiariedade, da Fragmentariedade e do Direito Penal Mínimo.

Será realizada, para esse fim, no bojo do Capítulo 2, uma pesquisa sobre

o desenvolvimento do conceito de bem jurídico, com a finalidade de avaliar se

os atuais tipos penais que tutelam a ordem econômica são adequados e

legítimos no Estado Democrático de Direito em que vivemos.

Ainda nesse contexto, pretendemos demonstrar nossa visão – com base

na doutrina atual – sobre o polêmico crime de perigo abstrato, muito utilizado

para a tutela dos bens jurídicos concernentes à ordem econômica, em razão da

natureza coletiva que possuem.

Com efeito, os crimes de perigo abstrato, ao contrário dos crimes de perigo

concreto, dispensam a demonstração da potencialidade lesiva da conduta, ou

seja, o risco a que o autor submete o bem jurídico tutelado é presumido, fato que

é criticado por muitos juristas. Por outro lado, muitos defendem essa espécie de

tipificação para os delitos econômicos, sustentando que não haveria outro meio

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suficientemente hábil para tutelar condutas de consequências tão amplas e, no

mais das vezes, indeterminadas.

Após essa análise, e ainda com foco nas questões acima elencadas,

pretendemos tecer, no Capítulo 3, considerações acerca da adequação dos tipos

penais que tutelam a Ordem Econômica ao Estado Democrático de Direito em

que vivemos. Para tanto, pretendemos examinar quais características devem ser

observadas na tipificação dessas espécies de delitos para que sejam

respeitados os direitos e as garantias individuais asseguradas por essa

modalidade de Estado, utilizando o crime de gestão fraudulenta para realizar

uma experimentação prática do que for abordado teoricamente.

Realizadas todas essas análises, encerraremos o trabalho com a

apresentação de uma Conclusão acerca do tema proposto, reunindo as

principais ideias trazidas ao longo do texto e respondendo as questões que nos

levaram a discorrer sobre o assunto.

Consideramos a matéria apresentada de elevada relevância para a

sociedade atual, que se apresenta como uma sociedade de risco, cada vez mais

ameaçada por condutas que fogem dos padrões conhecidos pelo Direito Penal

tradicional, principalmente por afetar um número indeterminado de pessoas.

A globalização a que assistimos atualmente, por sua vez, faz com que

danos causados à economia de determinado país afetem, não só as pessoas ali

residentes, como também outras partes do globo, o que revela a imensa

lesividade que os crimes econômicos possuem. Esse fato, aliado à dificuldade

que o Direito Penal tradicional tem experimentado para fazer frente a condutas

dessa natureza, torna de extrema importância a reflexão sobre o tema.

Para a realização do trabalho, valemo-nos da vasta bibliografia existente

sobre a matéria, tanto no Brasil como no exterior.

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Com essa pesquisa, pretendemos auxiliar de alguma forma as discussões

que têm sido travadas acerca do tema proposto, muito em voga atualmente, por

todas as repercussões e consequências que geram para o mundo moderno.

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CAPÍTULO I – EVOLUÇÃO DA ORDEM ECONÔMICA NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS

1 BREVE HISTÓRICO DAS CONSTITUIÇÕES

1.1 Surgimento das constituições: constituição liberal

A ideia de um regramento que contivesse os princípios básicos a serem

seguidos pelo Estado surgiu pela primeira vez em 1215, na Inglaterra. O

documento, denominado Magna Charta Libertatum, elencava alguns direitos

fundamentais dos cidadãos e previa mecanismos para sua garantia. Dentre eles,

o habeas corpus e o devido processo legal.1

Não obstante a existência desse documento, apenas a partir da primeira

metade do século XVII é que a Inglaterra inicia um período de desenvolvimento

do Estado Constitucional, marcado pelo incremento da “consciência jurídica e da

compreensão teórica das condições constitucionais da liberdade”.2

Esse desenvolvimento seguiu um modelo liberal, em razão do crescente

poder econômico da classe média da época, formada pela burguesia e por parte

da aristocracia fundiária. Não por outra razão, Maria Luiza Schäfer Streck explica

que o Estado Constitucional surgiu como um Estado Liberal, nos seguintes

termos:

O Estado Constitucional surge primeiramente como Estado Liberal, fundamentado em valores burgueses de liberdade que buscavam a limitação do poder político tanto pela sua divisão interna como pela redução de funções perante a sociedade. Esse modelo estava alicerçado em ideais que procuravam obter a superação do caos medieval e da primeira fase do Estado que superou a forma medieval:

o absolutismo.3

1 CERQUEIRA, Marcelo. A constituição na história: origem e reforma: da Revolução Inglesa de 1640 à crise do Leste Europeu. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2006. 2 Idem, p. 54. 3 STRECK, Maria Luiza Schäfer. Direito Penal e Constituição – A Face Oculta da Proteção dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Livraria do Advogado, 2009, p. 28.

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Limitar, controlar e dividir o poder era a base central da teoria política

liberal - a partir do Estado Liberal, o poder passa a ser dividido e limitado por

outros órgãos do Estado, como assembleias e tribunais.

Essa fase corresponde à primeira dimensão dos direitos fundamentais,

denominados direitos civis e políticos (Direito de Liberdade), que abrangem,

além de algumas garantias processuais, o direito à vida, à liberdade, à

propriedade, à igualdade formal e o direito de participação política. São

chamados de direitos negativos porque pretendiam a abstenção do Estado.

Em seu aspecto econômico, o liberalismo busca a independência da

economia de qualquer interferência do Estado, com a valorização ampla da

defesa da livre concorrência e da lei da oferta e da procura como mecanismo de

regulação do mercado, conforme bem ensina Paulo Bonavides:

O Estado Liberal, produto acabado do liberalismo e sua ideologia, teve assim uma infância coroada das esperanças de que vinha mesmo para libertar. Os dogmas eram claros e precisos: na ordem econômica, a livre empresa, a livre iniciativa; o laisser faire, laisser passer, a livre troca, a livre competição; na ordem política, o homem-razão, o homem-governante, o homem-cidadão, o homem-sujeito, em substituição do sub-homem ou subser, que fora genericamente aquele súdito e servo

das épocas da monarquia e do feudalismo.4

Justamente por essa razão, embora se pudesse observar nas constituições

da época normas de repercussão econômica, não havia nelas uma disciplina

sistemática da atividade econômica5. As preocupações principais dessas Cartas

constitucionais giravam em torno da garantia das liberdades individuais, o que,

de acordo com a crença da época, seria obtida principalmente por meio da

limitação do poder do Estado6.

4 BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. p. 92. 5 FILHO. Manoel Gonçalves Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 37 ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 376. 6 As regras constitucionais atinentes à matéria na vigência do liberalismo se atinham a questões voltadas à garantia do desenvolvimento do capitalismo, tais como o direito à propriedade privada e a liberdade de trabalho indústria e comércio. Como exemplo de documentos do período que traziam essas regras, podemos mencionar o artigo 17, da Constituição Francesa de 1791 e artigo 179, XX, da Constituição Política do Império do Brazil, de 25 de março de 1824.

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Pode-se afirmar, diante do exposto, que a ideia de Constituição

considerada no século XVIII como necessária e suficiente à proteção dos

interesses dos cidadãos descurava do elemento econômico, acreditando-se que

era apenas com a limitação e a estruturação do poder que se obteria a efetiva

proteção das liberdades individuais.7

O Direito Penal desse período naturalmente seguiu a mesma linha.

Chamado por muitos doutrinadores de “liberal-burguês”8, esse importante ramo

do Direito se preocupava em proteger os direitos individuais conquistados e

valorizados pela burguesia, como a vida, a liberdade e a propriedade, ou seja,

preocupava-se com bens jurídicos essencialmente individuais9. A este respeito,

especificamente sobre o Direito Penal Econômico, Fábio André Guaragni afirma:

Como se verifica, a experiência histórica do século XIX, no sentido de consagrar as liberdades individuais frente ao poder do estado, contendo-o, não dava espaço para um direito penal econômico, tutor de um interesse meta-individual. À época, os direitos individuais, ditos “de primeira geração”, estavam sendo solidificados, sendo tratados com primazia pelos vários ramos do ordenamento jurídico. Particularmente, o patrimônio, enquanto bem jurídico caro às classes burguesas, constituídas solidamente pela vivencia da economia capitalista e liberal, apresenta-se como cerne das preocupações tanto

do direito penal como do direito civil.10

Com o tempo, entretanto, o absenteísmo estatal proposto pelo liberalismo

acabou por impedir que grande parte da sociedade tivesse acesso, de fato, aos

direitos fundamentais que lhe eram constitucionalmente garantidos.

A situação se agravou com o advento da Revolução Industrial, tendo em

vista que a absoluta igualdade de todos perante a lei possibilitou que os

detentores dos meios de produção submetessem a classe operária a condições

desumanas e degradantes. Ficou claro que a igualdade formal propagada pelo

Estado Liberal gerava inegável desigualdade substancial.

7 FILHO, Manoel Gonçalves Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 37 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 375. 8 GUARAGNI, Fábio André. A origem do direito penal econômico: razões históricas. In: LUIZ ANTONIO CÂMARA (Coord). Crimes contra a ordem econômica e tutela dos direitos fundamentais. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 147. 9 Idem, p. 148. 10 Idem, p. 147.

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1.2 Primeira evolução: constituição social

As primeiras constituições a tratar sobre economia foram a Constituição do

México de 31 de janeiro 1917 e, com maior expressividade, a Constituição alemã

de Weimar, de 11 de agosto de 1919. O documento de origem alemã disciplinava

de forma sistemática as linhas gerais da ordem econômica, em seção intitulada

Da vida econômica e serviu de inspiração para diversas constituições europeias

(como a espanhola de 1931) e para a Constituição brasileira de 1934.

A colocação de elementos relativos à ordem econômica nas constituições

sociais é facilmente explicada pela mudança de raciocínio da época, em especial

após 1929, quando foi exposta a fragilidade de um sistema econômico sem o

controle adequado e os graves prejuízos sociais acarretados por essa falta. Nos

períodos subsequentes à crise a seguir comentada, fala-se em Estado do Bem-

Estar Social ou Welfare State para designar a nova postura estatal, voltada à

promoção do bem-estar social e de diversos direitos coletivos.

O principal marco histórico para essa mudança de paradigmas, conforme

mencionado, foi a quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque ocorrida em 1929.

A crise gerada pelo evento assumiu proporções catastróficas, assolando grande

parte dos países capitalistas – se não todos. As causas principais do colapso

foram a facilidade da compra de ações pela população e a falta de controle

estatal sobre as operações envolvendo esses papéis. A situação é bem

explicada na reportagem abaixo, que reconstitui o momento aqui tratado:

Nos últimos anos, o fenomenal desempenho das ações parecia desafiar o adágio de que tudo que sobe deve descer. Há pouco mais de um mês, em 3 de setembro, o índice de ações industriais publicados pelo diário The New York Times atingia seu ápice histórico, com 452 pontos. Em 1925, o mesmo indicador registrava 159 tentos. A facilidade da compra de ações seduziu milhares de investidores, que colocavam todo o dinheiro que tinham, e especialmente o que não tinham, em pedaços de papéis certificados. Comprar ações "na margem" pagando uma pequeníssima parcela do valor e tomando o restante emprestado do corretor ou do banco era, até dias atrás, prática absolutamente comum e aparentemente segura. Afinal, como as ações não paravam de se valorizar, bastava vendê-las, quitar o débito com o credor e embolsar o lucro. A euforia era infinita.

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Por trás dela, entretanto, escondia-se uma realidade para a qual os otimistas faziam vista grossa. Enquanto os preços das ações subiam, disparavam também os empréstimos dos corretores e, no final do verão americano, o montante chegara a sete bilhões de dólares, tornando a especulação a grande alavanca desse crescimento. Não havia, assim, segurança ou liquidez nessa enxurrada de capital que desembarcava em Nova York. Mas a aparência firme do mercado fazia dissipar qualquer preocupação com os empréstimos, e a especulação encontrava campo aberto e convidativo para se alastrar e aumentar

ainda mais o valor das ações.11

O evento revelou as debilidades do liberalismo econômico e a

grandiosidade das consequências que uma crise nesse setor poderia gerar para

a sociedade, muitas vezes por longo período. A respeito das consequências da

crise, Fernando Herren Aguillar leciona:

Com a quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque, em 1929, praticamente todos os países foram afetados durante os anos que se seguiram. O liberalismo econômico recebia o seu mais forte golpe. Escorados na ideia de que a liberdade de iniciativa, a mão invisível e as leis de mercado regulariam satisfatoriamente a economia, os países capitalistas ocidentais se viram da noite para o dia com enormes dificuldades para restabelecer a normalidade de produção e do

comércio.12

Para conter o caos que se alastrava à época e com o intuito de proteger a

sociedade do crescente desemprego e miséria, os Estados passaram a intervir

diretamente na economia. Nos Estados Unidos, uma série de medidas

interventivas, denominadas New Deal foram adotadas pelo então presidente,

Franklin Delano Roosevelt, visando ao aumento das ofertas de emprego e à

organização da economia.13

Outrossim, diante da necessidade de combater a crise, bem como das

limitações que o sistema liberal vigente à época impunha, muitos Estados

passaram a adotar regimes autoritários – quase sempre com amplo apoio

popular –, para possibilitar medidas que propiciassem a intervenção na

economia de forma mais célere. Para melhor ilustrar esse movimento, vale

transcrever como Fernando Herren Aguillar sintetiza a situação daquela época:

11http:www//veja.abril.com.br/historia/crash-bolsa-nova-york/especial-quebrou-panico-acoes-wall-street.shtml 12 AGUILLAR, Fernando Herren. Direito Econômico: do direito nacional ao direito supranacional. São Paulo: Atlas, 2006, p.44-45. 13 Idem, p. 45.

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Em síntese, a formação da consciência nacional representa o ápice do nacionalismo, que encontrou nas crises econômicas a via rápida para sua transformação em ideologia autoritária. Os movimentos de direita souberam vislumbrar nas debilidades da democracia e da economia

liberal o campo propício para a propagação de ideais fascistas.14

Para a proteção das medidas econômicas adotadas, os Estados

autoritários passaram a se utilizar do Direito Penal, alterando profundamente a

sua feição individualista. É nesse período que surge o Direito Penal Econômico,

como bem explica Fábio André Guaragni:

Surgia a partir destes marcos históricos, o “direito penal econômico”, enquanto campo jurídico-penal destinado à tutela do bem jurídico meta-individual “ordem econômica”. A “ordem econômica”, neste contexto, era definida como intervenção do estado na economia. Tal concepção do bem jurídico “ordem econômica”, conquanto meta-individual, deixou patente a pretensão do direito penal econômico de proteger, a partir da constituição de um novo campo de criminalização primária, não os interesses das pessoas integrantes da sociedade, mas sim – e sobretudo – os interesses do próprio Estado, enquanto gestor

da economia.15

Como se vê, em 1929, a falta de controle estatal sobre as atividades

econômicas e a total liberdade até então concedida aos particulares para agirem

nessa área acarretaram uma drástica alteração na vida de milhares de pessoas,

em várias áreas do globo. Mais do que isso, possibilitaram a ascensão de

regimes autoritários que se mantiveram no governo por muitos anos e

influenciaram sobremaneira a história de inúmeros países.

1.3 Tendência e configuração atual

O final da Segunda Guerra Mundial foi marco de novas e significativas

mudanças, que perduram, em grande parte, até os dias atuais. Diversos

14 AGUILLAR, Fernando Herren. Direito Econômico: do direito nacional ao direito supranacional. São Paulo: Atlas, 2006, p. 46.

15 GUARAGNI, Fábio André. A origem do direito penal econômico: razões históricas. In: LUIZ ANTONIO CÂMARA (Coord). Crimes contra a ordem econômica e tutela dos direitos fundamentais. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 151.

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governos autoritários criados e mantidos até então passaram a se mostrar

inviáveis no novo cenário que se apresentava, fruto da vitória dos países

democráticos.

Por outro lado, a ideologia liberalista que prevaleceu no período anterior

gerou o fenômeno denominado globalização, que se caracteriza por um

aprofundamento do intercâmbio de informações, bens, capital e mercadoria

entre os diversos países do globo, bem como “pelo abandono (terceirização e

privatização) crescente do Estado em relação às funções que desempenhava,

aos poucos canalizada para a iniciativa privada e para as forças do mercado”.16

Sem dúvida, o fenômeno da globalização possibilitou uma série de avanços

tecnológicos importantes, gerando reflexos benéficos à grande parte da

população, em especial no que tange à saúde. A expectativa de vida aumentou

significativamente nos últimos anos, acompanhada de uma grande melhora na

qualidade de vida daqueles que atingem idades mais avançadas.

Evidentemente, esses avanços não seriam possíveis sem o intenso e rápido

intercâmbio de informações entre países, que permite que uma descoberta

chegue, quase que imediatamente, ao conhecimento de milhares de pessoas,

principalmente por meio da internet.

Não obstante esses e outros inegáveis benefícios gerados pela

globalização, certo é que o fenômeno contribuiu imensamente para o aumento e

para a diversificação da criminalidade, em grande parte em razão do abandono

do Estado Social, como bem explicam Paulo Afonso Brum Vaz e Ranier de

Souza Medina:

Tem-se pois, que os reflexos da globalização – a latere de algumas benesses – proporcionaram relevante contribuição para o aumento da criminalidade. Duas vertentes devem ser consideradas. A primeira, relacionada intimamente com o abandono ou desmonte do Estado Social, gerando o desemprego, o empobrecimento e o aumento da miséria, que impulsionam às práticas criminais tradicionais (...). A segunda, diz respeito a outra modalidade de delinquência, a econômica, que se beneficia da abertura das economias, da redução

16 VAZ, Paulo Afonso Brum; MEDINA, Ranier Souza. Direito Penal Econômico e Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional. São Paulo: Conceito Editorial, 2012, p. 30.

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das distâncias, das comunicações instantâneas, das facilidades e liberdades de transito de pessoas e capitais, do incremento das formas de pagamento e da nova revolução tecnológica, que possibilita a criação de ferramentas tecnológicas que se colocam a serviço da

moderna criminalidade.17

O fenômeno da globalização é considerado, também, a principal

personagem para a caracterização da sociedade de risco, em que hoje vivemos.

Com efeito, o termo cunhado por Ulrich Beck, refere-se a uma realidade de

produção de “riscos e potenciais de auto ameaça numa medida até então

desconhecida”18. Guilherme Guedes Raposo sintetiza a situação da seguinte

maneira:

Todas essas transformações ocorridas no século XX trouxeram um novo modelo de sociedade no qual a produção de riscos pela atividade humana afeta a ordem social, econômica, política e, principalmente, o meio ambiente de todos os países, e cujo controle escapa

progressivamente aos órgãos oficiais dos Estados.19

Embora pretendamos explorar melhor essa questão mais adiante, vale

mencionar desde já que uma das características mais relevantes da sociedade

de risco é a causação de danos que afetam pessoas indeterminadas e/ou

indetermináveis, muitas vezes em diversos países.

Um dos exemplos mais atuais de disseminação mundial de resultados de

condutas nocivas ao redor do globo foi o ocorrido no ano de 2007, nos Estados

Unidos da América. O problema girou em torno das chamadas hipotecas

subprime, inicialmente criadas para possibilitar que famílias americanas de

menor renda pudessem adquirir um imóvel:

Ao contrário das hipotecas prime, concedidas a tomadores que dão a entrada tradicional e comprovam os seus rendimentos, as hipotecas subprime correspondem àqueles casos em que, ao adquirir um imóvel

17 VAZ, Paulo Afonso Brum; MEDINA, Ranier Souza. Direito Penal Econômico e Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional. São Paulo: Conceito Editorial, 2012, p. 30. 18 BECK, Ulrich. Sociedade de Risco: rumo a uma outra modernidade. 1 ed. São Paulo: Editora 34, 2011, p. 23. 19 RAPOSO, Guilherme Guedes. Teoria do bem jurídico e estrutura do delito: uma reflexão sobre a legitimidade da antecipação da tutela penal como meio de proteção de bens jurídicos na sociedade contemporânea. Porto Alegre: Nuria Fabris Editora, 2011, p. 136.

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através do crédito hipotecário, o comprador-devedor não é capaz de

dar qualquer entrada e/ou não têm renda comprovada.20

Por meio desse mecanismo, o comprador adquiria o crédito necessário

para a aquisição do imóvel com a hipoteca subprime e, posteriormente, poderia

migrar para o mercado prime, escapando das elevadas taxas de juros aplicadas

para compensar os riscos inerente às menores garantias. Cláudio Gontijo bem

explica esse procedimento:

A ideia desses instrumentos de crédito era conceder um espaço de tempo que seria utilizado pelo comprador para compor ou recompor seu cadastro de forma a migrar para o mercado prime. O incentivo para fazê-lo era dado pela expressiva diferença entre a taxa de juros nos dois mercados, a qual condicionava a diferença entre a taxa de juros paga durante o período inicial de dois a três anos – a teaser rate – e a taxa ajustada, uma vez tendo sido vencido esse período sem que o comprador mudasse de status. Caso não houvesse a migração para o mercado prime, o comprador estaria sujeito às elevadas taxas do mercado subprime, cujo diferencial seria mais do que suficiente para cobrir os riscos mais elevados. E num contexto de boom habitacional, a qualidade do crédito importava pouco, pois “se o comprador não pudesse mesmo efetuar os pagamentos devidos durante o período de teaser rates, o prestamista poderia tomar posse da residência, vendê-la rapidamente no mercado aquecido e recuperar qualquer perda

devido à apreciação dos preços”.21

Em 2006, entretanto, começou um processo de queda dos preços dos

imóveis, provavelmente em razão do excesso de oferta, resultante dos elevados

valores anteriormente praticados.22 Com tal movimento de queda, começou a

derrocada de todo o sistema, já que muitos mutuários dependiam da valorização

de seus imóveis para migrar para o sistema prime e obter menor taxa de juros.23

Sem conseguir essa transição e sem conseguir arcar com o pagamento da dívida

com as elevadas taxas do sistema subprime, a inadimplência passou a se elevar

vertiginosamente. Além dessas ocorrências, a queda dos preços afastou

20 GONTIJO, Cláudio. Raízes da crise financeira dos derivativos subprime. Belo Horizonte: UFMG/Cedeplar, 2008. p. 17. http://www.web.face.ufmg.br/cedeplar/site/pesquisas/td/TD%20342.pdf 21 Idem, p. 19. 22 Idem, p. 17. 23 Idem, p. 24.

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também os especuladores do mercado habitacional24, o que agravou ainda mais

o problema.

A gravidade da situação veio à tona em 2007, quando empresas e

instituições financeiras que operavam com subprimes e derivados começaram a

falir ou a entrar em sérias dificuldades financeiras, acarretando uma enorme

queda nas Bolsas de Valores americanas.

Em razão da já mencionada globalização e da interligação entre diversos

países, a crise rapidamente se espalhou, gerando desemprego e desespero para

milhares de pessoas, em diversas regiões do globo, revelando por um lado, a

insuficiência do sistema de controle das atividades econômicas estadunidenses

e, por outro, a gravidade e a proporção que falhas como essas podem gerar para

uma sociedade globalizada.

2 HISTÓRICO DA ORDEM ECONÔMICA NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS

Tendo em vista que o presente trabalho é dirigido à realidade do

ordenamento jurídico brasileiro, julgamos importante relatar como se deu o

desenvolvimento da ordem econômica, bem como sua constitucionalização, no

país.

Antes de adentrar na matéria propriamente dita, entretanto, cumpre

esclarecer que a história do Direito Econômico no Brasil é bastante ligada e

influenciada pelas tendências externas, mesmo aquelas provenientes de países

que com ele pouco possuem semelhança, como bem explica Fernando Herren

Aguillar:

As políticas econômicas veiculadas pelo direito são muito particularizadas em cada país. Países com diferenças estruturais muito grandes reclamam políticas econômicas igualmente distintas. A

24GONTIJO, Cláudio. Raízes da crise financeira dos derivativos subprime. Belo Horizonte: UFMG/Cedeplar, 2008. p. 24. Obtido do site: http://www.web.face.ufmg.br/cedeplar/site/pesquisas/td/TD%20342.pdf

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história do Direito Econômico brasileiro, contudo, nem sempre se distancia daquela que se desenvolve nos países centrais da economia capitalista. Temos tradição cultural de bem receber a influência desses países, com alguns anos de defasagem. Políticas adotadas em países desenvolvidos logo chegam ao Brasil, com algumas adaptações, mas

com consequências muito diversas. 25

Feitas tais considerações, passaremos a analisar o desenvolvimento da

ordem econômica no Brasil, a partir da Independência. A escolha pela data de

início da análise se deve ao fato de o país ter seguido as regras portuguesas

durante todo o Período Colonial, e não por falta de atividade econômica na

época. Iniciaremos, portanto, com o histórico a partir da Independência em razão

de o foco do presente trabalho se alicerçar na normatização da economia no

Brasil.

2.1 Constituição do Império

Após a proclamação da Independência do Brasil, em 7 de setembro de

1822, D. Pedro I, seguindo a tendência constitucionalista que fervilhava em

diversos países da Europa, convocou uma Assembleia Constituinte para redigir

a primeira Carta constitucional brasileira. Os caminhos inovadores inicialmente

adotados por esta Constituinte, entretanto, não agradaram o monarca, que

acabou por dissolvê-la, convocando uma nova constituinte composta por

pessoas com ideias mais conservadoras. Foi o resultado do trabalho dessa

segunda assembleia que Dom Pedro I outorgou, em 25 de março de 1824, como

a primeira Carta constitucional brasileira, denominada Constituição Política do

Império do Brasil. 26

Apesar de manter o absolutismo, essa Constituição se abeberou das

ideias liberalistas da época, tendo como principal influência a Constituição

francesa de 1814. Com efeito, além de se abster de regular a ordem econômica,

característica típica das constituições liberais, essa Carta continha algumas

25 AGUILLAR, Fernando Herren. Direito Econômico: do direito nacional ao direito supranacional. São Paulo: Atlas, 2006, p. 71. 26 BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.

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disposições que eliminavam qualquer dúvida a respeito de sua opção ideológica;

dentre elas, vale mencionar: (i) o artigo 179, inciso XXII27, que garante o direito

à propriedade, e (ii) o artigo 179, inciso XXIV28, que pode ser considerado como

a primeira manifestação constitucional da livre iniciativa29.

No que tange ao modelo regulatório da economia, o período foi marcado

pela concepção patrimonialista de Estado, que já vinha vigorando desde a Época

Colonial e que se estendeu até o início do Segundo Reinado.30 Os Estados

patrimonialistas têm, como característica marcante, a confusão do patrimônio e

estrutura particular do governante com o patrimônio e estrutura pública (do

Estado), acabando por gerar uma espécie de apropriação do Estado pelo

governo. Esse modelo prevaleceu na maioria dos países, durante todo o Período

Absolutista.

Apesar de prevalecer à época as concepções liberais e patrimonialistas,

fato é que a Constituição de 1824 previu em seu bojo algumas disposições de

cunho social, conforme explicam Paulo Bonavides e Paes de Andrade:

A seguir, a Constituição outorgada, ao contrário do silencio e omissão dos republicanos de 1891, enunciava o princípio, segundo o qual, “a Constituição também garante os socorros públicos”, ao mesmo passo que declarava a instrução primária gratuita a todos os cidadãos; regras, portanto, de constitucionalismo social, tão peculiares às conquistas do

nosso século.31

A Constituição do Império foi a Carta constitucional de mais longa vigência

no Brasil, revogada apenas por ocasião da Proclamação da República, em 15

de novembro de 1889. Já no Segundo Reinado, entretanto, houve uma

importante alteração na economia brasileira. Em 1831, com a abdicação de D.

27 Art. 179. XXII. E'garantido o Direito de Propriedade em toda a sua plenitude. Se o bem público legalmente verificado exigir o uso, e emprego da Propriedade do Cidadão, será elle préviamente indemnisado do valor della. A Lei marcará os casos, em que terá logar esta unica excepção, e dará as regras para se determinar a indemnisação. 28 Art. 179. XXIV. Nenhum genero de trabalho, de cultura, industria, ou commercio póde ser prohibido, uma vez que não se opponha aos costumes publicos, á segurança, e saude dos Cidadãos. 29 AGUILLAR, Fernando Herren. Direito Econômico: do direito nacional ao direito supranacional. São Paulo: Atlas, 2006, p. 91. 30 Idem, p. 74. 31BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 132.

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Pedro I, a regulação eminentemente patrimonialista passou a ceder espaço a

uma regulação mais desconcentrada32, ou seja, com maior liberdade para a

iniciativa privada, característica consentânea com o liberalismo vigente à

época.33

Não obstante tais observações sobre o liberalismo que de fato vigia à época

e servia como ideologia constitucional, contraditoriamente, é possível verificar

nesse período diversas medidas interventivas governamentais de grande

relevância para a economia, como bem explica Fernando Herren Aguilllar:

Em 1844, por exemplo, foi instituída a Tarifa Alves Branco, medida protecionista alfandegária adotada em represália à elevação da taxa sobre o preço do açúcar brasileiro pela Inglaterra. A medida representou um dos primeiros impulsos oficiais de incentivo à industrialização do país. É possível dizer que uma indústria privada floresceu precisamente a partir desse impulso protecionista

alfandegário.34

Ainda nesse período, mais especificamente no ano 1850, entra em vigor o

antigo Código Comercial, Lei nº 556 (hoje quase integralmente revogada), que

regulava “a prática dos atos de comércio e a constituição de sociedades,

consistindo em indispensável medida de incentivo ao desenvolvimento da

atividade produtiva comercial.”35

A vida econômica fervilhava no Brasil e, muito embora não houvesse

previsão constitucional sobre a Ordem Econômica, “o Direito Econômico surge

aqui com muita clareza, organizando as estruturas de mercado indispensáveis

ao bom desenvolvimento das atividades econômicas.”36

Vale ressaltar que, apesar do caráter liberal da Constituição do Império,

não havia questionamentos sobre a legitimidade das medidas estatais

interventivas, provavelmente porque se entendia as questões econômicas como

32 AGUILLAR, Fernando Herren. Direito Econômico: do direito nacional ao direito supranacional. São Paulo: Atlas, 2006. 33 Idem. 34 Idem, p. 93. 35 Idem, p. 95. 36 Idem.

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atinentes ao âmbito político, ou seja, as questões de cunho econômico eram

vistas de forma apartada das questões legais e constitucionais, razão pela qual

não houve no período produção legislativa incriminando as condutas que

atentassem contra a economia37.

2.2 A Primeira República

Após longo período de enfraquecimento da Monarquia, em 15 de novembro

de 1889, foi proclamada a República. Daniel Sarmento sintetiza a situação da

época da seguinte maneira:

A queda da monarquia, em novembro de 1889, não foi nenhuma surpresa. As bases de sustentação do regime monárquico estavam profundamente desgastadas após a “questão religiosa”, a “questão militar” e a emancipação dos escravos em indenização aos ex-proprietários. O movimento republicano vinha ganhando corpo no país, desde o começo da década de 1870. Ademais, Pedro II estava muito envelhecido, e a opinião pública tinha ojeriza ao seu genro estrangeiro,

o Conde D´Eu, visto como possível futuro governante.38

Destituído o imperador, a família real foi exilada para a Europa e, no próprio

dia 15 de novembro, foi instituído um governo republicano provisório, tendo como

presidente da República e chefe do Governo o Marechal Deodoro da Fonseca.39

O Ministro da Fazenda desse governo foi Rui Barbosa, que, com planos de

incentivar a industrialização no país, adotou inúmeras medidas econômicas,

dentre elas, a facilitação de formação de Sociedades Anônimas – “que foram

instrumento de captação de recursos e que permitiam a multiplicação de

indústrias variadas no país” 40 –, a autorização de emissão de notas bancárias,

como moeda legal por bancos privados e o aumento do imposto de importação.41

Embora tais medidas tenham sido aptas a provocar um aumento na produção

37 http://www4.planalto.gov.br/legislacao/legislacao-historica/leis-do-imperio-1 38 SARMENTO, Daniel. Por um constitucionalismo inclusivo: história constitucional brasileira, teoria da constituição e direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010, p. 18. 39 Idem, p. 19. 40 AGUILLAR, Fernando Herren. Direito Econômico: do direito nacional ao direito supranacional. São Paulo: Atlas, 2006, p. 104. 41 Idem.

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nacional, teve inúmeros problemas decorrentes de falta de regulamentação

apropriada.42

Este Governo Provisório vigorou até 24 de fevereiro de 1891, quando foi

promulgada a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, bastante

parecida com a Constituição Provisória que a precedeu. Assim, seguindo o

modelo da constituição norte-americana, essa Constituição Federal adotou a

ideologia liberal43 e alterou radicalmente a estrutura então existente no país.

Dentre as principais mudanças instituídas pela nova Constituição, vale

mencionar a adoção do sistema federativo de Estado; a adoção do

presidencialismo; a separação do Estado e Igreja; a abolição da pena de morte;

a criação do habeas corpus; e a extinção dos privilégios de berço, foros de

nobreza e “ordens honoríficas”.44

Assim como a Constituição do Império, a Constituição de 1891 não tratou

da ordem econômica, seguindo as características liberais prevalentes à época.

Entretanto, previu uma série de direitos individuais, como bem explica Paulo

Bonavides e Paes de Andrade:

Apesar de não tratar da ordem econômica e social, a primeira Constituição republicana nos ministrou uma declaração de direitos “concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade”, que, além de instituir a inviolabilidade de domicílio, a liberdade de

expressão, deu-nos por igual o princípio do habeas corpus.45

Não obstante a omissão no que tange à ordem econômica, essa

Constituição incentivou a imigração visando solucionar o problema de mão de

obra que se apresentava desde o esvaziamento da política escravista. A respeito

42 AGUILLAR, Fernando Herren. Direito Econômico: do direito nacional ao direito supranacional. São Paulo: Atlas, 2006. 43 De acordo com Paulo Bonavides e Paes de Andrade, “de um ponto de vista ideológico, a Primeira República foi o coroamento do liberalismo no Brasil.” BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 249. 44 BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 251. 45 Idem, p. 253.

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do assunto, devemos nos valer novamente das lições de Fernando Herren

Aguillar:

Após o esvaziamento da política escravista, com a Lei do Ventre Livre, em 1871, e a Abolição, em 1888, o ponto fundamental para o impulso econômico de que o país necessitava se encontrava na solução do problema da mão-de-obra. E a solução encontrada foi a política de

incentivo à imigração.46

Apesar das medidas interventivas na economia adotada pelo governo da

época e aqui mencionadas, fato é que, refletindo a ideologia liberal vigente,

predominou no período a ampla liberdade de iniciativa. Com efeito, nos

ambientes fabris, era maciça a exploração da classe operária; os produtos não

tinham controle de qualidade e não havia normas regulando a concorrência, o

que favorecia a organização de monopólios.47

Em 1926 foi efetivada uma reforma constitucional, inserindo no texto o

poder do Congresso de legislar sobre o comércio e autorizar limitações a ele em

prol do bem público. Esta foi a primeira previsão constitucional tratando da

intervenção na economia. 48 Até então “a questão se restringia ao ponto de vista

do acerto científico-prático das medidas”.49

Outro avanço na matéria se deu em 1896, com a expedição do Decreto

nº 2.406. Para tentar fazer frente às diversas crises econômicas que assolavam

o país, o documento proibiu a emissão de notas bancárias por bancos privados

(que cometiam diversos abusos se valendo dessa possibilidade), atribuindo tal

faculdade apenas à União.

Posteriormente, no ano de 1920, em meio a um cenário de crise e de

endividamento externo, foi editado o Decreto nº 4.182, que instituiu uma

fiscalização sobre as operações bancárias, para coibir o jogo sobre o câmbio e

46 AGUILLAR, Fernando Herren. Direito Econômico: do direito nacional ao direito supranacional. São Paulo: Atlas, 2006, p. 106. 47 Idem. 48 Idem. 49 Idem.

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assegurar que fossem realizadas apenas as operações legítimas.50 As

penalidades impostas pela norma eram eminentemente administrativas, de

forma que não se pode afirmar que ela já cuida da introdução do Direito Penal

Econômico no Brasil.51

Outro marco importante na história econômica do país ocorreu em 1930,

com a chamada Revolução de 30, que culminou na vitória do grupo político

denominado Aliança Liberal. Esse movimento permitiu que Getúlio Vargas

assumisse o poder, pondo fim à “República Velha”,52 sendo de grande

importância para o surgimento do Estado Social. Paulo Bonavides e Paes de

Andrade chegam a afirmar que “os liberais de 30 abriram caminho ao

constitucionalismo do Estado Social.”53 Com efeito, muito embora tenha

suspendido diversas garantias constitucionais, dissolvido o Congresso Nacional

e adotado outras medidas antidemocráticas em diversas áreas, Vargas foi

instituidor de diversos avanços no âmbito social, editando diversas normas de

proteção ao trabalhador urbano e estabelecendo o voto secreto.

As medidas de cunho social adotadas por Getúlio Vargas estavam em

consonância com o que ocorria em outras partes do globo, que já questionavam

a conveniência do absenteísmo estatal, conforme explica Daniel Sarmento:

À época, o ambiente constitucional externo era de crise da democracia liberal. Nos Estados Unidos, o modelo do absenteísmo estatal estava sendo abandonado, com as políticas intervencionistas do Presidente Roosevelt, conhecidas como o New Deal. Na Europa, a crise era ainda mais profunda, pois a própria democracia estava em perigo, assediada

por autoritarismos e totalitarismos de diversos matizes.54

No âmbito econômico, assumiram destaques as medidas interventivas

adotadas para socorrer o setor cafeeiro, profundamente atingido pela crise

50 AGUILLAR, Fernando Herren. Direito Econômico: do direito nacional ao direito supranacional. São Paulo: Atlas, 2006, p. 113. 51 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/1901-1929/L4182.htm 52 BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 263. 53 Idem. 54 SARMENTO, Daniel. Por um constitucionalismo inclusivo: história constitucional brasileira, teoria da constituição e direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010, p. 28.

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econômica de 1929, já mencionada no presente trabalho. A queda na exportação

desse produto levou a uma redução das reservas de moeda estrangeira no país

e, consequentemente, a uma redução da importação, o que acabou por estimular

a industrialização nacional.55

Em 7 de abril de 1933, foi publicado o Decreto nº 22.626, que entre outras

disposições, tipificou o chamado “delito de usura”, fixando-lhe pena de prisão por

seis meses a um ano e multa de cinco a cinquenta contos de réis. Aos

reincidentes, a pena seria aplicada em dobro e considerava-se coautor o

interveniente e os representantes da pessoa jurídica eventualmente envolvida.56

A tipificação do delito de usura, a nosso ver, pode ser considerada como

um início da regulação de crimes econômicos no Brasil, o que é bastante curioso

tendo em vista que a Constituição vigente à época não tratava da Ordem

Econômica.

2.3 Constituição de 1934: a primeira constituição brasileira a disciplinar a ordem

econômica

A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 16 de julho

de 1934, sofreu influência da Constituição de Weimar, de 1919, e foi um marco

por inaugurar o constitucionalismo social no país - instituindo alguns princípios

do “Welfare State” - e introduzir a disciplina da ordem econômica na Carta

Constitucional. Daniel Sarmento, sobre esse documento, leciona:

55 AGUILLAR, Fernando Herren. Direito Econômico: do direito nacional ao direito supranacional. São Paulo: Atlas, 2006, p. 114. 56 Decreto nº 22.626/33: Art. 13. É considerado delito de usura, toda a simulação ou prática tendente a ocultar a verdadeira taxa do juro ou a fraudar os dispositivos desta lei, para o fim de sujeitar o devedor a maiores prestações ou encargos, além dos estabelecidos no respectivo título ou instrumento. Penas - prisão por (6) seis meses a (1) um ano e multas de cinco contos a cinqüenta contos de reis. No caso de reincidência, tais penas serão elevadas ao dobro. Parágrafo único. Serão responsáveis como co-autores o agente e o intermediário, e, em se tratando de pessoa jurídica, os que tiverem qualidade para representá-la.

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A Constituição de 1934 inaugurou o constitucionalismo social no Brasil. Rompendo com o modelo liberal anterior, ela incorporou uma série de temas que não eram objeto de atenção das constituições pretéritas, voltando-se à disciplina da ordem econômica, das relações de trabalho,

da família, da educação e da cultura.57

Fernando Herren Aguillar, por sua vez, explica que o dispositivo que já se

encontrava na Constituição anterior “após a reforma de 1926, e que previa o

poder do Estado de estabelecer limitações ao comércio, em caso de exigência

do bem público, foi ampliado na nova Constituição. Seu art. 5, XIX, ‘i’, atribuía à

União (e não mais ao Congresso) o poder de legislar sobre o comércio exterior

e interestadual e instituições de crédito; câmbio e transferência de valores para

fora do país; normas gerais sobre o trabalho, a produção e o consumo, podendo

estabelecer limitações exigidas pelo bem público.”58

O Título IV, que tratava da Ordem Econômica e Social era inaugurado pelo

art. 115, uma paráfrase do art. 151 da Constituição de Weimar59, que relativiza

a liberdade de inciativa, condicionando-a ao cumprimento de objetivos de

natureza social.60

Segundo Paulo Bonavides61, entretanto, a preocupação social contida

nessa Constituição não é aferível apenas pela introdução do título destinado à

disciplina da ordem econômica e social, mas, também, pela introdução de

disposições acerca da família, educação e cultura. Esses novos assuntos

tratados demonstram a alteração de ideologia, decorrente da adoção de uma

democracia social.

Ainda no título destinado ao tratamento da Ordem Econômica, a

Constituição Federal de 1934 foi bastante inovadora, ao dispor, em seu art. 121,

sobre diversos direitos trabalhistas, tais como salário mínimo (§1º, b), jornada

57 SARMENTO, Daniel. Por um constitucionalismo inclusivo: história constitucional brasileira, teoria da constituição e direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010, p. 31. 58 AGUILLAR, Fernando Herren. Direito Econômico: do direito nacional ao direito supranacional. São Paulo: Atlas, 2006, p. 116. 59 Idem. 60 Idem, p. 117. 61 BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 322.

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máxima de trabalho (§1º, c), repouso semanal (§1º, e) e férias anuais

remuneradas (§1º, f).

2.4 Constituição de 1937

A Constituição de 1934 vigeu até o advento do Estado Novo, iniciado com

a outorga da Constituição dos Estado Unidos do Brasil de 1937, em 10 de

novembro daquele ano. A redação da Carta constitucional de 1937 - apelidada

de “A Polaca”, por ter recebido forte influência da Constituição da Polônia de

1935 - foi atribuída a Francisco Campos, Ministro da Justiça de Getúlio Vargas,

adepto de ideologia bastante autoritária. 62

Durante toda a vigência do Estado Novo, apesar de ter sido mantida a

divisão dos três Poderes, o Presidente assumiu posição de “autoridade suprema

do Estado”, conforme disposto no artigo 73 daquele texto constitucional. O

documento previa, ainda, a existência de um Estado federativo, pondo em

prática, entretanto, uma administração eminentemente unitária. Tais

características levaram Daniel Sarmento63 a afirmar que a Constituição de 1937

teve pouca importância prática, porquanto a maior parte das instituições de que

tratou jamais foram colocadas em prática. A mesma opinião é exposta por

Washington Peluso Albino de Souza, que sustenta que a maior parte dos

dispositivos dessa Constituição não foi colocada em prática.64

Importante destacar, ainda, que nesse período foram criadas uma série de

empresas estatais, dentre elas a Vale do Rio Doce, em 1942, e a Companhia

Siderúrgica Nacional em 194165. É dessa época também o Código Penal

62 SOUZA, Washington Peluso Albino de. Teoria da Constituição Economica. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 109. 63 SARMENTO, Daniel. Por um constitucionalismo inclusivo: história constitucional brasileira, teoria da constituição e direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010, p. 43. 64 SOUZA, Washington Peluso Albino de. Op. cit., p. 109. 65 AGUILLAR, Fernando Herren. Direito Econômico: do direito nacional ao direito supranacional. São Paulo: Atlas, 2006, p. 116.

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(Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940) e de Processo Penal (Decreto-

lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941).

Outra característica marcante do Estado Novo foi a forte intervenção estatal

na economia, admitida pela própria Constituição, que tratava da Ordem

Econômica nos artigos art. 135 a 15566. Como bem salienta a respeito do

assunto Fernando Herren Aguillar:

O Estado Novo consagra o modelo de concentração regulatória levado a extremos. Cristaliza-se com espantosa rapidez entre as elites empresariais e intelectuais do país a ideia de que o Estado deve intervir sobre a economia, seja para afastar a ameaça ainda reverberante da crise de 1929, seja para erguer barreiras alfandegárias tidas por

indispensáveis para a consolidação da incipiente indústria nacional.67

Com efeito, a concentração de poderes nas mãos do Estado passou a ser

vista como algo necessário para conter as consequências ainda sentidas da crise

de 1929 e para atender aos novos anseios sociais, que não mais se contentavam

com o mero respeito às liberdades negativas.68 Essas características, fruto da

reação aos estados liberais que predominaram durante o século XIX,

possibilitaram o surgimento do Direito Penal Econômico, como explica Fábio

André Guaragni:

O direito penal econômico, enquanto ramo destinado à tutela da ordem econômica, apresentou condições históricas de surgimento somente a

66 Dentre os vários dispositivos da Constituição de 1937 que legitimam a intervenção estatal na economia, vale destacar os seguintes: Art. 135 - Na iniciativa individual, no poder de criação, de organização e de invenção do indivíduo, exercido nos limites do bem público, funda-se a riqueza e a prosperidade nacional. A intervenção do Estado no domínio econômico só se legitima para suprir as deficiências da iniciativa individual e coordenar os fatores da produção, de maneira a evitar ou resolver os seus conflitos e introduzir no jogo das competições individuais o pensamento dos interesses da Nação, representados pelo Estado. A intervenção no domínio econômico poderá ser mediata e imediata, revestindo a forma do controle, do estimulo ou da gestão direta. Art. 136 - O trabalho é um dever social. O trabalho intelectual, técnico e manual tem direito a proteção e solicitude especiais do Estado. A todos é garantido o direito de subsistir mediante o seu trabalho honesto e este, como meio de subsistência do indivíduo, constitui um bem que é dever do Estado proteger, assegurando-lhe condições favoráveis e meios de defesa. Art. 141 - A lei fomentará a economia popular, assegurando-lhe garantias especiais. Os crimes contra a economia popular são equiparados aos crimes contra o Estado, devendo a lei cominar-lhes penas graves e prescrever-lhes processos e julgamentos adequados à sua pronta e segura punição. 67 AGUILLAR, Fernando Herren. Direito Econômico: do direito nacional ao direito supranacional. São Paulo: Atlas, 2006, p. 118. 68 Idem, p. 120.

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partir do começo do século XX, com a constituição de estados fortes, de cariz totalitário, caracterizados pela forte intervenção na economia, seja regrando e patrulhando a atividade produtiva e distributiva de bens e serviços levada a efeito pela iniciativa privada (estados de direita), seja substituindo o capitalista e assumindo as funções próprias do ciclo econômico relativas à produção e distribuição de bens e serviços ao

consumo.69

A relação entre o momento histórico e o surgimento do Direito Penal

Econômico é bastante lógico, porquanto, conforme mencionado anteriormente,

o bem jurídico “Ordem Econômica” nasceu com o significado de intervenção do

Estado na economia. Diante disso, só fez sentido a criação do Direito Penal

Econômico quando se tornou relevante proteger a intervenção estatal na

economia com o ramo do Direito que apresenta as sanções mais severas.

Neste cenário, surge o Decreto-lei nº 869, de 18 de novembro de 1938,

definindo, nos termos de seu preâmbulo, “os crimes contra a economia popular

sua guarda e seu emprego”. Foi este o primeiro texto normativo brasileiro a

regular questões atinentes à liberdade de concorrência70.

Após tipificar cada um dos crimes ali previstos, prevendo, inclusive,

circunstâncias agravantes, o Decreto-lei nº 869/38, em seu art. 6º, dispõe que

“os crimes definidos nesta lei são inafiançáveis e serão processados e julgados

pelo Tribunal de Segurança Nacional. Neles não haverá suspensão da pena nem

livramento condicional”. A ideia de atribuir a este tribunal especial a competência

para julgar crimes econômicos era conceder a tais fatos delituosos maior rigor e

celeridade nos julgamentos, evitando que ficassem “apenas no papel as

intenções intervencionistas do Governo”.71

Importante notar que os crimes previstos pelo Decreto-lei nº 869/38 já se

referiam a vítimas indeterminadas, alterando assim a característica

69 GUARAGNI, Fábio André. A origem do direito penal econômico: razões históricas. In: LUIZ ANTONIO CÂMARA (Coord). Crimes contra a ordem econômica e tutela dos direitos fundamentais. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 151. 70 AGUILLAR, Fernando Herren. Direito Econômico: do direito nacional ao direito supranacional. São Paulo: Atlas, 2006, p. 127. 71 BALZ, Christiano Celmer. O Tribunal de Segurança Nacional: Aspectos legais e doutrinários de um tribunal da Era Vargas (1936-1945). Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2009. Fonte: https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/92317/269346.pdf?sequence=1

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marcantemente individualista da época anterior. A ideia era proteger o coletivo,

a sociedade, em detrimento de interesses individuais. A respeito, vale destacar

as lições de Nelson Hungria:

Mesmo o tribunal de exceção (Tribunal de Segurança Nacional) a que é confiada, na espécie, a aplicação da justiça penal, deve ter uma escrupulosa atenção na exegese da lei, para que não tome a nuvem por Juno, isto é, para que jamais identifique como crime contra a economia popular uma atividade favorável ao bem comum, embora, prima facie, não se afigure real. O que se torna imprescindível é que, de par com a correspondência objetiva entre o fato concreto e o prefigurado na lei, se reconheça o propósito de arbitrária, indevida ou ilícita locupletação, em prejuízo da bolsa do povo ou de um extenso número de pessoas. O decreto n. 869 declara guerra aos gananciosos, aos dardanários, os profiteurs e burlões, e não aos que sabem acomodar seu próprio interesse com os do público e não desconhecem que direito algum pode ser exercido em contraste com o princípio da

solidariedade social.72

Como é possível notar das lições de Nelson Hungria, a ideia era a de

resguardar a função social das atividades econômicas, seguindo a tendência de

atribuir maior valor ao bem estar e interesses coletivos.

O governo de Getúlio Vargas ficou bastante fragilizado com o fim da

Segunda Guerra Mundial e a queda dos regimes autoritários na Europa.

Outrossim, o apoio concedido pelo Brasil ao Grupo dos Aliados na busca pela

redemocratização tornou extremamente contraditória a manutenção no país de

um regime ditatorial. Nesse contexto, visando apaziguar a crescente opinião

contrária a seu governo, Vargas altera a Constituição, afrouxando alguns

aspectos mais autoritários de seu governo. Entretanto, tais medidas não foram

suficientes para amainar o descontentamento da oposição e, em 29 de outubro

de 1945, os militares, por meio de um golpe de Estado, depõem o Presidente

Vargas. Em 1946, assume a presidência Eurico Gaspar Dutra, eleito por votação

regular, que realizou uma flexibilização na característica intervencionista

72 HUNGRIA, Nelson. Dos crimes contra a economia popular e das vendas a prestações com reserva de domínio. Rio de Janeiro: Jacinto, 1939, p. 17-18.

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2.5 Constituição Federal de 1946

A Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946, promulgada no dia

18 de setembro daquele ano, redemocratizou o país, extinguindo os traços

autoritários da Constituição anterior.

No que tange aos direitos individuais, manteve-se o padrão criado com a

Constituição de 1934, estabelecendo-se a previsão de liberdade de culto e a

liberdade de pensamento. O federalismo foi restaurado e um sistema rígido de

separação de poderes foi estabelecido. Além disso, o Poder Legislativo foi

estruturado de forma bicameral, com Câmara dos Deputados e Senado Federal

e manteve-se o presidencialismo. Foi estabelecido o sufrágio universal direto e

secreto e o voto passou a ser obrigatório para homens e mulheres

alfabetizados.73

Em relação à ordem econômica, a tentativa foi conciliar aspectos liberais

e democráticos com o Estado Social. O contexto histórico era de combate ao

autoritarismo que vigorava na época anterior, tanto na Europa, como no Brasil.

A esse respeito, leciona Fernando Herren Aguillar:

A Constituição de 1934 foi elaborada no rescaldo da crise de 1929, revelando uma certa ojeriza ao liberalismo econômico, apesar das críticas exageradas de Francisco Campos e Vargas. Já a Constituição de 1946 foi concebida em ambiente de saturação totalitária, após oito anos de ditadura. A vitória aliada na Europa, derrotando o fascismo e o nazismo, trouxe ventos de liberdade para o país. Restabeleceu-se o pluripartidarismo. Naquele contexto, em que o repúdio ao Estado Novo adquiria força política, repudiava-se também a ideia do intervencionismo que a ele estava associada. A Constituição de 1946 foi, portanto, fortemente influenciada pelos princípios do liberalismo

político e econômico.74

A tentativa de conciliação, entretanto, é bem clara no artigo 145 dessa

Constituição, por nele estar preceituado que “a ordem econômica deve ser

organizada conforme os princípios da justiça social, conciliando a liberdade de

73 SARMENTO, Daniel. Por um constitucionalismo inclusivo: história constitucional brasileira, teoria da constituição e direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010, p. 51. 74 AGUILLAR, Fernando Herren. Direito Econômico: do direito nacional ao direito supranacional. São Paulo: Atlas, 2006, p. 131.

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iniciativa com a valorização do trabalho humano”. Corrobora esse entendimento

a redação prevista no artigo 146, que autorizava a intervenção estatal e o

monopólio de indústria ou atividade, ressalvando em seguida que “a intervenção

terá por base o interesse público e por limite os direitos fundamentais

assegurados nesta Constituição”.

Sob a vigência dessa Constituição, Eurico Gaspar Dutra governa até

1950, sem maiores incidentes. Comparando o seu mandato com o de seu

antecessor, pode-se afirmar que o governo de Dutra foi marcado por uma

postura mais liberalista, com a abertura do país às importações.75

Em 1950 Getúlio Vargas é eleito Presidente, retomando seus projetos

voltados aos direitos dos trabalhadores, ao nacionalismo e ao intervencionismo

econômico.

Em 26 de dezembro de 1951 é editada a Lei nº 1.521 que, nos termos do

seu preâmbulo, “altera dispositivos da legislação vigente sobre crimes contra a

economia popular”. Tal lei trata de infrações de inquestionável natureza penal

econômica, como bem explica Heleno Cláudio Fragoso:

Um direito penal econômico é, portanto, o que se refere a fatos que lesam ou expõem a perigo uma determinada ordem econômica. São claramente crimes econômicos, em nosso sistema de direito, algumas das infrações penais previstas no art. 3.º da lei de economia popular (Lei n.º 1.521, de 1951): destruição de matérias-primas ou produtos com o fim de determinar a alta de preços; ações destinadas a impedir a competição; participação em consórcios ou conglomerados para impedir ou dificultar a concorrência, visando aumentar lucros; açambarcamento de matérias-primas ou produtos, para provocar alta dos preços; dumping ou venda de mercadorias abaixo do custo, para

liquidar a concorrência.76

Nesse segundo governo de Getúlio Vargas, várias foram as providências

no setor econômico que marcaram o desenvolvimento posterior do país77, tais

75 AGUILLAR, Fernando Herren. Direito Econômico: do direito nacional ao direito supranacional. São Paulo: Atlas, 2006, p. 130. 76 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Direito Penal Econômico e Direito Penal dos Negócios. p.2. http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/11344-11344-1-PB.pdf 77 LIMA, Heitor Ferreira. História político-econômica e industrial do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1970, p. 381.

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como a criação da Petrobrás (Lei nº 2004, de 1953, e Decreto nº 35.308, de

1954), da Comissão de Desenvolvimento Industrial e do Banco Nacional de

Desenvolvimento Econômico – BNDE (Lei nº 1628, de 1952)78. As medidas

sociais implementadas na mesma época, entretanto, desagradaram

imensamente as Forças Armadas e a burguesia, que começaram a pressionar o

governo, gerando uma forte ameaça de golpe militar.

Diante da crescente pressão para renunciar, Getúlio Vargas comete o

suicídio em 24 de agosto de 1954. Após o fim de seu governo, os três presidentes

que se seguiram – Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros e João Goulart –

acompanharam a ideia varguista de intervir na economia para conter crises e

estimular a industrialização no país79.

Em 1962 foi editada a Lei nº 4.131, que restringiu a remessa de lucros ao

exterior80, disciplinando, ainda, que os valores e depósitos bancários não

declarados na forma da lei seriam considerados ilegais, podendo ser objeto de

processo criminal.81 Posteriormente, nesse mesmo ano, entrou em vigor a Lei nº

4.137/62, objetivando regular e reprimir o abuso do poder econômico, nos termos

do seu preambulo. No art. 6º dessa lei, foi apresentada uma definição de

empresa e, em seu parágrafo único, ficou definido quem seria responsabilizado

civil e criminalmente por abuso de poder econômico.82

78 LIMA, Heitor Ferreira. História político-econômica e industrial do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1970, p. 370-380. 79 AGUILLAR, Fernando Herren. Direito Econômico: do direito nacional ao direito supranacional. São Paulo: Atlas, 2006. 80 Idem, p. 141. 81 Assim dispunha o art. 18 da Lei nº 4.131/62: “Art. 18. A inobservância do preceito do artigo anterior importará em que os valores e depósitos bancários no exterior sejam considerados produto de enriquecimento ilícito e como tais objeto de processo criminal, para que sejam restituídos ou compensados com bens ou valores existentes no Brasil, os quais poderão ser seqüestrados pela Fazenda Pública, na medida em que sejam suficientes para tanto.” O dispositivo se referia ao art. 17 dessa mesma lei, que possuía a seguinte redação: “Art. 17. As pessoas físicas e jurídicas, domiciliadas ou com sede no Brasil, ficam obrigadas a declarar à Superintendência da Moeda e do Crédito, na forma que for estabelecida pelo respectivo Conselho, os bens e valores que possuírem no exterior, inclusive depósitos bancários, excetuados, no caso de estrangeiros, os que possuíam ao entrar no Brasil.” 82 “Art. 6º Considera-se empresa toda organização de natureza civil ou mercantil destinada à, exploração por pessoa física ou jurídica de qualquer atividade com fins lucrativos.” “Parágrafo único. As pessoas físicas, os diretores e gerentes das pessoas jurídicas que possuam empresas serão civil e criminalmente responsáveis pelos abusos do poder econômico, por elas praticados.”

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Em 1964 os militares, por meio de um golpe militar sem confronto armado,

assumem o poder. Em 09 de abril de 1964, é editado o Ato Institucional nº 1,

que, nos termos de seu preâmbulo, dispunha “sobre a manutenção da

Constituição Federal de 1946 e as Constituições Estaduais e respectivas

Emendas, com as modificações introduzidas pelo Poder Constituinte originário

da revolução vitoriosa”. Ainda de acordo com o documento, a Constituição de

1946 seria modificada apenas “na parte relativa aos poderes do Presidente da

República, a fim de que este possa cumprir a missão de restaurar no Brasil a

ordem econômica e financeira e tomar as urgentes medidas destinadas a drenar

o bolsão comunista, cuja purulência já havia se infiltrado não só na cúpula do

governo como em suas dependências administrativas.” De acordo com Daniel

Sarmento, entretanto, o texto do AI-1 não buscava fundamento de validade na

Constituição de 1946:

Era apenas por uma concessão dos militares, protagonista da tal “revolução vitoriosa”, que a Constituição continuaria a valer naquilo que

não contrastasse com o Ato Institucional editado.83

No aspecto econômico, entretanto, a vigência do regime militar não

significou grandes modificações, como bem explica Fernando Herren Aguillar:

O período pós 1964 não marca ruptura com as tendências dos períodos que o precederam, em matéria de regulação da economia. Foi um período de enorme envolvimento do Estado nas atividades econômicas, sobretudo pela atuação como empresário. Foi também o período em que se deu o chamado ‘Milagre Econômico’ brasileiro, de intenso crescimento econômico em prazo curto, porém tendo por consequência aumentar ainda mais o abismo social entre ricos e

pobres no país.84

O Ato Institucional nº 1 instala no Brasil um governo extremamente

autoritário. Desde a vigência do AI-1 até a promulgação da Constituição Federal

de 1967, três outros Atos Institucionais foram editados e diversas alterações à

Constituição vigente foram realizadas. O último dos Atos Institucionais

83 SARMENTO, Daniel. Por um constitucionalismo inclusivo: história constitucional brasileira, teoria da constituição e direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010, p. 58. 84 AGUILLAR, Fernando Herren. Direito Econômico: do direito nacional ao direito supranacional. São Paulo: Atlas, 2006, p. 145.

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decretados foi o AI-4, que convocava a Assembleia Constituinte incumbida de

elaborar a Constituição Federal de 1967.

2.6 Constituição Federal de 1967

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1967 seguia a

ideologia do grupo moderado dos militares, impondo alguns limites para o

exercício do poder. Não obstante tais limitações, o documento determinou a

redução da autonomia dos Estados-membros, criou mecanismos que

possibilitavam a supremacia do Presidente em relação ao Legislativo e ao

Judiciário e previu eleições indiretas.

A Ordem Econômica foi disciplinada nos artigos 158 a 166 e, de acordo

com o artigo 158, tinha por fim a realização da justiça social, com base nos

princípios da liberdade de iniciativa (inciso I); a valorização do trabalho como

condição da dignidade humana (inciso II); a função social da propriedade (inciso

III); a harmonia e solidariedade entre os fatores de produção (inciso IV); e a

repressão ao abuso do poder econômico, caracterizado pelo domínio dos

mercados, a eliminação da concorrência e o aumento arbitrário de lucros (inciso

V). É prevista, ainda, nesse texto constitucional, a possibilidade de intervenção

do Estado no domínio econômico “quando indispensável por motivos de

segurança nacional, ou para organizar setor que não possa ser desenvolvido

com eficiência no regime de competição e de liberdade de iniciativa,

assegurados os direitos e garantias individuais.”85

Embora tenha sido mantida a possibilidade de intervenção estatal na

economia, algo que se assemelhava à Constituição de 1937, as justificativas

governamentais não mais se lastreavam na busca de interesses sociais, como

bem explica Fernando Herren Aguillar:

Mas, contrariamente ao regime ditatorial da era Vargas, de inspiração fascista e com fortes pendores populistas, a Carta de 1967 parecia pouco interessada em atribuir direitos sociais como justificativa para a

85 Constituição da República Federativa do Brasil de 1967. Art. 157, §8º.

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ação estatal na economia. Ao contrário, durante a implementação das políticas públicas que caracterizaram o “milagre econômico” brasileiro, a liberdade de movimentação do Estado na economia foi utilizada com frequência para o fim de achatar salários e postergar benefícios

sociais.86

A explicação para essas diferentes justificativas para o intervencionismo

estatal recai na conjuntura histórica que se apresentou nos dois períodos. Getúlio

Vargas assumiu o poder em um contexto de crise econômica, que demandava

uma reação ao liberalismo. Por sua vez, “o governo militar de 1964 se

apresentou como defensor do capitalismo em face de supostas ameaças de

socialização da economia brasileira. Dessa forma, por mais paradoxal que possa

parecer, seria contraditório que o regime militar impusesse uma política

intervencionista que não se destinasse a assegurar à inciativa privada um

espaço significativo no quadro econômico do país”.87

Em agosto de 1969 uma junta militar assume o poder e publica a Emenda

Constitucional nº 1 – por muitos considerada uma nova constituição –,

promovendo uma série de alterações na Constituição Federal de 1967. Tal

documento, embora tenha retrocedido no que tange às garantias fundamentais

(reflexo da natureza autoritária do governo da época), não significou grandes

alterações no que tange à ordem econômica do país e, por tal razão, não será

explorada nesse momento. Cumpre ressaltar, entretanto, tendo em vista os

objetivos do presente trabalho, que na década de 1980 houve uma grande

aplicação do art. 2, VI, da Lei nº 1.521/51 (Lei dos Crimes contra a Economia

Popular), como forma de incrementar a efetividade das determinações de

congelamento de preço. A respeito, vale registrar:

O art. 2º, VI, da Lei nº. 1.521/51 (Lei dos Crimes contra a Economia Popular e contra a Saúde Pública), que vigorou de fevereiro de 1952 a dezembro de 1991, definia como crime a conduta do comerciante que vendia ou expunha à venda produto acima do preço definido em tabela oficial (“tabela de congelamento de preços”). Tal dispositivo, que vigorou por quase quarenta anos, permaneceu, durante muito tempo, inaplicável, salvo em algumas épocas, como na década de 1980, durante o período de ‘congelamento’ de preços decorrentes do “Plano Cruzado”. Nesse ínterim, o tipo penal em questão tornou-se aplicável; assim, vários comerciantes flagrados vendendo produtos acima do

86 AGUILLAR, Fernando Herren. Direito Econômico: do direito nacional ao direito supranacional. São Paulo: Atlas, 2006, p. 150. 87 Idem, p. 151.

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preço oficial foram investigados e processados criminalmente; superado o período de tabelamento oficial, os processos já instaurados continuaram em andamento, uma vez que, a norma não fora

revogada.88

A importância da medida naquele momento histórico, bem como a razão

para o uso do Direito Penal para coibir o descumprimento das normas sobre o

congelamento de preço fica bastante claro quando analisamos o cenário da

época:

A transição do regime militar para a democracia foi marcada no Brasil pela luta contra a inflação. Na realidade, pode-se dizer que a inflação foi o grande problema econômico do país durante o século XX. A perenização do regime inflacionário perversamente se consolidou com o sistema de indexação criado para atenuar seus malefícios. Os agentes econômicos se antecipavam no aumento de preços futuro, tornando a inflação insuscetível de contenção. Segundo dados do IBGE, entre o Encilhamento (final do século XIX) e meados da década de 1990, o país viveu três surtos inflacionários: entre 1921 e 1925 (16,9% ao ano), na II Guerra Mundial (14,1% ao ano) e entre 1956 e 1967 (41,2% ao ano). Após 1964, até o início dos anos 1970, a inflação permaneceu em uma média de 20% ao ano. Com as crises do petróleo, em meados da década de 1970, a inflação acelerou para 40% ao ano ao final da década e 100% ao ano no início da década de 1980, causando enormes distorções ao funcionamento geral da economia

brasileira.89

Como se pode aferir dos trechos acima colacionados, foi no momento mais

crítico de inflação e crise econômica que o Direito Penal (ramo com penalidades

e consequências mais severas do Direito) passou a ser aplicado com maior

frequência. Tal fato revela a tendência (que será melhor explorada a seguir) de

se recorrer ao Direito Penal quando os demais ramos do Direito se mostram

insuficientes para conter determinada situação maléfica à sociedade. Embora tal

medida guarde relação com o Princípio da Intervenção Mínima, é importante

avaliar se os mecanismos de que dispõe o Direito Penal podem ser utilizados

legitimamente para as situações econômicas. Esta questão será explorada nos

próximos capítulos do trabalho.

O governo ditatorial perdurou até 1985. Entretanto, durante seu período de

vigência foi se desgastando, gradualmente, com as reivindicações da sociedade

88 ESTEFAM, André. Direito Penal: volume 1. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 135. 89 AGUILLAR, Fernando Herren. Direito Econômico: do direito nacional ao direito supranacional. São Paulo: Atlas, 2006, p. 160.

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que clamava pelo restabelecimento das liberdades individuais. Foi com o

advento do governo de Ernesto Geisel, iniciado em 1974, que efetivamente se

iniciou a abertura política, embora em ritmo bastante lento.

Em 1984 a economia brasileira se encontrava extremamente deteriorada,

com altos índices de inflação. Nesse mesmo ano, o Colégio Eleitoral elegeu

Tancredo Neves para Presidente - o que para muitos historiadores significou um

marco do fim da Ditadura. Antes de assumir a Presidência, entretanto, Tancredo

adoeceu (faleceu um mês depois), possibilitando que o seu vice, José Sarney

assumisse o governo do país. Foi no governo de José Sarney que foi elaborada

e promulgada a Constituição Federal de 1988, até hoje em vigor.

2.7 Constituição Federal de 1988

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, que até hoje

vigora no país, foi promulgada em 5 de outubro daquele ano. O documento

instaura no Brasil um Estado Democrático e Social de Direito, revelando, assim,

uma “íntima e indissociável vinculação entre os direitos fundamentais e as

noções de Constituição e Estado de Direito”, conforme ensina o jurista Ingo

Wolfgang Sarlet90.

Justamente por essa razão, a Constituição brasileira de 1988 colocou os

direitos fundamentais em posição topográfica de destaque, o que, ainda segundo

Ingo Sarlet, “além de traduzir maior rigor lógico, na medida em que os direitos

fundamentais constituem parâmetro hermenêutico e valores superiores de toda

a ordem constitucional e jurídica, também vai ao encontro da melhor tradição do

constitucionalismo na esfera dos direitos fundamentais.”91

Com efeito, nos Estados Democráticos de Direito, o Direito deve ser

instrumento apto a garantir os direitos fundamentais – estes entendidos como

90 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 58. 91 Idem, p.66.

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aqueles previstos na Constituição como tal e/ou, conforme defende Ingo Sarlet,

aqueles que contêm decisões fundamentais sobre a estrutura do Estado e da

sociedade.

Com esse perfil ideológico, de grande valorização dos direitos

fundamentais, a Constituição de 1988 demonstrou uma forte reação contra o

autoritarismo vigente no período que lhe antecedeu. Outrossim, a adoção de um

regime democrático foi definitivamente consagrada com a garantia ao direito ao

voto direto, secreto e igual para todos e com a determinação de eleições diretas

para os cargos de Presidente da República, Governador de Estado e Distrito

Federal, Prefeito Municipal, Deputado Federal, Estadual e Distrital, Senador e

Vereador.92 A atual Constituição estabeleceu, ainda, novos direitos trabalhistas,

tais como a jornada máxima de trabalho de 44 (quarenta e quatro) horas

semanais, a garantia do direito à greve e a instituição do seguro desemprego e

do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço93.

Outra inovação importante realizada pela Constituição Federal de 1988

se deu na forma de tratamento da ordem econômica. Até o seu advento, as

constituições colocavam em um primeiro artigo noções introdutórias dos

elementos posteriormente apresentados. A atual Carta Magna optou por dividir

o Título VII (Da Ordem Econômica e Financeira) em capítulos, agrupando os

artigos por temas específicos94.

De acordo com Washington Peluso Albino de Souza, “ao tratar dos

‘Princípios Gerais da Atividade Econômica’, o legislador constituinte situou no

primeiro artigo do Capítulo I (art.170) os ‘Fundamentos’, os ‘Objetivos’ e os

‘Princípios’ para todo Título VII, portanto, específicos da ‘Ordem Econômica e

Financeira’, segundo a Carta de 1988.”95

92 SARMENTO, Daniel. Por um constitucionalismo inclusivo: história constitucional brasileira, teoria da constituição e direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010. 93 Idem. 94 SOUZA, Washington Peluso Albino de. Teoria da Constituição Economica. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 113. 95 Idem, p. 114.

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Tendo em vista os objetivos do presente trabalho, passaremos a analisar

com maior profundidade a atual constituição econômica brasileira no próximo

item.

2.7.1 Constituição econômica de 1988

A expressão “Constituição Econômica” surgiu com o advento da

Constituição de Weimar e se refere às disposições constitucionais que tratam da

organização jurídica econômica, bem como dos princípios e diretrizes a serem

observadas pelos Estados ao regularem a economia vigente, conforme explica

Manoel Gonçalves Ferreira Filho:

O Direito Constitucional Econômico tem, pois, como objeto as bases da organização jurídica da economia. Seu propósito é estabelecer o controle da economia, porque enseja fenômenos de poder. Consiste, assim, nas regras jurídicas que regem a atuação do indivíduo, dos grupos, do Estado, no domínio econômico. Compreende, pois, as normas jurídicas básicas que regulam a economia, disciplinando-a, e especialmente controlam o poder econômico, limitando-o, com o fito de

prevenir-lhe os abusos.96

Neste diapasão, vale registrar desde já que a importância da análise da

“Constituição Econômica” para o presente trabalho reside no fato de que o Direito

Penal, ao tutelar a Ordem Econômica, necessita sempre ter em vista os

princípios e diretrizes que devem ser observadas pelo Estado na regulação da

economia, para que não se torne um empecilho ao desenvolvimento nacional.

Com efeito, considerando que o ordenamento jurídico é único, bem como

que tem por escopo o regramento para o bem estar social, não se pode admitir

que sejam incriminadas condutas que estejam de acordo com os objetivos

almejados em determinada matéria. Da mesma forma, não se pode admitir

interpretações que levem à penalização de atos incentivados ou consentâneos

com as diretrizes estatais.

96 FILHO, Manoel Gonçalves Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 37 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 378.

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Tais afirmações podem ser inferidas do próprio conceito dado por Eros

Roberto Grau á “Constituição Econômica”, que, segundo o autor, estipula as

normas essenciais da economia, das quais devem decorrer as demais normas

da ordem jurídica que regulam a matéria:

Conceituar-se-á, então, como “o conjunto de preceitos e instituições jurídicas que, garantindo os elementos definidores de um determinado sistema econômico, instituem uma determinada forma de organização e funcionamento da economia e constituem, por isso mesmo, uma determinada ordem econômica” (Vital Moreira); ou definida a partir de sua função, como “formada pelo ordenamento essencial da atividade económica – contendo os princípios e as normas essenciais ordenadoras da economia, dos quais decorrem sistematicamente as restantes normas da ordem jurídica da economia” (António L. Souza

Franco).97

Esclarecida a relevância do presente estudo para o trabalho, importa

registrar que diversos autores (inclusive os dois supramencionados) consideram

possível diferenciar, para fins didáticos, a constituição econômica material da

constituição econômica formal, assim como se faz com a constituição política.

Em seu aspecto formal, a constituição econômica pode ser definida como “o

conjunto de normas que, incluídas na Constituição, escrita, formal do Estado,

versam o econômico.”98 Até o momento, não há constituição econômica que não

esteja no bojo de uma constituição política. Na acepção material, constituição

econômica “abrange todas as normas que definem os pontos fundamentais da

organização econômica, estejam ou não incluídas no documento formal que é a

constituição escrita. Frequente é, aliás, que a Constituição econômica material

seja mais extensa que a Constituição formalizada”.99

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, conforme já

mencionado, destina o seu Título VII para disciplinar a ordem econômica e

financeira do país, inaugurando o assunto com a apresentação dos princípios

gerais da atividade econômica (Capítulo I, Título VII). Tendo em vista o seu

caráter dirigente, é certo afirmar que as disposições nela contidas acerca da

97 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 14 ed. São Paulo: Malheiros Editora, 2010, p. 77 - 78. 98 FILHO, Manoel Gonçalves Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 37 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 378. 99 Idem, p. 378.

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economia confere a ela propriedade de plano global normativo, como bem

explica Eros Roberto Grau:

Que a nossa Constituição de 1988 é uma Constituição dirigente, isso é inquestionável. O conjunto de diretrizes, programas e fins que enuncia, a serem pelo Estado e pela sociedade realizados, a ela confere o caráter de plano global normativo, do Estado e da sociedade. O seu art. 170 prospera, evidenciadamente, no sentido de implantar uma nova ordem econômica.100

A análise da atual Constituição Econômica brasileira nos permite afirmar,

também, que o modelo econômico vigente no país assume uma feição bastante

peculiar, porquanto possui características neoliberais e intervencionistas. Essa

característica é consequência das divergências de ideias dos participantes da

Assembleia Nacional Constituinte.101

Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery explicam que a ordem

econômica brasileira está subordinada às regras inerentes a um Estado

Democrático de Direito e à construção de uma sociedade justa, livre e solidária,

ressaltando:

Subordinar a ordem econômica aos objetivos fundamentais da República não permite afirmar que a ordem econômica está subordinada ao Poder Estatal. O Estado é um agente econômico que pode interferir na economia para preservação da livre concorrência; apesar de ser um dos agentes mais importantes do processo econômico, não pode interferir de maneira que estabeleça um dirigismo econômico que comprometa a livre iniciativa, sem dizer que toda forma de intervenção deverá estar previamente regulamentada, e subordinada a todos os princípios norteadores da Administração Pública (CF 37), podendo, inclusive, ser controlada judicialmente (CF

5.º XXXV).102

Os princípios gerais da atividade econômica encontram-se elencados no

caput e incisos do artigo 170 da Constituição Federal e, conforme já mencionado,

devem nortear a atuação do Direito Penal na economia. Não se pode olvidar,

100 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 14 ed. São Paulo: Malheiros Editora, 2010, p. 174. 101 CLARK, Giovani; CORRÊA, Leonardo. Teoria das Normas e o Direito Econômico: Um diálogo com a Filosofia do Direito. In: SOUZA, Washington Peluso Albino de; CLARK, Giovani (Coord.). Direito econômico e a ação econômica estatal na pós modernidade. São Paulo: LTr, 2011, p. 39. 102 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Constituição Federal Comentada e Legislação Constitucional. 4.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 845.

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entretanto, que outros princípios adotados pela Constituição também repercutem

diretamente no âmbito econômico e, portanto, em todo o ordenamento jurídico

criado para ele – como, por exemplo, o princípio do Estado de Direito e o do

Estado Federal.

Passaremos, agora, a analisar cada um dos principais valores trazidos

pela atual Constituição como embasadores da ordem econômica vigente no

país.

2.7.2 Princípios embasadores da ordem econômica vigente

O art. 170 da Constituição Federal afirma que a ordem econômica tem

“por fim assegurar a todos existência digna”, repetindo e ratificando a importância

da dignidade da pessoa humana, elencada no inciso III do artigo 1º como

fundamento da República Federativa do Brasil. A existência digna, ainda de

acordo com o artigo 170 da Constituição, será garantida conforme os ditames da

justiça social. Este conceito tem por base a igualdade de direitos e a

solidariedade.

Nesse sentido, o que a justiça social busca é a maior igualdade entre os

cidadãos, pregando a maior proteção daqueles sujeitos que se encontram em

condição desprivilegiada, ou seja, a justiça social parte de uma ideia de

isonomia. Assim, é possível afirmar que a justiça social é uma espécie de justiça

distributiva, que se aplica aos desiguais. Ao contrário da justiça comutativa que

é destinada aos iguais.

Nesse sentido, podemos verificar uma adequação do dispositivo em

análise com objetivo fundamental da República previsto no inciso III, do artigo 3º

da Constituição Federal, qual seja: “erradicar a pobreza e a marginalização e

reduzir as desigualdades sociais e regionais”. A redução das desigualdades

sociais e regionais é repetida, ainda, como um dos princípios da ordem

econômica brasileira no inciso VII do artigo 170 da Constituição.

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O mesmo dispositivo afirma, ainda, que a ordem econômica é fundada na

valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, repetindo, assim, dois outros

fundamentos da República brasileira, dispostos no inciso IV do artigo 1º. Essa

disposição, de acordo com Eros Grau, importa em conferir ao trabalho e ao

trabalhador tratamento peculiar. Vale transcrever as lições do aludido autor a

respeito do assunto:

Esse tratamento, em uma sociedade capitalista moderna, peculiariza-se na medida em que o trabalho passa a receber proteção não meramente filantrópica, porém politicamente racional. Titulares de capital e de trabalho são movidos por interesses distintos, ainda que se o negue ou se pretenda enunciá-los como convergentes. Daí porque o capitalismo moderno, renovado, pretende a conciliação e

composição entre ambos.103

Ultrapassado o caput do artigo 170 da Constituição, passam a ser

enumerados os princípios contidos nos seus incisos. O primeiro deles, previsto

no inciso I, trata da soberania nacional. Este princípio, de acordo com Eros

Roberto Grau104, cumpre dupla função: trata-se de um instrumento para garantir

a todos existência digna e uma diretriz a ser seguida, um objetivo a ser

alcançado. A soberania econômica é de extrema importância para o país, pois

em última análise, possibilita a soberania política, prevista como fundamento da

República pelo art. 1º, inciso I, da Constituição Federal. Importante ressaltar que

esse primeiro princípio não prega o isolamento político, mas a participação do

país no mercado internacional, em condições de igualdade.105

O segundo inciso do artigo 170, por sua vez, traz o princípio da

propriedade privada, que deve ser tratada juntamente com o princípio da função

social da propriedade (inciso III), por estarem atrelados um ao outro. Com efeito,

a propriedade privada é direito fundamental de todo e qualquer cidadão, porém

desde que cumpra sua função social.

103 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 14 ed. São Paulo: Malheiros Editora, 2010, p. 200. 104 Idem, p. 230. 105 Idem, p. 232.

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A função social da propriedade se coaduna com o fim da ordem

econômica, qual seja, o de “assegurar a todos existência digna, conforme os

ditames da justiça social”, porquanto condiciona a propriedade privada à

realização de uma função dirigida à justiça social. José Afonso da Silva, ao tratar

desse assunto, explica que o sistema de apropriação privada tende a organizar-

se em empresas, que também estão sujeitas ao princípio da função social da

propriedade. Vale reproduzir as mencionadas lições:

O sistema de apropriação privada, como no sistema de apropriação pública ou social, tende a organizar-se em empresas, sujeitas ao princípio da função social (...). Vimos já que o nosso sistema é fundamentalmente o da propriedade privada dos meios de produção, o que revela ser basicamente capitalista, que a vigente Constituição tenta civilizar, buscando criar, no mínimo, um capitalismo social, se é que isso seja possível, por meio da estruturação de uma ordem social intensamente preocupada com a justiça social e a dignidade da pessoa

humana.106

Em seguida, o inciso IV do artigo 170 trata da livre iniciativa, que envolve a

liberdade de indústria e comércio, liberdade de empresa e liberdade de contrato.

Essa liberdade é protegida, também, por força do parágrafo único do mesmo

dispositivo, que determina: “é assegurado a todos o livre exercício de qualquer

atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos,

salvo nos casos previstos em lei”. O princípio em comento possui raízes no

modelo liberal de economia e exerce um importante papel no desenvolvimento

econômico, tendo em vista que quanto maior o número de ofertas disponíveis,

maior a competitividade e, consequentemente, a margem de escolha dos

cidadãos.

Esse princípio constitui um claro exemplo de baliza constitucional ao Direito

Penal dirigido à tutela da Ordem Econômica, tendo em vista que não se pode

admitir a criminalização de condutas que promovam a livre iniciativa – salvo,

evidentemente, se após uma ponderação de valores, a medida e o sacrifício

sejam imprescindíveis para a proteção de outro bem jurídico de relevância igual

ou maior à da Ordem Econômica.

106 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 27. ed. São Paulo: Malheiros Editora, 2006, p. 813.

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Vale lembrar, outrossim, que todos os princípios elencados nos incisos do

artigo 170 devem ser lidos em conjunto com o seu caput. Isso significa que a

liberdade de concorrência deve ser condicionada ao próprio fim da ordem

econômica, ou seja, “assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames

da justiça social”. De acordo com Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade

Nery, as condições que asseguram a livre concorrência são:

a) atomicidade do mercado: tanto do lado da oferta quanto da procura: existe um grande número de unidades econômicas nenhuma delas com dimensão ou força suficiente para influenciar a produção ou o preço; b) homogeneidade do produto: todas as empresas de uma indústria fabricam bens que os adquirentes consideram idênticos ou homogêneos, não existindo razão para se preferir o bem de uma ou de outra; c) livre acesso à indústria: quem deseja dedicar-se a uma certa exploração pode fazê-lo, sem restrições ou demoras; os ofertantes que integram a indústria não podem opor-se à entrada de novos concorrentes; d) transparência do mercado (publicidade completa): todos os participantes no mercado possuem conhecimento completo de todos os fatores significativos do mesmo; e) perfeita mobilidade dos agentes econômicos: cada um dos vendedores pode dirigir sua oferta a qualquer um dos compradores e cada um destes pode encaminhar a sua procura a qualquer um dos ofertantes; f) entre as indústrias, existe

uma perfeita mobilidade dos fatores de produção.107

Os incisos V e VI do artigo 170 tratam respectivamente da defesa do

consumidor e da defesa do meio ambiente, fortalecendo ainda mais a ideia de

que a ordem econômica deve visar à dignidade da pessoa humana e o bem-

estar social.

A busca do pleno emprego, por sua vez, princípio elencado no inciso VIII

do artigo 170 da Constituição Federal, é um princípio diretivo da economia, e

procura que seja garantido emprego a todos que estejam em condições de

exercer uma atividade produtiva, como bem explica José Afonso da Silva:

A busca do pleno emprego é um princípio diretivo da economia que se opõe às políticas recessivas. Pleno emprego é expressão abrangente da utilização, ao máximo grau, de todos os recursos produtivos. Mas aparece, no art. 170, VIII, especialmente no sentido de propiciar trabalho a todos quantos estejam em condições de exercer uma atividade produtiva. Trata-se do pleno emprego da força de trabalho

107 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Constituição Federal Comentada e Legislação Constitucional. 4.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 848.

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capaz. Ele se harmoniza, assim, com a regra de que a ordem

econômica se funda na valorização do trabalho humano.108

Por fim, o artigo 170, inciso IX, da Constituição Federal, estabelece que as

empresas de pequeno porte, constituídas sob as leis brasileiras e com sede e

administração no País, devem ter tratamento favorecido. Este dispositivo se

justifica por incitar o desenvolvimento da indústria nacional, colaborando para a

soberania mencionada no inciso I do Art. 170. Além disso, indica que o Estado

deve fomentar o pequeno empreendedor, considerando ser ele um importante

gerador de emprego e renda para a população.

Diante de todo o exposto neste capítulo, vale repetir que o Direito Penal,

ao tutelar a ordem econômica brasileira, deve ser balizado pelos princípios aqui

mencionados, tanto no momento da elaboração legislativa quanto na aplicação

da lei. Cabe a ele, por sua própria função, agir de forma a coibir condutas

prejudiciais à sociedade, sem atingir os atos que vão ao encontro das

necessidades sociais.

Em outras palavras, aplica-se aos crimes econômicos como um todo o que

Nelson Hungria ensinou ao tratar do crime contra a economia popular, no trecho

já transcrito neste trabalho: “(...) a aplicação da justiça penal, deve ter uma

escrupulosa atenção na exegese da lei, para que não tome a nuvem por Juno,

isto é, para que jamais identifique como crime contra a economia popular uma

atividade favorável ao bem comum (...)”.109

3 SOCIEDADE DE RISCO

O que configura a sociedade de risco, não é só a mera existência de riscos,

mas o fato desses riscos serem complexos, globais, imprevisíveis, invisíveis e

muitas vezes imperceptíveis.

108 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 27. ed. São Paulo: Malheiros Editora, 2006, p. 797. 109 HUNGRIA, Nelson. Dos crimes contra a economia popular e das vendas a prestações com reserva de domínio. Rio de Janeiro: Jacinto, 1939, p. 17/18

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As crises econômicas contemporâneas normalmente são desencadeadas

por uma série de disfunções estruturais complexas e inter-relacionadas, que

envolvem aspectos sociais, comportamentais, econômicos e políticos, sem que

seja possível obter uma visão precisa dos problemas que se multiplicam, e,

consequentemente, precisar a forma mais eficaz de enfrentá-los.

Nesse sentido, é possível afirmar que o atual estágio de evolução científica

e tecnológica, no qual são produzidos, além de riquezas e desenvolvimento

econômico, uma série de riscos ambientais, sociais e econômicos, configura a

transição de uma sociedade industrial para uma sociedade de riscos, sendo tais

riscos caracterizados pela invisibilidade, a globalidade e a imprevisibilidade..

A teoria da sociedade de risco, desenvolvida pelo sociólogo alemão Ulrich

Beck, fundamenta-se em um contexto no qual a proliferação dos riscos e perigos

decorrentes dos avanços da modernidade, sobretudo a devastação do meio

ambiente em escala global, colocam em dúvida o futuro da humanidade,

conforme exposto no trecho abaixo:

É precisamente essa transformação de ameaças civilizacionais à natureza em ameaças sociais, econômicas e políticas sistêmicas que representa o real desafio do presente e do futuro, o que justifica o conceito de sociedade de risco. Enquanto o conceito da sociedade industrial clássica se apoiava na contraposição entre natureza e sociedade (no sentido do século XIX), com o conceito de sociedade (industrial) de risco parte-se da “natureza” integrada à civilização, ao mesmo tempo que acompanha, passando por todos os subsistemas

sociais, a metamorfose das violações sofridas.110

A passagem de uma primeira modernidade, fundada na luta de classes, e

papéis sociais pré-definidos, em que havia limites visíveis para o progresso

técnico-científico e previsibilidade de suas consequências, para uma segunda

modernidade, marcada pela complexidade das formas sociais, dinamismo

industrial e imprevisibilidade, configura, segundo Beck111, uma “modernização

reflexiva”, que se baseia em uma ideia de “autoconfrontação das bases da

110 BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Editora 34, 2010, p. 99. 111 BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: UNESP, 1997, p. 11-72.

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modernização com as suas próprias consequências”, conforme explica Luciana

Carneiro da Silva:

Segundo Beck, o conceito de modernização reflexiva não implica, como poderia sugerir, reflexão, mas antes a ideia de autoconfrontação das bases da modernização com as suas próprias consequências. No entanto, longe de significar uma opção que se pudesse escolher ou rejeitar no decorrer de disputas políticas, tal confronto/transição ocorreu de forma autônoma, indesejada e despercebida, seguindo o padrão dos efeitos colaterais que, de modo cumulativo e latente, ensejam os riscos e as ameaças aptos a questionar e, finalmente, destruir, na ótica do autor, as bases da sociedade industrial.112

A respeito da modernização reflexiva, Ulrich Beck explica que esse

conceito se baseia na possibilidade de os sujeitos refletirem sobre “as condições

sociais de sua existência e assim modificá-las”113. Nesse sentido, esclarece o

autor que os sujeitos dessa modernização podem ser os agentes individuais e

coletivos, sejam cientistas ou pessoas comuns, as estruturas, instituições e

organizações114, ressaltando que há divergência de opiniões em relação ao tema

dentre os vários autores que o analisam. Para Beck, além dos agentes

individuais e sociais e dos sistemas especialistas, merecem destaque, como

sujeitos da modernização, as estruturas, por serem elas que tornam possíveis

as modificações necessárias para que haja a ação115.

A razão de ser desse enfoque se dá, para o autor, em razão de sua posição

divergente em relação ao meio da modernização reflexiva, que é o não-

conhecimento (e não o conhecimento, como sustentam alguns outros autores).

Isso porque, em sua visão, a sociedade risco é a “era dos efeitos colaterais”116

ou seja, são justamente os efeitos desconhecidos da modernização reflexiva (os

riscos) os seus principais personagens.

112 SILVA, Luciana Carneiro da. Artigo: Perspectivas político-criminais sob o paradigma da sociedade mundial do risco. http://www.ibccrim.org.br/revista_liberdades_artigo/64-ARTIGO 113 BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: UNESP, 1997. 114 Idem. 115 Idem. 116 Idem.

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Ainda sobre esse aspecto, o autor explica que o termo “reflexão” se refere

a conhecimento, enquanto que “reflexividade” está ligada à ideia de

autodissolução ou auto-risco da sociedade117. Ou seja, na sociedade de risco a

ideia de “reflexividade” está ligada ao “efeito colateral” mencionado

anteriormente, conforme explica o autor no trecho abaixo:

Em termos precisos, a “reflexividade” da modernidade e da modernização, a meu ver, não significa reflexão sobre a modernidade, a auto-relação, a auto-referencialidade da modernidade, nem significa a autojustificativa ou autocrítica da modernidade no sentido da sociologia clássica; em vez disso (e antes de tudo), a modernização reduz a modernização, não intencional e não vista, e por isso também livre da reflexão, com a força da modernização automizada.118

Ulrich Beck sintetiza essa diferenciação explicando que a tese da

reflexividade defende que “quanto mais avança a modernização das sociedades

modernas, mais ficam dissolvidas, consumidas, modificadas e ameaçadas as

bases da sociedade industrial”119, sendo que isso pode ocorrer

independentemente de qualquer reflexão120.

Com efeito, os riscos dessa nova realidade não se esgotam em efeitos e

danos já ocorridos. Neles, exprime-se sobretudo um componente futuro, que se

baseia em parte na extensão futura dos danos atualmente previsíveis e em parte

numa perda geral de confiança ou num suposto “amplificador do risco”. Riscos

têm, portanto, na atualidade, fundamentalmente que ver com antecipação, com

destruições que ainda não ocorreram mas que são iminentes, e que, justamente

nesse sentido, já são reais hoje.121

Beck explica, também, que as espécies de riscos são extremamente

variáveis. Com efeito, além da destruição, como ocorre no caso do que ele

117 BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: UNESP, 1997. 118 Idem, p. 209-210. 119 Idem, p. 210. 120 Idem. 121 BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Editora 34, 2010, p. 39.

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denomina de “crise ecológica”122, há também a perda de certezas, inseguranças

e demais questões de valores que geram riscos decorrentes da alteração dos

modelos sociais até então estabelecidos. Como exemplo desse tipo de

modificação decorrente da modernidade, o autor menciona o papel crescente da

mulher no mercado de trabalho, que estaria transformando a base familiar da

sociedade industrial.123

Apesar da gravidade dos riscos gerados atualmente, as decisões que

envolvem a suas produções, mesmo quando em níveis globais, são discutidas

no âmbito da política, da ciência e da economia, sob um viés extremamente

capitalista, à margem do conhecimento público. Assim, de acordo com Beck, as

decisões que, à primeira vista, deveriam ser tomadas democraticamente, pois

envolvem a vida e o bem-estar de todos, são na verdade tomadas “a portas

fechadas”, movidas por interesses econômicos privados.124

Ulrich Beck ressalta, ainda, que os riscos gerados nessa “segunda

modernidade” decorrem do próprio êxito da sociedade cientificista e tecnológica,

que por muitas décadas produziu (e produz cada vez mais) novos saberes,

muitas vezes instrumentalizados na forma de inventos ditos indispensáveis para

a satisfação e felicidade humana atual, mas que ao invés de apresentarem

respostas e soluções, trazem consigo, muitas vezes, mais dúvidas e incertezas,

por meio de produção desenfreada de riscos da modernização.125

Neste contexto, é importante ressaltar que a base do modelo de produção

da sociedade de risco exige constantes inovações, principalmente em busca de

novas tecnologias que aumentem a produtividade, reduzindo os custos. Na

verdade, a própria sobrevivência empresarial, no sistema capitalista de mercado,

122 BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: UNESP, 1997, p. 213. 123 Idem. 124 BECK, Ulrich. O que é globalização?: equívocos do globalismo, respostas a globalização. São Paulo: Paz e Terra, 1999. 125 BECK, Ulrich. La sociedade del riesgo global: en busca de la seguridad perdida. Barcelona: Paidos, 2008, p. 34-35.

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conforme explica Pierpaolo Bottini, “exige a adaptação constante, sob pena de

obsolescência e perecimento”.126

Essas inovações necessárias para a sobrevivência empresarial na

sociedade capitalista, entretanto, não são acompanhadas pelo conhecimento

dos riscos que produzem. Ou seja, as novas formas de produção, para serem

mais céleres e ao mesmo tempo terem menor custo, acabam por gerar riscos

desconhecidos, conforme explica Pierpaolo Bottini:

Porém, a velocidade das descobertas científicas, da criação de novas técnicas de produção e de novos insumos não se faz acompanhar pelo conhecimento científico destas inovações, nem sobre os potenciais perigos oriundos de sua aplicação em processos produtivos: é o que gera o risco. A produção de riquezas e a manutenção da atual organização econômica são associadas à criação de riscos. Estes são, portanto, produto da radicalização da revolução industrial, e fator indispensável para a funcionalidade das relações econômicas, em um sistema orientado pela livre iniciativa e pelas regras de mercado.127

Dessa forma, o risco acaba sendo, por um lado, de extrema importância

para a economia da sociedade moderna e, de outro, tendo em vista o vulto dos

danos que podem gerar, um fator de grande temor social. Ou seja, “as estruturas

que fundamentam o modelo atual, e que garantem sua sobrevivência e

reprodução, são responsáveis pelo desenvolvimento do risco. O fator

indispensável para a manutenção da estrutura social – o risco – coincide com o

seu próprio fator de desequilíbrio”128. Ainda nesse sentido, leciona Bottini:

Desta forma, a organização estrutural clássica da sociedade, em que o poder econômico utiliza o poder ideológico para a manutenção do sistema de produção, entra em crise, não em sua totalidade, mas no ponto crucial da gestão de riscos. A dificuldade em lidar com os novos riscos gera atritos, cada vez menos localizados, entre representantes do próprio poder econômico, da mesma classe social, e estes atritos serão refletidos em diversos campos das relações sociais e dos discursos delas decorrentes. A modernização e o risco dissolvem os contornos da sociedade industrial que os originou.129

126 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato: direito penal da sociedade de risco; direito penal e gestão de risco; imputação objetiva e perigo abstrato; princípio da precaução. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. 127 Idem, p. 35. 128 Idem. 129 Idem.

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Não por outra razão, Ulrich Beck identifica nas características dos riscos

modernos os principais motivos deles exigirem formas de resposta política e

jurídica diferenciadas para enfrentamento. Em relação ao seu nível de

abrangência, os riscos da modernidade possuem dimensão imensamente

superior aos riscos apresentados na sociedade industrial.

Nesse diapasão, vale lembrar que o Direito é influenciado pela economia e

pelas características e temores da sociedade em que vigora. Na atualidade,

portanto, diante do que foi aqui exposto, isto significa que ele deve conciliar a

necessidade do risco para o desenvolvimento econômico e os temores sociais

que esse mesmo risco desperta, conforme bem explica Pierpaolo Bottini:

O paradoxo do risco, a dificuldade em estabelecer sua medida ou seu grau de tolerância, a disputa entre discursos, repercute nas categorias do direito. Reflete-se na construção do direito positivo por meio de normas e regulamentos ambíguos, abertos, sem referenciais claros e, em muitos momentos, conflitantes entre si. Impacta também a construção da dogmática, revelando conceitos e definições de difícil precisão, que podem ser preenchidos por conteúdos materiais diversos. Resulta, por fim, no acirramento da disputa da crítica jurídica, com diversas escolas metodológicas e diferentes autores sustentando posições antagônicas, divergentes, sobre a finalidade do direito e sua maneira de se relacionar e de se comunicar com a sociedade.130

Consequentemente, é fundamental “criar ou inventar um novo sistema de

regras que redefina e refundamente as questões a respeito do que é uma ‘prova’,

e o que significam ‘adequação’, ‘verdade’ e ‘justiça’, perante todos os riscos

prováveis (e que atingem a todos) na ciência e no direito. Seria preciso nada

menos que uma Segunda Ilustração, por intermédio da qual nosso

entendimento, nossos olhos e nossas instituições pudessem reconhecer a

menoridade da primeira civilização industrial – da qual ela mesma é responsável

– e dos danos que ela causou a si mesma”131.

A compreensão da complexa e paradoxal situação atualmente estabelecida

e da necessidade de gerenciar os riscos é de extrema importância para o estudo

130 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato: direito penal da sociedade de risco; direito penal e gestão de risco; imputação objetiva e perigo abstrato; princípio da precaução. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 50. 131 BECK, Ulrich. O que é globalização?: equívocos do globalismo, respostas a globalização. São Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 178.

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do Direito Penal, tendo em vista que a sua aplicação deve se dar para a geração

de riscos de maior monta. O raciocínio que permeia essa afirmação é lastreado

no fato de que, sendo os atuais riscos advindos de atividades humanas, sua

geração pode ser coibida, ou ao menos reprimida, por meio de leis e cominações

de sanção. Seguindo a proporcionalidade, às condutas geradoras de riscos mais

prejudiciais (mesmo que potencialmente) devem ser cominadas as sanções mais

graves, cabendo aí a utilização do Direito Penal.132

Além de observar o requisito da gravidade do risco que gera a conduta, a

utilização do Direito Penal como mecanismo de gerenciamento de risco, pela sua

própria natureza e pelos princípios que o regem, deve estar condicionada

também à falta de outros meios hábeis e menos agressivos para a contenção

que se pretende – ou seja, o Direito Penal tem que ser utilizado de forma

subsidiária. As demais formas possíveis e preferenciais de gerenciar os riscos

são explicadas por Bottini por meio do chamado “gerente de risco”133, definido

como aquele incumbido de avaliar e regulamentar os riscos, conforme se vê no

trecho abaixo:

A gestão de riscos é uma atividade generalizada na sociedade atual, levada a cabo por diversos personagens, em maior ou menor escala, seja na esfera pública, seja na privada. O gerente de risco será qualquer pessoa encarregada de avaliar riscos e tomar decisões sobre seus limites que, no âmbito público, pode ser o legislador ao fixar regras para a execução de determinadas atividades, o administrador público nos espaços discricionários conferidos à sua avaliação, e a própria autoridade judicial, ao se deparar com um conflito concreto. No âmbito não governamental a atividade de gerenciamento de riscos também se faz presente. O desenvolvimento do mercado de seguros, a consolidação de modalidades negociais de prevenção de riscos, como os contratos a prazo, a negociação de títulos e bens a preço futuro, e outros, revestem de importância a atividade de análise e cálculo de riscos. Os investimentos financeiros são pautados por estudos variados sobre os riscos de aportar capital a determinada instituição ou a determinado país.134

Em outras palavras, podemos sintetizar o raciocínio acima exposto da

seguinte maneira: no paradoxo gerado pela necessidade do risco e o

132 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato: direito penal da sociedade de risco; direito penal e gestão de risco; imputação objetiva e perigo abstrato; princípio da precaução. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. 133 Idem, p. 39. 134 Ibidem.

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(justificável) temor social que ele acarreta, cabe ao legislador distinguir os riscos

socialmente aceitáveis dos riscos que, por seu potencial lesivo, não podem ser

tolerados. São nestes últimos que poderá incidir o Direito Penal, quando os

demais ramos do Direito (ou fora dele) não se mostrem aptos a impedir as

condutas que os geram.

Importante ressaltar, outrossim, que para que seja possível a utilização do

Direito Penal na contenção e controle dos novos riscos surgidos na

modernidade, é necessário uma série de adequações em seu modelo tradicional.

A respeito dessas inovações sofridas pelo Direito Penal para fazer frente às

novas criminalidades, Luciano Anderson de Souza explica:

Quer isto significar que a complexidade da vida social tem encaminhado o Direito Penal por um percurso desconhecido e que tem obrigado os teóricos das ciências criminais à busca de novos modelos de sistematização e ao erigimento de novos standards para o manejo da dogmática penal. Neste sentido, os autores têm se dividido entre uma tendência que prega a expansão do controle penal por meio do endurecimento das penas cominadas aos delitos, da criminalização de novéis condutas ou que até então vinham ou vem sendo reguladas por outros ramos do saber jurídico, além da criminalização de condutas que, se não chegam efetivamente a atingir o bem jurídico defendido, ao menos tem o condão de colocá-lo em perigo.135

Nesse mesmo sentido são as lições de Pierpaolo Bottini, conforme

demonstram as lições a seguir apresentadas:

O risco, elemento central na organização social, será fator determinante para a orientação da política criminal. A forte presença de tipos penais de perigo abstrato nas legislações, a normatização dos nexos causais pela teoria da imputação objetiva, o desenvolvimento das normas de cuidado e dos delitos culposos, as novas definições dogmáticas de omissão e de autoria utilizam o risco como elemento nuclear. O risco é incorporado ao direito penal da mesma forma que é incorporado em outros setores comunicativos da sociedade, de maneira impactante e incisiva.136

135 SOUZA, Luciano Anderson de. Expansão do Direito Penal e Globalização. Editora Quartier Latin do Brasil, 2007, p. 54. 136 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato: direito penal da sociedade de risco; direito penal e gestão de risco; imputação objetiva e perigo abstrato; princípio da precaução. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 51.

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Dessas mudanças surgiu o denominado Direito Penal do Risco137. Com

efeito, essa nova denominação se deve à grande alteração ocorrida na área,

tendo em vista que o Direito Penal estava adequado à realidade da Sociedade

Industrial, na qual as condutas humanas geradoras dos riscos então existentes

podiam ser abrangidas pelas leis penais que protegiam os bens jurídicos

clássicos (individuais), tais qual a vida, o patrimônio e a propriedade. Na

realidade atual, marcada pela globalização e pela existência de riscos

transindividuais, conforme mencionado, o Direito Penal teve que voltar sua

atenção para as condutas geradoras de risco antes que o bem jurídico fosse

efetivamente atingido, tendo em vista as vultosas consequências (muitas vezes

de difícil ou impossível reparação) que o dano pode acarretar.

Para que possa se antecipar ao dano, o Direito Penal do Risco se vale

muito dos crimes de perigo abstrato, que, diferentemente dos crimes de lesão ou

de perigo concreto, não precisam da lesão ou efetiva ameaça de lesão ao bem

jurídico para se configurarem. Para sua tipificação, basta a conduta considerada

lesiva, conforme explica Élcio Arruda:

O alto grau de complexidade experimentado pela sociedade, com o enleamento de diversas esferas organizativas, potencializa o risco de resultados danosos, produzíveis a longo prazo. A tradicional relação de causa e efeito, inerente aos tipos de resultado material, tem se mostrado insuficiente à abordagem da problemática. Na sociedade complexa, a palavra de ordem é precaução. Daí o freqüente recurso aos tipos de perigo abstrato ou presumido, cuja consumação reclama a mera probabilidade de causação do dano, independentemente de o agente querê-lo: é suficiente o dano possível ou o eventus periculi138.

Essa espécie de estruturação, segundo parte da doutrina, teria o condão

de transformar o Direito Penal Tradicional em Direito Penal de Perigo, conforme

bem explica Renato Silveira:

137 Prittwitz atribuiu a denominação de "Direito Penal do Risco" ao Direito Penal dotado de caráter expansivo, que passou a acolher bens jurídicos transindividuais, adiantar “as barreiras entre o comportamento punível e não punível”, e “reduzir as exigências para a reprovabilidade” (SILVA, Pablo Rodrigo Alflen da. Características de um direito penal do risco. Obtido pelo site: http://siteantigo.mpes.gov.br/anexos/centros_apoio/arquivos/14_2069102112362008_Caracter%C3%ADsticas%20de%20um%20Direito%20Penal%20do%20Risco.doc.) 138 ARRUDA, Élcio. Intervenção Mínima: um princípio em crise. Boletim IBCCRIM. São Paulo, n. 192. Artigo 3757.

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Essa preocupação metaindividual é relevante, pois, como se trata de crimes sem vítimas, de bens jurídicos sem titular, e de importância emblemática, os quais nem mesmo poderiam suportar prejuízos, entende-se pela necessidade de inversão verdadeiramente conceitual do Direito Penal. Não mais se admite a punição por uma lesão, mas sim, postula-se em momento anterior a esta. Este giro copérnico transmuta o Direito Penal tradicional – de dano – em um Direito Penal de Perigo – prévio a este.139

Seguindo essa ideia, é importante ressaltar que, no colóquio preparatório

sobre delitos de perigo (ocorrido em 1968), que precedeu o X Congresso

Internacional de Direito Penal, após registrarem que o avanço da tecnologia, das

ciências e da técnica gerava uma série de perigos para diversos bens jurídicos

e valores humanos, o que estava sendo combatido com a criação de uma série

de tipos penais de perigo em diversos países do globo, afirmaram que a proteção

gerada por essas espécies de delitos vinha acompanhada da criação de “estados

de incerteza e insegurança, naquelas mesmas situações vitais que a lei quer

proteger contra o perigo gerado pelo uso e emprego de técnicas, máquinas e

energia...”.140

Após analisar esta e outras questões atinentes ao delito de perigo,

entretanto, o grupo de estudiosos chegaram à conclusão de que esses tipos

penais não são, necessariamente, violadores dos princípios gerais do Direito.

Basta que eles sigam algumas regras, como bem demonstra o trecho abaixo:

Considerar que a política legislativa consistente em incriminar a mera suscitação de perigo não se oporá aos princípios gerais de direito, se respeitar o princípio de legalidade, ou imprecisos (sic). Considerar, mais, que a incriminação de suscitação de perigo só seja feita em último caso, para suprir as deficiências dos meios não penais de legalidade, evitando, principalmente, tipificações em termos muito gerais ou imprecisos. Considerar, mais, que a incriminação de suscitação de perigo só seja feita em último caso, para suprir as deficiências dos meios não penais de prevenção, e que, se forem admitidos tipos de delitos de perigo presumido, seja muito bem dosado, além de ser permitida produção de prova para tornar sem efeito a presunção.141

139 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. A busca de legitimidade dos crimes de perigo abstrato no direito penal econômico. Boletim IBCCRIM, São Paulo, v. 20, n. 238, p.6-7, set. 2012. 140 MIOTTO, Armida Bergamini. X Congresso de Direito Penal Internacional. http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/180544/000344076.pdf?sequence=1, p. 83. 141 Idem, p. 84.

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Além dos chamados crimes de perigo abstrato, que será melhor estudado

no próximo capítulo, o Direito Penal de Risco se vale muito de tipos abertos e de

expressões vagas e imprecisas. Essa forma de tipificação de conduta se deve à

dificuldade que o legislador encontra em abranger todas as possíveis atividades

que possam gerar danos inadmissíveis.

Vale destacar, ainda sobre as condutas lesivas tipificadas no Direito Penal

do Risco, os chamados crimes por acumulação ou crimes cumulativos (que

serão estudados em momento oportuno). Esta denominação refere-se àquelas

condutas que por si só nem mesmo significam uma ameaça ao bem jurídico,

entretanto, quando realizada em conjunto o colocam em perigo. Exemplos claros

são encontrados no Direito Ambiental142, mas é certo que também no Direito

Penal Econômico pode-se observar situações em que “uma multiplicidade de

condutas de pequena monta pode, em momento futuro denotar, um real perigo,

senão dano, à economia”143. Ainda sobre essa espécie de crimes, Cornelius

Prittwits afirma:

Situándonos aún en un plano descriptivo, este Derecho Penal del riego se caracteriza además porque el comportamiento que va ser tipificado no se considera previamente como socialmente inadecuado, al contrario se criminaliza para que sea considerado como socialmente desvalorado. Esta prescripción afecta al Derecho Penal medioambiental in toto y puede apreciarse también en el Derecho Penal económico, y conduce – en ámbitos distintos a los conocidos y criticados con razón – a una revitalización de la creencia en la “fuerza conformadora de costumbres del Derecho Penal”. La motivación ética de esta nova criminalización rara vez tiene que ver con

142 Conforme explica Ana Carolina Carlos de Oliveira, "a categoria dos delitos por acumulação é inicialmente sugerida por Lothar Kuhlen, para fornecer uma hipótese de intervenção penal nos casos de pequenas infrações ao meio ambiente que, individualmente, são insignificantes, já que não representam lesividade suficiente para permitir a punição do autor, mas que, somadas, representam um dano considerável às condições de preservação ambiental”. Essa mesma autora explica, ainda, que “Kuhlen desenvolve sua teoria a partir de um caso concreto, segundo o qual pequenas propriedades suinocultoras ao longo de um rio lançavam dejetos em quantidade ligeiramente acima do permitido pelas regras administrativas. Constatou-se, contudo, que apesar da pouca representatividade dos poluentes lançados ao rio por cada uma das propriedades (insuficiente, portanto, para a caracterização do tipo penal de poluição das águas), a soma dos poluentes despejados por todas as propriedades representava uma deterioração grave da qualidade da água. Em vista deste problema, sugere o autor a punição destas condutas, individualmente, com a finalidade de preservação do meio ambiente, enquanto bem jurídico coletivo, a ser desfrutado por toda a sociedade. O delito que fundamentaria a punição seria o de poluição das águas.” (OLIVEIRA, Ana Carolina Carlos. A tutela (não) penal dos delitos por acumulação. http://www.ibccrim.org.br/revista_liberdades_artigo/176-ARTIGOS) 143 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito penal econômico como direito penal de perigo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 147.

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comportamientos violentos (normalmente y de forma correcta ya penalizados), pues se trata de comportamientos cuyas consecuencias transcienden a la criminalidad violenta y que sólo, cuando se analizan superficialmente resultan inofensivos. Estas conductas no contravienen generalmente la ética más inmediata, que impregna la moral social y resulta altamente relevante en el modo de comportarse, sino que el contrario contravienen con frecuencia una “moral lejana” mucho menos relevante en la conformación de conductas. Estas conductas generalmente son designadas como criminalidad de bagatela, en cuanto que su peligrosidad surge únicamente a través por el denominado efecto de acumulación, o, dicho de otro modo, la falta de peligrosidad en el momento del comportamiento se desmiente únicamente a través de la consideración de perspectivas temporales más amplias.144

Essas características do Direito Penal do Risco, embora se mostrem de

elevada importância para a contenção dos riscos atuais e consequente

apaziguamento dos anseios sociais, causam um conflito no Direito Penal. Com

efeito, todos os meios acima mencionados, como a antecipação da tutela penal

por meio dos crimes abstratos, a utilização dos delitos cumulativos, além do

elevado uso dos crimes de mera desobediência, dos crimes omissivos e dos

crimes culposos acabam por relativizar princípios como o da legalidade,

proporcionalidade, subsidiariedade, intervenção mínima e lesividade.

O grande conflito que se observa com a flexibilização dos princípios acima

mencionados se dá porque a base do Direito atual está fincada na ideia de uma

efetiva proteção dos direitos e garantias individuais, muitas vezes afrontados

pelo próprio Estado. Com efeito, conforme foi demonstrado no histórico

elaborado nesse capítulo, a primeira geração de direitos protegidos foi a dos

direitos individuais, que eram resguardados, em grande parte, mediante a

imposição de limites à atuação estatal.

Na verdade, os princípios orientadores do Direito Penal tem como principal

objetivo a proteção dos cidadãos contra o poder punitivo do Estado. Assim, ao

disciplinar que condutas só poderão ser punidas se houver lei anterior que

expressa e detalhadamente as incriminem, que penas devem ser cominadas e

aplicadas de forma proporcional ao mal causado e que o Direito Penal, pela

144 PRITTWITS, Cornelius. Crítica y justicación del Derecho Penal en el cambio de siglo: el analises crítico de la ecuela de Frankfurt. Coordenadores: Luis Arroyo Zapatero, Ulfrid Neumann, Adán Nieto Martín. Cuenca: Ediciones de la Universidad de Castilla – La Mancha, 2003, p. 262-263.

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gravidade de suas sanções, não deve ser utilizado quando houver outro meio

hábil e menos rigoroso para lidar com o problema, o que faz o Ordenamento

Jurídico é proteger os cidadãos do poder do Estado, impondo balizas à sua

atuação.

Neste diapasão, é importante ter em mente que o Direito Penal, na

sociedade de risco, é bastante questionado, em razão da ambivalência que há

em relação ao risco (repita-se, visto como necessário para o desenvolvimento

social e, ao mesmo tempo, extremamente ameaçador). Com efeito, há muitas

celeumas acerca de aspectos referentes à pena que seria cabível para a geração

de riscos incriminada, aos comportamentos que devem ser penalizados e à qual

seria a medida e o grau da pena cabível, tendo em vista que a expansão

demasiada do Direito Penal como gestor de risco poderia acarretar na

paralização das atividades produtivas, conforme se vê nas lições abaixo:145

A norma criminal é chamada a cumprir o papel de instrumento de controle de riscos e, por isso mesmo, sofre o paradoxo que incide sobre os demais mecanismos de contenção de atividades inovadoras. A dúvida sobre a medida e o grau da pena, sobre quais comportamentos arriscados realmente interessam ao direito penal, os conflitos subjacentes à gestão de risco está presente em todas as etapas, da construção à aplicação dos tipos, da atividade legislativa ao labor interpretativo. A demanda pela expansão do direito penal sobre novos riscos vem acompanhada de uma contra-argumentação de ordem econômica, que sugere a retração dos âmbitos de abrangência das normas criminais, sob pena de paralização de todas as atividades produtivas.146

Diante das ideias apresentadas, fica bastante claro que a flexibilização dos

princípios orientadores do Direito Penal diminui as garantias asseguradas aos

cidadãos frente ao Estado, o que não pode deixar de ser visto como um relevante

problema, tendo em vista toda a luta travada para que os direitos individuais

fossem plenamente protegidos. Vale lembrar que as gerações de direitos

(individuais, sociais e transindividuais) devem ser somadas, de forma a permitir

a coexistência de todos eles.

145 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato: direito penal da sociedade de risco; direito penal e gestão de risco; imputação objetiva e perigo abstrato; princípio da precaução. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. 146 Idem, p. 67.

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Outrossim, as próprias características da sociedade de risco que exigem a

flexibilização de alguns conceitos e princípios clássicos do Direito Penal,

demandam, também, cautela na aplicação desse ramo do Direito, sob pena de

verem prejudicados valores e mecanismos que consideram de grande

importância para o funcionamento, avanço e bem estar da sociedade atual.

O conflito gerado no Direito Penal fica, assim, bastante evidente, haja vista

que, além de lidar com o sentimento paradoxal que surge na sociedade em

relação ao seu (atual) mais importante desafio, o risco, cabe a ele se adequar

aos novos anseios sociais, protegendo os bens jurídicos que atualmente fazem

parte das preocupações da coletividade, como ocorre com o meio ambiente e a

economia. Por outro lado, para a proteção desses bens jurídicos transindividuais,

se faz necessário uma série de flexibilizações que diminui os direitos individuais,

tão caros a toda a sociedade há longo tempo. A esse respeito, José Francisco

de Faria Costa explica:

Estamos, assim, perante um quadro bastante complexo. Por um lado, a afirmação do princípio da segurança do cidadão individual perante os poderes do Estado que, por seu turno, invocando precisamente essa mesma necessidade de segurança, individual ou colectiva, não se importa de utilizar o direito penal como máquina repressora.147

Diante de todo o exposto, percebe-se que o Direito Penal se consubstancia

em uma importante forma de controle de riscos na sociedade atual, entretanto,

a sua utilização deve ser realizada com critério, de forma a não violar a estrutura

sobre a qual a teoria desse ramo jurídico foi erigida e de não prejudicar o

desenvolvimento social. Nesse sentido, são diversos os estudos e teorias que

têm sido apresentados (algumas delas serão sucintamente exibidas neste

trabalho) com o intuito de embasar posições contrárias e a favor desse novo

papel que tem assumido o Direito Penal, e, em especial, o Direito Penal

Econômico.

147 COSTA, José Francisco de Faria. O perigo em direito penal. Coimbra: Coimbra Editora, 1992, p.356.

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CAPÍTULO II – DIREITO PENAL NA TUTELA DA ORDEM ECONÔMICA: UMA APROXIMAÇÃO À TEORIA DO BEM JURIDICO

1 CONCEITO DE DIREITO PENAL ECONÔMICO

Sem maiores apegos aos termos técnicos que abaixo serão explorados, é

possível afirmar que os delitos econômicos datam de antigos tempos, tendo se

mantido na história, em cada época com contornos diferentes. No Direito

Romano, por exemplo, pode-se observar a proteção penal à ordem econômica

por meio da Lex Julia de Annona, editada ao tempo de César, que sancionava

com a pena de morte a especulação e a violação de normas sobre a importação

e comércio de gêneros alimentícios.148

O que se denomina modernamente de “Direito Penal Econômico”, no

entanto, só surgiu a partir das duas grandes guerras. Findo este período, as

economias se viram aniquiladas e sem forças para se reerguer sem a ajuda do

Estado, razão pela qual, a partir desse momento a intervenção estatal passou a

ser uma realidade intensa, regulando atividades comerciais, promovendo

atividades geradoras de emprego, entre outras atividades econômicas afins.149

Em meio a essa intensa regulação estatal, o Direito Penal passou a assumir

um importante papel para a proteção das economias e também para a

reformulação das atividades a elas atinentes, criminalizando novas condutas e

cominando penas. As sanções criminais passaram a ser utilizadas como forma

de apoio às políticas criadas à época que visavam ao restabelecimento da

economia.150

Posteriormente, o advento da globalização gerou uma transformação da

realidade social, que permitiu uma significativa expansão da criminalidade

148 MASIERO, Clara Moura. Direito penal econômico: aplicabilidade dos procedimentos investigatórios na Lei n. 9.034/95. Porto Alegre: Nuria Fabris, 2010. 149 Idem. 150 Idem.

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organizada, dentre elas aquelas de natureza econômico-financeira. Conforme

leciona Clara Moura, trata-se “da chamada criminalidade moderna, a qual a

grosso modo, possui uma estrutura complexa e organizada e atinge bens

jurídicos transindividuais, como o meio ambiente e a economia. Esse fenômeno

constitui uma das características do Direito Penal moderno, qual seja, a

‘evolução’ de uma criminalidade clássica, que envolvia bens jurídicos

interindividuais, a uma criminalidade moderna, que envolve por sua vez danos

transindividuais.”151

O surgimento dessas novas modalidades criminosas, decorrente das

alterações sociais das últimas décadas e da estrutura global que hoje se

apresenta, pela gravidade dos danos que pode gerar – conforme explorado na

primeira parte desse trabalho –, exigiu uma série de adaptações do Direito Penal,

que acabou por formar subdivisões especializadas para delitos de determinadas

naturezas, tais quais os delitos econômicos.

Seguindo esse raciocínio, surgiu uma posição bastante forte na doutrina,

segundo a qual o Direito Penal Econômico consiste em um ramo relativamente

autônomo do Direito Penal Geral, que estuda, regula e aplica os dispositivos

legais aos delitos praticados contra a ordem econômica. Em outras palavras,

segundo tal posição, esse ramo do Direito Penal visa à proteção da atividade

econômica presente e desenvolvida na economia de livre mercado.152

O entendimento no que tange ao alcance do ramo, entretanto, não é

pacífico dentre os estudiosos do tema. Importantes autores153 buscam um

conceito menos abrangente para o Direito Penal Econômico, defendendo que

este deve ser entendido como o conjunto de normas jurídico-penais que

protegem a ordem socioeconômica (regulação jurídica do intervencionismo

estatal na Economia). Sua característica, considerando essa ideia, é ser o grau

de intervenção estatal na economia mais intenso do intervencionismo, vez que

151 MASIERO, Clara Moura. Direito penal econômico: aplicabilidade dos procedimentos investigatórios na Lei n. 9.034/95. Porto Alegre: Nuria Fabris, 2010, p. 13. 152 MASI, Carlo Velho. O crime de evasão de divisas na era da globalização: novas perspectivas dogmáticas, politico-criminais e criminológicas. Porto Alegre: Pradense, 2013. 153 Idem.

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admite o exercício do jus puniendi. Interessante notar que este conceito se

encaixa com a causa do surgimento da matéria, no período pós-guerras.

Vale, ainda, destacar as lições de Luciano Feldens, que explica que no

âmbito internacional, tem-se tratado por Direito Penal Econômico “a área do

Direito Penal que se aglutina em torno ao denominador comum da atividade

econômica, de sorte que sua definição conceitual relaciona-se ao conjunto de

normas jurídico-penais que protegem a ordem econômica”154. Com essas

considerações o autor conclui:

O objeto de proteção penal é, portanto, a ordem econômica, expressão que, retratando o próprio bem jurídico tutelado, abre ensanchas ao reconhecimento do que vem de se denominar Direito Penal Econômico, especialmente passível de ser conceituada em termos mais ou menos amplos. 155

Além dos conceitos mencionados acima, há ainda vários outros. A

divergência que se estabelece entre os diversos autores que estudam o tema é

muito bem justificada pela ambiguidade conceitual do próprio termo ordem

econômica, que torna uma conceituação única do que pode ser entendido como

Direito Penal Econômico ou crimes econômicos uma tarefa bastante difícil.

Luiz Regis Prado156, por exemplo, considera que ordem econômica pode

ter diferentes conceitos, dependendo do ângulo que seja examinada. Em

acepção estrita, ordem econômica pode ser definida como a regulação jurídica

da intervenção do Estado na economia; já em acepção ampla, pode ser

conceituada como a regulação jurídica da produção, distribuição e consumo de

bens e serviços. A respeito dessa dicotomia, e de sua importância para a

identificação do bem jurídico protegido, o renomado autor ressalta:

Essa dicotomia conceitual acaba tendo repercussão no campo do bem jurídico protegido. Destaca-se que a ordem econômica lato sensu não pode constituir-se em bem jurídico diretamente protegido (ou em

154 FELDENS, Luciano. Tutela Penal de Interesses Difusos e Crimes do Colarinho Branco: por uma relegitimação da atuação do ministério público: uma investigação à luz dos valores constitucionais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 122. 155 Idem. 156 PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Econômico. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 37.

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sentido técnico), visto que não pode ser tido como elemento do injusto. Tão-somente em sentido estrito pode ser tida como bem jurídico diretamente tutelado (ou em sentido técnico), ainda que manifestado em determinado interesse da Administração.157

Complementando os seus ensinamentos, este autor defende que para

efeito de proteção penal, a regulação jurídica da intervenção do Estado na

economia deve ser considerada de forma ampla, sendo a tutela penal, portanto,

endereçada às atividades realizadas no âmbito econômico e no empresarial,

tendo em vista que tais atividades se imbricam mutuamente158. Colocadas essas

ideias, Luiz Régis Prado conclui:

Esse conceito de ordem econômica acaba por agasalhar as ordens tributária, financeira, monetária, e a relação de consumo, entre outros setores, e constitui um bem jurídico penal supra individual, genericamente considerado (bem jurídico categorial), o que por si só não exclui a proteção de interesses individuais. Além disso, em cada tipo legal de injusto há um determinado bem jurídico específico ou em sentido estrito, cada figura delitiva. Tal concepção fundamenta em sede penal um conceito amplo de delito econômico, mas não totalizador ou amplíssimo.159

Toda essa dissonância de entendimentos por parte dos juristas sobre o

Direito Penal Econômico resultou em uma situação bastante peculiar na

atualidade brasileira: há atualmente um emaranhado de leis penais, produzidas

de acordo com as conveniências de cada época, que incriminam condutas

aparentemente lesivas à economia de determinado período, sem que haja entre

essas normas um liame lógico.

Compartilhamos da posição acima exposta, segundo a qual a ideia de

Direito Penal Econômico e, consequentemente, crimes econômicos, depende do

entendimento que se confere ao termo ordem econômica, considerada como

bem jurídico – lembrando que há questionamentos inclusive sobre essa

premissa (de ser a ordem econômica bem jurídico), conforme será exposto a

seguir.

157 PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Econômico. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. 158 Idem, p. 38. 159Ibidem.

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2 TEORIA DO BEM JURÍDICO

2.1 Conceito e evolução

A noção de bem jurídico é extremamente importante ao Estado

Democrático de Direito, porquanto permite a definição dos valores que são mais

caros à sociedade e consubstancia importante fonte de limitação ao poder

punitivo estatal, conforme bem explica Édson Luís Baldan:

Poucos os conceitos são tão caros à política criminal como à dogmática que o bem jurídico. Ocorre que, num Estado Democrático de Direito, a noção de bem jurídico desempenha papel preponderante: decididamente define a função do Direito Penal e, por conseguinte, esclarece os limites do ius puniende, conferindo, ademais, a legitimidade do mesmo ao Direito Penal.160

Luiz Regis Prado, por sua vez, leciona que na atualidade existem poucas

posições contra o postulado de que o delito constitui lesão ou perigo de lesão a

um bem jurídico. Segundo esse autor, a doutrina do bem jurídico tem se firmado

como um dos pilares da teoria do delito e assume relevante função balizadora

da atividade legislativa, por limitar os fatos passíveis de sanção penal àqueles

efetivamente danosos à sociedade. 161

Não obstante a concordância em relação ao postulado acima mencionado,

o conceito de bem jurídico é bastante controverso. Com efeito, são vários os

autores que, priorizando um ou outro valor, construíram um conceito próprio e

diverso de bem jurídico. Entretanto, analisando os pontos em comum das

diversas opiniões a respeito, percebe-se que a noção de bem jurídico decorre

das necessidades da sociedade em que ele é reconhecido como tal, como bem

leciona Luiz Regis Prado:

De qualquer modo, resta patente que a noção de bem jurídico decorre das necessidades do homem surgidas na experiência concreta da vida que, “enquanto dados sociais e historicamente vinculados à experiência humana, têm uma objetividade e uma universalidade que

160 BALDAN, Édson Luís. Por uma delimitação conceitual do direito penal econômico pela análise da ordem econômica como bem jurídico tutelado. Dissertação de Mestrado em Direito Penal. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2001, p. 30. 161 PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e constituição. 6. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.

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possibilitam sua generalização, através da discussão racional e o consenso, e sua concreção em postulados axiológicos-materiais.”162

Nessa acepção, a ideia de bem jurídico pode ser identificada desde

Feuerbach – embora ainda não esquematizada e sem denominação. Este autor

defendia que com o contrato social, que possibilitou a organização em

sociedade, coube ao Estado a conservação da estrutura que se formou. Em

outras palavras, o Estado assumiu a função de garantidor das condições da vida

em comum, só podendo intervir penalmente “quando fosse presente uma

situação que viesse a lesionar algum direito dos cidadãos”.163

Posteriormente, Birnbaum publicou na Alemanha um ensaio ressaltando a

importância de uma valoração do que poderia ser objeto do Direito Penal,

conforme sintetiza Renato Silveira:

Em crítica severa ao autoritarismo, verifica-se o início de uma redimensionalização do Direito Penal. Nesse contexto, Birnbaum, em 1834, publica, na Alemanha, seu ensaio sobre a tutela da honra, dando, ainda que não conscientemente, o passo inicial do que hoje se entende por bem jurídico. Sua elaboração acentua-se na valoração dos bens da coletividade, cuja garantia é tida também, em termos gerais, por Rudolph Von Jhering. Nesse aspecto, a assertiva de que a origem da preocupação não se deu, como muitos pretendem, com uma preocupação em limitar, ou ser crítica ao poder punitivo do Estado, mas, sim, de justificar certas criminalizações, como os então conhecidos como crimes policiais ou condutas atentatórias à religião ou à moralidade. 164

No positivismo, a ideia de “bem jurídico” foi trazida Karl Binding, que definiu

o crime como a lesão a um direito subjetivo do Estado, sendo o bem jurídico

aquilo que a lei estabelecesse como tal. Mesmo no interior da escola positivista,

entretanto, a visão de Binding foi considerada demasiadamente formalista, por

não vincular valores à noção de bem jurídico.165

162 PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e constituição. 6. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. 163 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Bem jurídico-penal: leituras conflituosas. In: SAAD-DINIZ, Eduardo; POLAINO-ORTS, Miguel (Org.). Teoria da pena, bem jurídico e imputação. São Paulo: LiberArs, 2012. 278 p., 23 cm. (Diké; v. 3), p.131. 164 Ibidem. 165 SOUZA, Luciano Anderson de. Direito Penal Econômico: Fundamentos, limites e alternativas. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2012.

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Na tentativa de superar esse criticado caráter da ideia de Binding, o

também positivista Franz Von Liszt, seguindo uma linha naturalista sociológica,

passou a defender que os bens jurídicos deveriam ser definidos pelo Estado

dentre aqueles interesses sociais vitais, baseados em circunstâncias sociais

concretas. Ou seja, para ele, os bens jurídicos não poderiam ser entendidos tão

somente como aqueles definidos pelo Estado como tal; mas, deveriam ser

entendidos como até preexistentes ao definido pelo Estado, porquanto

decorrentes da própria realidade social.166 Nas palavras de Von Liszt, bem

jurídico poderia ser definido, portanto, da seguinte forma:

Bem jurídico não é bem do direito ou ordem jurídica (como pensa Binding e também Bosin que o segue, W. V, 2º, 275), mas um bem do homem que o direito reconhece e protege. – A ideia do bem jurídico é, ao nosso ver, mais ampla do que a do direito subjetivo.167

A partir das ideias de Welzel, novamente a noção de bem jurídico é

reformulada. Com efeito, esse autor funda-se na noção de que a finalidade

primordial do Direito Penal é a proteção de “valores elementares da vida em

comunidade”, o que muda os conceitos até então prevalentes, como explica

Renato Silveira:

Para ele, o Direito Penal leva a efeito a proteção de bens jurídicos ou mandando ou proibindo determinadas ações. Por trás de tais mandados ou proibições encontrar-se-iam deveres éticos e sociais, os quais seriam assegurados mediante a imposição de sanção quando da sua lesão. Esse também o fundamento que viria ele a utilizar para a construção do socialmente adequado em Direito Penal. Ao fugir de simples menção quanto a uma situação causal, o pensamento welzeniano finca-se em necessária proteção ética-social, ou seja, no próprio pensamento dos cidadãos sobre um determinado bem.168

A grande peculiaridade do pensamento de Welzel em relação àquele

formulado por Von Liszt está justamente na atenção dada ao caráter ético-social

do bem jurídico, com especial destaque ao fato de que deve ser considerado

166 SOUZA, Luciano Anderson de. Direito Penal Econômico: Fundamentos, limites e alternativas. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2012. 167 VON LISZT, Franz. Tratado de direito penal alemão, traduzido da última edição e comentado por Hygino Duarte Pereira. Tomo I. Rio de Janeiro: F. Briguiet & C. – Editores, 1899, p. 94. 168 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Bem jurídico-penal: leituras conflituosas. In: SAAD-DINIZ, Eduardo; POLAINO-ORTS, Miguel (Org.). Teoria da pena, bem jurídico e imputação. São Paulo: LiberArs, 2012. 278 p., 23 cm. (Diké; v. 3), p.133.

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como tal (digno de tutela pelo Direito Penal) aquilo que, em um Estado Social, o

Direito deseje proteger de lesões.169

Essa ênfase na questão valorativa perdura até os dias atuais e é um dos

principais elementos para a seleção de bens jurídicos. Luiz Regis Prado, ao tratar

do tema, ressalta, inclusive, que o conteúdo axiológico do bem jurídico

independe do legislador. Para ele, “a norma não cria o bem jurídico, mas sim o

encontra”.170

A função de balizar e conter o poder punitivo estatal, conforme explica Luiz

Regis Prado, decorre justamente dessa característica axiológica do bem jurídico,

tendo em vista que o fim do Direito Penal no Estado Democrático de Direito é

proteger os interesses mais relevantes ao homem e à sociedade, não lhe

cabendo interferir, até pela intensidade de suas penas, em questões de somenos

importância.171

Outra importante discussão que surge em torno do tema ora em análise diz

respeito ao caráter constitucional ou sociológico que deve ser atribuído ao bem

jurídico. Para aqueles que sustentam o caráter constitucional de bem jurídico,

este deve estar inserido na Constituição, que serve, inclusive, como limitação ao

poder incriminador estatal; para os que defendem um conceito sociológico, o

bem jurídico decorre diretamente da realidade social.172 De cada uma dessas

concepções decorrem efeitos bastantes diversos.

Sobre a concepção sociológica de bem jurídico, após mencionar

importantes nomes que a adotam, como K. Amelung, G. Jakobs173, Luiz Regis

Prado formula a seguinte síntese:

169 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Bem jurídico-penal: leituras conflituosas. In: SAAD-DINIZ, Eduardo; POLAINO-ORTS, Miguel (Org.). Teoria da pena, bem jurídico e imputação. São Paulo: LiberArs, 2012. 278 p., 23 cm. (Diké; v. 3). 170 PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e constituição. 6. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 35. 171 Ibidem. 172 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Op. Cit, p. 129-148. 173 PRADO, Luiz Regis. Op. cit., p. 40.

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Nessa perspectiva, em apertada síntese, Amelung entende ser a noção de bem jurídico válida como teoria sistêmica e critério da nocividade social. A legitimação substancial da referida noção encontra-se para Jakobs na vigência da norma enquanto objeto de tutela. Este último autor, nas pegadas de Luhmann, afirma que a missão do Direito Penal é assegurar a validade fática ou vigência das normas jurídicas, no sentido de garantir expectativas indispensáveis ao funcionamento do sistema social. Tem a função de estabilizar a ordem social através da imputação de condutas. O delito, como transgressão da norma penal, significa oposição à prescrição normativa que se vê contrariada pela sanção, que impõe ou restabelece a obediência ao Direito.174

Após expor as posições adotadas por mais alguns grandes nomes que

seguem a concepção sociológica, Luiz Regis Prado afirma que nenhuma das

construções formuladas nesse sentido trouxe um conceito material de bem

jurídico, que explicasse o que é lesionado por um delito e a razão pela qual

determinada sociedade opta por incriminar determinadas condutas e não outras.

Isso é bastante problemático porque deixa o legislador sem limites para

selecionar as condutas que devem ser incriminadas e suas respectivas sanções,

e não dá balizas para que o intérprete busque os específicos objetos de tutela.175

A corrente que adota o entendimento de que o bem jurídico deve ter como

lastro a Lei Maior, defende, por sua vez, que a Constituição consubstancia a

única fonte e restrição para a seleção dos bens que podem ser defendidos pelo

Direito Penal. Nesse sentido, ao ponderar sobre o tema, Renato Silveira afirma:

Rudolphi, em uma mesma linha, tem para si que os valores essenciais deve ter referência constitucional, estando o legislador ordinário obrigatoriamente vinculado a uma proteção de bens jurídicos, prévia ao ordenamento penal. O Estado de Direito não é meramente um Estado de Legalidade, encontrando sua real legitimação na ideia de justiça material. O bem jurídico assume, então, unidade de função social, tendo a norma constitucional como parâmetro fundamental.176

No mesmo sentido, Luís Regis Prado leciona que as teorias constitucionais

“procuram formular critérios capazes de se impor de modo necessários ao

174 PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e constituição. 6. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 40. 175 Idem, p. 43. 176 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Bem jurídico-penal: leituras conflituosas. In: SAAD-DINIZ, Eduardo; POLAINO-ORTS, Miguel (Org.). Teoria da pena, bem jurídico e imputação. São Paulo: LiberArs, 2012. 278 p., 23 cm. (Diké; v. 3), p.135.

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legislador ordinário, limitando-o no momento de criar o ilícito penal.”177 Além

disso, segundo o autor, a Constituição deve realizar o papel de diretriz político-

criminal, conforme se pode verificar do trecho abaixo:

O conceito de bem jurídico deve ser inferido na Constituição, operando-se uma espécie de normativização de diretivas político-criminais. Podem ser agrupadas em teorias de caráter geral e de fundamento constitucional estrito. A divergência entre elas é tão somente quanto à maneira de vinculação à norma constitucional.178

Tendo em vista que em um Estado Democrático de Direito as normas

devem ser construídas de forma escalonada, é certo que todas as normas penais

devem ter seu fundamento de validade na norma constitucional. Não havendo

tal compatibilidade, a norma infraconstitucional deve ser retirada do sistema, por

meio dos mecanismos previstos para tal fim.

Destarte, percebe-se que são as necessidades e valores sociais que

determinam a introdução da previsão de determinado bem jurídico na

Constituição. Contudo, no Estado Democrático de Direito, tal previsão

constitucional é fundamental para que determinado bem jurídico possa ser

protegido pela norma penal incriminadora.

É importante destacar, entretanto, que mesmo dentre aqueles que se filiam

à concepção sociológica de bem jurídico, há autores, como Winfried Hassemer,

que não descuram da importância da valoração constitucional. Nesse caso, essa

corrente se distinguirá da outra (constitucional) porque sustenta a necessidade

da confirmação da danosidade social da conduta incriminada, como bem explica

Renato Silveira:

Em campo tido como sociológico, Hassemer afirma que há de se partir dessa concepção nitidamente voltada aos aspectos constitucionais. Não despreza, no entanto, a necessidade de confirmação de uma “danosidade social” para a legitimação da intervenção punitiva por parte do Estado. Os bens jurídicos seriam considerados desde uma perspectiva político criminal geral. Portanto ter-se-ia uma avaliação dos valores constitucionais em termos de compreensão social do bem jurídico. Dessa forma, o professor de Frankfurt menciona que

177 PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e constituição. 6. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 62. 178 Ibidem.

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considera os três critérios para o bem jurídico. Segundo eles, a noção de bem deve adequar-se à realidade, uma vez que está a se falar da relação entre Direito e vida, de uma verdadeira ligação entre o direito das pessoas. Mais do que isso, o conceito de “bem jurídico” deveria ser seletivo e nítido, já que se trata dos limites da intervenção na liberdade. Por fim, acentua que o conceito desse “bem” deve ser genericamente compreensível, impedindo-se incriminações nebulosas.179

Com efeito, Winfried Hassemer, apesar de seguir a Teoria Sociológica, é

enfático ao falar da importância das constituições para o Direito Penal. Para ele,

a constituição tem o fundamental papel de limitar o poder punitivo estatal,

conforme se pode concluir da leitura do trecho abaixo:

Conforme a estas tradiciones, el Derecho penal es un ‘Derecho que pone límites a la lucha contra el delito’ y la Constitución formula límites a la intervención, también para el Estado que ejerce o poder punitivo. El hecho de que una limitación de las intervenciones constituye al mismo tiempo un espejo de su legitimación, es decir, que puede entenderse como justificación de las intromisiones llevadas a cabo dentro dos limites establecidos, resulta evidente, pero es harina de otro costal. Por último, se permitirá afirmar asimismo, que las limitaciones del Derecho penal provenientes de la tradición del Derecho Penal, y las limitaciones de las intromisiones penales impuestas por la Constitución, por el otro, proceden en última instancia de la misma fuente: una fundamentación del Derecho penal y de la pena basada en los derechos fundamentales llevada a cabo sobre todo por la filosofía política de la Ilustración.180

Hassemer continua o seu raciocínio afirmando que a proteção de bens

jurídicos é um princípio negativo, porquanto limitador do Direito Penal. Segundo

ele, este princípio não prega a incriminação de todas as condutas que lesem o

bem jurídico, mas impede a tipificação penal de condutas que não o lesem nem

o exponham a perigo de lesão. O autor afirma, ainda, que há relação direta entre

a ideia de bem jurídico e de direitos fundamentais, tendo em vista que estes

últimos têm a função de defender os cidadãos, inclusive contra o arbítrio do

Estado.181

179 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Bem jurídico-penal: leituras conflituosas. In: SAAD-DINIZ, Eduardo; POLAINO-ORTS, Miguel (Org.). Teoria da pena, bem jurídico e imputação. São Paulo: LiberArs, 2012. 278 p., 23 cm. (Diké; v. 3), p.135. 180 HASSEMER, Winfried. ¿Puede haber delitos que no afecten a un bien jurídico penal? In: HEFENDEHL, Roland (Ed.). La teoría del bien jurídico: ¿fundamento de legitimación del derecho penal o juego de abalorios dogmático? Madrid: Marcial Pons, 2007, p. 97. 181 Idem, p. 98.

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2.2 Princípios instrumentalizadores do bem jurídico

Além dos requisitos apresentados para a legitimidade do bem jurídico, vale

mencionar que só deve ser objeto da tutela penal, pela gravidade das penas que

esse ramo do Direito impõe, aquilo que não pode ser satisfatoriamente tutelado

por outros ramos jurídicos. Nesse sentido, Édson Luís Baldan, ao tratar do

importante Princípio da Subsidiariedade do Direito Penal, após expor a posição

de vários doutrinadores sobre o tema, conclui que bem jurídico é aquele que

exige a proteção do Direito Penal, por não haver outros ramos jurídicos aptos a

defendê-lo. Vale expor as palavras desse autor:

Do ângulo penalístico, portanto, bem jurídico é aquele que esteja a exigir uma proteção especial, no âmbito das normas de direito penal, por se revelarem insuficientes, em relação a ele, as garantias oferecidas pelo ordenamento jurídico, em outras áreas extrapenais.182

Baldan continua o raciocínio explicando que o tipo penal deve explicitar

qual o bem jurídico que o legislador visou com ele proteger. Para o autor, não

devem ser apenadas as condutas que não lesionem nem coloquem em risco de

lesão nenhum bem jurídico.183

Ainda com enfoque na subsidiariedade do Direito Penal, Paulo Cesar

Busato também afirma que, por ser o Direito Penal o ramo que promove as

punições mais severas por parte do Estado, deve salvaguardar apenas alguns

bens jurídicos específicos, de extrema relevância e cujos outros ramos do

ordenamento não consigam por si só tutelar:

O Estado somente pode cercear da maneira mais drástica – com a sanção penal – um comportamento humano que ofenda de modo significativo um bem jurídico fundamental à convivência social, o qual não pode ser tutelado de outro modo menos gravoso. Este é um critério essencial para a análise da referência material de uma incriminação que se consolidou na tradição dogmática jurídico-penal. Somente desse modo é possível, concomitantemente, justificar um tipo

182 BALDAN, Édson Luís. Por uma delimitação conceitual do direito penal econômico pela análise da ordem econômica como bem jurídico tutelado. Dissertação de Mestrado em Direito Penal. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 2001, p. 33. 183 Ibidem.

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incriminador e oferecer um delimitador seguro contra o arbítrio do

Estado.184

Pelo que foi exposto acima, percebe-se que, quando contextualizamos a

Teoria do Bem Jurídico às normas e princípios vigentes em um Estado

Democrático de Direito, fica claro que a proteção penal deverá recair nos bens

jurídicos constitucionalmente previstos, por serem estes os que refletem as

necessidades e valores mais caros da sociedade existente naquele momento.

Com efeito, tendo em vista que a ideia de bem jurídico cria parâmetros de

controle para a atuação incriminadora estatal, é imprescindível que a sua seleção

seja diretamente vinculada a valores, cuja relevância seja reconhecida

socialmente.185 A esse respeito, Rogério Greco afirma:

A finalidade do Direito Penal é proteger os bens mais importantes e necessários para a própria sobrevivência da sociedade, ou, nas precisas palavras de Luiz Regis Prado, “o pensamento jurídico moderno reconhece que o escopo imediato e primordial do Direito Penal radica na proteção de bens jurídicos – essenciais ao indivíduo e à comunidade”. Nilo Batista também aduz que “a missão do direito penal é a proteção de bens jurídicos, através da cominação, aplicação e execução da pena”. A pena, portanto, é simplesmente o instrumento de coerção de que se vale o Direito Penal para a proteção dos bens, valores e interesses mais significativos da sociedade.186

Paulo César Busato, por sua vez, explica que “o princípio da necessidade

da intervenção corre o perigo de ser demasiado abstrato e vago, pelo que requer

uma base concreta de sustentação, que assinale quais são as balizas e limites

fundamentais do sistema”.187 Para o autor, foi a teoria do bem jurídico que

procurou solucionar o que deve ser efetivamente protegido:

O princípio do bem jurídico estabelece um limite material ao poder punitivo estatal, pois impede que se estabeleçam delitos e penas que não tenham em sua estrutura de base a proteção a um bem jurídico.188

184 BUSATO, Paulo César e HUAPAYA, Sandro Montes. Introdução ao direito penal: fundamentação para um sistema penal democrático, 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007. 185 SOUZA, Luciano Anderson de. Direito Penal Econômico: Fundamentos, limites e alternativas. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2012. 186 GRECO, Rogerio. Curso de Direito Penal: parte geral. Rio de Janeiro: Impetus, 2012, p.2. 187 BUSATO, Paulo César e HUAPAYA, Sandro Montes. Op. cit, p. 39. 188 Idem.

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Nesse mesmo sentido, Luís Regis Prado, citando Rudolphi, muito bem

sintetiza o que deve ser levado em consideração para que o importante papel do

bem jurídico, de veiculador de valores, seja bem desempenhado:

Para tanto, a concretização do bem jurídico como um juízo de valor do ordenamento positivo deve levar em conta as condicionantes seguintes: “Que o legislador não é livre em sua decisão de elevar à categoria de bem jurídico qualquer juízo de valor, estando vinculado às metas que para o Direito Penal são deduzidas da Constituição. 2) Que com o anterior somente se assinalou o ponto de vista valorativo para se determinar o conteúdo material do bem jurídico, ficando ainda para serem desenvolvidas as condições e funções em que se baseia esta sociedade dentro do marco constitucional. 3) Que um tipo penal seja portador de um bem jurídico claramente definido não significa já sua legitimação; é necessário, ainda, que só seja protegido diante de ações que possam realmente lesioná-lo ou colocá-lo em perigo”.189

Nesse contexto emerge a questão de como valorar e estabelecer quais são

os bens que, pela sua relevância para a sociedade, merecem e necessitam ser

resguardados pelo Direito Penal (e, portanto, previstos constitucionalmente), se

não como forma primordial de proteção, ao menos subsidiariamente. Na

atualidade já é certo que tal análise deve ser norteada pelos “princípios penais

que são as vigas mestras – fundantes e regentes – de todo o ordenamento

penal.”190

Sintetizando brevemente o que foi exposto acima, é possível sustentar

como principais ideias da Teoria do Bem Jurídico na atualidade o seguinte: (i) a

eleição dos bens jurídicos a serem protegidos pelo Direito Penal deve refletir a

necessidade e principais valores da sociedade regida pelo ordenamento; (ii) no

Estado Democrático de Direito, os bens jurídicos aptos a serem protegidos estão

previstos na Constituição vigente; (iii) uma das principais funções do bem jurídico

é limitar o poder punitivo estatal, o que é fundamental para assegurar os direitos

individuais conquistados pelos cidadãos.

A partir dessas considerações, passaremos a analisar a seguir,

considerando a natureza transindividual da ordem econômica, se ela pode ou

189 PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e constituição. 6. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 64-65. 190 Idem, p. 66.

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não ser aceita como bem jurídico apto a ser tutelado pelo Direito Penal.

2.3 Proteção de bens jurídicos transindividuais

O Direito Penal clássico surgiu na era do Iluminismo, que considerava como

bens jurídicos dignos de proteção pelo ordenamento aqueles voltados à tutela

dos bens jurídicos individuais, tais como a vida, a liberdade e o patrimônio, até

então a maior preocupação social,191 conforme já explicado na primeira parte

desse trabalho.

Com o advento da sociedade de risco, entretanto, as preocupações sociais

se alteraram profundamente, se dirigindo aos potenciais danos advindos das

novas formas de vida, que extrapolam “a existência, individual e comunitária ou

provenham de acontecimentos naturais ou derivam de ações humanas próximas

e definidas para contenção das quais bastava a tutela dispensada aos bens

jurídicos ‘clássicos’ como a vida, o corpo, a saúde, a propriedade, o patrimônio,

etc.”192

Com efeito, as transformações recentes operadas na sociedade deram

origem a novas modalidades de danos, que afetam os chamados interesses

transindividuais, divididos pela doutrina em três espécies: (i) interesses

individuais homogêneos: relativos a indivíduos ligados entre si por uma

vinculação jurídica; (ii) interesses coletivos: pertencentes a um grupo de

indivíduos, determinável ou não, vinculados por situação de fato; e (iii) interesses

difusos: pertencentes a toda coletividade, sendo impossível aferir os lesados. O

crime econômico pode atingir qualquer uma das três modalidades de bens

jurídicos coletivos acima especificados.

191 MASI, Carlo Velho. O crime de evasão de divisas na era da globalização: novas perspectivas dogmáticas, politico-criminais e criminológicas. Porto Alegre: Pradense, 2013. 192 Idem.

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O surgimento desses novos riscos (de danos de natureza diferente do que

se conhecia anteriormente) gerou ao Direito Penal uma série de desafios que

acabaram por criar na doutrina questionamentos acerca da possibilidade de se

manter as bases tradicionais desse ramo jurídico, até hoje vigente. A esse

respeito, Paulo Silva Fernandes apresenta as seguintes ideias sobre a

convocação do Direito Penal para responder aos novos desafios da atual

sociedade:

E desde já parece evidente que o direito penal não o pode fazer recorrendo aos meios tradicionais, próprios de um “paradigma penal das sociedades democráticas industriais do fim do séc. XX”, em que “os riscos para a existência, individual e comunitária, ou provinham de acontecimentos naturais (para a tutela dos quais o direito penal é absolutamente incompetente) ou derivavam de ações humanas próximas e definidas, para contenção das quais era bastante a tutela dispensada a clássicos bens jurídicos individuais como a vida, o corpo, a saúde, a propriedade, o património; para a contenção das quais, numa palavra, era bastante o catálogo puramente individualista dos bens jurídicos (...) e assim o modelo de um direito penal liberal e antropocêntrico”.193

As alterações realizadas no Direito Penal, para adequá-lo às novas

necessidades e temores surgidos com o advento da sociedade de risco,

entretanto, foi no sentido de alargar o seu campo de atuação, para que passasse

a englobar novas áreas, sem alterar os seus princípios fundamentais. Para

melhor expor essa transformação, nos valemos novamente das lições de Paulo

Silva Fernandes:

É sabido que durante o século XX, sobretudo na segunda metade, o direito penal, apesar do movimento de descriminalização, sofreu um certo alargamento, operado pelo aparecimento do direito penal secundário, na sequência da maior intervenção do Estado na sociedade. Tal alargamento permitiu que o direito penal interviesse, como vem fazendo, em novas áreas até então reservadas a outros sistemas de proteção, nomeadamente o civil e o administrativo, sem que abdicasse dos seus princípios fundamentantes. (...) sendo certo que o direito penal vê alargado o seu domínio de intervenção através de um direito penal novo, especial, secundário, alargamento esse possível não só pelo aparecimento de novos bens jurídicos, como pela criminalização de condutas que outrora estavam entregues ao direito administrativo sancionador.194

193 FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, “sociedade de risco” o futuro do direito penal. Coimbra: Livraria Almedina, 2001, p. 22/23. 194 Idem, p. 14.

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A posição de Paulo Silva Fernandes vai ao encontro da doutrina que hoje

predomina no Brasil, no sentido de aceitar que, com a mudança da sociedade e

o advento dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, surgiram

novas modalidade de bens jurídicos: os transindividuais.195

A ideia de tutelar com o Direito Penal os interesses transindividuais surgiu

há algumas décadas (em 1975), inicialmente com foco nos direitos difusos, por

meio da obra de Filippo Sgubbi, intitulada Tutela penale di interessi difussi. O

escrito tratava justamente das mudanças operadas na sociedade e dos novos

interesses delas advindas, enfatizando o papel do Direito Penal na sua

proteção.196

As transformações acima mencionadas, deram origem à expressão Direito

Penal de Risco, que defende dever ser abandonada “a ideia basilar de uma

proteção individual, para focar-se em uma ideia de tutela supra-individual”.197

Essa mudança de foco, para muitos doutrinadores, gera uma situação bastante

complicada, porque para a proteção de bens meta-individuais, muitas vezes, é

necessário antecipar a tutela penal, o que gera uma certa dificuldade na aferição

do desvalor da ação, conforme explica Renato Silveira:

Notadamente, em situações de cunho meta-individual existe uma certa dificuldade na constatação de um desvalor da ação – até mesmo porque, não raro, aqui se verificam tendências de antecipação da tutela penal -, ou, pior do que isso, constata-se uma impossibilidade de avaliação de potencialidade danosa do tipo, dando-se um passo adiante de um simples desvalor da ação.198

A dificuldade acima mencionada consubstancia um dos argumentos que

embasam a posição (minoritária) daqueles autores que sustentam que a ideia de

195 A posição, entretanto, está longe de ser pacífica, tendo em vista que se encontra estudos sobre o tema alegando que a ideia de bem jurídico deve estar, necessariamente, atrelada a interesses individuais para que haja o devido respeito aos princípios do Direito Penal Mínimo. 196 FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, “sociedade de risco” o futuro do direito penal. Coimbra: Livraria Almedina, 2001. 197 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Bem jurídico-penal: leituras conflituosas. In: SAAD-DINIZ, Eduardo; POLAINO-ORTS, Miguel (Org.). Teoria da pena, bem jurídico e imputação. São Paulo: LiberArs, 2012. 198 Idem.

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bem jurídico deve estar necessariamente atrelada a interesses individuais para

que haja o devido respeito aos princípios do Direito Penal Mínimo.

Luciano Anderson de Souza, por exemplo, justificando a posição

minoritária, afirma que para a proteção dos bens jurídicos individuais, o legislador

considera a soma de vários “interesses individuais social e constitucionalmente

valorados”199. Quando a proteção recai em bens jurídicos coletivos, entretanto,

segundo o autor, há um caráter complementar de proteção dos bens jurídicos

individuais.200

Tais correntes também enfrentam críticas, porém de outro viés.

Acreditamos que a mais significativa delas, tendo em vista que o Direito deve ser

dirigido igualmente a todos, é a que sustenta que um Direito Penal voltado à

proteção apenas de bens individuais acabaria por penalizar apenas os

desfavorecidos, protegendo os mais abastados, que, no mais das vezes, são os

responsáveis pelas condutas que violam bens meta-individuais, como o meio

ambiente e a ordem econômica.201

O quadro é, no entanto, bastante problemático, tendo em vista que os

preceitos basilares do Direito Penal constituem um relevante empecilho à sua

adequação à nova realidade social, na qual o perigo assume cada vez maior

relevância. Tal fato, aliado à inegável necessidade de tutela às novas

necessidades, fez com que alguns autores passassem a se indagar sobre a

conveniência da manutenção do Direito Penal, como se pode aferir das lições de

Paulo Silva Fernandes a seguir transcritas:

O perigo é uma categoria que ganha cada vez maior importância, associada porventura a uma “criminalização expansiva dos delitos de negligência e omissão. Que significa isso? Que o direito penal não serve? Vamos agora à velha questão, já posta por RAMON CAPELLA, da extinção do direito penal, ou posta por RADBRUCH, da substituição do direito penal por coisa melhor, questões postas noutro tempo e por

199 SOUZA, Luciano Anderson de. Direito Penal Econômico: Fundamentos, limites e alternativas. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2012. p. 114. 200 Idem. 201 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Bem jurídico-penal: leituras conflituosas. In: SAAD-DINIZ, Eduardo; POLAINO-ORTS, Miguel (Org.). Teoria da pena, bem jurídico e imputação. São Paulo: LiberArs, 2012.

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razões diferentes? Ou, pelo contrário, os desafios que são colocados agora ao direito penal até reforçam a sua existência, mas implicam uma adequação em termos jurídicos-dogmáticos? 202

O que prevalece fortemente, contudo, é que os empecilhos são superáveis,

mesmo com a manutenção dos principais alicerces do Direito Penal vigente. A

adequação desse ramo jurídico à nova realidade é possível e suficiente para

satisfazer às novas necessidades sociais.

Além da denominação Direito Penal de Risco, encontra-se na doutrina a

denominação Direito Penal Secundário. Essa expressão serviria para designar

o Direito Penal adequado à sociedade de risco (assim como Direito Penal de

Risco), que seria uma evolução do Direito Penal Clássico, também chamado de

Direito Penal Primário ou de Justiça. Paulo Silva Fernandes, ao responder o

quanto o Direito Penal deveria se modificar para se adequar à nova realidade,

bem explica a natureza do Direito Penal Secundário. A respeito, vale transcrever:

Na nossa opinião, curiosamente, não nos parece que o direito penal deva fazer muito mais do que aquilo que já fez em termos de flexibilização. Um estudo aprofundado sobre o direito penal secundário prova-nos que as respostas dadas por este, sem descaracterizar o direto penal, sem o desvirtuar, sem o desviar dos princípios que o estruturam, viabiliza todo um conjunto de respostas, na mesma linha, ainda que num ou noutro aspecto tenha que sofrer conformação dogmática, se a tutela que se pretenda tiver que ser mesmo efectiva, como deve ser.203

O Direito Penal Secundário, portanto, está voltado à proteção de bens

jurídicos coletivos e, segundo Jorge Figueiredo Dias, possui forte caráter

administrativo, inclusive incriminando diversas condutas que consubstanciam

descumprimento a determinadas normas administrativas.204

Sobre esse caráter administrativo do Direito Penal adequado à sociedade

de risco, Renato de Mello Jorge Silveira, após explicar que a incriminação de

202 FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, “sociedade de risco” o futuro do direito penal. Coimbra: livraria Almedina, 2001, p. 23. 203 Idem, p. 24. 204 DIAS, Jorge de Figueiredo. Para uma dogmática do direito penal secundário. Um contributo para a reforma do direito penal nos novos espaços de intervenção. In: D´AVILA, Fabio Roberto, SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder (orgs). Direito Penal Secundário. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.

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condutas que infrinjam normas administrativas é uma das novas técnicas para a

elaboração do crime de perigo, especialmente quando se considera os crimes

contra a ordem econômica, leciona:

Desde há muito, percebe-se, como uma das mais frequentes incidências da Administração da vida cotidiana, o regramento de condutas. Entendendo que algumas regras devem ser mais impositivas, cabendo ao seu infrator sanção penal, formata-se essa nova modalidade delituosa. Inicialmente tidas na Alemanha como situações específicas (Prüfstellendelikte), hoje encontram-se distintas maneiras de classificar ou mesmo identificar tais construções típicas, sempre dizendo respeito a uma ação dada em contrariedade a uma prévia regulamentação administrativa. Caracterizada por descrever sua conduta típica atinente à realização de atividade sem a esperada autoridade administrativa, nelas não se percebe por claro, situação necessariamente danosa, mas unicamente de perigo, desenhado pelo legislador.205

Tal novidade é uma das características da chamada “expansão do Direito

Penal”, entendida como o alargamento do uso desse ramo do Direito para tutelar

situações sobre as quais não intervinha anteriormente. Essa tendência atual,

entretanto, tem sido objeto de muitas críticas e até temor, justamente sob o

argumento de que enfraqueceriam o postulado da exclusiva proteção ao bem

jurídico, que, conforme já se viu, constitui uma importante ferramenta de

proteção aos cidadãos em relação ao poder punitivo estatal. A este respeito,

Paulo Silva Fernandes leciona:

Os riscos são enormes, diz-se: expansão desmedida, até se perder de vista o referente matricial, nomeadamente a proteção exclusiva de bens jurídicos – “palpáveis ou ao menos substancialmente identificáveis do indivíduo ou do Estado”, seguindo pela discussão pública -, administrativização (através do recurso a sanções próprias do direito administrativo, do direito de mera ordenação social, etc.), a criação de condutas de perigo abstracto em detrimento dos crimes de dano e mesmo de perigo concreto, o que, aliado à “eleição de bens jurídicos vagos ou de amplo espectro”, resulta numa excessiva antecipação da tutela, um determinado efeito analgésico ou tranquilizante do direito penal (no qual pode vir a antever-se um instrumento ao serviço da população insegura e amedrontada)...”206

205 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito penal econômico como direito penal de perigo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 142. 206 FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, “sociedade de risco” o futuro do direito penal. Coimbra: Livraria Almedina, 2001, p. 72.

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São frequentes, também, as críticas que sustentam que essa expansão do

Direito Penal acaba por lhe conferir um caráter simbólico. Com efeito, de acordo

com esse entendimento, o uso do Direito Penal serviria, de um lado, para

intimidar a população, para que não pratiquem condutas demasiadamente

arriscadas, de outro, para dar sensação de tranquilidade ao resto da sociedade,

que se sentiria mais tranquila com o aumento de leis mais rigorosas, já que “só

o Direito Penal é rigoroso o suficiente, aos olhos do povo, (...) pois só ele pode

afastar o cidadão da sociedade por um período determinado de tempo.”207

Luciano Anderson de Souza, citando Hans-Joaquim Hirsch, explica, ainda,

sobre o simbolismo desse Direito Penal expansionista, que por sua característica

de ser construído para tranquilizar a sociedade, acaba transformando o Estado

em “Estado de Segurança”.208

Extremamente relevante para o tema proposto nesse trabalho, porque

bastante aplicável a crimes econômicos, é a opinião desse mesmo autor acerca

das operações policiais que constantemente assistimos na mídia. Segundo ele,

essas operações dirigidas a pessoas reconhecidamente abastadas, busca

intimidar que o cidadão comum adote condutas análogas, sob pena de ser

sancionado de forma tão ou mais eficaz.209

O Direito Penal está acostumado com o uso de aspectos simbólicos, o que

não é, por si só, um problema. Entretanto, quando a função simbólica acaba por

ser a única que determinado tipo penal pode exercer, ou seja, quando nenhum

bem jurídico pode ser protegido pelo tipo, com o tempo, a ineficiência da norma

pode gerar um enfraquecimento da confiança da população no ordenamento

jurídico.210 Vale transcrever, a respeito, as lições de Luciano Anderson de Souza:

A utilização desenfreada da fórmula tipificadora, erigindo-se as mais diversas e complexas condutas sociais à categoria delitiva, para fins de intimidação, quando outros ramos jurídicos ou mesmo outras soluções sociais poderiam tutelar com maior eficiência a situação, gera

207 SOUZA, Luciano Anderson de. Direito Penal Econômico: Fundamentos, limites e alternativas. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2012, p. 156. 208 Ibidem. 209 Idem. 210 Idem.

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sua inaplicação: ou porque a legislação é desconhecida, ou porque o Estado não possui condições materiais de sua repressão, ou porque simplesmente encontra-se disseminada a crença na impunidade, dentre inúmeras outras possibilidades.211

A ideia dessa construção é muito simples: se o tipo penal não é apto a

proteger o bem jurídico, a perpetração do crime nele descrito não poderá

acarretar a aplicação da pena cabível ao agente ativo, o que dá à sociedade a

sensação de que crimes podem ser cometidos sem serem devidamente punidos.

A repetição de histórias de impunidade (ou punições insuficientes), por sua vez,

acaba por causar uma descrença social no Direito Penal em um sentido mais

amplo, porque gera na população a impressão da inutilidade ou ineficácia das

leis penais. Diante disso, fica claro que a utilização de leis penais meramente

simbólicas acaba por deslegitimar o Direito Penal, gerando, após algum tempo,

o efeito inverso do inicialmente desejado.

Outra importante crítica tecida a respeito do expansionismo do Direito

Penal provém da denominada Escola de Frankfurt. Segundo seus

representantes, para proteção da liberdade, o Direito Penal deveria se limitar a

incriminar apenas aquelas condutas que violassem bens fundamentais à

sociedade, tais como a vida, a propriedade e a saúde.212

Winfried Hassemer é um exemplo das críticas abordadas por essa Escola.

Segundo ele, na procura de reduzir a insegurança causada pelas novas

modalidades de danos decorrentes da sociedade de risco, o Direito Penal

acabou por se afastar de sua função primordial, qual seja, proteger os valores

mais caros à sociedade. A respeito, vale reproduzir as lições de Pierpaolo Cruz

Bottini:

HASSEMER parte da constatação de que o direito penal atual, procurando minimizar a insegurança oriunda de uma sociedade de riscos e dirigir processos e relações causais complexos, altera substancialmente seus conceitos dogmáticos: logo, afasta-se de sua missão original de apenas assegurar uma escala de valores

211 SOUZA, Luciano Anderson de. Direito Penal Econômico: Fundamentos, limites e alternativas. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2012, p. 159-160. 212 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato: direito penal da sociedade de risco; direito penal e gestão de risco; imputação objetiva e perigo abstrato; princípio da precaução. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

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indispensáveis à vida social, e se torna um instrumento em busca do controle dos grandes problemas da sociedade atual, como a proteção do meio ambiente, da saúde pública, da ordem econômica e da política exterior, dentre outros.213

Bottini acrescenta, ainda, que Hassemer defende não ser cabível a

utilização do Direito Penal como gestor de risco, devendo esse importante ramo

do direito ser utilizado apenas para a proteção de bens jurídicos fundamentais.

Critica tal ideia, entretanto, afirmando que não seria conveniente aplicá-la ao

sistema jurídico brasileiro, vez que poderia ensejar arbitrariedade pelo Estado.214

Outro argumento contrário ao pensamento de Hassemer, no que tange às

suas ideias desfavoráveis a um uso mais amplo do Direito Penal, se dá em

relação ao já mencionado direcionamento que se faria desse importante ramo

jurídico, caso ficassem excluídos de sua alçada a contenção dos novos riscos,

conforme explica Bottini:

Importa destacar, ainda, a posição de alguns autores que vislumbram no direito de intervenção de HASSEMER uma proposta de um direito penal de classes, subjacente, que direciona o direito penal ao delinquente tradicional, oriundo das camadas marginalizadas da população, enquanto o afasta das condutas perpetradas pelas classes dominantes e mais abastadas, responsáveis pelos delitos do novo direito penal. O direito de intervenção seria uma válvula de escape que abrigaria a criminalidade econômica, os crimes de colarinho-branco, os ilícitos ambientais, afastando a pecha de delinquente aos praticantes de tais atos e qualquer ameaça de restrição de liberdades.215

Tal raciocínio, ao nosso ver, é bastante coerente. Com efeito, os delitos

perpetrados contra bens jurídicos transindividuais, em especial contra a ordem

econômica, na maior parte das vezes provêm de classes mais abastadas, que

possuem maior acesso às diversas espécies de mercados que fazem parte da

organização econômica e detêm maiores conhecimentos sobre como auferir

vantagens com eles.

213 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato: direito penal da sociedade de risco; direito penal e gestão de risco; imputação objetiva e perigo abstrato; princípio da precaução. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 100. 214 Idem, p. 102. 215 Idem, p. 103.

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Destarte, se o Direito Penal restringisse sua esfera de proteção, nos moldes

defendidos por Hassemer, dirigiria o seu poder punitivo, predominantemente, às

classes mais baixas, deixando imunes às suas sanções aqueles que

praticassem crimes contra a ordem econômica, que, nos mais das vezes, têm

maior destaque social.

Tal característica, além de reprovável por estar em desacordo com a

igualdade pregada pelos Estados Democráticos de Direito, seria bastante

prejudicial para a sociedade. Com efeito, conforme exposto na primeira parte

desse trabalho, a lesão à ordem econômica pode levar a consequências

gravíssimas, capazes de alterar o próprio curso da história e,

consequentemente, lesar (ainda que indiretamente) os direitos fundamentais de

milhares de pessoas, por todo o globo, dependendo da extensão do dano.

Em outras palavras, na sociedade atual, é bastante claro que as condutas

lesivas aos bens jurídicos transindividuais podem ser tão ou mais lesivas à

sociedade (principalmente quando vista de forma mais ampla) e aos direitos

individuais (porque seus efeitos podem afetar direitos individuais de inúmeros

indivíduos) do que aquelas que lesam apenas bens jurídicos tradicionais. Por

esta razão, não é razoável, nem consentâneo com a realidade da sociedade de

risco em que vivemos, dirigir o Direito Penal apenas à proteção dos bens

jurídicos clássicos.

Todo esse contexto de debate e discussão, gera uma importante dúvida,

muito bem sintetizada por Paulo Silva Fernandes da seguinte forma: “conseguirá

o conceito de bem jurídico ser matriz de referência de um discurso jurídico-penal

(não porventura novo mas) renovado, ou deverá ser abandonado?”216

A resposta, na opinião do mencionado autor (a qual nos filiamos) é que o

conceito de bem jurídico continuará com sua importância, levando em conta ser

inegável a existência de bens jurídicos transindividuais.

216 FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, “sociedade de risco” o futuro do direito penal. Coimbra: Livraria Almedina, 2001, p. 82.

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Com efeito, conforme bem explicado por Paulo Silva Fernandes, com a

utilização das lições de Figueiredo Dias, existem bem jurídicos individuais e

“bens jurídicos de índole supra-individual, social ou colectiva, dotados de um

mesmo grau de exigência de tutela, o que em nada belisca a plena função de

exclusiva proteção subsidiária de bens jurídicos do Direito Penal”217, apesar de

serem mais vagos do que aqueles individuais.

Para corroborar a afirmação acima (de ser inegável a existência de bens

jurídicos transindividuais), devemos lembrar que o conceito de bem jurídico, em

um Estado Democrático de Direito, deve ser inferido na Constituição, conforme

bem explica Luiz Regis Prado, nas lições abaixo transcritas:

O conceito de bem jurídico deve ser inferido na Constituição, operando-se uma espécie de normativização de diretivas político-criminais. Podem ser agrupadas em teorias de caráter geral e de fundamento constitucional estrito. A divergência entre elas é tão somente quanto à maneira de vinculação à norma constitucional.218

Ainda no sentido de defender a existência de bens jurídicos coletivos, Paulo

Silva Fernandes, aponta a importância do conceito de bem jurídico, nos

seguintes termos:

Assim, Silva Dias conclui pela importância do conceito de bem jurídico tanto ao nível político-criminal (constituindo ainda tal noção a base do programa político-criminal, embora de uma forma menos nítida, dando o seu contributo para a identificação do dano, para distinguir crimes e contra-ordenações, etc.), rejeitando-se, portanto, a hipótese de um novo “direito penal do risco” levar à “liquefação do bem jurídico e à sua substituição por uma tutela de perigos indeterminados”, antes apontando, continua, “para a irrupção de bens jurídicos pessoais e patrimoniais de tipo novo, que, apesar de difusos e fluidos nos limites, permitem ainda a identificação de um núcleo essencial e continuam a fornecer um padrão crítico ao legislador na hora de seleccionar as condutas puníveis”, como também ao nível dogmático, nomeadamente quanto à impossibilidade tendencial de se operar uma distinção entre perigo e lesão efectiva, ao contrário do que sucede quanto aos bens jurídicos de tipo clássico, de que é paradigma a protecção da vida, ao caráter difuso dos novos bens, das causas de justificação (nomeadamente a legítima defesa).219

217 FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, “sociedade de risco” o futuro do direito penal. Coimbra: Livraria Almedina, 2001, p. 96. 218 PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e constituição.6. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 62-63. 219 Idem, p. 97.

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Mais especificamente sobre o Direito Penal Econômico, objeto do presente

trabalho, esse mesmo autor explica que os bens jurídicos por ele protegidos são

de natureza artificial, porquanto construído ao longo da história, com o moderno

intervencionismo estatal na economia, cujo desenvolvimento já explicamos no

capítulo anterior. A respeito vale transcrever:

O bem jurídico protegido, v.g. em sede de Direito Penal Económico, é de natureza “artificial” ou construída pelo devir histórico-social, nomeadamente movido pelo intervencionismo do Estado moderno no desenrolar da economia. Assim, não conto com aquele substrato onto-antropológico definido e sedimentado, ao contrário do que sucede com os bens jurídicos, chamemo-lhes, clássicos, como a vida ou a

integridade física.220

Ainda sobre o assunto, esse autor explica que os novos delitos que surgem

com a criação desses novos bens jurídicos se diferem substancialmente dos

delitos denominados clássicos, porque, ao contrário da carga valorativa que

estes últimos possuem – aspecto fundamental para permitir a perenidade que

lhes são tão características –, são “normativamente orientados para o

prosseguimento de um determinado objectivo político-económico, decantável em

cada contexto histórico”221, o que os tornam bastante mutáveis.

Em outras palavras, os delitos clássicos buscam resguardar bens jurídicos

que independem de tendências políticas e governamentais vigentes em

determinado momento histórico, tais como a vida, a propriedade, a integridade

física, entre outros. Os crimes econômicos, por sua vez, são criados com a

finalidade de auxiliar a concretização de objetivos estatais na área econômica e,

por essa razão são tão modificáveis e modificados quanto eles.

Apesar de tal volubilidade, entretanto, autores como Paulo Silva Fernandes

consideram tais bens jurídicos de indiscutível importância para a sociedade

atual, porquanto fundamentais para a regulação econômica. Corrobora tal

entendimento o histórico apresentado no primeiro capítulo, que demonstra a

220 FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, “sociedade de risco” o futuro do direito penal. Coimbra: Livraria Almedina, 2001, p. 84. 221 Idem, p. 85.

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gravidade dos efeitos de uma crise econômica para inúmeros indivíduos ao redor

do globo.

Importante ressaltar, ainda, que os interesses transindividuais, como um

todo, exigem do Direito Penal uma tutela antecipada do bem jurídico. Para tal

desiderato, esse importante ramo jurídico se vale, com frequência, dos crimes

de perigo abstrato, o que acarreta um afastamento do princípio da ofensividade

ao bem jurídico, nos seguintes termos:

Assim, dá-se o afastamento do princípio da ofensividade ao bem jurídico, qua tale, como critério material de punição, bem como a necessidade de aproximação e recurso a normativos extra-penais (nomeadamente o administrativo) e designadamente a normas penais em branco, para melhor cobrir as exigências a si colocadas, a par, ou fundindo-se com ela, de uma expansão necessária.222

Os crimes de perigo abstrato serão melhor estudados no próximo tópico,

no entanto, cumpre registrar desde já, que a análise da legitimidade das normas

que tutelam bens jurídicos transindividuais (em especial, para este trabalho, a

ordem econômica) é necessária para que se evite o uso indevido do Direito

Penal, que não deve ser desvinculado de seu caráter subsidiário.

Nesse diapasão, para que se possa concluir pela legitimidade de

determinada norma penal que tutele interesse difuso, é necessário que a

tipificação em análise vise a proteger efetivamente um bem jurídico, como, por

exemplo, a ordem econômica. Não se admite, portanto, que o Direito Penal seja

utilizado como mero meio simbólico para o auxílio de um controle que possa ser

realizado por outros ramos jurídicos. Tal questão é bem sintetizada por Luciano

Anderson de Souza:

(...) a simples adoção de uma política econômica setorial ou momentânea, ou a mera conveniência administrativa em matéria de regulação econômica, sem referência a valores humanos fundamentais ao contrato social, carecedores da especifica proteção jurídico-penal, não pode representar substrato a uma criminalização válida. Em outras palavras, a utilização do Direito Penal como contundente meio de reforço à política econômica estatal vigente, ignorando-se sua vocação de tutela de bens jurídicos, desvirtua sua

222 FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, “sociedade de risco” o futuro do direito penal. Coimbra: Livraria Almedina, 2001, p. 89.

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característica de última ratio na proteção de interesses humanos imprescindíveis para a pacífica convivência social, limitando-se ao mero simbolismo penal consagrador, desse modo, de um indevido arbítrio do Estado na esfera particular.223

Por outro lado, é certo que a realidade da sociedade de risco não pode

prescindir de crimes que tutelem interesses transindividuais, sob pena de se

deixar sem proteção valores que, atualmente, são extremamente importantes

para a sobrevivência da sociedade.

Com efeito, considerando tudo o que foi exposto sobre bem jurídico, é

realmente temerário defender que o Direito Penal ainda deva se restringir a

proteger interesses individuais, porquanto o distanciaria da tutela de bens

bastante caros à sociedade, deixando-o obsoleto e com pouca utilidade na

realidade que se apresenta atualmente.

Nos filiamos, assim, às posições que consideram absolutamente possível

e pertinente com o ordenamento jurídico a existência de bens jurídicos

transindividuais, tais como a ordem econômica, o meio ambiente, as relações de

consumo, entre outras. Mais do que possível, nos parece, inclusive,

imprescindível que esses outros valores sejam elevados a categoria de bens

jurídicos, possibilitando a sua proteção pelo Direito Penal.

Acrescentamos ainda que, ao nosso ver, os princípios que balizam o

Direito Penal deixam margem para a possibilidade de incriminação de condutas

que afetem interesses transindividuais, o que é fundamental para que esse

importante ramo do Direito continue representando um meio poderoso de

proteção social.

3 CRIMES DE PERIGO ABSTRATO

Para iniciar esse tópico, vale destacar que, após selecionar os bens

jurídicos que devem ser protegidos pelo Direito Penal, o legislador deverá

223 SOUZA, Luciano Anderson de. Direito Penal Econômico: Fundamentos, limites e alternativas. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2012, p. 85.

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selecionar as condutas que atentem ao bem jurídico eleito para formular o devido

tipo penal, conforme explica Guilherme Guedes Raposo:

Em seguida, ele deve estabelecer, a partir da relevância do bem jurídico e também de suas características, uma pauta de condutas que deverão ser evitadas ou realizadas para que o bem – naquilo que dependa de ações humanas, evidentemente – permaneça incólume ou, pelo menos, para que sua afetação se reduza o máximo possível. Aqui o legislador deve se valer necessariamente de regras de experiência, de dados empíricos e criminológicos, além de eventuais conhecimentos científicos setoriais, a fim de possibilitar não só a identificação das condutas que afetam o bem jurídico, mas também para definir em que medida elas o afetam. Finalmente, uma vez definidas as ações que, de acordo com a dinâmica social existente, mais contribuem, direta ou indiretamente, para a afetação do bem jurídico em análise, o legislador deverá elaborar um conjunto de normas comportamentais primárias que proíbam ou ordenem as condutas consideradas relevantes para a

proteção de um bem jurídico específico(...).224

O autor continua suas lições explicando que dentre as condutas

possivelmente atentatórias ao bem jurídico tutelado, há um escalonamento de

gravidade e penas aplicadas. As condutas consideradas mais graves são

aquelas que efetivamente atingem o bem, depois as de perigo concreto e, por

fim, as de perigo abstrato. Ou seja, a dosagem da pena deve levar em conta o

grau de perigo a que a conduta expõe o bem jurídico tutelado.

Nesse diapasão, vale registrar a diferenciação que Bernd Schünemann faz

entre os crimes de perigo abstrato e crimes de perigo concreto:

Tradicionalmente se han distinguido los delitos de peligro abstracto y concreto. En los delitos de peligro abstracto, el mero motivo do legislador para castigar tales acciones es la evitación de um peligro, que según la experiencia, en un desarrolo posterior llevan a la puesta en peligro del bien jurídico. Por el contrario, em los delitos de peligro concreto, bien jurídico individual ya tiene que haber incurrido por si

mismo en el peligro de la lesión (...).225

224 RAPOSO, Guilherme Guedes. Teoria do bem jurídico e estrutura do delito: uma reflexão sobre a legitimidade da antecipação da tutela penal como meio de proteção de bens jurídicos na sociedade contemporânea. Porto Alegre: Núria Fabris, 2011, p. 167-168. 225 SCHÜNEMANN, Bernd. La estructura de los delitos de peligro (los delitos de peligro abstracto y abstracto-concreto como modelo del derecho penal económico moderno). In: Cuestiones actuales del sistema penal: crisis y desafíos. Lima: Ara, 2008, p. 17.

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Ocorre, entretanto, que com as transformações que a sociedade sofreu e

vem sofrendo, já descritas nesse trabalho, a noção da gravidade de cada espécie

de delito tem se alterado, conforme explica Guilherme Raposo Guedes:

Esta regra, contudo, comporta exceções, não sendo raras as hipóteses (...) de comportamentos prévios que estão de tal forma interligados a lesões gravíssimas a bens jurídicos de extrema relevância social que a necessidade de sua evitação será mais importante para a tutela destes bens do que para a prevenção de certos atos de lesão ou de

perigo concreto.226

Em outras palavras, na conjuntura atual, o crime de perigo abstrato possui

enorme relevância, sendo muitas vezes merecedores de penas ainda mais

severas do que aquelas aplicadas a crimes de lesão, pelo potencial lesivo que

possuem.

Neste contexto, José Cerezo Mir, rebatendo as críticas que alguns juristas

fazem ao crime de perigo abstrato, registra que as alterações ocorridas na

sociedade não permitem que o Direito Penal se mantenha com as mesmas

convicções que prevaleciam no Estado Liberal. Vale registrar as palavras do

autor:

Quisiera señalar, sin embargo, antes de centrarme em el estúdio de los delitos de peligro abstracto, que no es posible uma vuelta al Derecho Penal del siglo XIX, reduciendo básicamente el Derecho Penal a la protección de los bienes jurídicos individuales. El Derecho Penal no puede ignorar la evolución del Estado liberal al Estado de bienestar, so pena de desconectarse del fin de conseguir una mayor justicia social.227

Apenas para esclarecer, os tipos penais abstratos se distinguem dos

demais, porque neles o legislador deixa de prever um resultado naturalístico para

a consumação do delito: há apenas a descrição da conduta penalmente

relevante, com a exposição do bem jurídico a perigo e a mera potencialidade de

dano. Ou seja, a ofensividade da conduta é presumida, uma vez que perigo

226 RAPOSO, Guilherme Guedes. Teoria do bem jurídico e estrutura do delito: uma reflexão sobre a legitimidade da antecipação da tutela penal como meio de proteção de bens jurídicos na sociedade contemporânea. Porto Alegre: Núria Fabris, 2011, p. 170. 227 CEREZO MIR, José. Los delitos de peligro abstracto. Revista de Derecho Penal. n. 2, 2001. 719-746 / Revista de Derecho Penal Rubinzal-Culzoni.

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constitui unicamente a ratio legis, ou seja, o motivo que dá lugar à vedação legal

do comportamento. Nesse sentido Carlo Velho Masi explica:

Apreciável ex ante, o perigo é inerente à ação ou omissão, não necessitando de comprovação. A infringência da norma inibidora (embasada por critérios de experiência/precedente e bom senso), por si só, cria um estado de perigo para toda a sociedade, sem que necessariamente haja efetiva lesão. São de perigo abstrato crimes como o tráfico de drogas, o porte de armas, a embriaguez ao volante e tantos outros tipos penais cuja redação indica apenas a conduta, sem qualquer menção ao resultado. O foco da criminalização é o desvalor da ação, aferida pela potencialidade de ocasionar danos ao bem jurídico. Nesses casos, ainda que o tipo penal descreva a mera conduta, fica a critério do intérprete a constatação de que o comportamento não é inócuo para afetar o bem jurídico tutelado pela norma penal, isto é, que tem capacidade de colocá-lo em perigo, ainda

que em abstrato.228

Para Guilherme Guedes, os crimes de perigo abstrato são uma forma de

antecipar a tutela penal, se diferenciando dos delitos de perigo concreto por não

exigir para sua consumação, um efetivo perigo de lesão ao bem jurídico tutelado:

A categoria dos crimes de perigo abstrato engloba, portanto, toda e qualquer forma de proteção antecipada que não imponha a ocorrência de um efetivo perigo de dano ao interesse tutelado. Trata-se, na realidade, de uma categoria que aglutina todos os crimes que não podem ser qualificados como delitos de lesão ou de perigo concreto, abarcando um conjunto heterogêneo de tipos penais que descrevem condutas com potencial de riscos diferentes e que possuem requisitos próprios que devem ser observados pera a legitimidade desta forma de

intervenção penal. 229

Carlo Velho Masi sustenta, ainda, que o crime de perigo abstrato reduz as

possibilidades de dar soluções mais individualizadas aos casos concretos,

concluindo que “se se renuncia à prova de um dano, não se pode mais encontrar

a prova da causalidade. Por consequência, insiste-se na prova da conduta

228 MASI, Carlo Velho. O crime de evasão de divisas na era da globalização: novas perspectivas dogmáticas, político-criminais e criminológicas. Porto Alegre: Pradense, 2013, p. 51. 229 RAPOSO, Guilherme Guedes. Teoria do bem jurídico e estrutura do delito: uma reflexão sobre a legitimidade da antecipação da tutela penal como meio de proteção de bens jurídicos na sociedade contemporânea. Porto Alegre: Núria Fabris, 2011, p. 179.

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incriminada, cuja gravidade não depende da apreciação do juiz, mas, para o

legislador, era o motivo da criminalização desta conduta.”230

Por fim, esse mesmo autor enumera as consequências que acredita serem

acarretadas com a adoção do crime de perigo abstrato:

Isso acarreta uma série de reflexos sobre a Dogmática, como uma natural flexibilização na apreciação do nexo causal e a diminuição de categorias como as tentativas e da consumação, da autoria e da participação ou do dolo, o que se agrava com o recorrente emprego de expressões e termos ambíguos e imprecisos na formulação dos tipos

penais e a utilização massiva de leis penais em branco. 231

A exemplo desses dois autores, a doutrina brasileira se divide muito no que

tange à aceitação ou não do crime de perigo abstrato. Guilherme de Guedes

Raposo, expõe as mais relevantes críticas tecidas a essa espécie de

incriminação:

Dentre os principais argumentos contrários à antecipação da tutela penal por meio da criminalização dos crimes de perigo abstrato está o de que a tipificação de comportamentos incapazes de gerar lesão ou perigo concreto a bens jurídicos equivaleria a uma forma de criminalização de meras desobediências a normas jurídicas e violaria alguns dos princípios penais de garantia conquistados(...). Segundo argumenta-se, a antecipação da proteção no âmbito do direito penal, significaria uma ruptura com os princípios clássicos do direito penal, como o da ofensividade, da intervenção mínima, da proporcionalidade, da culpabilidade e da legalidade(...). Assim, de acordo com esta corrente de pensamento, ainda que se considerasse necessária a antecipação da tutela para a proteção de certos interesses, ela deveria ser levada a cabo por meios não penais, a fim de evitar a violação de

direitos fundamentais dos indivíduos.232

Ocorre, entretanto, que como afirma Guilherme Guedes, os tipos penais de

perigo abstrato consubstanciam “a proibição de atos que, segundo regras de

experiência ou dados científicos específicos, proporcionavam uma situação

230 MASI, Carlo Velho. O crime de evasão de divisas na era da globalização: novas perspectivas dogmáticas, politico-criminais e criminológicas. Porto Alegre: Pradense, 2013, p. 52. 231 Idem, p. 51. 232 RAPOSO, Guilherme Guedes. Teoria do bem jurídico e estrutura do delito: uma reflexão sobre a legitimidade da antecipação da tutela penal como meio de proteção de bens jurídicos na sociedade contemporânea. Porto Alegre: Núria Fabris, 2011, p. 173.

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futura mais propícia à ocorrência de graves lesões a bens jurídicos

essenciais”.233

Raposo completa o seu raciocínio afirmando que a tipificação penal desses

comportamentos se baseia em uma estratégia político-criminal do Estado para

obstar um processo que poderá acarretar sérias lesões ao bem jurídico

futuramente.234

Em sentido similar, José Cerezo Mir afirma:

La proliteración de los delitos de peligro abstracto en el moderno Derecho penal se basa, en las figuras delictivas que protegen bienes jurídicos colectivos, en el deseo de anticipar la protección penal de los bienes jurídicos individuales em uma sociedad caracterizada por um notable incremento de los riesgos para los mismos. Han contribuido a ello también las dificultades para probar, em ocasiones, la relación de causalidad entre la acción y la lesión del bien jurídico. Estas dificuldades están determinadas también, según Schünemann, por la amplia sustitución de las relaciones personales, em la moderna sociedad de masas, por formas de conducta anónimas y standarizadas (por ejemplo, en la distribuición de alimentos o en las inversiones de capital).235

Quanto ao argumento de que o crime de perigo abstrato poderia afrontar o

princípio da culpabilidade, nos parece correto o entendimento de Guilherme

Guedes Raposo, porquanto não podemos vislumbrar alguma peculiaridade no

que tange a verificação da culpabilidade após a perpetração de um crime de

perigo abstrato. Os requisitos observados em um caso dessa natureza serão

análogos àqueles que seriam avaliados em caso de lesão, por exemplo.

Por outro lado, de curial importância registrar que a presunção de

periculosidade se restringe à tipicidade penal e ao fato que a norma busca evitar,

ou seja “o legislador se limita a dispensar a prova de perigo real somente para

233 RAPOSO, Guilherme Guedes. Teoria do bem jurídico e estrutura do delito: uma reflexão sobre a legitimidade da antecipação da tutela penal como meio de proteção de bens jurídicos na sociedade contemporânea. Porto Alegre: Núria Fabris, 2011, p. 174. 234 Ibidem. 235 CEREZO MIR, José. Los delitos de peligro abstracto. Revista de Derecho Penal. n. 2, 2001. 719-746 / Revista de Derecho Penal Rubinzal-Culzoni.

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fins de caracterização do tipo penal e não para a reprovabilidade do

comportamento, que deve ser aferida em concreto em cada injusto”.236

Nos parece, também, no que tange à legalidade, que tal princípio será

respeitado se a norma de perigo abstrato for elaborada de forma plenamente

inteligível, descrevendo claramente o comportamento incriminado e a pena

imposta.

Ressalte-se, entretanto, que embora não se possa imputar a uma norma

de perigo abstrato a alcunha de ilegítima ou inconstitucional simplesmente por

se tratar de uma norma de perigo abstrato, sua legitimidade e validade

dependem de uma série de requisitos, que serão analisados mais a frente.

Guilherme Guedes Raposo explica, ainda, utilizando-se das lições de

Andrew von Hirsch e Wolfgang Wohlers, que os crimes de perigo abstrato

englobam três tipos de antecipação de tutela: “os delitos preparatórios (ou de

preparação), os delitos de cumulação (ou delitos cumulativos) e os crimes de

perigosidade concreta (ou de ação concretamente perigosa).”237

3.1 Delitos preparatórios ou de preparação

Delitos preparatórios ou de preparação se referem a condutas que não

constituem lesão a bem jurídico, mas que poderão contribuir para a prática de

uma lesão futura, podendo o ato ser punido independentemente da efetiva lesão

ulterior. A respeito Guilherme Guedes expõe:

Nesses casos, excepcionando a regra que determina que atos meramente preparatórios são irrelevantes para o Direito Penal, o legislador, com o intuito de proteger de maneira mais efetiva um determinado bem jurídico, antecipa sua tutela a um momento prévio ao

236 RAPOSO, Guilherme Guedes. Teoria do bem jurídico e estrutura do delito: uma reflexão sobre a legitimidade da antecipação da tutela penal como meio de proteção de bens jurídicos na sociedade contemporânea. Porto Alegre: Núria Fabris, 2011, p. 174. 237 Idem, p. 180.

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da lesão ou do perigo real, criminalizando de forma autônoma a prática de um ato de preparação. 238

Wolfgang Wohlers define essa modalidade de delito da seguinte forma:

Tratam-se de modalidades de comportamento cujo potencial de risco reside no fato de, ou o próprio autor, ou outra pessoa, poderem praticar uma conduta conectada ao resultado do comportamento prévio em questão. O âmbito de aplicação desse tipo de delito estende-se tanto à proteção de interesses individuais quanto à proteção de interesses coletivos.239

Conforme mencionado, os crimes de perigo abstrato possuem requisitos a

serem seguidos para que tenha sua validade reconhecida. Nos casos dos delitos

preparatórios ou de preparação, não se admite a criminalização de

comportamentos que produzam resultados benéficos à sociedade, mesmo que

coloquem em risco algum bem jurídico protegido. Guilherme Guedes Raposo

apresenta a seguinte justificativa para essa regra:

Isto porque em uma sociedade em que a produção de riscos tornou-se parte da dinâmica das relações sociais e da produção da maior parte da riqueza mundial, a imposição de pena aos autores de condutas que favoreçam a realização de outras ações lícitas, sob o argumento de que elas produziriam risco para bens fundamentais, praticamente inviabilizaria a vida em sociedade. E esta conclusão sequer pode ser alterada pela possibilidade remota de que a ação precedente possa favorecer o cometimento de algum delito ulterior.240

Diante dessa conclusão, o autor explica que a tipificação de atos de

preparação só se legitima quando as condutas que os sucederem forem

necessariamente ilícitas, o que ocorre em quatro hipóteses: (i) condutas

destinadas a incitar crimes de terceiros (ex. apologia ao crime); (ii) associação

de pessoas para a finalidade única de cometer crimes (ex. quadrilha e

associação para o tráfico de entorpecentes); (iii) transmissão de conhecimentos

específicos, que tenha como único propósito o cometimento de crimes; (iv)

fabricação e/ou colocação em circulação de produtos perigosos, que tenha como

238 RAPOSO, Guilherme Guedes. Teoria do bem jurídico e estrutura do delito: uma reflexão sobre a legitimidade da antecipação da tutela penal como meio de proteção de bens jurídicos na sociedade contemporânea. Porto Alegre: Núria Fabris, 2011, p. 181. 239 WOHLERS, Wolfgang. Teoria do bem jurídico e estrutura do delito. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 90, v. 19, 2011. 97-107 / RBCCRIM. 240 RAPOSO, Guilherme Guedes. Op. cit., p. 184.

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única utilidade o cometimento de ilícitos. Nesse último caso, o autor ressalva que

em casos de artefatos, por exemplo, que podem ser usados tanto para fins

legítimos como para fins ilegítimos, “será necessário uma prévia regulamentação

administrativa que diferencie as formas de uso permitidas daquelas que, em

razão do potencial e risco envolvido, não poderão ser realizadas legitimamente

por particulares.”241

3.2 Delitos cumulativos (ou de cumulação)

De acordo com Guilherme Guedes Raposo, as condutas incriminadas por

delitos cumulativos ou de cumulação são aquelas que cometidas isoladamente

não tem o condão de afetar o bem jurídico protegido, entretanto, quando

praticadas em maior escala, tem um imenso potencial lesivo.242 Jesús-Maria

Silva Sánchez, por sua vez, explica essa modalidade de delito da seguinte forma:

O paradigma anterior é a difusão da tese que entende que é possível sancionar penalmente uma conduta individual ainda quando esta não seja em si mesma lesiva do bem jurídico (nem o ponha por si só em perigo relevante), se se conta com a possibilidade certa de que dita conduta – não lesiva de per se – se realize também por outros sujeitos, de modo que o conjunto de comportamentos culminará certamente lesionado o correspondente bem jurídico. São estes os chamados “delitos cumulativos (ou acumulativos)” (Kumulationsdoikte, accumulative harms), cuja relevância penal se pretende assentar na adoção de uma perpectiva aparentemente alheia ao modo de pensar penalista: What if everybody did it? O que ocorreria se todos fizessem o mesmo? Pois se trata de casos em que a conduta individualmente considerada não provoca um risco relevante (ou seja, harmless), enquanto, por outro lado, se admite que “general performance would be harmful” e que sua prática por uma pluralidade de pessoas não constitui simplesmente uma hipótese, senão uma realidade atual ou iminente.243

Vale registrar, ainda, sobre o mesmo tema, as lições de Wolfgang Wohlers:

Delitos de cumulação: Tratam-se de modalidades de comportamento que em si consideradas, de fato, não são capazes de conduzir à lesão ou ao menos à lesão em quantidade relevante de nenhum interesse

241 RAPOSO, Guilherme Guedes. Teoria do bem jurídico e estrutura do delito: uma reflexão sobre a legitimidade da antecipação da tutela penal como meio de proteção de bens jurídicos na sociedade contemporânea. Porto Alegre: Núria Fabris, 2011, p. 186. 242 Idem, p. 184. 243 SÁNCHEZ, Jesús-Maria Silva. A expansão do direito penal: Aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Série as ciências criminais no século XXI, Volume 11. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p.121.

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jurídico protegido, mas que em conjunto com outras modalidades de comportamento dirigidas no mesmo sentido podem, sim, conduzir a uma lesão. O âmbito especial de aplicação desse tipo de delito é a proteção de interesses supraindividuais (coletivos); nesse âmbito trata-se mesmo da forma típica fundamental dos tipos penais. Exemplos são, ao lado dos tipos penais que protegem o meio-ambiente (§324 e ss. StGB), aqueles tipos penais que visam a proteção de determinadas instituições estatais ou complexos funcionais ou sociais (...).244

Esta modalidade de crime abstrato importa sobremaneira para o presente

trabalho porque é bastante relevante para a tutela de bens coletivos, como o

meio ambiente e a ordem econômica. Na verdade, é justamente pela magnitude

dos bens jurídicos transindividuais, que eles “não podem ser afetados

significativamente por um único comportamento humano, mas apenas por um

conjunto de atos que, somados, serão materialmente capazes de afetá-los de

maneira relevante.”245

Essa espécie de criminalização está fundada no dever geral de

cooperação, segundo o qual todos os cidadãos devem agir de forma a manter

os interesses sociais relevantes, se abstendo de realizar atos que, repetidos por

outros, poderá prejudicar a sociedade.246 Concluindo o tema, Guilherme Guedes

afirma:

Assim, diante de determinados interesses de indiscutível relevância social que, em razão da sua magnitude, só possam ser afetados significativamente pela repetição de certos comportamentos, o Estado, com base no dever geral de cooperação e com o objetivo de outorgar-lhes uma proteção mais efetiva, pode, legitimamente, proibir a prática de tais condutas a fim de evitar a indesejada acumulação de ações. Trata-se de uma forma válida de regulação da vida em sociedade, que se insere no âmbito da missão constitucionalmente atribuída aos Estados modernos e que é perfeitamente compatível com os valores

consagrados na Carta Maior.247

A ideia dos delitos de acumulação já é conhecida por diversos

ordenamentos jurídicos, e foi especialmente desenvolvida atualmente por Lothar

Kuhlen, conforme bem explica Jesús-María Silva Sanchéz:

244 WOHLERS, Wolfgang. Teoria do bem jurídico e estrutura do delito. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 90, v. 19, 2011. 97-107 / RBCCRIM. 245 RAPOSO, Guilherme Guedes. Teoria do bem jurídico e estrutura do delito: uma reflexão sobre a legitimidade da antecipação da tutela penal como meio de proteção de bens jurídicos na sociedade contemporânea. Porto Alegre: Núria Fabris, 2011, p. 188. 246 Idem, p. 189. 247 Idem, p. 189-190.

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Essa concepção, relativamente conhecida nas diversas culturas jurídicas, foi desenvolvida ultimamente por Lothar Kuhlen, cuja fundamentação, mais além do concreto tipo penal do Código alemão sobre o qual se projeta, merece consideração. Com efeito, esse autor parte em sua análise do § 324 StGB (delito de contaminação de águas, Gewässerverunreinigung), de que se devem subsumir no tipo determinados atos concretos, ainda que eles, contemplados em si mesmos, não ponham em perigo nem sequer abstrato o bem jurídico protegido. Na medida em que a acumulação de tais atos concretos podem realmente produzir consequências lesivas, entende que se deve sustentar não somente sua tipicidade formal, senão a própria tipicidade material. Em qualquer caso, é importante, para a exata compreensão do seu ponto de vista, realçar que a concepção de Kuhlen – tal como manifestada em réplica às críticas dirigidas a sua opinião –, a acumulação não aparece como um elemento hipotético dos Kumulationsdoikte, senão um elemento real (isso é, considera-se de antemão com a realização atual ou iminente de fatos similares por uma múltipla variedade de sujeitos).248

Neste diapasão, vale ressaltar que essa forma de incriminação exige que o

legislador possa vislumbrar, de forma realista, aquelas condutas que, produzidas

por um significativo número de pessoas, possa gerar lesão ao bem jurídico

tutelado. Ou seja, para que tipificações penais dessa natureza sejam legítimas,

é imprescindível que três fatores sejam observados: (i) que os fatos proibidos

sejam, ainda que potencialmente e sob certas circunstâncias, aptos a causar

efetiva lesão para bem jurídico de elevada importância; (ii) que o legislador

presuma a ameaça lastrado em fatos empíricos e conhecimentos científicos, não

se admitindo, portanto, meras ilações; e (iii) que a criminalização da conduta e

consequente imposição de pena seja imprescindível para evitar a probabilidade

da lesão, ou seja, que não haja outros ramos do Direito aptos a impedir a ação

perniciosa.249

A obrigatoriedade da observação desses parâmetros justifica essa espécie

de delito à luz do princípio da lesividade, vez que a conduta ameaça o bem

jurídico tutelado, ainda que não quando praticada isoladamente. Ou seja, a

incriminação acaba por ser fundamental para a proteção do bem jurídico

248 SÁNCHEZ, Jesús-Maria Silva. A expansão do direito penal: Aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Série as ciências criminais no século XXI, Volume 11. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p.121-122. 249 RAPOSO, Guilherme Guedes. Teoria do bem jurídico e estrutura do delito: uma reflexão sobre a legitimidade da antecipação da tutela penal como meio de proteção de bens jurídicos na sociedade contemporânea. Porto Alegre: Núria Fabris, 2011, p. 191.

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considerado de grande importância para a sociedade. Justamente por isso

Guilherme Guedes Raposo afirma:

Já aquelas ações cuja produção do dano é irrisória, ainda que realizadas por um número incontável de pessoas, não poderão ser objeto de criminalização, da mesma forma que os comportamentos que possam ser coibidos eficazmente por meio de uma simples imposição de multa administrativa, pois nestas situações a imposição de uma pena representaria – em razão da ausência dos parâmetros materiais acima fixados – uma violação dos princípios da lesividade e da

proporcionalidade.250

3.3 Delitos de ação concretamente perigosa (ou de perigosidade concreta)

São chamados de delitos de ação concretamente perigosa ou de

perigosidade concreta aqueles cujas condutas tipificadas, por si só, são aptas a

causar um dano ou uma situação de perigo real ao bem jurídico, não sendo,

entretanto, exigível que ocorra a lesão ou o perigo concreto de lesão ao bem

jurídico tutelado para que o crime seja consumado. A respeito, vale transcrever

as palavras de Wolfgang Wohlers:

Delitos de conduta concretamente perigosa: Tratam-se de modalidades de comportamentos cuja perigosidade reside no fato de que elas conduzem a situações que não podem mais ser controladas pelo autor e que – quando apenas um objeto da ação estiver no raio de alcance do autor – por si só podem ter como consequência um perigo concreto e mesmo uma lesão. Exemplos do direito positivo alemão são a embriaguez na direção sem consequências posteriores (§ 316, StGB) e o incêndio qualificado (§ 306a, I, StGB).251

Na atualidade, contudo, conforme já explicado neste trabalho, a produção

de riscos é algo inerente a vida em sociedade. Por essa razão, para que a

conduta seja considerada potencialmente perigosa a ponto de merecer a

proteção do Direito Penal, precisa possuir três características essenciais, quais

sejam:

250 RAPOSO, Guilherme Guedes. Teoria do bem jurídico e estrutura do delito: uma reflexão sobre a legitimidade da antecipação da tutela penal como meio de proteção de bens jurídicos na sociedade contemporânea. Porto Alegre: Núria Fabris, 2011, p. 193. 251 WOHLERS, Wolfgang. Teoria do bem jurídico e estrutura do delito. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 90, v. 19, 2011. 97-107 / RBCCRIM.

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(i) criação de um risco de dano relevante ao bem jurídico tutelado e superior

ao que ordinariamente é tolerado pelos cidadãos, “gerando uma situação de tal

forma perigosa que os benefícios por ela produzidos se tornem secundários

diante da forte probabilidade da lesão a certos interesses.”252 Evidentemente,

essa avaliação deve ser realizada com base em dados empíricos e científicos.

(ii) exige-se também que a conduta proibida “esteja relacionada

diretamente à proteção de bens jurídicos de relevância fundamental para o

indivíduo e para a sociedade – tais como o meio ambiente, a vida ou o patrimônio

das pessoas -, não sendo possível que ela se destine apenas a facilitar o

cumprimento de uma função administrativa do Estado.”253

(iii) para a incriminação dessas condutas é necessário, ainda, que os riscos

por ela criados “a bens essenciais não possam ser mantidos sob o controle do

agente de forma suficientemente segura nem possam ser devidamente

compensados por terceiros. Em outras palavras, nesta espécie de delito, é

fundamental que o agente, com sua conduta, crie uma situação incontrolável de

forma que a ocorrência ou não de uma lesão grave a um bem fundamental

escape integralmente de seu domínio.”254

Ou seja, para que o tipo aqui tratado seja perpetrado, basta que a conduta

cometida tenha a aptidão de lesar gravemente um bem jurídico fundamental e

fuja ao controle do autor da ação, independendo de efetiva lesão ou exposição

do bem a um perigo concreto.255256

252 RAPOSO, Guilherme Guedes. Teoria do bem jurídico e estrutura do delito: uma reflexão sobre a legitimidade da antecipação da tutela penal como meio de proteção de bens jurídicos na sociedade contemporânea. Porto Alegre: Núria Fabris, 2011, p. 194. 253 Idem, p. 195. 254 Idem, p. 196. 255 Ibidem. 256 Guilherme Guedes, nessa mesma obra, cita como exemplo de crime dessa natureza a gestão fraudulenta, capitulada no art. 4º, caput e parágrafo único da Lei 7.492/86, justificando que “em ambos os casos, a conduta praticada cria um risco de quebra da instituição financeira – e, portanto, de lesão ao patrimônio de todos os investidores – acima do risco tolerado pelas regras de mercado e a ocorrência ou não do dano escapa do domínio do responsável pela administração da instituição financeira.”

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CAPÍTULO III – ORDEM ECONÔMICA COMO BEM JURÍDICO-PENAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

1 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

A Doutrina constitucionalista explica que a palavra país é usada para

designar o território no qual habita determinada população. O sentido de Estado,

por sua vez, é bem mais amplo e está ligado à ideia de ordenação e poder, como

bem explica José Afonso da Silva:

Estado é, na justa definição de Balladore Pallieri, uma ordenação que tem por fim específico e essencial a regulamentação global das relações sociais entre os membros de uma dada população sobre um dado território, na qual a palavra ordenação expressa a ideia de poder soberano, institucionalizado.257

A expressão Estado de Direito surgiu com o Liberalismo e,

consequentemente, bastante ligada a essa concepção. O Estado Liberal de

Direito, como foi chamado incialmente, possuía, como características basilares

(que até hoje perduram como tais no Estado de Direito), as seguintes: (i)

submissão à lei, esta considerada como “ato emanado formalmente do Poder

Legislativo, composto de representantes do povo, mas do povo-cidadão”258; (ii)

separação dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, independentes entre

si, “como técnica que assegure a produção das leis ao primeiro e a

independência e imparcialidade do último em face dos demais e das pressões

dos poderosos particulares”259; (iii) “enunciado e garantia dos direitos

individuais”260.

Como bem se vê, o Estado de Direito tem como objetivo limitar e controlar

poderes para garantir direitos fundamentais a todos os cidadãos. Conforme visto

na primeira parte deste trabalho, a preocupação com os direitos dos cidadãos

surgiu como reação aos abusos cometidos pelo Estado nas épocas precedentes.

257 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 27. ed. São Paulo: Malheiros Editora, 2006, p. 97-98. 258 Idem, p. 113. 259 Ibidem. 260 Ibidem.

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Com efeito, a submissão aos ditames da lei, que deve ser igualmente

aplicada a todos os cidadãos, independentemente de posição social, hierárquica

e econômica; a separação dos Poderes, de forma que cada um deles seja

harmônico e independente dos demais, possibilitando um controle recíproco; e

a garantia especial a alguns direitos considerados fundamentais, reflete bem o

interesse em um Estado mais igualitário, sem tratamentos preferenciais a

ninguém.

Ocorre, entretanto, que, conforme também explicado na primeira parte

deste estudo, os princípios do Estado Liberal e a igualdade por ele propagada,

quando aplicados à desigualdade que existia de fato, eram geradores de

imensas injustiças, razão pela qual houve a necessidade de reestruturação de

conceitos.

A evolução das modalidades de Estado já foi abordada no Primeiro

Capítulo desta dissertação, portanto nos limitaremos aqui a tratar do Estado

Democrático, para melhor compreensão do termo Estado Democrático de

Direito. Vale, para tanto, transcrever as lições de José Afonso da Silva:

Este (Estado Democrático) se funda no princípio da soberania popular, que “impõe a participação efetiva e operante do povo na coisa pública, participação que não se exaure, como veremos, na simples formação das instituições representativas, que constituem um estágio da evolução do Estado Democrático, mas não o seu completo desenvolvimento”. Visa, assim, a realizar o princípio democrático como garantia geral dos direitos fundamentais da pessoa humana. Nesse sentido, na verdade, contrapõe-se ao Estado Liberal, pois, como lembra Paulo Bonavides, “a ideia essencial do liberalismo não é a presença do elemento popular na formação da vontade estatal, nem tampouco a teoria igualitária de que todos têm direito igual a essa participação ou que a liberdade é formalmente esse direito”.261

O Estado Democrático de Direito, como bem explica José Afonso da

Silva, não é a mera junção do Estado Democrático com o Estado de Direito. Ele

consiste em um conceito novo e independente dos demais, mesmo tendo com

eles uma ligação próxima. A respeito, vale transcrever a explicação do autor

261 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 27. ed. São Paulo: Malheiros Editora, 2006, p. 117.

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sobre os elementos fundamentais desse conceito, com menções aos artigos da

Constituição de 1988 que o preveem:

A democracia que o Estado Democrático de Direito realiza há de ser um processo de convivência social numa sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I), em que o poder emana do povo, e deve ser exercido em proveito do povo, diretamente ou por representantes eleitos (art. 1º, parágrafo único); participativa, porque envolve a participação crescente do povo no processo decisório e na formação dos atos de governo; pluralista, porque respeita a pluralidade de ideias, culturas e etnias e pressupõe assim o diálogo entre opiniões e pensamentos divergentes e a possibilidade de convivência de formas de organização e interesses diferentes da sociedade; há de ser um processo de liberação da pessoa humana das formas de opressão que não depende apenas do reconhecimento formal de certos direitos individuais, políticos e sociais, mas especialmente da vigência de condições econômicas suscetíveis de favorecer o seu pleno exercício.262

José Afonso da Silva explica, ainda, que o Princípio da Legalidade é basilar

no Estado Democrático de Direito, tendo em vista que “é da essência do seu

conceito subordinar-se à Constituição e fundar-se na legalidade democrática”263.

Trata-se, portanto, de um Estado subordinado à lei, “mas da lei que realize o

princípio da igualdade e da justiça não pela sua generalidade, mas pela busca

da igualização das condições dos socialmente desiguais”.264

O que se nota, portanto, é que em um Estado Democrático de Direito, mais

do que apenas o cumprimento da lei, importa o sentido e relevância da norma a

ser criada e obedecida, tendo em vista que é por meio das leis que essa

modalidade de Estado pode transformar a realidade social de forma a atingir os

objetivos que lhe são característicos. A respeito, José Afonso da Silva leciona:

É precisamente no Estado Democrático de Direito que se ressalta a relevância da lei, pois ele não pode ficar limitado a um conceito de lei, como o que imperou no Estado de Direito clássico. Pois ele tem que estar em condições de realizar, mediante lei, intervenções que impliquem diretamente uma alteração na situação da comunidade. Significa dizer: a lei não deve ficar numa esfera puramente normativa, não pode ser apenas lei de arbitragem, pois precisa influir na realidade social. E se a Constituição se abre para as transformações políticas, econômicas e sociais que a sociedade brasileira requer, a lei se elevará de importância, na medida em que, sendo fundamental expressão do

262 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 27. ed. São Paulo: Malheiros Editora, 2006, p. 121. 263 Ibidem. 264 Ibidem.

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direito positivo, caracteriza-se como desdobramento necessário do conteúdo da Constituição e aí exerce função transformadora da sociedade, impondo mudanças sociais democráticas, ainda que possa continuar a desempenhar uma função conservadora, garantindo a sobrevivência de valores socialmente aceitos.265

Fica claro, portanto, que em um Estado Democrático de Direito, a lei é o

meio utilizado para cumprir objetivos, como a busca do bem estar social, a

igualdade material (de fato) entre os cidadãos (ou, ao menos, a redução da

desigualdade), a formação de uma sociedade justa, a preservação dos direitos

fundamentais, dentre outros. Nesse mesmo sentido, Milton Fornazari Junior,

citando Luiz Luisi, explica:

Na precisa lição de Luiz Luisi, “ao incorporar os princípios do Estado liberal e do Estado social, e ao conciliá-los, as Constituições modernas, renovam de um lado, as garantias individuais, mas por outro lado introduzem uma série de normas destinadas a tornar concretas, ou seja, ‘reais’, a liberdade e a igualdade dos cidadãos, tutelando valores de interesse geral como os pertinentes ao trabalho, a saúde, a assistência social, a atividade econômica, o meio ambiente, a educação, a cultura etc”.266

É fundamental, também, que a lei seja adequada ao momento social em

que vigora, para que possa, de forma eficaz, servir como meio para que o Estado

transforme a realidade, de forma a adequá-la aos seus objetivos e princípios,

inerentes à forma democrática incorporada.

O Direito Penal, portanto, como os demais ramos do ordenamento, deve

ser composto por um conjunto de normas jurídicas que sirva ao Estado

Democrático de Direito como instrumento para a realização de seus objetivos.

Diante disso, se, por um lado, as normas desse ramo do ordenamento devem

ser cuidadosamente redigidas, para que não permitam a violação de nenhum

direito fundamental do investigado ou acusado, por outro, devem ser

suficientemente eficazes para impedir condutas contrárias às finalidades

265 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 27. ed. São Paulo: Malheiros Editora, 2006, p. 121-122. 266 FORNAZARI JUNIOR, Milton. Aplicação dos princípios constitucionais aos crimes econômicos. Revista Criminal: ensaios sobre a atividade policial. n. 2, v. 2, 2008. 119-

140.

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pretendidas. É nesse contexto que deve ser pensado o Direito Penal Econômico

na atualidade, conforme será demonstrado a seguir.

2 DIREITO PENAL ECONÔMICO NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Seguindo a ideia de que a lei, em um Estado Democrático de Direito, deve

exercer uma função transformadora da realidade, a Constituição Federal de

1988 previu em seu bojo “princípios que expressam os direitos e as garantias

individuais e os princípios de proteção de valores supraindividuais e da justiça

social”267, sendo certo que tais princípios “convivem e devem conviver em

harmonia”.268

No que tange especificamente ao Direito Penal, parte da doutrina defende

a existência de duas espécies de princípio constitucionais regentes da matéria:

(i) os princípios de direito penal constitucional, que tratam exclusivamente de

matéria penal e consagram direitos e garantias individuais, como princípio da

legalidade dos crimes e das penas e princípio da intervenção mínima do Direito

Penal, e (ii) os princípios constitucionais influentes em matéria penal, que

concedem ao Estado o uso do Direito Penal para tutelar bens considerados

essenciais para a sociedade, como a ordem econômica e o meio ambiente.269 A

respeito desses últimos, vale transcrever:

Os princípios influentes em matéria penal não têm conteúdo tipicamente penal. Dispõem sobre o conteúdo das incriminações. São eles que dão ao Direito Penal a função de ser mais um instrumento do Estado na tutela de bens de relevância social. Consistem, em geral, como fonte e vínculo ao legislador infraconstitucional, no sentido de orientar a elaboração de normas penais incriminadoras destinadas à proteção dos valores constitucionais supraindividuais.270

Fornazari Junior, após expor o significado dessas modalidades de

princípios, conclui o seu raciocínio afirmando que eles são “os fundamentos do

267 FORNAZARI JUNIOR, Milton. Aplicação dos princípios constitucionais aos crimes econômicos. Revista Criminal: ensaios sobre a atividade policial. n. 2, v. 2, 2008. 119-140. 268 Idem. 269 Idem. 270 Idem.

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direito de punir do estado e, também, elevam o Direito Penal à nobre missão de

ser um instrumento para a consecução de uma sociedade mais justa, que atenda

plenamente as diretrizes constitucionais”271.

Nesse diapasão, e retomando o que já foi exposto ao longo do trabalho, é

certo que o Direito Penal Econômico, como parte do Ordenamento Jurídico

vigente, deve ser adequado e suficiente para auxiliar na consecução dos fins

almejados pelo Estado brasileiro, de acordo com os seus valores

constitucionalmente previstos.

Isso significa, portanto, que ele deverá, por um lado, não ser expandido

exageradamente, para que não desrespeite os direitos fundamentais e não

atrapalhe os objetivos da Ordem Econômica, e, por outro, não ser limitado em

demasia, para não se tornar insuficiente ou ineficiente à proteção do importante

bem jurídico transindividual Ordem Econômica – visto que, também dessa forma,

se pode obstar o atingimento dos fins almejados pelo Estado brasileiro no setor

econômico, os direitos fundamentais e, de forma transversa, também os direitos

individuais. Nesse sentido, Lênio Streck leciona:

Nesse (novo) contexto, a teoria do bem jurídico, que sustenta a ideia de tipos penais no direito penal, igualmente passa a depender da materialidade da Constituição. Não pode restar qualquer dúvida no sentido de que o bem jurídico tem estrita relação com a materialidade constitucional, representado pelos preceitos e princípios que encerra, a noção de Estado Democrático e Social de Direito. Não há dúvida, pois, que as baterias do direito penal do Estado Democrático de Direito devem ser direcionadas para o combate dos crimes que impedem a concretização dos direitos fundamentais nas suas diversas dimensões.272

Dessa ideia surge o denominado Princípio da Vedação à Proteção

Deficiente, que decorre do Princípio da Proporcionalidade e considera que a

proteção da dignidade da pessoa humana, tão valorizada pelo Estado

Democrático de Direito, depende para sua efetividade não apenas do respeito

271 FORNAZARI JUNIOR, Milton. Aplicação dos princípios constitucionais aos crimes econômicos. Revista Criminal: ensaios sobre a atividade policial. n. 2, v. 2, 2008. 119-140. 272 STRECK, Lenio Luiz. Bem jurídico e constituição: da proibição de excesso à proibição de proteção deficiente ou de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais. Boletim da Faculdade de Direito. v. 80, 2004. 303-345, p. 311.

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aos direitos fundamentais daqueles que praticam condutas incriminadas, mas

também da efetiva proteção às vítimas e à sociedade em geral. A respeito,

explica Rogério Greco:

A outra vertente do princípio da proporcionalidade diz respeito à proibição de proteção deficiente. Quer isso dizer que, se por um lado, não se admite o excesso, por outro, não se admite que um direito fundamental seja deficientemente, seja mediante a eliminação de figuras típicas, seja pela cominação de penas que ficam aquém da importância exigida pelo bem que se quer proteger, seja pela aplicação de institutos que beneficiam indevidamente o agente etc.273

Ao defender esse Princípio, Lênio Streck274 aclara que o Estado também

frustra o seu dever de proteção à sociedade, quando deixa de resguardar de

forma adequada determinado bem jurídico. No que tange ao presente trabalho,

por todo o histórico desenvolvido, fica bastante claro quão nefastas podem ser

aos cidadãos as consequências de uma proteção inadequada à Ordem

Econômica.

Com efeito, desemprego em massa, crises econômicas e até mesmo

ambientes propícios para que ascendam ao poder governos totalitários são

apenas alguns exemplos das trágicas implicações da inadequada tutela ao bem

jurídico transindividual ora em análise na sociedade de risco em que vivemos

atualmente, o que, sem sombra de dúvida, torna mais do que justificada a

necessidade de flexibilizar o Direito Penal tradicional, para adequá-lo às

necessidades atuais.

Justamente por esta razão, nos parecem inadequadas ao Estado

Democrático de Direito atual as ideias muito apegadas às concepções do

liberalismo clássico. Para melhor explicar tal afirmação, vale transcrever a

exposição que Lênio Streck faz sobre o assunto:

O que tem ocorrido de concreto nesse aspecto e dado margem ao aquecimento do debate entre penalistas de apego exacerbado ao liberalismo e os que buscam a guarida penal de bens supra-individuais,

273 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 14. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2012, p. 77-78. 274STRECK, Lenio Luiz. Bem jurídico e constituição: da proibição de excesso à proibição de proteção deficiente ou de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais. Boletim da Faculdade de Direito. v. 80, 2004. 303-345.

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é que estes buscam introjetar na concepção de bem jurídico penal a idéia de que uma série de valores constitucionais de feição coletiva necessitam de proteção penal, enquanto aqueles (apegados às concepções do liberalismo clássico), resistem a tanto, obstaculizando a extensão da função de proteção penal aos bens de interesse da comunidade, sob o argumento de que tal concepção implicaria uma “indesejada ampliação das barreiras do direito penal”. De certo modo, continuam a pensar o direito a partir da idéia segundo a qual haveria uma contradição insolúvel entre Estado e Sociedade ou entre Estado e indivíduo.275

Ora, por tudo o que foi exposto no presente trabalho, nos parece claro que

manter o Direito Penal dentro das barreiras que lhe foram estabelecidas pelo

liberalismo clássico, em um período histórico no qual a realidade e as

necessidades sociais eram substancialmente diversas das que se observa

atualmente, privaria o Estado Democrático de Direito de um poderoso

instrumento para a consecução de seus objetivos e proteção de seus princípios.

Em outras palavras, o papel que o Direito e o Estado assumem no Estado

Democrático de Direito exige que o Direito Penal nele vigente seja analisado

também a partir de um garantismo positivo, conforme explica Lênio Streck:

Aliás, parcela expressiva do segmento que abriga os penalistas brasileiros de orientação crítica fazem essa leitura do garantismo tão-somente pelo viés negativo. Com efeito, a partir do papel assumido pelo Estado e pelo direito no Estado Democrático de Direito, o direito penal deve (sempre) ser examinado também a partir de um garantismo positivo, isto é, devemos nos indagar acerca do dever de proteção de determinados bens fundamentais através do direito penal. Isso significa dizer que, quando o legislador não realiza essa proteção via direito penal, é cabível a utilização da cláusula da “proibição da proteção deficiente”(...).276

A conjuntura da realidade vigorante na sociedade de risco, que abarca além

de novas necessidades, novos temores, novos riscos e novas formas de

criminalidade, exige que o Direito Penal seja reanalisado, para que não se torne

obsoleto e inapto a participar dos regramentos relevantes à sociedade atual. A

respeito, imprescindível registrar:

275 STRECK, Lenio Luiz. Bem jurídico e constituição: da proibição de excesso à proibição de proteção deficiente ou de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais. Boletim da Faculdade de Direito. v. 80, 2004. 303-345, p. 309. 276 Idem, p. 340.

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XI. Numa palavra: analisar o direito penal sob a ótica do Estado Democrático de Direito e do constitucionalismo que o engendrou implica, necessariamente, levar em conta as mudanças paradigmáticas ocorridas no campo do Estado e do direito. Consequentemente, torna-se necessário romper com a idéia de que há uma contradição insolúvel entre Estado e Sociedade ou entre Estado e Indivíduo. XII. É nesse ponto que reside a fragilidade das teses que não admitem a extensão da função de proteção penal aos bens de interesse da comunidade (bens transindividuais), sob o argumento de que tal concepção implicaria uma “indesejada antecipação das barreiras do direito penal”. Por isto é que tenho insistido na tese de que o Estado – na feição transformadora que assumiu nessa quadra da história – não é necessariamente mau, opressor. Neste contexto, o direito penal não tem somente a função de “proteger” o indivíduo da opressão desse mau “Leviatã”. Também deve ter a função de proteger os direitos fundamentais, devendo, para tanto, por vezes, lançar mão do direito penal para efetivar essa proteção.277

Ressalte-se, entretanto, que (conforme mencionado acima) o dever de

proteger os direitos individuais contra o poder punitivo estatal remanesce como

algo fundamental a um Estado Democrático de Direito. Ou seja, a proteção aos

bens jurídicos transindividuais e a necessária adequação do Direito Penal à

realidade e necessidades atuais não podem violar os direitos individuais,

extremamente caros à sociedade. Para possibilitar essa convivência

equilibrada, devem ser observados os princípios constitucionais de Direito Penal,

como explica Ariella Toyama Shiraki:

Se, por um lado, a modernidade cunhou novos bens jurídicos dotados de dignidade penal a reclamar uma tutela diferenciada, por outro, não menos verdadeira é a afirmação de que uma nova forma de criminalização há de observar princípios constitucionais imanentes a um Estado Democrático de Direito, sob pena de ilegitimidade das imputações.278

Não se pode olvidar, contudo, que para não inviabilizar a efetiva tutela do

Direito Penal, pelas próprias características dos bens jurídicos transindividuais –

e, em especial a Ordem Econômica –, pode haver peculiaridades na incidência

de alguns princípios constitucionais, quando aplicados a esses temas

277 STRECK, Lenio Luiz. Bem jurídico e constituição: da proibição de excesso à proibição de proteção deficiente ou de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais. Boletim da Faculdade de Direito. v. 80, 2004. 303-345, p. 342. 278 SHIRAKI, Ariella Toyama. A legitimidade do direito penal econômico como direito penal de perigo. Uma análise à luz dos princípios da lesividade e da intervenção mínima. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 83, v. 18, 2010. 7-52 / RBCCRIM, p. 13.

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especificamente. O assunto será explorado a seguir, com o uso de exemplos

práticos.

3 PRINCÍPIO DA TAXATIVIDADE

No Estado Democrático de Direito, o denominado Princípio da Dignidade

da Pessoa Humana deve nortear todo o ordenamento jurídico, influindo inclusive

na aplicação dos demais princípios. A própria Teoria do Bem Jurídico está

estritamente vinculada à dignidade da pessoa humana, como bem explica

Pierpaolo Bottini:

O direito penal funcional de um Estado Democrático de Direito tem por missão, em primeiro lugar, proteger a dignidade humana, consubstanciada na tutela de bens e interesses essenciais para sua materialização. Sua legitimidade e seus limites decorrem da atividade de garantir a existência segura de bens jurídicos. Logo, o conceito de bem jurídico está atrelado ao conceito de dignidade humana, ou seja, bem jurídico será todo elemento indispensável ao livre desenvolvimento do indivíduo dentro de um sistema social orientado para a autodeterminação, para a garantia da pluralidade e da liberdade democrática.279

Uma das importantes conquistas para assegurar a dignidade da pessoa

humana foi a exigência de lei para a incriminação de qualquer cidadão, hoje

consignada no Princípio da Legalidade, que estabelece, para o seu atendimento,

o cumprimento de três requisitos: (i) que a lei seja taxativa, ou seja, que seja

clara qual a conduta proibida, não se admitindo termos vagos ou indeterminados;

(ii) que a lei seja prévia à conduta incriminada; e (iii) que os crimes apenas sejam

criados por meio de lei formal e escrita.280

Nos ateremos aqui ao primeiro dos requisitos mencionados – que

consubstancia o Princípio da Taxatividade –, por ser ele o que traz maiores

discussões na tutela penal da Ordem Econômica, em razão do uso relativamente

comum de normas penais em branco para esse fim, como ocorre com o art. 7º,

279 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 177-178. 280 FORNAZARI JUNIOR, Milton. Aplicação dos princípios constitucionais aos crimes econômicos. Revista Criminal: ensaios sobre a atividade policial. n. 2, v. 2, 2008.

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inciso II281, da Lei nº 8.137/1990 (crimes econômicos), e art.10282 e 22283, da Lei

nº 7.492/86 (crimes contra o sistema financeiro)284.

3.1 Normas penais em branco

Normas penais em branco (também denominadas de primariamente

remetidas) são aquelas que necessitam de complementação para ter seu

preceito primário compreendido, ou seja, “embora haja uma descrição da

conduta proibida, essa descrição requer, obrigatoriamente, um complemento

extraído de um outro diploma – leis, decretos, regulamentos etc. – para que

possam, efetivamente, ser entendidos os limites da proibição ou imposição feitos

pela lei penal, uma vez que, sem esse complemento, torna-se impossível sua

aplicação.”285

A doutrina divide as normas penais em (i) normas penais em branco

homogêneas (em sentido amplo ou homólogas): aquelas cujo complemento é

oriundo da mesma fonte legislativa que as editou (Congresso Nacional), ou seja,

são complementadas por lei; e (ii) normas penais em branco heterogêneas (em

sentido estrito ou heterólogas): aquelas que possuem complemento oriundo de

fonte diversa daquela que a editou, como portarias, regulamentos etc.286

Diante dessa classificação, alguns doutrinadores, como Rogério Greco287,

defendem que a norma penal em branco heterogênea, por não ter seu

281 Lei nº 8.137/1990. Art. 7° Constitui crime contra as relações de consumo: II - vender ou expor à venda mercadoria cuja embalagem, tipo, especificação, peso ou composição esteja em desacordo com as prescrições legais, ou que não corresponda à respectiva classificação oficial; 282 Lei nº 7.492/86. Art. 10. Fazer inserir elemento falso ou omitir elemento exigido pela legislação, em demonstrativos contábeis de instituição financeira, seguradora ou instituição integrante do sistema de distribuição de títulos de valores mobiliários: 283 Lei nº 7.492/86. Art. 22. Efetuar operação de câmbio não autorizada, com o fim de promover evasão de divisas do País: 284FORNAZARI JUNIOR, Milton. Aplicação dos princípios constitucionais aos crimes econômicos. Revista Criminal: ensaios sobre a atividade policial. n. 2, v. 2, 2008, p. 128-129. 285 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 14. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2012, p. 20. 286 Ibidem. 287 Rogério Greco registra que Nilo Batista, Zaffaroni, Alagia e Slokar adotam posição no mesmo sentido.

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complemento advindo de lei em sentido estrito, ofenderia o Princípio da

Legalidade.288

Esse mesmo autor, entretanto, registra que prevalece a “posição

doutrinária que entende não haver ofensa ao princípio da legalidade quando a

norma penal em branco prevê aquilo que se denomina núcleo essencial da

conduta.”289 A respeito, vale registrar:

A técnica das leis penais em branco pode ser indesejável, mas não se pode ignorar que é absolutamente necessária em nossos dias. A amplitude das regulamentações jurídicas que dizem respeito sobre as mais diversas matérias, sobre as que pode e deve pronunciar-se o Direito Penal, impossibilita manter o grau de exigência de legalidade que se podia contemplar no século passado ou inclusive a princípio do presente. Hoje, cabe dizer que desgraçada mas necessariamente, temos de nos conformar com que a lei contemple o núcleo essencial da conduta.290

Importante notar que, no trecho supra transcrito, o autor reitera o que temos

defendido no presente trabalho, no sentido de ser necessária a flexibilização do

Direito Penal para a sua adequação à realidade atualmente vigente.

No que tange às normas penais em branco heterogêneas, concordamos

com a posição prevalente, principalmente em relação aos crimes econômicos.

Com efeito, havendo o núcleo essencial da conduta, a exigência de que o

complemento normativo se desse apenas por meio de lei apenas obstaria a

tutela adequada ao bem jurídico, tendo em vista que, em razão da natureza

mutável das necessidades desse setor, seria necessária “uma revisão frequente

das ações proibidas ou ordenadas, tornando ineficaz a tutela penal”291, conforme

leciona Milton Fornazari Junior:

Assim, entendemos compatíveis com o princípio da legalidade o uso das normas penais em branco, tanto nos delitos comuns como nos econômicos (a fortiori), desde que estabelecidos os seguintes requisitos: a) que a remissão esteja justificada em razão do bem jurídico protegido pela norma penal; b) que a norma já preveja a sanção

288 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 14. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2012. 289 Idem, p. 24. 290 MATEU, Juan Carlos Carbonell. Derecho penal: concepto y princípios constitucionales, p. 124. In: GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 14. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2012. p. 25. 291 FORNAZARI JUNIOR, Milton. Aplicação dos princípios constitucionais aos crimes econômicos. Revista Criminal: ensaios sobre a atividade policial. n. 2, v. 2, 2008, p. 129.

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penal no seu preceito secundário; e c) que o preceito primário contenha o “núcleo essencial da proibição”.292

Considerando a importância da eficaz tutela penal da Ordem Econômica

para a garantia de diversos direitos e princípios fundamentais, nos parece mais

consentânea com o Estado Democrático de Direito a aceitação do uso das

normas penais em branco, desde que respeitadas as condições acima

mencionadas.

3.2 Tipo penal aberto e a gestão temerária

O tipo penal fechado é aquele que descreve de forma completa, clara e

precisa, a conduta proibida pela lei penal293. O tipo penal aberto, por sua vez, é

aquele que não possui uma descrição tão precisa, normalmente por

impossibilidade de se prever exatamente as formas de perpetração do injusto,

conforme explica Rogério Greco:

Contudo, em determinadas situações, o legislador, por impossibilidade de prever e descrever todas as condutas possíveis de acontecer em sociedade, criou os chamados tipos abertos, nos quais não há descrição completa e precisa do modelo de conduta proibida ou imposta. Nesses casos, faz-se necessária sua complementação pelo intérprete.294

Para alguns estudiosos, entretanto, tipos penais demasiadamente

inobjetivos no que tange à descrição da conduta proibida violaria o Princípio da

Taxatividade, reduzindo a garantia dos direitos individuais frente o poder punitivo

estatal. Para uma eficaz garantia de tais direitos, segundo tal corrente, é preciso

que “o tipo penal esteja bem construído, de modo a enunciar com clareza as

características essenciais da conduta proibida, tornando-a inconfundível com

outras. E é justamente essa clareza que exige o princípio da taxatividade ou da

determinação, também conhecido como mandato de certeza.”295

292 FORNAZARI JUNIOR, Milton. Aplicação dos princípios constitucionais aos crimes econômicos. Revista Criminal: ensaios sobre a atividade policial. n. 2, v. 2, 2008, p. 130. 293 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 14. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2012, p.166. 294 Ibidem. 295 MACHADO, Fernando Buzzá. O Princípio da Legalidade e os Crimes de Gestão Fraudulenta e Gestão Temerária de Instituição Financeira.

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Dentre os crimes econômicos, o denominado crime de gestão temerária,

tipificados no art. 4º, parágrafo único, da Lei nº 7.492/86, é um célebre exemplo

de tipo penal aberto, que tem sua constitucionalidade seriamente questionada,

por ser considerado impreciso demais. Tal norma prescreve:

Art. 4º Gerir fraudulentamente instituição financeira: Pena - Reclusão, de 3 (três) a 12 (doze) anos, e multa. Parágrafo único. Se a gestão é temerária: Pena - Reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa.

O caput do art. 4º, acima transcrito, diz respeito ao chamado crime de

gestão fraudulenta. Tal delito não suscita tantas discussões como o crime de

gestão temerária, em razão do termo fraudulentamente nele contido ser mais

preciso na determinação da conduta punível (utilização de fraude para obter

vantagem ilícita) do que a expressão gestão temerária, entendida como aquela

afoita e mais arriscada do que recomendaria a prudência.296

Com efeito, a imprecisão e subjetividade da expressão temerária297

acabam por deixar ao arbítrio do julgador a decisão acerca da licitude da conduta

lesiva à instituição financeira. Isto, por sua vez, acarreta uma significativa

insegurança jurídica, já que a mesma conduta, dependendo do julgador que a

analise, pode ou não ser considerada criminosa. A respeito, vale registrar:

De modo geral, os tribunais tratam de forma superficial a caracterização do crime de gestão temerária, lançando mão, de forma casuística, de truísmos que se perpetuam – “risco além do permitido”, “comportamento afoito”, entre outros. Mesmo partindo do pressuposto de que “temerário” constitui elemento normativo e – como os demais que permeiam o direito penal – poderia ser integrado pela doutrina e pela jurisprudência, a complexidade do tema emperra sua caracterização. Deste modo, a condenação e a absolvição de gestores denunciados a teor do disposto no parágrafo único do artigo 4º da Lei

http://www.femparpr.org.br/monografias/upload_monografias/FERNANDO%20BUZZA%20MACHADO.pdf 296 SANTOS, Polianna Pereira dos. Um estudo sobre o crime de gestão temerária à luz do princípio da legalidade estrita. Artigo digital portal IBCCRIM. Nº de chamada: 16. p. 2011 D16. 297 Temerário é definido no dicionário Aurélio como: 1. Arriscado, imprudente, perigoso. 2. Arrojado, audacioso, atrevido; precipitado. Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua portuguesa/ Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. 3. Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 1939.

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nº. 7.492, de 1985, oscilará à maneira dos entendimentos dos tribunais, em cada caso. 298

Assim, considerando que o Princípio da Taxatividade visa a garantir que o

Estado explicite, por lei, as condutas criminosas, evitando, assim, que o cidadão

possa ser punido por algo que a lei não proíba – o que violaria, inclusive, a

garantia fundamental, capitulada no art. 5º, inc. XXXIX299, da Constituição

Federal –, são muitos os que defendem a inconstitucionalidade do art. 4º,

parágrafo único, da Lei nº 7.492/86.

Nos parece correta essa posição, porquanto, conforme já defendido, a

garantia aos direitos individuais é algo fundamental para o Estado Democrático

de Direito. Outrossim, conforme leciona Luciano Feldens, “se, por um lado,

estamos todos conformes acerca da necessidade de proteção jurídico-penal ao

sistema financeiro nacional, em ordem a coibir condutas que exponham a risco

ou prejuízo efetivo a coletividade - sua destinatária por definição constitucional

(art. 192 da CF/1988) -, por outro, é preciso que tenhamos claro: essas

‘imprecisões’ do tipo não servem a ninguém”300. Vale registrar as explicações

desse autor:

A imprecisão leva à imprevisão. E a imprevisibilidade sobre o universo de condutas abarcado pelo tipo coloca em xeque a garantia de conhecer previamente a conduta incriminável. Um vício que se transporta ao processo decisório, uma vez que toda a carga de imprecisão na lei é transferida ao juiz sob a forma de poder interpretativo; um poder que, exercido sob tais circunstâncias traduz-se em arbítrio judicial. Sabido que algum grau de imprecisão legislativa é inevitável, a questão é reduzi-los aos limites do tolerável, de sorte a impedir manipulação discriminatória do sistema jurídico-penal. Um sistema que não pode barganhar – ou, pelo menos, não pode barganhar legitimamente – um

298 SANTOS, Polianna Pereira dos. Um estudo sobre o crime de gestão temerária à luz do princípio da legalidade estrita. Artigo digital portal IBCCRIM. Nº de chamada: 16. p. 2011 D16. 299 Art. 5º, CF XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal. 300 FELDENS, Luciano. A estrutura material dos delitos de gestão fraudulenta e temerária de instituição financeira. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 86, v. 18, 2010. 170-200 /

RBCCRIM, p. 172.

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superávit de eficiência à custa da relativização de garantias fundamentais.301

Esse mesmo autor, diante dessas considerações defende que “a única

maneira de salvar o delito passaria por compreender que a ilicitude penal está,

no caso, estritamente vinculada às diretrizes fixadas pela autoridade

administrativa no gerenciamento do potencial de risco admitido na gestão de

uma instituição financeira.”302 Vale registrar:

Haveremos, assim, de vislumbrar a elementar temerária como um elemento normativo, para cuja adjudicação de sentido se faz necessário o recurso ao marco regulatório específico, sobretudo, porque traduz uma valoração negativa de conduta que, antes de pertencer ao mundo do Direito, assenta-se como tal no âmbito do mercado financeiro. Não se trata, pois, de um juízo que se possa fazer sem a mediação ou, pelo menos, sem o auxílio das diretrizes administrativas (econômico-financeiras) que visam a limitar o risco das diversas operações realizadas no âmbito das instituições financeiras.303

Dentre os exemplos de diretriz administrativa limitadora de riscos, o

supramencionado autor cita a determinação do Bacen para que as instituições

financeiras cumpram o previsto nos Acordos de Basiléia I e II304, “que

uniformizaram, em linhas gerais, a administração de riscos do sistema financeiro

internacional dos países signatários.”305

Ao nosso ver, o crime de gestão temerária precisaria ser reescrito para que

ficasse em consonância com o Estado Democrático de Direito em que vivemos.

A conduta poderia ser delimitada tanto com a descrição das condutas

301 FELDENS, Luciano. A estrutura material dos delitos de gestão fraudulenta e temerária de instituição financeira. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 86, v. 18, 2010. 170-200 / RBCCRIM. p. 172-173. 302 Idem, p. 194. 303 Ibidem. 304 O Comitê de Regulamentação Bancária e Práticas de Supervisão, sediado no Banco de Compensações Internacionais - BIS, em Basiléia, na Suíça (Comitê de Basiléia) foi criado em 1974, objetivando induzir comportamento nos países membros do G-10, para aprimorar a qualidade da supervisão bancária e fortalecer a segurança do sistema bancário internacional. O acordo conhecido como Basiléia I, celebrado em 1988, define mecanismos para mensuração do risco de crédito e estabelece exigência de capital mínimo para suportar riscos. Em junho de 2004, o Comitê divulgou o Novo Acordo de Capital, comumente conhecido por Basiléia II, que tem por objetivo: (i) promover a estabilidade financeira; (ii) fortalecer a estrutura de capital das instituições; (iii) favorecer a adoção das melhores práticas de gestão de riscos, e (iv) estimular maior transparência e disciplina de mercado. Fonte: http://www.bb.com.br/portalbb/page51,136,3696,0,0,1,8.bb?codigoNoticia=7724 305 FELDENS, Luciano. Op. Cit.

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consideradas criminosas, quanto com a alusão ao desrespeito a determinadas

regras administrativas (o que transformaria o tipo em uma norma penal em

branco).

Com efeito, a expressão temerária é demasiadamente equívoca para

conferir ao cidadão alguma segurança acerca do que se visa a evitar com a

incriminação. Outrossim, também não nos parece consonante com os objetivos

do Estado brasileiro (que prima pelo tratamento isonômico) permitir que

condutas exatamente iguais sejam tratadas como crime ou não, dependendo do

juiz designado para analisar o caso, já que isso significa quase um sorteio de

incriminação e punição.

Não obstante a posição aqui adotada, vale ressaltar que a Jurisprudência

pátria tem considerado constitucional a norma contida no art. 4º, capítulo único,

da Lei nº 7.492. Contudo, conforme já mencionado, por não haver concordância

quanto ao que incrimina a lei, as decisões sobre o tema são bastante

divergentes.

4 PRINCÍPIO DA LESIVIDADE

Outro princípio bastante aventado nas análises do Direito Penal Econômico

é o Princípio da Lesividade, segundo o qual condutas que nem sequer ameacem

de lesão o bem jurídico protegido pela norma não possuem relevância penal. O

tema já foi abordado neste trabalho, em especial por ocasião da análise dos

delitos cumulativos ou de cumulação, contudo, pela relevância do tema, vale

estudá-lo aqui sob outra ótica.

Para iniciar o assunto, vale ressaltar que o Princípio da Lesividade também

decorre do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. A explicação para tal

vínculo é que as penas impostas pelo Direito Penal violam bens fundamentais,

como a liberdade. Logo, em um Estado Democrático de Direito, tal medida só se

justifica se efetivamente a conduta tiver o condão de lesar determinado bem

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jurídico. Pierpaolo Bottini tece lições sobre essa relação, que valem ser aqui

reproduzidas:

Diante do exposto no apartado anterior, pode-se afirmar que a atuação de um direito penal funcionalizado, em prol de um Estado Democrático de Direito, está pautada pela proteção de bens jurídicos necessários à garantia da dignidade humana. Logo, a norma penal somente será legítima se tutelar um interesse fundamental do ser humano. Para materializar esta assertiva e conferir-lhe operacionalidade, surge o princípio da lesividade. O conceito nullum crimen sine iniuria estabelece que somente será penalmente relevante a conduta que lesiona o bem jurídico protegido, de forma que serão atípicos os atos

que não afetem os interesses tutelados.306

Rogério Greco, por sua vez, explica que o Princípio da Lesividade constitui

mais uma limitação ao poder punitivo estatal. O autor explica, ainda, que tal

princípio se originou no período iluminista e que possui quatro principais funções,

quais sejam: “a) proibir a incriminação de uma atitude interna; b) proibir a

incriminação de uma conduta que não exceda o âmbito do próprio autor; c)

proibir a incriminação de simples estados ou condições existenciais; d) proibir a

incriminação de condutas desviadas que não afetem qualquer bem jurídico”.307

A razão pela qual o princípio ora em análise é tão discutido em sede de

Direito Penal Econômico reside no fato de tal disciplina se utilizar com bastante

frequência dos chamados crimes de perigo abstrato (cuja definição e espécies

já foram apresentadas nesse trabalho).

Com efeito, de acordo com parte da doutrina, essa modalidade de delito

não é compatível com o Estado Democrático de Direito, porque não se

coadunaria com ele permitir a atuação da tutela penal antes da ameaça concreta

e efetiva a um bem jurídico, como bem explica Pierpaolo Bottini:

O princípio da lesividade, em primeira análise, estaria em confronto com os crimes de perigo abstrato que, por definição, não exigem um dano efetivo, nem um perigo real para qualquer bem jurídico. Efetivamente, para parte da doutrina penal, tais delitos não são compatíveis com um Estado Democrático de Direito por faltar-lhes lesividade. Alegam que a ausência de um resultado externo e

306 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 205. 307 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 14. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2012, p. 51.

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destacado do comportamento é imprescindível para a caracterização do injusto penal e, por isso, não será possível a antecipação da tutela penal a âmbitos prévios à ameaça concreta e efetiva de interesses tutelados.308

No mesmo sentido, Ariella Toyama Shiraki explica que, embora os crimes

econômicos sejam importantes para a tutela de bens jurídicos difusos, sob um

ponto de vista mais tradicional, violam princípios fundamentais que buscam

limitar o poder punitivo estatal:

(...) se por um lado, os crimes de perigo abstrato despontam como estruturas destinadas à tutela de bem jurídicos difusos, como a ordem econômica, dotada de relevância constitucional, por outro, questionável é sua compatibilidade com princípios fundamentais que, em última análise, visam a limitação do poder estatal, mormente quando se tem em perspectiva que tal técnica de construção legislativa, ao menos em uma concepção clássica, importa na antecipação da tutela penal e na presunção absoluta de perigo, facilitando, sobremaneira, a imputação.309

Não obstantes tais questionamentos sejam bastante respeitáveis, fato é

que “a intervenção jurídico-penal no domínio econômico, concretizada, no mais

das vezes, por meio de crimes de perigo abstrato, constitui uma realidade

amplamente contemplada na legislação nacional e largamente reconhecida

pelos tribunais brasileiros”.310

Com efeito, são várias as sugestões voltadas à superação do aparente

conflito entre os crimes de perigo abstrato e o Princípio da Lesividade. Pierpaolo

Bottini enfatiza duas delas: (i) considerar que essa espécie delitiva acarreta um

dano efetivo a bens jurídicos transindividuais, e (ii) rever o conceito e limites do

Princípio da Lesividade.311

A primeira das posições mencionadas – que sugere sejam os crimes de

perigo abstrato considerados causadores de danos efetivos a bens jurídicos

308 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 205-206. 309 SHIRAKI, Ariella Toyama. A legitimidade do direito penal econômico como direito penal de perigo. Uma análise à luz dos princípios da lesividade e da intervenção mínima. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 83, v. 18, 2010. 7-52 / RBCCRIM, p. 13. 310 Idem, p. 17. 311 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Op. cit.

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difusos – pretende que tal modalidade de delito, quando utilizada para a defesa

de bens jurídicos transindividuais, sejam considerados como crimes de lesão.312

A crítica que se faz a tal entendimento, entretanto, é que tal ideia iria de

encontro com a própria finalidade do Princípio da Lesividade, haja vista que

qualquer conduta poderia ser considerada lesiva a um bem jurídico difuso, como

bem explica Pierpaolo Bottini:

Conforme já apontado (supra IV, 3.4.1), esta proposta carrega consigo problemas de difícil solução porque, por ela, qualquer tipo penal estaria adequado sob o aspecto da lesividade, pois qualquer conduta proibida, sob uma certa perspectiva, lesiona um bem jurídico difuso. Com isso, esta linha de pensamento acaba por esvaziar o próprio princípio da lesividade, pois a própria moral ou o sentimento religioso podem ser compreendidos como interesses difusos passíveis de proteção penal, o que legitimaria a criminalização de condutas que atentem contra seus preceitos.313

Destarte, sendo aceita tal explicação, a função limitativa do poder de punir

estatal, extremamente cara ao Estado Democrático de Direito, ficaria

prejudicada. Com efeito, um dos pontos fundamentais para a limitação

suficientemente protetiva é a tutela exclusiva de bens jurídicos, entendidos nos

termos já expostos neste trabalho.

A segunda posição destacada por Bottini sugere a revisão do conceito e

limites do Princípio da Lesividade, para nele abranger “a desestabilização de

expectativas diante de atividades arriscadas, como mero potencial de perigo”.314

Sobre esse assunto, o autor explica:

FARIA COSTA já apontava para a percepção de três níveis de lesividade. O primeiro seria o dano a determinado bem jurídico, seguido por um segundo nível, compreendido pela colocação deste bem em perigo concreto, quando sua normativa intencionalidade é perturbada por força de uma ação humana responsável. Os delitos de perigo abstrato, por sua vez, refletiriam um terceiro nível de lesividade, que só seria possível mediante uma descrição minuciosa, pelo legislador, da conduta proibida, relacionada a um bem jurídico concreto com dignidade penal.315

312 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. 313 Idem, p. 206-207. 314 Idem, p. 207. 315 Idem, p. 207-208.

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Pela importância da posição de Faria Costa, amplamente utilizada na

doutrina, vale transcrever as suas exatas palavras no que tange a correta

descrição da conduta tipificada pelo crime de perigo abstrato, como legitimadora

dessa modalidade delitiva. Com efeito após mencionar os três níveis da

ofensividade, o autor afirma:

Por aqui se podem perceber, pois, os pressupostos fundantes dos crimes de perigo abstracto. Coisa diversa é a maneira de se desenhar, ao nível do tipo, aquela relação de cuidado-de-perigo. Está-se perante um problema de construção que, diga-se, o legislador, de maneira diversa da que acontece nos crimes de resultado, leva a cabo por meio de uma rígida definição das condutas proibidas. Dir-se-ia que o “aparente” défice de legitimidade é contrabalançado pela extraordinária minúcia que o legislador põe, deve pôr, na descrição das condutas proibidas. Assim, se o tipo legal de crime de perigo abstracto é composto por tais elementos, não vemos em que é que a sua legitimidade possa ser tocada.316

Importa, por fim, registrar as palavras de Ariella Toyama ao afirmar que é

este último posicionamento exposto o mais aceito na doutrina:

Portanto, orientados pelo escopo de superar a tensão verificada entre os crimes de perigo abstrato e o princípio da ofensividade, os posicionamentos até então enunciados parecem convergir precisamente no ponto em que propõem uma revisão dos contornos do conceito de lesividade, o qual não compreenderia apenas a lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico tutelado, mas também as situações de perigo abstrato, as quais restariam legitimadas diante da descrição precisa do âmbito do proibido e da clara identificação de um bem jurídico dotado de dignidade penal.317

Essa segunda corrente adequa o crime de perigo abstrato ao Princípio da

Lesividade, no que se refere ao aspecto legislativo, mas ainda deixa margem a

dúvida acerca de como aplicar o dispositivo penal ao caso fático. Não obstante,

é certo que a lesividade da conduta tipificada como crime de perigo abstrato deve

ser perquirida também no momento da aplicação da norma, cabendo ao juiz tal

função.318

316 FARIA COSTA, José Francisco de. O perigo em direito penal. Coimbra: Coimbra Editora, p. 644-646. 317 SHIRAKI, Ariella Toyama. A legitimidade do direito penal econômico como direito penal de perigo. Uma análise à luz dos princípios da lesividade e da intervenção mínima. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 83, v. 18, 2010. 7-52 / RBCCRIM, p. 33. 318 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

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Dado considerarmos essencial para os dias de hoje a tutela penal dos

crimes econômicos, concordamos com a adequação realizada. Com efeito, nos

parece que a obrigação de descrever minuciosamente a conduta proibida

consubstancia uma boa forma de limitar o poder punitivo estatal, sem inviabilizar

a defesa da Ordem Econômica pelo Direito Penal.

Deve se ter em mente, entretanto, que a descrição deve ser de conduta

materialmente apta a configurar um crime, sob pena de se esvaziar inúmeros

direitos conquistados ao longo da história e já mencionados no presente

trabalho. Isso significa que, em respeito ao Princípio da Lesividade, apenas as

condutas que efetivamente lesem ou coloque em risco (mesmo que potenciais)

o bem jurídico protegido poderão ser objeto do Direito Penal.

Em outras palavras, “a construção do tipo penal, seja de perigo abstrato,

seja de lesão, demanda um injusto material, que será o risco de dano ao bem

protegido, mesmo que sob uma perspectiva ex ante ou abstrata, de modo que a

ausência deste risco afastará a lesividade, e a incidência da norma penal não

será adequada aos preceitos de um direito penal racional e funcional.”319

4.1 Princípio da Lesividade e crime de gestão temerária

Ao cotejarmos as lições acima apresentadas sobre o Princípio da

Lesividade com o que já foi exposto sobre o crime de gestão temerária, nos

parece bastante claro que também esse preceito é violado pela norma prevista

no art. 4º, parágrafo único, da Lei nº 7.492/86.

Com efeito, não há dúvida de que o crime de gestão temerária é um crime

de perigo abstrato, porquanto criminaliza uma forma de expor a perigo o sistema

financeiro nacional, sem a exigência de nenhuma demonstração de dano ao bem

jurídico. A respeito, vale transcrever:

319 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 208.

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O objeto da proibição da gestão temerária não seria o resultado danoso, mas sim a situação de risco causada pela ação do administrador excessivamente arrojado que, por exemplo, opere em níveis elevadíssimos de alavancagem em mercado de derivativos. Nesta perspectiva, irrelevante seria indagar sobre o resultado (lucro ou prejuízo): o crime já estará consumado no momento da operação. Portanto, o legislador optou por tutelar o bem jurídico ameaçado de lesão pela conduta preliminar potencialmente gravosa, pouco importando, ao menos em tese, o efetivo resultado.320

Como crime de perigo abstrato, lembrando os ensinamentos de Bottini, já

expostos no presente trabalho, o delito de gestão temerária refletiria “um terceiro

nível de lesividade, que só seria possível mediante uma descrição minuciosa,

pelo legislador, da conduta proibida”321. Ao contrário disso, entretanto, pode-se

dizer que o tipo penal em comento não descreve nem mesmo superficialmente

as condutas que pretende proibir.

Isso porque, conforme já mencionado ao tratarmos do Princípio da

Taxatividade, o art. 4º, parágrafo único, da Lei 7.492/86 criminaliza apenas o que

chama de gerir temerariamente, sem especificar o que entende como tal, falha

grave tendo em vista que o adjetivo temerário é bastante equívoco, causando

dúvidas até mesmo quanto à possibilidade de punição da conduta na modalidade

culposa.

Nesse diapasão, vale lembrar que alguns doutrinadores admitem a

modalidade culposa do crime, ressaltando que o próprio significado da palavra

temerário (arriscado, imprudente, perigoso) remete a uma conduta culposa322.

Prevalece, entretanto, com base no artigo 18, parágrafo único, do Código Penal,

que a conduta deve ser punida apenas quando praticada dolosamente, conforme

explica Polianna Pereira dos Santos:

Se fraudulenta é a gestão realizada mediante fraude, ardil, com o fim de obter vantagem ilícita, a gestão realizada sem a prudência necessária, com assunção de riscos desarrazoados e que não

320 FRAGOSO, Rodrigo. Gestão Temerária de Instituição Financeira. http://www.fragoso.com.br/eng/arq_pdf/artigos/arquivo71_.pdf 321 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 207-208. 322 PIMENTEL, Manoel Pedro. Crimes contra o sistema financeiro nacional. São Paulo: RT, 1987, p. 52-53.

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necessariamente precisa gerar prejuízos nos aponta para uma vertente de culpa, e não de dolo. Há doutrinadores que apostam na admissão implícita da modalidade culposa do crime de gestão fraudulenta. Não obstante, tendo em vista a excepcionalidade do crime culposo, conforme prevê o parágrafo único do artigo 18, do Código Penal, não se pode aceitar a caracterização culposa do crime de gestão temerária. Como, então, identificar o dolo de conduta realizada sem prudência? A jurisprudência reconhece o dolo eventual como elemento subjetivo mínimo para a caracterização do crime.323

O que se percebe, portanto, é que o crime de gestão temerária, tal como

está atualmente descrito no art. 4º, parágrafo único, da Lei 7.492/86, não deixa

claro qual a conduta proibida, o que é extremamente grave, principalmente por

se tratar de um crime de perigo abstrato. A respeito, vale registrar:

Se ordinariamente a redação típica não pode e nem deve valer-se de cláusulas genéricas ou elementos normativos excessivamente abertos, particularmente no que diz respeito aos delitos de perigo abstrato, o grau de indeterminação será tão extremo que a tarefa valorativa do juiz estará desvinculada de qualquer margem de referência, bem assim aos membros da comunhão social não poderá haver referência do proibido e do permitido.324

Em outras palavras, a indeterminação da conduta incriminada no tipo

penal em análise, somada à sua natureza de crime de perigo abstrato, denota

que o art. 4º, parágrafo único, da Lei 7.492/86, viola o Princípio da Lesividade e

está em desacordo com o Estado Democrático de Direito.

5 PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA E SUBSIDIARIEDADE

O Princípio da Intervenção Mínima, também denominado última ratio, já foi

mencionado no presente trabalho, mas será analisado agora sob a perspectiva

da adequação dos delitos econômicos ao Estado Democrático de Direito.

Conforme já mencionado, esse princípio apregoa que o Direito Penal deve

se preocupar apenas com os bens mais importantes à vida em sociedade,

considerando as necessidades do momento histórico em que vige.

323 SANTOS, Polianna Pereira dos. Um estudo sobre o crime de gestão temerária à luz do princípio da legalidade estrita. Artigo digital portal IBCCRIM. Nº de chamada: 16. p. 2011 D16. 324 REALE JUNIOR, Miguel. Problemas Penais Concretos, São Paulo: Malheiros Editores, 1997, p. 17.

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Consequentemente, tal princípio não apenas determina a criminalização de

novas condutas, como, também, a descriminalização daqueles atos que não são

mais relevantes. A respeito, vale registrar:

O princípio da intervenção mínima, ou ultima ratio, é o responsável não só pela indicação dos bens de maior relevo que merecem a especial atenção do Direito Penal, mas se presta, também, a fazer com que ocorra a chamada descriminalização. Se é com base neste princípio que os bens são selecionados para permanecer sob a tutela do Direito Penal, porque considerados como os de maior importância, também será com fundamento nele que o legislador, atento às mutações da sociedade, que com a sua evolução deixa de dar importância a bens que, no passado, eram da maior relevância, fará retirar do nosso ordenamento jurídico-penal certos tipos incriminadores.325

A este princípio se liga diretamente o Princípio da Subsidiariedade, tendo

em vista que, segundo ele, o Direito Penal deve “interferir o menos possível na

vida em sociedade, devendo ser solicitado somente quando os demais ramos do

Direito, comprovadamente, não forem capazes de proteger aqueles bens

considerados da maior importância.”326

A essa ideia, vale acrescentar o entendimento de Pierpaolo Bottini,

segundo o qual a subsidiariedade é uma decorrência lógica do Estado

Democrático de Direito e do Princípio da Lesividade:

Afirmar que o direito penal funcional, ligado ao Estado Democrático de Direito, está limitado à proteção de bens necessários à garantia da dignidade humana e ao princípio da lesividade implica aceitar seu papel subsidiário no bojo do sistema da gestão de riscos. Se a norma penal só está autorizada a agir mediante uma violação de bens jurídicos fundamentais, o direito penal será o último recurso do Estado para promover o controle social.327

Em outras palavras, tendo em vista os ideais do Estado Democrático de

Direito, o Princípio da Subsidiariedade pode ser fundamentado da seguinte

forma: a ideia basilar de proteção de direitos fundamentais exige que haja limites

ao poder de punir estatal, portanto, tendo em vista que as penas impostas pelo

Direito Penal são as mais rigorosas do ordenamento, certo é que, em um Estado

325 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 14. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2012, p. 47. 326 Ibidem. 327 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 208-209.

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Democrático de Direito, a sanção penal pode ser adotada somente na presença

da violação de um bem do qual a sociedade não possa prescindir.

Ariella Shiraki explica que o Princípio da Intervenção Mínima e o Princípio

da Subsidiariedade correspondem a uma posição intermediária entre o

abolicionismo (que prega a substituição do Direito Penal por outras formas de

controle social) e o movimento denominado lei e ordem, que sustenta ser

possível solucionar o problema da criminalidade com o recrudescimento da

intervenção penal. A respeito, vale registrar as palavras da autora:

Dessa forma, apresenta-se como uma via de mão dupla. Vale dizer, se por um lado impõe a descriminalização de condutas que não apresentem nocividade social, bem como a previsão de penas alternativas à privação de liberdade do indivíduo diante de condutas de menor gravidade, por outro, autoriza uma maior reação penal para a tutela de novos bens jurídicos reputados relevantes, recorrendo-se até mesmo à construção de tipos de perigo abstrato.328

Das lições acima expostas é possível concluir que não há incompatibilidade

entre o Direito Penal Econômico e o Princípio da Intervenção Mínima e o

Princípio da Subsidiariedade, mesmo havendo o uso do crime de perigo abstrato.

Tal entendimento foi adotado pelo Código Penal espanhol de 1995, no qual

consta, na exposição de motivos, que foi enfrentada a “antinomia existente entre

o princípio da intervenção mínima e as crescentes necessidades de tutela em

uma sociedade cada vez mais complexa, dando prudente acolhida a novas

formas de delinquência, porém eliminando, por sua vez, figuras delitivas que

tenham perdido sua razão de ser.”329

Em relação aos crimes de perigo abstrato, bastante utilizados pelo Direito

Penal Econômico, Bottini explica que não haverá afronta ao Princípio da

Subsidiariedade “desde que a norma aponte para comportamentos arriscados

328 SHIRAKI, Ariella Toyama. A legitimidade do direito penal econômico como direito penal de perigo. Uma análise à luz dos princípios da lesividade e da intervenção mínima. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 83, v. 18, 2010. 7-52 / RBCCRIM, p. 37. 329 Ibidem.

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para bens jurídicos tutelados, que não possam ser inibidos de maneira

satisfatória por outros mecanismos de gestão de risco.”330

Bottini explica, ainda, que para a concretização da subsidiariedade é

necessário que o Estado crie mecanismos de contenção eficazes, que não sejam

criminais. Caso contrário, segundo o autor, o Direito Penal fica transformado “em

instrumento de escape para a ineficácia de outras funções públicas que

garantam a estabilidade social”.331

O que se tem observado atualmente, entretanto, é que alguns fatores

(como a corrupção, a burocratização, entre outros) têm dificultado a ação de

controle de outros ramos do Direito como o Direito Administrativo e Civil. Tal fato

acaba por transferir para o Direito Penal funções pouco adequadas ao Estado

Democrático de Direito.332

5.1 Princípio da intervenção mínima, princípio da subsidiariedade e gestão

temerária

No que tange ao crime de gestão temerária, pelo que foi aqui exposto, é

bastante claro que o tipo viola também os Princípios da Intervenção Mínima e da

Subsidiariedade, até como decorrência lógica da violação em que incorre ao

Princípio da Lesividade.

Com efeito, por ser um crime de perigo abstrato previsto em um tipo penal

que não descreve apropriadamente a conduta incriminada, fica difícil embasar a

afirmação de que o Direito Penal é realmente necessário como gestor de riscos

nesses casos.

Nesse diapasão, nos parece que a adequação do art. 4º, parágrafo único,

da Lei 7.492/86 aos princípios ora em análise e, consequentemente, ao Estado

330 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 210. 331Ibidem. 332 Idem.

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Democrático de Direito, exigiria que sua aplicação estivesse condicionada à

prévia existência de normas administrativas que regulassem os riscos permitidos

e proibidos na gestão de instituição financeira. Nesse caso, conforme já

mencionado no presente trabalho, o crime poderia ser mantido, inclusive, em

uma norma penal em branco, que previsse o núcleo essencial da conduta. Ou

seja, o crime poderia ser mantido se previsto em tipo penal que não deixasse

dúvidas no que tange à conduta proibida.

Imprescindível ressaltar que quando as sanções administrativas forem

suficientes para inibir condutas indesejadas na gestão de instituições financeiras,

a incriminação não será uma medida condicente com o Estado Democrático de

Direito atualmente vigente.

6 PRINCÍPIO DA FRAGMENTARIEDADE

Outro importante princípio para o Direito Penal adequado ao Estado

Democrático de Direito é o Princípio da Fragmentariedade. Segundo ele, apenas

as condutas que ataquem de forma violenta ou intolerável o bem jurídico pode

ser objeto da tutela penal. Trata-se do corolário dos Princípios da Intervenção

Mínima e da Lesividade, como bem explica Rogério Greco:

Como corolário dos princípios da intervenção mínima, da lesividade e da adequação social temos o princípio da fragmentariedade do Direito Penal. O caráter fragmentário do Direito Penal significa, em síntese, que, uma vez escolhidos aqueles bens fundamentais, comprovada a lesividade e a inadequação das condutas que os ofendem, esses bens passarão a fazer parte de uma pequena parcela que é protegida pelo Direito Penal, originando-se, assim, a sua natureza fragmentária.333

Esse princípio também não é necessariamente violado pelos crimes de

perigo abstrato, tendo em vista que estes proíbem condutas causadoras de

riscos que não podem ser tolerados pela sociedade, como é o caso de situações

envolvendo o manejo de energia nuclear e engenharia genética.334

333 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 14. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2012, p. 59. 334 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

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Não obstante a possível coexistência de crimes de perigo abstrato com o

Princípio da Fragmentariedade, atualmente é possível verificar tipos penais

dessa natureza que violam o princípio em comento. A respeito, leciona Bottini:

Por outro lado, em algumas situações a conduta típica não representa um ataque violento que ameace a estabilidade social, e sua sanção afetará o princípio da fragmentariedade. É o que ocorre com os delitos de perigo abstrato por acumulação, em que a prática de uma conduta típica não representa um ataque violento ou não permitido ao interesse protegido pela norma penal (supra IV,2) e nas hipóteses em que o risco criado pela conduta é tolerado pela sociedade (infra IV, 4.2.6). Nestas hipóteses, o comportamento não é avaliado como inadmissível dentro dos parâmetros do funcionamento social, ou pela baixa potencialidade lesiva, ou pela adequação aos padrões cotidianos de exposição ao risco, pelo que não caberá ao direito penal incidir sobre ele, sob pena de banalização de sua utilização.335

Vale ressaltar, entretanto, que embora concordemos que a sanção de

condutas produtoras de riscos tolerados pela sociedade336 viola o Princípio da

Fragmentariedade, não compartilhamos da opinião de que também os crimes de

perigo abstrato por acumulação padeçam desse mesmo vício. Isso porque,

conforme já exposto nesse trabalho, há uma série de requisitos a serem

observados para essa modalidade de incriminação, que, quando atendidos,

torna o tipo penal adequado ao Princípio da Fragmentariedade.

Em outras palavras, o Princípio da Fragmentariedade exige que a

elaboração dos tipos penais de perigo abstrato, bem como sua interpretação, se

atenham apenas a condutas que gerem intoleráveis riscos à sociedade.

6.1 Princípio da Fragmentariedade e gestão temerária

335 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 212-213. 336 De acordo com Bottini: “Existem hipóteses em que o risco, mesmo quando vedada pela norma penal na forma de tipos de perigo abstrato, é permitido diante de sua utilidade social em determinados contextos, tolerável pela dinâmica da comunidade me que se insere. A materialização do tipo não exige apenas a periculosidade, mas uma periculosidade não permitida. A ausência de permissão de criação de um risco é presumida pela existência de um tipo penal de perigo abstrato que veda a prática da conduta, mas pode ser afastada em determinadas situações limite, definidas como hipóteses de risco permitido.” BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 237.

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Na mesma linha de raciocínio exposta ao longo desse trabalho, é certo que

também sob a perspectiva do Princípio da Fragmentariedade o crime de gestão

temerária merece críticas. Isso porque a impossibilidade de se aferir de forma

clara quais condutas poderão ser enquadradas no tipo penal acaba por transferir

ao Judiciário a função de eleger as atividades de gestão que configuram o crime,

esvaziando a ideia de que o Direito Penal deve incidir apenas sobre os riscos

intoleráveis para a sociedade.

Outrossim, tendo em vista que a materialização do tipo não exige apenas

a periculosidade, mas uma periculosidade não permitida, não se pode prescindir

de uma descrição precisa das condutas proibidas pelo tipo penal.

Com efeito, conforme já mencionado, há muitas divergências entre os

juízes no que tange a aceitabilidade ou não do risco produzido por diversas

conduta de gestão de instituição financeira, razão pela qual condutas idênticas

podem ser consideradas dignas de serem tuteladas pelo Direito Penal em alguns

casos e não em outros, o que não se coaduna com os direitos individuais

garantidos pelo Estado Democrático de Direito.

7 PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE

Outro importante princípio do Direito Penal, também decorrente do Estado

Democrático de Direito e da importância e valoração da dignidade humana dele

decorrente é o chamado Princípio da Proporcionalidade (que aqui será

mencionado de forma sintética, apenas para tratar do crime de gestão

temerária). Isto porque, se a resposta deste ramo jurídico não for proporcional

ao agravo gerado pela conduta do agente, o próprio Princípio da Exclusiva

Proteção de Bens Jurídicos fica fragilizado, como bem explica Pierpaolo Bottini:

Outro vetor indispensável a um sistema penal fundamentado na dignidade humana é o respeito ao princípio da proporcionalidade. Como afirmado, a atuação do direito penal é legítima apenas diante da violação de bens que representam a dignidade humana: logo, a medida da resposta punitiva deve ser proporcional a esta violação, do contrário o próprio princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos não encontrará aplicação material. Se a aplicação da pena afeta a

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dignidade, suprime bens fundamentais do ser humano, deve ser precedida pela violação, ou colocação em risco relevante, de bem de igual monta, ou maior, pelo agente delitivo.337

No mesmo sentido, Alberto Silva Franco Leciona:

O princípio da proporcionalidade exige que se faça um juízo de ponderação sobre a relação existente entre o bem que é lesionado ou posto em perigo (gravidade do fato) e o bem de que pode alguém ser privado (gravidade da pena). Toda vez que, nessa relação, houver um desequilíbrio acentuado, estabelece-se, em consequência, inaceitável desproporção. O princípio da proporcionalidade rechaça, portanto, o estabelecimento de cominações legais (proporcionalidade em abstrato) e a imposição de penas (proporcionalidade em concreto) que careçam de relação valorativa com o fato cometido considerado em seu significado global. Tem, em consequência, um duplo destinatário: o poder legislativo (que tem de estabelecer penas proporcionadas, em abstrato, à gravidade do delito) e o juiz (as penas que os juízes impõem ao autor do deito têm de ser proporcionadas à sua concreta gravidade).338

É certo, portanto, que, em respeito ao princípio ora em comento, a

quantidade e intensidade da pena cominada a determinado delito e a ele

aplicada em concreto deve ser proporcional à importância do bem jurídico lesado

ou ameaçado e à gravidade da conduta. No que tange aos crimes de perigo

abstrato, essa proporcionalidade deve se dar levando em consideração quão

próxima de lesar o bem esteve a conduta incriminada. Destarte, é certo que os

crimes de perigo abstrato devem ser apenados de forma mais branda do que os

de perigo concreto e de lesão.339

7.1 Princípio da Proporcionalidade e crime de gestão temerária

Conforme já exposto, entendemos que o art. 4º, parágrafo único, da Lei

7.492/86, não nos permite aferir qual a conduta que considera delituosa.

Considerando todos os princípios violados em decorrência de tal característica,

o atendimento ao Princípio da Proporcionalidade pelo tipo se torna inviável, ao

menos no que tange ao estabelecimento das penas em abstrato.

337 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 213. 338 SILVA FRANCO, Alberto. Crimes hediondos. 4. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 67. 339 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Op. cit., p. 215.

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Com efeito, se não é possível saber qual conduta o legislador visou a

incriminar, menos ainda se pode concluir se a pena a ela cominada é ou não

proporcional à sua gravidade.

7.2 Proibição de Proteção Deficiente

Conforme já exposto nesse trabalho, o Princípio da Proporcionalidade

possui, além da vertente acima mencionada, a que trata da proibição de proteção

deficiente. Isso significa que, se por um lado o Direito Penal não pode agir com

excessos para que não desrespeite os direitos fundamentais e não atrapalhe os

objetivos da Ordem Econômica, por outro, não pode ser limitado em demasia,

para não tornar deficiente à proteção de bens jurídicos.

Com efeito, a proteção da dignidade da pessoa humana, sempre visada

pelo Estado Democrático de Direito, depende não apenas do respeito aos

direitos fundamentais daqueles que praticam condutas incriminadas, mas

também da efetiva proteção às vítimas e à sociedade em geral. Ou seja, o Estado

também frustra o seu dever de proteção à sociedade, quando deixa de

resguardar de forma adequada determinado bem jurídico.

Em outras palavras, o Direito Penal atende ao Princípio da

Proporcionalidade quando, sem descurar dos direitos individuais e das garantias

já concedidas ao cidadão contra o poder punitivo estatal, incide de forma

suficiente a proteger bens jurídicos de grande relevância, como é o caso da

Ordem Econômica.

Diante disso, admite-se algumas peculiaridades na incidência de princípios

constitucionais, quando aplicados a crimes econômicos, conforme exposto

acima. Não se pode aceitar, entretanto, que se ignore importantes garantias

individuais, como ocorre com o crime de gestão temerária, sendo certo que tipos

penais com vícios dessa natureza não podem subsistir no Estado Democrático

de Direito em que vivemos atualmente.

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CONCLUSÃO

O Estado Constitucional surgiu como um Estado Liberal, visando a limitar

os poderes estatais – e, consequentemente, sua possibilidade de intervir na vida

dos particulares –, como forma de reação ao absolutismo que lhe precedeu.

Corresponde à primeira dimensão dos direitos fundamentais, denominados

direitos civis e políticos (Direito de Liberdade), também designados de direitos

negativos, por pretender a abstenção do Estado.

As constituições desse período, refletindo o desejo da sociedade à época,

focavam na proteção dos interesses individuais dos cidadãos e não tratavam de

matérias concernentes à ordem econômica. O Direito Penal se adequava a essa

tendência, se preocupando em proteger bens jurídicos essencialmente

individuais.

Com o passar do tempo, entretanto, alguns eventos históricos deixaram

claro que a falta de regulamentação estatal possibilitava aos particulares a

realização de uma série de condutas que desestruturava as economias dos

países liberais. As crises decorrentes dessas desestruturações, pelas

consequências nefastas que geraram às sociedades atingidas, foram de grande

relevância para que ficasse evidenciada a necessidade de o Estado intervir na

economia. A partir de então, as constituições passaram a tratar da Ordem

Econômica e de outras questões sociais.

Com a intervenção do Estado na economia e a necessidade de garantir o

efetivo cumprimento das normas governamentais destinadas ao setor, surgiu o

Direito Penal Econômico, como campo jurídico-penal destinado à tutela do bem

jurídico meta-individual Ordem Econômica, o que significou uma relevante

mudança para o Direito Penal, até então focado na proteção de bens jurídicos

individuais.

A existência de bens jurídicos transindividuais (considerando que em um

Estado Democrático de Direito o conceito de bem jurídico deve ser inferido da

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Constituição) nos parece absolutamente possível e pertinente com o

ordenamento jurídico brasileiro. Na verdade, mais do que possível, nos parece

imprescindível para o bem-estar social que interesses coletivos como a Ordem

Econômica sejam tutelados pelo Direito Penal.

Com efeito, sendo os bens jurídicos penais aqueles valores de maior

importância à sociedade e tendo em vista que condutas lesivas à Ordem

Econômica podem gerar crises de âmbito nacional, levando ao desemprego e à

diminuição de renda em todo o país, negar a tutela penal a tal bem jurídico

colocaria em cheque a própria utilidade do Direito Penal para a

contemporaneidade.

Neste diapasão, importa lembrar, ainda, que em um Estado Democrático

de Direito, a lei é o meio utilizado para cumprir objetivos, como a busca do bem-

estar social, a igualdade material (de fato) entre os cidadãos (ou, ao menos, a

redução da desigualdade), a formação de uma sociedade justa e a preservação

dos direitos fundamentais. Destarte, o Direito Penal deve ser composto por um

conjunto de normas jurídicas aptas a servirem ao Estado Democrático de Direito

como instrumento para a realização desses objetivos, o que só é possível com

a tutela dos valores que hoje são os mais relevantes para a sociedade.

Seguindo tal raciocínio, nos parece correto adotar, em defesa da eficaz

tutela da Ordem Econômico pelo Direito Penal brasileiro, o denominado Princípio

da Vedação à Proteção Deficiente, que decorre do Princípio da

Proporcionalidade e considera que a proteção da dignidade da pessoa humana,

tão valorizada pelo Estado Democrático de Direito, depende para sua efetividade

não apenas do respeito aos direitos individuais daqueles que praticam condutas

incriminadas, mas também da efetiva proteção às vítimas e à sociedade em

geral.

Evidentemente, não se pretende defender aqui que o Direito Penal, na

tutela da Ordem Econômica, possa se esquecer de seus preceitos basilares,

criados para proteger os cidadãos do ius puniendi estatal – já que as garantias

aos direitos individuais continuam como algo essencial ao Estado Democrático

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de Direito. O que se defende é que deve haver um equilíbrio para que,

observando as garantias individuais, o Direito Penal não se torne insuficiente ou

ineficiente para a proteção do bem jurídico transindividual Ordem Econômica,

tendo em vista as nefastas consequências que podem advir de sua lesão.

Além das garantias individuais, na defesa da Ordem Econômica brasileira,

o Direito Penal deve observar, também, os princípios e diretrizes a ela

concernentes, previstos na Constituição da República Federativa do Brasil de

1988, para que, protegendo adequadamente tal bem jurídico, não se torne um

empecilho ao desenvolvimento econômico nacional. Por essa razão, não devem

ser adotadas interpretações que levem à penalização de atos incentivados ou

consentâneos com os objetivos perseguidos no setor.

Com efeito, o cenário hodierno, marcado pela globalização e o advento

da sociedade de risco, possui uma série de peculiaridades atinentes ao âmbito

econômico que não podem ser ignoradas pelo Direito Penal. Dentre elas, é de

elevada relevância o fato de que o modelo de produção atual exige constantes

inovações, que muitas vezes geram riscos de graves danos à sociedade como

um todo.

Ou seja, há um paradoxo em relação à causação de risco no setor

econômico: por um lado, os riscos são necessários e desejados para o

desenvolvimento econômico, por outro, são temidos. Para conciliar essa

contradição, o Direito Penal deve ter sua aplicação limitada às atividades

econômicas geradoras de riscos inadmissíveis, por sua danosidade (ao menos)

potencial, e condicionada à falta de outros meios hábeis e menos agressivos

para a contenção de riscos pretendida.

O combate aos riscos gerados pela sociedade atual a vários bens jurídicos

transindividuais, inclusive à Ordem Econômica, exige do Direito Penal uma série

de adaptações em seu modelo tradicional, que estava adequado à realidade da

Sociedade Industrial – na qual bastava, para a eficaz proteção dos cidadãos, a

proteção a bens jurídicos clássicos (individuais), tais qual a vida, o patrimônio e

a propriedade. A esse Direito Penal modificado foi conferida a denominação de

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Direito Penal do Risco, que tem como uma de suas características marcantes o

uso abundante de crimes de perigo abstrato, para que seja possível antecipar ao

dano a incriminação de determinadas condutas perigosas.

Com efeito, diferentemente dos crimes de lesão ou de perigo concreto, os

crimes de perigo abstrato não precisam da lesão ou efetiva ameaça de lesão ao

bem jurídico para se configurarem. Neles, o legislador deixa de prever um

resultado naturalístico para a consumação do delito: há apenas a descrição da

conduta penalmente relevante, com a exposição do bem jurídico a perigo e a

mera potencialidade de dano.

Embora haja discussões a respeito da legitimidade e constitucionalidade

dos crimes de perigo abstrato, prevalece que por sua indispensabilidade para a

adequada proteção da sociedade atual, deve-se aceitá-lo, contanto que a

conduta punida gere efetivo risco e esteja suficientemente descrita no tipo penal

(posição a que nos filiamos).

Em outras palavras, o crime de perigo abstrato será legítimo e

constitucional se efetivamente proteger o bem jurídico e se for elaborada de

forma plenamente inteligível, descrevendo claramente o comportamento

incriminado e a pena imposta. O uso do crime de perigo abstrato nesses termos

permite o equilíbrio que deve haver entre a tutela efetiva da Ordem Econômica

e o respeito aos direitos individuais.

Outras modalidades de tipificação que, embora importantes para a tutela

da Ordem Econômica, requerem alguns cuidados para se manterem legítimas

são: (i) tipos penais em branco, que para não violar o Princípio da Legalidade e

da Taxatividade precisam prever em seu bojo o núcleo essencial da conduta, e

(ii) tipos penais abertos, que devem enunciar com clareza as características

essenciais da conduta proibida, tornando-a inconfundível com outras.

Tipos penais que não atendam minimamente aos princípios basilares do

Direito Penal, como aquele que prevê o crime de gestão temerária, não podem

ser aceitos no ordenamento jurídico brasileiro, independentemente da

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importância que possam ter para a proteção da Ordem Econômica, por violarem

os direitos e garantias assegurados pelo Estado Democrático de Direito.

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