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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO RICARDO GAIOTTI SILVA A COLABORAÇÃO ENTRE IGREJA E ESTADO NO BRASIL À LUZ DA LIBERDADE RELIGIOSA MESTRADO EM DIREITO SÃO PAULO 2016

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

RICARDO GAIOTTI SILVA

A COLABORAÇÃO ENTRE IGREJA E ESTADO NO BRASIL À LUZ

DA LIBERDADE RELIGIOSA

MESTRADO EM DIREITO

SÃO PAULO

2016

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

RICARDO GAIOTTI SILVA

A COLABORAÇÃO ENTRE IGREJA E ESTADO NO BRASIL À LUZ

DA LIBERDADE RELIGIOSA

Dissertação apresentada à banca examinadora da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

como exigência parcial para a obtenção do título

de Mestre em Direito – Filosofia do Direito, sob

a orientação do professor Dr. Alvaro Luiz

Travassos de Azevedo Gonzaga.

SÃO PAULO

2016

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BANCA EXAMINADORA:

___________________________________________ ___________________________________________ ___________________________________________

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RESUMO

A liberdade religiosa é uma temática complexa, que envolve não somente a busca pelo

sagrado, mas também o exercício deste direito em meio a uma comunidade política. Por isso,

muitas vezes viver a fé dentro do Estado se torna um desafio. Porém, a partir da construção

histórica do direito à liberdade religiosa, é possível ter uma noção da grandeza da temática e,

principalmente, da importância da proteção deste direito para a valorização e a promoção da

vida humana. A proposta deste estudo, desenvolvido no Núcleo de Pesquisa em Filosofia do

Direito do Programa de Pós Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo – PUC/SP é de apresentar um itinerário jurídico, histórico e filosófico no qual a

liberdade religiosa foi sendo construída indicando alguns caminhos para que a pessoa humana

cidadão e fiel possa exercer livremente esse direito dentro dos Estados, visando assim uma

verdadeira efetividade do direito. Destaca-se o fato de que, para a proteção deste direito,

existem vias as quais tanto as religiões quanto os Estados podem, mutuamente, construir

visando ações colaborativas destinadas a proteção deste direito fundamental, a partir de uma

justa separação entre às Religiões e os Estados. Entre essas vias jurídico-colaborativas,

destaca-se o Acordo Brasil-Santa Sé que ilumina a possibilidade da construção de

instrumentos jurídicos capazes de promover a pessoa humana e, seus direitos fundamentais

principalmente os referentes à liberdade religiosa. O presente trabalho apresenta, portanto, um

itinerário da solidificação da liberdade religiosa como um direito humano e fundamental e,

destacando o modelo de colaboração entre o Brasil e a Santa Sé como uma via eficaz na busca

da proteção, visando e promoção da dignidade da pessoa humana, inclusive para os membros

dos demais credos religiosos.

Palavras-chave: Dignidade Humana; Direitos Fundamentais; Estado; Igreja; Liberdade

Religiosa, Religiões.

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ABSTRACT

Religious freedom is a complex issue as it involves not only the pursuit of sacred, but also the

exercise of this right within a political community, so often living the faith within the state

becomes a challenge. However, from the historical construction of the right to religious

freedom it is possible to get a sense of the magnitude of the subject and especially the

importance of protecting this right to the development and promotion of human life. This

study, developed at the Center for Research in Philosophy of Law at the Catholic University

of São Paulo – PUC/SP is to present a legal, historical and philosophical journey in which

religious freedom was being built indicating some ways for a person human, citizen and

faithful, may freely exercise this right within states, thus aiming at a true effectiveness of law.

Noteworthy is the fact that, for the protection of this right there are ways in which both

religions as the State may, mutually, aiming to build collaborative action from a fair

separation between the religions and states. Among these collaborative juridical way stands

the Agreement Brazil/Holy See, the one that illuminates the possibility of building legal

instruments capable of promoting the human person and his fundamental rights, mainly

referring to religious freedom. The respective work therefore presents an itinerary

solidification of religious freedom as a human and fundamental rights and highlighting the

collaboration model between Brazil and the Holy See as an effective way in search of

protection, aiming and promotion of the dignity of the human person, including for members

of other religious faiths.

Keywords: Church; Fundamental Rights; Human dignity; Religions; Religious Freedom;

State.

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AGRADECIMENTOS

Nenhum vento é favorável ao barco que não sabe a que porto se destina

Sêneca

Minha sincera gratidão às inúmeras pessoas que sopraram as velas do meu barco,

quando meus ventos e minhas forças pareciam insuficientes, nomear uma a uma seria uma

injustiça.

Contudo, ouso iniciar agradecer a Deus, meu amigo, companheiro e sentido da minha

vida, primeiramente pelo dom da fé dentro da Igreja Católica, que recebi desde da minha

infância e que de fato marcou meu caráter e minhas escolhas.

Gratidão aos meus familiares, principalmente a meu pai José Osmar, minha mãe Edna

e meus irmãos (Nene, Kiko, Pepê e Duda), cada um de vocês colaboram diretamente em

minha vida, com vocês aprendi a ter respeito, educação, ousadia, disciplina, esperança e

fraternidade, posso dizer que foi dentro de casa que aprendi a “navegar”.

Gratidão a Rafaela, minha amiga, companheira, meu amor e futura esposa,

principalmente por sua paciência com os livros, como se não bastasse, sempre me incentivou

a sonhar com este momento.

Gratidão a todos os professores e colaboradores das escolas que passei.

Gratidão a todos que colaboraram com minha formação humana e espiritual, dentre

esses, padres, amigos, companheiros de missão, enfim, com cada um aprendi que a vida

somente tem sentido se for “consumida” para o outro, muito obrigado.

Enfim, agradeço as pessoas que convivi, trabalhei, estudei, morei, etc. Tenho a plena

certeza que sozinho não chegaria.

Gratidão aos meus amigos, pelo auxílio no mar bravio e no mar calmo.

Agora, ancorado, após chegar ao destino, posso dizer: "É a tua providência, ó Pai, que

segura o leme" (Sb 14,3).

Agradeço, também a Capes que através da bolsa modalidade Taxa, financiou uma

parte deste projeto.

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“Senhor, fazei de mim um instrumento de vossa paz;

Onde houver ódio, que eu leve o amor;

Onde houver discórdia, que eu leve a união;

Onde houver dúvidas, que eu leve a fé;

Onde houver erros, que eu leve a verdade;

Onde houver ofensa, que eu leve o perdão;

Onde houver desespero, que eu leve a esperança;

Onde houver tristeza, que eu leve a alegria;

Onde houver trevas, que eu leve a luz. (...)”

Oração de São Francisco de Assis

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SUMÁRIO

Introdução ............................................................................................................................... 10

Capítulo 1

A liberdade religiosa

1.1 – A liberdade religiosa como um direito da pessoa humana ............................................. 13

1.2 – Distinções e aproximações entre os direitos humanos e os direitos fundamentais ........ 17

1.3 – A liberdade religiosa: proposta de definição ................................................................... 20

1.4 – As tensões da liberdade religiosa no mundo contemporâneo .......................................... 24

Capítulo 2

A evolução dos direitos humanos: a consolidação da liberdade religiosa

2.1 – Fundamentações teológica, filosófica e histórica dos direitos humanos ......................... 29

2.2 – A fundamentação teológica dos direitos humanos ......................................................... 31

2.3 – A fundamentação filosófica dos direitos humanos: o conceito de pessoa ....................... 34

2.3.a – O pensamento de Boécio .............................................................................................. 35

2.3.b – O pensamento de Santo Tomás de Aquino ................................................................... 36

2.3.c – O pensamento de Pico della Mirandola ........................................................................ 38

2.3.d – O conceito de pessoa a partir de Immanuel Kant ......................................................... 39

2.3.e – O conceito de pessoa a partir do século XX ................................................................. 42

2.4 – A fundamentação histórica dos direitos humanos ........................................................... 44

2.5 – A positivação dos direitos humanos ................................................................................ 47

2.6 – A internacionalização dos direitos humanos ................................................................... 48

2.7 – O mundo após segunda guerra: a Declaração Universal dos Direitos Humanos ............ 49

Capítulo 3

A relação entre Estados e religiões

3.1 – A dimensão social da religião .......................................................................................... 54

3.2 – O homem e as religiões nos Estados: o fundamento e o fim da ordem social................. 58

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3.3 – O Estado moderno e a religião: As ideias contratualistas ............................................... 63

3.3.a – O pensamento de John Locke ....................................................................................... 65

3.4 – A liberdade religiosa a partir dos contratualistas............................................................. 69

Capítulo 4

A possibilidade da colaboração entre Estados e religiões

4.1 – Os fundamentos para a colaboração: justificativas doutrinárias ..................................... 76

4.2 – Os modelos e problemas na relação entre Estados e religiões ........................................ 82

4.3 – Os desafios da universalidade do direito a liberdade religiosa ........................................ 86

Capítulo 5

A religião e o Estado brasileiro

5.1 – A liberdade religiosa no direito pátrio ............................................................................. 90

5.2 – A união entre a Igreja Católica e o Estado: o padroado .................................................. 92

5.3 – Nasce um novo tempo: o fim do padroado ...................................................................... 94

5.4 – A Constituição de 1934: seus reflexos nas demais cartas constitucionais ...................... 97

5.5 – A Constituição de 1988: perspectivas de colaboração .................................................... 99

5.6 – A relação entre Igreja Católica e o Estado brasileiro .................................................... 103

5.6.a – A natureza jurídica da Santa Sé ................................................................................. 103

5.6.b – O Acordo Brasil/Santa Sé: Justificativas e Conteúdo ............................................... 105

5.7 – A relação entre o Estado e as demais religiões .............................................................. 110

5.8 – Considerações Finais ..................................................................................................... 113

Conclusão .............................................................................................................................. 116

Referências Bibliográficas ................................................................................................... 120

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Introdução

A tônica a respeito da liberdade religiosa está presente constantemente nas

discussões jurídicas que envolvem os Estados, e não é de hoje que se discutem os limites da

relação entre as religiões e os poderes públicos, tendo como ponto de partida ora problemas

políticos, ora os direitos dos homens, bem como a influência das religiões nas políticas

públicas. Esta discussão não é tão simples como parece, porque sempre que se dirigem pautas

a respeito de temáticas religiosas se adentra em um terreno particular muito complexo e que,

muito mais do que questões sociais e políticas, envolvem temas que conferem um verdadeiro

sentido de vida para os fiéis.

Há de se considerar também que o homem como sujeito social possui tanto o direito

de participar ativamente da vida pública como a de conduzir a sua vida a partir de conceitos

filosóficos, teológicos e humanos, assim como, religiosos que bem entendam; contudo,

existem certos limites de “sociabilidade” que, por si sós, já condicionam a possibilidade do

exercício de tal “ideologia” de vida.

Da mesma forma, quando se fala de religião, a comunidade política tem solidificado

que se trata de uma liberdade, um direito fundamental do homem, expressos por direitos como

de associação, de expressão, de culto. Assim, podemos dizer que a própria filosofia do direito

é constantemente convidada a refletir a respeito desta temática, sobretudo, em tempos em que

ainda estão presentes questões ligadas à intolerância religiosa, ou seja, neste momento

acontecem graves violações aos direitos fundamentais dos homens motivadas por questões de

fé.1

O objetivo deste trabalho é o de apresentar elementos que identificam a construção

do conceito da liberdade religiosa como um direito humano e fundamental, uma vez que

afastar o dado religioso da vida pública é mutilar um direito amplamente reconhecido e, além

disso, considerando que se trata de um direito fundamental, surge assim a possibilidade da

1 No dia em que concluía esta dissertação, aconteceu um ataque terrorista na França que resultou, na morte de

muitas pessoas inocentes, deixando centenas de feridos. Este atentado foi motivado por questões religiosas,

sendo o mais violento na França desde a segunda guerra mundial. Cf. “Ataques em Paris: 'Estado Islâmico'

assume autoria”. Disponível em: http://goo.gl/G0Fihp. Acesso em 14/11/2015.

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colaboração das religiões na construção de um cenário no qual elas possam participar

ativamente na vida política, sem ferir a laicidade e a identidade própria de cada país.

Além disso, este trabalho visa identificar o melhor caminho para a relação entre as

religiões e os Estados, considerando que este papel é de responsabilidade de toda a sociedade,

essa que deve direcionar suas forças para proteger, garantir e reconhecer o direito à liberdade

religiosa, buscando o respeito mútuo entre as diversas confissões religiosas.

Para isso, se faz necessário procurar meios, quer sejam filosóficos, sociais ou

jurídicos, para a construção de mecanismo que ao promover os direitos dos homens mantenha

igualmente a legítima separação entre religiões e Estados. Porém, fazendo dessas entidades

parceiras em vista dos direitos dos homens, uma vez que há objetos convergentes entre

ambas, pois, é o homem o único destinatário da ação, seja do Estado ou das religiões.

Assim, dedicamo-nos a investigar a temática da liberdade religiosa, seus desafios,

bem como as tensões ainda presentes em nossa sociedade e, para isso, procuramos oferecer,

no capítulo primeiro, uma proposta de definição deste direito, como também um panorama da

realidade da liberdade religiosa, sendo um direito humano e fundamental.

Para tanto, apresentamos, no capítulo segundo, um estudo da evolução dos direitos

humanos, buscando identificar sua fundamentação teológica, filosófica e histórica, visando a

consolidação do conceito de pessoa e do direito à liberdade religiosa. Diante disso, foi

necessária a investigação do pensamento de alguns filósofos, para que, compreendido o

conceito de pessoa humana, bem como sua dignidade, pudéssemos adentrar na compreensão

da positivação e internacionalização desses direitos, por meio da Declaração Universal dos

Direitos Humanos.

Chegando a esse ponto, no capítulo terceiro, ousamos desenvolver uma pesquisa

quanto à relação entre Estados e religiões através de um estudo da dimensão social da

religião, do lugar dos homens nos Estados e, da compreensão do direito à liberdade religiosa a

partir da formação do Estado moderno e, para isso, se fez necessário o estudo das ideias

contratualistas de Hobbes, Rousseau e, principalmente, de John Locke.

Solidificadas tais ideias, no capítulo quarto, foi feito um estudo da possibilidade

concreta de colaboração entre Estados e religiões, partindo do ensinamento de Locke e

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Maritain e passando pelos desafios quanto à universalidade do direito à liberdade religiosa,

até os modelos de relação entre Estados e religiões.

Por fim, no capítulo quinto, procuramos observar a temática da religião no Estado

brasileiro a partir da história das constituições brasileiras desde o Império, onde ainda havia o

padroado passando pelas constituições republicanas e respectivamente suas particularidades,

até chegarmos a possibilidade de colaboração entre religiões e o Brasil, solidificado na Carta

Magna de 1988. Tendo como destaque a colaboração entre o Brasil e a Santa Sé por meio do

Acordo Brasil/Santa Sé, para, averiguar como devem ser desenvolvidos os instrumentos

colaborativos na construção da relação Estados e religiões.

Mergulhar no mistério das relações entre os homens e suas religiões nos Estados em

vista da proteção e promoção de seus direitos fundamentais, principalmente o da liberdade

religiosa, é o objeto central de interesse desse trabalho, visto que, quanto mais o conceito da

liberdade religiosa for solidificado e identificado como um direito fundamental, melhor será a

construção da cultura de tolerância. Neste cenário as religiões e os Estados possuem um papel

fundamental, por isso, agindo de forma colaborativa, eles certamente contribuirão para o

desenvolvimento integral do homem.

Portanto, na perspectiva e na esperança de solidificar vias de colaboração entre

religiões e Estados em prol da pessoa humana, cidadão e fiel, esse trabalho foi sendo

construído vislumbrando poder ajudar a sociedade neste caminho, muitas vezes pedregoso,

que é o da garantia do exercício da liberdade religiosa pelos cidadãos no seio das

comunidades políticas. Assim, emerge a necessidade de averiguar a possibilidade dos

instrumentos colaborativos nessa relação, tendo sempre em meta a pessoa humana, objeto este

tanto das ações da religião como das políticas estatais.

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Capítulo Primeiro

A liberdade religiosa: um direito fundamental

1.1 – A liberdade religiosa – direito da pessoa humana

As questões em torno da liberdade religiosa, ou seja, da relação do homem com o

“sagrado” dentro das comunidades “políticas” vêm sendo objetos de estudos há muitos anos.

Como já afirmava Fustel de Coulanges:

Em todos os tempos e em todas as sociedades, o homem sempre quis honrar os

seus deuses com festas, estabeleceu, pois, dias durante os quais apenas o

sentimento religioso reinará em sua alma, sem ser tolhido por pensamentos ou

trabalhos terremos. Do número de dias que o homem tem para viver, reservou um

quinhão aos deuses.2

O homem sempre quis, portanto, buscar para si momentos, dias, lugares para poder

encontrar-se com sua divindade e, como um sujeito social, inserido em uma comunidade

política, é dentro desta estrutura que ele busca o sagrado; por outro lado, a vida de fé e a vida

civil, acabaram por se colidir, o que gera e gerou graves problemas nas relações entre

religiões e Estados.

Inúmeros são os fatos que demonstram os litígios provocados por questões religiosas,

porém, como investigar toda a história da relação entre Estados e religiões não é o objeto

deste trabalho, procuramos tecer um corte histórico/metodológico a partir da Reforma

Protestante e da formação do Estado moderno, esses quais influenciaram diretamente no

rompimento da relação entre a Igreja Católica, até então expressão única do cristianismo, e o

Estado; consequentemente, esses eventos produziram efeitos na formação jurídica e social dos

países ocidentais, motivos esses que influenciaram também diretamente na construção jurídica

do nosso país.

2 COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. Trad. Jean Melville. 2. ed. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 201.

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Há de considerar também que a solidificação da liberdade religiosa como um direito

da pessoa humana faz parte de um longo processo histórico que teve suas raízes em outras

ciências, como na Teologia, na Filosofia e na própria História. Contudo, há uma relação direta

entre direitos humanos e fundamentais e a liberdade religiosa, esta que é considerada como

um direito fundamental amparado no rol dos direitos humanos.

O direito à liberdade religiosa está ancorado nos direitos humanos, cuja base vem do

desejo do homem de oferecer respostas a respeito de sua origem e seu fim. Neste aspecto,

tanto a religião como a filosofia, inúmeras vezes, ousaram a dar tal resposta, sobretudo, no

que diz respeito às questões em torno do homem e de sua posição no mundo. Contudo, o

conceito de liberdade religiosa foi sendo construído à custa de muitas lutas, perseguições,

intolerâncias e afrontas aos direitos humanos e fundamentais.

No mundo atual há um duplo movimento em relação à liberdade religiosa: o

primeiro, relacionado com o aumento da consciência dos homens de suas liberdades, o

segundo, com a exigência de que esse direito seja exercido em ambientes públicos através de

certa proteção do Estado, como nos ensinou o Papa Paulo VI na declaração Dignitatis

Humanae – Sobre a Liberdade Religiosa:3

Os homens estão cada vez mais conscientes da dignidade da pessoa humana e, cada

vez em maior número, reivindicam a capacidade de agir segundo a própria

convicção e com liberdade responsável, não forçados por coação, mas levados pela

consciência do dever. Requerem também que o poder público seja delimitado

juridicamente, a fim de que a honesta liberdade das pessoas e das associações não

seja restringida mais do que é devido. Esta exigência de liberdade na sociedade

humana diz respeito principalmente ao que é próprio do espírito, e, antes de mais,

ao que se refere ao livre exercício da religião na sociedade.

Estes “movimentos” não somente impulsionam os Estados a estabelecerem uma carta

de normas direcionando as permissões e proibições do exercício do direito à liberdade

religiosa, mas também exigem que se busque encontrar os fundamentos desse direito e,

sobretudo, identificar qual o grau da importância da liberdade e sua relação para a proteção

dos direitos fundamentais dos homens.

3 PAULO VI, Papa. Declaração Dignitatis Humanae – Sobre a Liberdade Religiosa, n. 1. Disponível em:

goo.gl/7UV1JR. Acesso em 17/10/2015.

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Fruto desses movimentos, visando a proteção da liberdade religiosa foram diversas

as Cartas, Pactos e Convenções a respeito dos Direitos Humanos produzidos nos últimos

séculos, que a identificou como um direito fundamental da pessoa humana. Entre estas

destacam-se entre outros, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), o Pacto

Internacional dos Direitos Civis e Políticos e Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais

e Culturais (1966) e a Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e

Discriminação Fundadas na Religião ou nas Convicções (1981).

O principal documento é a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que

expressa claramente em seu artigo 18, o direito à liberdade religiosa, exigindo um empenho

público para a sua proteção e promoção por se tratar de um direito fundamental. Reza a

Declaração:

Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião;

este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de

manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela

observância, em público ou em particular.4

Outro exemplo claro do direito à liberdade religiosa como um “direito da pessoa

humana” são os esforços empreendidos por organismos internacionais, como a ONU, para

buscar e promover estratégias visando combater a ainda presente perseguição religiosa. Na

recente Assembleia Geral de 2015,5 diversos líderes de Estado, em seus discursos,

denunciaram os conflitos motivados por questões políticas e religiosas, uma vez que esses são

uma afronta direta aos direitos fundamentais dos homens.

Destacamos o discurso do Papa Francisco na ONU que, como chefe de Estado e líder

supremo da Igreja Católica, possui capacidade moral e jurídica para exortar a comunidade

internacional, principalmente no que diz respeito à responsabilidade dos Estados na proteção

das minorias inocentes. Afirmou o pontífice:

A mais elementar compreensão da dignidade humana obriga a comunidade

internacional, em particular através das regras e dos mecanismos do direito

4 Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em:

http://www.onu.org.br/img/2014/09/DUDH.pdf. Acesso em 02/11/2015. 5 Cf. “Na ONU, líderes religiosos e políticos discutem estratégias para conter aumento do extremismo”.

Disponível em: http://nacoesunidas.org/na-onu-lideres-religiosos-e-politicos-discutem-estrategias-para-conter-

aumento-do-extremismo/. Acesso em 08/11/2015.

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internacional, a fazer tudo o que estiver ao seu alcance para impedir e prevenir

ulteriores violências sistemáticas contra as minorias étnicas e religiosas e para

proteger as populações inocentes.6

O Papa Francisco cobrou a comunidade internacional para lutar em prol da proteção

dos direitos das minorias; ele apenas recordou os direitos já reconhecidos na Declaração

Universal dos Direitos dos Homens, e em inúmeras Constituições nacionais, tal qual a da

República Federativa do Brasil. Estas destacam explicitamente a proteção à liberdade

religiosa e a importância da temática da liberdade, principalmente pelo fato de que nela está

inserido um corolário de direitos, dentre esses, o de culto, o de consciência, o de associação, o

de expressão.

O discurso do pontífice ecoa em solo brasileiro, tendo em vista que a Constituição da

República Federativa do Brasil7 reconhece entre seus direitos fundamentais o da liberdade

religiosa. Pode-se afirmar que a Constituição brasileira de 1988 gerou um compromisso de

garantir direitos que, por sua própria natureza, possui matrizes históricas e filosóficas.8 Ou

seja, trouxe a noção de que há direitos fundamentais, que se fundamentam na natureza

humana e que existem antes mesmo do próprio Estado, sendo a liberdade religiosa um destes

direitos. Por isso, o Brasil, como membro da ONU, é chamado a proteger amplamente este

direito.

Porém, não é tão fácil identificar com precisão o que vem a ser a garantia da

liberdade religiosa e, consequentemente, a esfera de proteção de tal direito pelos Estados,

inclusive o brasileiro. Enfim, a liberdade religiosa está relacionada com outros direitos,

também fundamentais, como as liberdades de pensamento, de consciência, de fé, de crença,

de associação religiosa, de propaganda religiosa.

Portanto, pode-se afirmar que a base dos direitos fundamentais, dentre eles o da

liberdade religiosa, é a natureza humana. Assim, o que é positivamente reconhecido pelo

6 FRANCISCO, Papa. Discurso na Sede da ONU em 25 de setembro de 2015. Disponível em:

http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2015/september/documents/papa-francesco_20150925_onu-

visita.html. Acesso em 12/10/2015. 7 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://goo.gl/k8p32S. Acesso em

30/10/2015. 8 AMARAL JUNIOR, Alberto do; JUBILUT, Liliana Lyra (orgs.). O STF e o Direito Internacional dos

Direitos Humanos. São Paulo: Quartier Latin, 2009. p. 36.

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Estado é apenas um instrumento para dar visibilidade a esses direitos, tendo em vista que por

serem direitos inatos aos homens, são, por si sós juridicamente exigíveis, sem que afaste a

importância dos instrumentos jurídicos. Com isso, o direito a liberdade religiosa como um

fruto dos direitos fundamentais, ou seja, um direito da pessoa humana, constituiu o alicerce e

a finalidade da própria organização política; por isso, o reconhecimento desses direitos, como

direitos da pessoa humana, é a própria base do Estado.9

1.2 – Distinções e aproximações entre os direitos humanos e os direitos fundamentais

Os direitos humanos e fundamentais são considerados direitos com conteúdos

diversos, especialmente em razão dos seus âmbitos de incidência. Há correntes doutrinárias

que afirmam que os direitos humanos são, por um lado, direitos inscritos (positivados em

tratados ou em costumes internacionais), ou seja, são aqueles direitos que já ascenderam ao

patamar do Direito Internacional Público,10

dentre esses o direito a liberdade religiosa.

Ingo Wolfgang Sarlet afirma que o termo “direitos fundamentais”, por outro, se aplica

para aqueles direitos do ser humano, reconhecidos e positivados na esfera do direito

constitucional positivo de determinado Estado.11

Neste caso, a liberdade religiosa também

possui esse status, uma vez que se encontra positivadas pela Constituição Federal brasileira e

de diversos outros Estados.

Contudo, independente da distinção doutrinária desses direitos, o fato é que há uma

íntima relação entre os direitos humanos e os direitos fundamentais, uma vez que a maior

parte das Constituições após a segunda guerra se inspirou tanto na Declaração Universal de

Direitos Humanos (1948) quanto nos diversos documentos internacionais e regionais que as

sucederam. Como bem nos ensina Ingo Wolfgang Sarlet:12

9 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. A cultura dos direitos fundamentais. In: SAMPAIO, José Adércio

Leite. Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey. 2003. p. 245. 10

MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de direito internacional público. 4. ed. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2010, p. 750. 11

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,

2008, p. 35. 12

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,

2006, pgs. 39 e 40.

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18

Importa considerar a relevante distinção quanto ao grau de efetiva aplicação e

proteção das normas consagradoras dos direitos fundamentais (direito interno) e

dos direitos humanos (direito internacional), sendo necessário aprofundar, aqui, a

ideia de que são os primeiros que – ao menos em regra – atingem (ou, pelo menos,

estão em melhores condições para isto) o maior grau de efetivação, particularmente

em face da existência de instâncias (especialmente as judiciárias) dotadas do poder

de fazer respeitar e realizar estes direitos.

Há autores ainda que compreendem que os direitos humanos e os direitos

fundamentais possuem nomenclaturas sinônimas, porém, segundo sua origem e significado, é

possível distingui-las. Canotilho apresenta uma proposta de distinção quando afirma:

Direitos do homem (humanos) são direitos válidos para todos os povos e em todos

os tempos (dimensão jusnaturalista-universalista); direitos fundamentais são os

direitos do homem, jurídico-institucionalmente garantidos e limitados espaço-

temporalmente. Os direitos do homem arrancariam da própria natureza humana e

daí o seu carácter inviolável, intemporal e universal; os direitos fundamentais

seriam os direitos objetivamente vigentes numa ordem jurídica concreta.13

Desta maneira, para Canotilho os direitos fundamentais constituem a raiz

antropológica essencial da legitimidade da constituição e do poder político.14

Por sua vez,

José Afonso da Silva diz que direitos fundamentais são os que tratam de situações jurídicas

sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem sobrevive.15

Assim, direitos como o da liberdade religiosa, são por si sós, amplamente exigíveis,

independentes da positivação ou não; hoje, esse se encontra positivado tanto em declarações,

tratados internacionais, como na própria Constituição Federal de 1988. O que todavia confere

à liberdade religiosa certo grau de “excelência” não é a sua positivação, mas, sim, sua própria

origem, inata ao homem.

Nesta mesma perspectiva, a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, por meio

da Declaração de Viena (1993), esclarece:

13

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6. ed. Coimbra: Livraria Almedina. 1993. p.

517. 14

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6. ed. Coimbra: Livraria Almedina. 1993. p. 42. 15

SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 8. ed. São Paulo: Malheiros. 1992. pgs. 163 e

164.

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19

A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos reafirma o empenho solene de

todos os Estados em cumprirem as suas obrigações no tocante à promoção do

respeito universal, da observância e da proteção de todos os Direitos Humanos e

liberdades fundamentais para todos, em conformidade com a Carta das Nações

Unidas, com outros instrumentos relacionados com os Direitos Humanos e com o

Direito Internacional. A natureza universal destes direitos e liberdades é

inquestionável. Neste âmbito, o reforço da cooperação internacional no domínio

dos Direitos Humanos é essencial para a plena realização dos objetivos das Nações

Unidas. Os Direitos Humanos e as liberdades fundamentais são inerentes a todos os

seres humanos; a sua proteção e promoção constituem a responsabilidade primeira

dos Governos.16

Na Declaração de Viena percebe-se claramente o direito fundamental da liberdade

como sendo inerente a toda pessoa humana, ou seja, independente de sua positivação e/ou

distinção doutrinária trata-se de um direito inato ao homem, por isso a Declaração exortou

com tanta veemência os Estados para promover e proteger tais direitos do homem.

Quanto à relação entre liberdade religiosa e direitos fundamentais, podemos afirmar

que há um vínculo “genético” entre eles.17

Tal vínculo é o reflexo de um processo que

envolve muitos fatos históricos como lutas pela liberdade religiosa, por valores, como o da

liberdade religiosa em si, até chegar à fase de positivação de direito, onde encontrou seu ápice

na Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Por esta razão o Papa Bento XVI afirmou:

Entre os direitos e as liberdades fundamentais radicados na dignidade da pessoa, a

liberdade religiosa goza de um estatuto especial. Quando se reconhece a liberdade

religiosa, a dignidade da pessoa humana é respeitada na sua raiz e reforça-se a

índole e as instituições dos povos. Pelo contrário, quando a liberdade religiosa é

negada, quando se tenta impedir de professar a própria religião ou a própria fé e de

viver de acordo com elas, ofende-se a dignidade humana e, simultaneamente,

acabam ameaçadas a justiça e a paz, que se apoiam sobre a reta ordem social

construída à luz da Suma Verdade e do Sumo Bem. Neste sentido, a liberdade

religiosa é também uma aquisição de civilização política e jurídica.18

16

ONU (1993), Declaração e Programa de Ação de Viena – Conferência Mundial sobre Direitos Humanos.

Disponível em: <http://goo.gl/WlbEOO>. Acesso em 05/11/2015. 17

JELLINEK, Georg. La Declaración de los Derechos del Hombre y del Ciudadano, México (D.F.): Unam,

2000, p. 115. 18

BENTO XVI, Papa. Liberdade Religiosa, Caminho para a Paz. Mensagem para o Dia Mundial da Paz de

2011. Disponível em: http://goo.gl/WR6dYC. Acesso em 07/11/2015.

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20

Assim, vastamente se encontra na doutrina justificativa que atribui à liberdade

religiosa uma dimensão central na problemática dos direitos fundamentais,19

tendo em vista

que a liberdade religiosa é frequentemente ponto de partida para a conquista de outras

liberdades. Dessa forma, como um direito fundamental, ela possui uma prioridade

cronológica20

quando comparada aos outros direitos fundamentais e sem dúvida, a questão da

liberdade religiosa repercutiu diretamente nas Declarações de Direitos, e, nas Constituições

que inauguram o Constitucionalismo moderno.21

Independentemente das divergências doutrinárias entre os direitos humanos e direitos

fundamentais, bem como o campo de abrangência e proteção de tais direitos, o fato é que há

uma relação direita entre eles referentes à própria origem desses direitos, por isso, quando nos

referimos à liberdade religiosa como um direito fundamental, pode-se dizer que ela é também

um direito humano, tendo em vista que possui por si só a devida força de proteção.

Portanto, quanto ao fator religioso, sempre esteve no epicentro das transformações

institucionais que caracterizaram a emergência do constitucionalismo, ou seja, a liberdade

religiosa pode ser considerada a “mãe de todas as liberdades”, desta maneira deve ser

amplamente protegida pelos direitos humanos e fundamentais, referentes à pessoa humana.

1.3 – A liberdade religiosa: proposta de definição

A liberdade religiosa está relacionada com a capacidade do homem de

autodeterminam-se na investigação e adoção da verdade religiosa que bem entenda e de

ajustar sua conduta individual e social conforme os preceitos morais, que descobre conforme

19

MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional: Direitos Fundamentais. Tomo IV. 3.ed.. Coimbra:

Coimbra Editora, 2000, p. 407. 20

ADRAGÃO. Paulo Pulido. A Liberdade Religiosa e o Estado. Coimbra: Almedina, 2002, pgs. 506 e 507. 21

Temas referentes à liberdade religiosa estão presentes na Declaração de Direitos de Virgínia, de 1776, (seção

16); na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, (art. 10); e na Emenda nº 1, de 1789, à

Constituição norte-americana de 1787.

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21

sua consciência, ou seja, consiste na faculdade legítima frente ao Estado de professar a

religião e praticar o culto, segundo sua razão e consciência.22

Muito bem nos esclareceu o Papa Bento XVI, na Mensagem “Liberdade Religiosa,

Caminho para a Paz”, em razão do Dia Mundial da Paz de 2011, a respeito da liberdade

religiosa, afirmando:

Liberdade religiosa exprime-se a especificidade da pessoa humana, que, por ela,

pode orientar a própria vida pessoal e social para Deus, a cuja luz se compreendem

plenamente a identidade, o sentido e o fim da pessoa. Negar ou limitar

arbitrariamente esta liberdade significa cultivar uma visão redutiva da pessoa

humana; obscurecer a função pública da religião significa gerar uma sociedade

injusta, porque esta seria desproporcionada à verdadeira natureza da pessoa; isto

significa tornar impossível a afirmação de uma paz autêntica e duradoura para toda

a família humana. (...) a liberdade religiosa deve ser entendida não só como

imunidade da coação, mas também, e antes ainda, como capacidade de organizar as

próprias opções segundo a verdade.23

A liberdade consiste no fato de que todos os homens sejam imunes de coação, tanto

por parte de pessoas particulares como de grupos sociais e qualquer poder humano, de modo

que, em matéria religiosa, ninguém se obrigue a atuar contra sua consciência, nem seja

impedido de atuar conforme ela quer seja pública ou privadamente, sozinho ou associado com

outros dentro dos devidos limites.24

De fato, pode-se dizer que a liberdade religiosa possui basicamente três dimensões: a

liberdade de consciência, a de culto e a de apostolado. O jurista espanhol Francisco Vera25

nos

ensina que a liberdade de consciência considera antes de tudo, a pessoa humana sujeito

individual, que é a capacidade do indivíduo de investigar livremente a verdade religiosa e de

aderir-se a ela, sem ser coagido; contudo, essa liberdade somente entra na esfera jurídica,

quando se depara com a possibilidade de manifestação externa, muitas vezes expressa nos

cultos.

22

VERA URBANO, Francisco de Paula. La Libertad Religiosa como Derecho de La Persona. Madrid:

Instituto de Estudios Políticos, 1971, p. 32. 23

BENTO XVI, Papa. Liberdade Religiosa, Caminho para a Paz. Mensagem para o Dia Mundial da Paz de

2011. Disponível em: http://goo.gl/WR6dYC. Acesso em 07/11/2015. 24

OTADUY, Javier; VIANA, Antonio; SEDANO, Joaquín. Diccionario General de Derecho Canónico. Vol.

V. Madrid: Aranzadi, 2013, p. 164. 25

VERA URBANO, Francisco de Paula. La Libertad Religiosa como Derecho de La Persona. Madrid:

Instituto de Estudios Políticos, 1971, pgs. 34 a 36.

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22

A liberdade de culto, para ele, decorre da necessidade humana de manifestar

externamente seu pensamento e sentimento religioso, buscando não somente uma satisfação

emocional, mas também uma inclusão social, e por essa razão, a liberdade de culto não é

apenas um acidente, mas, sim, necessária para a liberdade religiosa, ou seja, pode-se dizer que

a liberdade de culto é a liberdade religiosa coletiva. Para o direito, a liberdade de culto

somente é objeto de estudo no que se refere ao externo, e não ao obséquio interno da fé.

Por fim, a liberdade de apostolado tem como finalidade, como nos ensina Francisco

Vera, de acrescentar o fervor religioso entre os fiéis da mesma comunidade, por meio de

pregações fora e dentro do culto e de outras práticas pastorais, como, ensinamento do

catecismo, escritos em revistas e livros, cinema, teatro, rádio, televisão, internet. Porém,

distingue-se duas formas de apostolado: o primeiro, chamado interno, é o destinado às

pessoas da mesma profissão de fé; o segundo, externo, possui como finalidade alcançar a

todos, crentes ou não.

O exercício da liberdade religiosa garante não somente a possibilidade de professar

uma fé, mas também a de comunicá-la; nesse sentido, amplamente a doutrina constitucional

ampara a liberdade de expressão, como, por exemplo, através dos ensinamentos de José

Afonso da Silva, que afirma a liberdade de opinião como sendo a liberdade primária e ponto

de partida das outras liberdades, essa que, segundo ele, manifesta tanto em seu aspecto íntimo

revelado na liberdade de consciência e de crença, bem como no seu aspecto externo, que se

manifesta pelo exercício das liberdades de comunicação, de religião, de transmissão e

recepção do conhecimento e de expressão intelectual, artística, científica e cultural.26

Conforme vimos, a liberdade religiosa bem como as demais liberdades decorrentes

dela como, por exemplo, às citadas liberdades de consciência, de culto e de apostolado

possuem um grande aspecto externo, sendo justamente essa a dimensão objeto do direito.

Contudo, não se trata de simples “escalas sucessivas” de liberdade, tendo em vista que a

proteção jurídica desses direitos muitas vezes se funde.

26

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 35. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2012,

p. 241-256.

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23

Jorge Miranda27

considera ainda que liberdade religiosa deriva da liberdade de

consciência, ou seja, da capacidade de ter convicções filosóficas destituídas de caráter

religioso. Assim, a matriz da proteção constitucional não seria o direito à “fé” em si, mas, sim,

a liberdade de consciência, essa stricto sensu de característica muito mais filosófica que

religiosa.

Em relação à liberdade de expressão, afirma Jorge Miranda que ela é mais que a

liberdade de comunicação social, abrangendo, portanto, todos e quaisquer meios de

comunicação entre as pessoas, a palavra, a imagem, o livro, qualquer outro escrito, a

correspondência escrita e por telecomunicações, o espetáculo e outros meios.28

John Rawls,29

por sua vez, relaciona a liberdade religiosa com questões relativas às

liberdades individuais, justificando que cada indivíduo é livre para professar suas próprias

crenças religiosas ou filosóficas, cuja justificação se alcança com base em um equilíbrio

razoável de valores políticos públicos, ou seja, em sua teoria ele busca propiciar a

coexistência das “religiões” e doutrinas filosóficas razoáveis, desde que essas estejam

articuladas no exercício da razão pública.

Todos esses exemplos indicam a correlação intrínseca da liberdade religiosa com o

direito, tendo em vista que ela possui uma dimensão pública, visível principalmente na

proteção do direito à liberdade de consciência, de associação, de expressão, por exemplo. Por

esta razão, o dado religioso nunca passou despercebido pelos poderes públicos.

Contudo, o conceito de liberdade religiosa foi sendo construído à custa de lutas,

perseguições, intolerâncias e afronta aos direitos humanos, até que se chegar a definição da

liberdade religiosa, como a capacidade que tem o homem de autodeterminar-se na

investigação e adoção da verdade religiosa e de ajustar sua conduta individual e social

conforme os preceitos morais, que descobre conforme sua consciência, consiste na faculdade

legítima frente ao Estado de professar a religião e praticar o culto, segundo sua razão e

consciência.30

27

MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional: Direitos Fundamentais. Tomo IV, 3. ed. Coimbra:

Coimbra Editora, 1993. p. 365. 28

MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional: Direitos Fundamentais. Tomo IV. Coimbra: Coimbra

Editora, 1988, p. 374. 29

RAWLS, John. O liberalismo político. Trad. Álvaro de Vita. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. 287-288. 30

VERA URBANO, Francisco de Paula. La Libertad Religiosa como Derecho de La Persona. Madrid:

Instituto de Estudios Políticos, 1971, p.32.

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24

Enfim, essas definições a respeito da liberdade religiosa são de suma importância,

pois, a partir delas, foi se desenvolvendo a noção de que o sujeito, cidadão livre, dentro de um

Estado, possui o direito a investigar, aceitar, promover, divulgar, os conteúdos de fé nos quais

deseja conformar sua vida.

1.4 – As tensões da liberdade religiosa no mundo contemporâneo

Ainda hoje todos se deparam com diversos conflitos que envolvem a temática

religiosa. Pode-se dizer que, em maior ou menor grau, nunca a perseguição religiosa foi

cessada. Basta olharmos para a história dos séculos XX e XXI, que encontraremos inúmeros

conflitos que envolviam e as que envolvem as questões de fé.31

Recordemos, a título exemplificativo, a questão judaica na Alemanha nazista,32

a

destruição das Igrejas pelos comunistas russos, a proibição ao culto religioso não oficial na

China atual, o histórico conflito entre Israel e Palestina, o sequestro de crianças cristãs por

grupos extremistas muçulmanos na Nigéria e o mais surpreendente, devido à crueldade, os

assassinatos de cristãos e outras minorias pelo “Estado Islâmico – El”, em algumas regiões da

Síria e do Iraque.

Porém, um marco histórico na história recente a respeito da temática da liberdade

religiosa e, consequentemente, da proteção dos direitos inerentes a ela, foi o atentado

terrorista de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, uma vez que a sua motivação foi

tida como de natureza política/religiosa. A partir da queda das Torres Gêmeas, começaram a

se repensar os limites da liberdade religiosa, entre eles os de expressão e promoção da fé, uma

vez que, amparados na “liberdade de expressão”, conferida pela própria natureza do direito

31

FUNDAÇÃO AIS (Ajuda a Igreja que Sofre). Perseguidos e Esquecidos? Um Relatório sobre os Cristãos

Oprimidos por causa da sua Fé – 2013-2015. Trad. Sofia Leitão. Disponível em: http://goo.gl/j8lVeD. Acesso

em 30/11/2015. 32

Hannah Arendt trata brilhantemente a respeito da questão judaica e a maneira pelo qual progressivamente os

judeus, de um povo que estava inserido na alta sociedade europeia, foi sendo perseguido e colocado à margem

não somente do Estado, mas também da própria condição humana. Cf. ARENDT, Hannah. Origem do

Totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

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25

fundamental da liberdade religiosa, grupos extremistas divulgaram sua ideologia e recrutaram

membros para, em nome da fé, praticar atentados terroristas.

Urge, portanto, uma reflexão concreta a respeito da liberdade religiosa e a

possibilidade da relação entre religiões e Estados, pois a liberdade religiosa não se trata

apenas de uma garantia a determinado grupo ou religião, mas, sim, de um direito humano,

fundamental, inato ao homem, que não pode ser mutilado, quer seja pela autoridade pública,

quer seja por grupos religiosos.

Os exemplos citados acima demonstram o quanto o fato religioso está inserido na

vida social e, ao mesmo tempo, que a proteção da liberdade religiosa, ou seja, o direito do

homem em investigar e aderir ao “sagrado”, não se trata apenas de uma questão privada que

possa ser excluída da vida pública.

O fato é que o Estado não pode ignorar o dado religioso em vista dos direitos

fundamentais dos homens, mesmo quando ele se encontra diante de graves problemas

políticos, como, por exemplo, a questão dos muçulmanos no mundo, ou a atual perseguição

aos cristãos na Síria pelos membros do “Estado Islâmico”.33

O Estado como garantidor dos

direitos fundamentais deve ser o primeiro a desenvolver instrumentos de proteção aos

cidadãos quanto às questões religiosas.

Por outro lado, temáticas religiosas são sempre muito sensíveis e, por vezes, geram

inúmeros preconceitos a um determinado grupo religioso. Basta ver o quanto membros

pacíficos e equilibrados do Islã sofreram com “perseguições” midiáticas, sociais e religiosas

nos Estados Unidos após o atentado às Torres Gêmeas, uma vez que uma grande parcela da

sociedade generalizou a atitude dos terroristas como se esse pequeno grupo expressasse o

desejo de todos os membros de uma religião.

Por esse e outros motivos diversas autoridades de Estado tem utilizado da

visibilidade de seus discursos e chamado a atenção para os problemas da liberdade religiosa.

Entre esses, destacamos o célebre discurso do presidente norte americano Barack Obama na

33

Devido à escassez de produção científica a respeito do Estado Islâmico, fez-se necessária uma ampla pesquisa

nos meios de comunicação social para o conhecimento de tal fenômeno, realizada entre os dias 01 a 06

novembro de 2015, nos seguintes endereços eletrônicos: http://goo.gl/wvUFsn; http://goo.gl/CCbJjL;

http://goo.gl/1jA6aB; http://goo.gl/4OW5Bh; http://goo.gl/Xue7Fl; http://goo.gl/Dq1cbI; http://goo.gl/WKq42u;

http://goo.gl/9Wj9Ua.

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26

Universidade do Cairo, Egito,34

em 4 de junho de 2009, onde manifestou a necessidade de

reconciliação com o Islã, expressando a grande colaboração histórica dos muçulmanos na

construção da nação americana e em outros países.

Nesse discurso, o presidente americano reafirmou que a liberdade religiosa é um

direito inato aos homens, ou seja, um direito fundamental consagrado na Declaração

Universal dos Direitos Humanos e em outros instrumentos internacionais. Para ele, a

liberdade para professar, praticar e propagar a fé deve ser respeitada por todas as sociedades e

por todos os governos.

Barack Obama afirmou ainda que os povos de todos os países devem ser livres para

escolher e viver sua fé com base na convicção da mente, do coração e da alma. Essa tolerância

é fundamental para que a religião cresça, mas ela está sendo refutada de diversas maneiras, ou

seja, a liberdade religiosa é um direito fundamental, um bem social, uma fonte de estabilidade

e um fator fundamental para a segurança internacional.35

Outro discurso de uma autoridade estatal reafirmando a liberdade religiosa como um

direito fundamental, destacando a função do Estado em promover tal direito, foi o do

embaixador da Santa Sé junto as Nações Unidas, Dom Silviano Tomasi, durante a XVI

Sessão Ordinária do Conselho Dos Direitos Humanos da ONU, em 2 de março de 2011,

quando afirmou:

No centro dos direitos humanos fundamentais estão as liberdades de religião, de

consciência e de crença: elas influenciam a identidade pessoal e as escolhas

essenciais, além de tornar possível beneficiar de outros direitos humanos. (...) O

Estado tem o dever de defender o direito à liberdade religiosa e, por conseguinte, a

responsabilidade de criar as condições que tornam possível usufruir deste direito.

(...) O Estado deveria apoiar todas as iniciativas que visam promover o diálogo e o

respeito recíproco entre as comunidades religiosas. Deve aplicar as próprias leis

que lutam contra a discriminação religiosa, com vigor e imparcialidade; garantir a

incolumidade física às comunidades religiosas vítimas de ataques; e encorajar as

maiorias para que permitam às minorias religiosas praticar a própria fé

individualmente e na comunidade, sem ameaças nem impedimentos. (...) a negação

da liberdade religiosa enfraquece qualquer aspiração democrática, favorece a

opressão e reprime a sociedade inteira, que consequentemente pode explodir com

efeitos trágicos. Deste ponto de vista, é também evidente que a liberdade de

religião e de crença está complementar e intrinsecamente ligada ao da liberdade de

34

A integra do Discurso do presidente Barack Obama está disponível em: http://goo.gl/9SCK0v. Acesso em

31/10/2015. 35

Relatório sobre Liberdade Religiosa Internacional. Disponível em: http://goo.gl/zrz9Sc. Acesso em

31/10/2015.

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opinião, de expressão e de agregação. Além disso, um contexto de verdadeira

liberdade religiosa torna-se o melhor remédio para prevenir a manipulação da

religião para fins políticos de conquista e conservação do poder e de opressão dos

dissidentes, das comunidades de fé diferentes ou das minorias religiosas.36

A liberdade religiosa é um direito fundamental amplamente “explorado” pelos

Estados, pois se trata de um direito inato de todas as pessoas, ou seja, o direito à liberdade

religiosa está radicado na própria dignidade da pessoa humana,37

independentemente da fé

que professa ou da falta dela. Além disso, esta temática envolve a questão central da liberdade

de consciência e, consequentemente, se expande para diversos outros direitos como os de

culto, de associação, de expressão.

Por esta razão, cabe ao Estado a promoção de inúmeras iniciativas visando à

proteção desse direito, quer seja fazendo como o presidente americano, que buscou uma

“reconciliação” com os muçulmanos, ou como o embaixador da Santa Sé na ONU, que

exortou os Estados de suas responsabilidades frente ao direito à liberdade religiosa.

Assim, destaca-se ainda que há um duplo múnus por parte do Estado em relação ao

direito fundamental à liberdade religiosa, quais sejam: promover a chamada

autodeterminação38

do indivíduo quanto a suas questões de consciência e o de não poder

impor concepções filosóficas aos cidadãos, devendo admitir, igualmente, que o indivíduo aja

de acordo com suas convicções, inclusive as de natureza religiosa.39

Quando se diz em liberdade religiosa, é preciso ainda esclarecer que não se refere

apenas à liberdade dos católicos frente ao Estado laico, ou dos espíritas, agnósticos,

protestantes, diante de uma autoridade Estatal confessional católica, por exemplo, mas, sim, a

liberdade religiosa abraça a todos, visando o direito do homem de crer ou não, pois seu

fundamento é justamente a liberdade do homem em conhecer ou não o “sagrado” e, a partir de

sua adesão, conformar a sua vida e consciência de acordo com sua crença. Diante disso, ela é

36

Discurso de Dom Silviano Tomasi na XVI Sessão Ordinária do Conselho Dos Direitos Humanos da ONU, em

2 de março de 2011. Disponível em: http://goo.gl/7wgBXB. Acesso em 31/10/2015. 37

BENTO XVI, Papa. Liberdade Religiosa, Caminho para a Paz. Mensagem para o Dia Mundial da Paz de

2011. Disponível em: http://goo.gl/WR6dYC. Acesso em 07/11/2015. 38

BONAVIDES, Paulo. MIRANDA, Jorge. AGRA, Wagner de Moura Agra. Comentários à Constituição

Federal de 1988. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 100. 39

MENDES, Gilmar Ferreira. COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de

Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 403.

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um direito humano de suma importância para a ordem social; assim, não respeitá-la é não

respeitar a própria noção de direitos fundamentais.

Pode-se afirmar, por fim, que é muito complexa a temática da liberdade religiosa; por

isso, ainda se encontram conflitos motivados por questões de fé. Por outro lado, a

compreensão da liberdade religiosa como um direito fundamental, a partir da Declaração

Universal dos Direitos Humanos, mudou o itinerário de proteção desse direito pelos Estados,

uma vez que a Declaração Universal representa a consciência histórica de que a humanidade

possui valores fundamentais.40

Por esta razão, para a compreensão desse fenômeno, visando à construção de

instrumentos jurídicos sólidos para a proteção do direito fundamental da liberdade religiosa,

faz-se necessária uma investigação científica da fundamentação histórica, filosófica, teológica

dos direitos humanos e, consequentemente, do direito à liberdade religiosa.

40

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. 21. tiragem. Rio de Janeiro: Elsevier,

2004, p. 33.

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29

Capítulo Segundo

A evolução dos direitos humanos: a consolidação da liberdade religiosa

2.1 – Fundamentações teológicas, filosóficas e históricas dos direitos humanos

Os direitos humanos e, consequentemente, o direito à liberdade religiosa como o

conhecemos, nasceram com o pensamento moderno, ainda que possuíssem seus precedentes

nos direitos naturais. Por isso, esses direitos devem ser entendidos correspondentes à pessoa

em atenção a seu próprio modo de ser natural, considerando as circunstâncias que as rodeiam,

ou seja, sem ignorar as exigências históricas.41

Assim, neste Capítulo procuramos apresentar de forma geral os processos

estruturantes vividos pelos direitos humanos, considerando principalmente o direito à

liberdade religiosa, uma vez que esse direito fundamental faz parte do amplo leque de direitos

e garantias componentes das temáticas humanas.

Os direitos humanos não constituem apenas exigências éticas ou morais que

dependam de um consenso e positivação para converterem-se em autênticos direitos. Não é

uma simples adesão coletiva que oferece fundamento aos direitos humanos, bem como ao

direito à liberdade religiosa. Eles, decorrem da própria dignidade ontológica de todo ser

humano. Justamente, é a dignidade que converte o ser humano em um fim em si mesmo e esta

resultaria debilitada se não se reconhecessem os direitos e as liberdades essenciais para o

desenvolvimento pessoal, livre e responsável dos homens.42

Contudo, esses direitos por muitos anos foram compreendidos de maneira subjetiva,

atribuídos a um ser humano, mas foi entre os séculos VII a II A.C. que eles tomaram forma e,

nesse sentido, sua origem acompanha o surgimento da filosofia que entre outras coisas

41

OTADUY, Javier; VIANA, Antonio; SEDANO, Joaquín. Diccionario General de Derecho Canónico. Vol.

III. Madrid: Aranzadi, 2013, p. 212. 42

OTADUY, Javier; VIANA, Antonio; SEDANO, Joaquín. Diccionario General de Derecho Canónico. Vol.

III. Madrid: Aranzadi, 2013, p. 213.

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substituía as explicações mitológicas a respeito do homem e do mundo, para uma

compreensão mais racional, centralizada no sujeito.

Foi o nascimento da filosofia que marcou uma nova etapa nos direitos humanos,

pois, a partir dela, o indivíduo começou a ousar exercer sua faculdade crítica racional da

realidade, tornando em si mesmo o principal objeto de análise e reflexão.43

Assim, o ser

humano passou a ser considerado como um ser dotado de liberdade e razão, nascendo dessa

forma, os fundamentos intelectuais para a compreensão da pessoa humana e para a afirmação

da existência de direitos universais a ela inerentes.44

Outro marco histórico na construção da noção de pessoa humana, bem como seus

direitos foi o nascimento das religiões. Essas, que têm por fundamento a “supremacia” dos

seres humanos e a igualdade essencial entre os homens livres e racionais, tudo isso contribuiu

para a formação da ideia da “sacralidade” do homem diante do mundo, detentor de, direitos

próprios e invioláveis decorrentes desta condição.

Neste sentido, aos poucos foi sendo desenvolvido um dos fundamentos principais

dos direitos humanos e da liberdade religiosa, que é a ideia da dignidade do homem e dos

direitos decorrentes a essa condição, dignidade esta que pode ser qualificada como

pertencentes a todas as pessoas em razão de sua natureza humana, dotada de inteligência e

vontade.

Quanto ao direito à liberdade religiosa, de fato ele não se funda na disposição

subjetiva da pessoa, mas na sua própria natureza. Portanto, se seu fundamento é a dignidade

da natureza humana, esse direito é inerente a toda pessoa humana, independente de quaisquer

outras circunstâncias, uma vez que se trata de um verdadeiro direito humano, e não de um

direito subjetivo.45

Neste contexto, é que se desenvolve a noção dos direitos humanos e, entre eles, o da

liberdade religiosa, fundamentados na noção de dignidade surgida principalmente com a

filosofia e as religiões. Por essa razão, é necessário investigar a fundamentação teológica,

43

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 8. ed. São Paulo: Saraiva,

2013, p. 22. 44

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 8. ed. São Paulo: Saraiva,

2013, p. 24. 45

OTADUY, Javier; VIANA, Antonio; SEDANO, Joaquín. Diccionario General de Derecho Canónico. Vol.

V. Madrid: Aranzadi, 2013, p. 166.

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31

filosófica e histórica da construção desses direitos, para a partir dos conteúdos extraídos,

demonstrar a importância dos direitos humanos para a garantia da promoção humana e seus

anseios mais íntimos, dentre esses a possibilidade de relacionar-se com o “sagrado” na

comunidade social em que faz parte.

2.2 – A fundamentação teológica dos direitos humanos

A inquietação do homem em “conhecer a si mesmo” é um drama um tanto quanto

antigo, e essa inscrição já estava esculpida do templo de Delfos e, com o tempo, tornou-se

uma característica de todo o homem que, ao distinguir-se dos outros seres, se conhecendo, se

auto identificava como “homem”, ou seja, como um sujeito único, livre e racional.

Neste itinerário de autoconhecimento e conhecimento do outro, as religiões

desempenharam uma função primordial e acabaram por contribuir no desenvolvimento do

próprio direito do homem. De fato, a busca por respostas a respeito de sua existência foi um

verdadeiro impulso “intelectual” ao homem, desejo que se encontra no próprio “coração do

homem”. Inúmeras religiões fizeram parte desse processo de desenvolvimento, como nos

ensinou João Paulo II:

Basta um simples olhar pela história antiga para ver com toda a clareza como

surgiram simultaneamente, em diversas partes da terra animadas por culturas

diferentes, às questões fundamentais que caracterizam o percurso da existência

humana: Quem sou eu? Donde venho e para onde vou? Porque existe o mal? O que

é que existirá depois desta vida? Estas perguntas encontram-se nos escritos

sagrados de Israel, mas aparecem também nos Vedas e no Avestá; achamo-las

tanto nos escritos de Confúcio e Lao-Tze, como na pregação de Tirtankara e de

Buda; e assomam ainda quer nos poemas de Homero e nas tragédias de Eurípides e

Sófocles, quer nos tratados filosóficos de Platão e Aristóteles. São questões que

têm a sua fonte comum naquela exigência de sentido que, desde sempre, urge no

coração do homem: da resposta a tais perguntas depende efetivamente a orientação

que se imprime à existência.46

46

JOÃO PAULO II, Papa. Carta Encíclica Fides et Ratio. Disponível em: http://goo.gl/nsoTb1. Acesso em:

31/10/2015.

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A partir dessa busca, nasce a justificativa religiosa dos direitos humanos, pois o

homem, ao se conhecer, procurou respostas em “Deus” e, se reconhecendo criatura, passou a

enxergar sua condição de homem distinta dos outros seres, ou seja, fundamentada na ideia da

criação do mundo por um Deus único e transcendente; ele, homem criatura, identificou-se

com uma posição eminente na ordem da criação; por isso, os direitos inerentes, inatos ao

homem, seriam justificados no próprio divino, que, dando a ele a possibilidade de se

conhecer, lhe revelaria sua condição de “sagrado”.

A narrativa bíblica a respeito da criação nos ajuda a entender esse processo de

autoconhecimento e identificação do homem com o “Deus Criador” e, a partir desse processo,

ocorre o surgimento das bases teológicas a respeito da própria condição humana, da dignidade

humana, bem como dos direitos humanos. O Livro de Gênesis narra esse fato, afirmando que

Deus criou o homem à sua imagem e semelhança:

Então Deus disse: Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. Que ele reine

sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos e

sobre toda a terra, e sobre todos os répteis que se arrastem sobre a terra. Deus criou

o homem à sua imagem; criou-o à imagem de Deus, criou o homem e a mulher.

(Gên. 1, 26-27).47

A partir dessa afirmação, surge a noção da “sacralidade” do homem, tendo em vista

que, nesta perspectiva, a ciência teológica afirma que o homem foi criado mediante uma ação

de amor de Deus, sendo que o mistério transcendente de Deus se reflete no mistério da pessoa

humana como imagem de Deus. Além disso, afirma a Teologia que a pessoa humana é dotada

de liberdade, apta a entrar em comunhão com os outros e chamada por Deus a um destino que

transcende as finalidades da natureza física. Este fato acontece mediante uma livre e gratuita

relação de amor com Deus, que se realiza na história.48

A princípio, a fundamentação dos direitos humanos, bem como da dignidade

humana, da liberdade religiosa, não se esgota apenas na justificativa teológica, que afirma

principalmente que esses direitos decorrem do fato de o homem ter sido criado à imagem e

semelhança de Deus.

47

Cf. Bíblia Sagrada, livro de Gêneses, capítulo 1, versículos 26 e 27. (Editora Ave Maria) 48

Comissão Teológica Internacional. Em busca de uma ética universal: Novo olhar sobre a Lei Natural.

Disponível em: http://goo.gl/YT7qIU. Acesso em 07/11/2015.

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33

Hoje em dia, o reconhecimento desses direitos não se fundamenta somente em

questões de cunho religioso-teológico, pois, principalmente após a Declaração Universal dos

Direitos Humanos, foram ampliados os conceitos dos direitos humanos e seus fundamentos

esses que se expandiram para temáticas além dos credos religiosos, como bem nos ensinou

Jónatas Machado:

A ideia de dignidade da pessoa humana apresenta-se hoje imbuída de um conteúdo

político-moral que, embora escorado na concepção judaico-cristã do homem criado

à imagem e semelhança de Deus – isto é, portador de uma Imago Dei e enriquecido

com os contributos da teológica católica e protestante, prescinde atualmente de

qualquer vínculo confessional específico, sendo inadmissível a sua colocação ao

serviço de uma promoção de uma particular concepção teológica da verdade

objetiva ou de bem comum. Também ela sofreu, a partir do Iluminismo, um

processo de racionalização e secularização que a coloca presente num nível de

generalidade suficientemente elevado para abarcar as ideias de livre

desenvolvimento pessoal e social do ser humano, nas suas dimensões físicas,

intelectuais e espirituais, e de garantia de recursos materiais que possibilitem o

acesso a um nível mínimo de existência humanamente digna a todos os indivíduos.

Assim entendida, a dignidade humana não é propriedade da religião em geral ou de

uma confissão religiosa em particular.49

Há, portanto, outras respostas que justificam a fundamentação dos direitos humanos

e dos decorrentes a ele, contudo, todas as “fundamentações” – teológica, filosófica, histórica –

não são excludentes e, diante de um processo histórico, acabam por se complementarem.

Nesse sentido, a doutrina jurídica indica que os direitos humanos foram solidificados ao longo

do tempo a partir do desenvolvimento de dois conceitos básicos, quais sejam: pessoa humana

e sua dignidade, que estavam presentes em todas as fundamentações.

Por essa razão, para a compreensão dos direitos humanos e, principalmente, a da

liberdade religiosa como um direito fundamental, é necessário um mergulho profundo no

desenvolvimento filosófico dos conceitos de pessoa humana e sua dignidade, bem como na

própria solidificação história dos direitos humanos. Uma vez que esses dados são de suma

importância para a posterior proposta de colaboração entre as religiões e os Estados, pois, tais

conceitos, constituem as bases para a proteção efetiva do direito humano e fundamental da

liberdade religiosa.

49

MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva:

dos direitos da verdade aos direitos dos cidadãos. Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p. 193.

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2.3 – A fundamentação filosófica dos direitos humanos: o conceito de pessoa

Como visto, há uma relação direta entre direitos humanos e dignidade da pessoa

humana; contudo, quando se fala de pessoa humana, é impossível deixar de lado o conceito de

pessoa. A origem etimológica da palavra “pessoa” encontra-se no termo latino persona, que

se referia à máscara que os atores utilizavam em suas representações teatrais.

Porém, ao longo dos anos, foi se desenvolvendo entre os gregos uma reflexão

antropológica a partir de uma perspectiva “cosmológica”, segundo a qual o ser humano era

compreendido como a realidade natural mais elevada. Nem os gregos e nem os romanos

conseguiram, porém, perceber nele a realidade única, original, particular e concreta do ser

pessoa.50

É a perspectiva cosmológica grega que possibilitará a primeira abordagem da

dignidade do homem, que, segundo Aristóteles, é mais evidente naqueles que desenvolvem de

forma destacada a atividade intelectual própria da alma humana, como é o caso dos filósofos.

Segundo as tradições platônica e aristotélica, a dignidade do homem seria proporcional à sua

capacidade de pensar e conduzir a própria existência desde a razão.

Na antiguidade clássica, a ideia de dignidade estava relacionada com a posição social

que o indivíduo ocupava na sociedade e o seu grau de reconhecimento pelos demais membros

da comunidade, de modo que este conceito possuía uma intepretação restrita. Além disso, a

dignidade era relacionada com um grupo de “homens iguais em dignidade”, portanto, não se

estendia a todo “homem”. É nesse sentido que se falava em uma quantificação e modulação

da dignidade, admitindo a existência de pessoas mais ou menos dignas.51

Coube ao Cristianismo potencializar a noção de dignidade ao conferir um senso de

liberdade, igualdade e fraternidade, ou seja, dignidade a todos os homens. Esse fato é visto de

maneira clara na Carta de São Paulo aos Gálatas, quando o apóstolo afirma que “todos são

50

SOARES, André Marcelo M. Um breve apontamento sobre o conceito de dignidade da pessoa humana.

Disponível em: http://goo.gl/AdUzhN. Acesso em 10/11/2015. 51

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988.

Porto Alegre: Revista do Advogado, 2008, p. 21.

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filhos de Deus pela fé em Jesus Cristo, não há, portanto, mais distinção entre judeu e grego,

escravo e livre, nem mesmo entre homem e mulher, pois todos são um em Cristo Jesus.”52

Ora, o Cristianismo consolidou a ideia de pessoa com sua dignidade e direitos,

atribuindo o valor de cada pessoa, sustentando que a própria vida é sagrada, ou seja, o homem

é o ser supremo sobre a terra, distinto das demais criaturas.53

Assim, com o Cristianismo o

conceito de dignidade se afasta da ideia de qualidade ou função social, passando a se

fundamentar na própria natureza do homem, simplesmente pelo fato de ele ser homem. Na

concepção cristã, a pessoa é criada à imagem e semelhança de Deus.

Após o advento do Cristianismo, outras ideias a respeito do conceito de pessoa, bem

como de dignidade humana, foram sendo construídas e consolidadas. Sucessivamente esses

conceitos foram sendo “ampliados” e de certa forma utilizados na construção do pensamento

jurídico a respeito dos direitos inerentes à pessoa humana; por isso, apresentaremos

brevemente algumas contribuições de filósofos a respeito da “noção” acerca da pessoa

humana.

2.3.a – O pensamento de Boécio

O filósofo romano Boécio (480-524) em muito colaborou na definição do conceito

de pessoa. Ele afirmava que pessoa é uma substância individual de natureza racional. Assim,

desenvolveu a ideia de que o homem – ser concebido como imago Dei – além de ter sido

criado à imagem e semelhança de Deus, está, desde a sua criação, relacionado com o seu

criador. Isto quer dizer, para Boécio, que cada homem, em particular, foi criado por Deus não

seguindo o modelo da natureza, mas unicamente o modelo da própria realidade divina, e é

nessa afirmação que repousa a dignidade humana.54

52

Bíblia Sagrada, Carta de São Paulo aos Gálatas, capítulo 3, versículos 26 a 28. (Editora Ave Maria) 53

LAFER, Celso. A reconstrução histórica dos direitos humanos. São Paulo: Cia das Letras, 1998, p. 119. 54

SOARES, André Marcelo M. Um breve apontamento sobre o conceito de dignidade da pessoa humana.

Disponível em: http://goo.gl/AdUzhN. Acesso em 02/11/ 2015.

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36

Boécio considera que há duas dimensões no ser humano, contudo, unidas e

inseparáveis.55

Além disso, no homem, a personalidade existe como individualidade, formada

por um corpo animado que é estruturado no espírito; desta maneira, em todo homem, em toda

pessoa humana, o mundo adquire sentido na ideia de que a pessoa humana é uma unidade, um

todo, e não uma parte de um todo.56

A definição de Boécio inclui o aspecto corpóreo, biológico e genético da pessoa, uma

vez que a porção corpórea não pode ser colocada de lado para que se considere somente a

autoconsciência, a racionalidade e o juízo moral como elementos constitutivos da pessoa.

Assim, a pessoa humana é unidade de corpo e espírito e não pode ser privada nem do

componente biológico, nem daquele que diz respeito ao espírito.57

Enfim, pode-se dizer que a ideia do Personalismo de Boécio vê a pessoa como

totalidade, de corpo e espírito, em todas as suas dimensões, a física, a psicológica, a social, a

espiritual. Portanto, Boécio identificava pessoa à substância individual da natureza racional;

desta maneira, o conceito de pessoa já não seria sua exterioridade, mas, sim, a própria

substância do homem, ou seja, a forma que molda a matéria e que dá ao ser de determinado

ente individual, as características de permanência e invariabilidade. A substância neste caso é

a característica própria de um ser.58

2.3.b – O pensamento de Santo Tomás de Aquino

Santo Tomás (1225-1274), foi outro grande pensador a respeito do conceito de

pessoa, suas principais ideias estão expostas na Suma Teológica. O doutor angélico

considerava que a natureza humana repousava em uma base dúplice: espiritual e corpórea,

acreditava que a natureza humana consistia no exercício da razão e é através desta esperava a

submissão às leis naturais, emanadas diretamente da autoridade divina. A pessoa humana e

55

BERTI, Enrico. et al. Persona e personalismo. Padova: Gregoriana Libreria Editrice, 1992, pgs. 47 e 48. 56

SGRECCIA, E. Manual de bioética I: fundamentos e ética biomédica. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2002, p.

79. 57

POSSENTI, V. Il principio-persona. Roma: Armando, 2006, p. 25. 58

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 8. ed. São Paulo: Saraiva,

2013, p. 32.

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sua natureza por Santo Tomás é compreendida como substância individual de natureza

racional59

e unidade substancial de alma e corpo,60

substantiam individuam rationalis

naturae.61

Estes conceitos possibilitaram a compreensão e o estudo da dignidade.

Quanto à liberdade humana, Santo Tomás traz uma visão no sentido positivo, ou

seja, liberdade para algo, realizar alguma coisa. Não se trata, porém, de uma liberdade sem

restrições; mesmo sendo uma possibilidade, ela existe dentro de alguns pressupostos de

ordem ontológica e ética.

Em relação à ordem ontológica, a liberdade do homem se encontra com uma série de

realidades preexistentes, internas e externas, que condicionam sua decisão dentro de

determinados limites e circunstâncias. Quanto à ordem ética, na tradição tomista, ela é o

pressuposto fundamental que constitui a responsabilidade moral, que liga a exigência de

perfectibilidade dentro das circunstâncias concretas da personalidade do sujeito – formação,

intenções, hábitos, e outros – nos limites impostos por Deus a sua natureza.62

Desta maneira, a implicação da liberdade nas condições concretas da pessoa e sua

influência decisiva para a realização da plenitude ontológica de sua natureza faz da liberdade

um elemento essencial da dignidade pessoal do homem, como valor em si mesmo e, portanto,

ela não pode ser considerada como simples meio para a realização da pessoa, uma vez que,

para o desenvolvimento da pessoa, exige-se o pleno desenvolvimento da liberdade.

No pensamento tomista, para o respeito à dignidade da pessoa é indispensável o

respeito a sua liberdade. Impedir ou suprimir de algum modo essa esfera seria violar a ordem

moral, o que, consequentemente, feriria a dignidade da pessoa humana.63

Santo Tomás

considerava ainda que a liberdade era universal, uma vez que o homem é livre por natureza,

pelo simples fato de ser homem. Ser homem livre equivale a ser homem digno. No ser

59

TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica – Obras completas. Trad. Francisco Barbado Viejo. Madrid: BAC,

1957, q. 29, a. 4. 60

TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica – Obras completas. Trad. Francisco Barbado Viejo. Madrid: BAC,

1957, I, q. 76, a. 1. 61

TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica – Obras completas. Trad. Francisco Barbado Viejo. Madrid: BAC,

1957, q. 29, a. 4. 62

VERA URBANO, Francisco de Paula. La Libertad Religiosa como Derecho de La Persona. Madrid:

Instituto de Estudios Políticos, 1971, p. 69. 63

VERA URBANO, Francisco de Paula. La Libertad Religiosa como Derecho de La Persona. Madrid:

Instituto de Estudios Políticos, 1971, p. 70.

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humano, a dignidade, a razão, a liberdade, a personalidade, são a mesma coisa, pois falar de

dignidade humana é dizer que o homem é naturalmente livre e existe em razão de si mesmo.64

Portanto, sobre a concepção de pessoa – substância individual de natureza racional –

é que se iniciou a elaboração do princípio da igualdade essencial de todo ser humano. Essa

igualdade de essência da pessoa é que forma o núcleo do conceito universal de direitos

humanos e fundamentais. Assim, o pensamento cristão foi fundamental para o

desenvolvimento das ideias acerca dos direitos inatos da pessoa humana, e é por meio da

noção de que todos os indivíduos são iguais em essência que se inicia o conceito de direitos

humanos universais.65

2.3.c – O pensamento de Pico della Mirandola

A grande contribuição trazida pelo filósofo italiano Giovanni Pico della Mirandola

(1463-1494) foi a ideia do homem como um grande milagre da criação: magnum miraculum

est homo, uma vez que ele identificava nos homens um valor próprio e inato, sendo estes a

grande criação do universo, por isso o verdadeiro e extraordinário milagre divino.

Segundo Pico della Mirandola, o homem é o grande milagre porque difere das

demais criaturas, que já nascem com um destino traçado, ou seja, destinadas a serem o que

são e não podem ser outra coisa. O homem, porém, pode inventar a si próprio, pode construir

a si mesmo,66

sendo esta liberdade de construção, “criação”, o que confere a ele uma

característica própria e singular. Com isso, para realizar a si mesmo, ou seja, se determinar, o

homem foi colocado no centro do mundo, em uma posição que lhe permite buscar o mais

adequado para definir sua própria essência.

64

TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica – Obras completas. Trad. Francisco Barbado Viejo. Madrid: BAC,

1957, 2-2, q. 64 a.3. 65

FACHIN, Melina Girard. Fundamentos dos Direitos Humanos: Teoria e Práxis na Cultura da Tolerância.

Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 32. 66

PICO DELLA MIRANDOLA, Giovanni. Discurso sobre a dignidade do homem. Trad. Maria de Lurdes

Sirgado Ganho. Lisboa: Edições 70, 2001, p. 49.

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Em sua obra “Discurso sobre a dignidade do homem”, Pico della Mirandola

apresenta a ideia da dignidade do homem a partir da “reconstrução” do diálogo entre Deus e

Adão. Eis, segundo ele, o fundamento da dignidade:

Coloquei-te no meio do mundo para que daí possas olhar melhor tudo o que há no

mundo. Não te fizemos celeste nem terreno, nem mortal nem imortal, a fim de que

tu, árbitro e soberano artífice de si mesmo, te plasmasses e te informasses, na

forma que tiveres seguramente escolhido. Poderás degenerar até aos seres que são

as bestas, poderás regenerar-te até às realidades superiores que são divinas, por

decisão do teu ânimo.67

Enfim, no pensamento de Pico della Mirandola, a dimensão de autonomia e

autodeterminação dos homens, isto quer dizer, a liberdade e dignidade humana estão

relacionadas com o fato de que os homens são capazes de dirigir sua vida conforme suas

inspirações, desejos e, assim, construir a si mesmo, escolhendo entre as diversas

possibilidades que possui.

2.3.d – O conceito de pessoa a partir de Immanuel Kant

A partir do século XVIII, principalmente com a contribuição de Immanuel Kant

(1724-1804), surgem novas perspectivas para fundamentar eticamente o conceito de

dignidade humana e consequentemente a noção de pessoa humana. Segundo Kant, a

dignidade humana encontra-se na capacidade de autonomia, ou seja, no fato de ser o homem a

única criatura capaz de se submeter livremente às leis morais que são reconhecidas como

procedentes da razão prática.68

Norberto Bobbio, em sua célebre obra “A era dos direitos”, nos ensina a respeito de

Kant:

67

PICO DELLA MIRANDOLA, Giovanni. Discurso sobre a dignidade do homem. Trad. Maria de Lurdes

Sirgado Ganho. Lisboa: Edições 70, 2001, p. 56. 68

SOARES, André Marcelo M. Um breve apontamento sobre o conceito de dignidade da pessoa humana.

Disponível em: http://goo.gl/AdUzhN. Acesso em 02/11/2015.

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Definindo o direito natural como o direito que todo homem tem de obedecer

apenas à lei de que ele mesmo é legislador, Kant dava uma definição da liberdade

como autonomia, como poder de legislar para si mesmo. De resto, no início da

Metafísica dos costumes, escrita na mesma época, afirmava solenemente, de modo

apodítico – como se a afirmação não pudesse ser submetida à discussão –, que,

uma vez entendido o direito como faculdade moral de obrigar outros, o homem tem

direitos inatos e adquiridos, e o único direito inato, ou seja, transmitido ao homem

pela natureza e não por uma autoridade constituída, é a liberdade, isto é, a

independência em face de qualquer constrangimento imposto pela vontade do

outro, ou mais uma vez, a liberdade como autonomia.69

Assim, o homem é o único ser que existe como um fim em si mesmo, e não como

meio a se atingir algo. Afirmava Kant:

O homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como fim em si

mesmo, não só como meio para o uso arbitrário dessa ou daquela vontade. Pelo

contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas

que se dirigem a outros serem racionais, ele tem sempre de ser considerado

simultaneamente como o fim.70

O homem, portanto, é um fim em si mesmo, é uma pessoa. Por meio dessa ideia,

Kant atribuía um valor relativo às coisas, em contraposição ao valor absoluto da dignidade

humana, iniciando, assim, um novo período no conceito de pessoa, ou seja, o homem é o

único ser no mundo dotado de vontade, isto é, de capacidade de agir livremente, sem ser

conduzido pela invencibilidade do instinto.

Luís Roberto Barroso, refletindo acerca da influência do pensamento kantiano na

construção do conceito de liberdade e dignidade da pessoa, nos ensina:

Os dois outros conceitos imprescindíveis são os de autonomia e dignidade. A

autonomia expressa a vontade livre, a capacidade do indivíduo de se

autodeterminar, em conformidade com a representação de certas leis. Note-se bem

aqui, todavia, a singularidade da filosofia kantiana: a lei referida não é uma

imposição externa (heterônoma), mas a que cada indivíduo dá a si mesmo. O

indivíduo é compreendido como um ser moral, no qual o dever deve suplantar os

instintos e os interesses. A moralidade, a conduta ética consiste em não se afastar

do imperativo categórico, isto é, não praticar ações senão de acordo com uma

máxima que possa desejar seja uma lei universal. A dignidade, na visão kantiana,

69

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. 21. tiragem. Rio de Janeiro: Elsevier,

2004. p. 49. 70

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Paulo Quintela 2. ed. São Paulo:

Coleção Os Pensadores, Abril, 1984, p. 134.

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tem por fundamento a autonomia. Em um mundo no qual todos pautem a sua

conduta pelo imperativo categórico – no reino dos fins, tudo tem um preço ou uma

dignidade. As coisas que têm preço podem ser substituídas por outras equivalentes.

Mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e não pode ser substituída por

outra equivalente, ela tem dignidade. Tal é a situação singular da pessoa humana.

Portanto, as coisas têm preço, mas as pessoas têm dignidade. Como consectário

desse raciocínio, é possível formular uma outra enunciação do imperativo

categórico: toda pessoa, todo ser racional existe como um fim em si mesmo, e não

como meio para o uso arbitrário pela vontade alheia. 71

Com isso, é a partir dos fundamentos da liberdade e dignidade em Kant que se

assenta todo o valor axiológico, bem como toda a ética de modo geral, ou seja, o mundo das

normas, as quais, contrariamente ao que sucede com as leis naturais, apresentam-se sempre

como preceitos suscetíveis de consciente violação. Assim, fundado na liberdade, o

individualismo emerge como embasamento dos direitos humanos, sendo ele parte integrante

da lógica da modernidade que concebe a liberdade como a faculdade de autodeterminação de

todo ser humano.72

De fato, o pensamento de Kant a respeito do conceito de pessoa humana e sua

dignidade influenciaram diretamente os pensadores da modernidade – a partir do ano de 1776

– principalmente no que diz respeito à construção dos direitos inatos à pessoa humana, entre

eles os direitos humanos.

Duas são as ideias centrais que nortearam o direito após Kant, quais sejam: as teorias

contratualistas e a laicidade do direito natural. Essas ideias estão claramente presentes nas

temáticas da liberdade, autonomia e individualismo encontradas nas primeiras declarações de

direitos na América do Norte, como na Declaração de Direitos do Povo da Virgínia (1776), na

Constituição Americana (1787) e também na Declaração Francesa dos Direitos do Homem e

do Cidadão (1789).

O século XVIII trouxe uma nova visão a respeito do ser humano, seus direitos e

dignidade frente à autoridade estatal. De fato, a partir do pensamento de Kant e das

71

BARROSO, Luís Roberto. A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo:

Natureza Jurídica, Conteúdos Mínimos e Critérios de Aplicação. Versão provisória para debate público.

Mimeografado, dezembro de 2010. Disponível em: http://goo.gl/XE2C24. Acesso em 05/11/2015. 72

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 8. ed. São Paulo: Saraiva,

2013, p. 37.

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42

Declarações e Constituições acima citados, um tempo novo a respeito da teoria dos direitos

humanos e fundamentais, foi sendo construído.

Após este período histórico, a compreensão da pessoa passou a se relacionar com o

fato de o homem ser a única criatura que dirige a sua vida em função de suas preferências

valorativas. Ou seja, o homem como sendo o legislador e sujeito universal, uma vez que

aprecia os valores éticos e submete-se voluntariamente a essas normas valorativas.

Porém, mesmo formando um sistema correspondente à hierarquia de valores,

prevalente no meio social, essa hierarquia nem sempre coincide com aquilo que prevê as leis.

Por isso, mesmo com o avanço do conceito de pessoa e de sua dignidade, bem como dos

direitos inerentes a ela, sempre houve certa tensão entre a consciência jurídica da coletividade

e as normas pelo Estado.73

Houve, por fim, outras etapas na construção dos direitos humanos após a era da

“autonomia” e das declarações, mas, sem dúvida, a partir deste momento histórico é que os

direitos humanos começaram a ser identificados como “valores” indispensáveis para a

convivência humana.

2.3.e – O conceito de pessoa a partir do século XX

Após o marco histórico citado acima a respeito da construção do conceito de pessoa,

da sua correspondente dignidade e da solidificação dos direitos inerentes a ela, como o da

liberdade religiosa, inicia-se, a partir do século XX, um novo tempo a respeito do conceito de

pessoa humana, bem como dos direitos humanos.

Fábio Comparato nos esclarece a respeito do início desse novo tempo:

Reagindo contra a crescente despersonalização do homem no mundo

contemporâneo, como reflexo da mecanização e burocratização da vida em

sociedade, a reflexão filosófica da primeira metade do século XX acenou o caráter

único e, por isso mesmo, inigualável e irreprodutível da personalidade individual.

73

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 8. ed. São Paulo: Saraiva,

2013, p. 39.

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43

Confirmando a visão da filosofia estoica, reconheceu-se que a essência da

personalidade humana não se confunde com a função ou papel que cada qual

exerce na vida.74

Desta maneira, o caráter único e insubstituível de cada ser humano, portador de um

valor próprio, demonstrou que a dignidade da pessoa existe singularmente em todo indivíduo

e que, por conseguinte, nenhuma justificativa de utilidade pública ou reprovação social pode

legitimar violações à dignidade, como por exemplo, a pena de morte.75

Os pensadores da pós-modernidade consideram que a dignidade humana nada tem a

ver com os esquemas assinalados anteriormente, nem com as qualidades intelectuais – a razão

– nem com os pressupostos metafísicos – ontologia do ser humano, e nem com a capacidade

moral – autonomia – que buscavam fundamentar a dignidade humana.

Esses pensadores consideram que a dignidade humana consistia em uma ação

institucional segundo a qual determinadas sociedades, através do processo democrático,

decidiriam de forma contingente e convencional – o único modo possível – o grau de sua

utilidade ou eficácia para resolver conflitos, sendo a dignidade uma consequência dessa ação.

De certa forma, quem trouxe um caráter universal aos direitos inerentes à pessoa

humana, determinando, assim, uma esfera de proteção inviolável da dignidade da pessoa

humana foi a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Essa consagrou o princípio

de que todo o homem tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa,

independente do resultado ou convenção de determinado grupo social.

De fato, no século XX houve graves problemas que suscitaram a “necessidade” de

uma construção de uma carta universal de proteção aos direitos da pessoa humana. Os

horrores das guerras mundiais e dos “novos” problemas sociais, morais, éticos, ambientais e

econômicos, provocados pelo avanço tecnológico, industrial e científico, estão entre alguns

motivos que contribuíram para a construção desse instrumento universal.

74

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 8. ed. São Paulo: Saraiva,

2013, p. 40. 75

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 8. ed. São Paulo: Saraiva,

2013, p. 43.

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44

Além disso, mesmo após os longos processos de “conceituação” da pessoa humana e

da proteção jurídica dos direitos do homem a partir da Declaração Universal dos Direitos

Humanos, ainda há uma crescente violação dos direitos da pessoa humana, ou seja, inúmeros

direitos, inclusive os referentes à liberdade religiosa, estão sendo violados a todo o momento.

Enfim, existem ainda inúmeros problemas referentes à pessoa humana e seus direitos

que suscitam uma proteção efetiva, tendo em vista que o avanço histórico – tecnológico,

científico, cultural, jurídico – no qual caminha a humanidade nem sempre vem acompanhado

do progresso da proteção dos direitos referentes à pessoa humana. Por isso, faz-se necessária a

solidificação da concepção de que a pessoa humana e seus direitos consistem na fonte

primária para a construção dos valores morais, éticos e jurídicos da sociedade.

Portanto, toda a evolução conceitual da pessoa humana e sua dignidade produziram

uma melhor consciência e proteção dos direitos humanos; contudo, este desenvolvimento

“filosófico” e jurídico, que culminou na Declaração Universal dos Direitos Humanos, não

pode ficar refém de políticas públicas ou interesses privados, uma vez que o progresso deve

ser utilizado como ferramenta de promoção humana, visando à prevenção de horrores e

violações à dignidade da pessoa humana ainda presente na sociedade.

2.4 – A fundamentação histórica dos direitos humanos

A compreensão da dignidade da pessoa humana, bem como dos direitos inerentes a

ela, muitas vezes se deu após violações extremas a essa dignidade, como por exemplo:

violências, torturas, explorações, massacres, mutilação em massa entre outros, atos esses que

constituem, de fato, uma afronta aos direitos da pessoa humana. Houve momentos em que

essas violações eram institucionalizadas, o que dava certa “legitimidade” para esse tipo de

conduta.

A partir da evolução intelectual, social e científica da sociedade, foi sendo construída

ao longo da história certa colaboração para o aprofundamento dos temas referentes à pessoa

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humana, e neste aspecto, como vimos, em muito colaborou a Teologia e a Filosofia na

fundamentação da dignidade da pessoa humana, bem como dos direitos inatos a ela.

Porém, foi longo o processo histórico que reconheceu que as instituições devem ser

utilizadas para o bem do homem, e não a serviço dos líderes. Pode-se dizer que um pontapé

inicial contra a centralização do poder e, consequentemente, contra os abusos cometidos pelas

autoridades em relação à violação dos direitos da pessoa humana, foi dado com a Magna

Carta de 1215.

A Magna Carta (Grande Carta das liberdades, ou concórdia entre o rei João e os

barões para a outorga das liberdades da Igreja e do rei Inglês) limitou o poder dos monarcas

da Inglaterra, impondo alguns direitos como o respeito ao devido processo legal, a presunção

de inocência, a garantia de propriedade e outros.

Aos poucos, a partir da Magna Carta, foi sendo construída a ideia da autonomia da

sociedade civil e da liberdade do homem frente à autoridade estatal. Destaca-se a força que

ganhou a liberdade, quer seja econômica, civil e religiosa, passando ela a ser um fundamento

importante dos direitos neste período.76

Outros documentos são de fundamental importância para a construção dos direitos

dos homens; dentre esses, a lei inglesa de Habeas Corpus (1679), criada para proteger a

liberdade de locomoção, acabou tornando-se matriz de todos os demais instrumentos jurídicos

que vieram a ser criados posteriormente que visavam à proteção das liberdades. Destaca-se

também, devido a sua importância a Bill of Rights (1689), que reafirmou alguns direitos

fundamentais, como o direito de petição e a proibição de penas inusitadas ou cruéis.

Também, fundamentadas no conceito liberdade-individualismo, surgiram as

primeiras declarações de direitos na América do Norte, dentre essas a Constituição Americana

(1776) e a Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789).

Contudo, foi a Declaração de Direitos do Povo da Virgínia, de 16 de junho de 1776,

que constitui o registro de nascimento dos direitos humanos na história, ou seja, a que

expressou claramente o reconhecimento de direitos inatos ao homem, como liberdade,

76

FACHIN, Melina Girard. Fundamentos dos Direitos Humanos: Teoria e Práxis na Cultura da Tolerância.

Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 41.

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propriedade, igualdade, reconhecendo, em síntese, que todos os homens são igualmente

vocacionados à liberdade.

A influência desse documento pode ser encontrada em outras declarações de direitos,

como na Declaração de Independência dos Estados Unidos (1776), na Carta dos Direitos dos

Estados Unidos (1789) e na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão francesa

(1789). Também há de se considerar a influência desses ideais na Revolução Francesa (1789-

1799), onde foram reconhecidos os direitos à igualdade e liberdade de todos os seres

humanos, a partir da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.77

De fato, pode-se dizer que a origem da fundamentação histórica dos direitos dos

homens se encontra nas declarações citadas acima, que consagraram a ideia de que a

“Constituição” é uma garantia para os direitos humanos e para a dignidade humana, ao

proteger direitos como da liberdade, da segurança e da propriedade, sendo estes direitos o

eixo central das “Constituições”.

Outro detalhe importante é que a história da fundamentação dos direitos humanos e

fundamentais – amparados pelas ideias de pensadores como Locke, Montesquieu e Rousseau

– surgiu como reação e resposta aos excessos dos regimes absolutistas, ou seja, como

tentativa de impor controle e limites à abusiva atuação do Estado.

Desta maneira, esses direitos visavam à autonomia e liberdade do indivíduo. Assim,

desde o início a ideia principal da proteção dos direitos dos homens seria limitar o poder do

Estado, o que significaria “liberdade”, surgindo o primado da liberdade com a supremacia dos

direitos e a ausência de previsão de qualquer direito, social, econômico e cultural que

dependesse da intervenção do Estado.78

Portanto, a evolução histórica dos direitos humanos possui como cume as

declarações de direito americana e francesa, pois essas constituíram uma novidade em relação

aos direitos humanos e aos direitos fundamentais, pois marcam a passagem das afirmações

77

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 8. ed. São Paulo: Saraiva,

2013, p. 62. 78

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 12. ed. São Paulo:

Saraiva, 2011, p. 198.

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47

filosóficas para um verdadeiro sistema de direitos humanos positivos,79

que visavam à

proteção de direitos inatos aos homens, dentre eles o da liberdade religiosa.

2.5 – A positivação dos direitos humanos

Com a ideia de que os homens, em seu estado de natureza, são iguais e livres,

surgiram as declarações acima citadas, nascidas sobre o forte alicerce de uma concepção

universal dos direitos humanos e, aos poucos, os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade,

presentes nesses documentos, foram se expandindo para outras regiões do globo terrestre.

Porém, a evolução no campo da positivação dos direitos fundamentais foi um

processo lento, que teve seu ápice com a afirmação do Estado de Direito, influenciado

diretamente pelo pensamento do filósofo inglês John Locke, que, no século XVIII, foi o

precursor no reconhecimento de direitos naturais e inalienáveis do homem.

O resultado das ideias de Locke, com a formação do Estado de Direito, contribuiu

para o nascimento das primeiras noções dos direitos humanos,80

da maneira que

compreendemos hoje esses direitos. A ideia central neste período era o de que os homens

possuíam direitos naturais, como liberdade, propriedade e, em virtude disso, o Estado estava

proibido de usurpar tais direitos. Pode-se dizer que este primeiro momento foi marcado pela

liberdade do indivíduo em relação ao Estado.

Passado este primeiro período, o nascimento da positivação dos direitos humanos

deparou-se com um intenso progresso técnico e científico, o que ocasionou um choque entre

“desenvolvimento econômico” e “proteção dos direitos humanos”, ou seja, o fato de existir

patrões e empregados – iguais e com certa liberdade econômica – ao invés de gerar

“igualdade”, construiu um verdadeiro abismo, pois agora existia uma classe de proletariados

pobres diante de uma elite rica.

79

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 8. ed. São Paulo: Saraiva,

2013, p. 62. 80

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,

2005, p. 52.

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48

Surgiram assim diversos conflitos entre “classes”, essas que acabaram inaugurando

uma nova fase na positivação dos direitos dos homens, onde o Estado Liberal passa a ser um

Estado Social, sendo que agora não cabia mais apenas garantir a liberdade, mas, também,

seria o Estado o responsável por realizar a justiça social incluindo as exigências econômicas e

sociais dos trabalhadores.

Um passo decisivo tanto na solidificação dos direitos humanos quanto na

responsabilização do Estado em realizar a justiça social foram os documentos nascidos neste

período. Destacam-se a Constituição Francesa de 1848, a Carta Constitucional Mexicana de

1917 e a Constituição Alemã de Weimar de 1919.

Portanto, pode-se dizer que o processo de positivação dos direitos humanos

relacionou-se diretamente com a dimensão social do Estado, principalmente diante da

necessidade de satisfazer os direitos econômicos, sem deixar de considerar os “antigos”

direitos já conquistados, como liberdade e igualdade. Todo esse processo foi solidificado

principalmente a partir do século XX.

2.6 – A internacionalização dos direitos humanos

Considera-se que a internacionalização dos direitos humanos teve início na segunda

metade do século XIX, chegando ao ápice com o final da segunda guerra mundial. A

construção desse processo teve três pilares: o direito humanitário, a luta contra a escravidão e

a regulação dos direitos do trabalhador.

A Convenção de Genebra de 1864, destinada a estabelecer o conjunto das leis e

costumes da guerra, no intuito de amenizar tanto as dores dos soldados como proteger as

populações civis atingidas em conflitos, foi a primeira legislação contendo o chamado direito

humanitário.

Outro documento importante foi o Ato Geral da Conferência de Bruxelas de 1890,

que estabeleceu as primeiras regras interestatais de repressão ao tráfico de escravos.

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Posteriormente, os direitos dos trabalhadores passaram a ser objeto de proteção com a criação

da Organização Internacional do Trabalho em 1919.

A Organização Internacional do Trabalho, criada após a Primeira Guerra Mundial,

com a finalidade de promover padrões internacionais de condições de trabalho e bem-estar,

sessenta anos após sua criação já contava com uma centena de convenções internacionais,

promulgadas e aderidas pelos Estados, que se comprometiam a assegurar um padrão justo e

digno nas condições de trabalho.81

Outro organismo importante para o desenvolvimento dos direitos dos homens foi a

Liga ou Sociedade das Nações criada em 1919 após a primeira guerra. Tinha entre os seus

objetivos promover a cooperação internacional, alcançar a paz e a segurança internacional,

condenar agressões externas contra a integridade territorial e a independência política dos

seus membros.82

Enfim, essas instituições ajudaram a romper a noção de soberania nacional absoluta

dos Estados, na medida em que admitiram intervenções para a proteção dos direitos humanos.

Assim, aos poucos surge a ideia de que o indivíduo não é apenas objeto, mas também sujeito

de Direito Internacional. Desta forma, começaram a se consolidar a capacidade processual

internacional dos indivíduos, bem como a concepção de que os direitos humanos não mais se

limitam ao Estado.83

2.7 – O mundo após a segunda guerra: a Declaração Universal dos Direitos Humanos

O processo de solidificação dos direitos humanos teve grande êxito após a segunda

guerra mundial, uma vez que a humanidade estava arrasada com os horrores provocados pela

guerra, como holocausto, bomba atômica e outras atrocidades. Havia uma necessidade

81

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 12. ed. São Paulo:

Saraiva, 2011, p. 171. 82

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 12. ed. São Paulo:

Saraiva, 2011, p. 172. 83

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 12. ed. São Paulo:

Saraiva, 2011, p. 174.

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urgente de uma resposta às barbaridades, que deveria ser construída principalmente por meio

de políticas internacionais e instrumentos jurídicos capazes de proteger e promover os direitos

dos homens.

Neste processo, a criação do Tribunal de Nuremberg (1945/1946) significou um

momento histórico de internacionalização dos direitos humanos, pois a este Tribunal Militar

Internacional foi dada a competência de julgar crimes cometidos na segunda guerra,

atribuindo responsabilidades individuais àqueles que cometeram crime contra a paz, crimes de

guerra, crimes contra a humanidade. Assim, a criação desse Tribunal consolidou a ideia da

limitação da soberania nacional e reconheceu que os indivíduos possuem direitos inatos que

devem ser protegidos pelo Direito internacional.84

Porém, o marco histórico para os direitos humanos, ou seja, da positivação dos

direitos do homem, surgiu com a criação da Organização das Nações Unidas (ONU) em 1945

e, consequentemente, com a posterior Declaração dos Direitos Humanos em 1948. A ONU ao

ser criada possuía três objetivos centrais: manter a paz e a segurança internacional, fomentar a

cooperação internacional nos campos social e econômico e promover os direitos humanos no

âmbito universal.

As Nações Unidas (ONU), diferente da Liga das Nações85

– que não passava de um

clube de Estados com liberdade de ingresso e retirada com ou sem justificativa –, nasciam

com o objetivo claro de agregar necessariamente todas as Nações do globo em vista da defesa

da dignidade da pessoa humana86

e dos direitos inerentes aos homens.

Desta maneira, visando à proteção dos direitos inatos da pessoa humana, as Nações

Unidas foi se organizando em diversos órgãos, como por exemplo: Assembleia Geral;

Conselho de Segurança; Corte Internacional de Justiça; Conselho Econômico e Social;

Conselho de Tutela, etc. Além disso, outros órgãos e comissões foram sendo criados,

conforme as necessidades da ONU.

84

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 12. ed. São Paulo:

Saraiva, 2011, p. 182. 85

A Liga das Nações ou Sociedade das Nações, foi idealizada em 1919 pelas nações vencedoras da Primeira

Guerra Mundial, com a intenção de assegurar a paz, para isso, visavam à criação de uma organização

internacional. Ela após “fracassar” em seus objetivos de manter a paz no mundo, foi dissolvida e estava extinta

por volta de 1942. Porém, em 18 de abril de 1946, o organismo passou as responsabilidades à recém-criada

Organização das Nações Unidas, a ONU. 86

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 8. ed. São Paulo: Saraiva,

2013, p. 62.

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Foi nesse contexto que nasceu a Declaração dos Direitos Humanos, adotada em 18

de junho de 1948 e aprovada por 48 Estados, tendo oito abstenções. A Declaração representou

a manifestação da única prova através do qual um sistema de valores pode ser considerado

humanamente fundado e, portanto, reconhecido. Após a Declaração, foi sendo construída a

ideia de que a humanidade partilha alguns valores comuns e, consequentemente surgiu o

desafio da universalidade destes valores.87

Além disso, a Declaração, ao conjugar liberdade com igualdade, os direitos por ela

contemplados passaram a ser concebidos como uma unidade interdependente e indivisível, ou

seja, os direitos humanos não se sobrepõem, mas interagem mutuamente. A Declaração trouxe

a noção de que todos os direitos humanos constituem um bloco complexo único, integral e

indivisível, no qual os diferentes direitos estão necessariamente inter-relacionados e são

interdependes entre si.88

A Declaração Universal dos Direitos Humanos constitui-se em um documento que

assinalou um passo importante no caminho para a organização jurídico-política da

comunidade mundial, uma vez que reconheceu a dignidade de todos os seres humanos,

proclamando ainda como direito fundamental a liberdade, quer seja na busca pela verdade, na

realização do bem moral e da justiça, bem como o direito a uma vida digna.89

Este documento representa ainda o resultado de um longo processo histórico que

passou por momentos como a Declaração de Independência dos Estados Unidos, com a

Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da Revolução Francesa, tudo isso

contribuiu para solidificar a ideia da igualdade dos homens, bem como da dignidade da pessoa

humana,90

consagrando, assim, os valores fundamentais da liberdade, da igualdade e da

fraternidade, e proclamando que todos os seres humanos têm direito à vida, à liberdade e à

segurança pessoal.

87

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. 21. tiragem. Rio de Janeiro: Elsevier,

2004. pgs. 26 e 28. 88

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 12. ed. São Paulo:

Saraiva, 2011, p. 202. 89

JOÃO XXIII, Papa. Carta Encíclica Pacem in Terris. Disponível em: http://goo.gl/nkwT1K. Acesso em 19

de agosto de 2015. 90

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 8. ed. São Paulo: Saraiva,

2013, p. 240.

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A Declaração foi um marco histórico na consolidação dos direitos humanos, porém,

“tecnicamente” ela é uma recomendação, o que gerou certa controversa, pois havia quem

sustentasse que ela não teria força vinculante. Esse problema somente foi concluído com o

processo de “juridicização” da Declaração, concluído em 1966, com a elaboração de dois

distintos tratados internacionais: o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto

Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

Outro problema surgido com a Declaração foi a concepção universal dos direitos

humanos. Alguns consideram que essa noção não está dissociada dos sistemas políticos,

econômicos, culturais, sociais, morais, presentes em cada cultura, ou seja, é a ideia de que há

diversos discursos de direitos fundamentais que a princípio devem ser respeitados. Porém, a

Declaração de Viena de 1993, fruto da Declaração Universal dos Direitos Humanos,

solucionou tal problema ao afirmar que os direitos humanos são universais, indivisíveis,

interdependentes e inter-relacionados.91

Com isso, pode-se afirmar que a Declaração foi um marco histórico. Ela contempla

em si vários direitos como: civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, dando destaque ao

fato de que, pela primeira vez, foi positivada no plano internacional uma proposta ética

comum, aplicada a todos sem distinção.92

Enfim, o fato é que ainda que não assuma forma de Tratado internacional, a

Declaração possui força jurídica obrigatória e vinculante, tendo em vista que os Estados

assumiram o compromisso de assegurar o respeito universal e efetivo aos direitos humanos e,

além disso, ela se transformou ao longo do tempo em direito costumeiro internacional e

princípio geral de Direito internacional, exercendo um grande impacto nas ordenações

jurídicas nacionais.

Portanto, pode-se dizer que a Declaração Universal dos Direitos Humanos consiste

no ponto de chegada da evolução teológica, filosófica e histórica dos direitos dos homens,

bem como do conceito referente à pessoa humana e sua dignidade. Mas, ao mesmo tempo, ela

é o ponto de partida para a busca efetiva dos direitos dos homens, ou seja, ela representa uma

91

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 12. ed. São Paulo:

Saraiva, 2011, p. 430. 92

GREGORI, José. Universalidade dos direitos humanos e peculiaridades nacionais. In: PINHEIRO, Paulo

Sérgio; GUIMARÃES, Samuel Pedro. Direitos Humanos no século XXI. Brasília: IPRI, 2002, p. 210.

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meta a ser alcançada; por isso, é de suma importância a observação de todo o itinerário que

conduziu ao seu nascimento, para que nenhum dado fundamental desta construção seja

desprezado e, consequentemente, este documento atinja os seus objetivos, na defesa e

promoção dos direitos fundamentais da pessoa humana, dentre estes o da liberdade religiosa,

objeto deste estudo.

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Capítulo Terceiro

A relação entre Estados e religiões

3.1 – A dimensão social da religião

Ao longo da história das sociedades, o poder religioso sempre esteve presente na

organização estatal consequentemente, na formação do direito e das demais realidades das

estruturas sociais. O fato é que a religião e a natureza social do homem têm sido sempre

realidades conexas, pois não há que se falar apenas em uma dimensão “interior” do fenômeno

da fé, visto que as religiões têm demonstrado claramente sua dimensão social, “exterior”.93

Como consequência, diferentes culturas são identificadas a partir da confissão de fé

dos seus membros, ou seja, elas possuem algum tipo de adjetivo religioso, por exemplo, o

mundo muçulmano, a cultura hinduísta, o povo judeu (hebreu) e, por fim, o ocidente cristão.

Assim, considerando a dimensão social da religião, bem como a força que essa possui na

formação da identidade de um povo, de um Estado, torna-se muito difícil distinguir o

fenômeno religioso do desenvolvimento histórico das nações.

Porém, podemos dizer que, para a cultura ocidental, somente após a ascensão do

Cristianismo é que a dimensão religiosa passou a fazer parte da “política” do Estado de forma

distinta desse, ou seja, surgiu com o Cristianismo a ideia de uma “força” paralela e, de certa

forma, ameaçadora aos interesses das autoridades públicas. Os gregos, como os romanos, não

tinham muito clara a noção de que uma religião poderia afetar toda a estrutura estatal e, de

certa forma, Estado e religião estavam unidos.

Sobre esse fato nos ensina Fustel de Coulanges:

Nem romanos nem gregos conheceram os tristes conflitos, tão comuns em outras

sociedades, entre a Igreja e o Estado. Mas isto deveu-se unicamente ao fato de,

tanto em Roma, como em Esparta ou Atenas, o Estado achar-se submetido à

religião. Não que houvesse um corpo de sacerdotes a impor sua vontade. O Estado

antigo não obedecia a um clero, mas era submetido à sua própria religião. Estado e

93

PRIETO, Vicente. Relaciones Iglesia-Estado: La perspectiva del Derecho canónico. Salamanca:

Publicaciones Universidad Pontificia de Salamanca, 2005, p. 19.

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religião estavam intimamente unidos que seria impossível na só fazer ideia do

conflito entre eles, mas mesmo diferenciá-los entre si.94

Desta forma, os dados mais concretos da relação entre religião, Igreja e Estado são

obtidos a partir do início da era cristã. O ponto de partida para o problema dessa relação, ou

seja, da força do conteúdo religioso nas sociedades cristãs são os argumentos “jurídicos”

utilizados no julgamento e condenação à morte de Jesus. Historiadores atribuem que a morte

do fundador do Cristianismo se deu em decorrência de um problema político/jurídico

envolvendo o Império Romano, judeus e os seguidores de Jesus.95

A morte de Jesus desencadeou um período de grandes perseguições “religiosas” aos

cristãos. Essas perseguições tiveram diversos momentos e intensidades, pois eram conduzidas

de acordo com a política adotada por cada imperador. O certo é que as perseguições acabaram

por contribuir para o avanço do Cristianismo, e com pouco tempo, os cristãos já estavam

inseridos no coração do Império Romano.

O fato é que, nos três primeiros séculos da era cristã a Igreja Católica,96

expressão da

fé cristã, vivia à margem do direito romano, pois sua existência não era reconhecida, mas

inclusive perseguida, e muitos cristãos foram mortos por não aceitarem os cultos oficiais do

Império. Contudo, esta situação mudou radicalmente a partir de vários Editos,97

entre eles, o

Edito de Milão, considerado um marco histórico na relação entre religiões e Estados, pois

estabeleceu o princípio de tolerância religiosa, afirmando que tanto os cristãos como os

demais cidadãos poderiam seguir a religião que considerassem oportunas.

Logo, o imperador romano Constantino, com o Edito de Milão de 313, compreendeu

que precisava fazer algo urgentemente, pois a perseguição, ao invés de conter os limites desta

“força” espiritual e social, estava produzindo efeitos contrários. Assim ele entendeu que não

era necessário repreender e perseguir os cristãos, mas criar meios para relacionar-se com a

94

COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. Trad. Jean Melville. 2. ed. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 118. 95

RATZINGER, Joseph. Jesus de Nazaré – Da entrada a Jerusalém até a Ressurreição. Trad. Bruno Bastos

Lins, São Paulo: Planeta, 2011, p.157. 96

Até a Reforma Protestante no século XVI não havia a compreensão de religião cristã fora da Igreja Católica.

Por isso, quando referimos à relação entre religiões e Estado até esse período histórico, nosso objeto de estudo é

especificamente a relação entre a Igreja Católica e o Estado, e considerando, ainda, que no Ocidente as demais

minorias, como judeus e muçulmanos, sempre foram colocados à margem das sociedades, não sendo, a princípio

o objeto direto de interesse da relação entre religiões e Estados. 97

Édito é um anúncio de uma lei, muitas vezes associado à monarquia, imperadores, papas.

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religião nascente, uma vez que não tinha sentido querer impor um poder imperial pagão em

uma sociedade cristã.98

Passado alguns anos, Teodósio I (380), por meio do Edito de Tessalónica, deu um

passo ainda mais ousado e estratégico politicamente, ao declarar o Cristianismo/Igreja

Católica como religião oficial do Império Romano, iniciando assim uma política que teve

como consequência a inferioridade legal das religiões “pagãs” frente ao Cristianismo

institucionalizado.99

Contudo, já com Constantino as perseguições aos cristãos foram encerradas, o que

favoreceu o crescimento “público” da fé cristã, pois esses religiosos que viviam na

clandestinidade passaram a ter uma vida pública dentro do Estado, ou seja, a atividade

religiosa da Igreja Católica foi legitimada pelo Império Romano.

Diversas foram as consequências destes Editos. Pode-se dizer que após o Edito de

Milão, as relações institucionais entre a sociedade civil e a nova força religiosa nascente –

Igreja Católica – tomam um novo rumo, principalmente pelo fato de que a estratégia política e

a unidade religiosa eram vistas como aspectos muito importantes para a unidade do Império

Romano.

Nasce deste modo o chamado Cesaropapismo, ou seja, um sistema de relações entre

a Igreja Católica e a comunidade política, que consistia, basicamente, na intromissão dos

imperadores na vida da Igreja, pois ela passou a ser considerada como parte da administração

pública.100

Os anos foram seguindo e a presença da religião nos Estados, primeiramente no

Império Romano e depois nos demais, continuou a ser significativa na vida dos indivíduos e,

consequentemente, nas relações sociais, inclusive não foram poucas as vezes que a questão

religiosa foi usada como motivação para guerras, prisões, restrições de direitos, revoluções,

formação de novos Estados, tomadas de territórios, alianças políticas, perseguições religiosas

a minorias.

98

ÁLVAREZ GÓMEZ, Jesús. Historia de la Iglesia I – Edad Antiga. Madrid: Biblioteca de Autores

Cristianos, 2001, p. 99. 99

MARZOA, Á.; MIRAS, J.; RODRÍGUEZ-OCANÃ, R. (coords.). Comentario Exegético al Código de

Derecho Canónico. Vol. I. 3. ed. Navarra: EUNSA, 2002. p. 104. 100

PRIETO, Vicente. Relaciones Iglesia-Estado: La perspectiva del Derecho canónico. Salamanca:

Publicaciones Universidad Pontificia de Salamanca, 2005, p. 25.

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Assim, a vida religiosa sempre foi um tema presente na constituição jurídica,

histórica e social dos Estados. A história das sociedades, principalmente no ocidente, se cruza

com o itinerário do desenvolvimento das religiões (cristãs), principalmente até os movimentos

conhecidos como Reforma Protestante praticamente a fé católica. Portanto, o dado religioso é

também um dado histórico–cultural, não por acaso, a liberdade religiosa no mundo

contemporâneo é associada como um elemento da cultura.

Neste sentido, em um recente discurso nos Estados Unidos, o Papa Francisco

reafirmou a liberdade religiosa e as religiões como um dado da cultura. Ensinou-nos o

pontífice:

A liberdade religiosa supõe certamente o direito de adorar a Deus, individual e

comunitariamente, como a própria consciência dita. Mas, por outro lado, a

liberdade religiosa transcende, por sua natureza, os lugares de culto, bem como a

esfera privada dos indivíduos e das famílias, porque o fato religioso, a dimensão

religiosa não é uma subcultura, faz parte da cultura de qualquer povo e qualquer

nação.101

A influência da religião é notória nos Estados, e muitos desses tiveram durante anos

o poder civil fundido com o poder religioso e, concretamente, com uma profissão de fé

específica, ou seja, é uma realidade, além de política e religiosa, histórica e cultural. Além

disso, ainda hoje há resquícios desse tipo de relação nos “Estados modernos”, fato este visível

por meio de uma influência direta que determinada religião exerce sobre a cultura de um povo

e, ademais, ainda se encontram países confessionais, existindo por fim, aqueles em que o

poder civil é “legitimado” pelas autoridades religiosas.

Desta forma, após um longo período histórico em que a relação entre religiões e

Estados já foi devidamente “provada no fogo”, deparamo-nos com a possibilidade de uma

cooperação harmônica entre ambos, a partir de uma legítima e saudável separação entre

religiões e poderes públicos, tendo em vista que a grande maioria dos Estados modernos

ocidentais, embora laicos, conservam, em seu patrimônio cultural, social, jurídico, moral,

fortes elementos da cultura cristã.

Portanto, não há como negar a dimensão social das religiões nos Estados,

principalmente quando se tem em vista a influência do Cristianismo católico nas estruturas

sociais da própria cultura ocidental. Ora, é o homem cidadão e fiel quem professa a sua fé

101

FRANCISCO, Papa. Discurso do Santo Padre no encontro em prol da Liberdade Religiosa em 26 de

setembro de 2015. Disponível em: http://goo.gl/bgWMJs. Acesso em 05/10/2015.

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dentro do seio da comunidade; por essa razão, a expressão social da religião tem como

fundamento o sujeito possuidor de direitos fundamentais, entre esses o da liberdade religiosa

que lhe confere a possibilidade do exercício da fé no Estado. Mas essa relação entre homem e

divindade acontece por meio de sua religião; por isso, faz-se necessário investigar a conexão

entre o homem e as religiões nos Estados.

3.2 – O homem e as religiões nos Estados: o fundamento e o fim da ordem social

Após uma ampla trajetória de investigação das questões referentes ao direito à

liberdade religiosa, chegamos à conclusão de que se trata de um direito inato da pessoa

humana, ou seja, um direito fundamental e humano. Contudo, a sua solidificação é um

processo muitas vezes doloroso e, como visto, sempre esteve em meio a tensões. Para a

compreensão desse direito, visando sua consolidação, é preciso investigar as raízes dos

direitos dos homens através de uma abordagem histórica, teológica e filosófica. Processo este

analisado nos primeiros capítulos, o qual culminou na positivação e no reconhecimento

internacional desse direito por meio da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Porém, a conclusão de que a liberdade religiosa é um direito inato, fundamental e,

portanto, sua proteção relaciona-se diretamente com a própria dignidade humana, devendo,

assim, ser resguardado para que os homens gozem livremente do exercício de sua fé dentro

das comunidades políticas, não é tão óbvia e solidificada como parece, tendo em vista que

inúmeras vezes os sujeitos têm sido privados e perseguidos pela autoridade estatal ou por

outros credos religiosos, simplesmente porque exercem tal direito.

Ora, quando deparamos com perseguições e privações de direitos e liberdades em

virtude da profissão de fé, nos questionamos e, por isso, investigamos, o seguinte: qual é o

lugar do homem “religioso” no Estado moderno? Consequentemente, qual é a conexão entre o

homem e as religiões nos Estados?

O ponto de partida é a ideia de que é a pessoa humana quem dá forma e sentido para

a comunidade social e, além disso, possui uma finalidade comunitária, de tal sorte que os

homens estão unidos por uma responsabilidade comum, ou seja, inseridos em uma ordem

social, pois o homem não está só no mundo. Portanto, uma vez que todos os serem humanos

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estão unidos a inúmeras relações sociais, eles, por natureza, existem, vivem e alcançam suas

“felicidades” por meio, e nas relações sociais.102

A religiosidade é um dos fatores que compõem o indivíduo; por isso, como bem nos

ensinou o Papa Bento XVI, a liberdade religiosa se realiza com os outros. Esclarece o

pontífice:

Embora movendo-se a partir da esfera pessoal, a liberdade religiosa – como

qualquer outra liberdade – realiza-se na relação com os outros. Uma liberdade sem

relação não é liberdade perfeita. Também a liberdade religiosa não se esgota na

dimensão individual, mas realiza-se na própria comunidade e na sociedade,

coerentemente com o ser relacional da pessoa e com a natureza pública da

religião.103

Nesta perspectiva, há uma ordem social na qual o homem naturalmente se

encaminha, ou seja, tendo em vista que é por natureza um animal social,104

realizando-se em

meio a outros “iguais”. Neste sentido, considerando que a “religiosidade” faz parte do bojo da

própria natureza humana, ela se dá, se manifesta e se completa em “meio” aos demais, ou

seja, no seio da comunidade política.

Surge, portanto, o problema do Estado, ou seja: o que compete a ele, qual seu

fundamento e responsabilidade nas garantias dos direitos fundamentais? Para a tentativa de

compreensão desse problema, investigamos alguns pensadores que contribuíram para

construção das “teorias” da formação dos Estados.

O primeiro pensador a quem recorremos é o filósofo romano Cícero, que afirmava

haver no Estado uma ordem comum, apontando que na base do Estado há dois elementos

fundamentais, quais sejam: a prevalência do bem comum e a lei comum a todos os indivíduos

pertencentes à sociedade política.105

Na visão de Cícero, tanto o bem comum como a lei comum podem ter seu

fundamento em questões religiosas, filosóficas, morais, ou seja, é possível que, em uma

102

VERA URBANO, Francisco de Paula. La Libertad Religiosa como Derecho de La Persona. Madrid:

Instituto de Estudios Políticos, 1971, p.75. 103

BENTO XVI, Papa. Liberdade Religiosa, Caminho para a Paz. Mensagem para o Dia Mundial da Paz de

2011. Disponível em: http://goo.gl/WR6dYC. Acesso em 07/11/2015. 104

ARISTÓTELES. Política. Trad. de Mário da Gama Kury. 3 ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília,

1997, p. 15. 105

CÍCERO. Marco Túlio. Da república. Trad. Amador Cisneiros. 5. ed. Rio de Janeiro: Ediouro Publicações,

1985, p. 40.

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sociedade, as diretrizes de fé sejam ordenadoras de um sistema jurídico, visando o bem

comum e uma lei comum.

Santo Agostinho considerava que a pessoa humana é a grande protagonista da ação

do Estado, ela que, destinada a viver em sociedade, compartilha por meio do Estado com os

outros cidadãos a busca pelo bem comum através de uma lei comum, ou seja, a ordem social

está destinada à pessoa humana; por isso não, há como romper a função social da dimensão

ético-moral, e desta maneira cabe ao Estado promover por meio da vida em comunidade a

felicidade, bem como a paz temporal.106

Santo Tomás de Aquino, na mesma trilha que Aristóteles, considerava que o homem

é naturalmente um animal político e social. Em seus argumentos, afirmava que esse fato

torna-se evidente, uma vez que, o homem se viver sozinho, não é capaz de se manter na vida,

porque a natureza por si só é suficiente para o homem em poucas coisas; contudo, a grande

diferença do homem dos outros animais é que possui razão e, através dela, ele pode

providenciar para si tudo que é necessário para a vida, o qual sozinho não seria capaz de

conseguir. Por esse motivo, foi dado ao homem, como uma “exigência” da própria

racionalidade, viver em sociedade.107

Considerava ainda Santo Tomás que a sociedade está ordenada ao fim do indivíduo,

visando o bem comum. Assim, justifica-se a origem do Estado e consequentemente de um

governo, pelo fato de que, para viver em sociedade, o homem necessita de um princípio de

governo, por meio do “Estado”, tem como finalidade conduzir e ordenar os cidadãos para uma

vida feliz e virtuosa, assegurando a paz e a justiça.108

No pensamento de Santo Tomás, a religião, assim como a cultura, a estética, a

ciência, constituem poderes humanos anteriores à sociedade e superiores a ela, essa que se

impõe por exigência da natureza racional e estão fundadas na mesma justiça objetiva; por

isso, elas escapam da competência do Estado, ou seja, da mesma forma que a sociedade não

tem poder sobre a verdade matemática, tampouco ele tem poder sobre a verdade religiosa.

Portanto, a sociedade ao estabelecer as normas práticas da vida social, há de contar

com este foro reservado pela mesma justiça objetiva e respeitar e tutelar as respectivas esferas

106

AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: Contra os pagãos. 2.ed. Trad. Oscar Paes Leme. Petrópolis: Vozes,

1990. Parte II. 107

TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica – Obras completas. Trad. Francisco Barbado Viejo. Madrid: BAC,

1957, I, q. 96, a. 4, resp. 108

TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica – Obras completas. Trad. Francisco Barbado Viejo. Madrid: BAC,

1957, II-II, 66, 8, resp.

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privadas. Tudo isso conduz à máxima de que a liberdade religiosa é um direito inato e, por

isso, inviolável da pessoa humana.109

Quanto à conexão entre o homem e as religiões nos Estados, brilhantemente

sintetizou o Papa João Paulo II:

O fundamento e o fim da ordem social é a pessoa humana, enquanto é sujeito de

direitos inalienáveis, que ela não recebe do exterior, mas que brotam da sua própria

natureza: nada e ninguém podem destruí-los; e não há constrição alguma externa

que possa aniquilá-los, porque eles têm a sua raiz no que há de mais

profundamente humano. Analogamente, a pessoa não é algo que se vá exaurindo

nos condicionamentos sociais, culturais e históricos, porque é próprio do homem,

que tem uma alma espiritual, tender para um fim que transcende as condições

mutáveis da sua existência. Nenhum poder humano pode opor-se à realização do

homem como pessoa. Do primeiro e fundamental princípio da ordem social, que é

a finalização da sociedade na pessoa humana, deriva a exigência de todas as

sociedades estarem organizadas de tal maneira que permitam ao homem, ou

melhor, o ajudem a realizar a sua vocação em plena liberdade. A liberdade é a

prerrogativa mais nobre do homem. Até mesmo nas suas escolhas mais íntimas,

todas e cada uma das pessoas hão de poderem exprimir-se a si mesmas, com um

ato de determinação cônscia, inspirado pela própria consciência. Sem liberdade, os

atos humanos ficam esvaziados e desprovidos de valor. 110

A justificativa, bem como a finalidade do Estado e a sua ordem social é a pessoa

humana, neste sentido destaca-se a importância da religião como um aspecto fundamental,

tendo em vista que as religiões, principalmente o Cristianismo, colaboram com a comunidade

política ao proporem por meio de seus “ritos e dogmas” a realização plena da pessoa humana,

dentro da sociedade em que se encontra.

A respeito da vida em comunidade, bem como da natureza e do fim da comunidade

política, recorremos ao magistério do Papa Paulo VI, que cirurgicamente conseguiu resumir a

importante relação entre os homens e suas religiões nos Estados, destacando o fundamento e o

fim da ordem social em vista do bem comum, quando afirma:

Os indivíduos, as famílias e os diferentes grupos que constituem a sociedade civil,

têm consciência da própria insuficiência para realizar uma vida plenamente

humana e percebem a necessidade duma comunidade mais ampla, no seio da qual

todos conjuguem diariamente as próprias forças para cada vez melhor promoverem

o bem comum. E por esta razão constituem, segundo diversas formas, a

109

VERA URBANO, Francisco de Paula. La Libertad Religiosa como Derecho de La Persona. Madrid:

Instituto de Estudios Políticos, 1971, p. 102. 110

JOÃO PAULO II, Papa. Mensagem para o XXI Dia Mundial da Paz – Liberdade Religiosa Condição

para a Convivência Pacífica, em 01 de janeiro de 1988. Disponível em: http://goo.gl/tEyxsa. Acesso em

17/10/2015.

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comunidade política. A comunidade política existe, portanto, em vista do bem

comum; nele encontra a sua completa justificação e significado e dele deriva o seu

direito natural e próprio. Quanto ao bem comum, ele compreende o conjunto das

condições de vida social que permitem aos indivíduos, famílias e associações

alcançar mais plena e facilmente a própria perfeição. (...) requer-se uma autoridade

que faça convergir para o bem comum às energias de todos os cidadãos; não duma

maneira mecânica ou despótica, mas, sobretudo, como força moral, que se apoia na

liberdade e na consciência do próprio dever e sentido de responsabilidade. (...)

Segue-se também que o exercício da autoridade política, seja na comunidade como

tal, seja nos organismos representativos, se deve sempre desenvolver e atuar dentro

dos limites da ordem moral, em vista do bem comum, dinamicamente concebido,

de acordo com a ordem jurídica legitimamente estabelecida ou a estabelecer. (...).

O modo concreto como a comunidade política organiza a própria estrutura e o

equilíbrio dos poderes públicos, podem variar, segundo a diferente índole e o

progresso histórico dos povos; mas devem sempre ordenar-se à formação de

homens cultos, pacíficos e benévolos para com todos, em proveito de toda a família

humana. 111

Neste aspecto, mesmo considerando as inúmeras diferenças entre os homens e as

particularidades do ambiente social, bem como as diversas formas de governo, etc., de fato, a

ordem social deve estar destinada ao bem comum. Assim, a dimensão da fé não afasta o

homem do seio político; pelo contrário, o fiel é chamado a participar ativamente nas estruturas

sociais, ou seja, na construção do bem comum, empenhando-se na política e respeitando a

autonomia das realidades terrenas, como acima exposto.112

Portanto, é de suma importância que, na sociedade pluralista, se tenha uma

concepção exata das relações entre a comunidade política e a religião, e, mesmo que as

atividades de ambas sejam claramente distintas, tanto as religiões como os Estados devem

estar destinados a salvaguardar os direitos fundamentais da pessoa humana, o que fortalece

ainda mais os vínculos entre os homens e suas religiões nos Estados.

111

PAULO VI, Papa. Constituição Pastoral Gaudium Et Spes – Sobre a Igreja no Mundo Atual, n. 74.

Disponível em: http://goo.gl/8Q5sxV. Acesso em: 05/11/2015. 112

Quanto à obediência as autoridades nesse mesmo documento o Papa Paulo VI aponta que ela não é absoluta,

pois quando a autoridade pública, excedendo os limites da própria competência, oprime os cidadãos, estes não se

recusem às exigências objetivas do bem comum, mas é-lhes lícito, dentro dos limites traçados pela lei natural e

pelo Evangelho, defender os próprios direitos e os dos seus concidadãos, contra o abuso desta autoridade. Cf.

PAULO VI, Papa. Constituição Pastoral Gaudium Et Spes – Sobre a Igreja no Mundo Atual.

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3.3 – O Estado moderno e a religião: As ideias contratualistas

O marco histórico do exercício da liberdade religiosa nos Estados modernos foram os

acontecimentos do século XVIII. Encontram-se na Declaração de Direitos da Virgínia (1776)

e na Declaração Francesa de Direitos do Homem e do Cidadão (1789), as primeiras

formulações em relação à liberdade religiosa.

Interessante observar que essas declarações são frutos de inúmeros movimentos

políticos, civis e também religiosos, mas sem dúvida suas ideias e ideais são consequentes do

Liberalismo e das revoluções.113

Destaca-se igualmente a colaboração e consolidação do

pensamento dos “contratualistas” neste período, tendo como principais doutrinadores autores

como Hobbes, Rousseau e Locke. Por esta razão, apresentaremos em linhas gerais as

principais colaborações destes autores na construção dos direitos referentes à liberdade

religiosa.

Na obra o “Leviatã”, de Thomas Hobbes, encontramos a grande mudança nas

relações entre o Estado e as religiões. Hobbes propõe um Estado absoluto na intenção de

superar a anarquia e a insegurança própria do estado de natureza. Para ele, o absolutismo

estatal, ou seja, do soberano, seria a única maneira de colocar fim ao instinto devorador dos

homens. Neste sentido a obediência política não deveria ser incompatível com as leis de Deus,

desde que fosse o soberano quem exercesse a capacidade de “discernir” as leis de Deus.

Esclarece-nos o professor Cláudio de Cicco nos ensina:

No século XVII, com Hobbes, por influência decisiva do pessimismo de matriz

reformista, o “estado natural” deixou de ser a vida em sociedade para ser pensado

como uma “situação anormal” e “decorrente da natureza decaída pelo pecado

original”, e Hobbes concluía ser tal decadência a bellum omnes contra omnes, pois

em sua ótica protestante, sem a Graça o homo hominis lupus est.114

Thomas Hobbes considerava que as guerras de religião precisavam ser evitadas a todo

custo, mas reconhece a distinção entre as esferas política e espiritual, bem como entre um

113

PRIETO, Vicente. Relaciones Iglesia-Estado: La perspectiva del Derecho canónico. Salamanca:

Publicaciones Universidad Pontificia de Salamanca, 2005, p. 42. 114

DE CICCO, Cláudio. História do pensamento jurídico e da Filosofia do Direito. 4. ed. São Paulo: Saraiva,

2009, p. 138.

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culto interior (privado) e exterior (público);115

Ele propôs que a Igreja (religião), se

transformasse em um órgão estatal,116

justificando que o alcance da paz por intermédio do

poder absoluto só será bem sucedido se aquele a quem for atribuído a tarefa de governar

conseguir neutralizar o fator religioso.117

Outro autor de singular importância nesta temática é Jean Jacques Rousseau,118

que

distinguiu a religião da seguinte maneira: religião do homem – equipara-se ao culto interior;

religião do cidadão – identificada com as religiões da Antiguidade, que correspondiam aos

cultos, dogmas e ritos de uma nação e que não se estendiam a outras; e religião dos sacerdotes

– neste se enquadra o Cristianismo romano. Rousseau encontra defeitos em todas; porém, a

mais nociva é o Catolicismo, pois ela coloca em risco a unidade do Estado.

Quanto à religião católica, Rousseau considerava que, ao estabelecer uma relação de

obediência autônoma com os súditos do Estado, incitava divisões no seio da sociedade, já que

nem sempre os seus interesses estariam em conformidade com os interesses expressos pela

vontade de todo o corpo político.

Assim, propôs uma espécie de religião civil submetida ao soberano, que estabeleceria

ritos de fé puramente civis, buscando, assim, fortalecer os sentimentos de sociabilidade sem

os quais, segundo ele é, impossível ser bom cidadão ou súdito fiel. Para isso seria necessário

que o Estado absorvesse para si a religião e, consequentemente a Igreja.119

Rousseau considerava ainda que os homens de modo algum tiveram, a princípio,

outros reis além dos deuses, nem outro Governo senão o teocrático,120

afirmava que poderia

provar que jamais qualquer Estado se fundou sob uma base que não fosse à religião.121

115

Segundo Hobbes “há um culto público e um culto privado. Público é o culto que um Estado realiza como

pessoa. Privado é aquele que é feito por um particular. O público, no que se refere a todo o Estado, é livre, mas

no que se refere aos particulares não o é. O culto privado é secretamente livre, mas perante a multidão nunca

existe sem algumas restrições...”. Assim, o culto embora livre, não significa a submissão da religião à vontade do

soberano. Cf. HOBBES, Thomas. Leviatã. 3.ed. Coleção os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 214. 116

HOBBES, Thomas. Leviatã. 3.ed. Coleção os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1983, pgs. 211. e ss. 117

Hobbes considerava que tanto o poder civil como o religioso deveria ser exercido, ou, no mínimo estar

subjugado ao soberano, enquanto os súditos – cidadãos e fiéis – deveriam prestar obediência absoluta a ele. Para

Hobbes, não haveria outra maneira de controlar a voracidade dos homens, visto que esses são homini lupus

homini, o homem é o lobo do homem. Ainda por trás do pensamento de Hobbes, há uma crítica severa ao poder

do Papa, pois, considerado como um “soberano” estrangeiro, com súditos e fiéis em outro território, suas ordens

poderiam ameaçar diretamente o soberano. 118

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. 2.ed. Coleção os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural,

1978, p. 141. 119

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. 2.ed. Coleção os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural,

1978, pgs. 143 e 144. 120

ROUSSEAU, Jean Jacques. Do Contrato Social. 2.ed. Coleção os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural,

1978, p. 137.

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O pensamento de Rousseau em muito contribuiu para a formação do Estado moderno

e para a relação entre religiões e Estados. Em sua obra, verifica-se também um conceito de

legitimidade de um governo democrático – democracia como vontade geral, fruto da

participação de todos – que reduziria a liberdade à obediência as leis.122

Por fim, suas ideias

irão influenciar a Declarações de Direitos da Virgínia de 1776 e a Declaração dos Direitos do

Homem e do Cidadão de 1789.

3.3.a – O pensamento de John Locke

John Locke, juntamente com Hobbes e Rousseau, é considerado um dos pais do

Contratualismo. Os três teóricos iniciam sua teoria a partir de uma análise do estado de

natureza, passando posteriormente para o “Estado” civil. Como vimos, para Rousseau o

estado de natureza é quase um paraíso, já Hobbes o via como um estado de guerra e Locke se

situava entre os dois extremos, pois considera o estado de natureza como um estado de

liberdade.

O pensamento de John Locke é de fundamental importância para a compreensão do

nascimento dos primeiros direitos a respeito da liberdade religiosa. Destacam-se seus escritos

presentes na obra “Carta acerca da Tolerância”. Locke nasceu em Wrington, Inglaterra, em 29

de agosto de 1632, em um período sangrento na história europeia, onde ainda ecoava os

efeitos da reforma anglicana e das guerras de religião acontecidas no território europeu.

O ponto de partida dos ensinamentos de Locke é o homem. Para ele, todos são livres

e iguais no estado de natureza. Além disso, em sua teoria, apresenta três direitos específicos:

direito à vida; direito a liberdade e direito à propriedade. Esse segundo decorre da revelação

de Deus, ou seja, ele utiliza de argumentos religiosos, devido à importância deste tipo de

justificativa na época em que vivia. Para justificar a liberdade,123

oferece inclusive um

exemplo, quando diz que, se Deus manda o homem trabalhar, significa que ele tem a

liberdade de fazer.

121

ROUSSEAU, Jean Jacques. Do Contrato Social. 2.ed. Coleção os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural,

1978, p. 139. 122

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. 21. tiragem. Rio de Janeiro:

Elsevier, 2004, p. 80. 123

LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Coleção Os

Pensadores, Abril Cultural, 1983, p. 71.

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66

Em relação ao direito à vida, considerava que, sendo o homem uma criatura de Deus,

ninguém tem o direito de tirar a vida de outro, a não ser em caso de legítima defesa. Quanto

ao direito à propriedade, Locke justifica que, se Deus manda o homem a trabalhar é licito que

ele retire da natureza o fruto do seu trabalho e este lhe pertença.124

O direito, para Locke, vem acompanhado de uma obrigação, pois sem ela, o direito

se torna um privilégio. Além disso, considerava que os direitos são naturais e universais, e o

conhecimento dos direitos se dá por meio da razão. Assim, conclui que o estado de natureza é

social, e não um caos. Ao reconhecer isso, os homens podem se relacionar harmonicamente

entre si sem a necessidade de um governo, de autoridades. Mas reconhece que o homem não é

um “santo”; por isso, agrega dois outros direitos, o de julgar e o de castigar.

Desta forma, para Locke o estado de natureza já é social, ou seja, não é um caos cuja

única salvação seria a criação de um Estado social e político, pois já existe no Estado uma

esfera social que não depende de leis e autoridades para o seu funcionamento. Considera que

as sociedades são naturais, surgem de forma espontânea, mas os Estados são artificiais, uma

vez que são mecanismos que os homens criam para a vida social, visando os direitos naturais,

como vida, propriedade e liberdade.125

Outro aspecto importante é a distinção do pensamento de Hobbes e de Locke em

relação ao contrato social. Para Hobbes, os homens renunciam seus direitos ao soberano, em

troca de paz e segurança; já Locke afirma que o governo existe para fortalecer os direitos

naturais.126

Além disso, para Hobbes é o estado de natureza que propicia a guerra de todos contra

todos, por isso, o próprio nascimento do Estado social exige a renúncia dos direitos por parte

dos cidadãos a fim de conseguir a paz. Locke afirma que os direitos são bens e, por

conseguinte não podem ser renunciados, mas, sim conservados.127

Na visão de Locke, a sociedade é um agregado de indivíduos, e nela os homens

competem entre si para a aquisição de propriedade. Assim, para que esta dinâmica de

124

LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Coleção Os

Pensadores, Abril Cultural, 1983, p. 42. 125

LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Coleção Os

Pensadores, Abril Cultural, 1983, p. 72. 126

LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Coleção Os

Pensadores, Abril Cultural, 1983, p. 71. 127

LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Coleção Os

Pensadores, Abril Cultural, 1983, p. 82.

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67

competição decorra de maneira mais justa e livre, é possível que se requeira a criação de um

Estado, legitimado pelo consentimento dos interessados, mas de forma alguma esse Estado

criado (artificial), é absolutista, e, sim, um Estado de Direito criado em benefício do direito

dos homens. Ele admite ainda que os cidadãos podem mudar a forma de governo de acordo

com seus interesses e, quando os direitos naturais são violados, o governo é ilegítimo.128

Hobbes, por outro lado, não admite qualquer forma de questionamento do soberano, pois é ele

que mantém a ordem social.

A separação entre sociedade e Estado de Locke é o fundamento do Liberalismo. Ele

inclusive foi um dos primeiros teóricos a expressar esta opinião publicamente. Desta forma, o

Liberalismo em Locke significa basicamente a separação entre Estado e governo; porém, a

legitimidade do governo possui seu fundamento no consentimento dos governados. Em seu

pensamento, o Estado é um instrumento regulador da sociedade, e, a partir dessa concepção,

nasceu o que consideramos como Liberalismo clássico, fundamentado em cinco pilares:

individualismo, consentimento, estado de direito, propriedade privada e tolerância religiosa.

Não se pode negar que os conceitos a respeito do contrato social de Locke, além de

marcar uma época, influenciou diretamente a solidificação dos direitos dos indivíduos e,

principalmente, as primeiras declarações de direitos e constituições de diversos “Estados

modernos”, como EUA, França e Brasil, entre outros.

Quanto às temáticas a respeito da liberdade religiosa, Locke foi um dos principais

teóricos no que se refere à tolerância e, consequentemente, à possibilidade de uma

colaboração entre Estados e religiões. Basta investigar as diretrizes expostas em sua obra

“Carta acerca da Tolerância”, que, resumidamente, traz a ideia de que é um absurdo o Estado

tratar das questões religiosas, tendo em vista duas coisas; a primeira é a pluralidade de

religiões; a segunda, que são de naturezas distintas.129

128

LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Coleção Os

Pensadores, Abril Cultural, 1983, p. 118. 129

Em relação à natureza, embora tanto o Estado quanto a religião visem os bens dos homens, enquanto o

primeiro se sustenta pela força, lei, autoridade, já o segundo, pela persuasão. O Estado não tem, assim, nada que

ver com as coisas da alma, transcendentes, na visão lockeana. Interessante observar, que, por meio desse

pensamento, se justifica igualmente uma postura “laicista” de tamanha indiferença entre religiões (consideradas

como de interesse privado) e Estado. Por outro lado, esse conceito possibilitou também a justa e legítima

separação ente Estados e religiões, mantendo a “laicidade”. Além disso, porque a justificativa do Estado se

fundamenta nos interesses do homem e porque a religião é também um dado fundamental para os homens, a

partir de Locke se torna possível o desenvolvimento de mecanismos colaborativos entre religiões e Estado,

principalmente fundados em sua noção de tolerância.

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Locke, nesta obra, procurou estabelecer uma clara distinção entre as competências da

religião e do Estado, cabendo à primeira cuidar dos cultos e ritos religiosos, e ao segundo,

garantir a conservação dos homens e das suas propriedades.130

Segundo ele, o Estado não

deve interferir nas atividades eclesiásticas, enquanto às religiões não cabe o direito de exigir a

renúncia ou a queda de um monarca excomungado, ou seja, não possui competência nas

coisas temporais. Nasce, assim, a ideia da tolerância religiosa, pois, segundo ele, o Estado não

deve fazer proselitismo, mas permitir, sem que viole os direitos dos demais, que cada

indivíduo busque sua concepção religiosa, tendo em vista que a fé não nasce da espada, mas,

sim, da persuasão.

Percebe-se no pensamento de Locke uma forte conotação histórica-social, tendo em

vista que, quando ele se refere à limitação da religião, “Igreja católica”, está preocupado

diretamente com a interferência de um poder estrangeiro, no caso o do Papa, na vida civil do

Estado. Locke considerava que o Sumo Pontífice, por meio de sua hierarquia e fiéis, poderia

colocar em risco a vida civil. Os católicos não deviam ser tolerados, não cabendo à Igreja de

Roma “o direito de ser tolerada pelo magistrado, pois se constitui de tal modo que todos seus

membros ipso facto se transformam em súditos e serviçais de outro príncipe”.131

Locke, também em sua obra, justifica a intolerância aos ateus, que, como os católicos

romanos, seriam uma ameaça a ordem social, fundamentando sua ideia na seguinte afirmação:

Os que negam a existência de Deus não devem ser de modo algum tolerados, as

promessas, os pactos e os juramentos, que são os vínculos da sociedade humana,

para um ateu não podem ter segurança ou santidade, pois a supressão de Deus,

ainda que apenas em pensamento, dissolve tudo.132

Por mais que pareça irônico dizer que uma obra acerca da tolerância expressa

justificativas para a intolerância, podemos dizer que, salvaguardando a influência histórica-

social inglesa, o pensamento de Locke, sem dúvida, ao distinguir as funções do governo civil

e da religião, demarcou fronteiras entre as religiões e os Estados, o que possibilitou,

130

LOCKE, John. Carta Acerca da Tolerância. Trad. Anoar Aiex. São Paulo: Coleção Os Pensadores, Abril

Cultural, 1978, pgs. 5 e 6. 131

LOCKE, John. Carta Acerca da Tolerância. Trad. Anoar Aiex. São Paulo: Coleção Os Pensadores, Abril

Cultural, 1978, pg. 23. 132

LOCKE, John. Carta Acerca da Tolerância. Trad. Anoar Aiex. São Paulo: Coleção Os Pensadores, Abril

Cultural, 1978, pgs. 23 e 24.

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69

posteriormente, em países como Estados Unidos, uma convivência harmônica entre o poder

estatal e a religião.

O problema central da “tolerância” lockeana está fundamentado em questões

políticas, muito mais do que propriamente em questões em questões religiosas. No caso da

crítica aos católicos, o objeto de intolerância não é em si a fé, mas a interferência de um poder

estrangeiro, ou seja, ao condenar os católicos, reconhece o potencial de deslegitimação que a

religião poderá desenvolver em face do governante, o que acaba estimulando entre os súditos

uma obediência paralela, nociva à estabilidade política; por outro lado, ao não tolerar os ateus,

reconhece a necessidade da religião como fermento para a coesão social e política da

sociedade.133

Contudo, isso não quer dizer que o fiel e cidadão não possui responsabilidade frente

o Estado, pois esse era justamente o temor de Locke. Quando uma religião não estivesse

dentro dos limites estatais – no caso a Igreja Católica – seus membros poderiam colocar em

risco a segurança de todos os demais cidadãos. Além disso, quando se diz que há

competências distintas, é preciso considerar que o objeto da atuação das religiões e do Estado

é o mesmo, qual seja, a pessoa humana. Esta deve alcançar uma vida feliz e virtuosa em uma

comunidade onde lhe seja assegurada a paz e a justiça.

Enfim, os ensinamentos de Locke, mesmo com seus limites, além de ter influenciado

diversas Constituições, continua a servir de inspiração para a construção de um modelo

colaborativo entre religiões e Estados, principalmente no que diz respeito à justa separação

entre as coisas civis e sagradas, pois, como ensinou Locke, além de serem de competências

distintas, possuem meios de ação opostos: a religião está voltada para a eternidade e o Estado,

para as coisas terrenas.

3.4 – A liberdade religiosa a partir dos contratualistas

Indiscutivelmente, as constituições jurídicas surgidas a partir do século XVIII,

principalmente nos países ocidentais, estão recheadas das ideias dos contratualitas dos séculos

anteriores. O pensamento de autores como Hobbes, Rousseau, Locke e outros, produziram

133

CASAMASSO, Marco Aurélio Lagreca. Política e Religião: O Estado Laico e a Liberdade Religiosa à luz do

Constitucionalismo Brasileiro. 2006. 88 f. Tese (Doutorado em Direito). Pontifícia Universidade de São Paulo,

São Paulo, 2006.

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mudanças significativas na concepção dos homens de si mesmos, bem como na noção dos

Estados, o que possibilitou a busca pela conquista de uma “nova” liberdade.

Por outro lado, outro movimento, a Reforma Protestante, também colaborou para

uma nova forma de pensar o mundo. A partir dela, os homens ousaram enfrentar duas grandes

forças, quais sejam: a Igreja Católica e o Estado absolutista. Surgiam, assim, as sementes do

“Liberalismo”.

Como vimos, o conceito de tolerância em Hobbes estava fundamentado na ideia de

que Deus não podia fundar seu reino entre os homens senão por meio do soberano.134

Já para

Rousseau todas as religiões deviam ser toleradas, desde que seus dogmas em nada

contrariassem os deveres do cidadão, através da ideia de “religião civil”.135

John Locke quem mais influenciou o conceito de tolerância e de liberdade religiosa,

essa que já estava presente na Declaração de Direitos da Virgínia (1776), na primeira

Constituição americana (1776) e na primeira emenda a Constituição americana, na qual consta

expressamente a proibição de o Congresso em editar qualquer lei a respeito de um

estabelecimento de religião, que proibisse o seu livre exercício, ou que restringisse a liberdade

de expressão, de imprensa, ou de associação.136

É interessante observar que estes documentos embora influenciados pelo pensamento

de Locke, superou o problema da “tolerância” lockeana, que colocava de lado os ateus e

católicos. Contudo, a princípio os colonos americanos que se estabeleceram no novo

continente, estavam motivados pela intolerância reinante na Europa, recheado das ideias de

Locke, e, assim, criaram diferentes colônias confessionais, como, por exemplo, os puritanos

em Massachussets, os anglicanos na Virgínia, os católicos em Maryland, os quacres na

Pensilvânia.

Ensina-nos o professor Cláudio de Cicco:

É o que vai marcar fortemente sua presença neste Continente: o desenvolvimento

de uma civilização de fundo religioso protestante, valorizadora da Bíblia, muito

mais que as colônias hispânicas, durante séculos. A ideia de fazerem parte de um

“New Covenant”, literalmente: uma “Nova Aliança”, como novos herdeiros da

promessa abrâmica, incumbidos de divulgar a Escritura Sagrada por todo o mundo,

134

HOBBES, Thomas. Leviatã. 3.ed. Coleção os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 388. 135

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. 2.ed. Coleção os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural,

1978, p. 145. 136

RAMOS, Elival da Silva. Notas sobre a liberdade de religião no Brasil e nos Estados Unidos. Revista da

Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. n. 27-28. São Paulo: Centro de Estudos da Procuradoria Geral do

Estado de São Paulo, 1987: 199-246.

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une-se curiosamente com alguns ideais de tolerância religiosa, hauridos no

“Tratado da Tolerância”, de John Locke, para a convivência entre cristãos de

diferentes denominações cristãs.137

Mas, a partir do momento que quiseram constituir a confederação americana,

passaram a adotar a ideia da tolerância religiosa cristã como ponto de partida, sem fazerem

qualquer oposição a nenhuma religião, muito embora os estados americanos fossem

genericamente de confissão cristã.138

Neste momento, o rompimento com a ideia de

“intolerância” lockeana foi fundamental para o surgimento da Nação americana, entretanto,

mantendo-se a ideia central da tolerância em Locke, que é a separação entre religiões e

Estado.

Os ventos pela “nova” liberdade precisaram de um poder capaz de proteger os

homens contra a intolerância. Além disso, fazia-se necessária uma força moral para impor

“limites” aos homens, e o dogmatismo das religiões oferecia estes limites.

Outro dado interessante produzido pela “nova” liberdade foi o surgimento das ideias

liberais, que, por consequência, influenciaram diretamente a relação entre as religiões e os

Estados modernos. Uma síntese deste momento histórico nos deu Georges Burdeau, em sua

obra “O Liberalismo”, quando afirma:

O que interessa aqui ao nosso propósito é sublinhar a importância que revestiu o

Liberalismo a separação entre religião e moral social. Essa ruptura, que é

incontestavelmente obra do Racionalismo levou o pensamento liberal a considerar

que a religião é uma questão privada entre o individuo e o seu Deus ou a sua Igreja.

Naturalmente o homem pode subordinar a sua conduta social à sua consciência

religiosa, mas trata-se duma atitude que só a ele diz respeito. Inversamente, desde

que a moral social se encontra separada da religião, as Igrejas devem abster-se de

intervir no plano temporal na organização das relações sociais: o seu domínio é a

salvação individual, e não é tarefa sua construir ou reformar a sociedade. As luzes

da fé e as da razão não iluminam o mesmo mundo.139

Esta ideia de separação total entre religiões e Estados, reduzindo a fé a uma mera

questão pessoal e individual, resultou em uma verdadeira tragédia. Os principais efeitos desse

137

DE CICCO, Cláudio. História do pensamento jurídico e da Filosofia do Direito. 4. ed. São Paulo: Saraiva,

2009, p. 129. 138

PRIETO, Vicente. Relaciones Iglesia-Estado: La perspectiva del Derecho canónico. Salamanca:

Publicaciones Universidad Pontificia de Salamanca, 2005, p. 42. 139

BURDEAU, Georges. O liberalismo. Trad. J. Ferreira. Sintra – Portugal: Publicações Europa-América. p.

101.

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72

fato foram vistos na Revolução Francesa, onde inúmeras pessoas foram perseguidas e mortas

em virtude da manifestação pública de sua fé.

O fato é que a temática do Liberalismo stricto sensu acabou por colaborar para a

construção do conceito do laicismo e da laicidade, temas de suma importância na relação

entre religiões e Estados. Sem dúvida, há dois grandes modelos para identificarmos a política

estatal nos Estados modernos quanto às religiões, o primeiro seria o norte-americano (laico), o

segundo o francês (laicista).

Em relação ao ideal separatista entre religiões e Estado, o modelo americano é

diverso do francês. Nos Estados Unidos, o separatismo é entendido como garantia de

liberdade; por isso, o poder público se declara incompetente para determinar de algum modo a

religião ou a confissão dominante. Um exemplo claro está presente já na primeira emenda

constitucional americana, que proíbe tanto o estabelecimento de uma religião como a

proibição de seu exercício. A Constituição americana não é laicista nem oposta à religião, ou

seja, existe nela a ideia concreta da liberdade e da tolerância religiosa.140

Pode-se dizer que os Estados Unidos da América já em sua gênese de constituição

como Estado foi um dos principais países que melhor tratou as temáticas trazidas pelos

contratualistas, sobretudo no que diz respeito à tolerância, ao laicismo e à liberdade religiosa.

Desde muito cedo, os americanos aprenderam que a liberdade religiosa era um fator

primário para a união do Estado, mas, para isso, haveria de promover e se ensinar a cultura da

tolerância, divergindo um pouco do conceito dos contratualitas, uma vez que todos pregavam

a tolerância, mas o limite era a vontade do soberano ou a paz e a ordem civil.

A esse respeito, nos ensinou o Papa Francisco em uma recente visita aos Estados

Unidos:

Os quakers, que fundaram Filadélfia, viviam inspirados por um profundo sentido

evangélico da dignidade de cada pessoa e pelo ideal duma comunidade unida pelo

amor fraterno. Tal convicção levou-os a fundar uma colónia que haveria de ser um

paraíso de liberdade religiosa e tolerância. Este significado de compromisso

fraterno em prol da dignidade de todos, especialmente dos mais fracos e

vulneráveis, tornou-se parte essencial do espírito norte-americano.141

140

PRIETO, Vicente. Relaciones Iglesia-Estado: La perspectiva del Derecho canónico. Salamanca:

Publicaciones Universidad Pontificia de Salamanca, 2005, p. 42. 141

FRANCISCO, Papa. Discurso do Santo Padre no encontro em prol da Liberdade Religiosa em 26 de

setembro de 2015. Disponível em: http://goo.gl/bgWMJs. Acesso em 05/10/2015.

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Além disso, os americanos laicos consideravam que a profissão de fé era uma das

características do próprio ser, homem no mundo, ou seja, o homem também era direcionado

por suas convicções e, assim, por meio dela, colaboraria diretamente na construção do mundo

e da sociedade. Os americanos, apoiados nas ideias da reforma protestante e impulsionados

pelo “Liberalismo”, não a nível moral, mas principalmente econômico, construíram sua nação

fundamentados na liberdade e na fé “cristã” tolerante aos demais credos.

A esse respeito, Jacques Maritain faz uma verdadeira apologia à Constituição

americana:

(...) há pessoas que, por amor da tolerância civil, queriam que a Igreja e o corpo

político vivessem em um isolamento total e absoluto (...) a expressão separação

Igreja e Estado não tem o mesmo significado nos Estados Unidos e na Europa. Na

Europa essa expressão significa ou significava esse isolamento completo que

deriva de mal-entendidos e de lutas seculares e que produziu os resultados mais

funestos. Essa mesma expressão nos Estados Unidos realmente significa,

juntamente com uma recusa a conceder qualquer privilégio a uma confissão

religiosa de preferência a outras, assim como à existência de uma religião oficial do

Estado, uma distinção entre o Estado e as igrejas compatível com a boa vontade e a

mútua cooperação. (...) A Constituição dos Estados Unidos lança as suas raízes,

não apenas em Locke ou no Racionalismo do século XVIII, mas sim na herança

secular do pensamento e da civilização cristã. (...) É incalculável o significado que

tem, para a filosofia política, a promulgação da Constituição americana no fim do

século XVIII. Essa constituição pode ser descrita como um documento cristão leigo

da mais alta relevância, infiltrado pela filosofia do momento. Ao espírito e à

inspiração desse grande documento político-cristão repugna a ideia de tornar a

sociedade humana indiferente a Deus e a qualquer fé religiosa. O dia de dar graças

a Deus e de orações públicas, a invocação do nome de Deus por ocasião de

qualquer solenidade oficial mais importante constituem, no comportamento prático

da nacionalidade, uma expressão desse espírito e dessa inspiração.142

Por outro lado, a experiência revolucionária francesa143

e em geral europeia foi um

pouco diferente da norte-americana, pois essas, buscando romper com o passado, combatiam

contra a tradição católica ou simplesmente cristã, ou seja, o Cristianismo era um elemento

142

MARITAIN, Jacques. O Homem e o Estado. Trad. Alceu Amoroso Lima. 2. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1956,

pgs. 213 e 214. 143

Breve nota a respeito da Revolução Francesa: A partir de fevereiro de 1790, sucede-se toda uma série de

decretos em que se põem de manifesto a tibieza dos cristãos presentes na Assembleia e os resultados da virulenta

propaganda que os iluministas tinham dirigido contra a Igreja. Os primeiros raios fulminaram as Ordens

religiosas. Numa total incompreensão do papel que a oração ocupa na vida cristã, também no seu aspecto social,

suprimiram-se todas as Ordens contemplativas, isto é, todas as que não se dedicassem a alguma atividade “útil”,

pedagógica ou hospitalar. Aos religiosos que aceitassem secularizar-se, oferecia-se uma pensão vitalícia; os

outros deveriam ser reagrupados, para deixar os seus conventos ao dispor da Nação. Além disso, em nome da

decantada Liberdade, “degradada” pelos votos religiosos, proibia-se a emissão de novos votos por parte dos

noviços e postulantes de todas as Ordens. Cf. FORT, Gertrud von le. A Última ao Cadafalso. Trad. Roberto

Furquim. Quadrante: São Paulo, 1998.

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inseparável do sistema que era preciso combater e destruir. Os revolucionários buscavam criar

uma religião “revolucionária” e também uma “Igreja” dependente de seu movimento. Como

consequência, a religião deveria ser confinada à esfera da consciência pessoal, e, no âmbito

social, quando não controlada pela autoridade Estatal, era vista como resíduo cultural fruto da

ignorância.144

Diferente do pensamento americano, o modelo do separatismo francês é entendido

como separação entre a Igreja nacional francesa e a Igreja de Roma. Neste caso, o Estado

através de leis restritivas, procurava limitar a presença social e das “confissões” religiosas não

oficiais, tentando adequá-las aos princípios iluministas e, como se não bastasse, perseguindo

abertamente os religiosos.

Com o tempo, algumas destas medidas foram sendo corrigidas por meio de

concordatas-acordos com a Igreja Católica (Santa Sé), contudo, a tendência deste modelo

laicista, que considera o Estado acima das religiões, ou reduzi as religiões apenas a uma

associação civil, regulada por leis civis,145

se demonstrou ao longo da história um instrumento

de opressão, perseguição e privação dos direitos fundamentais da pessoa humana,

principalmente no que diz respeito à liberdade religiosa.146

Interessante observar que após a ascensão de Napoleão ao poder ele procurou fazer

uma concordata com o Papa Pio VII, pela qual a Igreja poderia gozar de certa “liberdade” na

França, embora vivesse em regime de separação entre a Igreja e o Estado, a isso se chamou

política do modus vivendi entre a Igreja e a Revolução.147

Os ideais dos contratualistas, a partir do século XVIII, influenciaram diretamente a

solidificação do Estado moderno. Neste caminho houve momentos diversos na relação entre

144

PRIETO, Vicente. Relaciones Iglesia-Estado: La perspectiva del Derecho canónico. Salamanca:

Publicaciones Universidad Pontificia de Salamanca, 2005, p. 42. 145

PRIETO, Vicente. Relaciones Iglesia-Estado: La perspectiva del Derecho canónico. Salamanca:

Publicaciones Universidad Pontificia de Salamanca, 2005, p. 43. 146

Foram os filósofos do Iluminismo francês do século XVIII que iniciaram a ferrenha campanha moderna

anticatólica. Atrelada ao Antigo Regime, a Igreja foi taxada como aliada da nobreza e inimiga do povo. Os

revolucionários franceses estavam recheados de ideias liberais, nos quais incluíam a eliminação da Igreja. Se não

poderia ser eliminada, ao menos, a Igreja deveria ser submissa ao Estado francês, como ficou claro na

Constituição Civil do Clero (1790). Além disso, os clérigos e religiosas que não prestaram juramento à

Constituição foram perseguidos e guilhotinados. Segundo o historiador Daniel Rops, a Revolução Francesa abriu

caminho às demais ideologias que defendiam a eliminação da Igreja. Os pensadores do século XIX

consideravam-se herdeiros dos iluministas e “por todo o século irão desenvolver-se, sempre no sentido da

irreligião total, doutrinas que culminarão naquilo que, […] na morte de Deus”. Cf. ROPS, Henri Daniel. A

Igreja das Revoluções (I). v. 8. Coleção História da Igreja. São Paulo: Quadrante, 2003, p. 407 e Cf. FRANÇA.

Constituição Civil do Clero (1790). Disponível em: http://goo.gl/MIKG59. Acesso em 04/11/2015. 147

DE CICCO, Cláudio. História do pensamento jurídico e da Filosofia do Direito. 4. ed. São Paulo: Saraiva,

2009, p. 175.

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as religiões e os Estados. Percebe-se na história desde uma relação “harmônica” entre

religiões e Estados, tendo na liberdade do indivíduo o seu fundamento principal, tal como

visto nos Estados Unidos, até mesmo situações de rompimento total, ou tentativas de

“laicizar” a religião, quer seja ao excluir, perseguir ou estatizar o dado da fé.

Além disso, a história nos indica que a relação entre cidadãos e suas religiões no

Estado não é uniforme; entretanto, ela mesma aponta que, para a efetiva proteção dos direitos

fundamentais dos homens, dentre eles o da liberdade religiosa, o melhor caminho é um

modelo de colaboração que garanta certa autonomia do homem em relacionar-se com o

sagrado, incentivando-o, por outro lado, a manter suas responsabilidades dentro do Estado.

Portanto, autores como Hobbes, Rousseau, Locke e Maritain, contribuíram na

construção tanto da ideia a respeito da liberdade religiosa, como principalmente na relação

entre religiões e Estados; contudo, são as indicativas lockeana adotadas principalmente pelos

americanos que melhor conseguiram estabelecer uma relação saudável entre os fiéis, suas

religiões e o Estado. De fato, o modelo da constituição americana, elogiado por Maritain,

permitiu que Estado e religiões não ocupassem o espaço um do outro, o que suscitou em

ambos a possibilidade de desenvolverem atividades colaborativas em prol da valorização dos

direitos dos homens, dentre estes o da liberdade religiosa.

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Capítulo Quarto

A possibilidade da colaboração entre Estados e religiões

4.1 – Os fundamentos para a colaboração: justificativas doutrinárias

A pessoa humana é a grande protagonista da ação do Estado, cabendo a todos os

homens, Estados, comunidades civis e religiosas, proteger os direitos humanos e

fundamentais. Neste sentido, os Estados signatários da Declaração Universal dos Direitos

Humanos possuem uma responsabilidade ainda maior, tendo em vista que reconheceram

solenemente que a liberdade religiosa é um direito fundamental humano, ou seja, inato,

indisponível, da pessoa humana.

Sobre essa perspectiva é que emerge a necessidade da construção de instrumentos

que protejam e promovam os direitos humanos tanto nos âmbitos particular e universal,

quanto nas relações entre religiões e Estados. Além disso, esses instrumentos não podem visar

um privilégio a determinado culto, pois seu objeto deve ser a pessoa humana e,

consequentemente, sua liberdade de professar ou não um credo religioso dentro da

comunidade política.

Assim, para fundamentar qualquer relação entre religiões e Estados, é preciso ter a

clareza de que objeto principal da proteção estatal deve ser o homem e seus direitos. Quanto

ao direito à liberdade religiosa, o cidadão e fiel tem o direito de relacionar-se com o sagrado

no seio do Estado, sem a interferência de qualquer autoridade civil, pois, embora as religiões

façam parte do dinamismo social, elas possuem suas justificativas, seus dogmas e seus

fundamentos fora do próprio Estado. Isso quer dizer: não é o Estado que confere às religiões

legitimidade.

Por outro lado, o Estado, em vista da proteção dos direitos dos cidadãos/fiéis e

cidadãos, possui interesse nas religiões. Além disso, há de considerar que os cidadãos também

possuem direitos e responsabilidades em seus Estados. Portanto, tanto os Estados quanto as

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religiões desejam que haja uma relação harmônica entre eles, visto que ambos possuem nos

homens e na convivência social – destinada ao bem comum – seu objeto.

Após esse esclarecimento prévio quanto aos fundamentos para a construção da

relação colaborativa entre religiões e Estados, partimos para a investigação da possibilidade

dessa relação a partir do ensinamento de alguns pensadores que refletiram a respeito das

temáticas da liberdade, da tolerância, da laicidade, visando à colaboração entre Estados e

religiões.

John Locke, por exemplo, foi um dos pensadores que propôs vias de relação entre as

religiões e os Estados. Em sua obra “Carta acerca da Tolerância”, seu ponto de partida foi a

distinção entre a própria forma de “poder” dessas instituições, deixando claro suas diferenças,

uma de caráter "intelectual", a outra, de "força”, concluindo que ninguém pode impor religião

alguma a outro, pois a fé nasce da pregação, não da autoridade sancionadora civil.148

Segundo ele, para que haja uma boa relação entre as religiões e os Estados é

fundamental que estejam bem clara a natureza e a função de cada uma das entidades dentro da

sociedade, pois, a um, cabe cuidar das “almas”, ao outro, dos “bens civis”. Por fim, constatou

que a religião é mais tolerante quando não se apoia no poder civil,149

indicando uma vida de

colaboração com separação entre religiões e Estados.

não cabe ao magistrado civil o cuidado das almas, nem tampouco a quaisquer

outros homens. Isso não lhe foi outorgado por Deus, porque não parece que Deus

jamais tenha delegado autoridade a um homem sobre outro para induzir outros

homens a aceitar sua religião. (...) Seja qual for a religião que a gente professa, seja

qual for o culto exterior com o qual se está de acordo, se não acompanhados de

profunda convicção de que uma é verdadeira e o outro agradável a Deus, em lugar

de auxiliarem, constituem obstáculos à salvação.150

Os ensinamentos de Locke continuam a ecoar nas sociedades. É sabido o quanto suas

ideias influenciaram as declarações e constituições de direito do século XVIII, dando destaque

148

LOCKE, John. Carta Acerca da Tolerância. Trad. Anoar Aiex. São Paulo: Coleção Os Pensadores, Abril

Cultural, 1983, p. 5. 149

LOCKE, John. Carta Acerca da Tolerância. Trad. Anoar Aiex. São Paulo: Coleção Os Pensadores, Abril

Cultural, 1983, p. 9. 150

LOCKE, John. Carta Acerca da Tolerância. Trad. Anoar Aiex. São Paulo: Coleção Os Pensadores, Abril

Cultural, 1983, p. 5.

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à primeira Constituição americana, que trazia em seu corpo os princípios do individualismo,

da propriedade privada da liberdade religiosa, de acordo com o pensamento do filósofo inglês.

Outro importante pensador na construção da ideia de uma legítima separação entre

religiões e Estados foi o filósofo francês Jacques Maritain. Em sua obra “O Homem e o

Estado”, apresentou os fundamentos que considerava indispensáveis na colaboração entre

“Igreja” e Estado.151

Primeiramente, afirmava que a pessoa humana é, ao mesmo tempo, parte

do corpo político e superior a ele, contudo a vocação humana está destinada ao bem comum

que se realiza também na vida civil.152

Posteriormente, Maritain investigou a respeito da natureza do Estado, afirmando que

ele está a serviço do homem e, consequentemente, destina-se a realizar os direitos

fundamentais da pessoa humana:

O Estado é apenas uma instituição autorizada a usar do poder e da coação, e

constituída por técnicos e especialistas em questões de ordem e bem-estar público;

em suma, um instrumento ao serviço do homem. Colocar o homem a serviço desse

instrumento é uma perversão politica. A pessoa humana como indivíduo existe para

o corpo político, mas o corpo político existe para a pessoa humana como pessoa.

Mas o homem, de maneira alguma existe para o Estado. O Estado que existe para o

homem.153

Em seguida, na mesma perspectiva de John Locke, Maritain afirmou que as

naturezas da Igreja e do Estado são distintas, tendo em vista que, enquanto o Estado só se

ocupa com a vida temporal dos homens e com seu bem comum temporal, a Igreja “religião”

por sua vez, é essencialmente espiritual e, pelo próprio fato de sua ordem, não pertencer a esse

mundo, de modo algum ameaça os reinos e as repúblicas da terra. O autor conclui que, ainda,

151

Jacques Maritain, afirma, nas observações preliminares da relação entre Igreja e Estado, que, quanto às

relações de outras Igrejas ou instituições religiosas com o Estado, o curso de sua argumentação aplicar-se-á

apenas de maneira indireta e restrita. Como veremos a seguir, de fato a Igreja Católica possuía algumas

particularidades como, por exemplo, o reconhecimento pelo direito internacional como “Estado” que a

diferenciam das demais. Este estudo, porém, não versa sobre a natureza jurídica da Igreja Católica, mas se

destina a apontar diretrizes que possam viabilizar a relação entre religiões e Estados. Nesse caso, o pensamento

de Maritain pode ser absorvido plenamente na proposta de diretrizes colaborativas. Mesmo que as demais Igrejas

e religiões não possuam o mesmo status jurídico que a Igreja Católica, no que se refere à proteção dos direitos

fundamentais de seus membros frente à autoridade estatal, em nada diferem desta. Cf. MARITAIN, Jacques. O

Homem e o Estado. Trad. Alceu Amoroso Lima. 2. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1956, p. 171. 152

MARITAIN, Jacques. O Homem e o Estado. Trad. Alceu Amoroso Lima. 2. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1956,

p. 173. 153

MARITAIN, Jacques. O Homem e o Estado. Trad. Alceu Amoroso Lima. 2. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1956,

p. 22.

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que por mais distintos que sejam a “religião” (Igreja) e o corpo político não podem viver e

desenvolver-se em completo isolamento e ignorância um do outro, o que para ele seria pura e

simplesmente antinatural.154

Interessante observar que, o fundamento da necessária cooperação entre a Igreja

“religião” e o Estado, na visão de Maritain é a pessoa humana, que, como membro de ambos

participa dessas duas realidades; por isso, “uma divisão absoluta entre essas duas sociedades

seria o mesmo que cortar a pessoa humana em duas partes”.155

Maritain considerava ainda que o próprio bem comum da sociedade temporal supõe

que as pessoas humanas são indiretamente amparadas por essa sociedade temporal na sua

busca pela finalidade “extra temporal”, proposta pelas religiões, sendo essa uma condição

essencial para encontrar sua felicidade.156

Jacques Maritain procurou ainda deixar claro que colaboração não significa “oferecer

privilégios”. Segundo ele, esse fato colocava em cheque a própria liberdade da Igreja, bem

como as finalidades das comunidades políticas. Ensina-nos o autor francês:

O Estado não ajudaria em nada a Igreja pelo fato de conceder um tratamento

jurídico privilegiado ou procurando ganhar sua adesão por meio de vantagens

temporais atentatórias de sua própria liberdade. O melhor processo de que dispõe o

corpo político para ajudar a Igreja em sua missão espiritual é o de pedir a

assistência da Igreja para o seu próprio bem comum temporal. (...) Deveriam pedir,

na base da liberdade e da igualdade de direitos para todos os cidadãos, a sua

cooperação no campo de todas as atividades que visam o maior esclarecimento dos

espíritos humanos e da vida. Deveriam positivamente facilitar o trabalho religioso,

social e educativo por meio do qual a Igreja – tanto quanto os grupos espirituais ou

conhecidas por eles – contribui livremente para o bem-estar comum.”157

Por fim, Maritain conclui que a liberdade religiosa, como um direito fundamental do

homem, não pode ser simplesmente desprezada, ou reduzida ao campo privado, uma vez que

154

MARITAIN, Jacques. O Homem e o Estado. Trad. Alceu Amoroso Lima. 2. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1956,

p. 178. 155

MARITAIN, Jacques. O Homem e o Estado. Trad. Alceu Amoroso Lima. 2. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1956,

p. 178. 156

MARITAIN, Jacques. O Homem e o Estado. Trad. Alceu Amoroso Lima. 2. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1956,

p. 206. 157

MARITAIN, Jacques. O Homem e o Estado. Trad. Alceu Amoroso Lima. 2. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1956,

pgs. 208 e 209.

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ela é anterior ao próprio Estado.158

Além disso, garantir a liberdade religiosa plena é uma

expressão do respeito aos direitos fundamentais dos homens.159

Nesta mesma perspectiva, a doutrina da Igreja Católica em muito colaborou na

construção de meios que viabilizassem a possibilidade de uma colaboração entre as religiões e

as comunidades políticas. Entre os ensinamentos, destacamos o magistério dos Papas Paulo

VI e João Paulo II. Ambos, líderes da Igreja Católica no século XXI, foram testemunhas e

vítimas dos horrores das guerras e, consequentemente, das privações de direitos, dentre estes a

liberdade religiosa, e posteriormente, como chefes de Estado procuraram tecer um caminho

sóbrio e eficaz na relação entre religiões e Estados, visando à proteção dos direitos

fundamentais da pessoa humana.

O Papa Paulo VI, na Constituição Pastoral Gaudium Et Spes, deixou clara a legítima

separação entre comunidade política e Igreja “religiões”, contudo, promovendo a colaboração

entre ambas. Afirmou o pontífice:

No domínio próprio de cada uma, comunidade política e Igreja são independentes e

autónomas. Mas, embora por títulos diversos, ambas servem a vocação pessoal e

social dos mesmos homens. E tanto mais eficazmente exercitarão este serviço para

bem de todos, quanto melhor cultivarem entre si uma sã cooperação, tendo

igualmente em conta as circunstâncias de lugar e tempo.160

A respeito da relação colaborativa ensinou-nos o Papa João Paulo II:

O direito civil e social à liberdade religiosa, enquanto atinge a esfera mais íntima

do espírito, revela-se ponto de referência e, de certo modo, torna-se a medida dos

outros direitos fundamentais. Trata-se, efetivamente, de respeitar o espaço mais

cioso da autonomia da pessoa, permitindo-lhe agir segundo o ditame da sua

consciência, quer nas escolhas privadas quer na vida social. O Estado não pode

reivindicar uma competência, direta ou indireta, quanto às convicções religiosas

das pessoas. Ele não pode arrogar-se o direito de impor ou de impedir a profissão e

a prática em público da religião de uma pessoa ou de uma comunidade. Neste

domínio, é dever das Autoridades civis garantir que os direitos das pessoas

158

MARITAIN, Jacques. Os direitos do homem. Trad. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: José Olympio

Editora, 1967. p. 66. 159

MARITAIN, Jacques. O Homem e o Estado. Trad. Alceu Amoroso Lima. 2. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1956,

p. 207. 160

PAULO VI, Papa. Constituição Pastoral Gaudium Et Spes – Sobre a Igreja no Mundo Atual, n. 76.

Disponível em: http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-

ii_const_19651207_gaudium-et-spes_po.html. Acesso em: 17/10/2015.

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singulares e das comunidades sejam igualmente respeitados e salvaguardar, ao

mesmo tempo, a justa ordem pública. 161

A convivência harmônica entre as religiões e os Estados é possível, como visto

acima, as ideias e os ideais ensinados solidificam ainda mais a compreensão de que não basta

apenas a construção de vias de relacionamento de natureza “privada”, ou seja, entre o cidadão

e o Estado; é necessário também um relacionamento “público” entre as religiões e os Estados,

tendo em vista que, por se tratar de um direito fundamental, ainda há de se considerar que a

liberdade religiosa muitas vezes é exercida por meio de uma “Igreja” em um ambiente

coletivo, essa que possui ritos, dogmas, doutrinas e “leis” próprias.

Além disso, está claro que a relação entre religiões e Estado de forma alguma ameaça

a independência, legitimidade e natureza de ambos; pelo contrário, esta relação pode inclusive

fortalecer os laços de “amizade” por meio das diferenças, porém, sem deixar de lado o seu

fundamento comum que é a pessoa humana e seus direitos fundamentais.

Porém, é necessário que os Estados nunca se esqueçam de que a liberdade religiosa é

condição para a busca da verdade e de que a verdade não se impõe pela violência, ou seja, de

fato, a religião é uma força positiva e propulsora na construção da sociedade civil e política.162

Por fim, e não menos importante, é a compreensão de que tanto as religiões como os

Estados são parceiros no que diz respeito a ter nos homens o objeto de “proteção”. Assim,

ambos podem construir “pontes”, ao invés de “barreiras”, para que, juntos, trabalhem na

colaboração do progresso humano. Portanto, a construção de um modelo colaborativo precisa

visar primeiramente à proteção efetiva dos direitos fundamentais dos homens, dentre eles o da

liberdade religiosa, bem como os que decorrem dessa liberdade, como os de culto, de

expressão, de associação e outros.

161

JOÃO PAULO II, Papa. Mensagem para o XXI Dia Mundial da Paz – Liberdade Religiosa Condição

para a Convivência Pacífica, em 01 de janeiro de 1988. Disponível em: http://w2.vatican.va/content/john-paul-

ii/pt/messages/peace/documents/hf_jp-ii_mes_19871208_xxi-world-day-for-peace.html. Acesso em 17/10/2015. 162

BENTO XVI, Papa. Liberdade Religiosa, Caminho para a Paz. Mensagem para o Dia Mundial da Paz de

2011. Disponível em: http://goo.gl/WR6dYC. Acesso em 07/11/2015.

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4.2 – Os modelos e problemas na relação entre Estados e religiões

Após indicarmos o longo caminho percorrido na solidificação da liberdade religiosa

como um direito fundamental, faz-se necessário um aprofundamento histórico nos modelos da

relação entre as religiões e os Estados, identificando a distinção entre laicidade e laicismo,

bem como apontado alguns exemplos da maneira como essa relação foi sendo construída nas

comunidades internacionais.

Além disso, é preciso ser observado o fenômeno das doutrinas liberais dos séculos

XVIII e XIX, pois essas propunham um Estado indiferente às questões religiosas, quer seja, a

nível social, jurídico e cultural. Citamos como exemplo, a influência do chamado “Estado

liberal”, que considerava o âmbito da dimensão religiosa somente o da intimidade pessoal.

Assim, segundo este conceito não tem sentido uma relação institucional entre as religiões e o

Estado, mas somente uma relação entre Estado e cidadão do ponto de vista da liberdade

religiosa.

Tudo isso acabavam por confundir a luta pela liberdade como luta contra religiões,

muitas vezes expressa de forma evidente em uma hostilidade e perseguição, principalmente ao

Cristianismo católico.

Como consequência, foi se desenvolvendo três formas de relação entre as religiões e

os Estados, quais sejam: de colaboração, de confissão e de separação.163

O primeiro modelo

colaborativo parte do princípio de que, por terem as religiões e os Estados interesses e

competências em relação ao homem, fiel e cidadão, se torna possível a construção de acordos

de colaboração, e o principal efeito é o reconhecimento do fenômeno religioso como um

direito fundamental,164

apesar do Estado não “professar” nenhum credo oficial e manter a sua

“laicidade”, acaba por valorizar e proteger o dado religioso.

163

DIÉGUEZ, Myriam M. Cortés; PRISCO, José San José (coords.). Derecho Canónico II – El derecho en la

misión de la Iglesia. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2006, pg. 357. 164

A título exemplificativo, diversos países possuem uma religião oficial, como a Inglaterra (Anglicana);

Dinamarca, Noruega e Islândia (Luterana); Malta e Mônaco (Católico). Outros embora não possuem uma

religião oficial, adotam o sistema de colaboração. Por exemplo: Alemanha, Itália, Espanha, Portugal. Contudo, a

situação mais complicada para a liberdade religiosa ocorre principalmente nos países teocráticos, onde a lei

estatal decorre diretamente da lei religiosa. Esse fenômeno é visto em muitos países muçulmanos, que adotam

leis civis como um aspecto do Corão. O grande problema é que, por se tratar de uma lei civil/religiosa, muitas

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O segundo modelo confessional é aquele que compatibiliza o reconhecimento da

liberdade religiosa com uma declaração de confessionalidade sociológica, partindo do fato de

que grande parte da população professa tal religião. Muitas vezes esse modelo priva a

liberdade religiosa, sobretudo a das minorias.

Por fim, o modelo de separação ocorre naqueles países onde está proibida a religião

do Estado, porém, se garante a liberdade religiosa, tendo as confissões religiosas natureza

semelhante a das associações civis. A vantagem desse modelo é que garante certa autonomia

entre as religiões e os Estados. A desvantagem, entretanto, é que, por não existir um acordo

entre os poderes civis e religiosos, o cidadão pode se deparar com legislações contrapostas

que devem cumprir, tendo em vista que é cidadão e fiel, possui responsabilidades tanto com

sua “Igreja” como com o Estado.165

Vicente Pietro aponta também três correntes básicas para identificar a relação entre

religião e Estados. A primeira é chamada de concordatas/colaboração; a segunda, de sistema

de separação entre religião e Estado; e terceira, na qual o Estado é um “inimigo” e

perseguidor das religiões.166

Exemplos da primeira corrente são países como Alemanha, Itália, Espanha, Portugal

e inúmeros países da América Latina, inclusive o Brasil; em relação à segunda corrente,

destacam-se Estados Unidos e França (período posterior à perseguição); por fim, há modelos

como a da República Popular da China e da Coréia do Norte, onde as religiões “não oficiais”

são amplamente perseguidas.

O interessante nas correntes citadas, salvo as de ruptura total entre religião e os

Estados, é que o dado religioso não é suprimido das atividades públicas, havendo, assim, uma

colaboração direta ou indireta das religiões no desenvolvimento dos próprios princípios laicos

ou confessionais definidos na Carta Magna destes Estados. No caso dos países laicos, de fato,

mesmo sem uma religião oficial, eles não precisam e nem devem “eliminar” o dado religioso

da esfera pública, pois em si a religiosidade não constitui um obstáculo para laicidade.

vezes os membros de outras religiões, embora cidadãos, não conseguem alcançar cargos públicos e outros

direitos. 165

DIÉGUEZ, Myriam M. Cortés; PRISCO, José San José (coords.). Derecho Canónico II – El derecho en la

misión de la Iglesia. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2006, pg. 358. 166

PRIETO, Vicente. Relaciones Iglesia-Estado: La perspectiva del Derecho canónico. Publicaciones

Universidad Pontificia de Salamanca: Salamanca, 2005, p. 43.

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Como se não bastasse, na relação entre religiões e os poderes estatais, há também

que se observar o modelo constitucional seguido por cada Estado, principalmente nos países

laicos, ou seja, naqueles que não têm uma religião oficial. A laicidade de forma alguma

significa que o Estado não deve permitir e/ou tolerar uma religião, ou reduzi-la à esfera

privada, pois o direito à liberdade religiosa é independente de haver ou não uma religião

nacional.

Há, assim, duas linhas muito tênues: a primeira é a da laicidade; a segunda, a do

laicismo. A laicidade permite a convivência pacífica entre o sagrado e o civil, pois não reduz

a religiosidade apenas à esfera privada, uma vez que considera o homem um ser social. Sendo

assim, para a laicidade “proteger” as religiões é de certa forma proteger o homem, destinatário

da liberdade religiosa como um direito fundamental. Já o laicismo provoca aversão total às

religiões nos Estados laicos, pois acaba por eliminar ou extinguir as religiões apenas a sua

esfera privada, muitas vezes, o laicismo acaba por incentivar meio de perseguições e

privações de direitos.

Quando se trata de países “laicos”, há o grande risco de se confundir funções

públicas com funções eclesiais. Quando isso ocorre, é prejudicial para as duas partes. Como

nos ensina John Locke, “quem mistura o céu e a terra, coisas tão remotas e opostas,

confundem essas duas sociedades, as quais em sua origem, objetivo e substancialmente são

por completo diversas”.167

Por outro lado, a fusão entre Estado e religião nem sempre se demonstrou ser

positiva. Basta olharmos os noticiários que teremos uma breve visão de como os principais

conflitos mundiais possuem raízes em motivações religiosas. Ainda hoje, pessoas têm sido

mortas por não professarem a fé do país ou da maioria,168

como, por exemplo, a barbárie

difundida e produzida pelo “Estado Islâmico” na Síria e no Iraque.

O fato é que, quando o “religioso e o civil” se misturam, não havendo valores

universais, humanos, que norteiam esta relação, o resultado desta fusão pode ser grandes

167

LOCKE, John. Carta Acerca da Tolerância. Coleção Os Pensadores, Abril Cultural. Trad. de Anoar Aiex,

1983, p. 10. 168

Dentre os episódios mais recentes, destaca-se a reportagem: “Casal cristão é morto no Paquistão por profanar

o Corão” e “Estado Islâmico crucifica 12 homens no nordeste da Síria”. Disponível em: http://goo.gl/sMImBB.

Acesso em 05/10/2015.

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desastres para todos os homens. Como consequência, não poucas vezes a constituição da

liberdade religiosa se limita a tal ponto que ocorre uma verdadeira perseguição às minorias.169

Há ainda países, como a República Popular da China onde, aparentemente, existe um

direito à liberdade religiosa. A Constituição chinesa afirma inclusive que seus cidadãos

“gozam de liberdade de crença religiosa”, porém, ao mesmo tempo, o Estado proíbe

organizações públicas de qualquer religião. Assim, os “fiéis” não podem se reunir em templos

não registrados e tampouco manifestar e divulgar sua fé publicamente. Essa perseguição

ocorre contra muçulmanos, cristãos, budistas e outras minorias.170

A perseguição religiosa ainda existe nas sociedades, uma vez que todos os dias

inúmeras pessoas são privadas de direitos fundamentais como a vida, a liberdade de

locomoção, de expressão, e outros, por motivos religiosos, ou seja, em razão de sua crença ou

da ausência dela. Certamente este fato é uma barreira para o desenvolvimento integral da

pessoa humana em todos os seus aspectos.171

Enfim, para a construção de mecanismos jurídicos de colaboração entre as religiões e

os Estados é de fundamental importância que sejam observados os modelos apresentados

acima. Sem dúvida, nos países laicos o que melhor contribui é o modelo que garantem a

laicidade do Estado, porém, estimula a cooperação com as religiões, oferecendo a essas certa

autonomia dentro dos Estados.

Por fim, é preciso considerar na construção de ferramentas colaborativas a

confessionalidade de um povo, que pode ser manifestada por meio de um Estado confessional,

ou seja, com uma religião oficial; porém, essa de forma alguma pode ser um instrumento para

suscitar certos privilégios a determinados cultos, pois o direito à liberdade religiosa é inerente

a todos os cidadãos, inclusive das demais minorias e daqueles que não desejam professar fé

alguma.

169

ROCHE, Jean. Iglesia Y Libertad Religiosa. Barcelona: Heder, 1967. p.99 170

Cf. Portas Abertas – China: “A perseguição ao cristianismo abrange desde multas e confisco de Bíblias até

destruição de templos. Evangelistas são detidos, interrogados, aprisionados e torturados”. Disponível em:

http://goo.gl/ov8Amm. Acesso em 30/09/2015. 171

Há ainda entidades como a Fundação a Igreja que Sofre <http://ow.ly/DNIk3>, a International Institute for

Religious Freedom <http://www.iirf.eu/>, e a organização Portas Abertas <http://goo.gl/lJ0JfO>, que monitoram

como andam a liberdade e a perseguição religiosa. Há inclusive, nos sites das citadas entidades, relatórios anuais

e outros dados específicos dos países onde ocorrem a perseguição, bem como a sua intensidade.

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4.3 – Os desafios da universalidade do direito à liberdade religiosa

O longo processo histórico na solidificação da liberdade religiosa como um direito

fundamental, produziu o desafio da universalidade desses direitos. Os documentos

apresentados neste trabalho como: Declaração de Direitos do Bom Povo da Virginia (1776), a

Declaração de Independência dos Estados Unidos (1776), a Declaração dos Direitos do

Homem e do Cidadão (1789) e os mais modernos como Declaração Universal dos Direitos

Humanos (1948), bem como os Pactos Internacional dos Direitos Civis e Políticos e

Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), progressivamente

procuraram reconhecer os direitos inerentes à liberdade religiosa em sua dimensão

internacional.

Porém, o reconhecimento universal deste direito é um desafio nem sempre muito

fácil, considerando que as pessoas, as religiões e os Estados são culturalmente “diferentes”.

Em relação à pessoa humana, embora ontologicamente igual, e às demais, sujeita de direitos

fundamentais e universais, há barreiras para o exercício de seus direitos fundamentais, muitas

vezes impostos por sua própria cultura, o que acaba por se expressar em políticas públicas.

As Nações Unidas, respeitando a soberania e particularidade de cada Estado,

fundamentou em seu documento marco, Declaração Universal dos Direitos Humanos, a

proteção do reconhecimento a direito fundamental da liberdade religiosa:

Artigo II. 1 – Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as

liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja

de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem

nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição. (...)

Artigo XVIII – Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento,

consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença

e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo

culto e pela observância, em público ou em particular.172

Posteriormente, diversos países se empenharam em reconhecer o direito fundamental

à liberdade religiosa. Quanto aos princípios internacionais da liberdade religiosa, sua

172

Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em:

<http://www.onu.org.br/img/2014/09/DUDH.pdf>. Acesso 19/11/2014.

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fundamentação se encontra principalmente na Conferência Mundial de Direitos Humanos,

celebrada em Viena em 1993, que proclamou que os direitos humanos e as liberdades

fundamentais são patrimônios inatos de todos os seres humanos, além do que sua promoção e

proteção são de responsabilidade dos governos. Dentre outras coisas, destaca-se no texto a

proteção à liberdade religiosa:

1. A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos reafirma o empenho solene de

todos os Estados em cumprirem as suas obrigações no tocante à promoção do

respeito universal, da observância e da proteção de todos os Direitos Humanos e

liberdades fundamentais para todos, em conformidade com a Carta das Nações

Unidas, com outros instrumentos relacionados com os Direitos Humanos e com o

Direito Internacional. A natureza universal destes direitos e liberdades é

inquestionável. Neste âmbito, o reforço da cooperação internacional no domínio

dos Direitos Humanos é essencial para a plena realização dos objetivos das Nações

Unidas. Os Direitos Humanos e as liberdades fundamentais são inerentes a todos os

seres humanos; a sua proteção e promoção constituem a responsabilidade primeira

dos Governos. (...)

22. A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos apela a todos os Governos

para que adotem todas as medidas adequadas, em conformidade com as suas

obrigações internacionais e no respeito pelos respectivos sistemas jurídicos, para

combater a intolerância e a violência com ela conexa que tenham por base a

religião ou o credo, incluindo práticas discriminatórias contra as mulheres e

profanação de locais religiosos, reconhecendo que cada indivíduo tem direito à

liberdade de pensamento, consciência, expressão e religião. A Conferência

convida, igualmente, todos os Estados, porém em prática as disposições da

Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e

Discriminação baseadas na Religião ou no Credo.173

Hoje, os desafios do reconhecimento dos direitos fundamentais e humanos, dentre

eles o da liberdade religiosa, versam sobre a universalidade destes direitos, uma vez que há

uma forte tendência contemporânea em eliminar toda a diferença e discriminação, seja ela em

relação a sexo, raça, nascimento, religião. Com isso, a Declaração Universal dos Direitos

Humanos pretendeu ser universal, ou seja, destacou que há um patrimônio inato em todos os

seres humanos, uma dignidade única para todos os seres humanos.

Em relação ao direito e à proteção da liberdade religiosa, cada Estado, sendo cada

um, na própria ordem, autônomo, independente e soberano, solidificou o compromisso de

cooperar mutuamente para a construção de uma sociedade mais justa, pacífica e fraterna,

173

Declaração e Programa de Ação de Viena. Conferência Mundial sobre Direitos Humanos. Disponível em:

<http://goo.gl/WlbEOO>. Acesso 19/10/2015.

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tendo como destinatária e motivação única a defesa do direito fundamental da liberdade

religiosa.

Cada um desses países aborda o elemento religioso a partir de perspectivas próprias.

Alguns adotam uma religião oficial, outros, como o Brasil, asseguram diretamente a liberdade

religiosa, mesmo sendo países laicos e, por fim, existem aqueles, como os Estados Unidos da

América, que proclamam solenemente a separação entre Igreja “religiões” e Estado, porém,

possuem um longo histórico de tolerância e liberdade religiosa,174

realizando inclusive

acordos colaborativos.

Assim, se há um tratamento desigual, a liberdade religiosa é atingida, o que prejudica

a todos. Contudo, é diferente onde há elementos religiosos presentes na cultura, justificando

um tratamento não uniforme e não totalmente idêntico, pois não se pode traduzir a igualdade

religiosa como exigência de tratamento matematicamente idêntico entre confissões religiosas

por parte do Estado.175

Além disso, há de se considerar que o direito à liberdade religiosa não é em si

absoluto, uma vez que pode sofrer certas limitações, tendo em vista que na ordem social o

exercício externo desses direitos pode atingir direitos de outras pessoas, exigindo, assim, certa

limitação imposta pela própria natureza social.

A legitimidade dessas restrições resulta da exigência de responsabilidade própria da

pessoa em relação à ordem social; por isso, não se pode falar de violação do direito à

liberdade religiosa, mas sim, de uma função legítima da autoridade ao regular a colaboração

ativa, visando chegar à realização da liberdade ideal, qual seja, aquela que conjuga a

consciência do próprio direito e o respeito à liberdade e ao direito dos outros, com a

consciência própria responsável para o bem geral.176

Contudo, novamente há de destacar que a colaboração entre Estados e religiões não

pode significar privilégio ou tratamento especial, uma vez que, no próprio conceito de plena

liberdade religiosa, da qual decorre a necessária separação entre Estado e religiões, encontra-

174

TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 201, p. 487. 175

TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 492. 176

VERA URBANO, Francisco de Paula. La Libertad Religiosa como Derecho de La Persona. Madrid:

Instituto de Estudios Políticos, 1971, p. 109.

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89

se uma igualdade inerente entre crenças, indivíduos, religiões, perante o Estado, o que confere

a esse direito um caráter universal, mesmo diante de certas “limitações”.

Enfim, buscando a proteção desse direito a nível internacional, diante dos desafios da

universalidade apresentados, bem como dos próprios limites inerentes a esses direitos, temos

no modelo colaborativo o que melhor garante a proteção dos direitos à liberdade religiosa; por

esta razão, se encontram-se na comunidade jurídica inúmeros acordos/concordatas entre

Estados e religiões, entre os quais apresentaremos o modelo colaborativo entre o Estado

brasileiro e a Igreja Católica, instrumento esse que se destina à proteção dos direitos

fundamentais da pessoa humana, sobretudo o da liberdade religiosa.

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Capítulo Quinto

A religião e o Estado brasileiro

5.1 – A liberdade religiosa no direito pátrio

A religião, principalmente o Cristianismo católico, sempre ocupou um espaço de

destaque no Brasil. Há uma presença significativa da fé católica no desenvolvimento cultural,

social, ético, moral e jurídico do Brasil. Essa relação possui raízes em Portugal, país católico,

que descobriu a “Terra de Santa Cruz”. Nas caravelas havia uma presença significativa de

religiosos que possuíam a missão de implantar a fé católica dentro do “território” político

descoberto. De fato, a presença da fé católica é de tal forma representativa que o primeiro ato

público realizado no Brasil foi justamente a celebração de um culto religioso (Santa Missa)

celebrada na hoje cidade de Santa Cruz de Cabrália que se localiza nos arredores de Porto

Seguro (Estado da Bahia), esse evento histórico consistiu, pois, em um ato público (civil) e

religioso.177

Por outro lado, a relação entre a Igreja Católica e o Estado brasileiro também viveu

as tensões produzidas pelos ideais da Revolução Francesa, tendo como consequência que, em

um período histórico, houve a tentativa de excluir qualquer resquício da influência religiosa

no poder estatal brasileiro. Mas, de maneira geral, o dado da religião católica no

desenvolvimento do Estado brasileiro é tão significativo que, após a independência de

Portugal, ou seja, na Proclamação da República, esses elementos foram positivados já na

primeira Constituição brasileira, que estabeleceu desde o início uma colaboração entre o

Brasil e a religião, no caso a católica.

Marco Aurélio Lagreca Casamasso nos oferece mais detalhes dessa relação histórica:

O Brasil chega à independência, herdeiro de um patrimônio político-religioso cujo

vigor ainda se faria sentir com esplendor até a Proclamação da República. Sua

primeira Constituição, outorgada pelo Imperador Dom Pedro I, em 1824, dois anos

após a declaração da independência, é o grande testemunho documental de uma

legitimação político-jurídica fundada na religião, que perduraria por mais de

sessenta anos. Findo o Império dos Orleans e Bragança, o Estado brasileiro não

177

PIRES, Heliodoro. Temas de História Eclesiástica do Brasil. São Paulo: São Paulo, 1946, pgs. 13-15.

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tarda a afastar-se da Igreja Católica, adotando o regime de separação no tocante às

confissões religiosas, que, em linhas gerais, permanece como modelo até os nossos

dias.178

Casamasso179

observa ainda que as questões relativas à liberdade religiosa

desempenham um papel decisivo na gênese e no desenvolvimento do longo processo político

que culminou com a consagração dos direitos fundamentais nas primeiras Constituições

“modernas” do final do século XVIII. Assim, a liberdade religiosa, para o autor, compreende

um arco de direitos e liberdades que abrange desde o direito de os indivíduos aceitarem ou

rejeitarem livremente uma crença, até o direito de os fiéis formarem livremente associações

religiosas.

Atualmente, as doutrinas jurídicas constitucionais que dão suporte para o pensamento

jurídico no Brasil reconhecem amplamente o dever do Estado em garantir o pleno exercício

dos direitos fundamentais, dentre estes o da liberdade religiosa; para isso, a doutrina oferece

inclusive a possibilidade da realização de acordos internacionais com o objetivo de garantir e

promover o desenvolvimento dos direitos fundamentais.

Contudo, pode-se dizer que, ao longo da história das constituições brasileiras, houve,

em grosso modo, três fases distintas na relação entre a religião180

e o Estado: a primeira; de

união entre a Igreja Católica e o Estado; a segunda se iniciou com o Decreto 119-A e colocou

fim ao padroado; a terceira, após a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil

de 1934, quando iniciou a “política” de colaboração entre “religiões” e Estado.

Enfim, o direito brasileiro, ao longo dos anos, tem solidificado claramente a proteção

desses direitos; contudo, até chegar a Constituição atual, um longo caminho foi sendo traçado.

Por isso, apresentaremos em linhas gerais uma breve história do desenvolvimento do direito à

liberdade religiosa no Brasil, a partir de suas constituições e suas respectivas fases.

178

CASAMASSO, Marco Aurélio Lagreca. Política e Religião: O Estado Laico e a Liberdade Religiosa à luz do

Constitucionalismo Brasileiro. 2006. 262 f. Tese (Doutorado em Direito). Pontifícia Universidade de São Paulo,

São Paulo, 2006. 179

CASAMASSO, Marco Aurélio Lagreca. Política e Religião: O Estado Laico e a Liberdade Religiosa à luz do

Constitucionalismo Brasileiro. 2006. 234 f. Tese (Doutorado em Direito). Pontifícia Universidade de São Paulo,

São Paulo, 2006. 180

Quando se refere à religião, observa-se que o Estado procurava relacionar-se diretamente com a Igreja

Católica. As demais religiões ou eram “inexpressivas” para o Estado, ou era tolerado o culto privado, conforme

veremos no desenvolvimento do trabalho.

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5.2 – A união entre a Igreja Católica e o Estado: o padroado

A primeira fase constituiu no período onde havia uma união entre a Igreja Católica e

o Estado, essa iniciada com a Constituição Política do Império do Brasil de 25 de março de

1824,181

que, estabelecia em seu artigo 5, a Religião Católica Apostólica Romana como

“oficial”, enquanto que às demais seriam permitidos apenas os cultos domésticos ou

particulares em uma casa para isso destinada, sem forma alguma exterior de templo.

Destacam-se nessa fase dois aspectos importantes, o primeiro era a restrição da fé ao

ambiente privado; o segundo, a proibição de construção de qualquer templo religioso que não

fosse o católico.

Quanto à redução da “fé não católica” à vida privada, o que de fato acontecia era que

o Brasil possuía uma religião oficial; por isso, “descartava” as demais profissões de fé, como

se não fosse de interesse público. Além disso, há de se considerar que a ideia de liberdade

religiosa como conhecemos hoje ainda não estava solidificada.

Em relação à vedação de construção de templo religioso não católico, se fosse no

tempo presente, esta proibição entraria em rota de colisão com dois direitos fundamentais

decorrentes da liberdade religiosa; o de livre associação e o de expressão. Tendo em vista que

hoje a grande maioria dos fiéis se reúnem no templo para compartilharem sua fé, além de

renderem culto à divindade e ensinar a fé.

A Constituição Política do Império do Brasil de 1824 trazia ainda uma interferência

direta da “fé” na vida das autoridades públicas, pois era um requisito constitucional que tanto

o imperador, quanto o herdeiro e os conselheiros de Estado professassem a fé católica. Este

ato era solene e condição de legitimidade para exercer a função pública. Afirmava a

Constituição:

Art. 103. O Imperador antes do ser aclamado prestará nas mãos do Presidente do

Senado, reunidas às duas Câmaras, o seguinte Juramento – Juro manter a Religião

Católica Apostólica Romana, a integridade, e indivisibilidade do Império; observar,

e fazer observar a Constituição Politica da Nação Brasileira, e mais Leis do

Império, e prover ao bem geral do Brasil, quanto em mim couber.

Art. 106. O Herdeiro presuntivo, em completando quatorze anos de idade, prestará

nas mãos do Presidente do Senado, reunidas as duas Câmaras, o seguinte

181

Constituição Política do Império do Brasil, de 25 de março de 1824. Disponível em: http://goo.gl/xQ2es6.

Acesso 04/11/2015.

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Juramento – Juro manter a Religião Católica Apostólica Romana, observar a

Constituição Politica da Nação Brasileira, e ser obediente ás Leis, e ao Imperador.

Art. 141. Os Conselheiros de Estado, antes de tomarem posse, prestarão juramento

nas mãos do Imperador de manter a Religião Católica Apostólica Romana;

observar a Constituição, e às Leis; ser fieis ao Imperador; aconselha-lo segundo

suas consciências, atendendo somente ao bem da Nação.182

Este período histórico foi conhecido como o padroado. A relação entre a Igreja e o

Brasil colônia só pode ser compreendida mediante o entendimento desta “política”. O regime

do padroado brasileiro tem suas origens no padroado português, e as raízes históricas do

padroado remontam ao século IV, quando o Cristianismo não tinha permissão para realizar

suas práticas religiosas livremente nos territórios do Império Romano. Vejamos o que nos

ensina Hoornaert:

As origens históricas do padroado devem ser buscadas ainda no século IV. Nos três

primeiros séculos da era cristã a Igreja Católica viveu marginalizada da vida

publica e social, quer dentro do próprio judaísmo, quer na civilização helênica. O

mundo romano não aceitou os cristãos com suas práticas e instituições.183

O direito do padroado dos reis de Portugal só pode ser entendido dentro de todo o

contexto da história medieval. Na realidade, não se trata de uma usurpação dos

monarcas portugueses de atribuições religiosas da Igreja, mas de uma forma típica

de compromisso entre a Igreja de Roma e o governo de Portugal. Unindo os

direitos políticos da realeza aos títulos de grão-mestre de ordens religiosas, os

monarcas portugueses passaram a exercer ao mesmo tempo o governo civil e

religioso, principalmente nas colônias e domínios de Portugal.184

O padroado consistia basicamente em uma troca de favores, privilégios, convecções

mútuas entre a Igreja Católica e o Estado. Por um lado, a Igreja “justificava” o poder dos

governantes; por outro, recebia proteção da autoridade civil, que, entre outras coisas, mandava

construir igrejas e, intervia diretamente na nomeação de cargos eclesiásticos.

No fundo, o que parecia ser vantajoso tornou-se um verdadeiro fardo para ambas as

partes, porque, por um lado, o Estado se via obrigado a manter a Igreja Católica, o que gerava

muito ônus econômico e político, por outro, a Igreja não tinha liberdade de livre exercício,

pois inúmeras vezes ficava refém dos desejos dos governantes. Ainda, esse modelo

182

Constituição Política do Império do Brasil de 25 de março de 1824. Disponível em: http://goo.gl/xQ2es6.

Acesso 04/11/2015. 183

HOORNAERT, Eduardo. História da Igreja no Brasil. Petrópolis: Vozes, tomo II, 1979, p. 160. 184

HOORNAERT, Eduardo. História da Igreja no Brasil. Petrópolis: Vozes, tomo II, 1979, p. 163.

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desconsiderava as demais religiões, o que colocava à margem o direito fundamental dos não

católicos em professarem ou não sua religião como desejassem.

5.3 – Nasce um novo tempo: o fim do padroado

A segunda fase se iniciou com o Decreto 119-A, de 7 de janeiro de 1890, e se

solidificou na Constituição de 1891, que resultou em uma profunda mudança na estrutura do

Estado, pois o vedou de estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos

religiosos, sem deixar de proteger a liberdade do indivíduo quanto à manifestação de sua

crença.

O Decreto 119-A proibia expressamente a intervenção da autoridade federal e dos e

Estados federados em matéria religiosa. Além disso, consagrou a plena liberdade de cultos,

extinguiu o padroado e estabeleceu outras providências. Os principais artigos do Decreto 119-

A estão dispostos da seguinte maneira:

Art. 1. É proibido á autoridade federal, assim como á dos Estados federados,

expedir leis, regulamentos, ou atos administrativos, estabelecendo alguma religião,

ou vedando-a, e criar diferenças entre os habitantes do país, ou nos serviços

sustentados á custa do orçamento, por motivo de crenças, ou opiniões filosóficas ou

religiosas.

Art. 2. A todas as confissões religiosas pertence por igual à faculdade de exercerem

o seu culto, regerem-se segundo a sua fé e não serem contrariadas nos atos

particulares ou públicos, que interessem o exercício deste decreto.

Art. 3. A liberdade aqui instituída abrange não só os indivíduos nos atos

individuais, senão também as igrejas, associações e institutos em que se acharem

agremiados; cabendo a todos o pleno direito de se constituírem e viverem

coletivamente, segundo o seu credo e a sua disciplina, sem intervenção do poder

público.

Art. 4. Fica extinto o padroado com todas as suas instituições, recursos e

prerrogativas.

Art. 5. A todas as igrejas e confissões religiosas se reconhece a personalidade

jurídica, para adquirirem bens e os administrarem, sob os limites postos pelas leis

concernentes á propriedade de mão-morta, mantendo-se a cada uma o domínio de

seus haveres atuais, bem como dos seus edifícios de culto.

Art. 6. O Governo Federal continua a prover á côngrua,185

sustentação dos atuais

serventuários do culto católico e subvencionará por ano as cadeiras dos seminários;

185

Refere-se ao nome habitual para designar a sustentação dos clérigos por meio do benefício ligado ao

respectivo ofício. Difere-se de salário pela natureza do “trabalho” prestado, pois os religiosos não desempenham

uma função em virtude do soldo, mas sim, por naturezas espiritual, relacionada com sua vocação. No padroado o

Estado assumiu o sustento do clero por meio da côngrua.

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ficando livre a cada Estado o arbítrio de manter os futuros ministros desse ou de

outro culto, sem contravenção do disposto nos artigos antecedentes. 186

A grande novidade do Decreto 119-A para a liberdade religiosa é que ao colocar fim a

política do padroado, permitiu outras religiões e, consequentemente, cidadãos brasileiros de

diversos credos, de professarem o seu culto, o que significou na prática um avanço na defesa

dos direitos referentes à liberdade religiosa.

O objeto do Decreto119-A refletia o pensamento do Congresso brasileiro, que já se

encontrava influenciado pelas ideias europeias e norte-americana de separação entre religião e

Estado. Este documento acabou por ser um embrião de um tema que seria inserido na

primeira Constituição Republicana, promulgada em 24 de fevereiro de 1891.187

Quanto a religião, a Constituição Republicana de 1891 consolidou as diretrizes do

Decreto 119-A, disciplinava a constituição:

Art. 11. É vedado aos Estados, como à União: (...)

2. estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos; (...)

Art. 70. São eleitores os cidadãos maiores de 21 anos que se alistarem na forma da

lei. (...)

4. os religiosos de ordens monásticas, companhias, congregações ou comunidades

de qualquer denominação, sujeitas a voto de obediência, regra ou estatuto que

importe a renúncia da liberdade Individual.

Art. 72. A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a

inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à

propriedade, nos termos seguintes:

§ 28. Por motivo de crença ou de função religiosa, nenhum cidadão brasileiro

poderá ser privado de seus direitos civis e políticos nem eximir-se do cumprimento

de qualquer dever cívico.

§ 29. Os que alegarem motivo de crença religiosa com o fim de se isentarem de

qualquer ônus que as leis da República imponham aos cidadãos, e os que aceitarem

condecoração ou títulos nobiliárquicos estrangeiros perderão todos os direitos

políticos. 188

186

Decreto 119-A de 7 de janeiro de 1890. Disponível em: http://goo.gl/sq7f6i. Acesso 04/11/2015. 187

SOUZA, Josias Jacintho. Separação entre Religião e Estado no Brasil: Utopia Constitucional?. 2009. 198

fl. Tese (Doutorado em Direito). Pontifícia Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. 188

Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 24 de fevereiro de 1891. Disponível em:

http://goo.gl/4erJmu. Acesso em 07/11/2015.

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96

Posteriormente, a Emenda Constitucional n. 3, de 3 de setembro 1926, reafirmou o

direito ao livre exercício da fé, dentre dos limites do direito comum, disciplina o texto

constitucional:

Art. 72. A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no país a

inviolabilidade dos direitos concernentes á liberdade, á segurança individual e á

propriedade, nos termos seguintes: (...)

§ 3. Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer publica e

livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas

as disposições do direito comum.189

Ainda, a Emenda Constitucional manteve a ideia da separação entre Igreja-religiões e

Estado; porém, expressou claramente que as relações diplomáticas com a Igreja Católica

seriam mantidas, uma vez que essa não feria o princípio da laicidade. O texto da Emenda diz:

Art. 72 (...) Parágrafo 7. Nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial, nem

terá relações de dependência ou aliança com o Governo da União, ou o dos

Estados. A representação diplomática do Brasil junto á Santa Sé não implica

violação deste princípio.190

A sociedade brasileira foi altamente influenciada pelas ideias de pensadores como

Herbert Spence e Augusto Comte, o que por pouco não gerou uma verdadeira catástrofe na

relação entre as religiões e o Estado brasileiro, sobre esta influência nos ensina Cláudio de

Cicco:

É claro, também, que tudo se inseria num processo de dessacralização progressiva,

que culminaria com a separação entre Igreja e Estado, casamento religioso e civil,

até os nossos dias.

Havia então uma dicotomia evidente: de um lado uma elite de professores, de

estudantes de Direito, de Medicina, de Engenharia, já conquistados às ideias do

Evolucionismo, comteano ou spenceriano, laicista (anticlerical até). Do outro lado,

a população brasileira, que, em sua imensa maioria, continuava seguindo uma

concepção de vida que datava dos tempos coloniais, católica, bíblica,

tradicionalista e, nos aspectos que nos dizem respeito, patriarcalmente constituída

em famílias de pátrio poder rigidamente respeitado e exercido.191

189

Cf. Art. 72, § 3. Emenda Constitucional n. 3, de 3 de setembro 1926. Disponível em:

<http://goo.gl/5a2qy2>. Acesso em 07/11/2015. 190

Cf. Art. 72, § 7. Emenda Constitucional n. 3, de 3 de setembro 1926. Disponível em:

<http://goo.gl/5a2qy2>. Acesso em 07/11/2015. 191

DE CICCO, Cláudio. História do pensamento jurídico e da Filosofia do Direito. 4. ed. São Paulo: Saraiva,

2009, p. 248.

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A separação entre a Igreja Católica e o Estado trouxe benefícios para ambas, porém,

também dificuldades, donde resultou que, pouco a pouco, o Estado foi se afastando do dado

religioso, conduzindo-o para a esfera privada. Podemos dizer que o final desse período foi o

mais tenso na relação entre religiões e Estados no Brasil. O que se viu foi que, com o tempo, a

sociedade civil começou a criticar o regime de separação “total”, pois, por mais que se

distanciassem Estado e religiões, o povo, fiel e cidadão, mantinha seus sentimentos religiosos

dentro da vida pública e cobrava de certa forma uma “proteção” estatal as suas religiões.

Havia uma severa crítica a hostilidade pública da fé promovida pelas ideias do

“Evolucionismo, comteano ou spenceriano, laicista (anticlerical até)”, o que acabou por

despertar certa “denúncia” de que a República era “laicista” e, portanto, avessa à religião. De

fato, o regime de separação adotado neste período estava muito próximo do laicismo francês

do final do século XX.

Aos poucos o Brasil se encaminhava para se transformar em uma República

intolerante.192

Mas, por outro lado, houve movimentos por parte da sociedade civil para que o

Estado retomasse algumas relações com a Igreja Católica, sobretudo no que diz respeito à

educação religiosa nas escolas públicas, reflexos destes movimentos são visualizados na

Constituição de 1934.

5.4 – A Constituição de 1934: seus reflexos nas demais cartas constitucionais

A terceira fase, chamada de regime de colaboração, inicia-se com a Constituição de

1934, tem seus reflexos nas demais constituições brasileiras (1937, 1946, 1967 e 1969) e vai

até a atual de 1988. Casamasso considera que a Constituição de 1934 pode ser vista como um

divisor de águas na trajetória da laicidade brasileira.

Na Constituição anterior, a laicidade caracterizava-se por uma separação rígida, que,

no final do século XIX, havia sido concebida para cumprir a tarefa de impor e garantir o fim

do consórcio que havia entre o Estado e a Igreja Católica. Nesta fase, a tônica era negativa,

192

CASAMASSO, Marco Aurélio Lagreca. Política e Religião: O Estado Laico e a Liberdade Religiosa à luz do

Constitucionalismo Brasileiro. 2006. 287 e 291 fls. Tese (Doutorado em Direito). Pontifícia Universidade de São

Paulo, São Paulo, 2006.

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98

pois visava a destruir uma união, afastando os dois polos de poder que por tanto tempo

permaneceram unidos.193

Mas, a partir da Constituição de 1934, o Estado começa a se transformar em um

poderoso ator econômico e em um dinâmico agente social. Deste modo, era recomendável que

ele redefinisse os termos da separação que o mantinha longe das confissões religiosas,

surgindo, assim, a ideia de separação com colaboração, ou seja, afasta-se da tônica negativa

da laicidade para a tônica positiva.194

Um exemplo é a constituição de 1946.195

Nela o constituinte ampliou a forma de

relação entre religião e Estado, inserindo no texto constitucional que os poderes públicos

podiam manter relação com organizações religiosas, desde que “sem prejuízo da colaboração

recíproca em prol do interesse coletivo”. Outra novidade trazida por esse texto constitucional

refere-se à imunidade tributária, proibindo o Estado em todos os seus níveis de lançar

impostos sobre os “templos de qualquer culto”.196

Entre os anos de 1967197

e 1987, a relação entre religião e o Estado brasileiro pode

ser resumida da seguinte maneira: a) o princípio da separação entre religião e Estado é

reafirmado nos termos de todas as Constituições anteriores; b) o princípio da liberdade de

consciência e, portanto, religiosa, foi consagrado, permitindo a todos os crentes o exercício de

cultos religiosos que não contrariassem a ordem pública e os bons costumes; c) ninguém seria

privado de qualquer dos seus direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção política;

d) foi garantida assistência religiosa às Forças Armadas e aos estabelecimentos de internação

coletiva; e) o princípio do casamento indissolúvel continuou consagrado; f) o ensino religioso

seria de matrícula facultativa, oferecido como disciplina nos horários normais das escolas

públicas. 198

193

CASAMASSO, Marco Aurélio Lagreca. Política e Religião: O Estado Laico e a Liberdade Religiosa à luz do

Constitucionalismo Brasileiro. 2006. 294 fl. Tese (Doutorado em Direito). Pontifícia Universidade de São Paulo,

São Paulo, 2006. 194

CASAMASSO, Marco Aurélio Lagreca. Política e Religião: O Estado Laico e a Liberdade Religiosa à luz do

Constitucionalismo Brasileiro. 2006. 294 fl. Tese (Doutorado em Direito). Pontifícia Universidade de São Paulo,

São Paulo, 2006. 195

Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 18 de setembro de 1946. Disponível em:

http://goo.gl/EygEs5. Acesso em 07/11/2015. 196

SOUZA, Josias Jacintho. Separação entre Religião e Estado no Brasil: Utopia Constitucional?. 2009. 207

fl. Tese (Doutorado em Direito). Pontifícia Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. 197

Constituição da República Federativa do Brasil de 1967. Disponível em: http://goo.gl/0IJruu. Acesso em

07/11/2015. 198

Resumo proposto por Josias Jacintho, destacamos apenas algumas características das expostas pelo autor.

SOUZA. Cf. Josias Jacintho. Separação entre Religião e Estado no Brasil: Utopia Constitucional?. 2009.

208 fl. Tese (Doutorado em Direito). Pontifícia Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.

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99

Enfim, o itinerário descrito acima preparou o “terreno” para a Constituição de 1988,

essa que disciplinou explicitamente o direito a liberdade religiosa como um direito humano e

fundamental, portanto, também de responsabilidade do Estado. De certa forma, a própria

história “constitucional” brasileira já aponta que excluir o dado religioso da realidade pública

pode ser uma verdadeira afronta aos direitos almejados pelo povo brasileiro.

5.5 – A Constituição de 1988: perspectivas de colaboração

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 delineou um novo regime

de laicidade, qual seja, o regime da laicidade pluralista. A novidade decorre de dois fatores

principais. O primeiro refere-se ao fato de que o atual Estado laico brasileiro tem como

interlocutores não uma, mas diversas confissões religiosas. O segundo diz respeito aos

princípios constitucionais da cidadania, da dignidade da pessoa humana e do pluralismo

político, que repercutem sobre a liberdade religiosa, potencializando-a.199

O texto constitucional de 1988 fundiu em um único artigo vários direitos referentes à

liberdade religiosa, considerando mesmo de forma indireta os direitos à liberdade de

expressão, de consciência, de crença, de culto, de associação e outros, no rol da liberdade

religiosa. Disciplina o artigo 5:

Art. 5. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,

garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade

do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos

seguintes:

IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; [...]

VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre

exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de

culto e a suas liturgias;

VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de

convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação

legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;

IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de

comunicação, independentemente de censura ou licença; [...]

XVI – todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao

público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião

199

CASAMASSO, Marco Aurélio Lagreca. Política e Religião: O Estado Laico e a Liberdade Religiosa à luz do

Constitucionalismo Brasileiro. 2006. 374 fl. Tese (Doutorado em Direito). Pontifícia Universidade de São Paulo,

São Paulo, 2006.

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100

anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à

autoridade competente;

XVII – é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter

paramilitar.200

Além disso, a Constituição Federal de 1988 prevê expressamente a laicidade do

Estado frente à religião, ou seja, confirma que não há nenhum privilégio a qualquer confissão

religiosa em relação à organização estatal. Porém, a constituição contempla e garante a

liberdade religiosa como um direito fundamental dos cidadãos, destacando a importância da

religião na consecução deste direito em nosso país.

Em relação à Constituição Federal de 1988, Josias Jachinto nos ensina:

Se a Constituição de 1988 ratificou o princípio da separação entre religião e

Estado, garantido e consagrado em todas as Constituições republicanas anteriores,

desde 1891, consequentemente também ratificou o princípio da liberdade religiosa,

o direito humano fundamental e universal. A liberdade religiosa, valor consequente

e reflexivo do princípio da laicidade, está consagrada no artigo 5, inciso VI, da

Constituição Federal de 1988.201

Como visto, a liberdade religiosa foi consagrada pela Constituição de 1988 como um

direito fundamental humano, mas isso não quer dizer que não haja conflitos ideológicos entre

os limites da “liberdade” e o princípio da “laicidade” do Estado.

Os mais radicais afirmam que o Brasil, por ser um Estado laico, não pode manter

nenhum tipo de relação de privilégio com qualquer religião, pois ele não deve se “meter” em

questões religiosas. Este raciocínio não é de todo errado, porém, sua conclusão é falha, pois,

de fato, o Estado é laico, mas isso não quer dizer que ele é antirreligioso e, além do mais, cabe

a ele estabelecer relações de colaborações com as entidades, sejam elas culturais, ideológicas

e religiosas, que colaboram no desenvolvimento e na concretude de seus objetivos

estabelecidos na Carta Magna.

Diversos constitucionalistas distinguem o laicismo da laicidade. Entre eles

apresentamos o pensamento de André Ramos Tavares, que afirma:

O laicismo significa um juízo de valor negativo, pelo Estado, em relação às

posturas de fé. Baseado, historicamente, no Racionalismo e Cientificismo, é hostil

200

Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://goo.gl/k8p32S. Acesso em

30/10/2015. 201

SOUZA, Josias Jacintho. Separação entre Religião e Estado no Brasil: Utopia Constitucional?. 2009. 209

fl. Tese (Doutorado em Direito). Pontifícia Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.

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101

à liberdade de religião plena, às suas práticas amplas. A França, e seus episódios de

intolerância religiosa, podem ser aqui lembrados como exemplo mais evidente de

um Estado que, longe de permitir consagrar amplamente a liberdade de religião e o

não comprometimento religioso do Estado, compromete-se ao contrário com uma

postura de desvalorização da religião, tornando o Estado inimigo da religião, seja

ela qual for. Já a laicidade, como neutralidade, significa a isenção acima referida.202

Desta forma, afirmar que um Estado é laico não significa que ele é avesso à religião.

Além disso, mesmo que não privilegie ou tenha uma religião oficial, ele tem o dever de

garantir o pleno exercício da atividade religiosa, pois se trata de um direito humano

fundamental. Por outro lado, no caso do Brasil, há diversos elementos religiosos que estão

presentes na cultura no povo. Assim, proteger esses elementos é também um dever do Estado

laico.

Há desta forma, uma dimensão positiva da liberdade de religião, segundo o qual o

Estado deve assegurar a permanência de um espaço para o desenvolvimento adequado de

todas as confissões religiosas. Cumpre a ele empreender esforços e zelar para que haja essa

condição estrutural propícia ao desenvolvimento pluralístico das convicções pessoais sobre

religião e fé.203

Quanto a essa relação tão complexa de proteção ao direito de “fé”, sem privilégios e

concessões às religiões, Casamasso nos ensina um aspecto crucial nesta relação e que deve ser

observado, qual seja, o da “intervenção mínima” do Estado na esfera religiosa. Assim, para a

preservação da laicidade, é fundamental que se observe:

As eventuais intervenções estatais sejam objeto de uma rigorosa tipificação legal,

de modo a se evitar o uso, da parte dos possíveis interventores, de fórmulas vazias

e extremamente subjetivas, tais como “respeito à ordem pública” e “preservação

dos bons costumes”. Além disso, é indispensável circunscrever as intervenções

estatais aos “aspectos exteriores” das confissões religiosas. Em regra, qualquer

intervenção nas crenças e na organização interna destas confissões mostrar-se-á

incompatível com a laicidade. Isto não significa, entretanto, que o Estado laico

tenha que tolerar quaisquer práticas ou atividades no interior das organizações

religiosas. Neste sentido, as autoridades estatais não poderão ignorar as denúncias

de discriminação e violação de direitos fundamentais praticadas pelas confissões

religiosas. 204

202

TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 490. 203

TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 489. 204

CASAMASSO, Marco Aurélio Lagreca. Política e Religião: O Estado Laico e a Liberdade Religiosa à luz do

Constitucionalismo Brasileiro. 2006. 253 f. Tese (Doutorado em Direito). Pontifícia Universidade de São Paulo,

São Paulo, 2006.

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102

De fato, tanto as religiões, quanto os Estados, possuem o dever de servir o homem e

realizar o bem comum. Em virtude disso, tanto o Estado, que não pode se afastar do aspecto

espiritual do homem, quanto as religiões que devem auxiliar o homem em sua vida temporal,

ambos acabam por se dirigir a finalidades convergentes.205

Estes aspectos estão contemplados

no texto constitucional de 1988, o que indica a possiblidade de uma colaboração ativa entre as

religiões e os Estados em prol dos direitos dos homens, seus fiéis e cidadãos.

Em virtude dessa constatação, é que, após um longo histórico de positivação do

direito à liberdade religiosa, amplamente protegido pela Constituição brasileira, se torna

possível a colaboração entre Estados e religiões, pois ambos possuem o dever de defender e

promover o desenvolvimento integral da pessoa humana e seus respectivos direitos

fundamentais, dentre esses os decorrentes da liberdade religiosa.

A doutrina constitucional nos ensina que a liberdade religiosa é um direito

fundamental; sendo assim, ela indica duas tarefas ao legislador-Estado: a primeira consiste na

garantia de que os direitos fundamentais não sejam violados; a segunda, de que eles sejam

objetos da legislação.

Portanto, a partir da Constituição Federal de 1988, é um dever do legislador-Estado

garantir o pleno exercício da liberdade religiosa.206

Para isso, é possível e viável a construção

de uma relação colaborativa com as confissões religiosas, por meio inclusive de instrumentos

jurídicos, neste sentido a relação histórica entre a Igreja Católica e o Estado brasileiro pode

ser utilizado como um modelo, visando sempre o desenvolvimento integral do homem,

cidadão e fiel.

205

DIÉGUEZ, Myriam M. Cortés; PRISCO, José San José (coords.). Derecho Canónico II – El derecho en la

misión de la Iglesia. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2006, p. 360. 206

SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos Fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo:

Malheiros, 2009, p. 237.

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5.6 – A relação entre a Igreja Católica e o Estado brasileiro

5.6.a – A natureza jurídica da Santa Sé

A longa relação histórica entre a Igreja Católica e os Estados, inclusive o Brasil, nos

oferece meios indicativos por meio dos quais pode ser observada a construção de um

equilibrado instrumento colaborativo entre religiões e Estados em vista da proteção e da

promoção dos direitos dos homens.

Por isso, ao analisar e propor a possibilidade de colaboração entre religiões e Estados,

apresentamos o modelo presente entre a Igreja Católica e o Estado brasileiro, que, embora não

seja exclusivo, possui algumas particularidades devido à própria estrutura jurídica da religião

católica; por isso, ele é inspirador na construção de um pensamento colaborativo.

O primeiro passo é entender o que confere à Igreja Católica um status “diferente”

das demais religiões. A Igreja Católica é uma entidade peculiar, sui generis, cujo órgão

central de governo é a Santa Sé, que possui personalidade jurídica internacional em nível de

Estado, reconhecida como tal, e que, no seu exercício maior, é capaz de estipular acordos

internacionais.207

O Vaticano é uma área em Roma onde se localizam a residência e a Cúria do Papa,

os Dicastérios ou Ministérios da Sé Apostólica, a Basílica de São Pedro e outros edifícios.

Este território, chamado “Estado da Cidade do Vaticano”, é uma realidade jurídica com todos

os direitos e prerrogativas de um Estado, cuja finalidade é assegurar para a Santa Sé, mediante

garantias de seus limites territoriais, o exercício livre e independente de sua missão espiritual

e universal. Assim, ela é uma realidade jurídica, cujo sujeito próprio internacional é a Santa

Sé.208

Do ponto de vista jurídico, a Igreja Católica é uma comunidade autônoma e

independente de qualquer poder humano. Ela é soberana, e o exercício da soberania espiritual

207

BALDISSERI, Lorenzo. Diplomacia Pontifícia: Acordo Brasil/Santa Sé: intervenções. São Paulo: LTR,

2011, p. 26. 208

BALDISSERI, Lorenzo. Diplomacia Pontifícia: Acordo Brasil/Santa Sé: intervenções. São Paulo: LTR,

2011, p. 25.

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corresponde ao Romano Pontífice (Papa). Por ser uma comunidade tão complexa e de âmbito

universal, o Papa necessita da ajuda e colaboração de um conjunto de órgãos subordinados, e

este conjunto, encabeçado por ele, é o que se entende por Santa Sé.

A expressão Santa Sé aparece, ao mesmo tempo, na doutrina e no direito

extremamente unida, às vezes fundida e outras confundidas, com as expressões Igreja

Católica, Pontificado Romano e Estado da Cidade do Vaticano. O fato é que a Santa Sé em

forma abstrata, a suprema direção e o organismo supremo de direção e representação tanto da

Igreja como do Estado da Cidade do Vaticano. De forma definitiva, desde 1960, as relações

entre a Santa Sé e as Nações Unidas estão bastante solidificadas.209

Quanto à compreensão do que é a Santa Sé, brilhantemente José Francisco Rezek, no

prefácio da obra intitulada Acordo Brasil/Santa Sé, nos ensina:

liderança espiritual e cúpula governativa da Igreja Católica, instalada na cidade de

Roma a Santa Sé reúne, embora em proporções físicas exíguas, os elementos

conformadores da qualidade estatal: existe ali um território, uma população, um

governo independente daquele do Estado italiano ou de qualquer outro. É amplo o

reconhecimento de que, apesar de não se identificar com os Estados comuns, cujos

objetivos são diversos dos seus, ela possui, por legado histórico, personalidade

jurídica de direito internacional. Na esfera do direito das gentes, a Santa Sé exerce

seu poder contratual celebrando não apenas concordatas (...) mas outros tratados

bilaterais, como o acordo político e a convenção financeira de Latão. Mesmo

Estados então socialistas. (...) Ela é parte nas Convenções de Viena sobre relações

diplomáticas e consulares, de 1961-1963, e na Convenção de 1969, também de

Viena, sobre o direito dos tratados.210

Reconhecida e admitida a personalidade jurídica internacional, a Santa Sé possui,

como sujeito de Direito internacional, a capacidade para celebrar tratados internacionais com

outros Estados e sujeitos.211

Assim, é amplo o reconhecimento de que a Santa Sé, apesar de

não se identificar com os Estados comuns, possui, por legado histórico, personalidade jurídica

de Direito internacional.212

209

SALVADOR, Corral Carlos. Derecho Internacional Concordatario. Madrid: Biblioteca de Autores

Cristianos, 2009. pgs. 94 e 95. 210

REZEK, José Francisco. In: MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva; BALDISSERI, Lorenzo (Coord.).

Acordo Brasil/Santa Sé comentado. São Paulo: LTr, 2012. p. 8. 211

SANCHES, Martin Isidoro (Org.). Curso de Derecho Eclesiastico Del Estado. Valencia: Tirant Lo Blanch,

1997. p. 58. 212

REZEK, José Francisco. Direito Internacional Público: curso elementar. 12. ed. rev. e atual., São Paulo:

Saraiva, 2010. p. 250.

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105

Os motivos pelos quais o reconhecimento da Santa Sé como sujeito de Direito

internacional não se estende às outras confissões religiosas são vários. Primeiramente, trata-se

de uma averiguação histórica. Inclusive, a Santa Sé tem sido o mais antigo sujeito de direito

diplomático. Além disso, as demais confissões religiosas não estão organizadas como

instrumentos internos e externos que correspondam a uma organização jurídica independente,

soberana, com poderes públicos, representação diplomática.213

Por fim, é preciso acrescentar, que a Santa Sé, enquanto sujeito de Direito

internacional, em vista da defesa dos direitos dos homens, ao longo de sua história tem

celebrado inúmeros acordos com países das mais variadas formações jurídicas e tradições

culturais, dentre eles há países muçulmanos, laicos e confessionais.214

Além disso, a Santa Sé,

parte na Convenção de Viena sobre relações diplomáticas e consulares, de 1961-1963, e na

Convenção de 1969, também de Viena, sobre o direito dos tratados, tem realizado diversos

acordos, esses que têm se demonstrado um instrumento de promoção da laicidade, ou seja, há

uma sólida relação de colaboração entre a Santa Sé e os Estados.

5.6.b – O Acordo Brasil/Santa Sé: justificativas e conteúdos

A Igreja Católica, embora não seja a religião oficial do Brasil, mesmo não tendo o

status de “exclusividade”, continua presente de forma significativa na cultura brasileira, desde

do Império, há relações fortes entre a fé/cultura católica e o Estado brasileiro. Esta influência

é vista na formação moral, educacional e social do nosso país.

Assim, a Santa Sé, por meio da Igreja Católica, tem sido historicamente uma grande

parceira do Estado brasileiro, principalmente no que diz respeito à defesa dos direitos

213

PRIETO, Vicente. Relaciones Iglesia-Estado: La perspectiva del Derecho canónico. Publicaciones

Universidad Pontificia Salamanca: Salamanca, 2005, p. 134. 214

Dentre os pactos firmados pela Santa Sé com diversos países, destacamos os seguintes: Itália, em 18 de

fevereiro de 1984; Malta, em 16 de novembro de 1989; Polônia, em 28 de junho de 1989; Letônia, em 8 de

novembro de 2000; Eslováquia, em 24 de novembro de 2000; Gabão, em 12 de dezembro de 1997; Croácia, em

16 de dezembro de 1996; Estado da Palestina, em 26 de junho de 2015; Israel em 10 de novembro de 1997.

Inclusive a Santa Sé celebrou acordos com estados socialistas dentre eles Hungria; em 15 de setembro de 1964, a

Iugoslávia em 25 de junho de 1966. Tudo isso, a título exemplificativo, para indicar que os tratados não versam

somente às questões religiosas, mas possuem como objeto central de tal colaboração a proteção da dignidade da

pessoa humana.

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fundamentais dos cidadãos, inclusive em diversos momentos supriu a carência do próprio

Estado, quando forneceu meios para o desenvolvimento dos homens.

Por outro lado, a Santa Sé, assim como o Brasil, tem, entre seus objetivos, a garantia

do pleno exercício da liberdade religiosa. Ambos os Estados historicamente são parceiros em

diversas atividades visando à promoção humana, seja ela no campo da educação, da saúde, da

cultura e até mesmo na proteção do direito fundamental da liberdade religiosa.

Com isso, não há como negar que existe uma longa relação histórica de colaboração

entre o Brasil e Santa Sé. Como observado no desenvolvimento histórico das constituições

brasileiras, a relação cotada acima passou por inúmeras fases.

A Santa Sé, por meio da Igreja Católica, historicamente vem colaborando no

desenvolvimento do Estado brasileiro. Basta apenas observar o quanto de escolas,

universidades, creches, asilos e hospitais, são mantidos pela Santa Sé, todos eles demonstram

precisamente a longa relação harmônica de parceria “colaboração” entre os dois Estados.

Quanto à Santa Sé, há de se destacar ainda que, como sujeito de Direito

internacional, em nada difere da República Federativa do Brasil, pois ambas são capazes de

celebrar acordos internacionais, sendo inclusive signatários da Declaração Universal dos

Direitos Humanos. Além disso, possuem, em seu fundamento constitutivo, a proteção do

homem, os direitos fundamentais, dentre eles o da liberdade religiosa.

Ora, tendo como pano de fundo a dignidade da pessoa humana, a comunidade

internacional, dentre elas o Brasil e a Santa Sé, como países signatários da Declaração

Universal dos Direitos Humanos, possui o dever de colaborar no desenvolvimento e na

proteção integral do homem, não podendo para isso desconsiderar o direito fundamental à

liberdade religiosa.

Diante do exposto, os ordenamentos jurídicos, estatais ou internacionais, são

chamados a reconhecer, garantir e proteger a liberdade religiosa, que é um direito inerente à

natureza humana, à sua dignidade de ser livre, assim como um indicador de uma sã

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democracia e uma das principais fontes da legitimidade do Estado.215

É justamente nesta

perspectiva que repousa a relação entre a Igreja Católica/Santa Sé e o Estado brasileiro.

Após apresentarmos os aspectos convergentes entre a Igreja Católica e o Estado

brasileiro, bem como a natureza jurídica da Igreja Católica, passamos a uma análise mais

especifica do modelo colaborativo desenvolvido entre ambos, solidificado no Acordo

Brasil/Santa Sé.216

O ponto de partida para o estudo deste documento é a compreensão de que o Acordo

não teve a pretensão de discutir dogmas de fé, mas, sim, de proteger o direito à liberdade

religiosa não somente dos católicos, mas de todos os “religiosos”, inclusive das minorias

religiosas, que de certa forma são atingidas e amparadas por meio desse acordo.

Tecnicamente, o Acordo Brasil/Santa Sé é constituído de um preâmbulo e mais 20

artigos. Lorenzo Baldisseri217

nos ensina que o este documento possui como principais

objetivos:

Continuar as relações diplomáticas entre o Brasil e a Santa Sé;

Reafirmar a personalidade jurídica da Igreja Católica e reconhecer suas Instituições

em conformidade com o Direito Canônico (Conferência Episcopal, Dioceses,

Paróquias, Institutos religiosos, etc.);

Reconhecer às Instituições assistências religiosas igual tratamento tributário e

previdenciário atribuídos a entidades civis congêneres;

Estabelecer a continuidade da assistência religiosa da Igreja a pessoas que a

requeiram e estejam em situações extraordinárias, no âmbito militar, em hospitais

ou em presídios;

Reafirmar a colaboração da Igreja na educação e na cultura com suas instituições

de ensino: escolas católicas, seminários, universidades, centros de cultura;

Cuidar do ensino da religião católica em Instituições públicas de ensino

fundamental, incluindo outras confissões religiosas.

Confirmar a atribuição de efeitos civis ao casamento religioso e, simétrica e

coerentemente, dispor sobre os efeitos civis das sentenças eclesiásticas por sua

homologação.

Estabelecer o princípio do respeito ao espaço religioso nos instrumento de

planejamento urbano;

215

FRANCISCO, Papa. Discurso do Papa Francisco no Congresso Internacional “Liberdade Religiosa

segundo o Direito Internacional e o Conflito Global dos Valores”. Disponível em: <http://goo.gl/wt0WKq>.

Acesso 19/11/2014. 216

Acordo Brasil/Santa Sé – Decreto n. 7.107, de 11 de Fevereiro de 2010. Disponível em:

<http://goo.gl/Q66pIR>. Acesso em 05/11/2015. 217

Dom Lorenzo Baldisseri é um Cardeal da Igreja Católica, foi Núncio (Embaixador) da Santa Sé no Brasil de 2

de novembro de 2002 até 11 de janeiro de 2012, sendo responsável direto pela elaboração do Acordo

Brasil/Santa Sé.

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Codificar a jurisprudência no Brasil sobre a inexistência de vínculo empregatício

dos ministros ordenados e fiéis consagrados mediante votos com as Dioceses e os

Institutos Religiosos equiparados;

Estabelecer normas sobre o voluntariado no contexto pastoral;

Assentar o direito dos Bispos solicitarem "Visto" de entrada aos religiosos e leigos

estrangeiros que convidarem para atuar no Brasil;

Ensejar que a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) possa,

autorizada pela Santa Sé em cada caso, celebrar convênios que especifiquem os

direitos versados no Acordo, úteis para a sua implementação.218

A intenção do referido Acordo foi apresentar, numa só peça jurídica, aquilo que já

pelo direito brasileiro não acrescentou leis ou privilégios que beneficiem a Igreja Católica de

modo a ferir a isonomia que a Constituição prescreve a todas as confissões e expressões

religiosas. Por fim, o Acordo concedeu maior clareza, organicidade e tranquilidade a essas

relações, o que contribui para o bem-estar de todos aqueles que professam a fé católica.219

O preâmbulo do Acordo deixa claro os valores que guiaram o texto; por isso, é de

suma importância transcrevê-lo. Afirma o Acordo:

Considerando que a Santa Sé é a suprema autoridade da Igreja Católica, regida pelo

Direito Canônico;

Considerando as relações históricas entre a Igreja Católica e o Brasil e suas

respectivas responsabilidades a serviço da sociedade e do bem integral da pessoa

humana;

Afirmando que as Altas Partes Contratantes são, cada uma na própria ordem,

autônomas, independentes e soberanas e cooperam para a construção de uma

sociedade mais justa, pacífica e fraterna;

Baseando-se, a Santa Sé, nos documentos do Concílio Vaticano II e no Código de

Direito Canônico, e a República Federativa do Brasil, no seu ordenamento jurídico;

Reafirmando a adesão ao princípio, internacionalmente reconhecido, de liberdade

religiosa;

Reconhecendo que a Constituição brasileira garante o livre exercício dos cultos

religiosos;

Animados da intenção de fortalecer e incentivar as mútuas relações já existentes;220

218

MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva; BALDISSERI, Lorenzo (Coord.). Acordo Brasil/Santa Sé

comentado. São Paulo: LTr, 2012, pgs. 28 e 29. 219

Livro explicativo a respeito do Acordo Brasil/Santa Sé, apresentado no Senado Federal. Cf. SENADO

FEDERAL. Acordo Brasil/Santa Sé. Brasília: 2009. Disponível em: http://goo.gl/LmUn7F. Acesso em

07/11/2015. 220

Cf. Preâmbulo. Acordo Brasil/Santa Sé – Decreto n. 7.107, de 11 de Fevereiro de 2010. Disponível em:

<http://goo.gl/Q66pIR>. Acesso em 05/11/2015.

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109

De fato, o Acordo Brasil/Santa Sé, traz em seu bojo elementos que transpassam a

frieza da norma jurídica, pois sua intenção é fortalecer e incentivar as mútuas relações já

existentes entre estes Estados. Sua novidade consiste no fato de que, para a garantia de um

direito fundamental dos cidadãos, o Estado brasileiro celebrou um Acordo com um Estado

confessional, o que faz desse Acordo um marco histórico, pois o Estado brasileiro reconheceu

que os valores promulgados pela Santa Sé (Igreja Católica) são indispensáveis para o

desenvolvimento integral do homem, independentemente de confissão religiosa.

O Acordo, porém, não viola nem a laicidade nem a neutralidade do Estado. Ao

contrário, fomenta o reconhecimento de direitos e liberdades dos próprios cidadãos. O

reconhecimento dos direitos e liberdades de um grupo, até por força do princípio

constitucional da igualdade, impele o legislador a tutelar análogos direitos e liberdades dos

cidadãos de outras religiões, o que faz do Acordo adequado aos interesses coletivos e

individuais, inclusive dos demais credos religiosos.

Além disso, de certa forma, o Acordo acaba por reforçar o texto constitucional, uma

vez que esse não repudia as religiões; ao contrário, o constituinte brasileiro reconhece as

religiões como portadoras de valores dignos de proteção pelo Estado, cabendo aos poderes

públicos o dever de assumir comportamentos ativos de tutela e promoção desta área.

Assim, a Constituição, através do artigo 19, I,221

prevê expressamente a colaboração

de interesse público do Estado com as religiões, através do princípio da colaboração, que

jamais pode ser entendido como privilégios injustificados dados a determinadas religiões. Por

isso o Acordo não fere o artigo 19. da Constituição, pois ele não traz nenhuma obrigação para

o Estado laico em estabelecer cultos religiosos, dependência ou aliança, mas sim, tutela sobre

elementos de interesse público.

Destaca-se ainda a contribuição dos valores propagados pela Santa Sé no

desenvolvimento integral da pessoa humana. Além disso, quando o Estado garante a proteção

dos lugares públicos de culto da Igreja Católica e de suas liturgias222

, este direito já estava

221

O art. 19, I da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, dispõe: “É vedado à União, aos

Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los,

embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança,

ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”. Cf. Constituição da República Federativa do

Brasil de 1988. Disponível em: http://goo.gl/k8p32S. Acesso em 05/11/2015. 222

Art. 7. do Acordo Brasil/Santa Sé. Disponível em: <http://goo.gl/Q66pIR>. Acesso em 05/11/2015.

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sacramentado na Constituição223

e se estende para as demais religiões, ou seja, as liturgias e

os templos das minorias também devem ser amplamente protegidos, seguindo o princípio

fundamental da liberdade religiosa.

Portanto, o Acordo deixa claro que a relação entre religiões e/ou Igreja Católica e

Estado não é um privilégio a uma ou algumas religiões, tampouco uma “ofensa” à laicidade,

mas sim, o reconhecimento que o direito à liberdade religiosa decorre da própria natureza

humana, ou seja, o homem é um ser que busca ter acesso ao transcendente além das próprias

estruturas estatais. Para isso, cabe ao Estado não interferir na busca do homem pelo sagrado, a

não ser quando o exercício da religião torna-se uma afronta à própria dignidade humana.

5.7 – A relação entre o Estado e as demais religiões

Após apresentadas as características específicas da Igreja Católica/Santa Sé, bem

como o modelo de colaboração desenvolvido entre ela e o Estado brasileiro, partimos para a

análise da colaboração possível com as demais religiões, ou seja, com aquelas que não

possuem “personalidade jurídica internacional”.

Como visto, de fato, o efeito da criação do Estatuto Jurídico da Igreja Católica no

Brasil atinge todo o povo brasileiro, independentemente de credo, visto que os seus

fundamentos norteadores são solidificados nos princípios universais do direito, dando, assim,

uma perspectiva de significado ético nas relações entre os Estados e os indivíduos.

Além disso, a relação do Estado brasileiro com as demais confissões religiosas é

reforçado por meio do Acordo, pois os demais credos poderão, em vista de suas

particularidades, assegurar alguns direitos específicos. Ainda, o Acordo assegura a igualdade

de tratamento das entidades católicas com as demais entidades de idêntica natureza, religiosa,

assistencial ou de ensino, proibindo qualquer discriminação imprópria.

223

Cf. Art. 5, VI da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:

http://goo.gl/k8p32S. Acesso em 05/11/2015.

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Da mesma forma a história do Direito internacional nos apresenta alguns momentos

nos quais Igrejas protestantes, ou seja, sem a capacidade para celebrar tratados internacionais,

firmaram acordos de colaboração com o Estado alemão. Esses tiveram sua origem na

República de Weimar, sobreviveram ao regime nazista, chegando à República Federal Alemã

em pleno vigor.224

De fato, a relação entre a Igreja Católica e o Estado brasileiro não é uma

“exclusividade”. Talvez o modelo jurídico adotado – um acordo internacional – não seja

viável para as demais religiões, mas isso, de forma alguma, deve ser razão para que não haja

outros instrumentos jurídicos, específicos ou não, visando à proteção dos direitos à liberdade

religiosa.

Jónatas Machado nos ensina que a liberdade deve ser conferida às demais confissões

religiosas, os quais, devem ser vistas como titulares de direitos, liberdades e garantias, que o

Estado deve respeitar:

As confissões religiosas podem invocar, em condições e igualdade, o direito à

liberdade religiosa, à semelhança do que sucede com os indivíduos o direito a igual

liberdade religiosa, individual e coletiva, em conjunto com o princípio da

separação das confissões religiosas do Estado tem como consequência o

reconhecimento de um direito à autodeterminação às confissões religiosas. (...) o

direito à liberdade religiosa coletiva deve ser exercido dentro dos limites impostos

pela liberdade religiosa individual e pelos princípios da igualdade e da separação

das confissões religiosas do Estado.225

Interessante é o pensamento deste autor português, que, ao visualizar a relação entre

religiões e Estados, considerou ser de fundamental importância a garantia da auto-

organização, como a da autodeterminação das confissões religiosas, sendo que, para ele, essa

liberdade é independente de a comunidade religiosa ter ou não personalidade jurídica, ou seja,

segundo sua doutrina, pela simples razão de ser uma comunidade religiosa de fato, ela já é

capaz de exercer sua liberdade religiosa sem “restrições”.226

224

ROUCO VARELA, Antonio Maria. Teología e Derecho: Escritos sobre aspectos fundamentales de Derecho

Canónico y de las relaciones Iglesia-Estado. Madrid: Ediciones Cristandad, 2003, pgs. 523. 225

MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva:

dos direitos da verdade aos direitos dos cidadãos. Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p. 241. 226

MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva:

dos direitos da verdade aos direitos dos cidadãos. Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p. 244.

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Jónatas Machado ensina-nos ainda:

De acordo com o direito de autodeterminação, todas as confissões religiosas, que

não apenas as mais juridificadas ou institucionalizadas, devem ser consideradas

verdadeiras societae perfectae em matérias tão amplas e diversificadas como

sejam, nomeadamente, a definição e interpretação dos princípios doutrinários do se

grau de vinculação, o exercício das funções de culto, a fixação dos pressupostos de

admissibilidade de membros, a estrutura orgânica e funcional interna, a adoção de

um modelo constitucional do tipo hierárquico, congregacional, etc.,. a escolha dos

processos de formação, formulação e exteriorização da vontade, a seleção dos

meios de financiamento, a edificação e abertura de edifícios destinados ao culto ou

a outras finalidades religiosas, a seleção de ministros de culto, o ensino religioso, a

aplicação de sanções disciplinares, a livre comunicação com os membros da

confissão, a realização de atividades educativas e de beneficência, etc. Estas

matérias integram uma verdadeira e própria reserva absoluta de confissão religiosa

que funciona como norma definidora de competências negativas do Estado.227

Após a ampla lista exemplificativa apresentada acima, considerando a capacidade de

auto-organização e de autodeterminação das confissões religiosas, o Estado brasileiro não

pode ficar inerte ao dado religioso. Neste sentido, o modelo colaborativo entre Estado e

religiões vislumbra ser o que melhor garante a laicidade do Estado, promovendo a liberdade

religiosa, bem como os direitos inerentes a ela, do cidadão e fiel.

Além disso, deve ser destacado que os direitos específicos referentes à liberdade

religiosa, presentes no Acordo Brasil/Santa Sé, não podem ser exclusivo dos fiéis católicos,

uma vez que outras religiões devidamente reconhecidas como tal possuem também garantidos

os mesmos direitos que a Igreja Católica, como, por exemplo, imunidades tributárias, anistia

de impostos228

e regime diferenciado trabalhista para os ministros de culto.

Da mesma forma, os direitos específicos referentes à liberdade religiosa concedidos à

Igreja Católica e expressos no Acordo devem ser estendidos às demais religiões, o que torna

esse instrumento jurídico um verdadeiro amparo para as minorias que, indiretamente, são

protegidas por meio do status jurídico internacional da Igreja Católica.

Enfim, mesmo que as demais confissões religiosas não possuam a personalidade

jurídica internacional, o que não as conferem a capacidade de serem titulares de acordos

227

MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva:

dos direitos da verdade aos direitos dos cidadãos. Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p. 247. 228

Lei n. 13.137, de 19 de junho de 2015. Disponível em: http://goo.gl/I0BPGh. Acesso em 07/11/2015.

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internacionais ao modelo do Brasil com a Santa Sé, elas são legitimadas pelo Estado como

associações (organizações religiosas)229

e, portanto, como pessoas jurídicas de direito privado,

o que lhes da o direito de desenvolver inúmeras atividades colaborativas com o Estado

brasileiro, como por exemplo, fundar e manter escolas e hospitais, receber doações, inclusive

de dinheiro público, ter imunidades tributárias, entre outros.

Portanto, não se trata de uma exclusividade da Igreja Católica a colaboração com os

Estados. As demais confissões religiosas também têm o direito e o dever de participar e

promover iniciativas nas quais seu fiel/cidadão possa ter garantido o direito fundamental à

liberdade religiosa, além disso, por sua própria natureza, as religiões são chamadas a

colaborar com os Estados no desenvolvimento integral da pessoa humana.

5.8 – Considerações Finais

A dignidade da pessoa humana, ou seja, a proteção dos direitos humanos

fundamentais dos homens é o que justifica a construção de qualquer proposta colaborativa

entre Estados e religiões. Assim, considerando que a liberdade religiosa é o direito de toda

pessoa de prestar culto a Deus, segundo os ditames de sua própria consciência, com

imunidade de coação por parte de qualquer autoridade ou pessoa, é no seio da comunidade

que o homem exerce por excelência esse direito, por isso, o Estado é um agente importante na

busca do homem pelo “sagrado”.

Ainda que seja no seio da sociedade humana que se exerce o direito à liberdade

religiosa, este exercício deve estar sujeito a certas normas reguladoras, partindo sempre do

princípio moral da responsabilidade pessoal e social, visando valores como justiça, bondade e

bem comum, como nos ensinou o Papa Paulo VI:

uma vez que a sociedade civil tem o direito de se proteger contra os abusos que,

sob pretexto de liberdade religiosa, se poderiam verificar, é sobretudo ao poder

civil que pertence assegurar esta proteção. Isto, porém, não se deve fazer de modo

arbitrário, ou favorecendo injustamente uma parte; mas segundo as normas

229

Cf. art. 44, IV, do Código Civil Brasileiro, lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em:

http://goo.gl/vlFAoV. Acesso em 05/11/2015.

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jurídicas, conformes à ordem objetiva, postuladas pela tutela eficaz dos direitos de

todos os cidadãos e sua pacífica harmonia, pelo suficiente cuidado da honesta paz

pública que consiste na ordenada convivência sobre a base duma verdadeira justiça,

e ainda pela guarda que se deve ter da moralidade pública. Todas estas coisas são

parte fundamental do bem comum e pertencem à ordem pública. De resto, deve

manter-se o princípio de assegurar a liberdade integral na sociedade, segundo o

qual se há de reconhecer ao homem o maior grau possível de liberdade, só

restringindo esta quando e na medida em que for necessário.230

Há ainda que ser considerado que a liberdade religiosa e os demais direitos

fundamentais são anteriores ao próprio Estado.231

O Estado, em virtude de estar a serviço de

todos os homens, bem como de suas necessidades, inclusive quanto à sua religião, devem

buscar instrumentos jurídicos que viabilize o exercício do direito fundamental à liberdade

religiosa, de tal sorte que a ordem jurídica deve estar dirigida a garantir o pleno exercício

deste direito.232

Ancorada nos direitos fundamentais da pessoa humana, a relação entre religiões e

Estados possui, entre suas exigências, a universalidade, sendo essa uma condição necessária e

indispensável para o reconhecimento dos direitos humanos.233

Nesta perspectiva, destinadas

ao desenvolvimento integral da pessoa humana, todas as ações de colaboração entre Estados e

religiões devem ser pautadas por iniciativas que promovam a dignidade da pessoa humana, ou

seja, pela busca da integridade da pessoa humana, procurando a realização das exigências

mais fundamentais do homem, por meio de uma sociedade fraterna.

Considerando, ainda, que o objeto visado na relação de colaboração entre Estados e

religiões é o desenvolvimento integral do homem, ou seja, a proteção, a promoção e o respeito

de todos os direitos humanos, exige-se reconhecer que homem detém direitos por ser senhor

de si e dos próprios atos e detém igualmente uma liberdade natural. Por este motivo, para que

haja um desenvolvimento integral do homem a liberdade deve ser garantida, pois esta

enobrece a dignidade do próprio ser humano e, consequentemente, colabora para a

instauração de uma sociedade mais humana.

230

PAULO VI, Papa. Constituição Pastoral Gaudium Et Spes – Sobre a Igreja no Mundo Atual, n. 7.

Disponível em: http://goo.gl/8Q5sxV. Acesso em: 17/10/2015. 231

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Editora, 1967. p. 66. 232

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Assim, a relação entre religiões e Estado deve estar orientada pela ideia de que o

verdadeiro fim da humanidade consiste em realizar um regime temporal de acordo com a

dignidade e o amor, sociedade esta que, baseada em valores fraternos, é composta de pessoas

humanas e tem como fim o bem comum coletivo.234

De fato, é dever do Estado contribuir para a promoção humana; por isso é preciso

não temer as relações que potencializam este processo, mesmo que sejam com entes

confessionais, pois esta colaboração não é um afronta à laicidade, mas, sim, um

enriquecimento.235

Sem dúvida, o modelo da relação entre a Igreja Católica e os Estados, inclusive o

brasileiro, tem demostrado que é possível uma colaboração harmônica entre religiões e

Estados. Como visto, esses instrumentos colaborativos têm, ao longo do tempo, promulgado

valores como paz, solidariedade mútua, humanismo centrado no respeito pela dignidade da

pessoa, além de ter contribuído significativamente, para a formação sociocultural, política,

jurídica, de inúmeros Estados.

Neste sentido, a relação saudável entre o Estado brasileiro e a Santa Sé é um

testemunho positivo da proteção efetiva dos direitos humanos, bem como da liberdade

religiosa para toda a comunidade internacional, através de um instrumento jurídico

colaborativo como o Acordo Brasil/Santa Sé.

Enfim, diante do exposto, para que haja o desenvolvimento integral da pessoa

humana, é imprescindível que a liberdade religiosa seja protegida e promovida, pois se trata

de um direito fundamental, sendo indispensável, porém, um cuidado especial, para se evitar os

privilégios e a fusão entre as naturezas civil e religiosa. Mas, sem dúvida, quando se

reconhece que há elementos convergentes entre os objetivos das religiões-Igrejas e Estados,

na busca do bem comum e na promoção dos direitos do homem, o grande vitorioso é a própria

pessoa humana, ou seja, o cidadão e fiel, que acaba tendo seus direitos inalienáveis, como o

da liberdade religiosa, solidificado e protegido por meio destas relações.

234

POZZOLI, Lafayette. Maritain e o Direito. São Paulo: Edições Loyola, 2001, p. 131. 235

FRANCISCO, Papa. Discurso do Santo Padre ao Parlamento Europeu em 25 de novembro de 2014.

Disponível em: < http://goo.gl/czsIqR>. Acesso 25/11/2014.

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Conclusão

A temática da relação entre as religiões e os Estados, de fato, não é uma questão tão

simples. Como visto, ao longo da história da própria humanidade, sempre houve certa tensão

entre o sagrado e o civil. Ora esta relação estava distante, ora fundida, e, por fim, houve

rompimentos severos, manifestados nas perseguições religiosas ainda hoje presentes em

algumas partes do mundo.

O fato é que não há como romper da história o dado religioso, ou seja, sempre o

Estado precisará lidar com tais situações, contudo, a maneira pelo qual estabelece esta relação

pode promover ou privar os direitos fundamentais da pessoa humana, sobretudo no que se

refere à liberdade religiosa.

Assim, é inegável a dimensão que os direitos humanos e fundamentais ocupam na

sociedade atual; sua matriz repousa na dignidade da pessoa humana e, para a construção deste

valor, em muito contribuiu o Cristianismo, que sempre sustentou a noção da “sacralidade” da

vida humana, independente de sua condição social, econômica, política, pois considera que o

homem foi criado à imagem e semelhança de Deus.

Como vimos, a construção filosófica do conceito da pessoa humana também auxiliou

na solidificação dos direitos humanos e fundamentais. Assim, progressivamente, filósofos

como Boécio, Tomás de Aquino, Pico dela Mirandola e Kant, ajudaram na elaboração do

princípio da igualdade essencial de todo ser humano através de conceitos como autonomia,

vontade e liberdade.

Outro momento importante foi o da positivação dos direitos humanos, frutos de um

longo processo histórico, para o qual inúmeros eventos colaboraram construção. Destacando-

se documentos como a Magna Carta de 1215, a lei do Habeas Corpus entre outros.

Mas, foi a Declaração de Direitos do Povo da Virgínia que solidificou o nascimento

dos direitos humanos e fundamentais na história, pois expressou claramente os direitos inatos

ao homem, como liberdade, propriedade, igualdade. A influência desse documento pode ser

vista em outras declarações de direitos, como a Declaração de Independência dos Estados

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Unidos (1776), na Carta dos Direitos dos Estados Unidos (1789) e na Declaração dos Direitos

do Homem e do Cidadão francesa (1789).

O nascimento desses documentos constituíram a passagem das afirmações filosóficas

do direito para um verdadeiro sistema de direitos humanos positivos, o que foi visto na

chamada fase de internacionalização dos direitos humanos a partir do século XIX, essa que

possuía como pilares o direito humanitário, a luta contra a escravidão e a regulação dos

direitos do trabalhador. Destacam-se deste período a Convenção de Genebra de 1864, o Ato

Geral da Conferência de Bruxelas de 1890 e, por fim, a proteção dos direitos dos

trabalhadores a partir da criação da Organização Internacional do Trabalho em 1919.

Todo o itinerário descrito contribuiu para um fato de estrema importância que foi a

reconstrução do conceito de soberania nacional absoluta dos Estados, na medida em que se

passou a admitir intervenções para a proteção dos direitos humanos e fundamentais,

começando aos poucos a ser consolidada a capacidade processual internacional dos

indivíduos, bem como a concepção de que os direitos humanos e fundamentais não mais se

limitam ao Estado.

Enfim, pode-se dizer que o grande ápice da solidificação dos direitos humanos surgiu

literalmente dos destroços da segunda guerra mundial, que acabou gerando o principal

documento até hoje elaborado na proteção dos direitos fundamentais dos homens, que é

Declaração Universal dos Direitos Humanos. Este documento possuía como objetivo

principal delinear uma ordem pública fundada no respeito à dignidade humana, ao consagrar

valores básicos universais.

Por isso, dada a importância dos direitos humanos e fundamentais na construção dos

mecanismos colaborativos entre as religiões e os Estados e considerando que a liberdade

religiosa é fruto direto desse longo processo descrito no trabalho, é que foi proposto um sério

estudo da temática dos direitos do homem, bem como do direito fundamental à liberdade

religiosa, tendo-se em conta as raízes teológicas, filosóficas e históricas nas quais esses

direitos estão fundados.

Podemos dizer que a proteção do direito à liberdade religiosa faz parte do rol dos

direitos humanos presentes e solidificados com a Declaração Universal dos Direitos

Humanos. Assim, consideramos que a humanidade, a partir de tal instrumento, possui não

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somente uma cartilha indicativa, mas, sim um ideal a ser buscado, partindo da premissa

fundamental, que é o respeito à dignidade da pessoa humana.

Quanto ao direito fundamental à liberdade religiosa, ela faz parte do itinerário

descrito acima, o que nos leva a crer que mesmo é legítima e saudável a separação entre

Estados e religiões; porém, de forma alguma, pode-se afirmar que não há possibilidade de um

diálogo, ou seja, que o Estado não tem nenhum interesse nas temáticas religiosas, uma vez

que instrumentos de colaboração entre ambas são necessários para a promoção e proteção dos

direitos fundamentais dos homens.

Assim, a separação entre as religiões e o Estado pode ser legítima e útil, porém, o

Estado, ao assumir que não é o titular dos direitos religiosos, deve evitar o indiferentismo

quanto à questão religiosa, pois ele corre o risco de, ao invés de promover e proteger os

direitos dos seus cidadãos quanto ao exercício da liberdade religiosa, se tornar um verdadeiro

perseguidor.

Desta maneira, para a justa relação, requer-se, primeiramente, que as religiões e os

Estados reconheçam devidamente seu espaço e sua função dentro da ordem social. Como bem

nos ensinou Locke, tratam-se de esferas distintas; por isso é necessária uma equilibrada

separação. Isso não quer dizer hostilidade, mas, sim um reconhecimento sincero que embora

possuam natureza distintas, Estados e religiões têm na pessoa humana o objeto de suas

atividades e sua razão de existir.

Afinal, é possível que sejam construídos instrumentos colaborativos entre as religiões

e Estados, como, por exemplo, o presente entre a Igreja Católica e o Estado brasileiro, pois,

como bem nos ensinou Maritain, é dever do Estado estar a serviço do homem, de modo que

ele se destina a realizar os direitos fundamentais da pessoa humana. Assim, sendo o homem

como um ser que busca o sagrado dentro de uma sociedade política e que, como cidadão e

fiel, participa tanto das realidades celestes como das temporais, por isso uma divisão absoluta

entre essas duas sociedades, ou seja, uma separação sem colaboração entre Estados e

religiões, seria o mesmo que cortar a pessoa humana em duas partes.

Portanto, para a garantia do direito fundamental à liberdade religiosa, é

imprescindível que sejam construídos instrumentos colaborativos entre as religiões e os

Estados. Assim, quanto mais harmônica for tal relação, melhor todos os envolvidos no

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contexto social (Estados, religiões e cidadãos) chegarão aos seus objetivos e anseios, seja a

santidade, a felicidade, a paz, a promoção humana, a ordem pública, o bem comum. O que

fará da comunidade política lugar onde se viver e exerce os direitos fundamentais e humanos,

dentre estes o da liberdade religiosa.

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