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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
RICARDO GAIOTTI SILVA
A COLABORAÇÃO ENTRE IGREJA E ESTADO NO BRASIL À LUZ
DA LIBERDADE RELIGIOSA
MESTRADO EM DIREITO
SÃO PAULO
2016
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
RICARDO GAIOTTI SILVA
A COLABORAÇÃO ENTRE IGREJA E ESTADO NO BRASIL À LUZ
DA LIBERDADE RELIGIOSA
Dissertação apresentada à banca examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
como exigência parcial para a obtenção do título
de Mestre em Direito – Filosofia do Direito, sob
a orientação do professor Dr. Alvaro Luiz
Travassos de Azevedo Gonzaga.
SÃO PAULO
2016
BANCA EXAMINADORA:
___________________________________________ ___________________________________________ ___________________________________________
RESUMO
A liberdade religiosa é uma temática complexa, que envolve não somente a busca pelo
sagrado, mas também o exercício deste direito em meio a uma comunidade política. Por isso,
muitas vezes viver a fé dentro do Estado se torna um desafio. Porém, a partir da construção
histórica do direito à liberdade religiosa, é possível ter uma noção da grandeza da temática e,
principalmente, da importância da proteção deste direito para a valorização e a promoção da
vida humana. A proposta deste estudo, desenvolvido no Núcleo de Pesquisa em Filosofia do
Direito do Programa de Pós Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo – PUC/SP é de apresentar um itinerário jurídico, histórico e filosófico no qual a
liberdade religiosa foi sendo construída indicando alguns caminhos para que a pessoa humana
cidadão e fiel possa exercer livremente esse direito dentro dos Estados, visando assim uma
verdadeira efetividade do direito. Destaca-se o fato de que, para a proteção deste direito,
existem vias as quais tanto as religiões quanto os Estados podem, mutuamente, construir
visando ações colaborativas destinadas a proteção deste direito fundamental, a partir de uma
justa separação entre às Religiões e os Estados. Entre essas vias jurídico-colaborativas,
destaca-se o Acordo Brasil-Santa Sé que ilumina a possibilidade da construção de
instrumentos jurídicos capazes de promover a pessoa humana e, seus direitos fundamentais
principalmente os referentes à liberdade religiosa. O presente trabalho apresenta, portanto, um
itinerário da solidificação da liberdade religiosa como um direito humano e fundamental e,
destacando o modelo de colaboração entre o Brasil e a Santa Sé como uma via eficaz na busca
da proteção, visando e promoção da dignidade da pessoa humana, inclusive para os membros
dos demais credos religiosos.
Palavras-chave: Dignidade Humana; Direitos Fundamentais; Estado; Igreja; Liberdade
Religiosa, Religiões.
ABSTRACT
Religious freedom is a complex issue as it involves not only the pursuit of sacred, but also the
exercise of this right within a political community, so often living the faith within the state
becomes a challenge. However, from the historical construction of the right to religious
freedom it is possible to get a sense of the magnitude of the subject and especially the
importance of protecting this right to the development and promotion of human life. This
study, developed at the Center for Research in Philosophy of Law at the Catholic University
of São Paulo – PUC/SP is to present a legal, historical and philosophical journey in which
religious freedom was being built indicating some ways for a person human, citizen and
faithful, may freely exercise this right within states, thus aiming at a true effectiveness of law.
Noteworthy is the fact that, for the protection of this right there are ways in which both
religions as the State may, mutually, aiming to build collaborative action from a fair
separation between the religions and states. Among these collaborative juridical way stands
the Agreement Brazil/Holy See, the one that illuminates the possibility of building legal
instruments capable of promoting the human person and his fundamental rights, mainly
referring to religious freedom. The respective work therefore presents an itinerary
solidification of religious freedom as a human and fundamental rights and highlighting the
collaboration model between Brazil and the Holy See as an effective way in search of
protection, aiming and promotion of the dignity of the human person, including for members
of other religious faiths.
Keywords: Church; Fundamental Rights; Human dignity; Religions; Religious Freedom;
State.
AGRADECIMENTOS
Nenhum vento é favorável ao barco que não sabe a que porto se destina
Sêneca
Minha sincera gratidão às inúmeras pessoas que sopraram as velas do meu barco,
quando meus ventos e minhas forças pareciam insuficientes, nomear uma a uma seria uma
injustiça.
Contudo, ouso iniciar agradecer a Deus, meu amigo, companheiro e sentido da minha
vida, primeiramente pelo dom da fé dentro da Igreja Católica, que recebi desde da minha
infância e que de fato marcou meu caráter e minhas escolhas.
Gratidão aos meus familiares, principalmente a meu pai José Osmar, minha mãe Edna
e meus irmãos (Nene, Kiko, Pepê e Duda), cada um de vocês colaboram diretamente em
minha vida, com vocês aprendi a ter respeito, educação, ousadia, disciplina, esperança e
fraternidade, posso dizer que foi dentro de casa que aprendi a “navegar”.
Gratidão a Rafaela, minha amiga, companheira, meu amor e futura esposa,
principalmente por sua paciência com os livros, como se não bastasse, sempre me incentivou
a sonhar com este momento.
Gratidão a todos os professores e colaboradores das escolas que passei.
Gratidão a todos que colaboraram com minha formação humana e espiritual, dentre
esses, padres, amigos, companheiros de missão, enfim, com cada um aprendi que a vida
somente tem sentido se for “consumida” para o outro, muito obrigado.
Enfim, agradeço as pessoas que convivi, trabalhei, estudei, morei, etc. Tenho a plena
certeza que sozinho não chegaria.
Gratidão aos meus amigos, pelo auxílio no mar bravio e no mar calmo.
Agora, ancorado, após chegar ao destino, posso dizer: "É a tua providência, ó Pai, que
segura o leme" (Sb 14,3).
Agradeço, também a Capes que através da bolsa modalidade Taxa, financiou uma
parte deste projeto.
“Senhor, fazei de mim um instrumento de vossa paz;
Onde houver ódio, que eu leve o amor;
Onde houver discórdia, que eu leve a união;
Onde houver dúvidas, que eu leve a fé;
Onde houver erros, que eu leve a verdade;
Onde houver ofensa, que eu leve o perdão;
Onde houver desespero, que eu leve a esperança;
Onde houver tristeza, que eu leve a alegria;
Onde houver trevas, que eu leve a luz. (...)”
Oração de São Francisco de Assis
SUMÁRIO
Introdução ............................................................................................................................... 10
Capítulo 1
A liberdade religiosa
1.1 – A liberdade religiosa como um direito da pessoa humana ............................................. 13
1.2 – Distinções e aproximações entre os direitos humanos e os direitos fundamentais ........ 17
1.3 – A liberdade religiosa: proposta de definição ................................................................... 20
1.4 – As tensões da liberdade religiosa no mundo contemporâneo .......................................... 24
Capítulo 2
A evolução dos direitos humanos: a consolidação da liberdade religiosa
2.1 – Fundamentações teológica, filosófica e histórica dos direitos humanos ......................... 29
2.2 – A fundamentação teológica dos direitos humanos ......................................................... 31
2.3 – A fundamentação filosófica dos direitos humanos: o conceito de pessoa ....................... 34
2.3.a – O pensamento de Boécio .............................................................................................. 35
2.3.b – O pensamento de Santo Tomás de Aquino ................................................................... 36
2.3.c – O pensamento de Pico della Mirandola ........................................................................ 38
2.3.d – O conceito de pessoa a partir de Immanuel Kant ......................................................... 39
2.3.e – O conceito de pessoa a partir do século XX ................................................................. 42
2.4 – A fundamentação histórica dos direitos humanos ........................................................... 44
2.5 – A positivação dos direitos humanos ................................................................................ 47
2.6 – A internacionalização dos direitos humanos ................................................................... 48
2.7 – O mundo após segunda guerra: a Declaração Universal dos Direitos Humanos ............ 49
Capítulo 3
A relação entre Estados e religiões
3.1 – A dimensão social da religião .......................................................................................... 54
3.2 – O homem e as religiões nos Estados: o fundamento e o fim da ordem social................. 58
3.3 – O Estado moderno e a religião: As ideias contratualistas ............................................... 63
3.3.a – O pensamento de John Locke ....................................................................................... 65
3.4 – A liberdade religiosa a partir dos contratualistas............................................................. 69
Capítulo 4
A possibilidade da colaboração entre Estados e religiões
4.1 – Os fundamentos para a colaboração: justificativas doutrinárias ..................................... 76
4.2 – Os modelos e problemas na relação entre Estados e religiões ........................................ 82
4.3 – Os desafios da universalidade do direito a liberdade religiosa ........................................ 86
Capítulo 5
A religião e o Estado brasileiro
5.1 – A liberdade religiosa no direito pátrio ............................................................................. 90
5.2 – A união entre a Igreja Católica e o Estado: o padroado .................................................. 92
5.3 – Nasce um novo tempo: o fim do padroado ...................................................................... 94
5.4 – A Constituição de 1934: seus reflexos nas demais cartas constitucionais ...................... 97
5.5 – A Constituição de 1988: perspectivas de colaboração .................................................... 99
5.6 – A relação entre Igreja Católica e o Estado brasileiro .................................................... 103
5.6.a – A natureza jurídica da Santa Sé ................................................................................. 103
5.6.b – O Acordo Brasil/Santa Sé: Justificativas e Conteúdo ............................................... 105
5.7 – A relação entre o Estado e as demais religiões .............................................................. 110
5.8 – Considerações Finais ..................................................................................................... 113
Conclusão .............................................................................................................................. 116
Referências Bibliográficas ................................................................................................... 120
10
Introdução
A tônica a respeito da liberdade religiosa está presente constantemente nas
discussões jurídicas que envolvem os Estados, e não é de hoje que se discutem os limites da
relação entre as religiões e os poderes públicos, tendo como ponto de partida ora problemas
políticos, ora os direitos dos homens, bem como a influência das religiões nas políticas
públicas. Esta discussão não é tão simples como parece, porque sempre que se dirigem pautas
a respeito de temáticas religiosas se adentra em um terreno particular muito complexo e que,
muito mais do que questões sociais e políticas, envolvem temas que conferem um verdadeiro
sentido de vida para os fiéis.
Há de se considerar também que o homem como sujeito social possui tanto o direito
de participar ativamente da vida pública como a de conduzir a sua vida a partir de conceitos
filosóficos, teológicos e humanos, assim como, religiosos que bem entendam; contudo,
existem certos limites de “sociabilidade” que, por si sós, já condicionam a possibilidade do
exercício de tal “ideologia” de vida.
Da mesma forma, quando se fala de religião, a comunidade política tem solidificado
que se trata de uma liberdade, um direito fundamental do homem, expressos por direitos como
de associação, de expressão, de culto. Assim, podemos dizer que a própria filosofia do direito
é constantemente convidada a refletir a respeito desta temática, sobretudo, em tempos em que
ainda estão presentes questões ligadas à intolerância religiosa, ou seja, neste momento
acontecem graves violações aos direitos fundamentais dos homens motivadas por questões de
fé.1
O objetivo deste trabalho é o de apresentar elementos que identificam a construção
do conceito da liberdade religiosa como um direito humano e fundamental, uma vez que
afastar o dado religioso da vida pública é mutilar um direito amplamente reconhecido e, além
disso, considerando que se trata de um direito fundamental, surge assim a possibilidade da
1 No dia em que concluía esta dissertação, aconteceu um ataque terrorista na França que resultou, na morte de
muitas pessoas inocentes, deixando centenas de feridos. Este atentado foi motivado por questões religiosas,
sendo o mais violento na França desde a segunda guerra mundial. Cf. “Ataques em Paris: 'Estado Islâmico'
assume autoria”. Disponível em: http://goo.gl/G0Fihp. Acesso em 14/11/2015.
11
colaboração das religiões na construção de um cenário no qual elas possam participar
ativamente na vida política, sem ferir a laicidade e a identidade própria de cada país.
Além disso, este trabalho visa identificar o melhor caminho para a relação entre as
religiões e os Estados, considerando que este papel é de responsabilidade de toda a sociedade,
essa que deve direcionar suas forças para proteger, garantir e reconhecer o direito à liberdade
religiosa, buscando o respeito mútuo entre as diversas confissões religiosas.
Para isso, se faz necessário procurar meios, quer sejam filosóficos, sociais ou
jurídicos, para a construção de mecanismo que ao promover os direitos dos homens mantenha
igualmente a legítima separação entre religiões e Estados. Porém, fazendo dessas entidades
parceiras em vista dos direitos dos homens, uma vez que há objetos convergentes entre
ambas, pois, é o homem o único destinatário da ação, seja do Estado ou das religiões.
Assim, dedicamo-nos a investigar a temática da liberdade religiosa, seus desafios,
bem como as tensões ainda presentes em nossa sociedade e, para isso, procuramos oferecer,
no capítulo primeiro, uma proposta de definição deste direito, como também um panorama da
realidade da liberdade religiosa, sendo um direito humano e fundamental.
Para tanto, apresentamos, no capítulo segundo, um estudo da evolução dos direitos
humanos, buscando identificar sua fundamentação teológica, filosófica e histórica, visando a
consolidação do conceito de pessoa e do direito à liberdade religiosa. Diante disso, foi
necessária a investigação do pensamento de alguns filósofos, para que, compreendido o
conceito de pessoa humana, bem como sua dignidade, pudéssemos adentrar na compreensão
da positivação e internacionalização desses direitos, por meio da Declaração Universal dos
Direitos Humanos.
Chegando a esse ponto, no capítulo terceiro, ousamos desenvolver uma pesquisa
quanto à relação entre Estados e religiões através de um estudo da dimensão social da
religião, do lugar dos homens nos Estados e, da compreensão do direito à liberdade religiosa a
partir da formação do Estado moderno e, para isso, se fez necessário o estudo das ideias
contratualistas de Hobbes, Rousseau e, principalmente, de John Locke.
Solidificadas tais ideias, no capítulo quarto, foi feito um estudo da possibilidade
concreta de colaboração entre Estados e religiões, partindo do ensinamento de Locke e
12
Maritain e passando pelos desafios quanto à universalidade do direito à liberdade religiosa,
até os modelos de relação entre Estados e religiões.
Por fim, no capítulo quinto, procuramos observar a temática da religião no Estado
brasileiro a partir da história das constituições brasileiras desde o Império, onde ainda havia o
padroado passando pelas constituições republicanas e respectivamente suas particularidades,
até chegarmos a possibilidade de colaboração entre religiões e o Brasil, solidificado na Carta
Magna de 1988. Tendo como destaque a colaboração entre o Brasil e a Santa Sé por meio do
Acordo Brasil/Santa Sé, para, averiguar como devem ser desenvolvidos os instrumentos
colaborativos na construção da relação Estados e religiões.
Mergulhar no mistério das relações entre os homens e suas religiões nos Estados em
vista da proteção e promoção de seus direitos fundamentais, principalmente o da liberdade
religiosa, é o objeto central de interesse desse trabalho, visto que, quanto mais o conceito da
liberdade religiosa for solidificado e identificado como um direito fundamental, melhor será a
construção da cultura de tolerância. Neste cenário as religiões e os Estados possuem um papel
fundamental, por isso, agindo de forma colaborativa, eles certamente contribuirão para o
desenvolvimento integral do homem.
Portanto, na perspectiva e na esperança de solidificar vias de colaboração entre
religiões e Estados em prol da pessoa humana, cidadão e fiel, esse trabalho foi sendo
construído vislumbrando poder ajudar a sociedade neste caminho, muitas vezes pedregoso,
que é o da garantia do exercício da liberdade religiosa pelos cidadãos no seio das
comunidades políticas. Assim, emerge a necessidade de averiguar a possibilidade dos
instrumentos colaborativos nessa relação, tendo sempre em meta a pessoa humana, objeto este
tanto das ações da religião como das políticas estatais.
13
Capítulo Primeiro
A liberdade religiosa: um direito fundamental
1.1 – A liberdade religiosa – direito da pessoa humana
As questões em torno da liberdade religiosa, ou seja, da relação do homem com o
“sagrado” dentro das comunidades “políticas” vêm sendo objetos de estudos há muitos anos.
Como já afirmava Fustel de Coulanges:
Em todos os tempos e em todas as sociedades, o homem sempre quis honrar os
seus deuses com festas, estabeleceu, pois, dias durante os quais apenas o
sentimento religioso reinará em sua alma, sem ser tolhido por pensamentos ou
trabalhos terremos. Do número de dias que o homem tem para viver, reservou um
quinhão aos deuses.2
O homem sempre quis, portanto, buscar para si momentos, dias, lugares para poder
encontrar-se com sua divindade e, como um sujeito social, inserido em uma comunidade
política, é dentro desta estrutura que ele busca o sagrado; por outro lado, a vida de fé e a vida
civil, acabaram por se colidir, o que gera e gerou graves problemas nas relações entre
religiões e Estados.
Inúmeros são os fatos que demonstram os litígios provocados por questões religiosas,
porém, como investigar toda a história da relação entre Estados e religiões não é o objeto
deste trabalho, procuramos tecer um corte histórico/metodológico a partir da Reforma
Protestante e da formação do Estado moderno, esses quais influenciaram diretamente no
rompimento da relação entre a Igreja Católica, até então expressão única do cristianismo, e o
Estado; consequentemente, esses eventos produziram efeitos na formação jurídica e social dos
países ocidentais, motivos esses que influenciaram também diretamente na construção jurídica
do nosso país.
2 COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. Trad. Jean Melville. 2. ed. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 201.
14
Há de considerar também que a solidificação da liberdade religiosa como um direito
da pessoa humana faz parte de um longo processo histórico que teve suas raízes em outras
ciências, como na Teologia, na Filosofia e na própria História. Contudo, há uma relação direta
entre direitos humanos e fundamentais e a liberdade religiosa, esta que é considerada como
um direito fundamental amparado no rol dos direitos humanos.
O direito à liberdade religiosa está ancorado nos direitos humanos, cuja base vem do
desejo do homem de oferecer respostas a respeito de sua origem e seu fim. Neste aspecto,
tanto a religião como a filosofia, inúmeras vezes, ousaram a dar tal resposta, sobretudo, no
que diz respeito às questões em torno do homem e de sua posição no mundo. Contudo, o
conceito de liberdade religiosa foi sendo construído à custa de muitas lutas, perseguições,
intolerâncias e afrontas aos direitos humanos e fundamentais.
No mundo atual há um duplo movimento em relação à liberdade religiosa: o
primeiro, relacionado com o aumento da consciência dos homens de suas liberdades, o
segundo, com a exigência de que esse direito seja exercido em ambientes públicos através de
certa proteção do Estado, como nos ensinou o Papa Paulo VI na declaração Dignitatis
Humanae – Sobre a Liberdade Religiosa:3
Os homens estão cada vez mais conscientes da dignidade da pessoa humana e, cada
vez em maior número, reivindicam a capacidade de agir segundo a própria
convicção e com liberdade responsável, não forçados por coação, mas levados pela
consciência do dever. Requerem também que o poder público seja delimitado
juridicamente, a fim de que a honesta liberdade das pessoas e das associações não
seja restringida mais do que é devido. Esta exigência de liberdade na sociedade
humana diz respeito principalmente ao que é próprio do espírito, e, antes de mais,
ao que se refere ao livre exercício da religião na sociedade.
Estes “movimentos” não somente impulsionam os Estados a estabelecerem uma carta
de normas direcionando as permissões e proibições do exercício do direito à liberdade
religiosa, mas também exigem que se busque encontrar os fundamentos desse direito e,
sobretudo, identificar qual o grau da importância da liberdade e sua relação para a proteção
dos direitos fundamentais dos homens.
3 PAULO VI, Papa. Declaração Dignitatis Humanae – Sobre a Liberdade Religiosa, n. 1. Disponível em:
goo.gl/7UV1JR. Acesso em 17/10/2015.
15
Fruto desses movimentos, visando a proteção da liberdade religiosa foram diversas
as Cartas, Pactos e Convenções a respeito dos Direitos Humanos produzidos nos últimos
séculos, que a identificou como um direito fundamental da pessoa humana. Entre estas
destacam-se entre outros, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), o Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos e Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais
e Culturais (1966) e a Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e
Discriminação Fundadas na Religião ou nas Convicções (1981).
O principal documento é a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que
expressa claramente em seu artigo 18, o direito à liberdade religiosa, exigindo um empenho
público para a sua proteção e promoção por se tratar de um direito fundamental. Reza a
Declaração:
Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião;
este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de
manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela
observância, em público ou em particular.4
Outro exemplo claro do direito à liberdade religiosa como um “direito da pessoa
humana” são os esforços empreendidos por organismos internacionais, como a ONU, para
buscar e promover estratégias visando combater a ainda presente perseguição religiosa. Na
recente Assembleia Geral de 2015,5 diversos líderes de Estado, em seus discursos,
denunciaram os conflitos motivados por questões políticas e religiosas, uma vez que esses são
uma afronta direta aos direitos fundamentais dos homens.
Destacamos o discurso do Papa Francisco na ONU que, como chefe de Estado e líder
supremo da Igreja Católica, possui capacidade moral e jurídica para exortar a comunidade
internacional, principalmente no que diz respeito à responsabilidade dos Estados na proteção
das minorias inocentes. Afirmou o pontífice:
A mais elementar compreensão da dignidade humana obriga a comunidade
internacional, em particular através das regras e dos mecanismos do direito
4 Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em:
http://www.onu.org.br/img/2014/09/DUDH.pdf. Acesso em 02/11/2015. 5 Cf. “Na ONU, líderes religiosos e políticos discutem estratégias para conter aumento do extremismo”.
Disponível em: http://nacoesunidas.org/na-onu-lideres-religiosos-e-politicos-discutem-estrategias-para-conter-
aumento-do-extremismo/. Acesso em 08/11/2015.
16
internacional, a fazer tudo o que estiver ao seu alcance para impedir e prevenir
ulteriores violências sistemáticas contra as minorias étnicas e religiosas e para
proteger as populações inocentes.6
O Papa Francisco cobrou a comunidade internacional para lutar em prol da proteção
dos direitos das minorias; ele apenas recordou os direitos já reconhecidos na Declaração
Universal dos Direitos dos Homens, e em inúmeras Constituições nacionais, tal qual a da
República Federativa do Brasil. Estas destacam explicitamente a proteção à liberdade
religiosa e a importância da temática da liberdade, principalmente pelo fato de que nela está
inserido um corolário de direitos, dentre esses, o de culto, o de consciência, o de associação, o
de expressão.
O discurso do pontífice ecoa em solo brasileiro, tendo em vista que a Constituição da
República Federativa do Brasil7 reconhece entre seus direitos fundamentais o da liberdade
religiosa. Pode-se afirmar que a Constituição brasileira de 1988 gerou um compromisso de
garantir direitos que, por sua própria natureza, possui matrizes históricas e filosóficas.8 Ou
seja, trouxe a noção de que há direitos fundamentais, que se fundamentam na natureza
humana e que existem antes mesmo do próprio Estado, sendo a liberdade religiosa um destes
direitos. Por isso, o Brasil, como membro da ONU, é chamado a proteger amplamente este
direito.
Porém, não é tão fácil identificar com precisão o que vem a ser a garantia da
liberdade religiosa e, consequentemente, a esfera de proteção de tal direito pelos Estados,
inclusive o brasileiro. Enfim, a liberdade religiosa está relacionada com outros direitos,
também fundamentais, como as liberdades de pensamento, de consciência, de fé, de crença,
de associação religiosa, de propaganda religiosa.
Portanto, pode-se afirmar que a base dos direitos fundamentais, dentre eles o da
liberdade religiosa, é a natureza humana. Assim, o que é positivamente reconhecido pelo
6 FRANCISCO, Papa. Discurso na Sede da ONU em 25 de setembro de 2015. Disponível em:
http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2015/september/documents/papa-francesco_20150925_onu-
visita.html. Acesso em 12/10/2015. 7 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://goo.gl/k8p32S. Acesso em
30/10/2015. 8 AMARAL JUNIOR, Alberto do; JUBILUT, Liliana Lyra (orgs.). O STF e o Direito Internacional dos
Direitos Humanos. São Paulo: Quartier Latin, 2009. p. 36.
17
Estado é apenas um instrumento para dar visibilidade a esses direitos, tendo em vista que por
serem direitos inatos aos homens, são, por si sós juridicamente exigíveis, sem que afaste a
importância dos instrumentos jurídicos. Com isso, o direito a liberdade religiosa como um
fruto dos direitos fundamentais, ou seja, um direito da pessoa humana, constituiu o alicerce e
a finalidade da própria organização política; por isso, o reconhecimento desses direitos, como
direitos da pessoa humana, é a própria base do Estado.9
1.2 – Distinções e aproximações entre os direitos humanos e os direitos fundamentais
Os direitos humanos e fundamentais são considerados direitos com conteúdos
diversos, especialmente em razão dos seus âmbitos de incidência. Há correntes doutrinárias
que afirmam que os direitos humanos são, por um lado, direitos inscritos (positivados em
tratados ou em costumes internacionais), ou seja, são aqueles direitos que já ascenderam ao
patamar do Direito Internacional Público,10
dentre esses o direito a liberdade religiosa.
Ingo Wolfgang Sarlet afirma que o termo “direitos fundamentais”, por outro, se aplica
para aqueles direitos do ser humano, reconhecidos e positivados na esfera do direito
constitucional positivo de determinado Estado.11
Neste caso, a liberdade religiosa também
possui esse status, uma vez que se encontra positivadas pela Constituição Federal brasileira e
de diversos outros Estados.
Contudo, independente da distinção doutrinária desses direitos, o fato é que há uma
íntima relação entre os direitos humanos e os direitos fundamentais, uma vez que a maior
parte das Constituições após a segunda guerra se inspirou tanto na Declaração Universal de
Direitos Humanos (1948) quanto nos diversos documentos internacionais e regionais que as
sucederam. Como bem nos ensina Ingo Wolfgang Sarlet:12
9 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. A cultura dos direitos fundamentais. In: SAMPAIO, José Adércio
Leite. Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey. 2003. p. 245. 10
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de direito internacional público. 4. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2010, p. 750. 11
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2008, p. 35. 12
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2006, pgs. 39 e 40.
18
Importa considerar a relevante distinção quanto ao grau de efetiva aplicação e
proteção das normas consagradoras dos direitos fundamentais (direito interno) e
dos direitos humanos (direito internacional), sendo necessário aprofundar, aqui, a
ideia de que são os primeiros que – ao menos em regra – atingem (ou, pelo menos,
estão em melhores condições para isto) o maior grau de efetivação, particularmente
em face da existência de instâncias (especialmente as judiciárias) dotadas do poder
de fazer respeitar e realizar estes direitos.
Há autores ainda que compreendem que os direitos humanos e os direitos
fundamentais possuem nomenclaturas sinônimas, porém, segundo sua origem e significado, é
possível distingui-las. Canotilho apresenta uma proposta de distinção quando afirma:
Direitos do homem (humanos) são direitos válidos para todos os povos e em todos
os tempos (dimensão jusnaturalista-universalista); direitos fundamentais são os
direitos do homem, jurídico-institucionalmente garantidos e limitados espaço-
temporalmente. Os direitos do homem arrancariam da própria natureza humana e
daí o seu carácter inviolável, intemporal e universal; os direitos fundamentais
seriam os direitos objetivamente vigentes numa ordem jurídica concreta.13
Desta maneira, para Canotilho os direitos fundamentais constituem a raiz
antropológica essencial da legitimidade da constituição e do poder político.14
Por sua vez,
José Afonso da Silva diz que direitos fundamentais são os que tratam de situações jurídicas
sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem sobrevive.15
Assim, direitos como o da liberdade religiosa, são por si sós, amplamente exigíveis,
independentes da positivação ou não; hoje, esse se encontra positivado tanto em declarações,
tratados internacionais, como na própria Constituição Federal de 1988. O que todavia confere
à liberdade religiosa certo grau de “excelência” não é a sua positivação, mas, sim, sua própria
origem, inata ao homem.
Nesta mesma perspectiva, a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, por meio
da Declaração de Viena (1993), esclarece:
13
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6. ed. Coimbra: Livraria Almedina. 1993. p.
517. 14
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6. ed. Coimbra: Livraria Almedina. 1993. p. 42. 15
SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 8. ed. São Paulo: Malheiros. 1992. pgs. 163 e
164.
19
A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos reafirma o empenho solene de
todos os Estados em cumprirem as suas obrigações no tocante à promoção do
respeito universal, da observância e da proteção de todos os Direitos Humanos e
liberdades fundamentais para todos, em conformidade com a Carta das Nações
Unidas, com outros instrumentos relacionados com os Direitos Humanos e com o
Direito Internacional. A natureza universal destes direitos e liberdades é
inquestionável. Neste âmbito, o reforço da cooperação internacional no domínio
dos Direitos Humanos é essencial para a plena realização dos objetivos das Nações
Unidas. Os Direitos Humanos e as liberdades fundamentais são inerentes a todos os
seres humanos; a sua proteção e promoção constituem a responsabilidade primeira
dos Governos.16
Na Declaração de Viena percebe-se claramente o direito fundamental da liberdade
como sendo inerente a toda pessoa humana, ou seja, independente de sua positivação e/ou
distinção doutrinária trata-se de um direito inato ao homem, por isso a Declaração exortou
com tanta veemência os Estados para promover e proteger tais direitos do homem.
Quanto à relação entre liberdade religiosa e direitos fundamentais, podemos afirmar
que há um vínculo “genético” entre eles.17
Tal vínculo é o reflexo de um processo que
envolve muitos fatos históricos como lutas pela liberdade religiosa, por valores, como o da
liberdade religiosa em si, até chegar à fase de positivação de direito, onde encontrou seu ápice
na Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Por esta razão o Papa Bento XVI afirmou:
Entre os direitos e as liberdades fundamentais radicados na dignidade da pessoa, a
liberdade religiosa goza de um estatuto especial. Quando se reconhece a liberdade
religiosa, a dignidade da pessoa humana é respeitada na sua raiz e reforça-se a
índole e as instituições dos povos. Pelo contrário, quando a liberdade religiosa é
negada, quando se tenta impedir de professar a própria religião ou a própria fé e de
viver de acordo com elas, ofende-se a dignidade humana e, simultaneamente,
acabam ameaçadas a justiça e a paz, que se apoiam sobre a reta ordem social
construída à luz da Suma Verdade e do Sumo Bem. Neste sentido, a liberdade
religiosa é também uma aquisição de civilização política e jurídica.18
16
ONU (1993), Declaração e Programa de Ação de Viena – Conferência Mundial sobre Direitos Humanos.
Disponível em: <http://goo.gl/WlbEOO>. Acesso em 05/11/2015. 17
JELLINEK, Georg. La Declaración de los Derechos del Hombre y del Ciudadano, México (D.F.): Unam,
2000, p. 115. 18
BENTO XVI, Papa. Liberdade Religiosa, Caminho para a Paz. Mensagem para o Dia Mundial da Paz de
2011. Disponível em: http://goo.gl/WR6dYC. Acesso em 07/11/2015.
20
Assim, vastamente se encontra na doutrina justificativa que atribui à liberdade
religiosa uma dimensão central na problemática dos direitos fundamentais,19
tendo em vista
que a liberdade religiosa é frequentemente ponto de partida para a conquista de outras
liberdades. Dessa forma, como um direito fundamental, ela possui uma prioridade
cronológica20
quando comparada aos outros direitos fundamentais e sem dúvida, a questão da
liberdade religiosa repercutiu diretamente nas Declarações de Direitos, e, nas Constituições
que inauguram o Constitucionalismo moderno.21
Independentemente das divergências doutrinárias entre os direitos humanos e direitos
fundamentais, bem como o campo de abrangência e proteção de tais direitos, o fato é que há
uma relação direita entre eles referentes à própria origem desses direitos, por isso, quando nos
referimos à liberdade religiosa como um direito fundamental, pode-se dizer que ela é também
um direito humano, tendo em vista que possui por si só a devida força de proteção.
Portanto, quanto ao fator religioso, sempre esteve no epicentro das transformações
institucionais que caracterizaram a emergência do constitucionalismo, ou seja, a liberdade
religiosa pode ser considerada a “mãe de todas as liberdades”, desta maneira deve ser
amplamente protegida pelos direitos humanos e fundamentais, referentes à pessoa humana.
1.3 – A liberdade religiosa: proposta de definição
A liberdade religiosa está relacionada com a capacidade do homem de
autodeterminam-se na investigação e adoção da verdade religiosa que bem entenda e de
ajustar sua conduta individual e social conforme os preceitos morais, que descobre conforme
19
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional: Direitos Fundamentais. Tomo IV. 3.ed.. Coimbra:
Coimbra Editora, 2000, p. 407. 20
ADRAGÃO. Paulo Pulido. A Liberdade Religiosa e o Estado. Coimbra: Almedina, 2002, pgs. 506 e 507. 21
Temas referentes à liberdade religiosa estão presentes na Declaração de Direitos de Virgínia, de 1776, (seção
16); na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, (art. 10); e na Emenda nº 1, de 1789, à
Constituição norte-americana de 1787.
21
sua consciência, ou seja, consiste na faculdade legítima frente ao Estado de professar a
religião e praticar o culto, segundo sua razão e consciência.22
Muito bem nos esclareceu o Papa Bento XVI, na Mensagem “Liberdade Religiosa,
Caminho para a Paz”, em razão do Dia Mundial da Paz de 2011, a respeito da liberdade
religiosa, afirmando:
Liberdade religiosa exprime-se a especificidade da pessoa humana, que, por ela,
pode orientar a própria vida pessoal e social para Deus, a cuja luz se compreendem
plenamente a identidade, o sentido e o fim da pessoa. Negar ou limitar
arbitrariamente esta liberdade significa cultivar uma visão redutiva da pessoa
humana; obscurecer a função pública da religião significa gerar uma sociedade
injusta, porque esta seria desproporcionada à verdadeira natureza da pessoa; isto
significa tornar impossível a afirmação de uma paz autêntica e duradoura para toda
a família humana. (...) a liberdade religiosa deve ser entendida não só como
imunidade da coação, mas também, e antes ainda, como capacidade de organizar as
próprias opções segundo a verdade.23
A liberdade consiste no fato de que todos os homens sejam imunes de coação, tanto
por parte de pessoas particulares como de grupos sociais e qualquer poder humano, de modo
que, em matéria religiosa, ninguém se obrigue a atuar contra sua consciência, nem seja
impedido de atuar conforme ela quer seja pública ou privadamente, sozinho ou associado com
outros dentro dos devidos limites.24
De fato, pode-se dizer que a liberdade religiosa possui basicamente três dimensões: a
liberdade de consciência, a de culto e a de apostolado. O jurista espanhol Francisco Vera25
nos
ensina que a liberdade de consciência considera antes de tudo, a pessoa humana sujeito
individual, que é a capacidade do indivíduo de investigar livremente a verdade religiosa e de
aderir-se a ela, sem ser coagido; contudo, essa liberdade somente entra na esfera jurídica,
quando se depara com a possibilidade de manifestação externa, muitas vezes expressa nos
cultos.
22
VERA URBANO, Francisco de Paula. La Libertad Religiosa como Derecho de La Persona. Madrid:
Instituto de Estudios Políticos, 1971, p. 32. 23
BENTO XVI, Papa. Liberdade Religiosa, Caminho para a Paz. Mensagem para o Dia Mundial da Paz de
2011. Disponível em: http://goo.gl/WR6dYC. Acesso em 07/11/2015. 24
OTADUY, Javier; VIANA, Antonio; SEDANO, Joaquín. Diccionario General de Derecho Canónico. Vol.
V. Madrid: Aranzadi, 2013, p. 164. 25
VERA URBANO, Francisco de Paula. La Libertad Religiosa como Derecho de La Persona. Madrid:
Instituto de Estudios Políticos, 1971, pgs. 34 a 36.
22
A liberdade de culto, para ele, decorre da necessidade humana de manifestar
externamente seu pensamento e sentimento religioso, buscando não somente uma satisfação
emocional, mas também uma inclusão social, e por essa razão, a liberdade de culto não é
apenas um acidente, mas, sim, necessária para a liberdade religiosa, ou seja, pode-se dizer que
a liberdade de culto é a liberdade religiosa coletiva. Para o direito, a liberdade de culto
somente é objeto de estudo no que se refere ao externo, e não ao obséquio interno da fé.
Por fim, a liberdade de apostolado tem como finalidade, como nos ensina Francisco
Vera, de acrescentar o fervor religioso entre os fiéis da mesma comunidade, por meio de
pregações fora e dentro do culto e de outras práticas pastorais, como, ensinamento do
catecismo, escritos em revistas e livros, cinema, teatro, rádio, televisão, internet. Porém,
distingue-se duas formas de apostolado: o primeiro, chamado interno, é o destinado às
pessoas da mesma profissão de fé; o segundo, externo, possui como finalidade alcançar a
todos, crentes ou não.
O exercício da liberdade religiosa garante não somente a possibilidade de professar
uma fé, mas também a de comunicá-la; nesse sentido, amplamente a doutrina constitucional
ampara a liberdade de expressão, como, por exemplo, através dos ensinamentos de José
Afonso da Silva, que afirma a liberdade de opinião como sendo a liberdade primária e ponto
de partida das outras liberdades, essa que, segundo ele, manifesta tanto em seu aspecto íntimo
revelado na liberdade de consciência e de crença, bem como no seu aspecto externo, que se
manifesta pelo exercício das liberdades de comunicação, de religião, de transmissão e
recepção do conhecimento e de expressão intelectual, artística, científica e cultural.26
Conforme vimos, a liberdade religiosa bem como as demais liberdades decorrentes
dela como, por exemplo, às citadas liberdades de consciência, de culto e de apostolado
possuem um grande aspecto externo, sendo justamente essa a dimensão objeto do direito.
Contudo, não se trata de simples “escalas sucessivas” de liberdade, tendo em vista que a
proteção jurídica desses direitos muitas vezes se funde.
26
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 35. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2012,
p. 241-256.
23
Jorge Miranda27
considera ainda que liberdade religiosa deriva da liberdade de
consciência, ou seja, da capacidade de ter convicções filosóficas destituídas de caráter
religioso. Assim, a matriz da proteção constitucional não seria o direito à “fé” em si, mas, sim,
a liberdade de consciência, essa stricto sensu de característica muito mais filosófica que
religiosa.
Em relação à liberdade de expressão, afirma Jorge Miranda que ela é mais que a
liberdade de comunicação social, abrangendo, portanto, todos e quaisquer meios de
comunicação entre as pessoas, a palavra, a imagem, o livro, qualquer outro escrito, a
correspondência escrita e por telecomunicações, o espetáculo e outros meios.28
John Rawls,29
por sua vez, relaciona a liberdade religiosa com questões relativas às
liberdades individuais, justificando que cada indivíduo é livre para professar suas próprias
crenças religiosas ou filosóficas, cuja justificação se alcança com base em um equilíbrio
razoável de valores políticos públicos, ou seja, em sua teoria ele busca propiciar a
coexistência das “religiões” e doutrinas filosóficas razoáveis, desde que essas estejam
articuladas no exercício da razão pública.
Todos esses exemplos indicam a correlação intrínseca da liberdade religiosa com o
direito, tendo em vista que ela possui uma dimensão pública, visível principalmente na
proteção do direito à liberdade de consciência, de associação, de expressão, por exemplo. Por
esta razão, o dado religioso nunca passou despercebido pelos poderes públicos.
Contudo, o conceito de liberdade religiosa foi sendo construído à custa de lutas,
perseguições, intolerâncias e afronta aos direitos humanos, até que se chegar a definição da
liberdade religiosa, como a capacidade que tem o homem de autodeterminar-se na
investigação e adoção da verdade religiosa e de ajustar sua conduta individual e social
conforme os preceitos morais, que descobre conforme sua consciência, consiste na faculdade
legítima frente ao Estado de professar a religião e praticar o culto, segundo sua razão e
consciência.30
27
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional: Direitos Fundamentais. Tomo IV, 3. ed. Coimbra:
Coimbra Editora, 1993. p. 365. 28
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional: Direitos Fundamentais. Tomo IV. Coimbra: Coimbra
Editora, 1988, p. 374. 29
RAWLS, John. O liberalismo político. Trad. Álvaro de Vita. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. 287-288. 30
VERA URBANO, Francisco de Paula. La Libertad Religiosa como Derecho de La Persona. Madrid:
Instituto de Estudios Políticos, 1971, p.32.
24
Enfim, essas definições a respeito da liberdade religiosa são de suma importância,
pois, a partir delas, foi se desenvolvendo a noção de que o sujeito, cidadão livre, dentro de um
Estado, possui o direito a investigar, aceitar, promover, divulgar, os conteúdos de fé nos quais
deseja conformar sua vida.
1.4 – As tensões da liberdade religiosa no mundo contemporâneo
Ainda hoje todos se deparam com diversos conflitos que envolvem a temática
religiosa. Pode-se dizer que, em maior ou menor grau, nunca a perseguição religiosa foi
cessada. Basta olharmos para a história dos séculos XX e XXI, que encontraremos inúmeros
conflitos que envolviam e as que envolvem as questões de fé.31
Recordemos, a título exemplificativo, a questão judaica na Alemanha nazista,32
a
destruição das Igrejas pelos comunistas russos, a proibição ao culto religioso não oficial na
China atual, o histórico conflito entre Israel e Palestina, o sequestro de crianças cristãs por
grupos extremistas muçulmanos na Nigéria e o mais surpreendente, devido à crueldade, os
assassinatos de cristãos e outras minorias pelo “Estado Islâmico – El”, em algumas regiões da
Síria e do Iraque.
Porém, um marco histórico na história recente a respeito da temática da liberdade
religiosa e, consequentemente, da proteção dos direitos inerentes a ela, foi o atentado
terrorista de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, uma vez que a sua motivação foi
tida como de natureza política/religiosa. A partir da queda das Torres Gêmeas, começaram a
se repensar os limites da liberdade religiosa, entre eles os de expressão e promoção da fé, uma
vez que, amparados na “liberdade de expressão”, conferida pela própria natureza do direito
31
FUNDAÇÃO AIS (Ajuda a Igreja que Sofre). Perseguidos e Esquecidos? Um Relatório sobre os Cristãos
Oprimidos por causa da sua Fé – 2013-2015. Trad. Sofia Leitão. Disponível em: http://goo.gl/j8lVeD. Acesso
em 30/11/2015. 32
Hannah Arendt trata brilhantemente a respeito da questão judaica e a maneira pelo qual progressivamente os
judeus, de um povo que estava inserido na alta sociedade europeia, foi sendo perseguido e colocado à margem
não somente do Estado, mas também da própria condição humana. Cf. ARENDT, Hannah. Origem do
Totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
25
fundamental da liberdade religiosa, grupos extremistas divulgaram sua ideologia e recrutaram
membros para, em nome da fé, praticar atentados terroristas.
Urge, portanto, uma reflexão concreta a respeito da liberdade religiosa e a
possibilidade da relação entre religiões e Estados, pois a liberdade religiosa não se trata
apenas de uma garantia a determinado grupo ou religião, mas, sim, de um direito humano,
fundamental, inato ao homem, que não pode ser mutilado, quer seja pela autoridade pública,
quer seja por grupos religiosos.
Os exemplos citados acima demonstram o quanto o fato religioso está inserido na
vida social e, ao mesmo tempo, que a proteção da liberdade religiosa, ou seja, o direito do
homem em investigar e aderir ao “sagrado”, não se trata apenas de uma questão privada que
possa ser excluída da vida pública.
O fato é que o Estado não pode ignorar o dado religioso em vista dos direitos
fundamentais dos homens, mesmo quando ele se encontra diante de graves problemas
políticos, como, por exemplo, a questão dos muçulmanos no mundo, ou a atual perseguição
aos cristãos na Síria pelos membros do “Estado Islâmico”.33
O Estado como garantidor dos
direitos fundamentais deve ser o primeiro a desenvolver instrumentos de proteção aos
cidadãos quanto às questões religiosas.
Por outro lado, temáticas religiosas são sempre muito sensíveis e, por vezes, geram
inúmeros preconceitos a um determinado grupo religioso. Basta ver o quanto membros
pacíficos e equilibrados do Islã sofreram com “perseguições” midiáticas, sociais e religiosas
nos Estados Unidos após o atentado às Torres Gêmeas, uma vez que uma grande parcela da
sociedade generalizou a atitude dos terroristas como se esse pequeno grupo expressasse o
desejo de todos os membros de uma religião.
Por esse e outros motivos diversas autoridades de Estado tem utilizado da
visibilidade de seus discursos e chamado a atenção para os problemas da liberdade religiosa.
Entre esses, destacamos o célebre discurso do presidente norte americano Barack Obama na
33
Devido à escassez de produção científica a respeito do Estado Islâmico, fez-se necessária uma ampla pesquisa
nos meios de comunicação social para o conhecimento de tal fenômeno, realizada entre os dias 01 a 06
novembro de 2015, nos seguintes endereços eletrônicos: http://goo.gl/wvUFsn; http://goo.gl/CCbJjL;
http://goo.gl/1jA6aB; http://goo.gl/4OW5Bh; http://goo.gl/Xue7Fl; http://goo.gl/Dq1cbI; http://goo.gl/WKq42u;
http://goo.gl/9Wj9Ua.
26
Universidade do Cairo, Egito,34
em 4 de junho de 2009, onde manifestou a necessidade de
reconciliação com o Islã, expressando a grande colaboração histórica dos muçulmanos na
construção da nação americana e em outros países.
Nesse discurso, o presidente americano reafirmou que a liberdade religiosa é um
direito inato aos homens, ou seja, um direito fundamental consagrado na Declaração
Universal dos Direitos Humanos e em outros instrumentos internacionais. Para ele, a
liberdade para professar, praticar e propagar a fé deve ser respeitada por todas as sociedades e
por todos os governos.
Barack Obama afirmou ainda que os povos de todos os países devem ser livres para
escolher e viver sua fé com base na convicção da mente, do coração e da alma. Essa tolerância
é fundamental para que a religião cresça, mas ela está sendo refutada de diversas maneiras, ou
seja, a liberdade religiosa é um direito fundamental, um bem social, uma fonte de estabilidade
e um fator fundamental para a segurança internacional.35
Outro discurso de uma autoridade estatal reafirmando a liberdade religiosa como um
direito fundamental, destacando a função do Estado em promover tal direito, foi o do
embaixador da Santa Sé junto as Nações Unidas, Dom Silviano Tomasi, durante a XVI
Sessão Ordinária do Conselho Dos Direitos Humanos da ONU, em 2 de março de 2011,
quando afirmou:
No centro dos direitos humanos fundamentais estão as liberdades de religião, de
consciência e de crença: elas influenciam a identidade pessoal e as escolhas
essenciais, além de tornar possível beneficiar de outros direitos humanos. (...) O
Estado tem o dever de defender o direito à liberdade religiosa e, por conseguinte, a
responsabilidade de criar as condições que tornam possível usufruir deste direito.
(...) O Estado deveria apoiar todas as iniciativas que visam promover o diálogo e o
respeito recíproco entre as comunidades religiosas. Deve aplicar as próprias leis
que lutam contra a discriminação religiosa, com vigor e imparcialidade; garantir a
incolumidade física às comunidades religiosas vítimas de ataques; e encorajar as
maiorias para que permitam às minorias religiosas praticar a própria fé
individualmente e na comunidade, sem ameaças nem impedimentos. (...) a negação
da liberdade religiosa enfraquece qualquer aspiração democrática, favorece a
opressão e reprime a sociedade inteira, que consequentemente pode explodir com
efeitos trágicos. Deste ponto de vista, é também evidente que a liberdade de
religião e de crença está complementar e intrinsecamente ligada ao da liberdade de
34
A integra do Discurso do presidente Barack Obama está disponível em: http://goo.gl/9SCK0v. Acesso em
31/10/2015. 35
Relatório sobre Liberdade Religiosa Internacional. Disponível em: http://goo.gl/zrz9Sc. Acesso em
31/10/2015.
27
opinião, de expressão e de agregação. Além disso, um contexto de verdadeira
liberdade religiosa torna-se o melhor remédio para prevenir a manipulação da
religião para fins políticos de conquista e conservação do poder e de opressão dos
dissidentes, das comunidades de fé diferentes ou das minorias religiosas.36
A liberdade religiosa é um direito fundamental amplamente “explorado” pelos
Estados, pois se trata de um direito inato de todas as pessoas, ou seja, o direito à liberdade
religiosa está radicado na própria dignidade da pessoa humana,37
independentemente da fé
que professa ou da falta dela. Além disso, esta temática envolve a questão central da liberdade
de consciência e, consequentemente, se expande para diversos outros direitos como os de
culto, de associação, de expressão.
Por esta razão, cabe ao Estado a promoção de inúmeras iniciativas visando à
proteção desse direito, quer seja fazendo como o presidente americano, que buscou uma
“reconciliação” com os muçulmanos, ou como o embaixador da Santa Sé na ONU, que
exortou os Estados de suas responsabilidades frente ao direito à liberdade religiosa.
Assim, destaca-se ainda que há um duplo múnus por parte do Estado em relação ao
direito fundamental à liberdade religiosa, quais sejam: promover a chamada
autodeterminação38
do indivíduo quanto a suas questões de consciência e o de não poder
impor concepções filosóficas aos cidadãos, devendo admitir, igualmente, que o indivíduo aja
de acordo com suas convicções, inclusive as de natureza religiosa.39
Quando se diz em liberdade religiosa, é preciso ainda esclarecer que não se refere
apenas à liberdade dos católicos frente ao Estado laico, ou dos espíritas, agnósticos,
protestantes, diante de uma autoridade Estatal confessional católica, por exemplo, mas, sim, a
liberdade religiosa abraça a todos, visando o direito do homem de crer ou não, pois seu
fundamento é justamente a liberdade do homem em conhecer ou não o “sagrado” e, a partir de
sua adesão, conformar a sua vida e consciência de acordo com sua crença. Diante disso, ela é
36
Discurso de Dom Silviano Tomasi na XVI Sessão Ordinária do Conselho Dos Direitos Humanos da ONU, em
2 de março de 2011. Disponível em: http://goo.gl/7wgBXB. Acesso em 31/10/2015. 37
BENTO XVI, Papa. Liberdade Religiosa, Caminho para a Paz. Mensagem para o Dia Mundial da Paz de
2011. Disponível em: http://goo.gl/WR6dYC. Acesso em 07/11/2015. 38
BONAVIDES, Paulo. MIRANDA, Jorge. AGRA, Wagner de Moura Agra. Comentários à Constituição
Federal de 1988. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 100. 39
MENDES, Gilmar Ferreira. COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de
Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 403.
28
um direito humano de suma importância para a ordem social; assim, não respeitá-la é não
respeitar a própria noção de direitos fundamentais.
Pode-se afirmar, por fim, que é muito complexa a temática da liberdade religiosa; por
isso, ainda se encontram conflitos motivados por questões de fé. Por outro lado, a
compreensão da liberdade religiosa como um direito fundamental, a partir da Declaração
Universal dos Direitos Humanos, mudou o itinerário de proteção desse direito pelos Estados,
uma vez que a Declaração Universal representa a consciência histórica de que a humanidade
possui valores fundamentais.40
Por esta razão, para a compreensão desse fenômeno, visando à construção de
instrumentos jurídicos sólidos para a proteção do direito fundamental da liberdade religiosa,
faz-se necessária uma investigação científica da fundamentação histórica, filosófica, teológica
dos direitos humanos e, consequentemente, do direito à liberdade religiosa.
40
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. 21. tiragem. Rio de Janeiro: Elsevier,
2004, p. 33.
29
Capítulo Segundo
A evolução dos direitos humanos: a consolidação da liberdade religiosa
2.1 – Fundamentações teológicas, filosóficas e históricas dos direitos humanos
Os direitos humanos e, consequentemente, o direito à liberdade religiosa como o
conhecemos, nasceram com o pensamento moderno, ainda que possuíssem seus precedentes
nos direitos naturais. Por isso, esses direitos devem ser entendidos correspondentes à pessoa
em atenção a seu próprio modo de ser natural, considerando as circunstâncias que as rodeiam,
ou seja, sem ignorar as exigências históricas.41
Assim, neste Capítulo procuramos apresentar de forma geral os processos
estruturantes vividos pelos direitos humanos, considerando principalmente o direito à
liberdade religiosa, uma vez que esse direito fundamental faz parte do amplo leque de direitos
e garantias componentes das temáticas humanas.
Os direitos humanos não constituem apenas exigências éticas ou morais que
dependam de um consenso e positivação para converterem-se em autênticos direitos. Não é
uma simples adesão coletiva que oferece fundamento aos direitos humanos, bem como ao
direito à liberdade religiosa. Eles, decorrem da própria dignidade ontológica de todo ser
humano. Justamente, é a dignidade que converte o ser humano em um fim em si mesmo e esta
resultaria debilitada se não se reconhecessem os direitos e as liberdades essenciais para o
desenvolvimento pessoal, livre e responsável dos homens.42
Contudo, esses direitos por muitos anos foram compreendidos de maneira subjetiva,
atribuídos a um ser humano, mas foi entre os séculos VII a II A.C. que eles tomaram forma e,
nesse sentido, sua origem acompanha o surgimento da filosofia que entre outras coisas
41
OTADUY, Javier; VIANA, Antonio; SEDANO, Joaquín. Diccionario General de Derecho Canónico. Vol.
III. Madrid: Aranzadi, 2013, p. 212. 42
OTADUY, Javier; VIANA, Antonio; SEDANO, Joaquín. Diccionario General de Derecho Canónico. Vol.
III. Madrid: Aranzadi, 2013, p. 213.
30
substituía as explicações mitológicas a respeito do homem e do mundo, para uma
compreensão mais racional, centralizada no sujeito.
Foi o nascimento da filosofia que marcou uma nova etapa nos direitos humanos,
pois, a partir dela, o indivíduo começou a ousar exercer sua faculdade crítica racional da
realidade, tornando em si mesmo o principal objeto de análise e reflexão.43
Assim, o ser
humano passou a ser considerado como um ser dotado de liberdade e razão, nascendo dessa
forma, os fundamentos intelectuais para a compreensão da pessoa humana e para a afirmação
da existência de direitos universais a ela inerentes.44
Outro marco histórico na construção da noção de pessoa humana, bem como seus
direitos foi o nascimento das religiões. Essas, que têm por fundamento a “supremacia” dos
seres humanos e a igualdade essencial entre os homens livres e racionais, tudo isso contribuiu
para a formação da ideia da “sacralidade” do homem diante do mundo, detentor de, direitos
próprios e invioláveis decorrentes desta condição.
Neste sentido, aos poucos foi sendo desenvolvido um dos fundamentos principais
dos direitos humanos e da liberdade religiosa, que é a ideia da dignidade do homem e dos
direitos decorrentes a essa condição, dignidade esta que pode ser qualificada como
pertencentes a todas as pessoas em razão de sua natureza humana, dotada de inteligência e
vontade.
Quanto ao direito à liberdade religiosa, de fato ele não se funda na disposição
subjetiva da pessoa, mas na sua própria natureza. Portanto, se seu fundamento é a dignidade
da natureza humana, esse direito é inerente a toda pessoa humana, independente de quaisquer
outras circunstâncias, uma vez que se trata de um verdadeiro direito humano, e não de um
direito subjetivo.45
Neste contexto, é que se desenvolve a noção dos direitos humanos e, entre eles, o da
liberdade religiosa, fundamentados na noção de dignidade surgida principalmente com a
filosofia e as religiões. Por essa razão, é necessário investigar a fundamentação teológica,
43
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 8. ed. São Paulo: Saraiva,
2013, p. 22. 44
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 8. ed. São Paulo: Saraiva,
2013, p. 24. 45
OTADUY, Javier; VIANA, Antonio; SEDANO, Joaquín. Diccionario General de Derecho Canónico. Vol.
V. Madrid: Aranzadi, 2013, p. 166.
31
filosófica e histórica da construção desses direitos, para a partir dos conteúdos extraídos,
demonstrar a importância dos direitos humanos para a garantia da promoção humana e seus
anseios mais íntimos, dentre esses a possibilidade de relacionar-se com o “sagrado” na
comunidade social em que faz parte.
2.2 – A fundamentação teológica dos direitos humanos
A inquietação do homem em “conhecer a si mesmo” é um drama um tanto quanto
antigo, e essa inscrição já estava esculpida do templo de Delfos e, com o tempo, tornou-se
uma característica de todo o homem que, ao distinguir-se dos outros seres, se conhecendo, se
auto identificava como “homem”, ou seja, como um sujeito único, livre e racional.
Neste itinerário de autoconhecimento e conhecimento do outro, as religiões
desempenharam uma função primordial e acabaram por contribuir no desenvolvimento do
próprio direito do homem. De fato, a busca por respostas a respeito de sua existência foi um
verdadeiro impulso “intelectual” ao homem, desejo que se encontra no próprio “coração do
homem”. Inúmeras religiões fizeram parte desse processo de desenvolvimento, como nos
ensinou João Paulo II:
Basta um simples olhar pela história antiga para ver com toda a clareza como
surgiram simultaneamente, em diversas partes da terra animadas por culturas
diferentes, às questões fundamentais que caracterizam o percurso da existência
humana: Quem sou eu? Donde venho e para onde vou? Porque existe o mal? O que
é que existirá depois desta vida? Estas perguntas encontram-se nos escritos
sagrados de Israel, mas aparecem também nos Vedas e no Avestá; achamo-las
tanto nos escritos de Confúcio e Lao-Tze, como na pregação de Tirtankara e de
Buda; e assomam ainda quer nos poemas de Homero e nas tragédias de Eurípides e
Sófocles, quer nos tratados filosóficos de Platão e Aristóteles. São questões que
têm a sua fonte comum naquela exigência de sentido que, desde sempre, urge no
coração do homem: da resposta a tais perguntas depende efetivamente a orientação
que se imprime à existência.46
46
JOÃO PAULO II, Papa. Carta Encíclica Fides et Ratio. Disponível em: http://goo.gl/nsoTb1. Acesso em:
31/10/2015.
32
A partir dessa busca, nasce a justificativa religiosa dos direitos humanos, pois o
homem, ao se conhecer, procurou respostas em “Deus” e, se reconhecendo criatura, passou a
enxergar sua condição de homem distinta dos outros seres, ou seja, fundamentada na ideia da
criação do mundo por um Deus único e transcendente; ele, homem criatura, identificou-se
com uma posição eminente na ordem da criação; por isso, os direitos inerentes, inatos ao
homem, seriam justificados no próprio divino, que, dando a ele a possibilidade de se
conhecer, lhe revelaria sua condição de “sagrado”.
A narrativa bíblica a respeito da criação nos ajuda a entender esse processo de
autoconhecimento e identificação do homem com o “Deus Criador” e, a partir desse processo,
ocorre o surgimento das bases teológicas a respeito da própria condição humana, da dignidade
humana, bem como dos direitos humanos. O Livro de Gênesis narra esse fato, afirmando que
Deus criou o homem à sua imagem e semelhança:
Então Deus disse: Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. Que ele reine
sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos e
sobre toda a terra, e sobre todos os répteis que se arrastem sobre a terra. Deus criou
o homem à sua imagem; criou-o à imagem de Deus, criou o homem e a mulher.
(Gên. 1, 26-27).47
A partir dessa afirmação, surge a noção da “sacralidade” do homem, tendo em vista
que, nesta perspectiva, a ciência teológica afirma que o homem foi criado mediante uma ação
de amor de Deus, sendo que o mistério transcendente de Deus se reflete no mistério da pessoa
humana como imagem de Deus. Além disso, afirma a Teologia que a pessoa humana é dotada
de liberdade, apta a entrar em comunhão com os outros e chamada por Deus a um destino que
transcende as finalidades da natureza física. Este fato acontece mediante uma livre e gratuita
relação de amor com Deus, que se realiza na história.48
A princípio, a fundamentação dos direitos humanos, bem como da dignidade
humana, da liberdade religiosa, não se esgota apenas na justificativa teológica, que afirma
principalmente que esses direitos decorrem do fato de o homem ter sido criado à imagem e
semelhança de Deus.
47
Cf. Bíblia Sagrada, livro de Gêneses, capítulo 1, versículos 26 e 27. (Editora Ave Maria) 48
Comissão Teológica Internacional. Em busca de uma ética universal: Novo olhar sobre a Lei Natural.
Disponível em: http://goo.gl/YT7qIU. Acesso em 07/11/2015.
33
Hoje em dia, o reconhecimento desses direitos não se fundamenta somente em
questões de cunho religioso-teológico, pois, principalmente após a Declaração Universal dos
Direitos Humanos, foram ampliados os conceitos dos direitos humanos e seus fundamentos
esses que se expandiram para temáticas além dos credos religiosos, como bem nos ensinou
Jónatas Machado:
A ideia de dignidade da pessoa humana apresenta-se hoje imbuída de um conteúdo
político-moral que, embora escorado na concepção judaico-cristã do homem criado
à imagem e semelhança de Deus – isto é, portador de uma Imago Dei e enriquecido
com os contributos da teológica católica e protestante, prescinde atualmente de
qualquer vínculo confessional específico, sendo inadmissível a sua colocação ao
serviço de uma promoção de uma particular concepção teológica da verdade
objetiva ou de bem comum. Também ela sofreu, a partir do Iluminismo, um
processo de racionalização e secularização que a coloca presente num nível de
generalidade suficientemente elevado para abarcar as ideias de livre
desenvolvimento pessoal e social do ser humano, nas suas dimensões físicas,
intelectuais e espirituais, e de garantia de recursos materiais que possibilitem o
acesso a um nível mínimo de existência humanamente digna a todos os indivíduos.
Assim entendida, a dignidade humana não é propriedade da religião em geral ou de
uma confissão religiosa em particular.49
Há, portanto, outras respostas que justificam a fundamentação dos direitos humanos
e dos decorrentes a ele, contudo, todas as “fundamentações” – teológica, filosófica, histórica –
não são excludentes e, diante de um processo histórico, acabam por se complementarem.
Nesse sentido, a doutrina jurídica indica que os direitos humanos foram solidificados ao longo
do tempo a partir do desenvolvimento de dois conceitos básicos, quais sejam: pessoa humana
e sua dignidade, que estavam presentes em todas as fundamentações.
Por essa razão, para a compreensão dos direitos humanos e, principalmente, a da
liberdade religiosa como um direito fundamental, é necessário um mergulho profundo no
desenvolvimento filosófico dos conceitos de pessoa humana e sua dignidade, bem como na
própria solidificação história dos direitos humanos. Uma vez que esses dados são de suma
importância para a posterior proposta de colaboração entre as religiões e os Estados, pois, tais
conceitos, constituem as bases para a proteção efetiva do direito humano e fundamental da
liberdade religiosa.
49
MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva:
dos direitos da verdade aos direitos dos cidadãos. Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p. 193.
34
2.3 – A fundamentação filosófica dos direitos humanos: o conceito de pessoa
Como visto, há uma relação direta entre direitos humanos e dignidade da pessoa
humana; contudo, quando se fala de pessoa humana, é impossível deixar de lado o conceito de
pessoa. A origem etimológica da palavra “pessoa” encontra-se no termo latino persona, que
se referia à máscara que os atores utilizavam em suas representações teatrais.
Porém, ao longo dos anos, foi se desenvolvendo entre os gregos uma reflexão
antropológica a partir de uma perspectiva “cosmológica”, segundo a qual o ser humano era
compreendido como a realidade natural mais elevada. Nem os gregos e nem os romanos
conseguiram, porém, perceber nele a realidade única, original, particular e concreta do ser
pessoa.50
É a perspectiva cosmológica grega que possibilitará a primeira abordagem da
dignidade do homem, que, segundo Aristóteles, é mais evidente naqueles que desenvolvem de
forma destacada a atividade intelectual própria da alma humana, como é o caso dos filósofos.
Segundo as tradições platônica e aristotélica, a dignidade do homem seria proporcional à sua
capacidade de pensar e conduzir a própria existência desde a razão.
Na antiguidade clássica, a ideia de dignidade estava relacionada com a posição social
que o indivíduo ocupava na sociedade e o seu grau de reconhecimento pelos demais membros
da comunidade, de modo que este conceito possuía uma intepretação restrita. Além disso, a
dignidade era relacionada com um grupo de “homens iguais em dignidade”, portanto, não se
estendia a todo “homem”. É nesse sentido que se falava em uma quantificação e modulação
da dignidade, admitindo a existência de pessoas mais ou menos dignas.51
Coube ao Cristianismo potencializar a noção de dignidade ao conferir um senso de
liberdade, igualdade e fraternidade, ou seja, dignidade a todos os homens. Esse fato é visto de
maneira clara na Carta de São Paulo aos Gálatas, quando o apóstolo afirma que “todos são
50
SOARES, André Marcelo M. Um breve apontamento sobre o conceito de dignidade da pessoa humana.
Disponível em: http://goo.gl/AdUzhN. Acesso em 10/11/2015. 51
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988.
Porto Alegre: Revista do Advogado, 2008, p. 21.
35
filhos de Deus pela fé em Jesus Cristo, não há, portanto, mais distinção entre judeu e grego,
escravo e livre, nem mesmo entre homem e mulher, pois todos são um em Cristo Jesus.”52
Ora, o Cristianismo consolidou a ideia de pessoa com sua dignidade e direitos,
atribuindo o valor de cada pessoa, sustentando que a própria vida é sagrada, ou seja, o homem
é o ser supremo sobre a terra, distinto das demais criaturas.53
Assim, com o Cristianismo o
conceito de dignidade se afasta da ideia de qualidade ou função social, passando a se
fundamentar na própria natureza do homem, simplesmente pelo fato de ele ser homem. Na
concepção cristã, a pessoa é criada à imagem e semelhança de Deus.
Após o advento do Cristianismo, outras ideias a respeito do conceito de pessoa, bem
como de dignidade humana, foram sendo construídas e consolidadas. Sucessivamente esses
conceitos foram sendo “ampliados” e de certa forma utilizados na construção do pensamento
jurídico a respeito dos direitos inerentes à pessoa humana; por isso, apresentaremos
brevemente algumas contribuições de filósofos a respeito da “noção” acerca da pessoa
humana.
2.3.a – O pensamento de Boécio
O filósofo romano Boécio (480-524) em muito colaborou na definição do conceito
de pessoa. Ele afirmava que pessoa é uma substância individual de natureza racional. Assim,
desenvolveu a ideia de que o homem – ser concebido como imago Dei – além de ter sido
criado à imagem e semelhança de Deus, está, desde a sua criação, relacionado com o seu
criador. Isto quer dizer, para Boécio, que cada homem, em particular, foi criado por Deus não
seguindo o modelo da natureza, mas unicamente o modelo da própria realidade divina, e é
nessa afirmação que repousa a dignidade humana.54
52
Bíblia Sagrada, Carta de São Paulo aos Gálatas, capítulo 3, versículos 26 a 28. (Editora Ave Maria) 53
LAFER, Celso. A reconstrução histórica dos direitos humanos. São Paulo: Cia das Letras, 1998, p. 119. 54
SOARES, André Marcelo M. Um breve apontamento sobre o conceito de dignidade da pessoa humana.
Disponível em: http://goo.gl/AdUzhN. Acesso em 02/11/ 2015.
36
Boécio considera que há duas dimensões no ser humano, contudo, unidas e
inseparáveis.55
Além disso, no homem, a personalidade existe como individualidade, formada
por um corpo animado que é estruturado no espírito; desta maneira, em todo homem, em toda
pessoa humana, o mundo adquire sentido na ideia de que a pessoa humana é uma unidade, um
todo, e não uma parte de um todo.56
A definição de Boécio inclui o aspecto corpóreo, biológico e genético da pessoa, uma
vez que a porção corpórea não pode ser colocada de lado para que se considere somente a
autoconsciência, a racionalidade e o juízo moral como elementos constitutivos da pessoa.
Assim, a pessoa humana é unidade de corpo e espírito e não pode ser privada nem do
componente biológico, nem daquele que diz respeito ao espírito.57
Enfim, pode-se dizer que a ideia do Personalismo de Boécio vê a pessoa como
totalidade, de corpo e espírito, em todas as suas dimensões, a física, a psicológica, a social, a
espiritual. Portanto, Boécio identificava pessoa à substância individual da natureza racional;
desta maneira, o conceito de pessoa já não seria sua exterioridade, mas, sim, a própria
substância do homem, ou seja, a forma que molda a matéria e que dá ao ser de determinado
ente individual, as características de permanência e invariabilidade. A substância neste caso é
a característica própria de um ser.58
2.3.b – O pensamento de Santo Tomás de Aquino
Santo Tomás (1225-1274), foi outro grande pensador a respeito do conceito de
pessoa, suas principais ideias estão expostas na Suma Teológica. O doutor angélico
considerava que a natureza humana repousava em uma base dúplice: espiritual e corpórea,
acreditava que a natureza humana consistia no exercício da razão e é através desta esperava a
submissão às leis naturais, emanadas diretamente da autoridade divina. A pessoa humana e
55
BERTI, Enrico. et al. Persona e personalismo. Padova: Gregoriana Libreria Editrice, 1992, pgs. 47 e 48. 56
SGRECCIA, E. Manual de bioética I: fundamentos e ética biomédica. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2002, p.
79. 57
POSSENTI, V. Il principio-persona. Roma: Armando, 2006, p. 25. 58
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 8. ed. São Paulo: Saraiva,
2013, p. 32.
37
sua natureza por Santo Tomás é compreendida como substância individual de natureza
racional59
e unidade substancial de alma e corpo,60
substantiam individuam rationalis
naturae.61
Estes conceitos possibilitaram a compreensão e o estudo da dignidade.
Quanto à liberdade humana, Santo Tomás traz uma visão no sentido positivo, ou
seja, liberdade para algo, realizar alguma coisa. Não se trata, porém, de uma liberdade sem
restrições; mesmo sendo uma possibilidade, ela existe dentro de alguns pressupostos de
ordem ontológica e ética.
Em relação à ordem ontológica, a liberdade do homem se encontra com uma série de
realidades preexistentes, internas e externas, que condicionam sua decisão dentro de
determinados limites e circunstâncias. Quanto à ordem ética, na tradição tomista, ela é o
pressuposto fundamental que constitui a responsabilidade moral, que liga a exigência de
perfectibilidade dentro das circunstâncias concretas da personalidade do sujeito – formação,
intenções, hábitos, e outros – nos limites impostos por Deus a sua natureza.62
Desta maneira, a implicação da liberdade nas condições concretas da pessoa e sua
influência decisiva para a realização da plenitude ontológica de sua natureza faz da liberdade
um elemento essencial da dignidade pessoal do homem, como valor em si mesmo e, portanto,
ela não pode ser considerada como simples meio para a realização da pessoa, uma vez que,
para o desenvolvimento da pessoa, exige-se o pleno desenvolvimento da liberdade.
No pensamento tomista, para o respeito à dignidade da pessoa é indispensável o
respeito a sua liberdade. Impedir ou suprimir de algum modo essa esfera seria violar a ordem
moral, o que, consequentemente, feriria a dignidade da pessoa humana.63
Santo Tomás
considerava ainda que a liberdade era universal, uma vez que o homem é livre por natureza,
pelo simples fato de ser homem. Ser homem livre equivale a ser homem digno. No ser
59
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica – Obras completas. Trad. Francisco Barbado Viejo. Madrid: BAC,
1957, q. 29, a. 4. 60
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica – Obras completas. Trad. Francisco Barbado Viejo. Madrid: BAC,
1957, I, q. 76, a. 1. 61
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica – Obras completas. Trad. Francisco Barbado Viejo. Madrid: BAC,
1957, q. 29, a. 4. 62
VERA URBANO, Francisco de Paula. La Libertad Religiosa como Derecho de La Persona. Madrid:
Instituto de Estudios Políticos, 1971, p. 69. 63
VERA URBANO, Francisco de Paula. La Libertad Religiosa como Derecho de La Persona. Madrid:
Instituto de Estudios Políticos, 1971, p. 70.
38
humano, a dignidade, a razão, a liberdade, a personalidade, são a mesma coisa, pois falar de
dignidade humana é dizer que o homem é naturalmente livre e existe em razão de si mesmo.64
Portanto, sobre a concepção de pessoa – substância individual de natureza racional –
é que se iniciou a elaboração do princípio da igualdade essencial de todo ser humano. Essa
igualdade de essência da pessoa é que forma o núcleo do conceito universal de direitos
humanos e fundamentais. Assim, o pensamento cristão foi fundamental para o
desenvolvimento das ideias acerca dos direitos inatos da pessoa humana, e é por meio da
noção de que todos os indivíduos são iguais em essência que se inicia o conceito de direitos
humanos universais.65
2.3.c – O pensamento de Pico della Mirandola
A grande contribuição trazida pelo filósofo italiano Giovanni Pico della Mirandola
(1463-1494) foi a ideia do homem como um grande milagre da criação: magnum miraculum
est homo, uma vez que ele identificava nos homens um valor próprio e inato, sendo estes a
grande criação do universo, por isso o verdadeiro e extraordinário milagre divino.
Segundo Pico della Mirandola, o homem é o grande milagre porque difere das
demais criaturas, que já nascem com um destino traçado, ou seja, destinadas a serem o que
são e não podem ser outra coisa. O homem, porém, pode inventar a si próprio, pode construir
a si mesmo,66
sendo esta liberdade de construção, “criação”, o que confere a ele uma
característica própria e singular. Com isso, para realizar a si mesmo, ou seja, se determinar, o
homem foi colocado no centro do mundo, em uma posição que lhe permite buscar o mais
adequado para definir sua própria essência.
64
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica – Obras completas. Trad. Francisco Barbado Viejo. Madrid: BAC,
1957, 2-2, q. 64 a.3. 65
FACHIN, Melina Girard. Fundamentos dos Direitos Humanos: Teoria e Práxis na Cultura da Tolerância.
Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 32. 66
PICO DELLA MIRANDOLA, Giovanni. Discurso sobre a dignidade do homem. Trad. Maria de Lurdes
Sirgado Ganho. Lisboa: Edições 70, 2001, p. 49.
39
Em sua obra “Discurso sobre a dignidade do homem”, Pico della Mirandola
apresenta a ideia da dignidade do homem a partir da “reconstrução” do diálogo entre Deus e
Adão. Eis, segundo ele, o fundamento da dignidade:
Coloquei-te no meio do mundo para que daí possas olhar melhor tudo o que há no
mundo. Não te fizemos celeste nem terreno, nem mortal nem imortal, a fim de que
tu, árbitro e soberano artífice de si mesmo, te plasmasses e te informasses, na
forma que tiveres seguramente escolhido. Poderás degenerar até aos seres que são
as bestas, poderás regenerar-te até às realidades superiores que são divinas, por
decisão do teu ânimo.67
Enfim, no pensamento de Pico della Mirandola, a dimensão de autonomia e
autodeterminação dos homens, isto quer dizer, a liberdade e dignidade humana estão
relacionadas com o fato de que os homens são capazes de dirigir sua vida conforme suas
inspirações, desejos e, assim, construir a si mesmo, escolhendo entre as diversas
possibilidades que possui.
2.3.d – O conceito de pessoa a partir de Immanuel Kant
A partir do século XVIII, principalmente com a contribuição de Immanuel Kant
(1724-1804), surgem novas perspectivas para fundamentar eticamente o conceito de
dignidade humana e consequentemente a noção de pessoa humana. Segundo Kant, a
dignidade humana encontra-se na capacidade de autonomia, ou seja, no fato de ser o homem a
única criatura capaz de se submeter livremente às leis morais que são reconhecidas como
procedentes da razão prática.68
Norberto Bobbio, em sua célebre obra “A era dos direitos”, nos ensina a respeito de
Kant:
67
PICO DELLA MIRANDOLA, Giovanni. Discurso sobre a dignidade do homem. Trad. Maria de Lurdes
Sirgado Ganho. Lisboa: Edições 70, 2001, p. 56. 68
SOARES, André Marcelo M. Um breve apontamento sobre o conceito de dignidade da pessoa humana.
Disponível em: http://goo.gl/AdUzhN. Acesso em 02/11/2015.
40
Definindo o direito natural como o direito que todo homem tem de obedecer
apenas à lei de que ele mesmo é legislador, Kant dava uma definição da liberdade
como autonomia, como poder de legislar para si mesmo. De resto, no início da
Metafísica dos costumes, escrita na mesma época, afirmava solenemente, de modo
apodítico – como se a afirmação não pudesse ser submetida à discussão –, que,
uma vez entendido o direito como faculdade moral de obrigar outros, o homem tem
direitos inatos e adquiridos, e o único direito inato, ou seja, transmitido ao homem
pela natureza e não por uma autoridade constituída, é a liberdade, isto é, a
independência em face de qualquer constrangimento imposto pela vontade do
outro, ou mais uma vez, a liberdade como autonomia.69
Assim, o homem é o único ser que existe como um fim em si mesmo, e não como
meio a se atingir algo. Afirmava Kant:
O homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como fim em si
mesmo, não só como meio para o uso arbitrário dessa ou daquela vontade. Pelo
contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas
que se dirigem a outros serem racionais, ele tem sempre de ser considerado
simultaneamente como o fim.70
O homem, portanto, é um fim em si mesmo, é uma pessoa. Por meio dessa ideia,
Kant atribuía um valor relativo às coisas, em contraposição ao valor absoluto da dignidade
humana, iniciando, assim, um novo período no conceito de pessoa, ou seja, o homem é o
único ser no mundo dotado de vontade, isto é, de capacidade de agir livremente, sem ser
conduzido pela invencibilidade do instinto.
Luís Roberto Barroso, refletindo acerca da influência do pensamento kantiano na
construção do conceito de liberdade e dignidade da pessoa, nos ensina:
Os dois outros conceitos imprescindíveis são os de autonomia e dignidade. A
autonomia expressa a vontade livre, a capacidade do indivíduo de se
autodeterminar, em conformidade com a representação de certas leis. Note-se bem
aqui, todavia, a singularidade da filosofia kantiana: a lei referida não é uma
imposição externa (heterônoma), mas a que cada indivíduo dá a si mesmo. O
indivíduo é compreendido como um ser moral, no qual o dever deve suplantar os
instintos e os interesses. A moralidade, a conduta ética consiste em não se afastar
do imperativo categórico, isto é, não praticar ações senão de acordo com uma
máxima que possa desejar seja uma lei universal. A dignidade, na visão kantiana,
69
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. 21. tiragem. Rio de Janeiro: Elsevier,
2004. p. 49. 70
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Paulo Quintela 2. ed. São Paulo:
Coleção Os Pensadores, Abril, 1984, p. 134.
41
tem por fundamento a autonomia. Em um mundo no qual todos pautem a sua
conduta pelo imperativo categórico – no reino dos fins, tudo tem um preço ou uma
dignidade. As coisas que têm preço podem ser substituídas por outras equivalentes.
Mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e não pode ser substituída por
outra equivalente, ela tem dignidade. Tal é a situação singular da pessoa humana.
Portanto, as coisas têm preço, mas as pessoas têm dignidade. Como consectário
desse raciocínio, é possível formular uma outra enunciação do imperativo
categórico: toda pessoa, todo ser racional existe como um fim em si mesmo, e não
como meio para o uso arbitrário pela vontade alheia. 71
Com isso, é a partir dos fundamentos da liberdade e dignidade em Kant que se
assenta todo o valor axiológico, bem como toda a ética de modo geral, ou seja, o mundo das
normas, as quais, contrariamente ao que sucede com as leis naturais, apresentam-se sempre
como preceitos suscetíveis de consciente violação. Assim, fundado na liberdade, o
individualismo emerge como embasamento dos direitos humanos, sendo ele parte integrante
da lógica da modernidade que concebe a liberdade como a faculdade de autodeterminação de
todo ser humano.72
De fato, o pensamento de Kant a respeito do conceito de pessoa humana e sua
dignidade influenciaram diretamente os pensadores da modernidade – a partir do ano de 1776
– principalmente no que diz respeito à construção dos direitos inatos à pessoa humana, entre
eles os direitos humanos.
Duas são as ideias centrais que nortearam o direito após Kant, quais sejam: as teorias
contratualistas e a laicidade do direito natural. Essas ideias estão claramente presentes nas
temáticas da liberdade, autonomia e individualismo encontradas nas primeiras declarações de
direitos na América do Norte, como na Declaração de Direitos do Povo da Virgínia (1776), na
Constituição Americana (1787) e também na Declaração Francesa dos Direitos do Homem e
do Cidadão (1789).
O século XVIII trouxe uma nova visão a respeito do ser humano, seus direitos e
dignidade frente à autoridade estatal. De fato, a partir do pensamento de Kant e das
71
BARROSO, Luís Roberto. A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo:
Natureza Jurídica, Conteúdos Mínimos e Critérios de Aplicação. Versão provisória para debate público.
Mimeografado, dezembro de 2010. Disponível em: http://goo.gl/XE2C24. Acesso em 05/11/2015. 72
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 8. ed. São Paulo: Saraiva,
2013, p. 37.
42
Declarações e Constituições acima citados, um tempo novo a respeito da teoria dos direitos
humanos e fundamentais, foi sendo construído.
Após este período histórico, a compreensão da pessoa passou a se relacionar com o
fato de o homem ser a única criatura que dirige a sua vida em função de suas preferências
valorativas. Ou seja, o homem como sendo o legislador e sujeito universal, uma vez que
aprecia os valores éticos e submete-se voluntariamente a essas normas valorativas.
Porém, mesmo formando um sistema correspondente à hierarquia de valores,
prevalente no meio social, essa hierarquia nem sempre coincide com aquilo que prevê as leis.
Por isso, mesmo com o avanço do conceito de pessoa e de sua dignidade, bem como dos
direitos inerentes a ela, sempre houve certa tensão entre a consciência jurídica da coletividade
e as normas pelo Estado.73
Houve, por fim, outras etapas na construção dos direitos humanos após a era da
“autonomia” e das declarações, mas, sem dúvida, a partir deste momento histórico é que os
direitos humanos começaram a ser identificados como “valores” indispensáveis para a
convivência humana.
2.3.e – O conceito de pessoa a partir do século XX
Após o marco histórico citado acima a respeito da construção do conceito de pessoa,
da sua correspondente dignidade e da solidificação dos direitos inerentes a ela, como o da
liberdade religiosa, inicia-se, a partir do século XX, um novo tempo a respeito do conceito de
pessoa humana, bem como dos direitos humanos.
Fábio Comparato nos esclarece a respeito do início desse novo tempo:
Reagindo contra a crescente despersonalização do homem no mundo
contemporâneo, como reflexo da mecanização e burocratização da vida em
sociedade, a reflexão filosófica da primeira metade do século XX acenou o caráter
único e, por isso mesmo, inigualável e irreprodutível da personalidade individual.
73
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 8. ed. São Paulo: Saraiva,
2013, p. 39.
43
Confirmando a visão da filosofia estoica, reconheceu-se que a essência da
personalidade humana não se confunde com a função ou papel que cada qual
exerce na vida.74
Desta maneira, o caráter único e insubstituível de cada ser humano, portador de um
valor próprio, demonstrou que a dignidade da pessoa existe singularmente em todo indivíduo
e que, por conseguinte, nenhuma justificativa de utilidade pública ou reprovação social pode
legitimar violações à dignidade, como por exemplo, a pena de morte.75
Os pensadores da pós-modernidade consideram que a dignidade humana nada tem a
ver com os esquemas assinalados anteriormente, nem com as qualidades intelectuais – a razão
– nem com os pressupostos metafísicos – ontologia do ser humano, e nem com a capacidade
moral – autonomia – que buscavam fundamentar a dignidade humana.
Esses pensadores consideram que a dignidade humana consistia em uma ação
institucional segundo a qual determinadas sociedades, através do processo democrático,
decidiriam de forma contingente e convencional – o único modo possível – o grau de sua
utilidade ou eficácia para resolver conflitos, sendo a dignidade uma consequência dessa ação.
De certa forma, quem trouxe um caráter universal aos direitos inerentes à pessoa
humana, determinando, assim, uma esfera de proteção inviolável da dignidade da pessoa
humana foi a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Essa consagrou o princípio
de que todo o homem tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa,
independente do resultado ou convenção de determinado grupo social.
De fato, no século XX houve graves problemas que suscitaram a “necessidade” de
uma construção de uma carta universal de proteção aos direitos da pessoa humana. Os
horrores das guerras mundiais e dos “novos” problemas sociais, morais, éticos, ambientais e
econômicos, provocados pelo avanço tecnológico, industrial e científico, estão entre alguns
motivos que contribuíram para a construção desse instrumento universal.
74
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 8. ed. São Paulo: Saraiva,
2013, p. 40. 75
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 8. ed. São Paulo: Saraiva,
2013, p. 43.
44
Além disso, mesmo após os longos processos de “conceituação” da pessoa humana e
da proteção jurídica dos direitos do homem a partir da Declaração Universal dos Direitos
Humanos, ainda há uma crescente violação dos direitos da pessoa humana, ou seja, inúmeros
direitos, inclusive os referentes à liberdade religiosa, estão sendo violados a todo o momento.
Enfim, existem ainda inúmeros problemas referentes à pessoa humana e seus direitos
que suscitam uma proteção efetiva, tendo em vista que o avanço histórico – tecnológico,
científico, cultural, jurídico – no qual caminha a humanidade nem sempre vem acompanhado
do progresso da proteção dos direitos referentes à pessoa humana. Por isso, faz-se necessária a
solidificação da concepção de que a pessoa humana e seus direitos consistem na fonte
primária para a construção dos valores morais, éticos e jurídicos da sociedade.
Portanto, toda a evolução conceitual da pessoa humana e sua dignidade produziram
uma melhor consciência e proteção dos direitos humanos; contudo, este desenvolvimento
“filosófico” e jurídico, que culminou na Declaração Universal dos Direitos Humanos, não
pode ficar refém de políticas públicas ou interesses privados, uma vez que o progresso deve
ser utilizado como ferramenta de promoção humana, visando à prevenção de horrores e
violações à dignidade da pessoa humana ainda presente na sociedade.
2.4 – A fundamentação histórica dos direitos humanos
A compreensão da dignidade da pessoa humana, bem como dos direitos inerentes a
ela, muitas vezes se deu após violações extremas a essa dignidade, como por exemplo:
violências, torturas, explorações, massacres, mutilação em massa entre outros, atos esses que
constituem, de fato, uma afronta aos direitos da pessoa humana. Houve momentos em que
essas violações eram institucionalizadas, o que dava certa “legitimidade” para esse tipo de
conduta.
A partir da evolução intelectual, social e científica da sociedade, foi sendo construída
ao longo da história certa colaboração para o aprofundamento dos temas referentes à pessoa
45
humana, e neste aspecto, como vimos, em muito colaborou a Teologia e a Filosofia na
fundamentação da dignidade da pessoa humana, bem como dos direitos inatos a ela.
Porém, foi longo o processo histórico que reconheceu que as instituições devem ser
utilizadas para o bem do homem, e não a serviço dos líderes. Pode-se dizer que um pontapé
inicial contra a centralização do poder e, consequentemente, contra os abusos cometidos pelas
autoridades em relação à violação dos direitos da pessoa humana, foi dado com a Magna
Carta de 1215.
A Magna Carta (Grande Carta das liberdades, ou concórdia entre o rei João e os
barões para a outorga das liberdades da Igreja e do rei Inglês) limitou o poder dos monarcas
da Inglaterra, impondo alguns direitos como o respeito ao devido processo legal, a presunção
de inocência, a garantia de propriedade e outros.
Aos poucos, a partir da Magna Carta, foi sendo construída a ideia da autonomia da
sociedade civil e da liberdade do homem frente à autoridade estatal. Destaca-se a força que
ganhou a liberdade, quer seja econômica, civil e religiosa, passando ela a ser um fundamento
importante dos direitos neste período.76
Outros documentos são de fundamental importância para a construção dos direitos
dos homens; dentre esses, a lei inglesa de Habeas Corpus (1679), criada para proteger a
liberdade de locomoção, acabou tornando-se matriz de todos os demais instrumentos jurídicos
que vieram a ser criados posteriormente que visavam à proteção das liberdades. Destaca-se
também, devido a sua importância a Bill of Rights (1689), que reafirmou alguns direitos
fundamentais, como o direito de petição e a proibição de penas inusitadas ou cruéis.
Também, fundamentadas no conceito liberdade-individualismo, surgiram as
primeiras declarações de direitos na América do Norte, dentre essas a Constituição Americana
(1776) e a Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789).
Contudo, foi a Declaração de Direitos do Povo da Virgínia, de 16 de junho de 1776,
que constitui o registro de nascimento dos direitos humanos na história, ou seja, a que
expressou claramente o reconhecimento de direitos inatos ao homem, como liberdade,
76
FACHIN, Melina Girard. Fundamentos dos Direitos Humanos: Teoria e Práxis na Cultura da Tolerância.
Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 41.
46
propriedade, igualdade, reconhecendo, em síntese, que todos os homens são igualmente
vocacionados à liberdade.
A influência desse documento pode ser encontrada em outras declarações de direitos,
como na Declaração de Independência dos Estados Unidos (1776), na Carta dos Direitos dos
Estados Unidos (1789) e na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão francesa
(1789). Também há de se considerar a influência desses ideais na Revolução Francesa (1789-
1799), onde foram reconhecidos os direitos à igualdade e liberdade de todos os seres
humanos, a partir da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.77
De fato, pode-se dizer que a origem da fundamentação histórica dos direitos dos
homens se encontra nas declarações citadas acima, que consagraram a ideia de que a
“Constituição” é uma garantia para os direitos humanos e para a dignidade humana, ao
proteger direitos como da liberdade, da segurança e da propriedade, sendo estes direitos o
eixo central das “Constituições”.
Outro detalhe importante é que a história da fundamentação dos direitos humanos e
fundamentais – amparados pelas ideias de pensadores como Locke, Montesquieu e Rousseau
– surgiu como reação e resposta aos excessos dos regimes absolutistas, ou seja, como
tentativa de impor controle e limites à abusiva atuação do Estado.
Desta maneira, esses direitos visavam à autonomia e liberdade do indivíduo. Assim,
desde o início a ideia principal da proteção dos direitos dos homens seria limitar o poder do
Estado, o que significaria “liberdade”, surgindo o primado da liberdade com a supremacia dos
direitos e a ausência de previsão de qualquer direito, social, econômico e cultural que
dependesse da intervenção do Estado.78
Portanto, a evolução histórica dos direitos humanos possui como cume as
declarações de direito americana e francesa, pois essas constituíram uma novidade em relação
aos direitos humanos e aos direitos fundamentais, pois marcam a passagem das afirmações
77
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 8. ed. São Paulo: Saraiva,
2013, p. 62. 78
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 12. ed. São Paulo:
Saraiva, 2011, p. 198.
47
filosóficas para um verdadeiro sistema de direitos humanos positivos,79
que visavam à
proteção de direitos inatos aos homens, dentre eles o da liberdade religiosa.
2.5 – A positivação dos direitos humanos
Com a ideia de que os homens, em seu estado de natureza, são iguais e livres,
surgiram as declarações acima citadas, nascidas sobre o forte alicerce de uma concepção
universal dos direitos humanos e, aos poucos, os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade,
presentes nesses documentos, foram se expandindo para outras regiões do globo terrestre.
Porém, a evolução no campo da positivação dos direitos fundamentais foi um
processo lento, que teve seu ápice com a afirmação do Estado de Direito, influenciado
diretamente pelo pensamento do filósofo inglês John Locke, que, no século XVIII, foi o
precursor no reconhecimento de direitos naturais e inalienáveis do homem.
O resultado das ideias de Locke, com a formação do Estado de Direito, contribuiu
para o nascimento das primeiras noções dos direitos humanos,80
da maneira que
compreendemos hoje esses direitos. A ideia central neste período era o de que os homens
possuíam direitos naturais, como liberdade, propriedade e, em virtude disso, o Estado estava
proibido de usurpar tais direitos. Pode-se dizer que este primeiro momento foi marcado pela
liberdade do indivíduo em relação ao Estado.
Passado este primeiro período, o nascimento da positivação dos direitos humanos
deparou-se com um intenso progresso técnico e científico, o que ocasionou um choque entre
“desenvolvimento econômico” e “proteção dos direitos humanos”, ou seja, o fato de existir
patrões e empregados – iguais e com certa liberdade econômica – ao invés de gerar
“igualdade”, construiu um verdadeiro abismo, pois agora existia uma classe de proletariados
pobres diante de uma elite rica.
79
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 8. ed. São Paulo: Saraiva,
2013, p. 62. 80
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2005, p. 52.
48
Surgiram assim diversos conflitos entre “classes”, essas que acabaram inaugurando
uma nova fase na positivação dos direitos dos homens, onde o Estado Liberal passa a ser um
Estado Social, sendo que agora não cabia mais apenas garantir a liberdade, mas, também,
seria o Estado o responsável por realizar a justiça social incluindo as exigências econômicas e
sociais dos trabalhadores.
Um passo decisivo tanto na solidificação dos direitos humanos quanto na
responsabilização do Estado em realizar a justiça social foram os documentos nascidos neste
período. Destacam-se a Constituição Francesa de 1848, a Carta Constitucional Mexicana de
1917 e a Constituição Alemã de Weimar de 1919.
Portanto, pode-se dizer que o processo de positivação dos direitos humanos
relacionou-se diretamente com a dimensão social do Estado, principalmente diante da
necessidade de satisfazer os direitos econômicos, sem deixar de considerar os “antigos”
direitos já conquistados, como liberdade e igualdade. Todo esse processo foi solidificado
principalmente a partir do século XX.
2.6 – A internacionalização dos direitos humanos
Considera-se que a internacionalização dos direitos humanos teve início na segunda
metade do século XIX, chegando ao ápice com o final da segunda guerra mundial. A
construção desse processo teve três pilares: o direito humanitário, a luta contra a escravidão e
a regulação dos direitos do trabalhador.
A Convenção de Genebra de 1864, destinada a estabelecer o conjunto das leis e
costumes da guerra, no intuito de amenizar tanto as dores dos soldados como proteger as
populações civis atingidas em conflitos, foi a primeira legislação contendo o chamado direito
humanitário.
Outro documento importante foi o Ato Geral da Conferência de Bruxelas de 1890,
que estabeleceu as primeiras regras interestatais de repressão ao tráfico de escravos.
49
Posteriormente, os direitos dos trabalhadores passaram a ser objeto de proteção com a criação
da Organização Internacional do Trabalho em 1919.
A Organização Internacional do Trabalho, criada após a Primeira Guerra Mundial,
com a finalidade de promover padrões internacionais de condições de trabalho e bem-estar,
sessenta anos após sua criação já contava com uma centena de convenções internacionais,
promulgadas e aderidas pelos Estados, que se comprometiam a assegurar um padrão justo e
digno nas condições de trabalho.81
Outro organismo importante para o desenvolvimento dos direitos dos homens foi a
Liga ou Sociedade das Nações criada em 1919 após a primeira guerra. Tinha entre os seus
objetivos promover a cooperação internacional, alcançar a paz e a segurança internacional,
condenar agressões externas contra a integridade territorial e a independência política dos
seus membros.82
Enfim, essas instituições ajudaram a romper a noção de soberania nacional absoluta
dos Estados, na medida em que admitiram intervenções para a proteção dos direitos humanos.
Assim, aos poucos surge a ideia de que o indivíduo não é apenas objeto, mas também sujeito
de Direito Internacional. Desta forma, começaram a se consolidar a capacidade processual
internacional dos indivíduos, bem como a concepção de que os direitos humanos não mais se
limitam ao Estado.83
2.7 – O mundo após a segunda guerra: a Declaração Universal dos Direitos Humanos
O processo de solidificação dos direitos humanos teve grande êxito após a segunda
guerra mundial, uma vez que a humanidade estava arrasada com os horrores provocados pela
guerra, como holocausto, bomba atômica e outras atrocidades. Havia uma necessidade
81
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 12. ed. São Paulo:
Saraiva, 2011, p. 171. 82
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 12. ed. São Paulo:
Saraiva, 2011, p. 172. 83
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 12. ed. São Paulo:
Saraiva, 2011, p. 174.
50
urgente de uma resposta às barbaridades, que deveria ser construída principalmente por meio
de políticas internacionais e instrumentos jurídicos capazes de proteger e promover os direitos
dos homens.
Neste processo, a criação do Tribunal de Nuremberg (1945/1946) significou um
momento histórico de internacionalização dos direitos humanos, pois a este Tribunal Militar
Internacional foi dada a competência de julgar crimes cometidos na segunda guerra,
atribuindo responsabilidades individuais àqueles que cometeram crime contra a paz, crimes de
guerra, crimes contra a humanidade. Assim, a criação desse Tribunal consolidou a ideia da
limitação da soberania nacional e reconheceu que os indivíduos possuem direitos inatos que
devem ser protegidos pelo Direito internacional.84
Porém, o marco histórico para os direitos humanos, ou seja, da positivação dos
direitos do homem, surgiu com a criação da Organização das Nações Unidas (ONU) em 1945
e, consequentemente, com a posterior Declaração dos Direitos Humanos em 1948. A ONU ao
ser criada possuía três objetivos centrais: manter a paz e a segurança internacional, fomentar a
cooperação internacional nos campos social e econômico e promover os direitos humanos no
âmbito universal.
As Nações Unidas (ONU), diferente da Liga das Nações85
– que não passava de um
clube de Estados com liberdade de ingresso e retirada com ou sem justificativa –, nasciam
com o objetivo claro de agregar necessariamente todas as Nações do globo em vista da defesa
da dignidade da pessoa humana86
e dos direitos inerentes aos homens.
Desta maneira, visando à proteção dos direitos inatos da pessoa humana, as Nações
Unidas foi se organizando em diversos órgãos, como por exemplo: Assembleia Geral;
Conselho de Segurança; Corte Internacional de Justiça; Conselho Econômico e Social;
Conselho de Tutela, etc. Além disso, outros órgãos e comissões foram sendo criados,
conforme as necessidades da ONU.
84
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 12. ed. São Paulo:
Saraiva, 2011, p. 182. 85
A Liga das Nações ou Sociedade das Nações, foi idealizada em 1919 pelas nações vencedoras da Primeira
Guerra Mundial, com a intenção de assegurar a paz, para isso, visavam à criação de uma organização
internacional. Ela após “fracassar” em seus objetivos de manter a paz no mundo, foi dissolvida e estava extinta
por volta de 1942. Porém, em 18 de abril de 1946, o organismo passou as responsabilidades à recém-criada
Organização das Nações Unidas, a ONU. 86
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 8. ed. São Paulo: Saraiva,
2013, p. 62.
51
Foi nesse contexto que nasceu a Declaração dos Direitos Humanos, adotada em 18
de junho de 1948 e aprovada por 48 Estados, tendo oito abstenções. A Declaração representou
a manifestação da única prova através do qual um sistema de valores pode ser considerado
humanamente fundado e, portanto, reconhecido. Após a Declaração, foi sendo construída a
ideia de que a humanidade partilha alguns valores comuns e, consequentemente surgiu o
desafio da universalidade destes valores.87
Além disso, a Declaração, ao conjugar liberdade com igualdade, os direitos por ela
contemplados passaram a ser concebidos como uma unidade interdependente e indivisível, ou
seja, os direitos humanos não se sobrepõem, mas interagem mutuamente. A Declaração trouxe
a noção de que todos os direitos humanos constituem um bloco complexo único, integral e
indivisível, no qual os diferentes direitos estão necessariamente inter-relacionados e são
interdependes entre si.88
A Declaração Universal dos Direitos Humanos constitui-se em um documento que
assinalou um passo importante no caminho para a organização jurídico-política da
comunidade mundial, uma vez que reconheceu a dignidade de todos os seres humanos,
proclamando ainda como direito fundamental a liberdade, quer seja na busca pela verdade, na
realização do bem moral e da justiça, bem como o direito a uma vida digna.89
Este documento representa ainda o resultado de um longo processo histórico que
passou por momentos como a Declaração de Independência dos Estados Unidos, com a
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da Revolução Francesa, tudo isso
contribuiu para solidificar a ideia da igualdade dos homens, bem como da dignidade da pessoa
humana,90
consagrando, assim, os valores fundamentais da liberdade, da igualdade e da
fraternidade, e proclamando que todos os seres humanos têm direito à vida, à liberdade e à
segurança pessoal.
87
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. 21. tiragem. Rio de Janeiro: Elsevier,
2004. pgs. 26 e 28. 88
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 12. ed. São Paulo:
Saraiva, 2011, p. 202. 89
JOÃO XXIII, Papa. Carta Encíclica Pacem in Terris. Disponível em: http://goo.gl/nkwT1K. Acesso em 19
de agosto de 2015. 90
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 8. ed. São Paulo: Saraiva,
2013, p. 240.
52
A Declaração foi um marco histórico na consolidação dos direitos humanos, porém,
“tecnicamente” ela é uma recomendação, o que gerou certa controversa, pois havia quem
sustentasse que ela não teria força vinculante. Esse problema somente foi concluído com o
processo de “juridicização” da Declaração, concluído em 1966, com a elaboração de dois
distintos tratados internacionais: o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto
Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.
Outro problema surgido com a Declaração foi a concepção universal dos direitos
humanos. Alguns consideram que essa noção não está dissociada dos sistemas políticos,
econômicos, culturais, sociais, morais, presentes em cada cultura, ou seja, é a ideia de que há
diversos discursos de direitos fundamentais que a princípio devem ser respeitados. Porém, a
Declaração de Viena de 1993, fruto da Declaração Universal dos Direitos Humanos,
solucionou tal problema ao afirmar que os direitos humanos são universais, indivisíveis,
interdependentes e inter-relacionados.91
Com isso, pode-se afirmar que a Declaração foi um marco histórico. Ela contempla
em si vários direitos como: civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, dando destaque ao
fato de que, pela primeira vez, foi positivada no plano internacional uma proposta ética
comum, aplicada a todos sem distinção.92
Enfim, o fato é que ainda que não assuma forma de Tratado internacional, a
Declaração possui força jurídica obrigatória e vinculante, tendo em vista que os Estados
assumiram o compromisso de assegurar o respeito universal e efetivo aos direitos humanos e,
além disso, ela se transformou ao longo do tempo em direito costumeiro internacional e
princípio geral de Direito internacional, exercendo um grande impacto nas ordenações
jurídicas nacionais.
Portanto, pode-se dizer que a Declaração Universal dos Direitos Humanos consiste
no ponto de chegada da evolução teológica, filosófica e histórica dos direitos dos homens,
bem como do conceito referente à pessoa humana e sua dignidade. Mas, ao mesmo tempo, ela
é o ponto de partida para a busca efetiva dos direitos dos homens, ou seja, ela representa uma
91
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 12. ed. São Paulo:
Saraiva, 2011, p. 430. 92
GREGORI, José. Universalidade dos direitos humanos e peculiaridades nacionais. In: PINHEIRO, Paulo
Sérgio; GUIMARÃES, Samuel Pedro. Direitos Humanos no século XXI. Brasília: IPRI, 2002, p. 210.
53
meta a ser alcançada; por isso, é de suma importância a observação de todo o itinerário que
conduziu ao seu nascimento, para que nenhum dado fundamental desta construção seja
desprezado e, consequentemente, este documento atinja os seus objetivos, na defesa e
promoção dos direitos fundamentais da pessoa humana, dentre estes o da liberdade religiosa,
objeto deste estudo.
54
Capítulo Terceiro
A relação entre Estados e religiões
3.1 – A dimensão social da religião
Ao longo da história das sociedades, o poder religioso sempre esteve presente na
organização estatal consequentemente, na formação do direito e das demais realidades das
estruturas sociais. O fato é que a religião e a natureza social do homem têm sido sempre
realidades conexas, pois não há que se falar apenas em uma dimensão “interior” do fenômeno
da fé, visto que as religiões têm demonstrado claramente sua dimensão social, “exterior”.93
Como consequência, diferentes culturas são identificadas a partir da confissão de fé
dos seus membros, ou seja, elas possuem algum tipo de adjetivo religioso, por exemplo, o
mundo muçulmano, a cultura hinduísta, o povo judeu (hebreu) e, por fim, o ocidente cristão.
Assim, considerando a dimensão social da religião, bem como a força que essa possui na
formação da identidade de um povo, de um Estado, torna-se muito difícil distinguir o
fenômeno religioso do desenvolvimento histórico das nações.
Porém, podemos dizer que, para a cultura ocidental, somente após a ascensão do
Cristianismo é que a dimensão religiosa passou a fazer parte da “política” do Estado de forma
distinta desse, ou seja, surgiu com o Cristianismo a ideia de uma “força” paralela e, de certa
forma, ameaçadora aos interesses das autoridades públicas. Os gregos, como os romanos, não
tinham muito clara a noção de que uma religião poderia afetar toda a estrutura estatal e, de
certa forma, Estado e religião estavam unidos.
Sobre esse fato nos ensina Fustel de Coulanges:
Nem romanos nem gregos conheceram os tristes conflitos, tão comuns em outras
sociedades, entre a Igreja e o Estado. Mas isto deveu-se unicamente ao fato de,
tanto em Roma, como em Esparta ou Atenas, o Estado achar-se submetido à
religião. Não que houvesse um corpo de sacerdotes a impor sua vontade. O Estado
antigo não obedecia a um clero, mas era submetido à sua própria religião. Estado e
93
PRIETO, Vicente. Relaciones Iglesia-Estado: La perspectiva del Derecho canónico. Salamanca:
Publicaciones Universidad Pontificia de Salamanca, 2005, p. 19.
55
religião estavam intimamente unidos que seria impossível na só fazer ideia do
conflito entre eles, mas mesmo diferenciá-los entre si.94
Desta forma, os dados mais concretos da relação entre religião, Igreja e Estado são
obtidos a partir do início da era cristã. O ponto de partida para o problema dessa relação, ou
seja, da força do conteúdo religioso nas sociedades cristãs são os argumentos “jurídicos”
utilizados no julgamento e condenação à morte de Jesus. Historiadores atribuem que a morte
do fundador do Cristianismo se deu em decorrência de um problema político/jurídico
envolvendo o Império Romano, judeus e os seguidores de Jesus.95
A morte de Jesus desencadeou um período de grandes perseguições “religiosas” aos
cristãos. Essas perseguições tiveram diversos momentos e intensidades, pois eram conduzidas
de acordo com a política adotada por cada imperador. O certo é que as perseguições acabaram
por contribuir para o avanço do Cristianismo, e com pouco tempo, os cristãos já estavam
inseridos no coração do Império Romano.
O fato é que, nos três primeiros séculos da era cristã a Igreja Católica,96
expressão da
fé cristã, vivia à margem do direito romano, pois sua existência não era reconhecida, mas
inclusive perseguida, e muitos cristãos foram mortos por não aceitarem os cultos oficiais do
Império. Contudo, esta situação mudou radicalmente a partir de vários Editos,97
entre eles, o
Edito de Milão, considerado um marco histórico na relação entre religiões e Estados, pois
estabeleceu o princípio de tolerância religiosa, afirmando que tanto os cristãos como os
demais cidadãos poderiam seguir a religião que considerassem oportunas.
Logo, o imperador romano Constantino, com o Edito de Milão de 313, compreendeu
que precisava fazer algo urgentemente, pois a perseguição, ao invés de conter os limites desta
“força” espiritual e social, estava produzindo efeitos contrários. Assim ele entendeu que não
era necessário repreender e perseguir os cristãos, mas criar meios para relacionar-se com a
94
COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. Trad. Jean Melville. 2. ed. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 118. 95
RATZINGER, Joseph. Jesus de Nazaré – Da entrada a Jerusalém até a Ressurreição. Trad. Bruno Bastos
Lins, São Paulo: Planeta, 2011, p.157. 96
Até a Reforma Protestante no século XVI não havia a compreensão de religião cristã fora da Igreja Católica.
Por isso, quando referimos à relação entre religiões e Estado até esse período histórico, nosso objeto de estudo é
especificamente a relação entre a Igreja Católica e o Estado, e considerando, ainda, que no Ocidente as demais
minorias, como judeus e muçulmanos, sempre foram colocados à margem das sociedades, não sendo, a princípio
o objeto direto de interesse da relação entre religiões e Estados. 97
Édito é um anúncio de uma lei, muitas vezes associado à monarquia, imperadores, papas.
56
religião nascente, uma vez que não tinha sentido querer impor um poder imperial pagão em
uma sociedade cristã.98
Passado alguns anos, Teodósio I (380), por meio do Edito de Tessalónica, deu um
passo ainda mais ousado e estratégico politicamente, ao declarar o Cristianismo/Igreja
Católica como religião oficial do Império Romano, iniciando assim uma política que teve
como consequência a inferioridade legal das religiões “pagãs” frente ao Cristianismo
institucionalizado.99
Contudo, já com Constantino as perseguições aos cristãos foram encerradas, o que
favoreceu o crescimento “público” da fé cristã, pois esses religiosos que viviam na
clandestinidade passaram a ter uma vida pública dentro do Estado, ou seja, a atividade
religiosa da Igreja Católica foi legitimada pelo Império Romano.
Diversas foram as consequências destes Editos. Pode-se dizer que após o Edito de
Milão, as relações institucionais entre a sociedade civil e a nova força religiosa nascente –
Igreja Católica – tomam um novo rumo, principalmente pelo fato de que a estratégia política e
a unidade religiosa eram vistas como aspectos muito importantes para a unidade do Império
Romano.
Nasce deste modo o chamado Cesaropapismo, ou seja, um sistema de relações entre
a Igreja Católica e a comunidade política, que consistia, basicamente, na intromissão dos
imperadores na vida da Igreja, pois ela passou a ser considerada como parte da administração
pública.100
Os anos foram seguindo e a presença da religião nos Estados, primeiramente no
Império Romano e depois nos demais, continuou a ser significativa na vida dos indivíduos e,
consequentemente, nas relações sociais, inclusive não foram poucas as vezes que a questão
religiosa foi usada como motivação para guerras, prisões, restrições de direitos, revoluções,
formação de novos Estados, tomadas de territórios, alianças políticas, perseguições religiosas
a minorias.
98
ÁLVAREZ GÓMEZ, Jesús. Historia de la Iglesia I – Edad Antiga. Madrid: Biblioteca de Autores
Cristianos, 2001, p. 99. 99
MARZOA, Á.; MIRAS, J.; RODRÍGUEZ-OCANÃ, R. (coords.). Comentario Exegético al Código de
Derecho Canónico. Vol. I. 3. ed. Navarra: EUNSA, 2002. p. 104. 100
PRIETO, Vicente. Relaciones Iglesia-Estado: La perspectiva del Derecho canónico. Salamanca:
Publicaciones Universidad Pontificia de Salamanca, 2005, p. 25.
57
Assim, a vida religiosa sempre foi um tema presente na constituição jurídica,
histórica e social dos Estados. A história das sociedades, principalmente no ocidente, se cruza
com o itinerário do desenvolvimento das religiões (cristãs), principalmente até os movimentos
conhecidos como Reforma Protestante praticamente a fé católica. Portanto, o dado religioso é
também um dado histórico–cultural, não por acaso, a liberdade religiosa no mundo
contemporâneo é associada como um elemento da cultura.
Neste sentido, em um recente discurso nos Estados Unidos, o Papa Francisco
reafirmou a liberdade religiosa e as religiões como um dado da cultura. Ensinou-nos o
pontífice:
A liberdade religiosa supõe certamente o direito de adorar a Deus, individual e
comunitariamente, como a própria consciência dita. Mas, por outro lado, a
liberdade religiosa transcende, por sua natureza, os lugares de culto, bem como a
esfera privada dos indivíduos e das famílias, porque o fato religioso, a dimensão
religiosa não é uma subcultura, faz parte da cultura de qualquer povo e qualquer
nação.101
A influência da religião é notória nos Estados, e muitos desses tiveram durante anos
o poder civil fundido com o poder religioso e, concretamente, com uma profissão de fé
específica, ou seja, é uma realidade, além de política e religiosa, histórica e cultural. Além
disso, ainda hoje há resquícios desse tipo de relação nos “Estados modernos”, fato este visível
por meio de uma influência direta que determinada religião exerce sobre a cultura de um povo
e, ademais, ainda se encontram países confessionais, existindo por fim, aqueles em que o
poder civil é “legitimado” pelas autoridades religiosas.
Desta forma, após um longo período histórico em que a relação entre religiões e
Estados já foi devidamente “provada no fogo”, deparamo-nos com a possibilidade de uma
cooperação harmônica entre ambos, a partir de uma legítima e saudável separação entre
religiões e poderes públicos, tendo em vista que a grande maioria dos Estados modernos
ocidentais, embora laicos, conservam, em seu patrimônio cultural, social, jurídico, moral,
fortes elementos da cultura cristã.
Portanto, não há como negar a dimensão social das religiões nos Estados,
principalmente quando se tem em vista a influência do Cristianismo católico nas estruturas
sociais da própria cultura ocidental. Ora, é o homem cidadão e fiel quem professa a sua fé
101
FRANCISCO, Papa. Discurso do Santo Padre no encontro em prol da Liberdade Religiosa em 26 de
setembro de 2015. Disponível em: http://goo.gl/bgWMJs. Acesso em 05/10/2015.
58
dentro do seio da comunidade; por essa razão, a expressão social da religião tem como
fundamento o sujeito possuidor de direitos fundamentais, entre esses o da liberdade religiosa
que lhe confere a possibilidade do exercício da fé no Estado. Mas essa relação entre homem e
divindade acontece por meio de sua religião; por isso, faz-se necessário investigar a conexão
entre o homem e as religiões nos Estados.
3.2 – O homem e as religiões nos Estados: o fundamento e o fim da ordem social
Após uma ampla trajetória de investigação das questões referentes ao direito à
liberdade religiosa, chegamos à conclusão de que se trata de um direito inato da pessoa
humana, ou seja, um direito fundamental e humano. Contudo, a sua solidificação é um
processo muitas vezes doloroso e, como visto, sempre esteve em meio a tensões. Para a
compreensão desse direito, visando sua consolidação, é preciso investigar as raízes dos
direitos dos homens através de uma abordagem histórica, teológica e filosófica. Processo este
analisado nos primeiros capítulos, o qual culminou na positivação e no reconhecimento
internacional desse direito por meio da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Porém, a conclusão de que a liberdade religiosa é um direito inato, fundamental e,
portanto, sua proteção relaciona-se diretamente com a própria dignidade humana, devendo,
assim, ser resguardado para que os homens gozem livremente do exercício de sua fé dentro
das comunidades políticas, não é tão óbvia e solidificada como parece, tendo em vista que
inúmeras vezes os sujeitos têm sido privados e perseguidos pela autoridade estatal ou por
outros credos religiosos, simplesmente porque exercem tal direito.
Ora, quando deparamos com perseguições e privações de direitos e liberdades em
virtude da profissão de fé, nos questionamos e, por isso, investigamos, o seguinte: qual é o
lugar do homem “religioso” no Estado moderno? Consequentemente, qual é a conexão entre o
homem e as religiões nos Estados?
O ponto de partida é a ideia de que é a pessoa humana quem dá forma e sentido para
a comunidade social e, além disso, possui uma finalidade comunitária, de tal sorte que os
homens estão unidos por uma responsabilidade comum, ou seja, inseridos em uma ordem
social, pois o homem não está só no mundo. Portanto, uma vez que todos os serem humanos
59
estão unidos a inúmeras relações sociais, eles, por natureza, existem, vivem e alcançam suas
“felicidades” por meio, e nas relações sociais.102
A religiosidade é um dos fatores que compõem o indivíduo; por isso, como bem nos
ensinou o Papa Bento XVI, a liberdade religiosa se realiza com os outros. Esclarece o
pontífice:
Embora movendo-se a partir da esfera pessoal, a liberdade religiosa – como
qualquer outra liberdade – realiza-se na relação com os outros. Uma liberdade sem
relação não é liberdade perfeita. Também a liberdade religiosa não se esgota na
dimensão individual, mas realiza-se na própria comunidade e na sociedade,
coerentemente com o ser relacional da pessoa e com a natureza pública da
religião.103
Nesta perspectiva, há uma ordem social na qual o homem naturalmente se
encaminha, ou seja, tendo em vista que é por natureza um animal social,104
realizando-se em
meio a outros “iguais”. Neste sentido, considerando que a “religiosidade” faz parte do bojo da
própria natureza humana, ela se dá, se manifesta e se completa em “meio” aos demais, ou
seja, no seio da comunidade política.
Surge, portanto, o problema do Estado, ou seja: o que compete a ele, qual seu
fundamento e responsabilidade nas garantias dos direitos fundamentais? Para a tentativa de
compreensão desse problema, investigamos alguns pensadores que contribuíram para
construção das “teorias” da formação dos Estados.
O primeiro pensador a quem recorremos é o filósofo romano Cícero, que afirmava
haver no Estado uma ordem comum, apontando que na base do Estado há dois elementos
fundamentais, quais sejam: a prevalência do bem comum e a lei comum a todos os indivíduos
pertencentes à sociedade política.105
Na visão de Cícero, tanto o bem comum como a lei comum podem ter seu
fundamento em questões religiosas, filosóficas, morais, ou seja, é possível que, em uma
102
VERA URBANO, Francisco de Paula. La Libertad Religiosa como Derecho de La Persona. Madrid:
Instituto de Estudios Políticos, 1971, p.75. 103
BENTO XVI, Papa. Liberdade Religiosa, Caminho para a Paz. Mensagem para o Dia Mundial da Paz de
2011. Disponível em: http://goo.gl/WR6dYC. Acesso em 07/11/2015. 104
ARISTÓTELES. Política. Trad. de Mário da Gama Kury. 3 ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília,
1997, p. 15. 105
CÍCERO. Marco Túlio. Da república. Trad. Amador Cisneiros. 5. ed. Rio de Janeiro: Ediouro Publicações,
1985, p. 40.
60
sociedade, as diretrizes de fé sejam ordenadoras de um sistema jurídico, visando o bem
comum e uma lei comum.
Santo Agostinho considerava que a pessoa humana é a grande protagonista da ação
do Estado, ela que, destinada a viver em sociedade, compartilha por meio do Estado com os
outros cidadãos a busca pelo bem comum através de uma lei comum, ou seja, a ordem social
está destinada à pessoa humana; por isso não, há como romper a função social da dimensão
ético-moral, e desta maneira cabe ao Estado promover por meio da vida em comunidade a
felicidade, bem como a paz temporal.106
Santo Tomás de Aquino, na mesma trilha que Aristóteles, considerava que o homem
é naturalmente um animal político e social. Em seus argumentos, afirmava que esse fato
torna-se evidente, uma vez que, o homem se viver sozinho, não é capaz de se manter na vida,
porque a natureza por si só é suficiente para o homem em poucas coisas; contudo, a grande
diferença do homem dos outros animais é que possui razão e, através dela, ele pode
providenciar para si tudo que é necessário para a vida, o qual sozinho não seria capaz de
conseguir. Por esse motivo, foi dado ao homem, como uma “exigência” da própria
racionalidade, viver em sociedade.107
Considerava ainda Santo Tomás que a sociedade está ordenada ao fim do indivíduo,
visando o bem comum. Assim, justifica-se a origem do Estado e consequentemente de um
governo, pelo fato de que, para viver em sociedade, o homem necessita de um princípio de
governo, por meio do “Estado”, tem como finalidade conduzir e ordenar os cidadãos para uma
vida feliz e virtuosa, assegurando a paz e a justiça.108
No pensamento de Santo Tomás, a religião, assim como a cultura, a estética, a
ciência, constituem poderes humanos anteriores à sociedade e superiores a ela, essa que se
impõe por exigência da natureza racional e estão fundadas na mesma justiça objetiva; por
isso, elas escapam da competência do Estado, ou seja, da mesma forma que a sociedade não
tem poder sobre a verdade matemática, tampouco ele tem poder sobre a verdade religiosa.
Portanto, a sociedade ao estabelecer as normas práticas da vida social, há de contar
com este foro reservado pela mesma justiça objetiva e respeitar e tutelar as respectivas esferas
106
AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: Contra os pagãos. 2.ed. Trad. Oscar Paes Leme. Petrópolis: Vozes,
1990. Parte II. 107
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica – Obras completas. Trad. Francisco Barbado Viejo. Madrid: BAC,
1957, I, q. 96, a. 4, resp. 108
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica – Obras completas. Trad. Francisco Barbado Viejo. Madrid: BAC,
1957, II-II, 66, 8, resp.
61
privadas. Tudo isso conduz à máxima de que a liberdade religiosa é um direito inato e, por
isso, inviolável da pessoa humana.109
Quanto à conexão entre o homem e as religiões nos Estados, brilhantemente
sintetizou o Papa João Paulo II:
O fundamento e o fim da ordem social é a pessoa humana, enquanto é sujeito de
direitos inalienáveis, que ela não recebe do exterior, mas que brotam da sua própria
natureza: nada e ninguém podem destruí-los; e não há constrição alguma externa
que possa aniquilá-los, porque eles têm a sua raiz no que há de mais
profundamente humano. Analogamente, a pessoa não é algo que se vá exaurindo
nos condicionamentos sociais, culturais e históricos, porque é próprio do homem,
que tem uma alma espiritual, tender para um fim que transcende as condições
mutáveis da sua existência. Nenhum poder humano pode opor-se à realização do
homem como pessoa. Do primeiro e fundamental princípio da ordem social, que é
a finalização da sociedade na pessoa humana, deriva a exigência de todas as
sociedades estarem organizadas de tal maneira que permitam ao homem, ou
melhor, o ajudem a realizar a sua vocação em plena liberdade. A liberdade é a
prerrogativa mais nobre do homem. Até mesmo nas suas escolhas mais íntimas,
todas e cada uma das pessoas hão de poderem exprimir-se a si mesmas, com um
ato de determinação cônscia, inspirado pela própria consciência. Sem liberdade, os
atos humanos ficam esvaziados e desprovidos de valor. 110
A justificativa, bem como a finalidade do Estado e a sua ordem social é a pessoa
humana, neste sentido destaca-se a importância da religião como um aspecto fundamental,
tendo em vista que as religiões, principalmente o Cristianismo, colaboram com a comunidade
política ao proporem por meio de seus “ritos e dogmas” a realização plena da pessoa humana,
dentro da sociedade em que se encontra.
A respeito da vida em comunidade, bem como da natureza e do fim da comunidade
política, recorremos ao magistério do Papa Paulo VI, que cirurgicamente conseguiu resumir a
importante relação entre os homens e suas religiões nos Estados, destacando o fundamento e o
fim da ordem social em vista do bem comum, quando afirma:
Os indivíduos, as famílias e os diferentes grupos que constituem a sociedade civil,
têm consciência da própria insuficiência para realizar uma vida plenamente
humana e percebem a necessidade duma comunidade mais ampla, no seio da qual
todos conjuguem diariamente as próprias forças para cada vez melhor promoverem
o bem comum. E por esta razão constituem, segundo diversas formas, a
109
VERA URBANO, Francisco de Paula. La Libertad Religiosa como Derecho de La Persona. Madrid:
Instituto de Estudios Políticos, 1971, p. 102. 110
JOÃO PAULO II, Papa. Mensagem para o XXI Dia Mundial da Paz – Liberdade Religiosa Condição
para a Convivência Pacífica, em 01 de janeiro de 1988. Disponível em: http://goo.gl/tEyxsa. Acesso em
17/10/2015.
62
comunidade política. A comunidade política existe, portanto, em vista do bem
comum; nele encontra a sua completa justificação e significado e dele deriva o seu
direito natural e próprio. Quanto ao bem comum, ele compreende o conjunto das
condições de vida social que permitem aos indivíduos, famílias e associações
alcançar mais plena e facilmente a própria perfeição. (...) requer-se uma autoridade
que faça convergir para o bem comum às energias de todos os cidadãos; não duma
maneira mecânica ou despótica, mas, sobretudo, como força moral, que se apoia na
liberdade e na consciência do próprio dever e sentido de responsabilidade. (...)
Segue-se também que o exercício da autoridade política, seja na comunidade como
tal, seja nos organismos representativos, se deve sempre desenvolver e atuar dentro
dos limites da ordem moral, em vista do bem comum, dinamicamente concebido,
de acordo com a ordem jurídica legitimamente estabelecida ou a estabelecer. (...).
O modo concreto como a comunidade política organiza a própria estrutura e o
equilíbrio dos poderes públicos, podem variar, segundo a diferente índole e o
progresso histórico dos povos; mas devem sempre ordenar-se à formação de
homens cultos, pacíficos e benévolos para com todos, em proveito de toda a família
humana. 111
Neste aspecto, mesmo considerando as inúmeras diferenças entre os homens e as
particularidades do ambiente social, bem como as diversas formas de governo, etc., de fato, a
ordem social deve estar destinada ao bem comum. Assim, a dimensão da fé não afasta o
homem do seio político; pelo contrário, o fiel é chamado a participar ativamente nas estruturas
sociais, ou seja, na construção do bem comum, empenhando-se na política e respeitando a
autonomia das realidades terrenas, como acima exposto.112
Portanto, é de suma importância que, na sociedade pluralista, se tenha uma
concepção exata das relações entre a comunidade política e a religião, e, mesmo que as
atividades de ambas sejam claramente distintas, tanto as religiões como os Estados devem
estar destinados a salvaguardar os direitos fundamentais da pessoa humana, o que fortalece
ainda mais os vínculos entre os homens e suas religiões nos Estados.
111
PAULO VI, Papa. Constituição Pastoral Gaudium Et Spes – Sobre a Igreja no Mundo Atual, n. 74.
Disponível em: http://goo.gl/8Q5sxV. Acesso em: 05/11/2015. 112
Quanto à obediência as autoridades nesse mesmo documento o Papa Paulo VI aponta que ela não é absoluta,
pois quando a autoridade pública, excedendo os limites da própria competência, oprime os cidadãos, estes não se
recusem às exigências objetivas do bem comum, mas é-lhes lícito, dentro dos limites traçados pela lei natural e
pelo Evangelho, defender os próprios direitos e os dos seus concidadãos, contra o abuso desta autoridade. Cf.
PAULO VI, Papa. Constituição Pastoral Gaudium Et Spes – Sobre a Igreja no Mundo Atual.
63
3.3 – O Estado moderno e a religião: As ideias contratualistas
O marco histórico do exercício da liberdade religiosa nos Estados modernos foram os
acontecimentos do século XVIII. Encontram-se na Declaração de Direitos da Virgínia (1776)
e na Declaração Francesa de Direitos do Homem e do Cidadão (1789), as primeiras
formulações em relação à liberdade religiosa.
Interessante observar que essas declarações são frutos de inúmeros movimentos
políticos, civis e também religiosos, mas sem dúvida suas ideias e ideais são consequentes do
Liberalismo e das revoluções.113
Destaca-se igualmente a colaboração e consolidação do
pensamento dos “contratualistas” neste período, tendo como principais doutrinadores autores
como Hobbes, Rousseau e Locke. Por esta razão, apresentaremos em linhas gerais as
principais colaborações destes autores na construção dos direitos referentes à liberdade
religiosa.
Na obra o “Leviatã”, de Thomas Hobbes, encontramos a grande mudança nas
relações entre o Estado e as religiões. Hobbes propõe um Estado absoluto na intenção de
superar a anarquia e a insegurança própria do estado de natureza. Para ele, o absolutismo
estatal, ou seja, do soberano, seria a única maneira de colocar fim ao instinto devorador dos
homens. Neste sentido a obediência política não deveria ser incompatível com as leis de Deus,
desde que fosse o soberano quem exercesse a capacidade de “discernir” as leis de Deus.
Esclarece-nos o professor Cláudio de Cicco nos ensina:
No século XVII, com Hobbes, por influência decisiva do pessimismo de matriz
reformista, o “estado natural” deixou de ser a vida em sociedade para ser pensado
como uma “situação anormal” e “decorrente da natureza decaída pelo pecado
original”, e Hobbes concluía ser tal decadência a bellum omnes contra omnes, pois
em sua ótica protestante, sem a Graça o homo hominis lupus est.114
Thomas Hobbes considerava que as guerras de religião precisavam ser evitadas a todo
custo, mas reconhece a distinção entre as esferas política e espiritual, bem como entre um
113
PRIETO, Vicente. Relaciones Iglesia-Estado: La perspectiva del Derecho canónico. Salamanca:
Publicaciones Universidad Pontificia de Salamanca, 2005, p. 42. 114
DE CICCO, Cláudio. História do pensamento jurídico e da Filosofia do Direito. 4. ed. São Paulo: Saraiva,
2009, p. 138.
64
culto interior (privado) e exterior (público);115
Ele propôs que a Igreja (religião), se
transformasse em um órgão estatal,116
justificando que o alcance da paz por intermédio do
poder absoluto só será bem sucedido se aquele a quem for atribuído a tarefa de governar
conseguir neutralizar o fator religioso.117
Outro autor de singular importância nesta temática é Jean Jacques Rousseau,118
que
distinguiu a religião da seguinte maneira: religião do homem – equipara-se ao culto interior;
religião do cidadão – identificada com as religiões da Antiguidade, que correspondiam aos
cultos, dogmas e ritos de uma nação e que não se estendiam a outras; e religião dos sacerdotes
– neste se enquadra o Cristianismo romano. Rousseau encontra defeitos em todas; porém, a
mais nociva é o Catolicismo, pois ela coloca em risco a unidade do Estado.
Quanto à religião católica, Rousseau considerava que, ao estabelecer uma relação de
obediência autônoma com os súditos do Estado, incitava divisões no seio da sociedade, já que
nem sempre os seus interesses estariam em conformidade com os interesses expressos pela
vontade de todo o corpo político.
Assim, propôs uma espécie de religião civil submetida ao soberano, que estabeleceria
ritos de fé puramente civis, buscando, assim, fortalecer os sentimentos de sociabilidade sem
os quais, segundo ele é, impossível ser bom cidadão ou súdito fiel. Para isso seria necessário
que o Estado absorvesse para si a religião e, consequentemente a Igreja.119
Rousseau considerava ainda que os homens de modo algum tiveram, a princípio,
outros reis além dos deuses, nem outro Governo senão o teocrático,120
afirmava que poderia
provar que jamais qualquer Estado se fundou sob uma base que não fosse à religião.121
115
Segundo Hobbes “há um culto público e um culto privado. Público é o culto que um Estado realiza como
pessoa. Privado é aquele que é feito por um particular. O público, no que se refere a todo o Estado, é livre, mas
no que se refere aos particulares não o é. O culto privado é secretamente livre, mas perante a multidão nunca
existe sem algumas restrições...”. Assim, o culto embora livre, não significa a submissão da religião à vontade do
soberano. Cf. HOBBES, Thomas. Leviatã. 3.ed. Coleção os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 214. 116
HOBBES, Thomas. Leviatã. 3.ed. Coleção os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1983, pgs. 211. e ss. 117
Hobbes considerava que tanto o poder civil como o religioso deveria ser exercido, ou, no mínimo estar
subjugado ao soberano, enquanto os súditos – cidadãos e fiéis – deveriam prestar obediência absoluta a ele. Para
Hobbes, não haveria outra maneira de controlar a voracidade dos homens, visto que esses são homini lupus
homini, o homem é o lobo do homem. Ainda por trás do pensamento de Hobbes, há uma crítica severa ao poder
do Papa, pois, considerado como um “soberano” estrangeiro, com súditos e fiéis em outro território, suas ordens
poderiam ameaçar diretamente o soberano. 118
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. 2.ed. Coleção os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural,
1978, p. 141. 119
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. 2.ed. Coleção os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural,
1978, pgs. 143 e 144. 120
ROUSSEAU, Jean Jacques. Do Contrato Social. 2.ed. Coleção os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural,
1978, p. 137.
65
O pensamento de Rousseau em muito contribuiu para a formação do Estado moderno
e para a relação entre religiões e Estados. Em sua obra, verifica-se também um conceito de
legitimidade de um governo democrático – democracia como vontade geral, fruto da
participação de todos – que reduziria a liberdade à obediência as leis.122
Por fim, suas ideias
irão influenciar a Declarações de Direitos da Virgínia de 1776 e a Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão de 1789.
3.3.a – O pensamento de John Locke
John Locke, juntamente com Hobbes e Rousseau, é considerado um dos pais do
Contratualismo. Os três teóricos iniciam sua teoria a partir de uma análise do estado de
natureza, passando posteriormente para o “Estado” civil. Como vimos, para Rousseau o
estado de natureza é quase um paraíso, já Hobbes o via como um estado de guerra e Locke se
situava entre os dois extremos, pois considera o estado de natureza como um estado de
liberdade.
O pensamento de John Locke é de fundamental importância para a compreensão do
nascimento dos primeiros direitos a respeito da liberdade religiosa. Destacam-se seus escritos
presentes na obra “Carta acerca da Tolerância”. Locke nasceu em Wrington, Inglaterra, em 29
de agosto de 1632, em um período sangrento na história europeia, onde ainda ecoava os
efeitos da reforma anglicana e das guerras de religião acontecidas no território europeu.
O ponto de partida dos ensinamentos de Locke é o homem. Para ele, todos são livres
e iguais no estado de natureza. Além disso, em sua teoria, apresenta três direitos específicos:
direito à vida; direito a liberdade e direito à propriedade. Esse segundo decorre da revelação
de Deus, ou seja, ele utiliza de argumentos religiosos, devido à importância deste tipo de
justificativa na época em que vivia. Para justificar a liberdade,123
oferece inclusive um
exemplo, quando diz que, se Deus manda o homem trabalhar, significa que ele tem a
liberdade de fazer.
121
ROUSSEAU, Jean Jacques. Do Contrato Social. 2.ed. Coleção os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural,
1978, p. 139. 122
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. 21. tiragem. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2004, p. 80. 123
LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Coleção Os
Pensadores, Abril Cultural, 1983, p. 71.
66
Em relação ao direito à vida, considerava que, sendo o homem uma criatura de Deus,
ninguém tem o direito de tirar a vida de outro, a não ser em caso de legítima defesa. Quanto
ao direito à propriedade, Locke justifica que, se Deus manda o homem a trabalhar é licito que
ele retire da natureza o fruto do seu trabalho e este lhe pertença.124
O direito, para Locke, vem acompanhado de uma obrigação, pois sem ela, o direito
se torna um privilégio. Além disso, considerava que os direitos são naturais e universais, e o
conhecimento dos direitos se dá por meio da razão. Assim, conclui que o estado de natureza é
social, e não um caos. Ao reconhecer isso, os homens podem se relacionar harmonicamente
entre si sem a necessidade de um governo, de autoridades. Mas reconhece que o homem não é
um “santo”; por isso, agrega dois outros direitos, o de julgar e o de castigar.
Desta forma, para Locke o estado de natureza já é social, ou seja, não é um caos cuja
única salvação seria a criação de um Estado social e político, pois já existe no Estado uma
esfera social que não depende de leis e autoridades para o seu funcionamento. Considera que
as sociedades são naturais, surgem de forma espontânea, mas os Estados são artificiais, uma
vez que são mecanismos que os homens criam para a vida social, visando os direitos naturais,
como vida, propriedade e liberdade.125
Outro aspecto importante é a distinção do pensamento de Hobbes e de Locke em
relação ao contrato social. Para Hobbes, os homens renunciam seus direitos ao soberano, em
troca de paz e segurança; já Locke afirma que o governo existe para fortalecer os direitos
naturais.126
Além disso, para Hobbes é o estado de natureza que propicia a guerra de todos contra
todos, por isso, o próprio nascimento do Estado social exige a renúncia dos direitos por parte
dos cidadãos a fim de conseguir a paz. Locke afirma que os direitos são bens e, por
conseguinte não podem ser renunciados, mas, sim conservados.127
Na visão de Locke, a sociedade é um agregado de indivíduos, e nela os homens
competem entre si para a aquisição de propriedade. Assim, para que esta dinâmica de
124
LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Coleção Os
Pensadores, Abril Cultural, 1983, p. 42. 125
LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Coleção Os
Pensadores, Abril Cultural, 1983, p. 72. 126
LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Coleção Os
Pensadores, Abril Cultural, 1983, p. 71. 127
LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Coleção Os
Pensadores, Abril Cultural, 1983, p. 82.
67
competição decorra de maneira mais justa e livre, é possível que se requeira a criação de um
Estado, legitimado pelo consentimento dos interessados, mas de forma alguma esse Estado
criado (artificial), é absolutista, e, sim, um Estado de Direito criado em benefício do direito
dos homens. Ele admite ainda que os cidadãos podem mudar a forma de governo de acordo
com seus interesses e, quando os direitos naturais são violados, o governo é ilegítimo.128
Hobbes, por outro lado, não admite qualquer forma de questionamento do soberano, pois é ele
que mantém a ordem social.
A separação entre sociedade e Estado de Locke é o fundamento do Liberalismo. Ele
inclusive foi um dos primeiros teóricos a expressar esta opinião publicamente. Desta forma, o
Liberalismo em Locke significa basicamente a separação entre Estado e governo; porém, a
legitimidade do governo possui seu fundamento no consentimento dos governados. Em seu
pensamento, o Estado é um instrumento regulador da sociedade, e, a partir dessa concepção,
nasceu o que consideramos como Liberalismo clássico, fundamentado em cinco pilares:
individualismo, consentimento, estado de direito, propriedade privada e tolerância religiosa.
Não se pode negar que os conceitos a respeito do contrato social de Locke, além de
marcar uma época, influenciou diretamente a solidificação dos direitos dos indivíduos e,
principalmente, as primeiras declarações de direitos e constituições de diversos “Estados
modernos”, como EUA, França e Brasil, entre outros.
Quanto às temáticas a respeito da liberdade religiosa, Locke foi um dos principais
teóricos no que se refere à tolerância e, consequentemente, à possibilidade de uma
colaboração entre Estados e religiões. Basta investigar as diretrizes expostas em sua obra
“Carta acerca da Tolerância”, que, resumidamente, traz a ideia de que é um absurdo o Estado
tratar das questões religiosas, tendo em vista duas coisas; a primeira é a pluralidade de
religiões; a segunda, que são de naturezas distintas.129
128
LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Coleção Os
Pensadores, Abril Cultural, 1983, p. 118. 129
Em relação à natureza, embora tanto o Estado quanto a religião visem os bens dos homens, enquanto o
primeiro se sustenta pela força, lei, autoridade, já o segundo, pela persuasão. O Estado não tem, assim, nada que
ver com as coisas da alma, transcendentes, na visão lockeana. Interessante observar, que, por meio desse
pensamento, se justifica igualmente uma postura “laicista” de tamanha indiferença entre religiões (consideradas
como de interesse privado) e Estado. Por outro lado, esse conceito possibilitou também a justa e legítima
separação ente Estados e religiões, mantendo a “laicidade”. Além disso, porque a justificativa do Estado se
fundamenta nos interesses do homem e porque a religião é também um dado fundamental para os homens, a
partir de Locke se torna possível o desenvolvimento de mecanismos colaborativos entre religiões e Estado,
principalmente fundados em sua noção de tolerância.
68
Locke, nesta obra, procurou estabelecer uma clara distinção entre as competências da
religião e do Estado, cabendo à primeira cuidar dos cultos e ritos religiosos, e ao segundo,
garantir a conservação dos homens e das suas propriedades.130
Segundo ele, o Estado não
deve interferir nas atividades eclesiásticas, enquanto às religiões não cabe o direito de exigir a
renúncia ou a queda de um monarca excomungado, ou seja, não possui competência nas
coisas temporais. Nasce, assim, a ideia da tolerância religiosa, pois, segundo ele, o Estado não
deve fazer proselitismo, mas permitir, sem que viole os direitos dos demais, que cada
indivíduo busque sua concepção religiosa, tendo em vista que a fé não nasce da espada, mas,
sim, da persuasão.
Percebe-se no pensamento de Locke uma forte conotação histórica-social, tendo em
vista que, quando ele se refere à limitação da religião, “Igreja católica”, está preocupado
diretamente com a interferência de um poder estrangeiro, no caso o do Papa, na vida civil do
Estado. Locke considerava que o Sumo Pontífice, por meio de sua hierarquia e fiéis, poderia
colocar em risco a vida civil. Os católicos não deviam ser tolerados, não cabendo à Igreja de
Roma “o direito de ser tolerada pelo magistrado, pois se constitui de tal modo que todos seus
membros ipso facto se transformam em súditos e serviçais de outro príncipe”.131
Locke, também em sua obra, justifica a intolerância aos ateus, que, como os católicos
romanos, seriam uma ameaça a ordem social, fundamentando sua ideia na seguinte afirmação:
Os que negam a existência de Deus não devem ser de modo algum tolerados, as
promessas, os pactos e os juramentos, que são os vínculos da sociedade humana,
para um ateu não podem ter segurança ou santidade, pois a supressão de Deus,
ainda que apenas em pensamento, dissolve tudo.132
Por mais que pareça irônico dizer que uma obra acerca da tolerância expressa
justificativas para a intolerância, podemos dizer que, salvaguardando a influência histórica-
social inglesa, o pensamento de Locke, sem dúvida, ao distinguir as funções do governo civil
e da religião, demarcou fronteiras entre as religiões e os Estados, o que possibilitou,
130
LOCKE, John. Carta Acerca da Tolerância. Trad. Anoar Aiex. São Paulo: Coleção Os Pensadores, Abril
Cultural, 1978, pgs. 5 e 6. 131
LOCKE, John. Carta Acerca da Tolerância. Trad. Anoar Aiex. São Paulo: Coleção Os Pensadores, Abril
Cultural, 1978, pg. 23. 132
LOCKE, John. Carta Acerca da Tolerância. Trad. Anoar Aiex. São Paulo: Coleção Os Pensadores, Abril
Cultural, 1978, pgs. 23 e 24.
69
posteriormente, em países como Estados Unidos, uma convivência harmônica entre o poder
estatal e a religião.
O problema central da “tolerância” lockeana está fundamentado em questões
políticas, muito mais do que propriamente em questões em questões religiosas. No caso da
crítica aos católicos, o objeto de intolerância não é em si a fé, mas a interferência de um poder
estrangeiro, ou seja, ao condenar os católicos, reconhece o potencial de deslegitimação que a
religião poderá desenvolver em face do governante, o que acaba estimulando entre os súditos
uma obediência paralela, nociva à estabilidade política; por outro lado, ao não tolerar os ateus,
reconhece a necessidade da religião como fermento para a coesão social e política da
sociedade.133
Contudo, isso não quer dizer que o fiel e cidadão não possui responsabilidade frente
o Estado, pois esse era justamente o temor de Locke. Quando uma religião não estivesse
dentro dos limites estatais – no caso a Igreja Católica – seus membros poderiam colocar em
risco a segurança de todos os demais cidadãos. Além disso, quando se diz que há
competências distintas, é preciso considerar que o objeto da atuação das religiões e do Estado
é o mesmo, qual seja, a pessoa humana. Esta deve alcançar uma vida feliz e virtuosa em uma
comunidade onde lhe seja assegurada a paz e a justiça.
Enfim, os ensinamentos de Locke, mesmo com seus limites, além de ter influenciado
diversas Constituições, continua a servir de inspiração para a construção de um modelo
colaborativo entre religiões e Estados, principalmente no que diz respeito à justa separação
entre as coisas civis e sagradas, pois, como ensinou Locke, além de serem de competências
distintas, possuem meios de ação opostos: a religião está voltada para a eternidade e o Estado,
para as coisas terrenas.
3.4 – A liberdade religiosa a partir dos contratualistas
Indiscutivelmente, as constituições jurídicas surgidas a partir do século XVIII,
principalmente nos países ocidentais, estão recheadas das ideias dos contratualitas dos séculos
anteriores. O pensamento de autores como Hobbes, Rousseau, Locke e outros, produziram
133
CASAMASSO, Marco Aurélio Lagreca. Política e Religião: O Estado Laico e a Liberdade Religiosa à luz do
Constitucionalismo Brasileiro. 2006. 88 f. Tese (Doutorado em Direito). Pontifícia Universidade de São Paulo,
São Paulo, 2006.
70
mudanças significativas na concepção dos homens de si mesmos, bem como na noção dos
Estados, o que possibilitou a busca pela conquista de uma “nova” liberdade.
Por outro lado, outro movimento, a Reforma Protestante, também colaborou para
uma nova forma de pensar o mundo. A partir dela, os homens ousaram enfrentar duas grandes
forças, quais sejam: a Igreja Católica e o Estado absolutista. Surgiam, assim, as sementes do
“Liberalismo”.
Como vimos, o conceito de tolerância em Hobbes estava fundamentado na ideia de
que Deus não podia fundar seu reino entre os homens senão por meio do soberano.134
Já para
Rousseau todas as religiões deviam ser toleradas, desde que seus dogmas em nada
contrariassem os deveres do cidadão, através da ideia de “religião civil”.135
John Locke quem mais influenciou o conceito de tolerância e de liberdade religiosa,
essa que já estava presente na Declaração de Direitos da Virgínia (1776), na primeira
Constituição americana (1776) e na primeira emenda a Constituição americana, na qual consta
expressamente a proibição de o Congresso em editar qualquer lei a respeito de um
estabelecimento de religião, que proibisse o seu livre exercício, ou que restringisse a liberdade
de expressão, de imprensa, ou de associação.136
É interessante observar que estes documentos embora influenciados pelo pensamento
de Locke, superou o problema da “tolerância” lockeana, que colocava de lado os ateus e
católicos. Contudo, a princípio os colonos americanos que se estabeleceram no novo
continente, estavam motivados pela intolerância reinante na Europa, recheado das ideias de
Locke, e, assim, criaram diferentes colônias confessionais, como, por exemplo, os puritanos
em Massachussets, os anglicanos na Virgínia, os católicos em Maryland, os quacres na
Pensilvânia.
Ensina-nos o professor Cláudio de Cicco:
É o que vai marcar fortemente sua presença neste Continente: o desenvolvimento
de uma civilização de fundo religioso protestante, valorizadora da Bíblia, muito
mais que as colônias hispânicas, durante séculos. A ideia de fazerem parte de um
“New Covenant”, literalmente: uma “Nova Aliança”, como novos herdeiros da
promessa abrâmica, incumbidos de divulgar a Escritura Sagrada por todo o mundo,
134
HOBBES, Thomas. Leviatã. 3.ed. Coleção os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 388. 135
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. 2.ed. Coleção os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural,
1978, p. 145. 136
RAMOS, Elival da Silva. Notas sobre a liberdade de religião no Brasil e nos Estados Unidos. Revista da
Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. n. 27-28. São Paulo: Centro de Estudos da Procuradoria Geral do
Estado de São Paulo, 1987: 199-246.
71
une-se curiosamente com alguns ideais de tolerância religiosa, hauridos no
“Tratado da Tolerância”, de John Locke, para a convivência entre cristãos de
diferentes denominações cristãs.137
Mas, a partir do momento que quiseram constituir a confederação americana,
passaram a adotar a ideia da tolerância religiosa cristã como ponto de partida, sem fazerem
qualquer oposição a nenhuma religião, muito embora os estados americanos fossem
genericamente de confissão cristã.138
Neste momento, o rompimento com a ideia de
“intolerância” lockeana foi fundamental para o surgimento da Nação americana, entretanto,
mantendo-se a ideia central da tolerância em Locke, que é a separação entre religiões e
Estado.
Os ventos pela “nova” liberdade precisaram de um poder capaz de proteger os
homens contra a intolerância. Além disso, fazia-se necessária uma força moral para impor
“limites” aos homens, e o dogmatismo das religiões oferecia estes limites.
Outro dado interessante produzido pela “nova” liberdade foi o surgimento das ideias
liberais, que, por consequência, influenciaram diretamente a relação entre as religiões e os
Estados modernos. Uma síntese deste momento histórico nos deu Georges Burdeau, em sua
obra “O Liberalismo”, quando afirma:
O que interessa aqui ao nosso propósito é sublinhar a importância que revestiu o
Liberalismo a separação entre religião e moral social. Essa ruptura, que é
incontestavelmente obra do Racionalismo levou o pensamento liberal a considerar
que a religião é uma questão privada entre o individuo e o seu Deus ou a sua Igreja.
Naturalmente o homem pode subordinar a sua conduta social à sua consciência
religiosa, mas trata-se duma atitude que só a ele diz respeito. Inversamente, desde
que a moral social se encontra separada da religião, as Igrejas devem abster-se de
intervir no plano temporal na organização das relações sociais: o seu domínio é a
salvação individual, e não é tarefa sua construir ou reformar a sociedade. As luzes
da fé e as da razão não iluminam o mesmo mundo.139
Esta ideia de separação total entre religiões e Estados, reduzindo a fé a uma mera
questão pessoal e individual, resultou em uma verdadeira tragédia. Os principais efeitos desse
137
DE CICCO, Cláudio. História do pensamento jurídico e da Filosofia do Direito. 4. ed. São Paulo: Saraiva,
2009, p. 129. 138
PRIETO, Vicente. Relaciones Iglesia-Estado: La perspectiva del Derecho canónico. Salamanca:
Publicaciones Universidad Pontificia de Salamanca, 2005, p. 42. 139
BURDEAU, Georges. O liberalismo. Trad. J. Ferreira. Sintra – Portugal: Publicações Europa-América. p.
101.
72
fato foram vistos na Revolução Francesa, onde inúmeras pessoas foram perseguidas e mortas
em virtude da manifestação pública de sua fé.
O fato é que a temática do Liberalismo stricto sensu acabou por colaborar para a
construção do conceito do laicismo e da laicidade, temas de suma importância na relação
entre religiões e Estados. Sem dúvida, há dois grandes modelos para identificarmos a política
estatal nos Estados modernos quanto às religiões, o primeiro seria o norte-americano (laico), o
segundo o francês (laicista).
Em relação ao ideal separatista entre religiões e Estado, o modelo americano é
diverso do francês. Nos Estados Unidos, o separatismo é entendido como garantia de
liberdade; por isso, o poder público se declara incompetente para determinar de algum modo a
religião ou a confissão dominante. Um exemplo claro está presente já na primeira emenda
constitucional americana, que proíbe tanto o estabelecimento de uma religião como a
proibição de seu exercício. A Constituição americana não é laicista nem oposta à religião, ou
seja, existe nela a ideia concreta da liberdade e da tolerância religiosa.140
Pode-se dizer que os Estados Unidos da América já em sua gênese de constituição
como Estado foi um dos principais países que melhor tratou as temáticas trazidas pelos
contratualistas, sobretudo no que diz respeito à tolerância, ao laicismo e à liberdade religiosa.
Desde muito cedo, os americanos aprenderam que a liberdade religiosa era um fator
primário para a união do Estado, mas, para isso, haveria de promover e se ensinar a cultura da
tolerância, divergindo um pouco do conceito dos contratualitas, uma vez que todos pregavam
a tolerância, mas o limite era a vontade do soberano ou a paz e a ordem civil.
A esse respeito, nos ensinou o Papa Francisco em uma recente visita aos Estados
Unidos:
Os quakers, que fundaram Filadélfia, viviam inspirados por um profundo sentido
evangélico da dignidade de cada pessoa e pelo ideal duma comunidade unida pelo
amor fraterno. Tal convicção levou-os a fundar uma colónia que haveria de ser um
paraíso de liberdade religiosa e tolerância. Este significado de compromisso
fraterno em prol da dignidade de todos, especialmente dos mais fracos e
vulneráveis, tornou-se parte essencial do espírito norte-americano.141
140
PRIETO, Vicente. Relaciones Iglesia-Estado: La perspectiva del Derecho canónico. Salamanca:
Publicaciones Universidad Pontificia de Salamanca, 2005, p. 42. 141
FRANCISCO, Papa. Discurso do Santo Padre no encontro em prol da Liberdade Religiosa em 26 de
setembro de 2015. Disponível em: http://goo.gl/bgWMJs. Acesso em 05/10/2015.
73
Além disso, os americanos laicos consideravam que a profissão de fé era uma das
características do próprio ser, homem no mundo, ou seja, o homem também era direcionado
por suas convicções e, assim, por meio dela, colaboraria diretamente na construção do mundo
e da sociedade. Os americanos, apoiados nas ideias da reforma protestante e impulsionados
pelo “Liberalismo”, não a nível moral, mas principalmente econômico, construíram sua nação
fundamentados na liberdade e na fé “cristã” tolerante aos demais credos.
A esse respeito, Jacques Maritain faz uma verdadeira apologia à Constituição
americana:
(...) há pessoas que, por amor da tolerância civil, queriam que a Igreja e o corpo
político vivessem em um isolamento total e absoluto (...) a expressão separação
Igreja e Estado não tem o mesmo significado nos Estados Unidos e na Europa. Na
Europa essa expressão significa ou significava esse isolamento completo que
deriva de mal-entendidos e de lutas seculares e que produziu os resultados mais
funestos. Essa mesma expressão nos Estados Unidos realmente significa,
juntamente com uma recusa a conceder qualquer privilégio a uma confissão
religiosa de preferência a outras, assim como à existência de uma religião oficial do
Estado, uma distinção entre o Estado e as igrejas compatível com a boa vontade e a
mútua cooperação. (...) A Constituição dos Estados Unidos lança as suas raízes,
não apenas em Locke ou no Racionalismo do século XVIII, mas sim na herança
secular do pensamento e da civilização cristã. (...) É incalculável o significado que
tem, para a filosofia política, a promulgação da Constituição americana no fim do
século XVIII. Essa constituição pode ser descrita como um documento cristão leigo
da mais alta relevância, infiltrado pela filosofia do momento. Ao espírito e à
inspiração desse grande documento político-cristão repugna a ideia de tornar a
sociedade humana indiferente a Deus e a qualquer fé religiosa. O dia de dar graças
a Deus e de orações públicas, a invocação do nome de Deus por ocasião de
qualquer solenidade oficial mais importante constituem, no comportamento prático
da nacionalidade, uma expressão desse espírito e dessa inspiração.142
Por outro lado, a experiência revolucionária francesa143
e em geral europeia foi um
pouco diferente da norte-americana, pois essas, buscando romper com o passado, combatiam
contra a tradição católica ou simplesmente cristã, ou seja, o Cristianismo era um elemento
142
MARITAIN, Jacques. O Homem e o Estado. Trad. Alceu Amoroso Lima. 2. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1956,
pgs. 213 e 214. 143
Breve nota a respeito da Revolução Francesa: A partir de fevereiro de 1790, sucede-se toda uma série de
decretos em que se põem de manifesto a tibieza dos cristãos presentes na Assembleia e os resultados da virulenta
propaganda que os iluministas tinham dirigido contra a Igreja. Os primeiros raios fulminaram as Ordens
religiosas. Numa total incompreensão do papel que a oração ocupa na vida cristã, também no seu aspecto social,
suprimiram-se todas as Ordens contemplativas, isto é, todas as que não se dedicassem a alguma atividade “útil”,
pedagógica ou hospitalar. Aos religiosos que aceitassem secularizar-se, oferecia-se uma pensão vitalícia; os
outros deveriam ser reagrupados, para deixar os seus conventos ao dispor da Nação. Além disso, em nome da
decantada Liberdade, “degradada” pelos votos religiosos, proibia-se a emissão de novos votos por parte dos
noviços e postulantes de todas as Ordens. Cf. FORT, Gertrud von le. A Última ao Cadafalso. Trad. Roberto
Furquim. Quadrante: São Paulo, 1998.
74
inseparável do sistema que era preciso combater e destruir. Os revolucionários buscavam criar
uma religião “revolucionária” e também uma “Igreja” dependente de seu movimento. Como
consequência, a religião deveria ser confinada à esfera da consciência pessoal, e, no âmbito
social, quando não controlada pela autoridade Estatal, era vista como resíduo cultural fruto da
ignorância.144
Diferente do pensamento americano, o modelo do separatismo francês é entendido
como separação entre a Igreja nacional francesa e a Igreja de Roma. Neste caso, o Estado
através de leis restritivas, procurava limitar a presença social e das “confissões” religiosas não
oficiais, tentando adequá-las aos princípios iluministas e, como se não bastasse, perseguindo
abertamente os religiosos.
Com o tempo, algumas destas medidas foram sendo corrigidas por meio de
concordatas-acordos com a Igreja Católica (Santa Sé), contudo, a tendência deste modelo
laicista, que considera o Estado acima das religiões, ou reduzi as religiões apenas a uma
associação civil, regulada por leis civis,145
se demonstrou ao longo da história um instrumento
de opressão, perseguição e privação dos direitos fundamentais da pessoa humana,
principalmente no que diz respeito à liberdade religiosa.146
Interessante observar que após a ascensão de Napoleão ao poder ele procurou fazer
uma concordata com o Papa Pio VII, pela qual a Igreja poderia gozar de certa “liberdade” na
França, embora vivesse em regime de separação entre a Igreja e o Estado, a isso se chamou
política do modus vivendi entre a Igreja e a Revolução.147
Os ideais dos contratualistas, a partir do século XVIII, influenciaram diretamente a
solidificação do Estado moderno. Neste caminho houve momentos diversos na relação entre
144
PRIETO, Vicente. Relaciones Iglesia-Estado: La perspectiva del Derecho canónico. Salamanca:
Publicaciones Universidad Pontificia de Salamanca, 2005, p. 42. 145
PRIETO, Vicente. Relaciones Iglesia-Estado: La perspectiva del Derecho canónico. Salamanca:
Publicaciones Universidad Pontificia de Salamanca, 2005, p. 43. 146
Foram os filósofos do Iluminismo francês do século XVIII que iniciaram a ferrenha campanha moderna
anticatólica. Atrelada ao Antigo Regime, a Igreja foi taxada como aliada da nobreza e inimiga do povo. Os
revolucionários franceses estavam recheados de ideias liberais, nos quais incluíam a eliminação da Igreja. Se não
poderia ser eliminada, ao menos, a Igreja deveria ser submissa ao Estado francês, como ficou claro na
Constituição Civil do Clero (1790). Além disso, os clérigos e religiosas que não prestaram juramento à
Constituição foram perseguidos e guilhotinados. Segundo o historiador Daniel Rops, a Revolução Francesa abriu
caminho às demais ideologias que defendiam a eliminação da Igreja. Os pensadores do século XIX
consideravam-se herdeiros dos iluministas e “por todo o século irão desenvolver-se, sempre no sentido da
irreligião total, doutrinas que culminarão naquilo que, […] na morte de Deus”. Cf. ROPS, Henri Daniel. A
Igreja das Revoluções (I). v. 8. Coleção História da Igreja. São Paulo: Quadrante, 2003, p. 407 e Cf. FRANÇA.
Constituição Civil do Clero (1790). Disponível em: http://goo.gl/MIKG59. Acesso em 04/11/2015. 147
DE CICCO, Cláudio. História do pensamento jurídico e da Filosofia do Direito. 4. ed. São Paulo: Saraiva,
2009, p. 175.
75
as religiões e os Estados. Percebe-se na história desde uma relação “harmônica” entre
religiões e Estados, tendo na liberdade do indivíduo o seu fundamento principal, tal como
visto nos Estados Unidos, até mesmo situações de rompimento total, ou tentativas de
“laicizar” a religião, quer seja ao excluir, perseguir ou estatizar o dado da fé.
Além disso, a história nos indica que a relação entre cidadãos e suas religiões no
Estado não é uniforme; entretanto, ela mesma aponta que, para a efetiva proteção dos direitos
fundamentais dos homens, dentre eles o da liberdade religiosa, o melhor caminho é um
modelo de colaboração que garanta certa autonomia do homem em relacionar-se com o
sagrado, incentivando-o, por outro lado, a manter suas responsabilidades dentro do Estado.
Portanto, autores como Hobbes, Rousseau, Locke e Maritain, contribuíram na
construção tanto da ideia a respeito da liberdade religiosa, como principalmente na relação
entre religiões e Estados; contudo, são as indicativas lockeana adotadas principalmente pelos
americanos que melhor conseguiram estabelecer uma relação saudável entre os fiéis, suas
religiões e o Estado. De fato, o modelo da constituição americana, elogiado por Maritain,
permitiu que Estado e religiões não ocupassem o espaço um do outro, o que suscitou em
ambos a possibilidade de desenvolverem atividades colaborativas em prol da valorização dos
direitos dos homens, dentre estes o da liberdade religiosa.
76
Capítulo Quarto
A possibilidade da colaboração entre Estados e religiões
4.1 – Os fundamentos para a colaboração: justificativas doutrinárias
A pessoa humana é a grande protagonista da ação do Estado, cabendo a todos os
homens, Estados, comunidades civis e religiosas, proteger os direitos humanos e
fundamentais. Neste sentido, os Estados signatários da Declaração Universal dos Direitos
Humanos possuem uma responsabilidade ainda maior, tendo em vista que reconheceram
solenemente que a liberdade religiosa é um direito fundamental humano, ou seja, inato,
indisponível, da pessoa humana.
Sobre essa perspectiva é que emerge a necessidade da construção de instrumentos
que protejam e promovam os direitos humanos tanto nos âmbitos particular e universal,
quanto nas relações entre religiões e Estados. Além disso, esses instrumentos não podem visar
um privilégio a determinado culto, pois seu objeto deve ser a pessoa humana e,
consequentemente, sua liberdade de professar ou não um credo religioso dentro da
comunidade política.
Assim, para fundamentar qualquer relação entre religiões e Estados, é preciso ter a
clareza de que objeto principal da proteção estatal deve ser o homem e seus direitos. Quanto
ao direito à liberdade religiosa, o cidadão e fiel tem o direito de relacionar-se com o sagrado
no seio do Estado, sem a interferência de qualquer autoridade civil, pois, embora as religiões
façam parte do dinamismo social, elas possuem suas justificativas, seus dogmas e seus
fundamentos fora do próprio Estado. Isso quer dizer: não é o Estado que confere às religiões
legitimidade.
Por outro lado, o Estado, em vista da proteção dos direitos dos cidadãos/fiéis e
cidadãos, possui interesse nas religiões. Além disso, há de considerar que os cidadãos também
possuem direitos e responsabilidades em seus Estados. Portanto, tanto os Estados quanto as
77
religiões desejam que haja uma relação harmônica entre eles, visto que ambos possuem nos
homens e na convivência social – destinada ao bem comum – seu objeto.
Após esse esclarecimento prévio quanto aos fundamentos para a construção da
relação colaborativa entre religiões e Estados, partimos para a investigação da possibilidade
dessa relação a partir do ensinamento de alguns pensadores que refletiram a respeito das
temáticas da liberdade, da tolerância, da laicidade, visando à colaboração entre Estados e
religiões.
John Locke, por exemplo, foi um dos pensadores que propôs vias de relação entre as
religiões e os Estados. Em sua obra “Carta acerca da Tolerância”, seu ponto de partida foi a
distinção entre a própria forma de “poder” dessas instituições, deixando claro suas diferenças,
uma de caráter "intelectual", a outra, de "força”, concluindo que ninguém pode impor religião
alguma a outro, pois a fé nasce da pregação, não da autoridade sancionadora civil.148
Segundo ele, para que haja uma boa relação entre as religiões e os Estados é
fundamental que estejam bem clara a natureza e a função de cada uma das entidades dentro da
sociedade, pois, a um, cabe cuidar das “almas”, ao outro, dos “bens civis”. Por fim, constatou
que a religião é mais tolerante quando não se apoia no poder civil,149
indicando uma vida de
colaboração com separação entre religiões e Estados.
não cabe ao magistrado civil o cuidado das almas, nem tampouco a quaisquer
outros homens. Isso não lhe foi outorgado por Deus, porque não parece que Deus
jamais tenha delegado autoridade a um homem sobre outro para induzir outros
homens a aceitar sua religião. (...) Seja qual for a religião que a gente professa, seja
qual for o culto exterior com o qual se está de acordo, se não acompanhados de
profunda convicção de que uma é verdadeira e o outro agradável a Deus, em lugar
de auxiliarem, constituem obstáculos à salvação.150
Os ensinamentos de Locke continuam a ecoar nas sociedades. É sabido o quanto suas
ideias influenciaram as declarações e constituições de direito do século XVIII, dando destaque
148
LOCKE, John. Carta Acerca da Tolerância. Trad. Anoar Aiex. São Paulo: Coleção Os Pensadores, Abril
Cultural, 1983, p. 5. 149
LOCKE, John. Carta Acerca da Tolerância. Trad. Anoar Aiex. São Paulo: Coleção Os Pensadores, Abril
Cultural, 1983, p. 9. 150
LOCKE, John. Carta Acerca da Tolerância. Trad. Anoar Aiex. São Paulo: Coleção Os Pensadores, Abril
Cultural, 1983, p. 5.
78
à primeira Constituição americana, que trazia em seu corpo os princípios do individualismo,
da propriedade privada da liberdade religiosa, de acordo com o pensamento do filósofo inglês.
Outro importante pensador na construção da ideia de uma legítima separação entre
religiões e Estados foi o filósofo francês Jacques Maritain. Em sua obra “O Homem e o
Estado”, apresentou os fundamentos que considerava indispensáveis na colaboração entre
“Igreja” e Estado.151
Primeiramente, afirmava que a pessoa humana é, ao mesmo tempo, parte
do corpo político e superior a ele, contudo a vocação humana está destinada ao bem comum
que se realiza também na vida civil.152
Posteriormente, Maritain investigou a respeito da natureza do Estado, afirmando que
ele está a serviço do homem e, consequentemente, destina-se a realizar os direitos
fundamentais da pessoa humana:
O Estado é apenas uma instituição autorizada a usar do poder e da coação, e
constituída por técnicos e especialistas em questões de ordem e bem-estar público;
em suma, um instrumento ao serviço do homem. Colocar o homem a serviço desse
instrumento é uma perversão politica. A pessoa humana como indivíduo existe para
o corpo político, mas o corpo político existe para a pessoa humana como pessoa.
Mas o homem, de maneira alguma existe para o Estado. O Estado que existe para o
homem.153
Em seguida, na mesma perspectiva de John Locke, Maritain afirmou que as
naturezas da Igreja e do Estado são distintas, tendo em vista que, enquanto o Estado só se
ocupa com a vida temporal dos homens e com seu bem comum temporal, a Igreja “religião”
por sua vez, é essencialmente espiritual e, pelo próprio fato de sua ordem, não pertencer a esse
mundo, de modo algum ameaça os reinos e as repúblicas da terra. O autor conclui que, ainda,
151
Jacques Maritain, afirma, nas observações preliminares da relação entre Igreja e Estado, que, quanto às
relações de outras Igrejas ou instituições religiosas com o Estado, o curso de sua argumentação aplicar-se-á
apenas de maneira indireta e restrita. Como veremos a seguir, de fato a Igreja Católica possuía algumas
particularidades como, por exemplo, o reconhecimento pelo direito internacional como “Estado” que a
diferenciam das demais. Este estudo, porém, não versa sobre a natureza jurídica da Igreja Católica, mas se
destina a apontar diretrizes que possam viabilizar a relação entre religiões e Estados. Nesse caso, o pensamento
de Maritain pode ser absorvido plenamente na proposta de diretrizes colaborativas. Mesmo que as demais Igrejas
e religiões não possuam o mesmo status jurídico que a Igreja Católica, no que se refere à proteção dos direitos
fundamentais de seus membros frente à autoridade estatal, em nada diferem desta. Cf. MARITAIN, Jacques. O
Homem e o Estado. Trad. Alceu Amoroso Lima. 2. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1956, p. 171. 152
MARITAIN, Jacques. O Homem e o Estado. Trad. Alceu Amoroso Lima. 2. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1956,
p. 173. 153
MARITAIN, Jacques. O Homem e o Estado. Trad. Alceu Amoroso Lima. 2. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1956,
p. 22.
79
que por mais distintos que sejam a “religião” (Igreja) e o corpo político não podem viver e
desenvolver-se em completo isolamento e ignorância um do outro, o que para ele seria pura e
simplesmente antinatural.154
Interessante observar que, o fundamento da necessária cooperação entre a Igreja
“religião” e o Estado, na visão de Maritain é a pessoa humana, que, como membro de ambos
participa dessas duas realidades; por isso, “uma divisão absoluta entre essas duas sociedades
seria o mesmo que cortar a pessoa humana em duas partes”.155
Maritain considerava ainda que o próprio bem comum da sociedade temporal supõe
que as pessoas humanas são indiretamente amparadas por essa sociedade temporal na sua
busca pela finalidade “extra temporal”, proposta pelas religiões, sendo essa uma condição
essencial para encontrar sua felicidade.156
Jacques Maritain procurou ainda deixar claro que colaboração não significa “oferecer
privilégios”. Segundo ele, esse fato colocava em cheque a própria liberdade da Igreja, bem
como as finalidades das comunidades políticas. Ensina-nos o autor francês:
O Estado não ajudaria em nada a Igreja pelo fato de conceder um tratamento
jurídico privilegiado ou procurando ganhar sua adesão por meio de vantagens
temporais atentatórias de sua própria liberdade. O melhor processo de que dispõe o
corpo político para ajudar a Igreja em sua missão espiritual é o de pedir a
assistência da Igreja para o seu próprio bem comum temporal. (...) Deveriam pedir,
na base da liberdade e da igualdade de direitos para todos os cidadãos, a sua
cooperação no campo de todas as atividades que visam o maior esclarecimento dos
espíritos humanos e da vida. Deveriam positivamente facilitar o trabalho religioso,
social e educativo por meio do qual a Igreja – tanto quanto os grupos espirituais ou
conhecidas por eles – contribui livremente para o bem-estar comum.”157
Por fim, Maritain conclui que a liberdade religiosa, como um direito fundamental do
homem, não pode ser simplesmente desprezada, ou reduzida ao campo privado, uma vez que
154
MARITAIN, Jacques. O Homem e o Estado. Trad. Alceu Amoroso Lima. 2. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1956,
p. 178. 155
MARITAIN, Jacques. O Homem e o Estado. Trad. Alceu Amoroso Lima. 2. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1956,
p. 178. 156
MARITAIN, Jacques. O Homem e o Estado. Trad. Alceu Amoroso Lima. 2. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1956,
p. 206. 157
MARITAIN, Jacques. O Homem e o Estado. Trad. Alceu Amoroso Lima. 2. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1956,
pgs. 208 e 209.
80
ela é anterior ao próprio Estado.158
Além disso, garantir a liberdade religiosa plena é uma
expressão do respeito aos direitos fundamentais dos homens.159
Nesta mesma perspectiva, a doutrina da Igreja Católica em muito colaborou na
construção de meios que viabilizassem a possibilidade de uma colaboração entre as religiões e
as comunidades políticas. Entre os ensinamentos, destacamos o magistério dos Papas Paulo
VI e João Paulo II. Ambos, líderes da Igreja Católica no século XXI, foram testemunhas e
vítimas dos horrores das guerras e, consequentemente, das privações de direitos, dentre estes a
liberdade religiosa, e posteriormente, como chefes de Estado procuraram tecer um caminho
sóbrio e eficaz na relação entre religiões e Estados, visando à proteção dos direitos
fundamentais da pessoa humana.
O Papa Paulo VI, na Constituição Pastoral Gaudium Et Spes, deixou clara a legítima
separação entre comunidade política e Igreja “religiões”, contudo, promovendo a colaboração
entre ambas. Afirmou o pontífice:
No domínio próprio de cada uma, comunidade política e Igreja são independentes e
autónomas. Mas, embora por títulos diversos, ambas servem a vocação pessoal e
social dos mesmos homens. E tanto mais eficazmente exercitarão este serviço para
bem de todos, quanto melhor cultivarem entre si uma sã cooperação, tendo
igualmente em conta as circunstâncias de lugar e tempo.160
A respeito da relação colaborativa ensinou-nos o Papa João Paulo II:
O direito civil e social à liberdade religiosa, enquanto atinge a esfera mais íntima
do espírito, revela-se ponto de referência e, de certo modo, torna-se a medida dos
outros direitos fundamentais. Trata-se, efetivamente, de respeitar o espaço mais
cioso da autonomia da pessoa, permitindo-lhe agir segundo o ditame da sua
consciência, quer nas escolhas privadas quer na vida social. O Estado não pode
reivindicar uma competência, direta ou indireta, quanto às convicções religiosas
das pessoas. Ele não pode arrogar-se o direito de impor ou de impedir a profissão e
a prática em público da religião de uma pessoa ou de uma comunidade. Neste
domínio, é dever das Autoridades civis garantir que os direitos das pessoas
158
MARITAIN, Jacques. Os direitos do homem. Trad. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: José Olympio
Editora, 1967. p. 66. 159
MARITAIN, Jacques. O Homem e o Estado. Trad. Alceu Amoroso Lima. 2. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1956,
p. 207. 160
PAULO VI, Papa. Constituição Pastoral Gaudium Et Spes – Sobre a Igreja no Mundo Atual, n. 76.
Disponível em: http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-
ii_const_19651207_gaudium-et-spes_po.html. Acesso em: 17/10/2015.
81
singulares e das comunidades sejam igualmente respeitados e salvaguardar, ao
mesmo tempo, a justa ordem pública. 161
A convivência harmônica entre as religiões e os Estados é possível, como visto
acima, as ideias e os ideais ensinados solidificam ainda mais a compreensão de que não basta
apenas a construção de vias de relacionamento de natureza “privada”, ou seja, entre o cidadão
e o Estado; é necessário também um relacionamento “público” entre as religiões e os Estados,
tendo em vista que, por se tratar de um direito fundamental, ainda há de se considerar que a
liberdade religiosa muitas vezes é exercida por meio de uma “Igreja” em um ambiente
coletivo, essa que possui ritos, dogmas, doutrinas e “leis” próprias.
Além disso, está claro que a relação entre religiões e Estado de forma alguma ameaça
a independência, legitimidade e natureza de ambos; pelo contrário, esta relação pode inclusive
fortalecer os laços de “amizade” por meio das diferenças, porém, sem deixar de lado o seu
fundamento comum que é a pessoa humana e seus direitos fundamentais.
Porém, é necessário que os Estados nunca se esqueçam de que a liberdade religiosa é
condição para a busca da verdade e de que a verdade não se impõe pela violência, ou seja, de
fato, a religião é uma força positiva e propulsora na construção da sociedade civil e política.162
Por fim, e não menos importante, é a compreensão de que tanto as religiões como os
Estados são parceiros no que diz respeito a ter nos homens o objeto de “proteção”. Assim,
ambos podem construir “pontes”, ao invés de “barreiras”, para que, juntos, trabalhem na
colaboração do progresso humano. Portanto, a construção de um modelo colaborativo precisa
visar primeiramente à proteção efetiva dos direitos fundamentais dos homens, dentre eles o da
liberdade religiosa, bem como os que decorrem dessa liberdade, como os de culto, de
expressão, de associação e outros.
161
JOÃO PAULO II, Papa. Mensagem para o XXI Dia Mundial da Paz – Liberdade Religiosa Condição
para a Convivência Pacífica, em 01 de janeiro de 1988. Disponível em: http://w2.vatican.va/content/john-paul-
ii/pt/messages/peace/documents/hf_jp-ii_mes_19871208_xxi-world-day-for-peace.html. Acesso em 17/10/2015. 162
BENTO XVI, Papa. Liberdade Religiosa, Caminho para a Paz. Mensagem para o Dia Mundial da Paz de
2011. Disponível em: http://goo.gl/WR6dYC. Acesso em 07/11/2015.
82
4.2 – Os modelos e problemas na relação entre Estados e religiões
Após indicarmos o longo caminho percorrido na solidificação da liberdade religiosa
como um direito fundamental, faz-se necessário um aprofundamento histórico nos modelos da
relação entre as religiões e os Estados, identificando a distinção entre laicidade e laicismo,
bem como apontado alguns exemplos da maneira como essa relação foi sendo construída nas
comunidades internacionais.
Além disso, é preciso ser observado o fenômeno das doutrinas liberais dos séculos
XVIII e XIX, pois essas propunham um Estado indiferente às questões religiosas, quer seja, a
nível social, jurídico e cultural. Citamos como exemplo, a influência do chamado “Estado
liberal”, que considerava o âmbito da dimensão religiosa somente o da intimidade pessoal.
Assim, segundo este conceito não tem sentido uma relação institucional entre as religiões e o
Estado, mas somente uma relação entre Estado e cidadão do ponto de vista da liberdade
religiosa.
Tudo isso acabavam por confundir a luta pela liberdade como luta contra religiões,
muitas vezes expressa de forma evidente em uma hostilidade e perseguição, principalmente ao
Cristianismo católico.
Como consequência, foi se desenvolvendo três formas de relação entre as religiões e
os Estados, quais sejam: de colaboração, de confissão e de separação.163
O primeiro modelo
colaborativo parte do princípio de que, por terem as religiões e os Estados interesses e
competências em relação ao homem, fiel e cidadão, se torna possível a construção de acordos
de colaboração, e o principal efeito é o reconhecimento do fenômeno religioso como um
direito fundamental,164
apesar do Estado não “professar” nenhum credo oficial e manter a sua
“laicidade”, acaba por valorizar e proteger o dado religioso.
163
DIÉGUEZ, Myriam M. Cortés; PRISCO, José San José (coords.). Derecho Canónico II – El derecho en la
misión de la Iglesia. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2006, pg. 357. 164
A título exemplificativo, diversos países possuem uma religião oficial, como a Inglaterra (Anglicana);
Dinamarca, Noruega e Islândia (Luterana); Malta e Mônaco (Católico). Outros embora não possuem uma
religião oficial, adotam o sistema de colaboração. Por exemplo: Alemanha, Itália, Espanha, Portugal. Contudo, a
situação mais complicada para a liberdade religiosa ocorre principalmente nos países teocráticos, onde a lei
estatal decorre diretamente da lei religiosa. Esse fenômeno é visto em muitos países muçulmanos, que adotam
leis civis como um aspecto do Corão. O grande problema é que, por se tratar de uma lei civil/religiosa, muitas
83
O segundo modelo confessional é aquele que compatibiliza o reconhecimento da
liberdade religiosa com uma declaração de confessionalidade sociológica, partindo do fato de
que grande parte da população professa tal religião. Muitas vezes esse modelo priva a
liberdade religiosa, sobretudo a das minorias.
Por fim, o modelo de separação ocorre naqueles países onde está proibida a religião
do Estado, porém, se garante a liberdade religiosa, tendo as confissões religiosas natureza
semelhante a das associações civis. A vantagem desse modelo é que garante certa autonomia
entre as religiões e os Estados. A desvantagem, entretanto, é que, por não existir um acordo
entre os poderes civis e religiosos, o cidadão pode se deparar com legislações contrapostas
que devem cumprir, tendo em vista que é cidadão e fiel, possui responsabilidades tanto com
sua “Igreja” como com o Estado.165
Vicente Pietro aponta também três correntes básicas para identificar a relação entre
religião e Estados. A primeira é chamada de concordatas/colaboração; a segunda, de sistema
de separação entre religião e Estado; e terceira, na qual o Estado é um “inimigo” e
perseguidor das religiões.166
Exemplos da primeira corrente são países como Alemanha, Itália, Espanha, Portugal
e inúmeros países da América Latina, inclusive o Brasil; em relação à segunda corrente,
destacam-se Estados Unidos e França (período posterior à perseguição); por fim, há modelos
como a da República Popular da China e da Coréia do Norte, onde as religiões “não oficiais”
são amplamente perseguidas.
O interessante nas correntes citadas, salvo as de ruptura total entre religião e os
Estados, é que o dado religioso não é suprimido das atividades públicas, havendo, assim, uma
colaboração direta ou indireta das religiões no desenvolvimento dos próprios princípios laicos
ou confessionais definidos na Carta Magna destes Estados. No caso dos países laicos, de fato,
mesmo sem uma religião oficial, eles não precisam e nem devem “eliminar” o dado religioso
da esfera pública, pois em si a religiosidade não constitui um obstáculo para laicidade.
vezes os membros de outras religiões, embora cidadãos, não conseguem alcançar cargos públicos e outros
direitos. 165
DIÉGUEZ, Myriam M. Cortés; PRISCO, José San José (coords.). Derecho Canónico II – El derecho en la
misión de la Iglesia. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2006, pg. 358. 166
PRIETO, Vicente. Relaciones Iglesia-Estado: La perspectiva del Derecho canónico. Publicaciones
Universidad Pontificia de Salamanca: Salamanca, 2005, p. 43.
84
Como se não bastasse, na relação entre religiões e os poderes estatais, há também
que se observar o modelo constitucional seguido por cada Estado, principalmente nos países
laicos, ou seja, naqueles que não têm uma religião oficial. A laicidade de forma alguma
significa que o Estado não deve permitir e/ou tolerar uma religião, ou reduzi-la à esfera
privada, pois o direito à liberdade religiosa é independente de haver ou não uma religião
nacional.
Há, assim, duas linhas muito tênues: a primeira é a da laicidade; a segunda, a do
laicismo. A laicidade permite a convivência pacífica entre o sagrado e o civil, pois não reduz
a religiosidade apenas à esfera privada, uma vez que considera o homem um ser social. Sendo
assim, para a laicidade “proteger” as religiões é de certa forma proteger o homem, destinatário
da liberdade religiosa como um direito fundamental. Já o laicismo provoca aversão total às
religiões nos Estados laicos, pois acaba por eliminar ou extinguir as religiões apenas a sua
esfera privada, muitas vezes, o laicismo acaba por incentivar meio de perseguições e
privações de direitos.
Quando se trata de países “laicos”, há o grande risco de se confundir funções
públicas com funções eclesiais. Quando isso ocorre, é prejudicial para as duas partes. Como
nos ensina John Locke, “quem mistura o céu e a terra, coisas tão remotas e opostas,
confundem essas duas sociedades, as quais em sua origem, objetivo e substancialmente são
por completo diversas”.167
Por outro lado, a fusão entre Estado e religião nem sempre se demonstrou ser
positiva. Basta olharmos os noticiários que teremos uma breve visão de como os principais
conflitos mundiais possuem raízes em motivações religiosas. Ainda hoje, pessoas têm sido
mortas por não professarem a fé do país ou da maioria,168
como, por exemplo, a barbárie
difundida e produzida pelo “Estado Islâmico” na Síria e no Iraque.
O fato é que, quando o “religioso e o civil” se misturam, não havendo valores
universais, humanos, que norteiam esta relação, o resultado desta fusão pode ser grandes
167
LOCKE, John. Carta Acerca da Tolerância. Coleção Os Pensadores, Abril Cultural. Trad. de Anoar Aiex,
1983, p. 10. 168
Dentre os episódios mais recentes, destaca-se a reportagem: “Casal cristão é morto no Paquistão por profanar
o Corão” e “Estado Islâmico crucifica 12 homens no nordeste da Síria”. Disponível em: http://goo.gl/sMImBB.
Acesso em 05/10/2015.
85
desastres para todos os homens. Como consequência, não poucas vezes a constituição da
liberdade religiosa se limita a tal ponto que ocorre uma verdadeira perseguição às minorias.169
Há ainda países, como a República Popular da China onde, aparentemente, existe um
direito à liberdade religiosa. A Constituição chinesa afirma inclusive que seus cidadãos
“gozam de liberdade de crença religiosa”, porém, ao mesmo tempo, o Estado proíbe
organizações públicas de qualquer religião. Assim, os “fiéis” não podem se reunir em templos
não registrados e tampouco manifestar e divulgar sua fé publicamente. Essa perseguição
ocorre contra muçulmanos, cristãos, budistas e outras minorias.170
A perseguição religiosa ainda existe nas sociedades, uma vez que todos os dias
inúmeras pessoas são privadas de direitos fundamentais como a vida, a liberdade de
locomoção, de expressão, e outros, por motivos religiosos, ou seja, em razão de sua crença ou
da ausência dela. Certamente este fato é uma barreira para o desenvolvimento integral da
pessoa humana em todos os seus aspectos.171
Enfim, para a construção de mecanismos jurídicos de colaboração entre as religiões e
os Estados é de fundamental importância que sejam observados os modelos apresentados
acima. Sem dúvida, nos países laicos o que melhor contribui é o modelo que garantem a
laicidade do Estado, porém, estimula a cooperação com as religiões, oferecendo a essas certa
autonomia dentro dos Estados.
Por fim, é preciso considerar na construção de ferramentas colaborativas a
confessionalidade de um povo, que pode ser manifestada por meio de um Estado confessional,
ou seja, com uma religião oficial; porém, essa de forma alguma pode ser um instrumento para
suscitar certos privilégios a determinados cultos, pois o direito à liberdade religiosa é inerente
a todos os cidadãos, inclusive das demais minorias e daqueles que não desejam professar fé
alguma.
169
ROCHE, Jean. Iglesia Y Libertad Religiosa. Barcelona: Heder, 1967. p.99 170
Cf. Portas Abertas – China: “A perseguição ao cristianismo abrange desde multas e confisco de Bíblias até
destruição de templos. Evangelistas são detidos, interrogados, aprisionados e torturados”. Disponível em:
http://goo.gl/ov8Amm. Acesso em 30/09/2015. 171
Há ainda entidades como a Fundação a Igreja que Sofre <http://ow.ly/DNIk3>, a International Institute for
Religious Freedom <http://www.iirf.eu/>, e a organização Portas Abertas <http://goo.gl/lJ0JfO>, que monitoram
como andam a liberdade e a perseguição religiosa. Há inclusive, nos sites das citadas entidades, relatórios anuais
e outros dados específicos dos países onde ocorrem a perseguição, bem como a sua intensidade.
86
4.3 – Os desafios da universalidade do direito à liberdade religiosa
O longo processo histórico na solidificação da liberdade religiosa como um direito
fundamental, produziu o desafio da universalidade desses direitos. Os documentos
apresentados neste trabalho como: Declaração de Direitos do Bom Povo da Virginia (1776), a
Declaração de Independência dos Estados Unidos (1776), a Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão (1789) e os mais modernos como Declaração Universal dos Direitos
Humanos (1948), bem como os Pactos Internacional dos Direitos Civis e Políticos e
Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), progressivamente
procuraram reconhecer os direitos inerentes à liberdade religiosa em sua dimensão
internacional.
Porém, o reconhecimento universal deste direito é um desafio nem sempre muito
fácil, considerando que as pessoas, as religiões e os Estados são culturalmente “diferentes”.
Em relação à pessoa humana, embora ontologicamente igual, e às demais, sujeita de direitos
fundamentais e universais, há barreiras para o exercício de seus direitos fundamentais, muitas
vezes impostos por sua própria cultura, o que acaba por se expressar em políticas públicas.
As Nações Unidas, respeitando a soberania e particularidade de cada Estado,
fundamentou em seu documento marco, Declaração Universal dos Direitos Humanos, a
proteção do reconhecimento a direito fundamental da liberdade religiosa:
Artigo II. 1 – Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as
liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja
de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem
nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição. (...)
Artigo XVIII – Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento,
consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença
e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo
culto e pela observância, em público ou em particular.172
Posteriormente, diversos países se empenharam em reconhecer o direito fundamental
à liberdade religiosa. Quanto aos princípios internacionais da liberdade religiosa, sua
172
Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em:
<http://www.onu.org.br/img/2014/09/DUDH.pdf>. Acesso 19/11/2014.
87
fundamentação se encontra principalmente na Conferência Mundial de Direitos Humanos,
celebrada em Viena em 1993, que proclamou que os direitos humanos e as liberdades
fundamentais são patrimônios inatos de todos os seres humanos, além do que sua promoção e
proteção são de responsabilidade dos governos. Dentre outras coisas, destaca-se no texto a
proteção à liberdade religiosa:
1. A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos reafirma o empenho solene de
todos os Estados em cumprirem as suas obrigações no tocante à promoção do
respeito universal, da observância e da proteção de todos os Direitos Humanos e
liberdades fundamentais para todos, em conformidade com a Carta das Nações
Unidas, com outros instrumentos relacionados com os Direitos Humanos e com o
Direito Internacional. A natureza universal destes direitos e liberdades é
inquestionável. Neste âmbito, o reforço da cooperação internacional no domínio
dos Direitos Humanos é essencial para a plena realização dos objetivos das Nações
Unidas. Os Direitos Humanos e as liberdades fundamentais são inerentes a todos os
seres humanos; a sua proteção e promoção constituem a responsabilidade primeira
dos Governos. (...)
22. A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos apela a todos os Governos
para que adotem todas as medidas adequadas, em conformidade com as suas
obrigações internacionais e no respeito pelos respectivos sistemas jurídicos, para
combater a intolerância e a violência com ela conexa que tenham por base a
religião ou o credo, incluindo práticas discriminatórias contra as mulheres e
profanação de locais religiosos, reconhecendo que cada indivíduo tem direito à
liberdade de pensamento, consciência, expressão e religião. A Conferência
convida, igualmente, todos os Estados, porém em prática as disposições da
Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e
Discriminação baseadas na Religião ou no Credo.173
Hoje, os desafios do reconhecimento dos direitos fundamentais e humanos, dentre
eles o da liberdade religiosa, versam sobre a universalidade destes direitos, uma vez que há
uma forte tendência contemporânea em eliminar toda a diferença e discriminação, seja ela em
relação a sexo, raça, nascimento, religião. Com isso, a Declaração Universal dos Direitos
Humanos pretendeu ser universal, ou seja, destacou que há um patrimônio inato em todos os
seres humanos, uma dignidade única para todos os seres humanos.
Em relação ao direito e à proteção da liberdade religiosa, cada Estado, sendo cada
um, na própria ordem, autônomo, independente e soberano, solidificou o compromisso de
cooperar mutuamente para a construção de uma sociedade mais justa, pacífica e fraterna,
173
Declaração e Programa de Ação de Viena. Conferência Mundial sobre Direitos Humanos. Disponível em:
<http://goo.gl/WlbEOO>. Acesso 19/10/2015.
88
tendo como destinatária e motivação única a defesa do direito fundamental da liberdade
religiosa.
Cada um desses países aborda o elemento religioso a partir de perspectivas próprias.
Alguns adotam uma religião oficial, outros, como o Brasil, asseguram diretamente a liberdade
religiosa, mesmo sendo países laicos e, por fim, existem aqueles, como os Estados Unidos da
América, que proclamam solenemente a separação entre Igreja “religiões” e Estado, porém,
possuem um longo histórico de tolerância e liberdade religiosa,174
realizando inclusive
acordos colaborativos.
Assim, se há um tratamento desigual, a liberdade religiosa é atingida, o que prejudica
a todos. Contudo, é diferente onde há elementos religiosos presentes na cultura, justificando
um tratamento não uniforme e não totalmente idêntico, pois não se pode traduzir a igualdade
religiosa como exigência de tratamento matematicamente idêntico entre confissões religiosas
por parte do Estado.175
Além disso, há de se considerar que o direito à liberdade religiosa não é em si
absoluto, uma vez que pode sofrer certas limitações, tendo em vista que na ordem social o
exercício externo desses direitos pode atingir direitos de outras pessoas, exigindo, assim, certa
limitação imposta pela própria natureza social.
A legitimidade dessas restrições resulta da exigência de responsabilidade própria da
pessoa em relação à ordem social; por isso, não se pode falar de violação do direito à
liberdade religiosa, mas sim, de uma função legítima da autoridade ao regular a colaboração
ativa, visando chegar à realização da liberdade ideal, qual seja, aquela que conjuga a
consciência do próprio direito e o respeito à liberdade e ao direito dos outros, com a
consciência própria responsável para o bem geral.176
Contudo, novamente há de destacar que a colaboração entre Estados e religiões não
pode significar privilégio ou tratamento especial, uma vez que, no próprio conceito de plena
liberdade religiosa, da qual decorre a necessária separação entre Estado e religiões, encontra-
174
TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 201, p. 487. 175
TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 492. 176
VERA URBANO, Francisco de Paula. La Libertad Religiosa como Derecho de La Persona. Madrid:
Instituto de Estudios Políticos, 1971, p. 109.
89
se uma igualdade inerente entre crenças, indivíduos, religiões, perante o Estado, o que confere
a esse direito um caráter universal, mesmo diante de certas “limitações”.
Enfim, buscando a proteção desse direito a nível internacional, diante dos desafios da
universalidade apresentados, bem como dos próprios limites inerentes a esses direitos, temos
no modelo colaborativo o que melhor garante a proteção dos direitos à liberdade religiosa; por
esta razão, se encontram-se na comunidade jurídica inúmeros acordos/concordatas entre
Estados e religiões, entre os quais apresentaremos o modelo colaborativo entre o Estado
brasileiro e a Igreja Católica, instrumento esse que se destina à proteção dos direitos
fundamentais da pessoa humana, sobretudo o da liberdade religiosa.
90
Capítulo Quinto
A religião e o Estado brasileiro
5.1 – A liberdade religiosa no direito pátrio
A religião, principalmente o Cristianismo católico, sempre ocupou um espaço de
destaque no Brasil. Há uma presença significativa da fé católica no desenvolvimento cultural,
social, ético, moral e jurídico do Brasil. Essa relação possui raízes em Portugal, país católico,
que descobriu a “Terra de Santa Cruz”. Nas caravelas havia uma presença significativa de
religiosos que possuíam a missão de implantar a fé católica dentro do “território” político
descoberto. De fato, a presença da fé católica é de tal forma representativa que o primeiro ato
público realizado no Brasil foi justamente a celebração de um culto religioso (Santa Missa)
celebrada na hoje cidade de Santa Cruz de Cabrália que se localiza nos arredores de Porto
Seguro (Estado da Bahia), esse evento histórico consistiu, pois, em um ato público (civil) e
religioso.177
Por outro lado, a relação entre a Igreja Católica e o Estado brasileiro também viveu
as tensões produzidas pelos ideais da Revolução Francesa, tendo como consequência que, em
um período histórico, houve a tentativa de excluir qualquer resquício da influência religiosa
no poder estatal brasileiro. Mas, de maneira geral, o dado da religião católica no
desenvolvimento do Estado brasileiro é tão significativo que, após a independência de
Portugal, ou seja, na Proclamação da República, esses elementos foram positivados já na
primeira Constituição brasileira, que estabeleceu desde o início uma colaboração entre o
Brasil e a religião, no caso a católica.
Marco Aurélio Lagreca Casamasso nos oferece mais detalhes dessa relação histórica:
O Brasil chega à independência, herdeiro de um patrimônio político-religioso cujo
vigor ainda se faria sentir com esplendor até a Proclamação da República. Sua
primeira Constituição, outorgada pelo Imperador Dom Pedro I, em 1824, dois anos
após a declaração da independência, é o grande testemunho documental de uma
legitimação político-jurídica fundada na religião, que perduraria por mais de
sessenta anos. Findo o Império dos Orleans e Bragança, o Estado brasileiro não
177
PIRES, Heliodoro. Temas de História Eclesiástica do Brasil. São Paulo: São Paulo, 1946, pgs. 13-15.
91
tarda a afastar-se da Igreja Católica, adotando o regime de separação no tocante às
confissões religiosas, que, em linhas gerais, permanece como modelo até os nossos
dias.178
Casamasso179
observa ainda que as questões relativas à liberdade religiosa
desempenham um papel decisivo na gênese e no desenvolvimento do longo processo político
que culminou com a consagração dos direitos fundamentais nas primeiras Constituições
“modernas” do final do século XVIII. Assim, a liberdade religiosa, para o autor, compreende
um arco de direitos e liberdades que abrange desde o direito de os indivíduos aceitarem ou
rejeitarem livremente uma crença, até o direito de os fiéis formarem livremente associações
religiosas.
Atualmente, as doutrinas jurídicas constitucionais que dão suporte para o pensamento
jurídico no Brasil reconhecem amplamente o dever do Estado em garantir o pleno exercício
dos direitos fundamentais, dentre estes o da liberdade religiosa; para isso, a doutrina oferece
inclusive a possibilidade da realização de acordos internacionais com o objetivo de garantir e
promover o desenvolvimento dos direitos fundamentais.
Contudo, pode-se dizer que, ao longo da história das constituições brasileiras, houve,
em grosso modo, três fases distintas na relação entre a religião180
e o Estado: a primeira; de
união entre a Igreja Católica e o Estado; a segunda se iniciou com o Decreto 119-A e colocou
fim ao padroado; a terceira, após a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil
de 1934, quando iniciou a “política” de colaboração entre “religiões” e Estado.
Enfim, o direito brasileiro, ao longo dos anos, tem solidificado claramente a proteção
desses direitos; contudo, até chegar a Constituição atual, um longo caminho foi sendo traçado.
Por isso, apresentaremos em linhas gerais uma breve história do desenvolvimento do direito à
liberdade religiosa no Brasil, a partir de suas constituições e suas respectivas fases.
178
CASAMASSO, Marco Aurélio Lagreca. Política e Religião: O Estado Laico e a Liberdade Religiosa à luz do
Constitucionalismo Brasileiro. 2006. 262 f. Tese (Doutorado em Direito). Pontifícia Universidade de São Paulo,
São Paulo, 2006. 179
CASAMASSO, Marco Aurélio Lagreca. Política e Religião: O Estado Laico e a Liberdade Religiosa à luz do
Constitucionalismo Brasileiro. 2006. 234 f. Tese (Doutorado em Direito). Pontifícia Universidade de São Paulo,
São Paulo, 2006. 180
Quando se refere à religião, observa-se que o Estado procurava relacionar-se diretamente com a Igreja
Católica. As demais religiões ou eram “inexpressivas” para o Estado, ou era tolerado o culto privado, conforme
veremos no desenvolvimento do trabalho.
92
5.2 – A união entre a Igreja Católica e o Estado: o padroado
A primeira fase constituiu no período onde havia uma união entre a Igreja Católica e
o Estado, essa iniciada com a Constituição Política do Império do Brasil de 25 de março de
1824,181
que, estabelecia em seu artigo 5, a Religião Católica Apostólica Romana como
“oficial”, enquanto que às demais seriam permitidos apenas os cultos domésticos ou
particulares em uma casa para isso destinada, sem forma alguma exterior de templo.
Destacam-se nessa fase dois aspectos importantes, o primeiro era a restrição da fé ao
ambiente privado; o segundo, a proibição de construção de qualquer templo religioso que não
fosse o católico.
Quanto à redução da “fé não católica” à vida privada, o que de fato acontecia era que
o Brasil possuía uma religião oficial; por isso, “descartava” as demais profissões de fé, como
se não fosse de interesse público. Além disso, há de se considerar que a ideia de liberdade
religiosa como conhecemos hoje ainda não estava solidificada.
Em relação à vedação de construção de templo religioso não católico, se fosse no
tempo presente, esta proibição entraria em rota de colisão com dois direitos fundamentais
decorrentes da liberdade religiosa; o de livre associação e o de expressão. Tendo em vista que
hoje a grande maioria dos fiéis se reúnem no templo para compartilharem sua fé, além de
renderem culto à divindade e ensinar a fé.
A Constituição Política do Império do Brasil de 1824 trazia ainda uma interferência
direta da “fé” na vida das autoridades públicas, pois era um requisito constitucional que tanto
o imperador, quanto o herdeiro e os conselheiros de Estado professassem a fé católica. Este
ato era solene e condição de legitimidade para exercer a função pública. Afirmava a
Constituição:
Art. 103. O Imperador antes do ser aclamado prestará nas mãos do Presidente do
Senado, reunidas às duas Câmaras, o seguinte Juramento – Juro manter a Religião
Católica Apostólica Romana, a integridade, e indivisibilidade do Império; observar,
e fazer observar a Constituição Politica da Nação Brasileira, e mais Leis do
Império, e prover ao bem geral do Brasil, quanto em mim couber.
Art. 106. O Herdeiro presuntivo, em completando quatorze anos de idade, prestará
nas mãos do Presidente do Senado, reunidas as duas Câmaras, o seguinte
181
Constituição Política do Império do Brasil, de 25 de março de 1824. Disponível em: http://goo.gl/xQ2es6.
Acesso 04/11/2015.
93
Juramento – Juro manter a Religião Católica Apostólica Romana, observar a
Constituição Politica da Nação Brasileira, e ser obediente ás Leis, e ao Imperador.
Art. 141. Os Conselheiros de Estado, antes de tomarem posse, prestarão juramento
nas mãos do Imperador de manter a Religião Católica Apostólica Romana;
observar a Constituição, e às Leis; ser fieis ao Imperador; aconselha-lo segundo
suas consciências, atendendo somente ao bem da Nação.182
Este período histórico foi conhecido como o padroado. A relação entre a Igreja e o
Brasil colônia só pode ser compreendida mediante o entendimento desta “política”. O regime
do padroado brasileiro tem suas origens no padroado português, e as raízes históricas do
padroado remontam ao século IV, quando o Cristianismo não tinha permissão para realizar
suas práticas religiosas livremente nos territórios do Império Romano. Vejamos o que nos
ensina Hoornaert:
As origens históricas do padroado devem ser buscadas ainda no século IV. Nos três
primeiros séculos da era cristã a Igreja Católica viveu marginalizada da vida
publica e social, quer dentro do próprio judaísmo, quer na civilização helênica. O
mundo romano não aceitou os cristãos com suas práticas e instituições.183
O direito do padroado dos reis de Portugal só pode ser entendido dentro de todo o
contexto da história medieval. Na realidade, não se trata de uma usurpação dos
monarcas portugueses de atribuições religiosas da Igreja, mas de uma forma típica
de compromisso entre a Igreja de Roma e o governo de Portugal. Unindo os
direitos políticos da realeza aos títulos de grão-mestre de ordens religiosas, os
monarcas portugueses passaram a exercer ao mesmo tempo o governo civil e
religioso, principalmente nas colônias e domínios de Portugal.184
O padroado consistia basicamente em uma troca de favores, privilégios, convecções
mútuas entre a Igreja Católica e o Estado. Por um lado, a Igreja “justificava” o poder dos
governantes; por outro, recebia proteção da autoridade civil, que, entre outras coisas, mandava
construir igrejas e, intervia diretamente na nomeação de cargos eclesiásticos.
No fundo, o que parecia ser vantajoso tornou-se um verdadeiro fardo para ambas as
partes, porque, por um lado, o Estado se via obrigado a manter a Igreja Católica, o que gerava
muito ônus econômico e político, por outro, a Igreja não tinha liberdade de livre exercício,
pois inúmeras vezes ficava refém dos desejos dos governantes. Ainda, esse modelo
182
Constituição Política do Império do Brasil de 25 de março de 1824. Disponível em: http://goo.gl/xQ2es6.
Acesso 04/11/2015. 183
HOORNAERT, Eduardo. História da Igreja no Brasil. Petrópolis: Vozes, tomo II, 1979, p. 160. 184
HOORNAERT, Eduardo. História da Igreja no Brasil. Petrópolis: Vozes, tomo II, 1979, p. 163.
94
desconsiderava as demais religiões, o que colocava à margem o direito fundamental dos não
católicos em professarem ou não sua religião como desejassem.
5.3 – Nasce um novo tempo: o fim do padroado
A segunda fase se iniciou com o Decreto 119-A, de 7 de janeiro de 1890, e se
solidificou na Constituição de 1891, que resultou em uma profunda mudança na estrutura do
Estado, pois o vedou de estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos
religiosos, sem deixar de proteger a liberdade do indivíduo quanto à manifestação de sua
crença.
O Decreto 119-A proibia expressamente a intervenção da autoridade federal e dos e
Estados federados em matéria religiosa. Além disso, consagrou a plena liberdade de cultos,
extinguiu o padroado e estabeleceu outras providências. Os principais artigos do Decreto 119-
A estão dispostos da seguinte maneira:
Art. 1. É proibido á autoridade federal, assim como á dos Estados federados,
expedir leis, regulamentos, ou atos administrativos, estabelecendo alguma religião,
ou vedando-a, e criar diferenças entre os habitantes do país, ou nos serviços
sustentados á custa do orçamento, por motivo de crenças, ou opiniões filosóficas ou
religiosas.
Art. 2. A todas as confissões religiosas pertence por igual à faculdade de exercerem
o seu culto, regerem-se segundo a sua fé e não serem contrariadas nos atos
particulares ou públicos, que interessem o exercício deste decreto.
Art. 3. A liberdade aqui instituída abrange não só os indivíduos nos atos
individuais, senão também as igrejas, associações e institutos em que se acharem
agremiados; cabendo a todos o pleno direito de se constituírem e viverem
coletivamente, segundo o seu credo e a sua disciplina, sem intervenção do poder
público.
Art. 4. Fica extinto o padroado com todas as suas instituições, recursos e
prerrogativas.
Art. 5. A todas as igrejas e confissões religiosas se reconhece a personalidade
jurídica, para adquirirem bens e os administrarem, sob os limites postos pelas leis
concernentes á propriedade de mão-morta, mantendo-se a cada uma o domínio de
seus haveres atuais, bem como dos seus edifícios de culto.
Art. 6. O Governo Federal continua a prover á côngrua,185
sustentação dos atuais
serventuários do culto católico e subvencionará por ano as cadeiras dos seminários;
185
Refere-se ao nome habitual para designar a sustentação dos clérigos por meio do benefício ligado ao
respectivo ofício. Difere-se de salário pela natureza do “trabalho” prestado, pois os religiosos não desempenham
uma função em virtude do soldo, mas sim, por naturezas espiritual, relacionada com sua vocação. No padroado o
Estado assumiu o sustento do clero por meio da côngrua.
95
ficando livre a cada Estado o arbítrio de manter os futuros ministros desse ou de
outro culto, sem contravenção do disposto nos artigos antecedentes. 186
A grande novidade do Decreto 119-A para a liberdade religiosa é que ao colocar fim a
política do padroado, permitiu outras religiões e, consequentemente, cidadãos brasileiros de
diversos credos, de professarem o seu culto, o que significou na prática um avanço na defesa
dos direitos referentes à liberdade religiosa.
O objeto do Decreto119-A refletia o pensamento do Congresso brasileiro, que já se
encontrava influenciado pelas ideias europeias e norte-americana de separação entre religião e
Estado. Este documento acabou por ser um embrião de um tema que seria inserido na
primeira Constituição Republicana, promulgada em 24 de fevereiro de 1891.187
Quanto a religião, a Constituição Republicana de 1891 consolidou as diretrizes do
Decreto 119-A, disciplinava a constituição:
Art. 11. É vedado aos Estados, como à União: (...)
2. estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos; (...)
Art. 70. São eleitores os cidadãos maiores de 21 anos que se alistarem na forma da
lei. (...)
4. os religiosos de ordens monásticas, companhias, congregações ou comunidades
de qualquer denominação, sujeitas a voto de obediência, regra ou estatuto que
importe a renúncia da liberdade Individual.
Art. 72. A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à
propriedade, nos termos seguintes:
§ 28. Por motivo de crença ou de função religiosa, nenhum cidadão brasileiro
poderá ser privado de seus direitos civis e políticos nem eximir-se do cumprimento
de qualquer dever cívico.
§ 29. Os que alegarem motivo de crença religiosa com o fim de se isentarem de
qualquer ônus que as leis da República imponham aos cidadãos, e os que aceitarem
condecoração ou títulos nobiliárquicos estrangeiros perderão todos os direitos
políticos. 188
186
Decreto 119-A de 7 de janeiro de 1890. Disponível em: http://goo.gl/sq7f6i. Acesso 04/11/2015. 187
SOUZA, Josias Jacintho. Separação entre Religião e Estado no Brasil: Utopia Constitucional?. 2009. 198
fl. Tese (Doutorado em Direito). Pontifícia Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. 188
Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 24 de fevereiro de 1891. Disponível em:
http://goo.gl/4erJmu. Acesso em 07/11/2015.
96
Posteriormente, a Emenda Constitucional n. 3, de 3 de setembro 1926, reafirmou o
direito ao livre exercício da fé, dentre dos limites do direito comum, disciplina o texto
constitucional:
Art. 72. A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no país a
inviolabilidade dos direitos concernentes á liberdade, á segurança individual e á
propriedade, nos termos seguintes: (...)
§ 3. Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer publica e
livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas
as disposições do direito comum.189
Ainda, a Emenda Constitucional manteve a ideia da separação entre Igreja-religiões e
Estado; porém, expressou claramente que as relações diplomáticas com a Igreja Católica
seriam mantidas, uma vez que essa não feria o princípio da laicidade. O texto da Emenda diz:
Art. 72 (...) Parágrafo 7. Nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial, nem
terá relações de dependência ou aliança com o Governo da União, ou o dos
Estados. A representação diplomática do Brasil junto á Santa Sé não implica
violação deste princípio.190
A sociedade brasileira foi altamente influenciada pelas ideias de pensadores como
Herbert Spence e Augusto Comte, o que por pouco não gerou uma verdadeira catástrofe na
relação entre as religiões e o Estado brasileiro, sobre esta influência nos ensina Cláudio de
Cicco:
É claro, também, que tudo se inseria num processo de dessacralização progressiva,
que culminaria com a separação entre Igreja e Estado, casamento religioso e civil,
até os nossos dias.
Havia então uma dicotomia evidente: de um lado uma elite de professores, de
estudantes de Direito, de Medicina, de Engenharia, já conquistados às ideias do
Evolucionismo, comteano ou spenceriano, laicista (anticlerical até). Do outro lado,
a população brasileira, que, em sua imensa maioria, continuava seguindo uma
concepção de vida que datava dos tempos coloniais, católica, bíblica,
tradicionalista e, nos aspectos que nos dizem respeito, patriarcalmente constituída
em famílias de pátrio poder rigidamente respeitado e exercido.191
189
Cf. Art. 72, § 3. Emenda Constitucional n. 3, de 3 de setembro 1926. Disponível em:
<http://goo.gl/5a2qy2>. Acesso em 07/11/2015. 190
Cf. Art. 72, § 7. Emenda Constitucional n. 3, de 3 de setembro 1926. Disponível em:
<http://goo.gl/5a2qy2>. Acesso em 07/11/2015. 191
DE CICCO, Cláudio. História do pensamento jurídico e da Filosofia do Direito. 4. ed. São Paulo: Saraiva,
2009, p. 248.
97
A separação entre a Igreja Católica e o Estado trouxe benefícios para ambas, porém,
também dificuldades, donde resultou que, pouco a pouco, o Estado foi se afastando do dado
religioso, conduzindo-o para a esfera privada. Podemos dizer que o final desse período foi o
mais tenso na relação entre religiões e Estados no Brasil. O que se viu foi que, com o tempo, a
sociedade civil começou a criticar o regime de separação “total”, pois, por mais que se
distanciassem Estado e religiões, o povo, fiel e cidadão, mantinha seus sentimentos religiosos
dentro da vida pública e cobrava de certa forma uma “proteção” estatal as suas religiões.
Havia uma severa crítica a hostilidade pública da fé promovida pelas ideias do
“Evolucionismo, comteano ou spenceriano, laicista (anticlerical até)”, o que acabou por
despertar certa “denúncia” de que a República era “laicista” e, portanto, avessa à religião. De
fato, o regime de separação adotado neste período estava muito próximo do laicismo francês
do final do século XX.
Aos poucos o Brasil se encaminhava para se transformar em uma República
intolerante.192
Mas, por outro lado, houve movimentos por parte da sociedade civil para que o
Estado retomasse algumas relações com a Igreja Católica, sobretudo no que diz respeito à
educação religiosa nas escolas públicas, reflexos destes movimentos são visualizados na
Constituição de 1934.
5.4 – A Constituição de 1934: seus reflexos nas demais cartas constitucionais
A terceira fase, chamada de regime de colaboração, inicia-se com a Constituição de
1934, tem seus reflexos nas demais constituições brasileiras (1937, 1946, 1967 e 1969) e vai
até a atual de 1988. Casamasso considera que a Constituição de 1934 pode ser vista como um
divisor de águas na trajetória da laicidade brasileira.
Na Constituição anterior, a laicidade caracterizava-se por uma separação rígida, que,
no final do século XIX, havia sido concebida para cumprir a tarefa de impor e garantir o fim
do consórcio que havia entre o Estado e a Igreja Católica. Nesta fase, a tônica era negativa,
192
CASAMASSO, Marco Aurélio Lagreca. Política e Religião: O Estado Laico e a Liberdade Religiosa à luz do
Constitucionalismo Brasileiro. 2006. 287 e 291 fls. Tese (Doutorado em Direito). Pontifícia Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2006.
98
pois visava a destruir uma união, afastando os dois polos de poder que por tanto tempo
permaneceram unidos.193
Mas, a partir da Constituição de 1934, o Estado começa a se transformar em um
poderoso ator econômico e em um dinâmico agente social. Deste modo, era recomendável que
ele redefinisse os termos da separação que o mantinha longe das confissões religiosas,
surgindo, assim, a ideia de separação com colaboração, ou seja, afasta-se da tônica negativa
da laicidade para a tônica positiva.194
Um exemplo é a constituição de 1946.195
Nela o constituinte ampliou a forma de
relação entre religião e Estado, inserindo no texto constitucional que os poderes públicos
podiam manter relação com organizações religiosas, desde que “sem prejuízo da colaboração
recíproca em prol do interesse coletivo”. Outra novidade trazida por esse texto constitucional
refere-se à imunidade tributária, proibindo o Estado em todos os seus níveis de lançar
impostos sobre os “templos de qualquer culto”.196
Entre os anos de 1967197
e 1987, a relação entre religião e o Estado brasileiro pode
ser resumida da seguinte maneira: a) o princípio da separação entre religião e Estado é
reafirmado nos termos de todas as Constituições anteriores; b) o princípio da liberdade de
consciência e, portanto, religiosa, foi consagrado, permitindo a todos os crentes o exercício de
cultos religiosos que não contrariassem a ordem pública e os bons costumes; c) ninguém seria
privado de qualquer dos seus direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção política;
d) foi garantida assistência religiosa às Forças Armadas e aos estabelecimentos de internação
coletiva; e) o princípio do casamento indissolúvel continuou consagrado; f) o ensino religioso
seria de matrícula facultativa, oferecido como disciplina nos horários normais das escolas
públicas. 198
193
CASAMASSO, Marco Aurélio Lagreca. Política e Religião: O Estado Laico e a Liberdade Religiosa à luz do
Constitucionalismo Brasileiro. 2006. 294 fl. Tese (Doutorado em Direito). Pontifícia Universidade de São Paulo,
São Paulo, 2006. 194
CASAMASSO, Marco Aurélio Lagreca. Política e Religião: O Estado Laico e a Liberdade Religiosa à luz do
Constitucionalismo Brasileiro. 2006. 294 fl. Tese (Doutorado em Direito). Pontifícia Universidade de São Paulo,
São Paulo, 2006. 195
Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 18 de setembro de 1946. Disponível em:
http://goo.gl/EygEs5. Acesso em 07/11/2015. 196
SOUZA, Josias Jacintho. Separação entre Religião e Estado no Brasil: Utopia Constitucional?. 2009. 207
fl. Tese (Doutorado em Direito). Pontifícia Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. 197
Constituição da República Federativa do Brasil de 1967. Disponível em: http://goo.gl/0IJruu. Acesso em
07/11/2015. 198
Resumo proposto por Josias Jacintho, destacamos apenas algumas características das expostas pelo autor.
SOUZA. Cf. Josias Jacintho. Separação entre Religião e Estado no Brasil: Utopia Constitucional?. 2009.
208 fl. Tese (Doutorado em Direito). Pontifícia Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.
99
Enfim, o itinerário descrito acima preparou o “terreno” para a Constituição de 1988,
essa que disciplinou explicitamente o direito a liberdade religiosa como um direito humano e
fundamental, portanto, também de responsabilidade do Estado. De certa forma, a própria
história “constitucional” brasileira já aponta que excluir o dado religioso da realidade pública
pode ser uma verdadeira afronta aos direitos almejados pelo povo brasileiro.
5.5 – A Constituição de 1988: perspectivas de colaboração
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 delineou um novo regime
de laicidade, qual seja, o regime da laicidade pluralista. A novidade decorre de dois fatores
principais. O primeiro refere-se ao fato de que o atual Estado laico brasileiro tem como
interlocutores não uma, mas diversas confissões religiosas. O segundo diz respeito aos
princípios constitucionais da cidadania, da dignidade da pessoa humana e do pluralismo
político, que repercutem sobre a liberdade religiosa, potencializando-a.199
O texto constitucional de 1988 fundiu em um único artigo vários direitos referentes à
liberdade religiosa, considerando mesmo de forma indireta os direitos à liberdade de
expressão, de consciência, de crença, de culto, de associação e outros, no rol da liberdade
religiosa. Disciplina o artigo 5:
Art. 5. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade
do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes:
IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; [...]
VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre
exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de
culto e a suas liturgias;
VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de
convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação
legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;
IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de
comunicação, independentemente de censura ou licença; [...]
XVI – todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao
público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião
199
CASAMASSO, Marco Aurélio Lagreca. Política e Religião: O Estado Laico e a Liberdade Religiosa à luz do
Constitucionalismo Brasileiro. 2006. 374 fl. Tese (Doutorado em Direito). Pontifícia Universidade de São Paulo,
São Paulo, 2006.
100
anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à
autoridade competente;
XVII – é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter
paramilitar.200
Além disso, a Constituição Federal de 1988 prevê expressamente a laicidade do
Estado frente à religião, ou seja, confirma que não há nenhum privilégio a qualquer confissão
religiosa em relação à organização estatal. Porém, a constituição contempla e garante a
liberdade religiosa como um direito fundamental dos cidadãos, destacando a importância da
religião na consecução deste direito em nosso país.
Em relação à Constituição Federal de 1988, Josias Jachinto nos ensina:
Se a Constituição de 1988 ratificou o princípio da separação entre religião e
Estado, garantido e consagrado em todas as Constituições republicanas anteriores,
desde 1891, consequentemente também ratificou o princípio da liberdade religiosa,
o direito humano fundamental e universal. A liberdade religiosa, valor consequente
e reflexivo do princípio da laicidade, está consagrada no artigo 5, inciso VI, da
Constituição Federal de 1988.201
Como visto, a liberdade religiosa foi consagrada pela Constituição de 1988 como um
direito fundamental humano, mas isso não quer dizer que não haja conflitos ideológicos entre
os limites da “liberdade” e o princípio da “laicidade” do Estado.
Os mais radicais afirmam que o Brasil, por ser um Estado laico, não pode manter
nenhum tipo de relação de privilégio com qualquer religião, pois ele não deve se “meter” em
questões religiosas. Este raciocínio não é de todo errado, porém, sua conclusão é falha, pois,
de fato, o Estado é laico, mas isso não quer dizer que ele é antirreligioso e, além do mais, cabe
a ele estabelecer relações de colaborações com as entidades, sejam elas culturais, ideológicas
e religiosas, que colaboram no desenvolvimento e na concretude de seus objetivos
estabelecidos na Carta Magna.
Diversos constitucionalistas distinguem o laicismo da laicidade. Entre eles
apresentamos o pensamento de André Ramos Tavares, que afirma:
O laicismo significa um juízo de valor negativo, pelo Estado, em relação às
posturas de fé. Baseado, historicamente, no Racionalismo e Cientificismo, é hostil
200
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://goo.gl/k8p32S. Acesso em
30/10/2015. 201
SOUZA, Josias Jacintho. Separação entre Religião e Estado no Brasil: Utopia Constitucional?. 2009. 209
fl. Tese (Doutorado em Direito). Pontifícia Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.
101
à liberdade de religião plena, às suas práticas amplas. A França, e seus episódios de
intolerância religiosa, podem ser aqui lembrados como exemplo mais evidente de
um Estado que, longe de permitir consagrar amplamente a liberdade de religião e o
não comprometimento religioso do Estado, compromete-se ao contrário com uma
postura de desvalorização da religião, tornando o Estado inimigo da religião, seja
ela qual for. Já a laicidade, como neutralidade, significa a isenção acima referida.202
Desta forma, afirmar que um Estado é laico não significa que ele é avesso à religião.
Além disso, mesmo que não privilegie ou tenha uma religião oficial, ele tem o dever de
garantir o pleno exercício da atividade religiosa, pois se trata de um direito humano
fundamental. Por outro lado, no caso do Brasil, há diversos elementos religiosos que estão
presentes na cultura no povo. Assim, proteger esses elementos é também um dever do Estado
laico.
Há desta forma, uma dimensão positiva da liberdade de religião, segundo o qual o
Estado deve assegurar a permanência de um espaço para o desenvolvimento adequado de
todas as confissões religiosas. Cumpre a ele empreender esforços e zelar para que haja essa
condição estrutural propícia ao desenvolvimento pluralístico das convicções pessoais sobre
religião e fé.203
Quanto a essa relação tão complexa de proteção ao direito de “fé”, sem privilégios e
concessões às religiões, Casamasso nos ensina um aspecto crucial nesta relação e que deve ser
observado, qual seja, o da “intervenção mínima” do Estado na esfera religiosa. Assim, para a
preservação da laicidade, é fundamental que se observe:
As eventuais intervenções estatais sejam objeto de uma rigorosa tipificação legal,
de modo a se evitar o uso, da parte dos possíveis interventores, de fórmulas vazias
e extremamente subjetivas, tais como “respeito à ordem pública” e “preservação
dos bons costumes”. Além disso, é indispensável circunscrever as intervenções
estatais aos “aspectos exteriores” das confissões religiosas. Em regra, qualquer
intervenção nas crenças e na organização interna destas confissões mostrar-se-á
incompatível com a laicidade. Isto não significa, entretanto, que o Estado laico
tenha que tolerar quaisquer práticas ou atividades no interior das organizações
religiosas. Neste sentido, as autoridades estatais não poderão ignorar as denúncias
de discriminação e violação de direitos fundamentais praticadas pelas confissões
religiosas. 204
202
TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 490. 203
TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 489. 204
CASAMASSO, Marco Aurélio Lagreca. Política e Religião: O Estado Laico e a Liberdade Religiosa à luz do
Constitucionalismo Brasileiro. 2006. 253 f. Tese (Doutorado em Direito). Pontifícia Universidade de São Paulo,
São Paulo, 2006.
102
De fato, tanto as religiões, quanto os Estados, possuem o dever de servir o homem e
realizar o bem comum. Em virtude disso, tanto o Estado, que não pode se afastar do aspecto
espiritual do homem, quanto as religiões que devem auxiliar o homem em sua vida temporal,
ambos acabam por se dirigir a finalidades convergentes.205
Estes aspectos estão contemplados
no texto constitucional de 1988, o que indica a possiblidade de uma colaboração ativa entre as
religiões e os Estados em prol dos direitos dos homens, seus fiéis e cidadãos.
Em virtude dessa constatação, é que, após um longo histórico de positivação do
direito à liberdade religiosa, amplamente protegido pela Constituição brasileira, se torna
possível a colaboração entre Estados e religiões, pois ambos possuem o dever de defender e
promover o desenvolvimento integral da pessoa humana e seus respectivos direitos
fundamentais, dentre esses os decorrentes da liberdade religiosa.
A doutrina constitucional nos ensina que a liberdade religiosa é um direito
fundamental; sendo assim, ela indica duas tarefas ao legislador-Estado: a primeira consiste na
garantia de que os direitos fundamentais não sejam violados; a segunda, de que eles sejam
objetos da legislação.
Portanto, a partir da Constituição Federal de 1988, é um dever do legislador-Estado
garantir o pleno exercício da liberdade religiosa.206
Para isso, é possível e viável a construção
de uma relação colaborativa com as confissões religiosas, por meio inclusive de instrumentos
jurídicos, neste sentido a relação histórica entre a Igreja Católica e o Estado brasileiro pode
ser utilizado como um modelo, visando sempre o desenvolvimento integral do homem,
cidadão e fiel.
205
DIÉGUEZ, Myriam M. Cortés; PRISCO, José San José (coords.). Derecho Canónico II – El derecho en la
misión de la Iglesia. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2006, p. 360. 206
SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos Fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo:
Malheiros, 2009, p. 237.
103
5.6 – A relação entre a Igreja Católica e o Estado brasileiro
5.6.a – A natureza jurídica da Santa Sé
A longa relação histórica entre a Igreja Católica e os Estados, inclusive o Brasil, nos
oferece meios indicativos por meio dos quais pode ser observada a construção de um
equilibrado instrumento colaborativo entre religiões e Estados em vista da proteção e da
promoção dos direitos dos homens.
Por isso, ao analisar e propor a possibilidade de colaboração entre religiões e Estados,
apresentamos o modelo presente entre a Igreja Católica e o Estado brasileiro, que, embora não
seja exclusivo, possui algumas particularidades devido à própria estrutura jurídica da religião
católica; por isso, ele é inspirador na construção de um pensamento colaborativo.
O primeiro passo é entender o que confere à Igreja Católica um status “diferente”
das demais religiões. A Igreja Católica é uma entidade peculiar, sui generis, cujo órgão
central de governo é a Santa Sé, que possui personalidade jurídica internacional em nível de
Estado, reconhecida como tal, e que, no seu exercício maior, é capaz de estipular acordos
internacionais.207
O Vaticano é uma área em Roma onde se localizam a residência e a Cúria do Papa,
os Dicastérios ou Ministérios da Sé Apostólica, a Basílica de São Pedro e outros edifícios.
Este território, chamado “Estado da Cidade do Vaticano”, é uma realidade jurídica com todos
os direitos e prerrogativas de um Estado, cuja finalidade é assegurar para a Santa Sé, mediante
garantias de seus limites territoriais, o exercício livre e independente de sua missão espiritual
e universal. Assim, ela é uma realidade jurídica, cujo sujeito próprio internacional é a Santa
Sé.208
Do ponto de vista jurídico, a Igreja Católica é uma comunidade autônoma e
independente de qualquer poder humano. Ela é soberana, e o exercício da soberania espiritual
207
BALDISSERI, Lorenzo. Diplomacia Pontifícia: Acordo Brasil/Santa Sé: intervenções. São Paulo: LTR,
2011, p. 26. 208
BALDISSERI, Lorenzo. Diplomacia Pontifícia: Acordo Brasil/Santa Sé: intervenções. São Paulo: LTR,
2011, p. 25.
104
corresponde ao Romano Pontífice (Papa). Por ser uma comunidade tão complexa e de âmbito
universal, o Papa necessita da ajuda e colaboração de um conjunto de órgãos subordinados, e
este conjunto, encabeçado por ele, é o que se entende por Santa Sé.
A expressão Santa Sé aparece, ao mesmo tempo, na doutrina e no direito
extremamente unida, às vezes fundida e outras confundidas, com as expressões Igreja
Católica, Pontificado Romano e Estado da Cidade do Vaticano. O fato é que a Santa Sé em
forma abstrata, a suprema direção e o organismo supremo de direção e representação tanto da
Igreja como do Estado da Cidade do Vaticano. De forma definitiva, desde 1960, as relações
entre a Santa Sé e as Nações Unidas estão bastante solidificadas.209
Quanto à compreensão do que é a Santa Sé, brilhantemente José Francisco Rezek, no
prefácio da obra intitulada Acordo Brasil/Santa Sé, nos ensina:
liderança espiritual e cúpula governativa da Igreja Católica, instalada na cidade de
Roma a Santa Sé reúne, embora em proporções físicas exíguas, os elementos
conformadores da qualidade estatal: existe ali um território, uma população, um
governo independente daquele do Estado italiano ou de qualquer outro. É amplo o
reconhecimento de que, apesar de não se identificar com os Estados comuns, cujos
objetivos são diversos dos seus, ela possui, por legado histórico, personalidade
jurídica de direito internacional. Na esfera do direito das gentes, a Santa Sé exerce
seu poder contratual celebrando não apenas concordatas (...) mas outros tratados
bilaterais, como o acordo político e a convenção financeira de Latão. Mesmo
Estados então socialistas. (...) Ela é parte nas Convenções de Viena sobre relações
diplomáticas e consulares, de 1961-1963, e na Convenção de 1969, também de
Viena, sobre o direito dos tratados.210
Reconhecida e admitida a personalidade jurídica internacional, a Santa Sé possui,
como sujeito de Direito internacional, a capacidade para celebrar tratados internacionais com
outros Estados e sujeitos.211
Assim, é amplo o reconhecimento de que a Santa Sé, apesar de
não se identificar com os Estados comuns, possui, por legado histórico, personalidade jurídica
de Direito internacional.212
209
SALVADOR, Corral Carlos. Derecho Internacional Concordatario. Madrid: Biblioteca de Autores
Cristianos, 2009. pgs. 94 e 95. 210
REZEK, José Francisco. In: MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva; BALDISSERI, Lorenzo (Coord.).
Acordo Brasil/Santa Sé comentado. São Paulo: LTr, 2012. p. 8. 211
SANCHES, Martin Isidoro (Org.). Curso de Derecho Eclesiastico Del Estado. Valencia: Tirant Lo Blanch,
1997. p. 58. 212
REZEK, José Francisco. Direito Internacional Público: curso elementar. 12. ed. rev. e atual., São Paulo:
Saraiva, 2010. p. 250.
105
Os motivos pelos quais o reconhecimento da Santa Sé como sujeito de Direito
internacional não se estende às outras confissões religiosas são vários. Primeiramente, trata-se
de uma averiguação histórica. Inclusive, a Santa Sé tem sido o mais antigo sujeito de direito
diplomático. Além disso, as demais confissões religiosas não estão organizadas como
instrumentos internos e externos que correspondam a uma organização jurídica independente,
soberana, com poderes públicos, representação diplomática.213
Por fim, é preciso acrescentar, que a Santa Sé, enquanto sujeito de Direito
internacional, em vista da defesa dos direitos dos homens, ao longo de sua história tem
celebrado inúmeros acordos com países das mais variadas formações jurídicas e tradições
culturais, dentre eles há países muçulmanos, laicos e confessionais.214
Além disso, a Santa Sé,
parte na Convenção de Viena sobre relações diplomáticas e consulares, de 1961-1963, e na
Convenção de 1969, também de Viena, sobre o direito dos tratados, tem realizado diversos
acordos, esses que têm se demonstrado um instrumento de promoção da laicidade, ou seja, há
uma sólida relação de colaboração entre a Santa Sé e os Estados.
5.6.b – O Acordo Brasil/Santa Sé: justificativas e conteúdos
A Igreja Católica, embora não seja a religião oficial do Brasil, mesmo não tendo o
status de “exclusividade”, continua presente de forma significativa na cultura brasileira, desde
do Império, há relações fortes entre a fé/cultura católica e o Estado brasileiro. Esta influência
é vista na formação moral, educacional e social do nosso país.
Assim, a Santa Sé, por meio da Igreja Católica, tem sido historicamente uma grande
parceira do Estado brasileiro, principalmente no que diz respeito à defesa dos direitos
213
PRIETO, Vicente. Relaciones Iglesia-Estado: La perspectiva del Derecho canónico. Publicaciones
Universidad Pontificia Salamanca: Salamanca, 2005, p. 134. 214
Dentre os pactos firmados pela Santa Sé com diversos países, destacamos os seguintes: Itália, em 18 de
fevereiro de 1984; Malta, em 16 de novembro de 1989; Polônia, em 28 de junho de 1989; Letônia, em 8 de
novembro de 2000; Eslováquia, em 24 de novembro de 2000; Gabão, em 12 de dezembro de 1997; Croácia, em
16 de dezembro de 1996; Estado da Palestina, em 26 de junho de 2015; Israel em 10 de novembro de 1997.
Inclusive a Santa Sé celebrou acordos com estados socialistas dentre eles Hungria; em 15 de setembro de 1964, a
Iugoslávia em 25 de junho de 1966. Tudo isso, a título exemplificativo, para indicar que os tratados não versam
somente às questões religiosas, mas possuem como objeto central de tal colaboração a proteção da dignidade da
pessoa humana.
106
fundamentais dos cidadãos, inclusive em diversos momentos supriu a carência do próprio
Estado, quando forneceu meios para o desenvolvimento dos homens.
Por outro lado, a Santa Sé, assim como o Brasil, tem, entre seus objetivos, a garantia
do pleno exercício da liberdade religiosa. Ambos os Estados historicamente são parceiros em
diversas atividades visando à promoção humana, seja ela no campo da educação, da saúde, da
cultura e até mesmo na proteção do direito fundamental da liberdade religiosa.
Com isso, não há como negar que existe uma longa relação histórica de colaboração
entre o Brasil e Santa Sé. Como observado no desenvolvimento histórico das constituições
brasileiras, a relação cotada acima passou por inúmeras fases.
A Santa Sé, por meio da Igreja Católica, historicamente vem colaborando no
desenvolvimento do Estado brasileiro. Basta apenas observar o quanto de escolas,
universidades, creches, asilos e hospitais, são mantidos pela Santa Sé, todos eles demonstram
precisamente a longa relação harmônica de parceria “colaboração” entre os dois Estados.
Quanto à Santa Sé, há de se destacar ainda que, como sujeito de Direito
internacional, em nada difere da República Federativa do Brasil, pois ambas são capazes de
celebrar acordos internacionais, sendo inclusive signatários da Declaração Universal dos
Direitos Humanos. Além disso, possuem, em seu fundamento constitutivo, a proteção do
homem, os direitos fundamentais, dentre eles o da liberdade religiosa.
Ora, tendo como pano de fundo a dignidade da pessoa humana, a comunidade
internacional, dentre elas o Brasil e a Santa Sé, como países signatários da Declaração
Universal dos Direitos Humanos, possui o dever de colaborar no desenvolvimento e na
proteção integral do homem, não podendo para isso desconsiderar o direito fundamental à
liberdade religiosa.
Diante do exposto, os ordenamentos jurídicos, estatais ou internacionais, são
chamados a reconhecer, garantir e proteger a liberdade religiosa, que é um direito inerente à
natureza humana, à sua dignidade de ser livre, assim como um indicador de uma sã
107
democracia e uma das principais fontes da legitimidade do Estado.215
É justamente nesta
perspectiva que repousa a relação entre a Igreja Católica/Santa Sé e o Estado brasileiro.
Após apresentarmos os aspectos convergentes entre a Igreja Católica e o Estado
brasileiro, bem como a natureza jurídica da Igreja Católica, passamos a uma análise mais
especifica do modelo colaborativo desenvolvido entre ambos, solidificado no Acordo
Brasil/Santa Sé.216
O ponto de partida para o estudo deste documento é a compreensão de que o Acordo
não teve a pretensão de discutir dogmas de fé, mas, sim, de proteger o direito à liberdade
religiosa não somente dos católicos, mas de todos os “religiosos”, inclusive das minorias
religiosas, que de certa forma são atingidas e amparadas por meio desse acordo.
Tecnicamente, o Acordo Brasil/Santa Sé é constituído de um preâmbulo e mais 20
artigos. Lorenzo Baldisseri217
nos ensina que o este documento possui como principais
objetivos:
Continuar as relações diplomáticas entre o Brasil e a Santa Sé;
Reafirmar a personalidade jurídica da Igreja Católica e reconhecer suas Instituições
em conformidade com o Direito Canônico (Conferência Episcopal, Dioceses,
Paróquias, Institutos religiosos, etc.);
Reconhecer às Instituições assistências religiosas igual tratamento tributário e
previdenciário atribuídos a entidades civis congêneres;
Estabelecer a continuidade da assistência religiosa da Igreja a pessoas que a
requeiram e estejam em situações extraordinárias, no âmbito militar, em hospitais
ou em presídios;
Reafirmar a colaboração da Igreja na educação e na cultura com suas instituições
de ensino: escolas católicas, seminários, universidades, centros de cultura;
Cuidar do ensino da religião católica em Instituições públicas de ensino
fundamental, incluindo outras confissões religiosas.
Confirmar a atribuição de efeitos civis ao casamento religioso e, simétrica e
coerentemente, dispor sobre os efeitos civis das sentenças eclesiásticas por sua
homologação.
Estabelecer o princípio do respeito ao espaço religioso nos instrumento de
planejamento urbano;
215
FRANCISCO, Papa. Discurso do Papa Francisco no Congresso Internacional “Liberdade Religiosa
segundo o Direito Internacional e o Conflito Global dos Valores”. Disponível em: <http://goo.gl/wt0WKq>.
Acesso 19/11/2014. 216
Acordo Brasil/Santa Sé – Decreto n. 7.107, de 11 de Fevereiro de 2010. Disponível em:
<http://goo.gl/Q66pIR>. Acesso em 05/11/2015. 217
Dom Lorenzo Baldisseri é um Cardeal da Igreja Católica, foi Núncio (Embaixador) da Santa Sé no Brasil de 2
de novembro de 2002 até 11 de janeiro de 2012, sendo responsável direto pela elaboração do Acordo
Brasil/Santa Sé.
108
Codificar a jurisprudência no Brasil sobre a inexistência de vínculo empregatício
dos ministros ordenados e fiéis consagrados mediante votos com as Dioceses e os
Institutos Religiosos equiparados;
Estabelecer normas sobre o voluntariado no contexto pastoral;
Assentar o direito dos Bispos solicitarem "Visto" de entrada aos religiosos e leigos
estrangeiros que convidarem para atuar no Brasil;
Ensejar que a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) possa,
autorizada pela Santa Sé em cada caso, celebrar convênios que especifiquem os
direitos versados no Acordo, úteis para a sua implementação.218
A intenção do referido Acordo foi apresentar, numa só peça jurídica, aquilo que já
pelo direito brasileiro não acrescentou leis ou privilégios que beneficiem a Igreja Católica de
modo a ferir a isonomia que a Constituição prescreve a todas as confissões e expressões
religiosas. Por fim, o Acordo concedeu maior clareza, organicidade e tranquilidade a essas
relações, o que contribui para o bem-estar de todos aqueles que professam a fé católica.219
O preâmbulo do Acordo deixa claro os valores que guiaram o texto; por isso, é de
suma importância transcrevê-lo. Afirma o Acordo:
Considerando que a Santa Sé é a suprema autoridade da Igreja Católica, regida pelo
Direito Canônico;
Considerando as relações históricas entre a Igreja Católica e o Brasil e suas
respectivas responsabilidades a serviço da sociedade e do bem integral da pessoa
humana;
Afirmando que as Altas Partes Contratantes são, cada uma na própria ordem,
autônomas, independentes e soberanas e cooperam para a construção de uma
sociedade mais justa, pacífica e fraterna;
Baseando-se, a Santa Sé, nos documentos do Concílio Vaticano II e no Código de
Direito Canônico, e a República Federativa do Brasil, no seu ordenamento jurídico;
Reafirmando a adesão ao princípio, internacionalmente reconhecido, de liberdade
religiosa;
Reconhecendo que a Constituição brasileira garante o livre exercício dos cultos
religiosos;
Animados da intenção de fortalecer e incentivar as mútuas relações já existentes;220
218
MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva; BALDISSERI, Lorenzo (Coord.). Acordo Brasil/Santa Sé
comentado. São Paulo: LTr, 2012, pgs. 28 e 29. 219
Livro explicativo a respeito do Acordo Brasil/Santa Sé, apresentado no Senado Federal. Cf. SENADO
FEDERAL. Acordo Brasil/Santa Sé. Brasília: 2009. Disponível em: http://goo.gl/LmUn7F. Acesso em
07/11/2015. 220
Cf. Preâmbulo. Acordo Brasil/Santa Sé – Decreto n. 7.107, de 11 de Fevereiro de 2010. Disponível em:
<http://goo.gl/Q66pIR>. Acesso em 05/11/2015.
109
De fato, o Acordo Brasil/Santa Sé, traz em seu bojo elementos que transpassam a
frieza da norma jurídica, pois sua intenção é fortalecer e incentivar as mútuas relações já
existentes entre estes Estados. Sua novidade consiste no fato de que, para a garantia de um
direito fundamental dos cidadãos, o Estado brasileiro celebrou um Acordo com um Estado
confessional, o que faz desse Acordo um marco histórico, pois o Estado brasileiro reconheceu
que os valores promulgados pela Santa Sé (Igreja Católica) são indispensáveis para o
desenvolvimento integral do homem, independentemente de confissão religiosa.
O Acordo, porém, não viola nem a laicidade nem a neutralidade do Estado. Ao
contrário, fomenta o reconhecimento de direitos e liberdades dos próprios cidadãos. O
reconhecimento dos direitos e liberdades de um grupo, até por força do princípio
constitucional da igualdade, impele o legislador a tutelar análogos direitos e liberdades dos
cidadãos de outras religiões, o que faz do Acordo adequado aos interesses coletivos e
individuais, inclusive dos demais credos religiosos.
Além disso, de certa forma, o Acordo acaba por reforçar o texto constitucional, uma
vez que esse não repudia as religiões; ao contrário, o constituinte brasileiro reconhece as
religiões como portadoras de valores dignos de proteção pelo Estado, cabendo aos poderes
públicos o dever de assumir comportamentos ativos de tutela e promoção desta área.
Assim, a Constituição, através do artigo 19, I,221
prevê expressamente a colaboração
de interesse público do Estado com as religiões, através do princípio da colaboração, que
jamais pode ser entendido como privilégios injustificados dados a determinadas religiões. Por
isso o Acordo não fere o artigo 19. da Constituição, pois ele não traz nenhuma obrigação para
o Estado laico em estabelecer cultos religiosos, dependência ou aliança, mas sim, tutela sobre
elementos de interesse público.
Destaca-se ainda a contribuição dos valores propagados pela Santa Sé no
desenvolvimento integral da pessoa humana. Além disso, quando o Estado garante a proteção
dos lugares públicos de culto da Igreja Católica e de suas liturgias222
, este direito já estava
221
O art. 19, I da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, dispõe: “É vedado à União, aos
Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los,
embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança,
ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”. Cf. Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988. Disponível em: http://goo.gl/k8p32S. Acesso em 05/11/2015. 222
Art. 7. do Acordo Brasil/Santa Sé. Disponível em: <http://goo.gl/Q66pIR>. Acesso em 05/11/2015.
110
sacramentado na Constituição223
e se estende para as demais religiões, ou seja, as liturgias e
os templos das minorias também devem ser amplamente protegidos, seguindo o princípio
fundamental da liberdade religiosa.
Portanto, o Acordo deixa claro que a relação entre religiões e/ou Igreja Católica e
Estado não é um privilégio a uma ou algumas religiões, tampouco uma “ofensa” à laicidade,
mas sim, o reconhecimento que o direito à liberdade religiosa decorre da própria natureza
humana, ou seja, o homem é um ser que busca ter acesso ao transcendente além das próprias
estruturas estatais. Para isso, cabe ao Estado não interferir na busca do homem pelo sagrado, a
não ser quando o exercício da religião torna-se uma afronta à própria dignidade humana.
5.7 – A relação entre o Estado e as demais religiões
Após apresentadas as características específicas da Igreja Católica/Santa Sé, bem
como o modelo de colaboração desenvolvido entre ela e o Estado brasileiro, partimos para a
análise da colaboração possível com as demais religiões, ou seja, com aquelas que não
possuem “personalidade jurídica internacional”.
Como visto, de fato, o efeito da criação do Estatuto Jurídico da Igreja Católica no
Brasil atinge todo o povo brasileiro, independentemente de credo, visto que os seus
fundamentos norteadores são solidificados nos princípios universais do direito, dando, assim,
uma perspectiva de significado ético nas relações entre os Estados e os indivíduos.
Além disso, a relação do Estado brasileiro com as demais confissões religiosas é
reforçado por meio do Acordo, pois os demais credos poderão, em vista de suas
particularidades, assegurar alguns direitos específicos. Ainda, o Acordo assegura a igualdade
de tratamento das entidades católicas com as demais entidades de idêntica natureza, religiosa,
assistencial ou de ensino, proibindo qualquer discriminação imprópria.
223
Cf. Art. 5, VI da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:
http://goo.gl/k8p32S. Acesso em 05/11/2015.
111
Da mesma forma a história do Direito internacional nos apresenta alguns momentos
nos quais Igrejas protestantes, ou seja, sem a capacidade para celebrar tratados internacionais,
firmaram acordos de colaboração com o Estado alemão. Esses tiveram sua origem na
República de Weimar, sobreviveram ao regime nazista, chegando à República Federal Alemã
em pleno vigor.224
De fato, a relação entre a Igreja Católica e o Estado brasileiro não é uma
“exclusividade”. Talvez o modelo jurídico adotado – um acordo internacional – não seja
viável para as demais religiões, mas isso, de forma alguma, deve ser razão para que não haja
outros instrumentos jurídicos, específicos ou não, visando à proteção dos direitos à liberdade
religiosa.
Jónatas Machado nos ensina que a liberdade deve ser conferida às demais confissões
religiosas, os quais, devem ser vistas como titulares de direitos, liberdades e garantias, que o
Estado deve respeitar:
As confissões religiosas podem invocar, em condições e igualdade, o direito à
liberdade religiosa, à semelhança do que sucede com os indivíduos o direito a igual
liberdade religiosa, individual e coletiva, em conjunto com o princípio da
separação das confissões religiosas do Estado tem como consequência o
reconhecimento de um direito à autodeterminação às confissões religiosas. (...) o
direito à liberdade religiosa coletiva deve ser exercido dentro dos limites impostos
pela liberdade religiosa individual e pelos princípios da igualdade e da separação
das confissões religiosas do Estado.225
Interessante é o pensamento deste autor português, que, ao visualizar a relação entre
religiões e Estados, considerou ser de fundamental importância a garantia da auto-
organização, como a da autodeterminação das confissões religiosas, sendo que, para ele, essa
liberdade é independente de a comunidade religiosa ter ou não personalidade jurídica, ou seja,
segundo sua doutrina, pela simples razão de ser uma comunidade religiosa de fato, ela já é
capaz de exercer sua liberdade religiosa sem “restrições”.226
224
ROUCO VARELA, Antonio Maria. Teología e Derecho: Escritos sobre aspectos fundamentales de Derecho
Canónico y de las relaciones Iglesia-Estado. Madrid: Ediciones Cristandad, 2003, pgs. 523. 225
MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva:
dos direitos da verdade aos direitos dos cidadãos. Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p. 241. 226
MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva:
dos direitos da verdade aos direitos dos cidadãos. Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p. 244.
112
Jónatas Machado ensina-nos ainda:
De acordo com o direito de autodeterminação, todas as confissões religiosas, que
não apenas as mais juridificadas ou institucionalizadas, devem ser consideradas
verdadeiras societae perfectae em matérias tão amplas e diversificadas como
sejam, nomeadamente, a definição e interpretação dos princípios doutrinários do se
grau de vinculação, o exercício das funções de culto, a fixação dos pressupostos de
admissibilidade de membros, a estrutura orgânica e funcional interna, a adoção de
um modelo constitucional do tipo hierárquico, congregacional, etc.,. a escolha dos
processos de formação, formulação e exteriorização da vontade, a seleção dos
meios de financiamento, a edificação e abertura de edifícios destinados ao culto ou
a outras finalidades religiosas, a seleção de ministros de culto, o ensino religioso, a
aplicação de sanções disciplinares, a livre comunicação com os membros da
confissão, a realização de atividades educativas e de beneficência, etc. Estas
matérias integram uma verdadeira e própria reserva absoluta de confissão religiosa
que funciona como norma definidora de competências negativas do Estado.227
Após a ampla lista exemplificativa apresentada acima, considerando a capacidade de
auto-organização e de autodeterminação das confissões religiosas, o Estado brasileiro não
pode ficar inerte ao dado religioso. Neste sentido, o modelo colaborativo entre Estado e
religiões vislumbra ser o que melhor garante a laicidade do Estado, promovendo a liberdade
religiosa, bem como os direitos inerentes a ela, do cidadão e fiel.
Além disso, deve ser destacado que os direitos específicos referentes à liberdade
religiosa, presentes no Acordo Brasil/Santa Sé, não podem ser exclusivo dos fiéis católicos,
uma vez que outras religiões devidamente reconhecidas como tal possuem também garantidos
os mesmos direitos que a Igreja Católica, como, por exemplo, imunidades tributárias, anistia
de impostos228
e regime diferenciado trabalhista para os ministros de culto.
Da mesma forma, os direitos específicos referentes à liberdade religiosa concedidos à
Igreja Católica e expressos no Acordo devem ser estendidos às demais religiões, o que torna
esse instrumento jurídico um verdadeiro amparo para as minorias que, indiretamente, são
protegidas por meio do status jurídico internacional da Igreja Católica.
Enfim, mesmo que as demais confissões religiosas não possuam a personalidade
jurídica internacional, o que não as conferem a capacidade de serem titulares de acordos
227
MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva:
dos direitos da verdade aos direitos dos cidadãos. Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p. 247. 228
Lei n. 13.137, de 19 de junho de 2015. Disponível em: http://goo.gl/I0BPGh. Acesso em 07/11/2015.
113
internacionais ao modelo do Brasil com a Santa Sé, elas são legitimadas pelo Estado como
associações (organizações religiosas)229
e, portanto, como pessoas jurídicas de direito privado,
o que lhes da o direito de desenvolver inúmeras atividades colaborativas com o Estado
brasileiro, como por exemplo, fundar e manter escolas e hospitais, receber doações, inclusive
de dinheiro público, ter imunidades tributárias, entre outros.
Portanto, não se trata de uma exclusividade da Igreja Católica a colaboração com os
Estados. As demais confissões religiosas também têm o direito e o dever de participar e
promover iniciativas nas quais seu fiel/cidadão possa ter garantido o direito fundamental à
liberdade religiosa, além disso, por sua própria natureza, as religiões são chamadas a
colaborar com os Estados no desenvolvimento integral da pessoa humana.
5.8 – Considerações Finais
A dignidade da pessoa humana, ou seja, a proteção dos direitos humanos
fundamentais dos homens é o que justifica a construção de qualquer proposta colaborativa
entre Estados e religiões. Assim, considerando que a liberdade religiosa é o direito de toda
pessoa de prestar culto a Deus, segundo os ditames de sua própria consciência, com
imunidade de coação por parte de qualquer autoridade ou pessoa, é no seio da comunidade
que o homem exerce por excelência esse direito, por isso, o Estado é um agente importante na
busca do homem pelo “sagrado”.
Ainda que seja no seio da sociedade humana que se exerce o direito à liberdade
religiosa, este exercício deve estar sujeito a certas normas reguladoras, partindo sempre do
princípio moral da responsabilidade pessoal e social, visando valores como justiça, bondade e
bem comum, como nos ensinou o Papa Paulo VI:
uma vez que a sociedade civil tem o direito de se proteger contra os abusos que,
sob pretexto de liberdade religiosa, se poderiam verificar, é sobretudo ao poder
civil que pertence assegurar esta proteção. Isto, porém, não se deve fazer de modo
arbitrário, ou favorecendo injustamente uma parte; mas segundo as normas
229
Cf. art. 44, IV, do Código Civil Brasileiro, lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em:
http://goo.gl/vlFAoV. Acesso em 05/11/2015.
114
jurídicas, conformes à ordem objetiva, postuladas pela tutela eficaz dos direitos de
todos os cidadãos e sua pacífica harmonia, pelo suficiente cuidado da honesta paz
pública que consiste na ordenada convivência sobre a base duma verdadeira justiça,
e ainda pela guarda que se deve ter da moralidade pública. Todas estas coisas são
parte fundamental do bem comum e pertencem à ordem pública. De resto, deve
manter-se o princípio de assegurar a liberdade integral na sociedade, segundo o
qual se há de reconhecer ao homem o maior grau possível de liberdade, só
restringindo esta quando e na medida em que for necessário.230
Há ainda que ser considerado que a liberdade religiosa e os demais direitos
fundamentais são anteriores ao próprio Estado.231
O Estado, em virtude de estar a serviço de
todos os homens, bem como de suas necessidades, inclusive quanto à sua religião, devem
buscar instrumentos jurídicos que viabilize o exercício do direito fundamental à liberdade
religiosa, de tal sorte que a ordem jurídica deve estar dirigida a garantir o pleno exercício
deste direito.232
Ancorada nos direitos fundamentais da pessoa humana, a relação entre religiões e
Estados possui, entre suas exigências, a universalidade, sendo essa uma condição necessária e
indispensável para o reconhecimento dos direitos humanos.233
Nesta perspectiva, destinadas
ao desenvolvimento integral da pessoa humana, todas as ações de colaboração entre Estados e
religiões devem ser pautadas por iniciativas que promovam a dignidade da pessoa humana, ou
seja, pela busca da integridade da pessoa humana, procurando a realização das exigências
mais fundamentais do homem, por meio de uma sociedade fraterna.
Considerando, ainda, que o objeto visado na relação de colaboração entre Estados e
religiões é o desenvolvimento integral do homem, ou seja, a proteção, a promoção e o respeito
de todos os direitos humanos, exige-se reconhecer que homem detém direitos por ser senhor
de si e dos próprios atos e detém igualmente uma liberdade natural. Por este motivo, para que
haja um desenvolvimento integral do homem a liberdade deve ser garantida, pois esta
enobrece a dignidade do próprio ser humano e, consequentemente, colabora para a
instauração de uma sociedade mais humana.
230
PAULO VI, Papa. Constituição Pastoral Gaudium Et Spes – Sobre a Igreja no Mundo Atual, n. 7.
Disponível em: http://goo.gl/8Q5sxV. Acesso em: 17/10/2015. 231
MARITAIN, Jacques. Trad. Afrânio Coutinho. Os direitos do homem. Rio de Janeiro: José Olympio
Editora, 1967. p. 66. 232
DANIEL VILLA, Nestor. Educacion Iglesia y Estado – Hacia un nuevo concordato. Buenos Aires:
Ediciones Cidad Argentina, 1995. p. 29. 233
OTADUY, Javier; VIANA, Antonio; SEDANO, Joaquín. Diccionario General de Derecho Canónico. Vol.
III. Madrid: Aranzadi, 2013, p. 216.
115
Assim, a relação entre religiões e Estado deve estar orientada pela ideia de que o
verdadeiro fim da humanidade consiste em realizar um regime temporal de acordo com a
dignidade e o amor, sociedade esta que, baseada em valores fraternos, é composta de pessoas
humanas e tem como fim o bem comum coletivo.234
De fato, é dever do Estado contribuir para a promoção humana; por isso é preciso
não temer as relações que potencializam este processo, mesmo que sejam com entes
confessionais, pois esta colaboração não é um afronta à laicidade, mas, sim, um
enriquecimento.235
Sem dúvida, o modelo da relação entre a Igreja Católica e os Estados, inclusive o
brasileiro, tem demostrado que é possível uma colaboração harmônica entre religiões e
Estados. Como visto, esses instrumentos colaborativos têm, ao longo do tempo, promulgado
valores como paz, solidariedade mútua, humanismo centrado no respeito pela dignidade da
pessoa, além de ter contribuído significativamente, para a formação sociocultural, política,
jurídica, de inúmeros Estados.
Neste sentido, a relação saudável entre o Estado brasileiro e a Santa Sé é um
testemunho positivo da proteção efetiva dos direitos humanos, bem como da liberdade
religiosa para toda a comunidade internacional, através de um instrumento jurídico
colaborativo como o Acordo Brasil/Santa Sé.
Enfim, diante do exposto, para que haja o desenvolvimento integral da pessoa
humana, é imprescindível que a liberdade religiosa seja protegida e promovida, pois se trata
de um direito fundamental, sendo indispensável, porém, um cuidado especial, para se evitar os
privilégios e a fusão entre as naturezas civil e religiosa. Mas, sem dúvida, quando se
reconhece que há elementos convergentes entre os objetivos das religiões-Igrejas e Estados,
na busca do bem comum e na promoção dos direitos do homem, o grande vitorioso é a própria
pessoa humana, ou seja, o cidadão e fiel, que acaba tendo seus direitos inalienáveis, como o
da liberdade religiosa, solidificado e protegido por meio destas relações.
234
POZZOLI, Lafayette. Maritain e o Direito. São Paulo: Edições Loyola, 2001, p. 131. 235
FRANCISCO, Papa. Discurso do Santo Padre ao Parlamento Europeu em 25 de novembro de 2014.
Disponível em: < http://goo.gl/czsIqR>. Acesso 25/11/2014.
116
Conclusão
A temática da relação entre as religiões e os Estados, de fato, não é uma questão tão
simples. Como visto, ao longo da história da própria humanidade, sempre houve certa tensão
entre o sagrado e o civil. Ora esta relação estava distante, ora fundida, e, por fim, houve
rompimentos severos, manifestados nas perseguições religiosas ainda hoje presentes em
algumas partes do mundo.
O fato é que não há como romper da história o dado religioso, ou seja, sempre o
Estado precisará lidar com tais situações, contudo, a maneira pelo qual estabelece esta relação
pode promover ou privar os direitos fundamentais da pessoa humana, sobretudo no que se
refere à liberdade religiosa.
Assim, é inegável a dimensão que os direitos humanos e fundamentais ocupam na
sociedade atual; sua matriz repousa na dignidade da pessoa humana e, para a construção deste
valor, em muito contribuiu o Cristianismo, que sempre sustentou a noção da “sacralidade” da
vida humana, independente de sua condição social, econômica, política, pois considera que o
homem foi criado à imagem e semelhança de Deus.
Como vimos, a construção filosófica do conceito da pessoa humana também auxiliou
na solidificação dos direitos humanos e fundamentais. Assim, progressivamente, filósofos
como Boécio, Tomás de Aquino, Pico dela Mirandola e Kant, ajudaram na elaboração do
princípio da igualdade essencial de todo ser humano através de conceitos como autonomia,
vontade e liberdade.
Outro momento importante foi o da positivação dos direitos humanos, frutos de um
longo processo histórico, para o qual inúmeros eventos colaboraram construção. Destacando-
se documentos como a Magna Carta de 1215, a lei do Habeas Corpus entre outros.
Mas, foi a Declaração de Direitos do Povo da Virgínia que solidificou o nascimento
dos direitos humanos e fundamentais na história, pois expressou claramente os direitos inatos
ao homem, como liberdade, propriedade, igualdade. A influência desse documento pode ser
vista em outras declarações de direitos, como a Declaração de Independência dos Estados
117
Unidos (1776), na Carta dos Direitos dos Estados Unidos (1789) e na Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão francesa (1789).
O nascimento desses documentos constituíram a passagem das afirmações filosóficas
do direito para um verdadeiro sistema de direitos humanos positivos, o que foi visto na
chamada fase de internacionalização dos direitos humanos a partir do século XIX, essa que
possuía como pilares o direito humanitário, a luta contra a escravidão e a regulação dos
direitos do trabalhador. Destacam-se deste período a Convenção de Genebra de 1864, o Ato
Geral da Conferência de Bruxelas de 1890 e, por fim, a proteção dos direitos dos
trabalhadores a partir da criação da Organização Internacional do Trabalho em 1919.
Todo o itinerário descrito contribuiu para um fato de estrema importância que foi a
reconstrução do conceito de soberania nacional absoluta dos Estados, na medida em que se
passou a admitir intervenções para a proteção dos direitos humanos e fundamentais,
começando aos poucos a ser consolidada a capacidade processual internacional dos
indivíduos, bem como a concepção de que os direitos humanos e fundamentais não mais se
limitam ao Estado.
Enfim, pode-se dizer que o grande ápice da solidificação dos direitos humanos surgiu
literalmente dos destroços da segunda guerra mundial, que acabou gerando o principal
documento até hoje elaborado na proteção dos direitos fundamentais dos homens, que é
Declaração Universal dos Direitos Humanos. Este documento possuía como objetivo
principal delinear uma ordem pública fundada no respeito à dignidade humana, ao consagrar
valores básicos universais.
Por isso, dada a importância dos direitos humanos e fundamentais na construção dos
mecanismos colaborativos entre as religiões e os Estados e considerando que a liberdade
religiosa é fruto direto desse longo processo descrito no trabalho, é que foi proposto um sério
estudo da temática dos direitos do homem, bem como do direito fundamental à liberdade
religiosa, tendo-se em conta as raízes teológicas, filosóficas e históricas nas quais esses
direitos estão fundados.
Podemos dizer que a proteção do direito à liberdade religiosa faz parte do rol dos
direitos humanos presentes e solidificados com a Declaração Universal dos Direitos
Humanos. Assim, consideramos que a humanidade, a partir de tal instrumento, possui não
118
somente uma cartilha indicativa, mas, sim um ideal a ser buscado, partindo da premissa
fundamental, que é o respeito à dignidade da pessoa humana.
Quanto ao direito fundamental à liberdade religiosa, ela faz parte do itinerário
descrito acima, o que nos leva a crer que mesmo é legítima e saudável a separação entre
Estados e religiões; porém, de forma alguma, pode-se afirmar que não há possibilidade de um
diálogo, ou seja, que o Estado não tem nenhum interesse nas temáticas religiosas, uma vez
que instrumentos de colaboração entre ambas são necessários para a promoção e proteção dos
direitos fundamentais dos homens.
Assim, a separação entre as religiões e o Estado pode ser legítima e útil, porém, o
Estado, ao assumir que não é o titular dos direitos religiosos, deve evitar o indiferentismo
quanto à questão religiosa, pois ele corre o risco de, ao invés de promover e proteger os
direitos dos seus cidadãos quanto ao exercício da liberdade religiosa, se tornar um verdadeiro
perseguidor.
Desta maneira, para a justa relação, requer-se, primeiramente, que as religiões e os
Estados reconheçam devidamente seu espaço e sua função dentro da ordem social. Como bem
nos ensinou Locke, tratam-se de esferas distintas; por isso é necessária uma equilibrada
separação. Isso não quer dizer hostilidade, mas, sim um reconhecimento sincero que embora
possuam natureza distintas, Estados e religiões têm na pessoa humana o objeto de suas
atividades e sua razão de existir.
Afinal, é possível que sejam construídos instrumentos colaborativos entre as religiões
e Estados, como, por exemplo, o presente entre a Igreja Católica e o Estado brasileiro, pois,
como bem nos ensinou Maritain, é dever do Estado estar a serviço do homem, de modo que
ele se destina a realizar os direitos fundamentais da pessoa humana. Assim, sendo o homem
como um ser que busca o sagrado dentro de uma sociedade política e que, como cidadão e
fiel, participa tanto das realidades celestes como das temporais, por isso uma divisão absoluta
entre essas duas sociedades, ou seja, uma separação sem colaboração entre Estados e
religiões, seria o mesmo que cortar a pessoa humana em duas partes.
Portanto, para a garantia do direito fundamental à liberdade religiosa, é
imprescindível que sejam construídos instrumentos colaborativos entre as religiões e os
Estados. Assim, quanto mais harmônica for tal relação, melhor todos os envolvidos no
119
contexto social (Estados, religiões e cidadãos) chegarão aos seus objetivos e anseios, seja a
santidade, a felicidade, a paz, a promoção humana, a ordem pública, o bem comum. O que
fará da comunidade política lugar onde se viver e exerce os direitos fundamentais e humanos,
dentre estes o da liberdade religiosa.
120
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