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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA - PUC CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM SEMIÓTICA PSICANALÍTICA SILVANIA DAL BOSCO O LUTO COMO PROPULSOR DE VIDA São Paulo 2009

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA - PUC CURSO DE ... Dal... · A vida já é tão difícil de ser vivida, imagine se ainda tivermos que viver assombrados pela morte. Assim é a Cultura

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA - PUC CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM SEMIÓTICA

PSICANALÍTICA

SILVANIA DAL BOSCO

O LUTO COMO PROPULSOR DE VIDA

São Paulo 2009

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SILVANIA DAL BOSCO

O LUTO COMO PROPULSOR DE VIDA

Monografia apresentada à Diretoria do

Curso de Pós-Graduação da Pontifícia

Universidade Católica - PUC como

requisito parcial para a obtenção do

Título de Especialista Lato Sensu em

Semiótica Psicanalítica, sob a

orientação do Professor Claudio César

Montoto.

SÃO PAULO 2009

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Para meu filho Gabriel (em memória)

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AGRADECIMENTOS

Muitos contribuíram, de forma direta ou indireta, para que este trabalho

pudesse ser realizado e não teria como agradecer a cada um em particular.

Portanto agradeço especialmente ao Professor Dr. Claudio César Montoto,

pela dedicação e atenção com que me orientou. A Rosana Aparecida Pereira,

pela generosidade de ter compartilhado sua experiência de vida e enriquecido

não apenas o trabalho, mas mostrado que a dor pode ser um grande

aprendizado. Ao meu marido Edmundo Abreu por ter me apoiado na iniciativa e

ouvido todas as tentativas de estruturar o estudo pacientemente, além de

finalizar com uma leitura criteriosa. À mastologista Sirlei Costa que fez

observações que me fizeram refletir ainda mais sobre o tema e a maioria foi

utilizada no trabalho e aos jornalistas Mauro Rocha e Ana Paula Ruiz que

também dedicaram o seu tempo para a leitura e correções, especialmente de

português.

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“E tolerar a vida continua a ser, afinal de contas, o primeiro dever de todos os seres vivos. A ilusão perde todo o seu valor quando nos obstrui esse enfrentamento.

Lembremo-nos do velho ditado: Si vis pacem, para bellum. Se queres preservar a paz, arma-te para a guerra. Estaria de acordo com o tempo em que vivemos alterá-lo para: Si vis vitam, para mortem. Se queres suportar a vida, prepara-te para a morte.”

Sigmund Freud, Reflexões para tempos de Guerra e Morte, 1915

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SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ................................................................................... 09 2. METODOLOGIA .................................... ............................................ 13 3. O TEMPO QUE PASSOU JÁ PERTENCE À MORTE ......... ............ 14

3.1. A morte continua um mistério - Visão antropológica ................... 17

3.2. O medo que a morte desperta .................................................... 20

3.3. A religião como promessa de outra vida .................................... 23

3.4. O ateísmo perante o luto ............................................................ 27

4. O LUTO NOSSO DE CADA DIA ....................... ............................... 29

4.1. APRENDER COM A DOR ........................................................ 30

4.1.1. Luto: um processo que pode transformar ........................ 34

4.1.2. Melancolia: uma dor que não se estanca ......................... 36

4.1.3. Ressentimento: A vingança que não chega ..................... 39

4.1.4. Nascimento: A primeira grande perda............................... 41

4.1.5. Separação: A perda de uma parte de si............................ 43

4.2. Final da Infância: A difícil separação dos pais ........................... 48

4.3. Velhice: ainda há tempo para viver ............................................ 52

4.4. Doença Grave: O luto em vida ................................................... 56

5. O LUTO COMO PROPULSOR DA VIDA .................. ...................... 65

5.1. Sublimação: um caminho para retomar a vida .......................... 67

5.2. Os sobreviventes do luto ........................................................... 73

5.3. Uma experiência de luto vivenciada .......................................... 80

6. CONCLUSÃO ...................................... ............................................. 90 BIBLIOGRAFIA ..................................... .............................................. 93 ANEXO I ............................................................................................... 99

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RESUMO

Este trabalho tem por objetivo realizar um estudo breve sobre o luto, a

dificuldade que o ser humano tem de aceitar a morte do outro e a própria e as

perdas sofridas no cotidiano da vida, desde o nascimento até a velhice. Para a

realização desse estudo o instrumental utilizado foram autores que escrevem

sobre o tema nas áreas de psicanálise e psiquiatria, psicologia, antropologia,

sociologia, filosofia e religião, pois entendemos que o assunto é muito rico e a

bibliografia vasta para nos atermos a uma área específica do conhecimento. A

relevância dada aos autores ou temas abordados foi feita por uma escolha

subjetiva, aproveitando o espaço que o coordenador do Curso de Semiótica

Psicanalítica - Sintoma da Cultura, Oscar Angel Cesarotto, nos possibilitou. O

ponto de partida, entretanto, foi o estudo de Sigmundo Freud (1916) Luto e

Melancolia.

Palavras chaves: luto, morte, perdas, reinvenção, sublimação.

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ABSTRACT The present project aims to conduct a brief study about grief and the

difficulty that human beings have to accept the death of someone and the daily

losses in life, from birth to an old age. The instruments used to accomplish this

study were authors who wrote on the topic related with psychoanalysis and

psychiatry, psychology, anthropology, sociology, philosophy and religion,

because we believe this is a very rich subject and it has an anextensive

bibliography for landfilling in a specific area of knowledge. The focus on authors

or topics discussed was a subjective choice, using the space that the

coordinator of the Course of Psychoanalytic Semiotics - Symptom of Culture,

Oscar Angel Cesarotto, gave us. The origin of this project, however, was the

study of Sigmund Freud (1916) Mourning and Melancholy.

Keywords: mourning, death, loss, reinvention, sublimation

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1. INTRODUÇÃO

Escrever sobre o luto é um grande desafio, pois nos remete diretamente

à perda e à morte. E morte, na nossa cultura, é algo para se passar longe ou

falar bem baixinho para evitarmos a contaminação pela energia negativa que

gira em torno dela. A vida já é tão difícil de ser vivida, imagine se ainda

tivermos que viver assombrados pela morte.

Assim é a Cultura Brasileira, cheia de ritos e crendices, mas nada que

ajude a nos prepararmos para a única coisa certa na vida: a morte. Embora

seja evidente a negação da morte em nosso meio, este não é um privilégio dos

brasileiros. Se buscarmos informações nas sociedades antigas, encontraremos

uma situação semelhante. Já que não há o que fazer, melhor nem pensar nela.

Se estamos vivos, a morte não está presente, e se estamos mortos, também

não estamos presentes, então, por que se preocupar? (Ferry, 2007: 21). É

verdade o que diziam os filósofos, mas será que essa não é uma maneira de

apenas passar pela vida, e não viver?

Não pensar na morte é possível até o momento em que nos deparamos

com ela, seja pela ameaça da própria vida ou pela morte de uma pessoa

querida. A partir desse momento é impossível negá-la, mesmo que esse seja o

primeiro impulso de todo o ser humano. Negamos a morte porque queremos

desesperadamente viver e não tomar consciência de que cada dia vivido é um

passo a mais em direção à finitude. Alguns pensadores garantem que tentar

negar a morte faz parte do “conseguir viver” pois, na lucidez total, não teríamos

motivação suficiente para seguir adiante. ‘Eu acredito que têm razão, absoluta

razão, aqueles que acham que uma plena compreensão da condição humana

levaria o homem á loucura. (BECKER, 2007:49)

E, talvez, seja para unir esses dois extremos que surge a utilidade do

luto: um processo necessário para a elaboração das perdas, mas também,

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tempo necessário para o encontro ou reencontro com o nosso verdadeiro “eu”,

aquele que reside em nossa alma e que muitas vezes deixamos camuflados

para podermos continuar na pele daquela pseudo pessoa que acreditamos

ser.

Se ao menos as pessoas se conhecessem um pouco mais, saberiam

que a busca do “eu” é o anseio da alma, diz Kreinheder (1993) ao comparar o

anseio da busca do eu, com o arquétipo de voltar a ser criança. Segundo o

autor, voltar a ser criança é tão importante, porque é uma maneira de rever o

passado. Quando se é criança, se é verdadeiramente aquilo que se é, vive-se a

própria alma. Na vida adulta, as pessoas passam a representar papéis que se

parecem muito pouco com aquilo que elas realmente são. E é isso que causa

tensão, desgaste e sofrimento ao corpo. E aí surgem as doenças, para que não

se perca esse fio de procura, de busca, de desejar desesperadamente.

Segundo o filósofo Plotino, na doença, o corpo perde contato com a alma e não

se parece com ela, porém, uma pessoa jamais chegaria a perceber a alma (a

sua verdade), se tudo corresse bem com seu ego.

O fato é que a existência humana é uma sucessão de perdas e lutos,

alguns maiores outros menores, e esse tamanho, muitas vezes, é determinado

pela nossa capacidade psíquica de absorver o impacto da dor e transformá-la.

Há uma palavra que tem origem na física, e que atualmente é muito usada e

consegue resumir essa situação: resiliência, a capacidade humana de superar

o sofrimento tirando proveito das dificuldades inerentes a ele. O resiliente é

aquele que se recupera e se molda a cada deformação ou obstáculo que

encontra pela frente.

A verdade é que todos queremos ser compreendidos, amados, não

sermos abandonados nem ficarmos sozinhos. Desejamos que as pessoas que

amamos não sofram, não queremos morrer e nem queremos que elas morram.

Pensar na morte é o passaporte para a angústia, e não toleramos viver

angustiados. Mas já que o sofrimento é inerente à vida, não temos como evitá-

lo, podemos tentar entender o que ele tem a nos dizer. Será que a dor

vivenciada é um caminho para um encontro mais profundo conosco mesmo?

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Será uma oportunidade que a vida nos dá para que possamos reavaliar os

caminhos percorridos até o momento? Será a natureza gritando para que

prestemos atenção para a eternidade que acontece aqui e agora? Será o

Divino a nos mostrar que ainda temos muito a aprender? Ou será apenas uma

orquestração de todas as forças para que possamos nos reinventar?

O luto, sem dúvida, é a oportunidade para nos reinventarmos, sim. Dói,

joga-nos em um terreno arrasado como por uma grande queimada, mas

sabemos que debaixo das cinzas ainda há vida. Ninguém entra em um

processo de luto e sai o mesmo. Os que conseguem encarar a dor de frente,

com certeza, saem mais fortes, mais verdadeiros.

Principalmente, faz com que compreendamos que somos falíveis,

frágeis, mortais. Que nada nos pertence de fato. Que um dia, seja qual for

nosso tempo, nossa idade, nossas crenças, nosso status social, as perdas

ocorrerão e teremos que olhar para elas, saber que se foram e que por mais

que nos agarremos a elas, temos que aprender a deixá-las ir, e fazer da dor um

meio de sobrevivência e aprendizado, porque é só para isso que o sofrimento

serve: como ensinamento ou uma possibilidade de nos reposicionarmos na

vida.

Diante de uma doença grave, como um câncer, por exemplo, assunto

que será abordado neste trabalho, podemos constatar que, igualmente, temos

a oportunidade de optar por uma entrega desanimada ao pesar e nos

prostrarmos em uma contagem regressiva ou partimos para a escolha corajosa

de fazer da doença uma oportunidade para viver intensamente cada dia. A

decisão provavelmente não salvará do câncer, mas, com certeza, ajudará a ter

dias melhores de vida na vida.

A idéia ao realizar este trabalho é justamente ir tecendo feito uma colcha

de retalhos o que o sofrimento, o luto, as perdas e a morte têm a nos dizer.

Sem pretensão de trazer novidades, muito menos de esgotar o assunto, vamos

percorrer os corredores poucos iluminados deste caminho para entendermos

um pouco mais sobre este tema que angustia a todos, mas que também dá

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coragem para recomeçar, renunciar, se reinventar e fazer da vida uma lição.

Não uma lição para os outros, mas para si mesmo.

Dentro do tema serão abordadas questões culturais e religiosas com o

objetivo de entender se quem professa alguma fé, tem mais ferramentas para

sair de um processo de luto. Para nossa abordagem foram escolhidos autores

ligados à psicanálise, sociologia, psicologia, antropologia por entendermos que

o campo é vasto; são muitos os estudiosos do assunto e cada qual dentro de

sua linha de pesquisa tem a contribuir com o tema escolhido.

Também falaremos das perdas que começam quando nascemos,

passando pelos lutos de todos os dias, até as grandes perdas de pessoas

queridas ou da ameaça de nossas próprias vidas por doenças graves. Para

concluir, optamos por uma experiência vivenciada. Uma pessoa que há muito

tempo luta contra um câncer e pode nos mostrar um pouco do luto

antecipatório. Um luto vivido em vida, como muito bem pontua Montoto (2007).

Ainda, da dor que pode nos aprisionar e nos tornar refém de nós mesmos ou

da possibilidade de partirmos para a libertação do nosso verdadeiro “eu”, para

que aprendamos cada vez mais a viver conosco mesmo, responsabilizando-

nos inteiramente pela nossa vida. Sabendo, como nos ensina Sêneca, que “um

único dia é o tamanho da vida”.

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2. METODOLOGIA

A proposta deste estudo foi realizar um embasamento teórico básico dos

principais autores que fundamentaram a questão do luto – não só o luto da

morte, mas de todas as perdas sofridas no decorrer da vida. Com o objetivo de

mostrar que o luto também permite que a pessoa possa crescer, se reinventar

ou mesmo criar uma nova vida, foi escolhido o caso de uma paciente que há

muitos anos luta contra um câncer raro para a realização de uma entrevista

com objetivo dissertativo de fechar as questões aqui levantadas.

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3. O TEMPO QUE PASSOU JÁ PERTENCE À MORTE

O antigo filósofo Sêneca em seu livro, “Aprendendo a Viver - Carta a

Lucílio” (p.15), já questionava se alguém poderia indicar uma pessoa que

realmente desse valor a seu tempo? Pois muitos acreditam que a morte é coisa

do futuro, quando, na verdade, ela pertence a todos os momentos que se

passaram.

A morte não está no amanhã que ainda virá. Está neste tempo presente,

onde as coisas se vão e se renovam a cada dia. Ficar esperando a velhice, ou

mesmo estar muito doente para se pensar na morte, é uma forma de negar o

tempo presente. Se a cada tempo presente perdemos muito daquele que já

passou, então, o luto nosso de cada dia também precisa ser assimilado,

trabalhado, compreendido. Mas há uma resistência do ser humano, como

podemos constatar na obra do filósofo francês Luc Ferry:

“Os filósofos antigos diziam que não se deve pensar

nela, porque de duas, uma: ou estou vivo e a morte por

definição não está presente ou estou morto e, também por

definição, eu não estou presente para me afligir. Por que nessa

condição, se preocupar com um problema inútil..”(LUC FERRY,

2007:21)

Becker também enfatiza a relação que o homem tem com a morte e

como ele rejeita a idéia de finitude. Para ele, o ser humano tem dificuldade em

entender que este é o seu destino final e que por mais que ele se sinta

poderoso, ele não pode mudar a sua condição humana.

“A Idéia da morte e o medo que ela inspira perseguem o

animal humano como nenhuma outra coisa. É uma das molas

mestras da atividade humana – atividade destinada em sua

maior parte, a evitar a fatalidade da morte, a vencê-la mediante

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a negação de que ela seja o destino final do homem”

(BECKER, 2009:11)

Na psicanálise Freud (1976:12) é enfático ao mostrar a dificuldade do

ser humano de enfrentar a sua verdade. “Cada vez que um ser humano reflete

sobre a morte, sempre a pensa como um fato que acontece com os outros,

nunca com ele mesmo.”

Quando acontece de se perder alguém, ou diante da hipótese da nossa

própria morte, perplexos olhamos para o “mundo desabado” e perguntamos:

por que eu? Por que minha mãe? Por que meu pai? Por que meu filho? E

tantos outros porquês.

A vida deve ser vivida de modo que se possa desfrutá-la plenamente e,

para isso, é necessário pensar na morte, pois ela faz parte dessa trajetória.

Estar em contato com o sentido que a morte nos traz, ao contrário do que

parece, não nos faz aprimorar o senso de morbidez, mas nos faz estar inteiros

no momento presente. Sempre significando aquilo que consideramos

importante enquanto vivemos.

Carvalho (2006:3), em seu trabalho sobre luto e religiosidade, citando

Barros (1998:8), diz: “só o homem tem consciência da morte, e desde os

primórdios de sua existência começou a construir túmulos e a prestar culto aos

mortos”. Porque a ela não escapamos e porque seus horrores e medos nos

assombram, tal como Ruffié (1987, citado por Barros) designou: “este fim

miserável, que a todos nos torna iguais, é uma razão a mais para nos

mostrarmos modestos.”

“Lidar com as adversidades, desenvolver atitudes mais

evoluídas e tirar da dor algum aprendizado para um

crescimento pessoal. Por outro lado, adotar atitudes de derrota

ou de fracasso tirânico diante das adversidades é transformar a

dor em sofrimento, com repercussões não só pessoais, mas

também para todos á sua volta”. (TAVARES, 2001:27).

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Se pensarmos em uma perspectiva biológica sobre a morte, poderemos

entender que nada é mais natural que “o morrer”, como refere Pitte (2004),

acrescentando ainda que, para além de natural, “o morrer” é um processo

predominantemente cultural, com uma desigualdade acentuada entre seres

humanos, sendo a expectativa média de vida um dos critérios fundamentais do

desenvolvimento humano. A expectativa de vida, de acordo com este mesmo

autor (2004), depende da riqueza, da saúde, do modo de vida, assim como o

nível de educação da pessoa e da sociedade onde está inserida.

De acordo com Pereira (2006), a vida seria fútil se não houvesse

importância na forma como cada um despende a sua vida na terra. Como o ser

humano se recusa a esta perspectiva de insignificância, a religião se impôs

como a instituição social que tem controlado os rituais e conhecimentos

associados à morte, em grande parte devido ao fato descrito por Pargament de

que a religião não só fornece conforto em tempos de sofrimento e estresse

(1997), citando Scott & Wink (2005:207), mas também, pelo menos no caso do

Cristianismo, oferece uma promessa de vida após a morte e de reunião com as

pessoas anteriormente perdidas.

“A morte, juntamente com o nascimento, a doença e a velhice, são as quatro aflições básicas da condição humana. Elas são óbvias e inescapáveis, nas nossas experiências pessoais e nas experiências de outras pessoas. Além disso, essas quatro aflições estão dentro das categorias de maior sofrimento, as quais são vivenciadas por todos os seres, tanto o humano quanto não-humano. [...]. Um entendimento dos fenômenos físicos, sensoriais e mentais do processo de morte pode ser muito proveitoso, conforme a nossa própria morte se aproxima; pode também prover insights nas experiências dos outros que estão morrendo. Devemos perceber, entretanto, que as sensações estranhas da morte e a perda do suporte familiar do corpo ainda serão muito difíceis. Por esta razão, é imperativo desenvolver um reconhecimento inamovível da natureza absoluta que irá nos carregar através do tempo de morte, não importa o que surja” (EVEREST, 2003:134). 1

1 EVEREST, Tsering. Vida e Morte no Budismo Tibetano: por Lama Chagdud Tulku Rinpoche. Artigo disponível em http://www.salves.com.br/enschagvimobudtib.htm. Acesso em 30 de maio 2009.

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3.1. A Morte Continua um Mistério - Visão Antropoló gica

Carvalho (2006: 88) cita que ao homem estão associados grandes feitos

históricos, nomeadamente descobertas científicas, avanços tecnológicos que

em muito contribuíram para o grande crescimento e a industrialização da

sociedade. Porém, a morte teima em ser um dos mistérios que o homem não

consegue desvendar e derrotar:

“A vivência da morte varia de sociedade para sociedade, de cultura para cultura, de família para família e de indivíduo” (Ferreira, 2005:43). “De acordo com Morin (1997, citado por Giorgi s/d), retratando tempos longínquos, os mortos dos povos musterenses eram cobertos de pedras com intuito de protegê-los dos animais e evitar que voltassem para junto dos vivos. Mais tarde, eram ainda depositados alimentos e as armas do morto sobre sua sepultura.”

Desde os tempos mais remotos, são incontestáveis as várias

transformações em torno da vivência da morte. Nesse sentido, é de salientar o

trabalho elaborado pelo historiador Philippe Ariès, que ao se debruçar sobre

este tema, dividiu as várias atitudes perante a morte em cinco modelos.

Baseando-se no autor, até o século XII, predominou o conceito de morte

domada, onde a morte era considerada familiar, próxima. Atualmente, esta

visão da morte está apagada dos nossos costumes, tornando-se mesmo difícil

compreender a sua essência. Naquela época, a morte era aguardada pelo

moribundo com a maior naturalidade e, habitualmente, no seu quarto,

acompanhado dos seus familiares, padre, médico, companheiros e vizinhos.

Havia um ritual a cumprir, em que o moribundo pedia perdão pelas suas

culpas, doava os seus bens e aguardava a chegada da morte. O inicio da Idade

Média era, assim, marcado por uma familiaridade com a morte, sendo esta

considerada um acontecimento público. Toda esta passagem era caracterizada

pela sua discrição e gestos emocionais excessivos não tinham lugar.

“As sepulturas, até então anônimas, reaparecem com inscrições e retratos, o que mantem estreita relação com a preservação da identidade do indivíduo após a morte. Irrompe assim, a noção de a morte de si próprio nos séculos XV e XVI,

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onde o cadáver foi associado ao horror da morte física e da decomposição através da arte e da literatura. A ocultação definitiva do cadáver e o costume do testamento assumem um papel de extrema importância neste modelo” (ARIÈS, 2000:34).

Mais tarde, surge um novo modelo, a morte distante e próxima. Ainda

Ariès, sobre a nova face da morte:

“Esta, naquilo que antes tinha de próximo, de familiar,

de dominado, afastou-se pouco a pouco para o lado da

selvajaria violenta e dissimulada, que mete medo”. (ARIÈS,

1988:366).

Essencialmente, este modelo se refere ao medo que a idéia e a

presença da morte despertava. Um dos grandes medos dessa época era o de

ser enterrado vivo o que pressupunha a existência de um “(...) estado misto e

reversível, feito de vida e de morte” (p. 367). A grande preocupação está na

morte aparente. Com efeito, surgem com grande freqüência nos testamentos,

precauções subjacentes à confirmação da própria morte. Assim, nos

testamentos figuravam as imposições como a permanência do corpo no leito

durante 48 horas e a escarificação, designadamente, golpe nos calcanhares.

No decorrer do século XVIII, o homem dá um novo sentido à morte.

Digamos que a morte deixa de ser a morte romântica de si próprio e passa a

ser a morte do outro. Torna-se um acontecimento dramático e violento,

encarado como uma transgressão, em que o homem é roubado da sua família.

Inicia-se aqui o culto aos cemitérios, bem como as manifestações em memória

do falecido. O luto passa a ser exagerado, a atenção se foca na família e não

no morto. Não se teme a própria morte, mas antes a morte do outro.

(ARIÈS,1988:98).

Carvalho analisa o processo de transformação no tratamento da morte

ou mais precisamente do morto:

“Se até então se esperava pela morte em casa, em

meados do século XIX, a visão da morte sofre uma grande

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transformação, precisamente pela troca desse espaço pelo

hospital.” (CARVALHO, 2006:04).

Nasce o conceito de morte invertida, outrora, competia aos familiares

informar o moribundo de que estava morrendo. Atualmente, firma-se como um

dos principais deveres dos profissionais de saúde, dissimular a gravidade em

que se encontra o doente e esconder deste que o seu fim está próximo:

“A morte passa a ser vista como vergonhosa, assunto

interdito, tabu, sendo todas as manifestações excessivas

julgadas como anormalidades e descabido qualquer culto,

como a visita ao cemitério” (ARIÈS, 1988:102).

Nos dias de hoje, a morte parece se dotar de seu caráter mais selvagem

e sombrio na medida em que, são operados os maiores esforços no sentido de

escondê-la, silenciá-la, ocultar todo o sofrimento e dor por ela causado. Glaser

e Straus (1966:1968, citado por Barros, 1998) constataram que nas sociedades

industriais, o agonizante deixou de sentir a morte chegar, pois esses sinais lhe

são ocultados pelos médicos e familiares, sendo também feito o adiamento da

sua morte nos hospitais. Tal como Elias (2001, citado por Menezes, 2004)

proferiu, nos nossos dias, morremos higienicamente e sem odores em

hospitais, onde o hábito é coordenar uma estruturação social para o evento de

morrer.

No Brasil, a sociedade passou por profundas modificações no século

XX, o que transformou o perfil social e econômico da população. Nos anos 20

houve um surto de modernização com políticas de embelezamento,

saneamento e adequação dos meios de circulação de produtos mercantis e

humanos que melhor se adequassem ao capitalismo internacional (Pinheiro

Koury, 2003:66). Mas no comportamento da população, a grande mudança

acontece nos anos 70, quando a população brasileira, predominantemente

rural até aquele momento, passou a concentrar-se nas cidades, especialmente

nos grandes centros urbanos:

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“A mudança rápida de uma tradição rural para uma urbanidade desorientada e intensa parece atingir em cheio hábitos comportamentais, dilacerando práticas relacionais comunitárias e provocando sentimentos díspares e ambivalentes quanto ao papel a desempenhar em situações concretas do dia-a-dia da sociedade” (PINHEIRO KOURY, 2003:67).

Muitos dos hábitos e práticas correntes na sociedade rural passam a ser

considerados interioranos pela sociedade urbana, que busca ajustar-se aos

novos patamares de realidade, aproximando-se com rapidez das experiências

civilizatórias européias e americanas, “o que causou um paulatino

desbravamento de caminhos para a individualidade dos sujeitos”. A

individualidade começa a se impor como padrão comportamental e passa a ser

considerada como padrão de civilidade, de liberdade do indivíduo frente à

sociabilidade em que vivia anteriormente.

Ainda de acordo com Pinheiro Koury, o processo de luto passa a ser

cada vez mais solitário e discreto por exigência dos padrões atuais de

comportamento.

“A exposição pública do sofrimento se vê mesclada, assim, por uma condenação velada do sofrimento. A ambivalência predomina. No conjunto das relações pessoais, a tendência é de uma reprovação tácita ao luto expresso publicamente, como se a dor causada pelo sofrimento pessoal de uma perda contaminasse os outros com a presença da morte” (PINHEIRO KOURY, 2003:23).

3.2. O Medo que a Idéia da Morte Desperta

Singh e Nizamie (2003) afirmam que se analisarmos a morte desde o

ponto de vista biológico, ela ocorre quando cessa todas as funções vitais. Mas,

analisada desde um ponto de vista mais amplo, dentro dos fatores psicológico,

social e cultural, a morte é muito mais que uma etapa final de um processo

biológico. Ela é a única certeza que temos na vida. Se houve um nascimento,

provavelmente haverá a morte. Não se sabe o dia, a hora, em que

circunstância. Se ocorrerá por um atropelamento, se será morte súbita, por

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acidente aéreo, catástrofe ou doença grave de longo tratamento. A única

certeza que se tem na vida é de que se morre e ponto!

Se, por um lado, os seres humanos possuem uma capacidade cognitiva

para entender esta inevitabilidade, possuem também para temê-la.

Segundo Ardlet (2000), “é esperado que pessoas sábias, instruídas, não

tenham medo da morte, uma vez que entendem a verdadeira natureza da

existência, vivem uma vida significativa e, portanto, são capazes de aceitar a

vida assim como a morte.”

Mas não é assim. As pessoas quando dizem que não temem a morte,

estão dizendo de uma maneira intelectual, no entanto, se essa possibilidade se

avizinhar o medo obsessivo quase sempre se fará presente, e elas poderão

deixar de ter um bom funcionamento psicológico: Tal como afirmam Barros &

Neto (2004):

“A morte pertence a todas as idades e condições

sociais e está na origem de muitos sintomas e perturbações

psíquicas, nomeadamente as insônias, a depressão, doenças

psicossomáticas, vários medos e obsessões que, no fundo, são

medos da morte”.

De acordo com Montoto (2002), de um ponto de vista geral, o medo da

morte é o resultado de um tabu. Se tivéssemos uma familiaridade com a

própria idéia da morte, não a consideraríamos uma tragédia, ou algo para não

ser discutido.

“[...] mas, o único jogo que não tem esperanças, que

não há como subornar é o da vida. [...] Para Unamuno é impossível ter a certeza de que somos imortais, mas o lema é esperança. Muito embora esse sentimento de esperança não seja um refúgio nem um truque para se eximir do sofrimento, pelo contrário. Nada exime da angústia que supõe refletir sobre essa impossibilidade humana, e o desafio unamuniano é continuar a vivenciar, a pensar na incompletude humana para

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fazer deste mundo um lugar justo e agradável de ser vivido” (MONTOTO & PEREIRA, 2002:20).

Para Becker, o medo da morte provoca sentimentos e reações

ambíguas:

“O medo da morte é a mãe de todas as angústias e, ao

mesmo tempo, o motor de toda a atividade humana. Este

medo, não aponta para uma única direção no que concerne à

sua etiologia, sendo considerado algo que não é natural, inato.

Pelo contrário, é produto da sociedade” (BECKER,2007:31).

Ainda Becker, citando o psicanalista Gregory Zilboorg, diz que a

maioria das pessoas pensa que o temor da morte está ausente porque ele

raramente mostra a sua face:

“Porque por trás da sensação de insegurança diante do

perigo, por trás do sentimento de desânimo e depressão,

sempre se esconde o medo básico da morte, um medo que

sofre elaborações muitíssimo complexas e se manifesta de

muitas maneiras indiretas ..() ninguém está livre do medo da

morte” (BECKER, 2007:36).

Segundo Barros & Neto (2004), vários são os estudos que indicam que o

medo da morte nos adultos não é tão evidente (Barros, 1998, Kastenbaum &

Aisenberg, 1983). Kococher et. al (1976), verificaram que os alunos de Ensino

Secundário apresentavam resultados mais ansiosos que os alunos do Ensino

Básico e ainda, relativamente, aos adultos. No que se refere ao gênero,

parecem não surgirem discrepâncias significativas. No entanto, existem

investigações onde houve uma maior predisposição para a ansiedade por parte

do sexo feminino.

Relativamente à comparação entre religiões, um estudo intercultural

realizado na Índia por Parsuan e Gandhi (1994, citado por Barros & Neto)

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demonstrou que os mulçumanos são os que atestam uma ansiedade mais

baixa perante a morte, contrariamente aos cristãos, que apresentam os valores

mais elevados.

Tal como dito por Kluber-Ross (1998), partindo de estudos de outros

povos, outras culturas e outros tempos, é notório que desde sempre o homem

repudiou a morte e que, naturalmente, sempre a repelirá:

“A morte constitui ainda um acontecimento medonho,

pavoroso, um medo universal, mesmo sabendo que podemos

dominá-lo em vários níveis” (ROSS, 2009:9).

3.3. A Religião como Promessa de Outra Vida

Acreditar em outra vida após a morte é um dos caminhos que as

pessoas enlutadas encontram para suportar a dor da perda e tentar sair mais

rapidamente da paralisia causada pelo trauma. A certeza de um reencontro em

qualquer que seja a dimensão depois da morte é um conforto que faz com que

o retorno ao cotidiano da vida seja quase uma obrigação em respeito ao futuro

encontro.

Em pesquisa realizada com 1.304 entrevistados, Pinheiro Koury

constatou que 92,4% responderam freqüentar algum tipo de igreja e entre eles,

a morte é considerada o “fim da existência” por 41,18% dos informantes, e uma

“transição” para outra vida para 41,26%. Os demais 17,56% se dizem

estupefatos com a possibilidade da morte e do vazio por ela causado. Para

esses, a morte simplesmente não deveria acontecer:

“O morrer tem um significado de um estágio preparatório para uma nova vida que se inicia com a morte. Idéia semelhante à existência no Brasil do final do século XIX onde a noção do morrer era tida como um estágio necessário ao homem, para passar em revista a sua própria vida como forma de garantir um local adequado no além” (PINHEIRO KOURY, 2003:74).

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Outra pesquisa feita sobre o mesmo tema, porém, com uma

amostragem menor, foi a realizada por Walsh, King, Jones, Tookman e Blizard

(2002), que aborda a relação entre religião e crenças religiosas e o luto, num

estudo prospectivo com 129 parentes e amigos próximos de pacientes com

doenças terminais, onde foi analisado o efeito das crenças espirituais no luto.

Os autores concluíram que 43% tinham forte espiritualidade, 41% tinham pouca

espiritualidade e os restantes 16% não relataram qualquer crença religiosa.

Entre as 95 pessoas que participaram das avaliações de acompanhamento, as

que tinham forte espiritualidade se recuperaram firmemente do luto e relataram

progressivamente menos sofrimento com o luto no primeiro, nono e décimo

quarto meses de acompanhamento. Já os participantes com baixa

espiritualidade, relataram pouca mudança no sofrimento por causa do luto até

depois do nono mês de acompanhamento. Quanto às pessoas sem crença

religiosa, estas manifestaram uma breve melhora no sofrimento com o luto

entre o primeiro e o nono mês de acompanhamento, no entanto, e após esse

período, apresentaram uma intensidade renovada do luto que era ainda

evidente no décimo quarto mês de avaliação:

“A conclusão que nasce com este estudo, é de que as

pessoas que possuem crenças religiosas em situações de luto superam e completam mais rapidamente o próprio processo do que as pessoas que não possuem tais crenças. Da mesma forma que toda a Humanidade se assume como diversa historicamente, etnicamente e linguisticamente, o mesmo acontece na religião” (WALSH et, al.,2002:324).

Ao fazer a opção por determinado credo e defender determinadas

crenças e práticas, a escolha deverá ser cruzada com a possibilidade de uma

liberdade absoluta. De acordo com Silva (2004), essa liberdade deve incluir

também a liberdade de não crença, da expressão de ateísmos, agnosticismos

ou da simples indiferença frente aos valores religiosos.

Segundo Barros a crença no além ou em vida após a morte se manifesta

mais claramente em segmentos da sociedade com menor cultura formal:

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“[...] os valores estatísticos sobre a crença no além ou na vida eterna variam de nação para nação e dependem também da religião dominante, bem como da percepção da própria crença. (...) partindo do estudo de Hood et al, (1996, cit por Barros, 2000), são as mulheres e os iletrados de nível mais baixo que se mostram mais crentes, quanto ao gênero e nível sociocultural, respectivamente...” (BARROS, 2000:139).

Esta diversidade persiste entre ateus e religiosos, entre formas distintas

de religião (cristãos e budistas), entre ramos religiosos com pontos em comum

(judeus e muçulmanos), entre expressões internas de uma mesma religião, e,

entre expressões geográfico-históricas da mesma fé, como por exemplo,

católicos espanhóis e católicos norte-americanos. (Silva, 2004).

Independentemente do credo ou da não crença, o ser humano busca

uma possibilidade de continuidade ou compensação para justificar o sofrimento

pelo qual passa na atual existência. É necessário que haja uma razão para

suportar a dor, as perdas, o desamor, a solidão, a incompreensão. E Becker

mais uma vez aborda o assunto com muita propriedade:

“Desde que a pessoa começa a olhar para a finitude, para o seu relacionamento com o Poder Máximo e passa a refazer seus elos, transferindo-os daqueles que os cercam para aquele Poder Máximo, ela abre para si mesma o horizonte da possibilidade ilimitada, da verdadeira liberdade (..) A pessoa passa por tudo isso para chegar à fé, à fé de que a sua própria condição de criatura tem algum significado para o Criador; de que, apesar de sua verdadeira insignificância, fraqueza, morte, sua existência tem significado em algum sentido máximo, porque existe dentro de um plano eterno e infinito de coisas provocadas e mantidas para atender a algum desígnio estabelecido por uma força criadora. Repetidas vezes, ao longo de seus trabalhos escritos, Kierkegaard repete a fórmula básica da fé: somos uma criatura que nada pode fazer, mas existimos em face de um Deus vivo para quem tudo é possível” (BECKER, 2007:119).

Essa necessidade leva à identificação do ser humano e das sociedades

em geral com o heróico que remonta das Eras mais primitivas, porque o herói,

como nos mostra Becker (2007:32), era o homem que podia entrar no mundo

espiritual, no mundo dos mortos e voltar vivo. A origem estava nos cultos e

rituais antigos que se baseavam em morte e ressurreição. O próprio

Cristianismo saiu-se vencedor porque “tinha em destaque um homem que

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curava, tinha poderes sobrenaturais e havia ressuscitado”. Todas as religiões

históricas se dedicavam a esse mesmo problema, ou seja, como suportar o fim

da vida.

Em determinadas sociedades, Waters (2003) fala sobre a existência de

uma partilha comum de uma religião de onde se espera que todos os

elementos dessa sociedade a sigam. Religião é, em parte, o fator que une

sociedades, sendo assim, a morte de um membro implicará toda a família, a

comunidade, e mesmo (caso ocorra a morte de indivíduos de alto status social)

toda a sociedade. A religião se impõe, nesse caso, fornecer os “rituais de

morte” que são comuns a todo o grupo.

De acordo com Kahn, Lazarus e Owens (2003), esses “rituais de morte”

que são referentes a processos como o cuidado do corpo post mortem, papel

do clero, o uso da autópsia, doação de órgãos, suicídio e eutanásia, ou ainda

como acrescentam Ramondetta e Sils (2003), à duração dos rituais a partir do

momento de morte (ex: enterro imediato por parte dos judeus) e aos

pormenores relativamente ao destino do corpo (ex: cremação por parte dos

hindus).

Todas as religiões possuem crenças do que acontecerá aos seus

membros após morrerem, segundo Ramondetta e Sils (2003:21):

“Cristãos poderão viajar para o Céu, Muçulmanos para

o Paraíso e os membros de algumas variantes de Budismo

poderão ir para ‘Terra Pura do Oeste’.”

A imortalização, dentro do seio das religiões, é concebida, como

afirma Kearl (2006), através da memorização coletiva, como é o caso dos

rituais de canonização da Igreja Católica Apostólica Romana.

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3.4. O Ateísmo Perante o Luto

Ateísmo se refere à descrença em qualquer deus, deuses ou entidades

divinas. Em termos gerais, o ateu é visto como alguém que aspira à

objetividade e que recusa qualquer dogma (Wikipédia, 2006). De acordo com

Barros (2000), o ateísmo é uma opção contra a atitude religiosa.

Segundo o mesmo autor (2000), existem várias espécies de ateísmo. O

ateísmo vulgar que toma forma nos slogans e preconceitos contra Deus; o

ateísmo prático onde o dinheiro, o prazer e o poder é que são os verdadeiros

deuses; o ateísmo existencialista ou humanista, onde impera a crença de que

Deus tem que morrer para que os homens vivam; o ateísmo revoltado ou

militante que partiu da revolta de Nietzsche, que declarava morte a Deus; o

ateísmo ético que se baseia na descrença em Deus pelo fato de existir tanto

mal e sofrimento no mundo; o ateísmo científico assente na idéia de que um

dia a ciência e tecnologia substituirão Deus; o ateísmo sociológico ou

econômico, que se refere à religião como o ópio do povo; e, finalmente, o

ateísmo psicológico, que deriva da concepção da religião como “uma neurose

obsessiva”, como uma “ilusão” sem futuro.

Vergot (1996) enumerou os processos psicológicos mais presentes no

ateísmo, nomeadamente, a defesa contra o divino, na medida em que, desde

os tempos mais antigos, o divino e o sagrado eram tidos como ameaças, a

valorização da razão, uma vez que Deus se opõe à razão que não admite

mistérios nem verdades eternas, o mito do filho rebelde, tal como Nietzsche

afirmara, o homem como um ser por natureza revoltado, e a legitimação do

prazer (sexual ou outro) por culpa de toda a contestação da religião.

Mais do que não crer em um Deus, no ateísmo e em algumas filosofias

há a proposta de encarar a morte numa dimensão terrena, num fim biológico,

num eterno que está presente em cada momento. Becker falando de Willian

James diz:

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“James uma vez mais, sabia o quanto era difícil viver abarcando os dois mundos, o visível e o invisível. Um tendia a puxar a pessoa para longe do outro. Um dos seus preceitos favoritos, que ele repetia com freqüência era: ‘Filho do homem, fique de pé sozinho, para que eu possa falar com você’. Se os homens se apoiarem demais em Deus, não irão conseguir o que precisam fazer neste mundo com suas próprias forças” (BECKER, 2007:310).

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4. O LUTO NOSSO DE CADA DIA

Quando se pensa em luto, imediatamente vem à cabeça a morte de

alguém, mas os lutos são muito mais freqüentes em nossa vida do que

podemos imaginar pois, perdemos não só pela morte, mas também toda vez

que abandonamos algo ou alguém, ou quando somos abandonados,

despedidos. Por mudarmos de cidade, de casa e termos que deixar nossas

coisas para trás e seguir nosso caminho. Caminho esse sempre tão

desconhecido, tão assustador, como é tudo que nos pareça novo.

Se pensarmos em perdas, devemos considerar não só as perdas de

pessoas ou de objetos, mas de nossos planos, nossos sonhos, as ilusões, as

fantasias, a perda do nosso próprio eu jovem e o que julgávamos para sempre

em nós: a beleza, a força, o rosto sem rugas, a pele sem manchas, nossos

passos sempre tão obedientes que, pouco a pouco, se tornam trôpegos.

As perdas do dia a dia, agora refletidas em um espelho, cuja imagem

temos que aceitar como sendo a nossa. As perdas que encaramos,

independentemente da dor que nos cause: a mãe que não será eternamente

nossa, nós que não seremos eternamente de nossa mãe; que as dores que

nos acometem nem sempre se curam com um simples beijo; que por mais

sábia e encantadora que a menina se ache, nunca poderá se casar com o pai

quando crescer. Que há falhas em todo e qualquer relacionamento humano e

que nossa condição (seja física, financeira, ou mesmo de saúde) é efêmera.

Que por mais que tentemos, não conseguiremos dar às pessoas que amamos

total proteção, total segurança. Que não podemos oferecer a ninguém, nem a

nós mesmos, certeza de que se sofrerá, que nunca, em momento algum, virá

uma dor tão grande que mudará todo o curso da nossa vida.

Embora saibamos que toda perda é sempre muito dolorosa, também

aprenderemos – e é para isso que o sofrimento serve – que em um

determinado momento teremos que rever nossos caminhos, nossos princípios,

nossa maneira de amar as pessoas e a nós mesmos. Que não existe uma

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fórmula para nos livrarmos do luto, da dor, das lágrimas. Às vezes, ou quase

sempre, nosso único aliado é o tempo. Enquanto esse tempo não chega, temos

que achar de onde tirar forças. Por meio de nossas perdas poderemos nos

tornar mais desenvolvidos e em busca do que há de mais precioso: a verdade

do que realmente somos.

E como garimpeiros, vamos agora abordar alguns aspectos dos lutos

sofridos no dia a dia. Vamos tentar entender as perdas e os recomeços;

mergulhar nas dores de cada momento.

4.1. Aprender com a Dor

Vamos começar pelo caminho mais simples: toda perda é dolorosa. O

verbete “luto,” no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa significa:

“(1) sentimento de tristeza profunda por motivo de morte de alguém; (2) luto originado por outras causas (separação, partida, rompimento), amargura, desgosto; (3) tempo durante o qual devem se manifestar certos sinais de luto; (4) fato de perder um parente ou pessoa querida, perda por morte; (5) conjunto de sinais externos, por exemplo, negro no vestuário Cristão, azul no Japão, branco na China, (costumes associados à perda de parentes próximos ou pessoa querida)” (2001:1794).

Montoto (2002:21), citando uma reflexão de Unamuno diz que o

amadurecimento espiritual é diretamente proporcional à capacidade de sofrer e

de ter consciência desse afeto humano:

“A dor é a substância da vida e a raiz da personalidade,

porque só mediante o sofrimento nos convertemos em

pessoas”. (...) O homem é tanto mais homem, isto é, tanto mais

divino, quanto mais capacidade para o sofrimento tem”

(UNAMUNO, 1986:216-7).

A psicanalista Marques de Oliveira, especialista em pacientes terminais,

concorda com Unamuno e acrescenta, no momento de analisar a sua prática

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clínica, que “apesar de, aparentemente, morte e desenvolvimento serem

paradoxais, não há desenvolvimento sem contato com essa dor, embora o ser

humano fantasie essas possibilidades” (2001:89).

De acordo com a autora, não são muitos os que aceitam aprender com a

dor. Poderíamos aprender com a alegria, felicidade ou com os momentos

felizes, mas acreditamos que eles sejam para serem curtidos, vivenciados. A

alegria é fundamental para viver e todos correm atrás dela, fazem tudo para

alcançar este estado, por isso é difícil tirar grandes lições de vida. É melhor

aproveitar esses momentos para nos abastecer e enfrentar melhor as

dificuldades.

Quem vivencia o luto, ou seja, a perda de um ente querido, de um

projeto de vida, de um grande amor ou de um emprego e até a mudança de

cidade conhece os sentimentos que vêm depois; conhece a dor, a angústia e a

sensação de ter perdido parte de si mesmo, de não mais ver sentido na vida.

Um sentimento de total desolação.

No inicio, a pessoa revive constantemente as lembranças do objeto

perdido, chora com freqüência, é acometida por sentimentos como raiva,

angústia, desamparo, solidão, falta de interesse pelo mundo exterior, vontade

de ficar retraído. Ela se sente culpada pela perda. As reações físicas mais

freqüentes costumam ser aperto no peito, falta de ar, insônia, perda de apetite

e dores no estômago. Em grau maior ou menor, todos passam por estes

sentimentos em algum momento na vida e se isso não acontecer, com certeza,

não há vida; a pessoa não está conectada com a realidade.

A diferença entre a morte e perder um emprego, mudar de cidade,

romper um relacionamento ou acabar uma amizade é que as pessoas

continuam a existir e, por mais raiva e ódio que o momento provoque, tudo

pode acontecer, inclusive reiniciar ou retomar a situação, o relacionamento ou

a amizade. Por mais desespero que a perda de um emprego ou de um projeto

de vida traga, o tempo pode mostrar que este foi um benefício para o atingido.

Ele poderá encontrar um emprego melhor, por exemplo, e até sublimar este

momento e se tornar um executivo famoso aprendendo com a dor. Porém,

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quando se perde um ente querido ou quando a nossa vida está ameaçada por

uma doença grave, encontramos a mesma dor, o mesmo buraco dentro de nós,

mas com o agravante de que, neste momento, não teremos de volta o objeto

amado. O que temos pela frente é a perda de uma pessoa querida e a certeza

da nossa finitude, ou seja, a morte.

Para entender o luto, temos que entender os laços afetivos. Segundo

Sanders (1999), uma das teorias que tentou explicar a necessidade do ser

humano estabelecer laços afetivos foi a Teoria do Apego, desenvolvida por

Bowlby em 1980. De acordo com esse autor: “estabelecer vínculos prende-se

com o instinto inato e necessário que torna possível a sobrevivência da espécie

e potencializa sentimentos de proteção e segurança”:

“Esse instinto, será mecanismo funcional de sobrevivência encontrado em muitos animais sociais. Assim, quando se perde o objeto significativo, determinados comportamentos assumem-se como repostas automáticas perante a perda. Chorar, agarrar, e procurar foram alguns dos comportamentos observados por Bowlby, como respostas biológicas que procuram restaurar o equilíbrio perdido” (CARVALHO, 2006:78).

Coimbra de Matos (2001) defende que o luto é uma reação normal à

perda de um objeto importante, constituindo uma fase transitória e necessária

da readaptação do investimento em novos projetos.

Segundo Freud, o luto consiste em aceitar a realidade da perda e ir

desligando a libido do objeto perdido. Já Sanders (1999) considera o luto como

a representação de um estado experiencial que a pessoa sofre após tomar

consciência da perda.

Ocorrendo este processo em condições normais, parece existir

consenso entre os autores, quanto ao seu caráter adaptativo bem como quanto

à sua universalidade. Tal como havia defendido Lindemann (1994) ao

considerar o luto como uma síndrome notavelmente uniforme, que inclui

sintomas físicos e emocionais. Porém, não podemos descurar o seu caráter

idiossincrático. Mesmo sendo universal, parece estar profundamente marcado

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pela forma como cada indivíduo, membro de determinada cultura, o experiencia

na sua individualidade. De acordo com Worden (1998, citado por Ziberman,

2003), a dor da perda não pode ser quantificada e cada indivíduo deve ser

compreendido na sua necessidade pessoal, com as suas características e

reações particulares.

Existem diversos modelos teóricos que abordam o processo de luto. De

acordo com o modelo de Bowlby (1984, citado por Escudeiro, 2005), o

processo de luto desenvolve-se em quatro fases. Logo após a perda, entramos

em um estado de entorpecimento, onde a aflição e a negação da perda se

assumem como características. Posteriormente, entramos na fase do anseio e

busca do objeto perdido. Aqui, sentimos a presença da pessoa que perdemos,

sonhamos insistentemente com ela, sentimos seu cheiro e interpretamos

qualquer sinal como a sua presença. Contudo, a realidade impõe-se ao nosso

desejo e, depois de várias tentativas frustradas para recuperar a pessoa

perdida, somos invadidos pelo desespero e pela desorganização. Nesta fase, o

luto, a raiva, a culpa apresentam-se de forma mais intensa. Procuramos

responsabilizar alguém pela perda, sentimo-nos incapazes e temos consciência

de que nada mais podemos fazer para recuperarmos nosso ente querido.

Depois de vivida a dor e a tristeza da perda, somos impulsionados para o

restabelecimento do equilíbrio perdido, o que nos levará à última fase do luto –

reorganização.

No que se refere a outros modelos, Corr (1993, citado por Neimeyer,

2001) enaltece o modelo de Rando e de Worden pelo caráter mais ativo das

tarefas que a pessoa enlutada necessita realizar para superar a perda.

Tomando como exemplo o modelo Rando (1993, citado por Asaro, 2001), o

processo de luto implica a realização de algum ou todos os processos:

1. Reconhecer a perda e seu significado;

2. Expressar sentimentos sobre a perda; reagir à perda, identificar e lamentar quaisquer

perdas adicionais e descrever as circunstâncias da morte;

3. Verbalizar a transformação no vínculo emocional com o morto e rever os aspectos

positivos e negativos do relacionamento com este;

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4. Verbalizar a perda e suas modificações do mundo antigo e verbalizar as reações

específicas (choque e entorpecimento, tensão, raiva, ansiedade, culpa, tristeza,

desespero, hostilidade, idealização, depressão e reorganização psicológica);

5. Verbalizar novos pareceres sobre o mundo em geral ou os aspectos particulares do

mundo; adaptar-se à nova vida; verbalizar e planejar um futuro que não inclua o

morto; adaptar novos papéis, novas habilidades, comportamentos, formar uma nova

identidade e auto-imagem tendo em conta todas as mudanças associadas às perdas;

6. Redirecionar energia emocional para outras áreas, que pode incluir novos

relacionamentos ou, por exemplo, promover causas ou ideais que forneçam uma

medida de gratificação ou satisfação.

4.1.1. Luto: um Processo que Pode Transformar

Não há como negar a grande influência que Freud exerceu para o

conceito de luto em Psicanálise. A sua obra Luto e Melancolia, datada de 1917,

é uma referência para trabalhos que envolvem o tema.

Freud se preocupa em diferenciar o luto da melancolia e quais os

aspectos presentes em cada um desses estados afetivos. Os critérios adotados

são a partir da reconstrução metapsicológica e dizem respeito à relação do

sujeito com o objeto perdido. Ele escreve:

“O luto, de modo geral, é a reação à perda de

um ente querido, à perda de alguma abstração que ocupou o lugar de um ente querido, como o país, a liberdade, ou o ideal de alguém, e assim por diante. Em algumas pessoas, as mesmas influências produzem melancolia em vez de luto/ por conseguinte, suspeitamos de que essas pessoas possuem uma disposição patológica” (FREUD, 1917:249).

Freud acredita que o luto poderá ser elaborado após certo tempo, sem

haver uma interferência sobre ele. No luto, podemos encontrar traços como

desânimo profundo, perda de interesse no mundo externo, perda da

capacidade de amar e inibição de atividades.

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Segundo Freud, a perda de interesse no mundo externo é causada pelo

fato de o mundo externo não evocar mais o objeto perdido. Há a perda da

capacidade de adotar um novo objeto de amor para substituir o que foi perdido

e o afastamento de atividades que não estejam ligadas a pensamentos sobre

esse objeto.

Kaufmann (1996) expressa essa mesma idéia quando escreve que o

luto é um estado de inércia libidinal, ou seja, não há movimento desta libido

para nenhum outro objeto. Freud coloca que é exigido que seja retirada a libido

da ligação com esse objeto. E diz no mesmo texto que esta é uma oposição,

pois as pessoas não abandonam de forma tão simples uma posição libidinal,

mesmo quando um objeto substituto aparece.

Freud ainda observa que as pessoas têm um grande dispêndio de tempo

e energia catexial2, prolongando-se psiquicamente a existência do objeto

perdido. Esse fato ainda é considerado por todos como algo natural, sendo

este um penoso desprazer. Há inibição e perda de interesse devido ao trabalho

de luto no qual o ego está absorvido. Mas quando o trabalho de luto cessa, o

ego novamente está livre para investir em outros objetos.

Lacan faz referência à melancolia em algumas de suas obras,

principalmente ao tratar do Narcisismo. Ele não apresenta uma teoria da

melancolia e transmite poucas observações a respeito dela.

2 Freud, ao estudar o atributo que têm as pulsões de impelir o homem à atividade, considerou-o análogo ao conceito de energia física, que se define como a capacidade de produzir trabalho. Assim Freud entendeu que uma parte das pulsões (impulsos) pode ser considerada energia psíquica. Tanto a energia física como a psíquica são hipóteses, já que os estados de energização não são passíveis de medida. Portanto presume-se que há um quantum de energia psíquica com o qual uma determinada pessoa ou objeto estão investidos. A palavra que Freud escolheu para designar este conceito vem do alemão Besetzung, traduzido para o inglês por Cathexis – em português – Catexia. Segundo Terzis (2001), a catexia é nada mais que o desejo. Parece que a motivação inerente ao ser humano possui um continuum de força – que se torna perceptível em suas ações. Catexia e Organização Psíquica - Noeliza Lima (Publicado em http://www.unat.com.br, seção artigos, junho de 2001 - revisado em 18/09/2006)

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Para Lacan, o sujeito não é o mesmo após passar por uma situação de

luto. “A experiência do luto determinaria o surgimento de uma nova figura de

relação de objeto. Lacan não vê na identificação aos traços do objeto perdido

uma função reparadora” (PERES, 1996:54).

Como foi relatado no Capítulo II, que o tempo que passou já pertence à

morte, a pessoa depois de um processo de sofrimento, ao ter que assimilar

uma perda, vivenciar um luto, passa a pertencer ao passado e, na volta à

rotina, percebe que não é mais a mesma. Passa a ver as mesmas coisas e

pessoas com outro olhar. Em alguns casos, a pessoa passa a se sentir

estranha naqueles ambientes que deveriam ser familiares e perde a intimidade

com pessoas próximas. Na verdade, em alguns casos há necessidade de que

a pessoa se reinvente, pois, de fato, não é mais a mesma. Isso não quer dizer

que a pessoa esquece ou deixa de reviver suas dores, mas, ao recriar uma

nova pessoa, dá vazão a essa mutação, que pode interferir de forma positiva

em todo o percurso que terá pela frente.

4.1.2. Melancolia: uma Dor que não se Estanca

Também utilizando o texto de Freud - Luto e Melancolia (1917) - como

referência, pode-se pensar a melancolia como um estado em que o sujeito

sofre a perda, mas não sabe claramente o que foi perdido, logo, não pode

conscientemente saber o que perdeu. Na inibição do melancólico não podemos

ver o que o absorve tão completamente.

“Num conjunto de casos é evidente que a melancolia

também pode constituir reação à perda de um objeto amado.

(...) Existe uma perda de natureza mais ideal. O objeto talvez

não tenha realmente morrido, mas tenha sido perdido enquanto

objeto de amor.” (FREUD, 1917:251)

Na melancolia, além dos sintomas que estão presentes no luto, como o

desânimo profundamente penoso, a cessação de interesse pelo mundo

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externo, a perda da capacidade de amar, inibição de atividades, há diminuição

da auto-estima e empobrecimento do ego em grande escala. Surgindo assim,

auto-recriminações e auto-envilecimento. No estado afetivo do luto, o mundo

torna-se pobre e vazio. Na melancolia, o ego torna-se vazio. Freud considera

que apenas a perturbação da auto-estima não está presente no luto.

Outros aspectos do delírio de inferioridade da melancolia, é que este

poderá vir acompanhado de insônia e recusa a se alimentar e por uma

superação do instinto que compele todo ser vivo a se apegar à vida. O paciente

melancólico mostra seu ego como sendo desprovido de valor, incapaz de

qualquer realização, desprezível.

Ele espera ser punido. Peres (1996) acredita que o paciente

melancólico, ao assumir uma atitude passiva, obtém prazer de seu sofrimento e

permanece preso a pensar sobre si. “A melancolia esconde uma fonte oculta

de prazer” (Peres, 1996:39). Isso se deve ao fato de que há uma repressão do

sadismo e isto provoca depressão, ansiedade, auto-acusações e aumento de

tendências masoquistas, segundo afirma a autora:

“O melancólico não tem sentimento de vergonha diante

de outras pessoas. Pelo contrário, há nele uma intensa

capacidade de comunicação e que poderá ser satisfeita no

desmascaramento de si mesmo” (PERES, 1996:39).

De acordo com Freud, na melancolia há perda de amor-próprio e o

melancólico deve ter tido boas razões para isso, pois sofre a perda de um

objeto, mas que o paciente aponta como tendo sido uma perda relativa ao seu

próprio ego. O paciente em sua auto-avaliação se preocupa pouco com a

enfermidade do corpo, feiúra ou fraqueza ou inferioridade social.

As auto-recriminações que o melancólico realiza são feitas a um objeto

amado, que foram deslocadas desse objeto para o próprio ego. “Eles não se

envergonham nem se ocultam, já que tudo de desairoso que dizem sobre eles

próprios, refere-se, no fundo, à outra pessoa” (FREUD, 1917:254).

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Ao invés de demonstrarem humildade e submissão, atitudes que

caberiam ás pessoas que se acham desprezíveis, eles se tornam pessoas mais

maçantes, tentando mostrar que se sentem desconsideradas e que foram

injustiçadas.

Lambotte (1996) relata que Freud classificou a melancolia em 1924 na

categoria de “neuroses narcísicas”, uma categoria que é diferente da neurose e

da psicose. Seu interesse neste tema foi devido aos tratados de Psiquiatria e à

atenção dada ao discurso do doente. A excitação psíquica própria do doente

melancólico acaba por cavar uma espécie de furo no psiquismo, no qual a

tensão ou libido não pára de escoar.

Freud distingue a melancolia da neurastenia, pois nesta há o

escoamento da energia sexual no somático. Na melancolia há o

desapontamento proveniente da pessoa amada, a quem foi realizada a escolha

objetal, ou seja, a ligação da libido a uma pessoa. A partir desta

desconsideração sofrida, a catexia objetal foi liquidada:

“A libido não foi deslocada para outro objeto e sim foi retirada para o ego. Assim, pôde ser estabelecida uma identificação do ego com o objeto que foi abandonado. Pode-se dizer então que a sombra do objeto caiu sobre o ego e assim este pôde ser julgado como se fosse o objeto abandonado. Daí ‘uma perda objetal’ se transformou numa perda do ego, e o conflito entre o ego e a pessoa amada, numa separação entre a atividade crítica do ego e o ego enquanto alterado pela identificação” (FREUD, 1917:255).

A investigação psicanalítica demonstra que na melancolia existe também

a perda de um objeto querido com a respectiva diferença diante do enlutado, o

qual, geralmente, passa pela perda da morte concreta e, como se percebe, é

no inconsciente que ocorre a reparação afetiva. Assim, a existência de uma

perda real ou intrapsíquica de um objeto querido aproxima o luto normal da

melancolia patológica, os quais se separam pela consciência e inconsciência

do processo, ou seja, o desconhecimento da perda do objeto ao sentimento de

como se tivesse perdido o próprio ego.

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4.1.3. Ressentimento: a Vingança que não Chega

O ressentido é alguém que não quer esquecer o mal que o vitimou. Não

quer perdoar, mas sim ”não deixar barato”. Para Scheler (1912) apud Kehl

(2004), o ressentimento gera afetos como rancor, desejo de vingança, raiva,

maldade, ciúmes, inveja, malícia, e a esse conjunto o autor chamou de

constelação afetiva. A palavra ressentimento indica uma reação, mas se o

ressentido tivesse reagido, o sentimento de injúria ou agravo poderia ter sido

tranqüilizado.

Ramos ao abordar essa situação afirma:

“O ressentimento está mais relacionado aos afetos do

que a uma estrutura clínica e que pode ser tomado como sintoma. Este serve aos conflitos do homem contemporâneo, este que é dividido por exigências imaginárias que são próprias ao individualismo e mecanismos de defesa do eu próprios que estão a serviço do narcisismo” (RAMOS, 2006:89).

Silva, abordando Kehl (2004), diz que o ressentimento é um termo

utilizado pelo senso comum e a Psicanálise está apropriando-se dele para

realizar algumas articulações. Esse re como prefixo da palavra ressentimento

significa o retorno da mágoa, a reiteração de um sentimento. Há uma repetição

mantida por aquele sujeito que foi ofendido:

“Ressentir-se significa atribuir a outro a

responsabilidade pelo que nos faz sofrer. Outro a quem se delega o poder de decidir por nós, de modo a poder culpá-lo pelo que venha a fracassar. O ressentido é aquele que tem como característica a servidão inconsciente e a impossibilidade de implicar-se como sujeito do desejo“ (KEHL, 2004:53).

A vingança, nesse caso, é considerada uma necessidade psíquica

quando a vítima não foi capaz de reagir na hora. Decorre da falta de resposta

imediata ao agravo. Ocorre depois de certo espaço de tempo, como se tivesse

sido adiada, mas esse desejo nunca é renunciado. É alimentado pela raiva ou

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impossibilidade de esquecimento de uma raiva passada. Embora no

ressentimento, esse tempo de vingança nunca chegue, pois o ressentido é

incapaz de se vingar.

Para que o ressentimento surja é necessário que a pessoa sinta-se

incapaz, fraca, inferior, e não se sinta a altura de responder ao agressor.

Poderíamos questionar qual a relação do ressentimento com a abordagem do

luto? Essas duas questões podem ser articuladas por uma situação comum, ou

seja, a dificuldade que a pessoa sente em elaborar suas perdas. Segundo Kehl

(2004:33) “o ressentido reconhece seu sofrimento, mas atribui toda

responsabilidade a um outro mais poderoso que ele, suposto agente do mal

que o vitimou.”

Quanto mais os motivos da queixa encontrem validação na realidade

social a que pertence o sujeito ressentido, mais difícil é fazer com que ele se

desloque do lugar de vítima para começar as indagar-se sobre sua

responsabilidade quanto ao que o faz sofrer. Em um processo de análise, as

queixas ressentidas impedem a implicação do analisando. Ele coloca-se como

vítima e, na clínica, dirige ao analista um lamento de quem sofreu uma

injustiça, um agravo ou ofensa. Dessa forma, o trabalhar em análise com um

sujeito nesta posição, fica comprometido.

“Se o sujeito está convicto de que sofre porque não

pode esquecer o mal que lhe fizeram nem apagar as

conseqüências do agravo, sua implicação no processo analítico

fica comprometida. Isto é o que o ressentido quer, do ponto de

vista das resistências próprias do narcisismo do eu” (KEHL,

2004:34).

Ao elaborar suas perdas, seus lutos, o ressentido sempre fica retido no

objeto ou na pessoa que perdeu sem conseguir abrir uma porta para o

autoconhecimento e crescimento pessoal.

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4.1.4. Nascimento: a Primeira Grande Perda

Freud e especialmente Otto Rank, de acordo com o professor da

PUC Dr. Claudio César Montoto em aula proferida em 17 de outubro de 2003,

refletem sobre a importância que tem no ser humano o momento traumático do

nascimento. Podemos imaginar que um ser que esteve durante nove meses ou

quase no ventre da mãe, com uma temperatura corporal constante, protegido

de ruídos, se alimentando mediante um conduto e respirando em uma matéria

líquida, de um momento a outro deixa, abandona esse lugar protegido para se

defrontar com um ambiente desconhecido. Para ter que começar a respirar por

meio dos pulmões, de sentir uma temperatura que afeta grandemente seu

equilíbrio anterior, com barulho externo, luzes e outros estímulos que são

estranhos à sua natureza ou, melhor dito, à vida que até então levava.

Para Freud, bem como para Lacan, o luto ocorre desde o momento em

que se nasce. Jaquetti e Mariotto ressaltam essa questão ao abordar o luto do

parto:

“O próprio parto significa um luto que a mulher deve

elaborar, na medida em que promove um corte na relação

fusional, simbiótica entre a mãe e o seu bebê. Um corte que

muitas vezes ocorre no real através da cesariana” (JAQUETTI

E MARIOTTO, 2004:53).

Benhaim (2004) coloca que o nascimento do filho é não mais o ter e, por

isso, deve ser realizada a elaboração não apenas da criança no útero, mas

daquela que acabara de nascer. Para a autora, é difícil acabar com essa fusão,

com a ilusão de um corpo no corpo. Ela supõe que na gravidez o princípio de

prazer supera o princípio de realidade. Há uma dupla perda, que seria a perda

do estado de encantamento em relação ao Imaginário e o Real e a perda do

objeto, que é a criança.

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Riedmiller (2006) relata que toda mãe vivencia o estado de “Blues”. O

estado de “baby blues” é experimentado pela mãe no período puerperal.

Segundo Riedmiller, trata-se de um estado depressivo que a mulher vivencia,

umas com maior intensidade, outras com menor. Há casos em que a mulher

nem percebe que foi acometida. As que percebem, ou seja, quando ocorre em

maior intensidade, atribui-se à história de vida, ao momento, à dinâmica

familiar. É possível que, nesse caso, se torne uma depressão puerperal ou até

mesmo uma psicose puerperal. Szejer e Stewart (1997) acreditam que o “baby

blues” é o mesmo que uma depressão puerperal e o fenômeno é tão comum

que os obstetras integram-no no quadro normal de um parto. Segundo os

autores, os leigos dizem que isto se deve aos hormônios:

“Ainda que as explicações dadas a esse fenômeno continuem sendo insatisfatórias, há muito tempo temos uma idéia precisa sobre essa questão e podemos descrevê-la: trata-se de um estado depressivo benigno, habitualmente transitório, que aparece na grande maioria das mulheres que acabaram de ter um parto. As estatísticas oscilam entre 70% e 90% das mulheres e essa variação se explica pelo fato de que nem todos falam exatamente da mesma coisa. Uns contabilizam todos os estados depressivos, inclusive os mais leves, enquanto outros destacam apenas os mais expressivos” (SZEJER e STEWART, 1997:297).

Mesmo aquelas mulheres que permanecem com seus filhos dois meses

na incubadora, ao voltar para casa com o recém-nascido podem deparar-se

com esse sentimento. É algo que as aflige pelo medo de não saber cuidar da

criança, achar que não vão conseguir. E Szejer e Stewart descrevem melhor

esse fenômeno:

“São lágrimas abundantes, o sentimento de que jamais vai conseguir, que ela não foi feita para ser mãe, que isso tudo é demais para ela – enfim, é o ‘baby blues’. É uma designação muito boa: ‘blues’ do bebê. ‘Blues’ quer dizer melancolia, depressão que vem por meio do bebê, depressão aparentemente inexplicável provocada por sua presença” (SZEJER e STEWART, 1997:300).

Segundo Benhaim (2004) “o objeto perdido na melancolia implica uma

separação, pois a perda faz parte do objeto, visto que o objeto não poderia ser

constituído sem antes se perder”. Ou seja, quando há a separação entre a mãe

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e o filho, subentende-se que este bebê pode se constituir como sujeito. De

qualquer forma, haverá essa perda.

Nasio fala de outro momento difícil que mostra quão traumática é a

separação da mãe e do seu bebê.

“O desligamento do bebê do seio ou do corpo da mãe se

dá de uma forma traumática. Os objetos só se desligam ou

separam do corpo ao preço da ação da fala. A primeira fala, a

fala mais primitiva que ao mesmo tempo, separa o seio do corpo

da mãe e esse mesmo seio da boca do bebê é,

fundamentalmente, o grito” (J.D.NASIO,1997:100).

4.1.5. Separação: a Perda de uma Parte de Si

Para a grande maioria dos autores pesquisados, entre os sentimentos

mais comumente vivenciados pelo casal após uma separação estão: a perda,

raiva, culpa desamor, solidão, fracasso, depressão, desespero,

arrependimento, indiferença, ciúme, posse, desilusão, dúvida, entre tantos

outros. É preciso ressaltar, contudo, que tanto o sentimento quanto a maneira

pela qual o luto será vivenciado dependerá do contexto no qual a separação se

insere.

O fim da união, no entanto, é sempre muito doloroso independentemente

de quem seja a iniciativa de separação. Nas palavras de Giusti:

“Trata-se daquele estado emotivo provocado pela perda

do objeto do amor, quer externo (perda da pessoa amada, que

nos abandona), quer interno (perda do amor pela pessoa que

abandonamos)” (GIUSTI, 1987:51).

Em ambos os casos sobrevêm uma sensação de falta e solidão, cuja

intensidade varia de acordo com a intensidade emotiva do apego. Não é por

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acaso que muitos são os casais que ainda "preferem" permanecer em

casamentos fracassados, insuportáveis, por não conseguirem (ou não

poderem) lidar com estes ou outros sentimentos e situações. Muitas vezes os

próprios filhos, quando existem, são utilizados como motivo para a

continuidade da relação. É o que afirma Colares:

"É difícil assumir o desejo de separação. Muitas vezes,

acaba-se por manter a aparência do casamento; estabelecem-

se relações extraconjugais, paralelas, para suportar a relação

oficial e os filhos são meras desculpas. É o discurso consciente

sobrepondo-se ao desejo inconsciente" (COLARES, 2000:19).

De acordo com Giusti, a separação conjugal constitui uma quebra, um

trauma interno que não adianta negar, fingir que não existe, acreditando,

assim, que o sofrimento não vai ocorrer:

"Quase sempre a separação provoca um abalo emotivo

que, na escala das causas de estresse, vem imediatamente

após a morte de um parente ou o choque de ser preso, que

pode ser considerado equivalente ao trauma causado pela

perda da única fonte de subsistência" (GIUSTI,1987:49).

Assim, pode-se afirmar que a mobilização emocional, o desprendimento

de energia psíquica após o rompimento de um vínculo matrimonial costuma ser

muito intenso. Tanto maior diante da história individual dos cônjuges, da

organização psíquica do casal, da idade dos parceiros, do tempo e da

intimidade da união, das razões da separação, da existência ou não de filhos e,

principalmente, das expectativas de cada um frente à instituição do casamento.

O sofrimento, por exemplo, na separação de um casal com filhos costuma ser

maior e a separação mais difícil do que quando da relação não resultou prole.

Nesse último caso, conforme Maldonado (1986), o sentimento de perda

é muito intenso: perde-se a possibilidade de juntos ver os filhos crescerem, se

desenvolverem. Normalmente, surge o sentimento de culpa por estar causando

sofrimento aos filhos por meio da separação.

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Ainda, conforme Giusti, o peso que os filhos têm em uma decisão de

separação do casal é muito grande:

"Em torno dos filhos, para quem os tem, gira a maior

carga de temores e sentimentos de culpa: como é que eles vão

nos julgar? Que imagem terão de nós? Que repercussões terá

em suas vidas? Como poderemos criá-los e educá-los

sozinhos?" (GIUSTI, 1987:39).

Quase sempre a separação traz à tona inúmeros sentimentos, os quais,

não raras vezes, divergem entre si. A maioria dos autores que escreveram

sobre o tema parece concordar que alguns sentimentos são, particularmente,

mais dolorosos e difíceis de superar, estando presentes em praticamente todas

as separações, ainda que possam variar em intensidade e qualidade. Um deles

é o sentimento de perda.

Separar-se significa perder muita coisa. Perde-se segurança,

estabilidade e padrão social. Perde-se todo um projeto de vida. E mais, perde-

se o parceiro (a), objeto do amor, e junto com ele (a) a esperança inconsciente

de restabelecer o vínculo simbiótico, aquele estado de unicidade, de amor

incondicional que se tinha originalmente com a mãe. Resta, ao final, um ego

profundamente abalado, precisando recompor-se com urgência.

Perder um (a) parceiro (a) é o mesmo que perder uma parte de si

próprio, “pedaços faltando”, nas palavras de Porchat (1992:122). Em realidade,

ou apenas no desejo de que assim seja, o parceiro é aquele que completa, que

preenche. No rompimento, essas partes ausentes já que projetadas no

parceiro, voltam ao seu lugar de origem. Muitas delas re-introjetadas, agora de

forma diferente. Cada um dos cônjuges se vê diante de uma terrível solidão e

desamparo de ser apenas para si e por si.

Lya Luft, no poema O Lado Fatal expressa esse sentimento:

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“Insensato eu estar aqui, e viva. O rosto dele me contempla vincado e triste no retrato sobre minha mesa; em outros, sorri para mim, apaixonado e feliz. Insensato, isso de sobreviver: mas cá estou, na aparência inteira. Vou à janela esperando que ele apareça e me acene com aquele seu gesto largo e generoso, que ao acordar esteja ao meu lado e que ao telefone seja sempre a sua voz. Sei e não sei que tudo isso é impossível, que a morte é um abismo sem pontes (ao menos por algum tempo). Sobrevivo, mas pela insensatez“ (LYA LUFT,1989:15).

Usualmente as perdas, quaisquer que sejam elas, deixam marcas que

tendem a reaparecer em outros momentos da vida. A Literatura Psicanalítica

acredita que todas as perdas pelas quais o indivíduo passa tem relação com

aquelas vivenciadas na primeira infância. Nas palavras de Viorst (2005:33),

portanto: "Todas as nossas experiências de perdas relacionam-se à Perda

Original, a da conexão mãe-filho". Ou seja, a forma de lidar com as relações

estabelecidas e de reagir a elas depende de como se deram as separações

nos primeiros anos de vida de um indivíduo, embora, conscientemente, em

geral, não se tenha lembrança dessas experiências. Assim, diante da perda

provocada por uma dissolução conjugal, as experiências da primeira infância

tendem a reaparecer:

“As pessoas que quando crianças viveram traumaticamente a experiência do abandono, por exemplo, certamente encontrarão maiores dificuldades. Elas sentem o afastamento com particular ansiedade: uma verdadeira angústia do abandono, causada por uma fundamental insegurança afetiva, com profundas raízes na infância. É inevitável que no novo afastamento sejam confirmadas muitas razões de insegurança: ‘ninguém me ama !’é um leitmotiv que se ouve com freqüência e que reflete uma convicção bem arraigada” (GIUSTI 1987:52).

Por outro lado, ainda Giusti (1987:52) diz que aquelas pessoas que, ao

contrário, viveram uma infância gratificada pelo afeto, criadas em uma

atmosfera serena, encontram em sua bagagem de vida muitos recursos para

enfrentar melhor os momentos de solidão; estas terão menos probabilidades de

conhecer a verdadeira angústia.

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Um fragmento de depoimento extraído do texto de Alfredo Naffah Neto

confirma:

“(...) Pude perceber que a dor que me tomava era

infinitamente maior do que a perda que a fizera eclodir. Não era apenas a perda da Carmem que eu chorava, mas também a da Adriana, a dos fetos abortados, a da minha mãe, a de todas as mulheres importantes que eu já tivera e perdera. Quiçá eu chorasse também pelo meu lado mulher, abortado nessa figura de homem, nessa escolha inconsciente que os genes e posteriormente a cultura nos impõe desde o nascimento e sobre a qual não temos opção” (NAFFAH NETO, 1992:80).

Assim como qualquer outra situação de perda, a separação conjugal traz

consigo um trabalho de luto que pode durar anos. O luto, neste caso

específico, explica Caruso (1984:47): "É uma tentativa de defesa contra o

vazio, a negação e a depauperação do Ego." Esse luto é semelhante ao vivido

pela morte de uma pessoa querida, representa a "morte real" de alguém que

possuía significado para o outro. Se antes o indivíduo encontrava-se em estado

de identificação e união com o parceiro, agora deve reaprender a viver sozinho.

Afinal, aquele deixou de fazer parte para "sempre" de sua vida, do seu dia-a-

dia.

A constatação dessa realidade é analisada por Caruso (1984:51) como

uma das sensações mais terríveis que o homem pode sofrer, conforme diz no

seguinte relato: "Nunca mais dormirei ao calor de um corpo! Nunca mais:

quanto frio! Quando me dei conta disso, pensei que fosse morrer". Apresenta-

se aí um outro sentimento vivenciado por quem está separado e, na visão do

autor um dos mais preocupantes, a vivência de morte: morte do outro em

nossa consciência e a nossa morte na consciência do outro:

"É brutal o sofrimento de se ver morrendo no psiquismo do outro e ver o outro morrendo dentro de nós. Isto certamente não se dá da noite para o dia. O certo é que no outro são depositadas diversas expectativas, introjetado um ideal de parceiro, acreditando-se na união total (...) Desfazer-se de tudo isto não é simples e leva tempo. Muitas vezes os indivíduos chegam a desejar por um momento a verdadeira morte do outro como se isto pudesse fazer desaparecer todo o

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sentimento de perda, de fracasso, de abandono, decorrente da separação: Se você já não existisse eu estaria íntegro (curado); assim, pois o mesmo se diga de mim para você” (CARUSO, 1984:52).

Como em todo luto, um importante remédio é o tempo. Tempo para se

refazer, para se acostumar com a falta do outro, com a perda do outro e

novamente encontrar uma fusão (do Ego), se redescobrir, se re-inventar.

Tempo para que possamos nos achar em meio aos escombros e entender que

a vida segue em frente e temos que recomeçar.

4.2. O Final da Infância: a Difícil Separação dos P ais

Podemos analisar essa transição como a lagarta que passará a ser

borboleta. Enquanto lagarta, totalmente protegida em seu casulo e que ainda

não se sabe borboleta, não precisa “plasmar” nada. Tudo o que necessita está

ali no seu “habitat”. Não precisa temer os colecionadores, nem os devoradores

de borboletas, muito menos saber se voará alto ou baixo, se tornará uma

borboleta bela e formosa, muito menos se será apreciada por outras ou outros

insetos enquanto borboleta.

Para Viorst, o processo de afastamento começa com o esforço para sair

do colo da mãe, depois ficar de pé, depois ir para outras salas da casa,

passando das imagens, sons e cheiros da vida em família para os estudos,

tarefas e brincadeiras do período da latência. Depois na puberdade, na praia

de um mar turbulento, onde ela percebe com clareza que partir pode significar

afogamento. Ou ainda, segundo a autora, o assassinato:

“Na verdade, existe a noção de que o fato de afirmar o direito a uma existência separada pode inconscientemente significar que estamos matando nossos pais, e que assim, na maioria dos casos – talvez em todos, especialmente no caso de pais possessivos – forma-se um certo grau de sentimento de culpa pela separação. Foi colocado também que a culpa pela separação é adequada, que crescer é uma forma de homicídio , e que assumir a responsabilidade pela própria vida e pelo

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modo de conduzi-la, dentro da realidade psíquica, corresponde a assassinar os pais’ (..) O assassinato metafórico é apenas um dos problemas da adolescência, quando o corpo e a mente começam a separar-se, quando o estado normal do adolescente é ás vezes dificilmente diferenciado do ‘estado de insanidade’, quando o desenvolvimento normal – exige a perda, o abandono, a desistência de tudo” (VIORST, 2005:151).

Na adolescência, o corpo começa a ser estimulado por hormônios, há o

aumento das partes sexuais, aparecem os pêlos. A menstruação surge e com

ela a menina é elevada à categoria de mulher, capaz de “fazer bebês”. Há

mudança na altura e no peso, na forma e na pele, na voz e nos odores. A cada

manhã pode ser encontrado algo de novo no corpo.

As transformações são incontroláveis e irreprimíveis na adolescência –

mudanças não só no corpo, mas também na mente. Na viagem em direção à

adolescência, a normalidade é definida como um estado de desarmonia. Para

Viorst, essa desarmonia não é constante, nem mesmo visível: “muitas vezes,

na verdade, é silenciosa e secreta.” Apenas os conflitos e mudanças bruscas

no espírito é que se tornam escandalosos, barulhentos e excessivamente

exagerados.

O adolescente que age normalmente, não é um adolescente normal.

Viorst ao citar Ana Freud concorda e esclarece essa observação:

“[...] que é normal para o adolescente comportar-se durante um considerável período de tempo de modo imprevisível e inconsistente: lutar contra os impulsos e aceitá-los; livrar-se deles e ser dominado por eles; amar os pais e odiá-los; revoltar-se contra eles e depender deles; sentir-se profundamente envergonhado em reconhecer a mãe na frente dos amigos e, inesperadamente, desejar ter uma conversa íntima com ela; esforçar-se para imitar e se identificar com outras pessoas enquanto procura incessantemente a própria identidade; ser mais idealista, artístico, generoso e desprendido do que jamais será pelo resto da vida, mas também o oposto: egocêntrico, egoísta, calculista” (VIORST, 2008:154).

Em outras etapas, essas mudanças extremistas seriam consideradas

altamente anormais. Na adolescência, elas significam que é necessário um

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tempo para que se faça o ajuste e possa aparecer a estrutura adulta da

personalidade.

Erikson citado por Viorst (2008:155) vê nessa crise, a luta para nos

tornarmos pessoas completas por direito, e isso só se consegue por meio da

unificação – uma síntese interior – do que fomos e do que esperamos ser: da

nossa identidade sexual (que é mais ampla que o gênero); das partes ética,

étnica, ocupacional e social de nós mesmos; de novas identificações com

companheiros da mesma idade e pessoas adultas especiais fora da família;

das escolhas e dos sonhos.

“Embora identificação e formação da identidade não

terminem no fim da adolescência, a continuação do

crescimento e do desenvolvimento será baseada na resposta

de quem-sou–eu na adolescência” (VIORST,2008:155).

Para a autora, o período de adolescência, da puberdade até mais

ou menos os dezoito anos, é relativamente marcado pelos seguintes fatos

principais:

1. No começo da adolescência, há preocupações com as

alterações físicas da puberdade;

2. No meio da adolescência há a luta do quem-sou-eu e a

procura, fora de casa, do amor sexual;

3. No fim da adolescência há um maior abrandamento da

consciência, e a inclusão de valores e compromissos

relacionados com nosso lugar no vasto mundo.

Todas as etapas vivenciadas até o fim da adolescência são

atravessadas pelo luto de uma coleção enorme das perdas sentidas e, muitas

vezes, incompreendidas, que devem ser incorporadas. Perdas novas e

necessárias para que haja realmente a separação dos pais. Essa perda da

união e a separação são sempre muito assustadoras e tristes.

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Finalmente o casulo se abre e perde-se o eu criança. Perde-se aquele

corpo que antes se conhecia, a inocência que trazia certa segurança, e diante

de nós surgem as verdades dolorosas do mundo nos chamando, pedindo que

cresçamos, que assumamos responsabilidades. Como acontece com todas as

perdas, essa perda precisa ser lamentada, sentida, chorada para que depois

possamos adquirir a tão propagada liberdade emocional e maturidade para,

então, sermos lançados ao amor, ao trabalho e inseridos na comunidade

adulta:

“Afirma-se que os adolescentes, nesse estágio de

desistência, experimentam ‘uma intensidade de sofrimento

desconhecida nas fases anteriores’.. É quando compreendem

afinal o significado do transitório. Assim, sentem saudade do

passado, da ‘Idade de Ouro’, que nunca mais vai voltar”

(VIORST, 2008:157).

O reconhecimento do fim definitivo da infância, da natureza obrigatória

dos compromissos, da limitação definitiva da própria existência do indivíduo,

cria uma espécie de pânico, de sensação de urgência, de perigo, de medo.

Para se evitar isso, muitos adolescentes procuram continuar uma fase

transitória de desenvolvimento chamada de “adolescência prolongada”.

Para muitos adolescentes, crescer significa abrir mão de tudo: dos

sonhos, das coisas, das fantasias, da inocência. Significa formar-se na

faculdade, trabalhar, arrumar uma esposa, formar uma família, ter sucesso na

vida.

Chega um momento em que é preciso dar esse salto: assumir

responsabilidades, deixar o lugar seguro e saber que nunca mais se voltará a

ele, entrar para um mundo de equações inexatas, de amores contraditórios, de

desejos que nem sempre poderão ser satisfeitos. Haverá sempre o impossível

e o proibido. Mas saber fazer escolhas (a que menos fere), encontrar a

liberdade, saber quem se é e o que queremos nos tornar é parte fundamental

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desse processo. Fazer escolhas e ser um adulto responsável não nos livrará

das dores, mas estaremos muito mais aptos a lidar com elas.

4.3. Velhice: ainda há Tempo para Viver

Enquanto escrevia o subtítulo deste capítulo me veio à mente um trecho

do poema de Carlos Drummond de Andrade: ...“Chegou um tempo em que não

adianta morrer (..) os ombros suportam o peso deste mundo”. Talvez tenha

feito uma associação do quanto demoramos para aprender algo sobre nós

mesmos e só entendemos esse tipo de lição quando atingimos a chamada

“percepção", uma espécie de “terceiro olho” ou de sabedoria que nos avisa

mesmo quando nada está explícito. Aquele sentimento que nos faz saber que

muito embora tenhamos que abrir mãos de alguns de nossos sonhos, pela

limitação imposta pela idade, pela própria capacidade ou incapacidade de

praticar a tolerância, pelas condições físicas e psíquicas que nos encontramos,

podemos olhar com ternura para o caminho que percorremos e nos

orgulharmos de ter feito o melhor que conseguimos em cada etapa.

A mudança importante que resulta de uma rebelião na meia-idade está

no modo como se percebe a vida. O conhecimento menos fantasiado daquilo

que realmente queremos, do que somos, no que nos transformamos no

decorrer do tempo, o que fizemos com os nossos sonhos e até mesmos como

caminhamos: lentamente. Já não precisamos nos apressar. Podemos

reconhecer e desfrutar com mais calma os bons momentos que a vida nos

proporciona. Valorizar os encontros, a família, um bom livro. Cada minuto! O

relógio faz agora uma contagem retroativa e quando pensamos um dia a mais

de vida, na verdade dizemos a nós mesmos: menos um dia. Ou melhor, mais

um tempo perdido no horizonte da juventude e mais um passo dado em direção

à velhice.

“Crescer e mudar na meia-idade pode significar

renovação, aceitação, ou fim de arranjos prévios. Mas seja qual

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for a abordagem acolhida, a vida não será a mesma. Externa

ou internamente, os anos da meia-idade expressarão as

perdas e ganhos da crise da meia–idade” (VIORST, 2008:283).

Crescer e mudar na meia-idade pode significar, por exemplo, o desfazer

de um casamento. Agora, com os filhos crescidos, aquele relacionamento

amarelado, sem viço, pode ter um final. Até mesmo reencontrar um novo amor.

Crescer e mudar na meia-idade pode significar também o final daquele

emprego maçante e sem nenhum brilho. O caminho para uma ocupação com

menos rendimentos, mas com uma grande satisfação.

Crescer e mudar na meia-idade pode significar sair para trabalhar fora,

pode significar não mais trabalhar fora. Pode significar conhecer o que não se

conhece, avançar onde se recuou.

Roger Gould (1995) diz que na meia-idade aprendemos que, por melhor

que tenhamos nos tornado, vamos morrer. Finalmente, aprende-se que não

existe segurança lá fora. Abandona-se a crença infantil de que sendo bons

meninos ou meninas, sempre seremos protegidos e resguardados. Desastre e

morte descobre-se, então, atingem pecadores e santos, puros e impuros.

Já a velhice traz em si muitas perdas. Muitos demoram a aceitar essas

perdas. Perda da memória, perda da agilidade, perda de entes queridos.

Para muitas pessoas, inclusive para Simone de Beauvoir (1970),

envelhecer é a pior das desgraças, pior mesmo que a morte, pois com a

velhice vemos mutilado muito daquilo que fomos ou pensamos ser.

Para Ovídio (43 a.C), “Tempo é o grande destruidor, e velhice invejosa,

juntos, arruinais todas as coisas.”

Montaigne (2006) diz: “Nenhuma alma se vê, ou muito poucas, que, ao

envelhecer não adquira um cheiro azedo e bolorento.”

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Já para Gide (1924): “Há muito tempo deixei de existir. Preencho apenas

o espaço de alguém que todos imaginam ser.”

Chateaubriand (1850): “A velhice é um naufrágio”.

“A velhice”, diz De Beauvoir (1970), fazendo um resumo da evidência, “é

a paródia da vida.”

Mas não podemos negar que existem pessoas que ao envelhecer

conseguem fazer essa transição de uma maneira suave, sem muitos

assombros. Transformam a fase da velhice em algo que ainda “se tem muito

para aproveitar”, para reaprender. Fazem da velhice um rico acontecimento, de

visões esplêndidas, sem amarguras, sem ressentimentos, sem culpas e nem

arrependimentos. Continuam tendo alegria em viver.

No entanto, não existe uma maneira certa de viver a velhice como em

nenhuma outra etapa. Cada um a viverá a sua maneira. Muitas pessoas, ao

envelhecer, não é que se tornam amargas, rabugentas, amarguradas,

implicantes. Na verdade, elas já eram isso tudo. Só que, por algum motivo,

conseguiam refrear um pouco essa personalidade. Parece que a idade tira

essa obrigação delas e, então, elas se mostram.

Consideremos como exemplo, a bela “Advertência” de Jenny Joseph

(1997:16)

“Quando eu for velha vou usar roxo Com o chapéu vermelho que não combina e não fica bem em mim, E vou gastar minha pensão em conhaque e luvas de verão E sandálias de cetim e dizer que não tenho dinheiro para a manteiga. Vou me sentar na calçada quando ficar cansada E comer vorazmente amostras grátis nas lojas e apertar botões de alarme E passar minha bengala pelas grades de ferro dos parques E compensar a sobriedade de minha juventude. Vou sair na chuva de chinelos E colher as flores dos jardins dos outros E vou aprender a cuspir”.

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Para Viorst (2008:311), não há provas de que os velhos sejam

especialmente atormentados pela idéia da morte. Na verdade, talvez tenham

menos medo do que os jovens. Além disso, as condições da própria morte,

costuma-se dizer, os preocupa muito mais do que a morte propriamente dita.

Mas também temos que admitir que, independente do modo de morrer,

independente de como se dará a morte, chega-se a um momento em que é

necessário enfrentar a separação final, a definitiva. Não há como fugir da

morte.

Sêneca coloca bem essa questão, ressaltando que há vida na velhice e

que se pode encontrar encantos diferentes daqueles da juventude, mas não

menos significativos:

“De cada prazer, o melhor é o fim. É doce a idade

avançada, mas não ainda sob a decrepitude, e também eu

penso que o período extremo da vida tem os seus prazeres ou

ao menos, no lugar dos prazeres, não sentir mais necessidade

deles. Como é doce ter se cansado e abandonado os desejos!”

(SÊNECA, 2008:21).

Diz, ainda, que de “qualquer maneira é triste ter a morte diante dos

olhos”. E a morte tanto está nos olhos dos velhos quanto dos jovens. Mesmo

aquele que é velho ainda pode esperar pelo único dia de vida, ou quem sabe,

mais um dia. E por ser o único dia, pode se tornar o maior dia de toda sua vida.

Ao morrer, na verdade, seja na juventude, seja na velhice, o que morre é

o “eu”. Podemos chorar eternamente a morte de uma pessoa amada, mas a

nossa não podemos chorar. Da nossa morte, podemos dizer que é a ausência

de nós mesmos. É quando a cortina se fecha, o último ato acontece sem a

nossa presença.

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4.4. Doença Grave: O luto em vida

A doença, quando chega, traz consigo a idéia da inevitabilidade da

morte e a fantasia do próprio corpo sem vida. Segundo Kreinheder (1990:27),

ao pensarmos no entorpecimento inerte da morte, nos damos conta de que, em

todo lugar, ao nosso redor e dentro de nós, acontece o surpreendentemente

milagre da vida. Por meio da doença, podemos perceber como o mundo é lindo

e com que tristeza tomamos conhecimento de que em breve não mais

desfrutaremos dessas maravilhas, de que o espírito da vida deixará nosso

corpo para sempre.

Segundo Platão (1996), sempre que alguém se depara com a

experiência da beleza original (uma experiência arquetípica) as “penas da

alma” ficam eriçadas. Como ele explicou antigamente, acreditava-se que a

alma tinha penas. O arrepio da pele seria o brotar das penas da alma.

É claro que ao depararmo-nos com a notícia de uma doença grave, seja

nossa, ou de alguém próximo, não temos ainda essa consciência. O primeiro

sentimento é o de um susto muito grande. Vamos morrer ou fulano morrerá?

Mas quando se aprende a elaborar o luto passo a passo, muito se aprende

com aquilo que o sofrimento tem a dizer.

Para Montoto (2002) mesmo não tendo sido educados para aprender

com a idéia da morte, ou do sofrimento:

“(...) quando alguém que amamos tem uma doença mortal - é hora de sair do casulo de proteção que a própria ignorância nos dá, da defesa de não querer ver, de fechar os olhos para que não seja realidade, encarar a realidade com a única finalidade de não acrescentar mais dores ás que o paciente tem” (MONTOTO, 2002:14)

Quando se descobre que alguém de nossa família está com uma

doença grave, vive-se um luto antecipatório, ou seja, um processo em que o

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paciente ou os familiares precisam realizar diante de uma morte iminente. As

reações de cada um são diferentes, mas o caminho é praticamente o mesmo

para todos.

Montoto (2002) citando Paulo da Fonseca (2001) mostra, por meio de

uma pesquisa, as várias etapas que acometem uma pessoa mediante a notícia

de uma doença grave própria ou de familiares. As fases são as seguintes:

Choque : Acontece quando se recebe a noticia da doença. Ocorre um

entorpecimento, uma confusão. As reações perante essa nova informação

podem variar desde uma apatia completa até a superatividade.

Negação: Acontece quando a pessoa demonstra não saber lidar com a

situação e se protege muito mais numa tentativa de continuar a viver como se

nada tivesse mudado. A pessoa pode preferir ficar isolada, ensimesmada,

calar-se, tornar-se reflexiva ou simplesmente apática. Neste caso, geralmente o

silêncio é um mecanismo que a pessoa encontra para não ter que se confrontar

com a realidade.

Ambivalência: é o momento em que a pessoa oscila entre a possibilidade de

vir perder alguém que ama e, ao mesmo tempo, se recusa a aceitar essa

possibilidade e começa a fazer planos para um futuro a longo prazo. Para o

pesquisador, muitas vezes esse mecanismo de defesa usado pelo paciente,

tem um efeito altamente positivo. O fato da pessoa sentir desejo de ir à luta

para ver seus planos realizados é um poderoso incentivo para fazê-la se

manter viva e lúcida.

Revolta : Esse é o sentimento mais comum. A pessoa fica com muita raiva,

ressentimento, com uma sensação de estar sendo castigada e acaba

proferindo protestos contra Deus, o Universo etc.

Negociação: Fica mais forte aquela questão já abordada antes: a

religiosidade; se a pessoa tem fé, ela começa a negociar com Deus ou com o

Universo a cura ou o adiamento da morte. Cada qual seguirá um ritual (o da

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sua religião) para intensificar os resultados. Muitos fazem promessas; caso

consigam curar-se serão pessoas melhores, farão as pazes com fulano, com

cicrano.

Depressão : É o momento em que a tristeza profunda toma conta dos

familiares ou do paciente. Esse sentimento é o que mais pode retardar o

tratamento da pessoa acometida de uma doença grave e também em nada

ajudará se forem as pessoas da família acometidas de depressão. Muito pelo

contrário, criar-se-á um problema maior. A depressão faz com que o paciente

resista menos ao calvário do tratamento e morra antes, porque a depressão

atua como inibidor daquela mola propulsora que dá ao paciente uma firme

vontade de sarar, de se recuperar, de viver, de continuar lutando para

melhorar.

Montoto (2002) menciona que o ponto mais forte em nossa sociedade,

tratando dos itens apresentados, é a negação. Quando as pessoas negam o

que está acontecendo, elas se tornam mais frágeis. É como se uma venda

tampasse os olhos para que não vejam o que se passa. E tudo aquilo que se

oculta fica no escombro, nunca vem à superfície para que possa ser lapidado,

trabalhado, conhecido.

Winnicott (1982) assegura que não existe uma maneira certa de reagir.

Não dá para apostar em uma única reação ou mesmo saber ao certo qual será

a seqüência lógica. Cada qual reagirá do seu jeito, de acordo com a sua

cultura, com sua religiosidade ou com sua pouca fé. Se as pessoas começam

a se comportarem como se o “doente” fosse um pobre coitado, um condenado

à morte ficará mais difícil ajudá-lo. Muitas pessoas acabam antecipando seu

“momento de morrer” ou abandonando o tratamento para que as pessoas que

estão à sua volta parem de sofrer.

Montoto ressalta a importância dessa questão ser encarada de frente,

com toda a honestidade:

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“...não façamos o péssimo negócio de esconder a cabeça ‘avestruzmente’ por uns tempos e depois carregar a culpa pelo resto de nossas vidas por não termos agido segundo o que se espera de quem ama. Apostemos na luta pela vida. Talvez estejamos necessitando aprender mais com a dor e decifrar a mensagem que ela tem para nos dizer”.(MONTOTO, 2002:27)

Cada dor, cada doença, cada sintoma tem um componente psicológico.

Esse componente é a parte simbólica, a maneira como nossa imaginação

percebe a doença, o sintoma. Geralmente, é muito difícil entender o conteúdo

simbólico, mas ele esteve e estará sempre presente, antes e durante a doença.

Quando as pessoas estão doentes, querem ficar boas. Ponto final. Não

querem mudar a personalidade, as atitudes ou qualquer de seus hábitos.

Kreinheder elabora essa questão ao colocar:

“Considere, por exemplo, fumantes com enfisema, que não conseguem parar de fumar ou alcoólatras com problemas de fígado, que não conseguem parar de beber. Se as pessoas não podem parar quando a causa e o efeito são tão óbvios, o que se pode esperar quando os elos são mais sutis?” (KREINHEDER,1997:55).

Em sua profunda e sábia investigação sobre os símbolos ou sobre

os problemas psicológicos que levam uma pessoa a ficar doente gravemente,

Kreinheder (1993), lembrando o filósofo Kierkegaard (1934), mostra que para

nos livrarmos do desespero, precisamos nos livrar do nosso eu – do eu que

nos desespera. Mas, segundo o mesmo filósofo, livrar-se do eu também é

motivo de desespero, pois significa deixarmos de ser nós mesmos. Esse é um

conceito repetidamente sugerido pelos pacientes de câncer. Eles sentem que

não podem mais ser eles mesmos e, portanto, não amados e solitários – ou,

que podem desistir de si mesmos transformando-se em outra pessoa e, assim,

serem amados. Para muitos deles, esses se tornam os únicos caminhos

possíveis.

Leshan ilustra este processo em seu trabalho realizado como

psicoterapeuta de doentes terminais:

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“Praticamente em todos os meus pacientes encontrei alguma manifestação desse dilema. Todos sentiam, com diferentes intensidades, que para conseguir o que necessitavam, algo que trouxesse significado às suas vidas, precisavam desistir de si mesmos e se transformar em outra pessoa. Mesmo cogitar dessa solução, ocasionava o desespero.”(LESHAN, 1976:45)

Na medida em que o indivíduo aprende a reconhecer quem ele é e tenta

viver uma vida honesta e plenamente à sua maneira, há uma redução dos

sintomas, tanto nos aspectos psicológicos quanto nos aspectos físicos de seu

ser. Quanto mais expressa seu eu básico de forma orgânica e natural, mais

saudável tende a se tornar em todos os níveis. Quanto menos for ele mesmo,

maior a tensão e a tendência à doença. Em Dr. Jivago, Boris Pasternak

escreveu:

“A maior parte das pessoas precisa viver uma vida de duplicidade constante e sistemática. Sua saúde fatalmente será afetada se você dia após dia, disser o contrário daquilo que sente, se rastejar diante daquilo que não gosta e exultar com coisas que lhe trazem apenas infelicidade. Nosso sistema nervoso não é apenas ficção, é uma parte de nosso corpo físico, e nossa alma existe no espaço e está dentro de nós, como os dentes estão dentro da boca. Ela não pode ser eternamente violada, com impunidade” (KREINHEDER, 1993:91).

Pacientes são diferentes e, como são diferentes, também estão

buscando estilos de vida diferentes. Da mesma maneira que cada qual reage a

uma notícia de “estar doente”, assim também reagem na questão do

tratamento, na questão da elaboração do seu luto interno. É preciso ajudá-los a

descobrir quem “vai morrer” e quem ele quer salvar. Se for aquele que acredita

ser ou é o ser que ele está pensando em se tornar? Esse é o grande desafio de

médicos, familiares e profissionais ligados à Saúde, psicoterapeutas,

psicanalistas e quem quer ajudar um paciente.

Podemos comparar o universo do paciente com dor crônica com o

universo dos pesadelos. Para Leshan (1997), existem três componentes

estruturais básicos nos pesadelos:

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1. Coisas terríveis estão acontecendo e coisas piores estão na iminência

de acontecer;

2. Forças externas estão no controle e nossa vontade é inútil;

3. Não existe limite de tempo e não podemos prever quando tudo

terminará.

Compreender que o paciente de câncer, por exemplo, vive um pesadelo

acordado e transmitir-lhe essa compreensão, muitas vezes, pode ajudá-lo a se

tornar mais resistente à dor.

Quando um paciente com câncer descobre que pode ser amado como

ele é, torna a dor mais aceitável e, com sua nova força, torna-se capaz de

resistir a ela.

Em seu relato sobre a questão de se saber com um câncer muito raro,

quase sem nenhuma esperança de cura, Lima me escreveu:

“Aprendi que se pode ser amada. Mandei um casamento de brincadeirinha embora e deixei meu coração aberto para um amor verdadeiro entrar. E ele entrou. E me aceitou com todas as limitações que tenho. Sou desastrada! Uso talheres invertidos. A quimioterapia me deixou sem muita coordenação e só consigo usar a faca com a mão esquerda. E mesmo assim freqüentamos bons restaurantes. De vez em quando deliro por causa das febres e ele tem paciência, cuida de mim como só um companheiro de verdade sabe cuidar”.

“Sua dor”, diz Kahlil Gibran, em O Profeta, “é o rompimento da concha

que envolve sua compreensão”

Autocontrole emocional. Idealismo. Responsabilidade. Aprendemos que

todas essas qualidades são virtudes e não há dúvida que são quando surgem

em um contexto apropriado. Mas, até uma virtude pode ser levada a extremos.

Se a responsabilidade e o autocontrole forem rigidamente mantidos em

detrimento da expressão de sentimentos verdadeiros, uma parte do eu é

negada. Quando as tensões não são liberadas e a raiva é reprimida, podem

tornar-se mais fortes. Sabemos que isso acontece no desenvolvimento de

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úlceras. Será que podemos negar a possibilidade de que isso também

aconteça no desenvolvimento do câncer?

Para Leshan (1994) é certo que precisamos ser responsáveis em

relação às pessoas. Mas também, precisamos ser responsáveis em relação a

nós mesmos. Para ilustrar a questão, o autor usa o exemplo do delinqüente

juvenil, que ao se recusar a aceitar sua responsabilidade perante os demais,

manifesta sua raiva por meio de atitudes anti-sociais. Mas será que a pessoa

cujo senso de responsabilidade em relação aos outros elimina o senso de

responsabilidade em relação a ela mesma não poderia descarregar a raiva em

si mesma? Em seu livro How Will Tomorrow (1997:32), o Dr. Samuel

Silverman, da Harvard Medical School, observa que, quando a raiva, a tristeza

ou a preocupação não encontram uma válvula de escape, acabam afetando o

corpo. “Se houver uma tendência latente para desenvolver um câncer”,

escreve, “a incapacidade para expressar seus sentimentos irá atingir o corpo

em algum ponto vulnerável.”

Os pesquisadores acreditam que as células cancerígenas estão quase

que constantemente presentes em todos nós, mas que, em circunstâncias

normais, nosso “sistema imunológico contra o câncer” encontra e destrói essas

células anormais, impedindo seu crescimento ou disseminação. A questão é

saber quais as circunstâncias anormais que podem impedir o sistema

imunológico de realizar seu trabalho. Qual mecanismo físico do corpo é

suficientemente influenciado pelos fatores psicológicos, formando uma ligação

entre as emoções e o colapso do sistema imunológico contra o câncer?

Toda doença é uma investida violenta contra o que somos. Por alguma

razão, ficamos tão alienados do todo da vida que se faz necessário uma

invasão radical para romper nossa estrutura enrijecida. Precisamos ser

enfraquecidos e esmagados até que, finalmente, fiquemos tão amolecidos e

liquefeitos que o espírito da vida possa nos inundar novamente. Estar doente é

estar desligado, isolado. Toda doença é como uma força invasora que tenta

destruir nossa estrutura rígida e nos torna mais inteiros.

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“Todo sintoma invasor traz consigo um conteúdo simbólico e é tarefa da

alma se expandir para que possa agregar os símbolos e as imagens

invasores.” (Kreinheder, 1993:40). Isso pode ser uma batalha mas, em última

análise, não é uma luta e sim um processo de libertação e expansão à medida

que ultrapassamos nossos limites anteriores.

Leshan (1994), em suas pesquisas com doentes de câncer aborda

essas questões e ressalta que o paciente realmente deseja é preencher aquela

parte de si mesmo que foi rejeitada, cujos desejos e impulsos são considerados

inaceitáveis. Por mais difíceis que sejam as buscas, as interrogações, o único

jeito de ajudar uma pessoa que está passando por esses momentos de crises é

ajudá-la a se reintegrar. A encontrar o seu “eu”.

Para ilustrar esse posicionamento, Kreinheder compara esse momento

com o encontro da própria alma:

“A alma vive no limite exato do milagre. Quando encontro minha alma, mesmo que seja de vez em quando e apenas por um momento, nesse exato momento sinto que aconteceu um milagre. A alma é a minha parte mais verdadeira. E diria mais, a parte de todos nós que se assemelha mais fielmente à imagem de Deus. Se isso for verdade, a experiência da alma é também a experiência de Deus, como se a própria alma fizesse contato e se unisse com Deus. O que é uma idéia extraordinária – a alma em si é onde o humano e o divino se encontram e se tocam. Além disso, se estamos presentes e vivemos no plano da alma, somos fortes e saudáveis tanto física como emocionalmente, até onde é possível para um ser humano” (KREINHEDER, 1993:30).

A doença não deixará mais que a pessoa viva como antes. De um jeito

ou de outro, há uma transformação. A doença vem para destruir o que

somos ou pensamos ser. “Os sintomas são o pranto do corpo”, alertando-o

de que já basta. Os sintomas vão quebrá-lo exatamente nos lugares onde

mais se conteve.

Embora no momento de dor, de sofrimento, não tenhamos capacidade

para perceber, nunca recebemos mais do que podemos agüentar. Mesmo que

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isso signifique morrer. Chega uma hora em que podemos lidar com a morte.

Para Kreinheder, “o objetivo da cura não é permanecer vivo, mas sim caminhar

em direção à plenitude”. A cura pode acontecer na morte, morte como cura

final. “O que quer que chegue a nós é nosso e podemos enfrentá-lo”.

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5. O LUTO COMO PROPULSOR DE VIDA

Já foi dito anteriormente que todo sofrimento tem muito a nos ensinar,

embora tenhamos imensa dificuldade em ouvir o que o sofrimento tem a nos

dizer.

Por meio de estudiosos do assunto, também pudemos perceber que

toda fase de transição traz em si uma dor muito grande, uma sensação de

melancolia, tristeza, de descida às profundezas. Depois de enfrentarmos um

luto, jamais retornamos ao lugar de onde saímos. Algo em nós se transforma.

Podemos ficar mais fortalecidos ou amargurados, mas nunca mais os mesmos.

O nosso “eu” transformado terá que inventar outra história, terá que se

reinventar, terá que reencontrar as partes fragmentadas para que numa sutura,

num remendo (nem sempre bem feito) possa seguir em frente.

Quem tem que conviver por um motivo de doença grave com a idéia

constante da morte, tem que aprender a fazer da idéia de morrer uma forma

nova e intensa de viver. Quem não tem capacidade de morrer, também não

tem capacidade de viver. Porque, antagonicamente, esses caminhos são

cruzados. Caminhar pela vida, significa indubitavelmente que estamos indo ao

encontro da morte.

O luto, dependendo de como é elaborado, pode ser um caminho para

chegar à dura verdade de quem realmente somos. No sofrimento nos

despreocupamos com a nossa “máscara”, com a imagem que criamos, com o

que os outros pensam, com a fortaleza que acreditávamos ser e vamos nos

refugiar no único lugar seguro que temos: nós mesmos. E é de lá que virá a

força, a coragem para continuarmos a viver, para transformarmos a dor em luta

pela vida.

Não há como não temer a morte, seja a nossa, de nossos parentes,

amigos, conhecidos e até mesmo dos nossos animais de estimação. Tememos

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tudo que não conhecemos. Tudo que não podemos ter o controle. Tudo que

não podemos mudar. Temos medo até daquilo que duvidamos: que podemos

morrer e depois de mortos termos que pagar aquela duplicata que assinamos

quando nascemos e que conhecemos por pecados. Faz parte da cultura,

mesmo para aqueles que juram não acreditar que exista alguma coisa depois

da morte. Que se morre e pronto!

Cada separação é um contato com a morte. Quantos já ouviram de

pessoas a beira do leito de morte a frase “já morri tanto nesta vida que agora

só me resta partir.” Mas falar da morte ainda é um tabu em nosso meio, onde

as pessoas evitam a proximidade e mesmo o assunto para não serem

contagiadas pela energia ruim que existe em torno do tema ou, simplesmente,

porque não conseguem entrar em contato com essa realidade.

Na verdade, esses tabus que nos impedem de falar da morte e as

mentiras e enganos que existem em torno do assunto têm sido questionados

nos últimos anos por autores como Montoto (2002), Koury (2003) e Elisabeth

Kluber-Ross (1997), que têm incentivado o diálogo com os doentes terminais.

Kluber-Ross (1997) descreve o enorme alívio dos pacientes que estão

morrendo, quando são convidados a compartilhar seus temores e suas

necessidades. Segundo ela, esses diálogos podem facilitar a jornada para a

morte.

Não podemos ensinar ninguém como é que se morre, mas podemos

estar por perto e ajudar na fase de transição, na superação ou na assimilação

dos estágios já abordados.

Voltando à afirmação que morremos como vivemos, Viorst (1998:286)

faz uma observação a respeito: morremos de acordo com o que somos,

morremos tal qual vivemos: o corajoso morre com coragem. As pessoas

austeras se submetem sem protesto a essa necessidade final. Os que negaram

a realidade continuarão negando até a morte. Os que cultuam certa

independência passarão por esse processo com certa vergonha por estar

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dependendo de outras pessoas. E para aqueles que a separação sempre foi

um terror, a separação última é o maior de todos os terrores.

Mas a questão principal deste capítulo é abordar como algumas

pessoas, diante de um sofrimento atroz, de uma perda irreparável ou mesmo

da convivência com uma doença grave conseguem transforma a dor em um

processo de crescimento e mudança. Conseguem avaliar e reavaliar a vida, os

caminhos percorridos, os laços afetivos construídos, as experiências

vivenciadas e, com maturidade, buscar novas aprendizagens, certamente, essa

mudança não fará com que a dor desapareça e sim “doa até onde tem que

doer”, para depois poder olhar para o que sobrou ou para quem sobrou e

recriar uma nova vida. E com um novo olhar aproveitar mais intensamente

cada momento dessa nova vida.

5.1. Sublimação : um Caminho para Retomar a Vida

Perder é o preço que pagamos por estarmos vivos. Essa é a moeda de

troca. Quem muito vive, perde muito. Também é o caminho mais curto para

recolhermos os aprendizados e para se chegar a um crescimento interior.

Depois de cada perda, podemos sair aniquilados, ou fortalecidos. O que vai

fazer a diferença nessa travessia é a nossa visão sobre os acontecimentos.

Podemos expressar o nosso sentimento de dor em uma canção, em um

poema, em uma obra de arte, em um livro. Podemos também ficar

amargurados pelo resto da vida, mas quem consegue sublimar essa dor pode

até criar algo para ajudar os que sofrem da mesma dor.

Na Física, a palavra “sublimar” significa aquilo que se transforma da

fase sólida para o vapor. Na Psicanálise ela é definida como um processo

inconsciente que consiste em desviar a energia da libido para novos objetos,

aquilo que tem um caráter útil.

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Então sublimar nosso sofrimento é transformar nosso luto em algo que

seja útil a outras pessoas e nós mesmos. Usar o resto de energia que sobrou

para transmutar uma situação, mudar a vida de alguém. Ou tomar consciência

de uma habilidade, dom ou algo que antes nem sabíamos ter.

Um exemplo de sublimação pode ser o de uma pessoa que teve as

pernas saudáveis durante muito tempo e não tinha nenhum interesse em

praticar esportes, ou qualquer outra atividade. Em circunstância trágica ela

perde essas pernas e ao descentralizar a atenção naquele membro que já não

mais existe, consegue se superar participando de atividades físicas em uma

cadeira de rodas. A perna já não está mais lá, mas algo a substitui. A força

para se vencer uma Paraolimpíada vem daquele membro que foi amputado.

Pereira aborda a questão em seu livro Frente e Verso mostrando que há

uma força oculta no ser humano:

“Somos o que pensamos. Somos o que comemos, o

que vestimos, como agimos. Somos uma força gigantesca, que

só aflora quando realmente desejamos, mais do que tudo,

despertar o gigante que há em nós” (PEREIRA, 2002:45).

A mesma autora fala da força que algumas pessoas encontram em meio

a tanto sofrimento que faz com que muitas delas consigam superar as

tragédias:

“Algumas mães, ao perderem seus filhos, transformaram-

se em algo sombrio, triste pela vida afora (...) outras,

agarrando-se a uma força que outrora até parecia inexistente,

transformaram-se em heroínas das causas alheias e

transmutam a própria dor em benesses para a humanidade”

(2002:45).

Nesse contexto, podemos tomar como exemplo a mãe do cantor Cazuza

que ao perder seu único filho, fez de sua morte uma batalha para salvar outras

vidas.

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Depois que o filho se transformou no Cazuza, ídolo da juventude

brasileira dos anos 1980 e morreu de Aids em 1990, ela levou à frente o projeto

da Fundação Viva Cazuza, uma das primeiras entidades civis no Brasil voltada

ao apoio a soropositivos. Hoje, a Fundação abriga 22 crianças com idade entre

três e quinze anos. Mantém um site educativo e informativo sobre Aids com

objetivo de trazer informações científicas atualizadas sobre o tema em

português. Desenvolve um trabalho de apoio social para 120 pacientes adultos

em acompanhamento ambulatorial no Hospital da Lagoa e no Instituto Estadual

de Infectologia São Sebastião, desenvolve projetos de Prevenção à Aids em

escolas e empresas; produziu e distribui a cartilha “Uma babá mais que

perfeita” para profissionais que trabalham com portadores do vírus da Aids.3

Podemos, então, pensar que a sublimação é uma busca alternativa de

satisfação da pulsão num alvo de natureza não sexual diferente do alvo natural

da pulsão. Enquanto o sintoma representa o retorno do recalcado, a

sublimação permite ao sujeito orientar parte de sua energia erótica e mesmo

agressiva para objetos e/ou atividades socialmente valorizadas, especialmente

atividades artísticas e intelectuais.

Como a sublimação poderia libertar o paciente melancólico de seu

aprisionamento psíquico? Como seria possível uma reorganização dessa

dinâmica numa tentativa de minimizar a tensão?

Para Laplanche (1989), na origem da dinâmica psíquica presente na

melancolia, encontra-se sempre um eu frágil, insuficientemente investido pela

figura materna em sua fase de constituição cujo duplo especular aparece como

um vazio. Este déficit originário será ilusoriamente compensado pela presença,

no objeto eleito, de um ou mais traços idealizados que funcionarão como uma

prótese egóica ou uma “suplência imaginária” do sujeito. Enquanto esta

identificação se mantém, o sujeito sente-se possuidor dos atributos (que na

realidade pertencem ao objeto amado) que lhe conferem uma imagem

3 Site da Sociedade Viva Cazuza: www.vivacazuza. com.br. consultado em 06/7/2009.

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idealizada de si. Nesta situação, o eu que é frágil, sente-se forte, compensado

em sua insuficiência narcísica e mais próximo ao ideal de eu, podendo, assim,

contar com uma atitude benevolente do super eu.

Como disse Lacan, a melancolia não está assentada sobre uma

representação, mas, justamente corresponde a um furo no simbólico. Trata-se

de um vazio que a sublimação é capaz de fazer representar por meio do objeto

criado, oferecendo ao sujeito a ilusão de um domínio sobre este vazio que se

encontra no âmago de nossa humanidade, ao qual o melancólico permanece

fixado de maneira mortífera.

A sublimação também proporciona ao sujeito o reconhecimento

narcísico do qual carece, necessário ao incremento de sua auto-estima.

Satisfeito consigo mesmo, o eu se aproxima de um ideal acolhedor e recebe os

aplausos do super eu, contribuindo para a cicatrização do ferimento narcísico.

Para Násio (1997), esse momento põe, simultaneamente, em circulação

a libido que estava retida e submetida à pulsão de morte e o sujeito contempla

a esperança de libertar-se de seu aprisionamento psíquico. O começo da

subida. Se o luto coloca a pessoa no patamar mais baixo da existência, a

sublimação aqui faz o papel de degrau. Ou um espelho, cuja imagem já não

está mais invertida, nem mesmo de ponta cabeça. No meio da vista

embaralhada da melancolia ou da tristeza aguda, o sujeito já consegue agora

se olhar. Pode até não saber ainda em que lugar o seu “eu” se encontra, mas

consegue começar a se ver.

Devemos compreender que a sublimação não está ao alcance de todos.

Entretanto, se levarmos em conta que a satisfação via sublimação pode ser

obtida por meio de qualquer ato que proporcione ao sujeito um prazer de

natureza estética, esta possibilidade torna-se mais viável.

Para Quinet (2002:151), “a passagem da impotência, que corresponde à

falência do desejo, para a impossibilidade, indicada pelos limites estabelecidos

pela castração, marca a saída da depressão.” Trata-se da passagem do “eu

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não dou conta” do deprimido, para “isto não é possível”, da castração assumida

pelo sujeito. Em resumo, trata-se de lutar pelo que é possível fazer e não se

deixar levar pelo pessimismo e pelo desânimo e, por outro lado, admitir e

aceitar os limites que a vida impõe.

Para integrarmos nossos sonhos e desejos de vida, mesmo diante do

mistério da morte, que se mostra como caos em nossas vidas, é que podemos

contar com a imaginação e fazer ajustes criativos. A imaginação articulada à

criatividade muda a forma de perceber a realidade. Para que isto ocorra de

forma saudável e adequada, o enlutado precisa confiar nos seus objetos

internalizados. O sofrimento da perda pode estimular sublimações que

contribuem para elaboração do luto. Temos pessoas que, após um luto intenso,

tornam-se mais produtivas, mais tolerantes em suas relações com os demais.

Assim como também outros produzem de forma criativa para se aliviar,

desenvolvendo muitas vezes habilidades desconhecidas até o momento,

deparando-se com a criatividade expressa na pinturas, obras de arte etc.

Sendo experiências prazerosas, encontram maneiras de enfrentar o desprazer

e suas frustrações, podendo assim criar perspectivas de renovação, utilizando

suas habilidades manuais como maneira de encontrar sentido na vida.

Podemos considerar a imaginação como o elo entre a fantasia e a realidade. “É

particularmente rica na medida em que se pode ‘decolar e plantar’ na realidade

interior e depois aterrizar no chão firme da realidade exterior, do vivido”

(TAVARES, 2001: 28).

“A dor de perder não precisa ser sinônimo de amargura. É algo que nos atinge, nos deixa feridos, abatidos, e não tem, necessariamente, que nos derrotar. A dor também oferece a oportunidade de mergulho interior, levando à revisão de valores, projetos e propósito de vida. É um esforço, uma luta, aceitar o que não podemos mudar. A grande ultrapassagem é desenvolver a capacidade de transformação dentro de nós mesmos, sem nos trapacearmos. A transformação se dá a partir de uma reflexão consciente. É o reconhecimento da dor que nos direciona para a busca da aceitação. Enquanto não aceitamos a realidade, ficamos impotentes para agir. Deixar de aceitar a realidade é negar que podemos fazer escolhas que façam sentido” (TAVARES, 2000:35).

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Ao trazermos aqui a discussão que se faz em torno da sublimação,

buscamos apenas desenvolver o entendimento dos mecanismos de reparação

que fazem com que uma energia libidinal primitiva, dessexualizada, possa se

deslocar para objetos e finalidades valorizados social e narcisisticamente. A

sublimação é um processo de transformação fecundo da economia psíquica e

Freud, ao discuti-la, a propósito da obra de Leonardo da Vinci, considera:

“A observação da vida cotidiana dos seres humanos nos mostra que a maioria consegue guiar para sua atividade profissional porções muito consideráveis de suas forças pulsionais sexuais, e pulsão sexual é particularmente idônea para prestar estas contribuições, pois está dotada de uma atitude para a sublimação; ou seja, que é capaz de permutar sua meta imediata por outros que possam ser mais estimadas e não sexuais.” (FREUD,1974:122)

A construção da alma não é fácil. Todo o material adjacente que está por

trás dos sintomas é difícil e perturbador, muitas vezes, segundo Kreinheder,

“acima da resistência humana.” É onde reside o começo ou pelo menos de

onde recomeçaremos. Só conseguimos suportar tudo se tivermos uma visão,

se acreditamos que tudo aquilo nos conduzirá a algum lugar. “É a busca da

alma que nos inspira e nos dá condição de enfrentar o perigo e a adversidade”.

Porque, em algum lugar, em alguma época, experienciamos a alma e, sua

lembrança, nos encorajará a ir em frente nos piores momentos.

Scheweitzer (1995) cita que “o homem tem que decidir sobre a atitude

perante a sua vontade de viver.” Pode negar essa vontade. Pode transformá-la

numa vontade de não viver, como é o caso na ideologia hindu e em todas as

ideologias pessimistas. “Neste caso, ele estabelece uma contradição entre ela

e si mesmo”.

Para ele, quando o homem afirma sua vontade de viver, ele procede de

maneira natural e verdadeira.

“A afirmação da vida é o ato espiritual através

do qual ele deixa de vegetar simplesmente e começa a

entregar-se á sua vida como reverência para imprimir-lhe o

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verdadeiro valor. A afirmação da vida é o aprofundamento, é

espiritualização e é um crescente impulso da vontade de viver”

(SCHWEITZER, 1995:126).

5.2. Os Sobreviventes do Luto

Superar um momento de luto, como já foi dito exaustivamente, não é um

processo fácil. Diante das nossas dores ou mesmo diante das dores dos outros

nos sentimos perplexos, sem saídas. É como dizem alguns autores: uma

passagem pelas trevas, um olhar na escuridão e nem sequer saber se

direcionar em busca de um flash, de uma pequenina luz que venha a clarear

nosso interior e nos nortear ao encontro de ajuda.

Também, como já foi abordado, toda perda de alguém ou de algo é, na

verdade, a perda de nós mesmos. É quando temos que reinventar uma nova

maneira de nos ver. Reinventar uma nova maneira de viver. É quando temos

que ressurgir do nada que ficou em nossas vidas. É um ressurgir das cinzas,

se reinventar, remexer nos nossos lixos e garimpar nosso lodo. Isso nunca é

algo agradável de fazer. Um mergulho sem proteção ao fundo mais sagrado de

nós mesmos. E ter a coragem de olharmos para nós mesmos, tentarmos nos

encontrar, repensar os nossos caminhos e valores.

No entanto, se desejamos de fato sairmos do luto, do abismo, das

trevas, temos que percorrer todos os corredores escuros, confrontarmo-nos

com nossos fantasmas arrastadores de correntes e fazer uma escolha, uma

nova opção pela vida.

De uma maneira ou de outra, todos nós somos sobreviventes das

nossas perdas, das nossas dores. Todos nós temos forças, condições de

passar por esses processos e mudar a nossa história. Não como bravos heróis

que partem para uma trincheira, mas como seres humanos ”normais” que

aprendem com o sofrimento, com a palavra nem sempre doce, mas forte:

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Superação. E superação no sentido de livrar-se. Tornar-se livre daquele “eu”

que nos aprisiona, que nos manipula e manipula muitas vezes as pessoas que

convivem conosco.

É provável que percebamos lá na frente que nessa superação não

haverá vencidos nem vencedores. Apenas vontade de prosseguir em frente.

Nossas feridas permanecerão cicatrizadas ou sangrando às vezes, mas

podemos olhar para elas e saber exatamente quando e como surgiram.

Saberemos também, garantidamente, que não poderemos evitar novos

machucados, novas arranhaduras. Teremos que apostar naquilo que nos

tornamos e saber que, de certa forma, seremos novamente outras pessoas,

com outros valores, com outras idéias. Mutantes desta e nesta vida.

No momento do luto, faz diferença nos reconhecermos como mutantes.

Saber que podemos mudar, criar, recriar, inventar. Podemos conhecer a

pessoa nova que nos tornamos e apaixonarmo-nos por ela ou partir para os

ajustes psicológicos.

O ser humano está sempre numa busca constante e sente uma

permanente falta sem saber explicar que buraco é este que está no meio do

peito e nada preenche. O luto só o defronta mais nitidamente com suas lutas

contínuas, obrigando-o a parar e olhar para dentro de si mesmo e entrar em

contato com a realidade.

Essa realidade atroz que nos “rouba” coisas, pessoas e até momentos.

Que nos obriga a ver que nada nos pertence (nem nós mesmos); que a única

coisa que temos de concreto, de certo, é o momento em que se vive no aqui e

no agora. O resto (aquela imortalidade), aquela nossa sensação de possuir,

não nos pertence. Tudo é efêmero e se vai a uma rajada de vento. Estavam ali,

tão próximos, tão acostumados a nós e de uma hora para outra já se foram. Só

deixaram saudade, lembranças e um desejo desesperador de querer que o

tempo volte. Que os malditos ponteiros dos relógios que determinam esses

exatos momentos falhem, parem e nos devolvam o que acreditávamos que era

tão e somente nosso.

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O tempo, sem que saibamos inexoravelmente faz isso. Leva nossa

infância tão cheia de gozo, de ilusão, de fantasia, de fadas, duendes, proteção,

segurança e tantas cantigas e nos traz uma mocidade. Mocidade essa que nos

permitirá conhecer outras pessoas, outros colégios, outros amores. Que nos

trará a magia e a doçura do primeiro beijo, do primeiro assombro, o primeiro

carro, a formatura, os filhos que nos farão acreditar novamente na completude

perdida. No elo que foi soldado. E depois novamente a ruptura: amores

desfeitos, lares desfeitos, filhos crescidos ou perdidos e sabe-se lá com

quantas outras perdas e dores estaremos chorando.

Depois o tempo nos traz a maturidade. Quando tudo parece tão mais

certo, tão mais rápido. Onde a brevidade da vida é olhada assim meio de lado,

não querendo prestar muita atenção a esse detalhe: a vida acaba. A eternidade

da vida é só isso: por hora e agora. Esta maturidade nos leva outros sonhos e

esperanças, mas também traz muito mais suporte para vermos e entendermos

as pessoas, as limitações de cada um, a alteridade. Nossos espelhos já estão

mais virados para o outro lado e não tanto para nós mesmos. Isso o tempo faz.

Quando queremos e deixamos que ele faça.

Viorst (1998) tem uma bela colocação a respeito: “quando o talento

falha, quando fenece a beleza, quando a carreira brilhante declina, o mundo

não reflete mais a perfeição de Narciso.” Como o eu no espelho é o único que

ele sempre reconheceu, perde-se esse eu e mergulha-se na depressão. Ao

mergulhamos na depressão e darmos de frente com o nosso espelho trincado,

nosso “eu” desfigurado, já não podemos mais reconhecer nossa face.

Podemos passar a vida toda olhando para a imagem partida ou podemos criar

uma nova face. Longe do Narcisismo, longe dos jogos dos espelhos. Podemos

aprender a conviver com a realidade, com quem somos. Aprender a nos aceitar

e nos amar. A dizer carinhosamente para nós mesmos: agora estou aqui.

Agora sou só eu. O outro ou os outros se foram e apesar da dor, do medo, das

lágrimas, ainda estou aqui. Ainda pertenço a mim e tenho uma história para

viver, contar, escrever.

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Os amores, os relacionamentos que terminamos. A nossa melhor amiga

que já não é tão melhor e muito menos amiga, o homem a quem juramos amor

por toda vida, trocou-nos por outro amor para a vida toda. Mas quantas coisas

não ficam de cada coisa? Quanto de cada um não fica em nós? E depois o

tempo traz um novo amor, um novo recomeço. Só que essa entrega vem sem

nenhum certificado de garantia de vida eterna, de relacionamento duradouro.

Vamos chorar novamente, sentir raiva, revolta, mágoa e o juramento convicto

de nunca mais amarmos, nunca mais confiarmos em ninguém. De nunca mais

sofrermos por quem quer que seja. Mas nem os juramentos que fazemos a nós

mesmos são eternos. Voltamos e tentamos novamente porque uma vida sem

conexão é muito mais sofrida do que todos os amores que se rompem.

Mudar de casa, de cidade, de país? As perdas que se acumulam são

extensas. Sair do lugar acostumado, de pessoas e rostos conhecidos e se

jogar em direção ao novo. Que susto! Que medo! Mas, o tempo, esse nosso

volante, traz junto com as dores das mudanças, oportunidades. Oportunidades

de andarmos por ruas diferentes, de vermos rostos diferentes, outras

paisagens, outras culturas. Tem pessoas que conseguem “sair da casa”,

outras, embora estejam em lugares diferentes continuam morando sempre na

mesma casa. Tem pessoas que nunca estão satisfeitas com o que tem.

Sempre idealizam coisas impossíveis de serem alcançadas que é para

continuar não tendo.

Algumas perdas permanecem em nós por toda vida. Estamos

condenados a viver com elas. Nenhum processo (seja terapêutico ou outro)

consegue fazer com que aprendamos a viver sem lembrar daqueles a quem

tanto amamos e se foram. Estarão sempre em nós. Sempre! Também nas

fotografias guardadas, na comida que apreciava, nos lugares que costumava

visitar, nas palavras que disseram, nos jardins que cultivavam, nos livros que

escreveram. Lembranças que se alojam em um terreno sagrado chamado

intimidade. Quando choramos ou lamentamos a morte de alguém, choramos e

lamentamos a perda e a morte de nós mesmos. Uma parte nossa (aquela mais

conectada) morre junto com as pessoas que amamos. Morre mesmo.

Ressurgimos quando o tempo nos traz a aceitação do que perdemos.

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O lamento das nossas perdas depende da nossa idade e da idade de

quem perdemos, depende de quanto estamos preparados para isso, depende

de como a pessoa sucumbiu à mortalidade, depende das nossas forças

interiores e do apoio externo e, sem dúvida, depende da nossa história – nossa

história ao lado da pessoa que morreu e nossa história individual de amor e de

perda. Entretanto, parece haver um padrão típico no luto normal do adulto, a

despeito das idiossincrasias individuais. Aparentemente todos concordam em

dizer que passamos por fases de mudança, fases sobrepostas na nossa

lamentação, e que, depois de mais ou menos um ano, às vezes menos, mas

geralmente mais, “completamos” a parte principal do processo.

Para Montoto (2002), se aceitarmos as fases pelas quais

necessariamente deveríamos passar não como um pesadelo, mas como um

acontecimento doloroso da vida, talvez seja possível compreender por que “a

dor (..) passa a ser não um estado, mas um processo.”

A primeira fase desse processo, antecipada ou não, é de “choque, apatia

e uma sensação de descrença”, como diz o autor. “Isto não pode estar

acontecendo”! “Não, não é possível”! Talvez choremos e nos lamentemos em

voz alta; talvez fiquemos sentados em silêncio; talvez períodos de dor se

alternem com períodos de atônita incompreensão. O choque pode ser menor

quando se vive muito tempo com a iminência da morte da pessoa amada. O

choque pode ser menor (temos de admitir) do que o alívio. Mas o fato de que

alguém que amamos não existe mais está além do que podemos aceitar.

Vimos anteriormente incredulidade e negação podem continuar muito

depois do choque inicial. Na verdade, pode ser necessário todo o período do

luto para que o impossível – a morte – seja aceita como uma realidade. Depois

da primeira fase da dor, que é relativamente curta, passa-se para uma fase

mais longa, de intenso sofrimento psíquico. Há choro e lamento, mudanças

bruscas de temperamento e desconfortos físicos. Passa-se por fases de

letargia, atividade exagerada, regressão (a um estágio mais carente: “ajude-

me”), ansiedade pela separação e um desespero sem remédio. Como não

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poderia deixar de ser, raiva. Algumas pessoas relatam que sentem raiva de

Deus, raiva de quem morreu, raiva dos que ficaram, raiva de si própria.

Depois das várias fases chega-se ao “final do luto”. Ainda há momentos

de choro, mas são menos freqüentes, a saudade continua mas há sinais de

recuperação, aceitação e adaptação. Recupera-se aos poucos a estabilidade, a

energia, a esperança, a capacidade para ter prazer e investir na vida.

É justamente neste processo de aceitação que mudamos nosso

comportamento, nossas expectativas, nossas autodefinições. O psicanalista

George Pollock (1971), que escreveu extenuantemente sobre o assunto,

chama o processo de lamentação “uma das formas mais universais de

adaptação e crescimento...”. Vencer esse período com sucesso, diz ele, é

“muito mais do que fazer o melhor possível numa má situação. Lamentar

nossos mortos pode levar a mudanças criativas”.

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5.3. UMA EXPERIÊNCIA DE LUTO VIVENCIADA - Relato d o Caso

Identificação: R. P. L.

Idade: 48 anos

Escolaridade: Nível Superior

O interesse pelo caso surgiu após ler o livro Frente e Verso publicado

por ela e pelo psicanalista Claudio César Montoto. A forma firme e forte da

autora de relatar os acontecimentos de sua vida a partir da descoberta de um

câncer, fez com que eu entrasse um contato e agendasse uma conversa

(informal) sobre os acontecimentos anteriores e posteriores à descoberta da

doença.

Na conversa encontrei uma pessoa inteira, que embora convivendo com

uma doença grave há muitos anos, tinha brilho no olhar. Estava muito viva

sem negar sua condição. Não lamentou a vida em nenhum momento, ao

contrário, disse que o contato próximo com a morte fez com que aos poucos

fosse se aproximando cada vez mais das coisas que lhe são importantes e

caras na vida. Fez com que valorizasse cada minuto, especialmente aqueles

em que não está sofrendo dores ou internada e pode andar no sol, tomar um

café demoradamente, descobrir novos lugares ou discutir com o delegado de

sua cidade, uma atividade que já se tornou corriqueira e da qual ri, pois no

passado já teve brigas homéricas.

Ela continua uma sonhadora, lutando pelos direitos dos que não

conseguem se manifestar, na cidade de Itapira, onde mora até hoje. Sua

última denúncia é de gravidade ímpar: os casos de estupros de mulheres de

idade, com 70 anos ou mais, têm aumentado na comunidade. Atribui isso a

constituição da nova família, onde há um verdadeiro mosaico de pessoas

vivendo juntas sem grau de parentesco e sem compromisso e respeito pelos

mais velhos. Isso sem falar que em casas da periferia, de muitas cidades,

amontoam-se mais de dez pessoas em pequenos cubículos.

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Atualmente ela está com três novos nódulos: na mama, na boca e outro

no cérebro. Sabe da gravidade e sabe também que seu corpo se tornou mais

frágil e dificilmente agüentará novos tratamentos, mas não diminuiu sua

vontade de viver. Sua fibra, fragilidade, paixão e honestidade são

emocionantes.

Aos 26 anos a paciente começou o seu périplo. Apresentou sintomas de

febre, cansaço e muito desânimo, sem contar com um súbito emagrecimento.

Procurou um médico e submeteu-se a vários exames sem conseguir um

diagnóstico. Tomou remédios e por algum tempo sentiu-se melhor. Até esse

momento sua vida era considerada normal para uma pessoa de classe média

alta. Casada, duas filhas, uma de seis anos e outra de quatro, morava em uma

casa espaçosa, participava da política local, aparecia em colunas sociais e

culturais, escrevia, participava de grupos religiosos, em fim, era uma pessoa

ativa na cidade:

“Tola! Antes eu era bem tolinha. Achava que morreria

bem velhinha, definhada e sem voz. Tolinha e prepotente. Adorava comprar sapatos! Tinha coleção deles e não conseguia imaginar que algo de ruim pudesse acontecer com uma pessoa de 26 anos. Um belo dia (aliás não tão belo assim), amanheci com uma sensação terrível de cansaço. Mal estar, febre e achei que estava com gripe, tomei um chá qualquer, sucos e fiquei assim por mais três dias. Estava péssima. Procurei o meu ginecologista, que era o único médico que havia consultado até então. Ele achou que poderia ser uma infecção renal, pediu exame. Antes mesmo dos exames ficarem prontos, meu estado piorou muito. Já não tinha apetite e mal parava em pé. Ele então solicitou uma internação no Hospital da minha cidade e ai começou uma maratona de exames, antibióticos e nada! Não havia um diagnóstico preciso.”

Sem recursos em sua cidade, foi internada em um hospital na cidade de

Campinas (SP), que possui mais de um milhão de habitantes e mais recursos

em se tratando de rede hospitalar. Seu quadro continuou piorando e não havia

mais recursos naquele hospital também. Foi, então, encaminhada a um

hospital universitário para que pudesse se submeter a exames mais criteriosos,

com os mais avançados equipamentos da época. O diagnóstico foi Linfoma

Hodgkin.

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“Nunca fui fútil, mas utópica. Achava que podia salvar o mundo com meus grandes ideais e as brigas políticas na cidade eram constantes. Éramos ameaçados com freqüência. Não deixava minhas filhas com outras pessoas, porque tinha medo que algo ruim pudesse acontecer. Só saíam de casa com seguranças.

Fazia muito, mas não exercia nenhuma profissão formal. Nem cozinhar sabia e nem tinha por que aprender. Viajava bastante e achava que envelheceria ao lado do pai das minhas filhas e que sempre teríamos o controle das nossas vidas. “A vida iria para a direção que indicássemos”.

O tratamento que se seguiu foi rigoroso e a manteve no hospital por um

ano. Com aspecto cadavérico, pesava apenas 40 quilos, e pelas condições do

hospital, preferiu não ver as filhas enquanto estive inernada, pois não queria

que elas vissem a mãe definhando. “Tudo era incerto, assustador e

angustiante”. Em relação ao diagnóstico, sabia que era grave, mas sequer quis

saber ao certo o que Hodgkin significava. Houve negação total.

Para ocupar o tempo, realizava atividades dentro do hospital-escola.

Ajudava na elaboração do jornal interno da universidade, ficava no elevador

levando os visitantes aos andares, auxiliava as profissionais do serviço social,

levava os doentes mais debilitados para passearem e ajudava os que não

podiam se locomover.

“Parecia que um fantasma havia roubado minha vida e trancado-a em uma parede invisível que eu não conseguia acessar. Um ano sem ver minhas filhas. Eu não aceitava a idéia de que elas pudessem me ver naquele hospital horrível e só nos comunicávamos por desenhos, cartinhas e trocas de presentes.

Foi um ano vendo todos os dias pessoas morrendo. Um ano sem saber o que era linfoma. Não me atrevia a perguntar. Da mesma maneira que não queria saber que remédios horríveis eram aqueles que em vez de me curar, me faziam sentir pior: com mais febre, com mais dor e cada vez mais sem ânimo. Me sentia um verdadeiro protocolo. Estava no limite. Protestava, brigava por qualquer motivo. Colocava cartazes no meu quarto: “não entre sem bater, mas também não bata”

Nos dias que estava mais animada decorava os quartos com vidrinhos de remédios e copinhos descartáveis para as festas de aniversários e final de ano. Participava das reuniões da “máfia branca” como, por iniciativa minha, chamávamos os médicos.

Tinha imensa saudade da minha vida agitada. De brincar com as minhas filhas, das algazarras que fazíamos à

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noite antes de dormir. Queria voltar a ser o que era. Invejava os mendigos que ficavam na pracinha que eu conseguia avistar da janela do meu quarto no sexto andar do prédio. Sonhava estar nos ônibus, no trânsito, na multidão.

Pedi para ir embora. Queria me curar em casa. Queria

devolver a mim a minha vida. Concordaram, mesmo porque segundo um dos médicos, eu teria mais seis meses de vida. Os ânimos já estavam exaltados. Respondi jogando o rolo de esparadrapo que tinha em minhas mãos no rosto dele. Fui para casa e nunca mais voltei aquele lugar. (revolta)

Exaurida, revoltada com um longo tratamento que não resultou em

melhoras foi para casa, mas ainda sem saber o que tinha de fato. Continuou

sem querer saber. Em casa tudo estava estranho. As filhas sentiam medo

dela, pois, a ausência prolongada havia acabado com a intimidade e

cumplicidade anterior. Seu primeiro desafio foi o de reaproximar-se das filhas.

A mais nova, na época com cinco anos, apresentava um problema de

crescimento. O então marido (hoje estão separados) se negava a falar sobre a

doença.

“Resgatei as minhas filhas, fomos todas para o psicanalista

para aprendermos a viver com aqueles momentos. Rezei para

Deus que me desse mais uma chance. Só até minhas meninas

crescerem suficientemente para poderem andar por elas

mesmas. Ele me atendeu!”

A volta para casa foi complicada, mas, ao mesmo tempo, foi o caminho

que a levou a entrar em contato, de fato, com a doença e assumir o controle do

tratamento junto com os médicos.

“ Em casa eu era uma estranha para mim e para as minhas filhas. A pessoa que entrou naquele hospital saiu outra. Eu era outra. Estava sempre com medo de ter febre, de sangrar, de ter que voltar para o hospital. Menos de morrer. Acho que uma parte minha já havia morrido. Fiquei rodopiando a esmo por semanas. Não queria mais aqueles médicos, mas também não sabia a quem procurar. Fui visitar um amigo que tinha se formado recentemente e perguntei a ele o que era linfoma. Ele me explicou detalhadamente. Sai do consultório apavorada. Eu tinha câncer e era dos mais graves e por mais que eu lutasse nunca mais teria a vida de antes. Estava ali com o estigma da

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morte, com o estigma do silêncio. Marcada pelo preconceito (meu talvez), e pela autocomiseração. ‘As pessoas sentirão pena de mim, me tratarão como defunto vivo’

Decidi que não seria assim. Contei logo que estava doente e que continuaria a tocar a minha vida. Assumi a minha doença”.

Consciente da doença e entregue aos melhores especialistas no

assunto, começou outro doloroso tratamento: quimioterapia, radioterapia,

imunoterapia. Nesse novo período no hospital fez um acordo com Deus: que

deixasse as filhas crescerem primeiro e depois ela poderia morrer

(negociação). Porém, sua personalidade forte não havia mudado e a doença

não a tornara mais tolerante. Durante a conversa, ela confessou que às vezes

ficava tão revoltada que em uma dessas ocasiões, mesmo debilitada

fisicamente, conseguiu quebrar os móveis do seu quarto e depois permaneceu

inerte, por seis horas, sentada em meio aos destroços.

O tratamento não estava dando resultados. O câncer passava de um

órgão para o outro: tinha no pâncreas, outro no baço, no útero e mamas.

Nenhuma quimioterapia conseguia fazer os tumores regredirem. Novas

avaliações. Especialistas de outros países vieram para dar um parecer sobre o

caso. Virou case de estudo científico. Depois dessa nova rodada foi descoberto

que era um câncer na célula de manto e ela não produzia célula B.

Diante da nova descoberta, foi necessário redirecionar todo o

tratamento. Novas quimioterapias foram indicadas, imunoterapias foram

reforçadas. Nesse período ela se submeteu à retirada completa do útero devido

as constantes hemorragias e foi parar na UTI pela primeira vez. “Senti medo,

me vi frente a frente com a morte”.

Saiu do hospital, ainda mais magra, com 39 quilos, já sem cabelo, com

os ossos doendo e sem dinheiro. Decidiu voltar a trabalhar.

“Fiquei sem recursos com os tratamentos caríssimos e resolvi

trabalhar meio período, assim usava as manhãs para continuar o tratamento que ia de domingo a domingo. Mas continuei tocando a vida. Cuidava das minhas filhas, militava em um partido político, realizava trabalhos sociais, sem contar que nesse período ainda era extremamente religiosa e não deixava a minha responsabilidade com a

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pastoral. As minhas filhas, já recuperadas, foram a minha grande força na longa jornada dos tratamentos”

Ainda que o tratamento parecesse ir bem, tempo depois perdeu o útero,

uma mama e teve várias recaídas. Mesmo muito debilitada decidiu se submeter

a um transplante de célula B, pois havia alguma esperança. Os reagentes

provocavam muitos efeitos colaterais e chegar até o final do tratamento foi uma

prova de resistência.

“Encontrei uma força gigantesca dentro de mim. Nem eu imaginei ser tão forte. Ficava uma semana em casa e dez dias no hospital. Tinha hemorragia constante e aos 30 anos tive o meu primeiro órgão amputado: o útero. Fui para a UTI, mas não morri. Na seqüência perdi a mama direita, o baço, mais tarde meu fígado ficou comprometido por causa das drogas e meu rim mal funcionava.

Mas o meu luto maior foi quando perdi o útero. Minha (pro)criação estava condenada. Fiquei árida. Não conseguia sequer escrever uma linha.

Lembro-me que na véspera da cirurgia – próximo ao Dia das Crianças, eu estava comprando presentes para as minhas filhas e em vez de olhar os brinquedos ou roupas compatíveis com as idades delas, eu só olhava objetos e roupas de bebê.

Recebeu apoio dos amigos que restaram, da família e de algumas

pessoas ligadas à Igreja. Confessa que acreditar em Deus nessa época foi

essencial, mas continuar ativa também ajudou bastante.

“Candidatei-me a vice-prefeita e fui a primeira

mulher a disputar um cargo eletivo na história da cidade. Saia

dos comícios com hemorragias e amanhecia no hospital

tomando coagulante. Mas me sentia viva.”

Quando as filhas já estavam crescidas e casadas, resolveu que daria um

novo rumo à sua vida afetiva. ”Havia ficado um buraco na relação e insistir

seria ruim para os dois”. Separou-se. Alugou uma casa e contratou uma

enfermeira para tomar conta dela nos momentos de crise. Quando a doença

dava uma trégua, continuava o trabalho, as atividades políticas. A esperança

ou ilusão de estar curada aparecia mais intensamente nessa fase, para logo

em seguida continuar sua rotina hospitalar. Depois de algum tempo separada,

conheceu um novo amor, como gosta de ressaltar, e mesmo sabendo da sua

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história decidiram se casar e estão juntos há mais de oito anos. Os tratamentos

continuaram:

“Fiz três auto-transplantes e funcionaram apenas por algum tempo. Em seguida outra descoberta: havia surgido um câncer na célula de manto e qualquer órgão poderia ser atingido a qualquer momento por causa da irrigação sanguínea das células doentes.

Fiquei careca, perdi alguns dentes, quase todos os supostos amigos e fiquei sozinha por muito tempo. Aprendi a gostar do escuro e da solidão.

Minhas filhas cresceram, ganhei cinco netos (três meninas lindas e dois meninos maravilhosos).

Perdi a vesícula, apareceu outro câncer na mama esquerda. Meus pés têm ictiose, minha arcada dentária não suporta mais implantes e por causa de um recente incidente, apareceu um tumor no osso da boca e um na região do cérebro que não deu para fazer biópsia por causa da localização”.

Seu organismo já está debilitado pela quantidade de remédios ingeridos

não tem mais a mesma resistência. A cada dia surgem novos tratamentos e

cada vez mais eficazes, porém ela acredita que pode ser tarde, não porque

desistiu, mas porque o corpo não agüenta mais.

“A única certeza que tenho aqui e agora é que estou

vivíssima e tem dias que sou plenamente feliz. Não consegui

minha vida de volta, mas re (inventei) outra vida.”

Conseguir passar por tudo o que passou e continuar produtiva é motivo

de orgulho. “Isso me dá uma satisfação muito grande e já não me importo com

o tempo que me resta”, garante. “O tempo é a gente que faz”. Acredita que

poderia ter morrido lá atrás se tivesse se entregado. Poderia morrer de susto

quando soube que lhe restavam poucos meses de vida, ou poderia ter morrido

pelas complicações cirúrgicas ou poderia ter se entregue a uma depressão

profunda, mas preferiu fazer de cada dia, um dia para ser aproveitado.

“Não sou reconhecida como antigamente, mas continuo

envolvida nas questões políticas. Nunca mais fui candidata a nada, porém, continuo militando em movimentos sociais (idosos) e nas questões de violência contra as mulheres. Dou

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palestras e procuro mostrar que cada doença vem para nos ensinar o que precisamos aprender. Eu aprendi a não ser prepotente.

Brinco com minhas netas, tenho o amor de minhas filhas e ganhei de presente do Universo um grande amor. Um homem maravilhoso que torna minha caminhada mais florida, mais amena. Rimos de tudo e choramos quando a dor se faz mais forte. Não fazemos de conta que a dor não existe e nem damos mais valor do que ela tem. Cada momento é um momento. A gente torce um pelo outro e já vivemos todo o luto que poderíamos ter vivido nestes anos. Tenho um co-filho maravilhoso e sempre que estamos juntos a vida é uma grande festa. Sou “rueira, adoro conversar com as pessoas, falo com quem conheço e com quem não conheço.

Hoje, quando olha para trás diz que encontra uma pessoa melhor.

“Antes de adoecer eu era neurótica, minha alma era doente, hoje sou mais

comedida e minha alma mais saudável”. Antes, era apegada aos bens

materiais. “Hoje gosto de comprar flores”. Aprendeu a demonstrar os

sentimentos sem rodeios. “Digo para as pessoas que me são caras que eu as

amo muito e sempre”. As pequenas coisas passaram a ter grandes dimensões.

“É muito bom olhar para o céu e poder contemplar o sol, sentir o seu calor. Ver

as estrelas, ouvir o barulho da chuva o canto dos pássaros”. E emenda:

“parece lugar comum, mas quando se vive um dia de cada vez é o que há de

mais lindo”.

Sem dúvida hoje é uma nova pessoa que foi forjada à base de muita dor.

O que mudou? Ela diz que aprendeu a resolver as questões da vida sem tantas

brigas, com mais equilíbrio e com bons resultados. “Aprendi a entender meus

inimigos, mas não aprendi ainda a amá-los. Acho que entendê-los já é um bom

avanço”, brinca. “Não aceito ser humilhada, mas aprendi a ser mais humilde.

Aprendi a saborear os alimentos, a valorizar cada pedaço de pão. E mais:

“Aprendi a não ter tanta pressa. Antigamente era muito imediatista. Hoje um dia

já basta para aquele dia”.

“Não tenho nada a temer. Nada do que me arrepender. Fiz tudo o que quis, fiz mais do que poderia ter feito dentro das minhas limitações. Descobri que a dor dói até um limite e quando se ultrapassa esse limite, a dor não é mais sentida. Não aceito ser tratada como uma pessoa doente, porque não quero viver como uma morta. Quero que a morte me encontre bem viva”.

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Ver o rosto da morte de tão perto, também fez com que ela mudasse sua

visão de mundo. Hoje encara a vida com mais humor e ironia “ela não é

mesmo para ser levada muito a sério”. Já não tem tanta certeza na fé que

sempre professou e também já não sabe se acredita em vida depois da morte.

“Às vezes acho que morremos e pronto e o mais complicado é que só a gente

não vai participar dessa cerimônia”, diz pensativa. “Aprendi a me redimir todos

os dias com o Universo”:

“Ás vezes, ou quase sempre, acho que ter um câncer foi um marco importante na minha vida. De outra maneira eu não teria aprendido o que sei. O câncer me obrigou a ter mais responsabilidade comigo mesma. A ter a obrigação de viver um dia de cada vez. A ter sempre diante de mim a finitude. A saber que a vida acaba quer estejamos prontos ou não. Não sei se sou grata ao fato de ter um câncer, mas sou muito grata pela força que descobri em mim nessa luta. Uma vez li que câncer é para quem pode, quem quer e quem precisa. Eu não queria, mas talvez precisasse e pudesse. Não acredito que alguém consiga estar pronto para morrer. A gente sempre negocia um dia. Mais um dia. Faz parte de quem tem que conviver com a morte. Espero a primavera (amo a primavera), espero as férias, espero estar mais um dia nos braços do homem que amo. Acredito, no entanto, que somos eternos. A eternidade está nas lembranças que deixamos, nas atitudes que temos perante os acontecimentos. Toda vez que alguém sentir saudade de mim, voltarei um pouquinho”.

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3. CONCLUSÃO

As citações e a revisão de literatura permitiram que percorrêssemos os

diferentes caminhos que a experiência de ter um vínculo rompido por morte ou

perda causa no âmbito emocional, social, somático e cultural. Ao estudar o luto

procuramos considerar essa experiência, sempre dolorosa, em algumas áreas

do conhecimento, pois seria restringir demais ver o luto somente do ponto de

vista da psiquiatria ou psicanálise. Também seria ambicioso demais pretender

perpassar por todas as áreas do conhecimento. Nos limitamos, como dito

inicialmente, a alguns aspectos da psicanálise, antropologia, sociologia,

psicologia e religião.

No decorrer de nossa vida nos deparamos com diversos tipos de perdas

e mortes, mas jamais conseguimos nos acostumar a elas. Sempre nos deixam

prostrados, mesmo aquelas mortes e perdas anunciadas. Sabemos que a

morte é inevitável, irreversível, universal, mas isso não diminui a surpresa e

angústia que sentimos quando ela se apresenta. O fato de saber que uma

pessoa querida está com uma doença grave e vai partir em breve, não diminui

a dor da despedida. E também, por mais próximos que cheguemos dela, a

morte não deixa de ser um mistério para toda a humanidade.

Um mistério que uma maioria prefere “resolver” com a explicação e o

conforto das religiões que indicam uma vida depois da morte, para dar sentido

ao sofrimento vivido. Os ateus e agnósticos, no entanto, dizem acreditar no fim

biológico, mas não deixam de crer em situações cotidianas, planos e projetos

que ajudam a dar sentido à vida. Não há certo ou errado. O melhor é a escolha

pessoal que faz com que cada um viva mais intensamente o momento

presente, se responsabilize pela sua vida, felicidade, aventuras e desventura,

erros e acertos.

O ser humano tem a tendência a acreditar que está sendo punido cada

vez que alguma coisa acontece e o impede de estar no conforto característico

dos momentos de felicidade, alegria. Lacan diz: “Durante os diferentes

períodos de sua evolução o sujeito ‘consome’ e perde, sucessivamente, a

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placenta, o seio, depois os excrementos, e ainda o olhar e a voz”. Portanto, as

perdas fazem parte da vida. Mais do que isso, as perdas são vida tanto quanto

os momentos de alegria, euforia e lazer. Quando se nasce, não há nenhuma

promessa de que seremos felizes. Apenas que teremos que fazer o melhor que

conseguirmos da nossa vida.

Portanto, encarar o desconforto do nascimento, a separação da mãe, as

inseguranças e mudanças físicas da adolescência, a difícil escolha da

profissão, mudanças de casa e cidade, a perda do emprego, a separação no

casamento, a separação dos filhos, os inúmeros fracassos, a velhice, a doença

e a morte é difícil, sem dúvida. Não é algo simples nem fácil, mas acreditamos

que podemos ao menos tentar, pois vivemos de perdas e abandonos e, mais

cedo ou mais tarde, com maior ou menor sofrimento, todos nós

compreenderemos que a perda é, sem dúvida, uma condição permanente da

vida humana.

Lamentar é o processo de adaptação às perdas. Então, pergunta Freud

em Luto e Melancolia: “em que consiste a lamentação pelo que perdemos?” Ele

responde que se trata de um processo interior difícil e lento, extremamente

doloroso, em que desistimos passo a passo. Ele está se referindo, como já

citado, à lamentação pela morte das pessoas que amamos. Mas podemos

lamentar todas essas outras perdas que já enumeramos acima. Lamentar faz

parte do processo de recuperação das perdas.

Os filósofos gregos pensavam no passado e no futuro como dois males

que pesam sobre a vida humana, centros de todas as angústias que vêm

estragar a única e exclusiva dimensão da existência que vale a pena ser vivida,

simplesmente por que é a única real: a do instante presente. Luc Ferry escreve

resumindo o pensamento grego: o passado não existe mais e o futuro ainda

não chegou e, no entanto, vivemos quase toda a nossa vida entre lembranças

e projetos, entre nostalgia e esperança. Imaginamos que seríamos muito mais

felizes se tivéssemos isso ou aquilo. “Mas, de tanto lamentar o passado e ter

esperanças no futuro acabamos por perder a única vida que vale a pena ser

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vivida, a que depende do aqui e agora, aquela que não sabemos amar,

certamente, como ela merece.

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ANEXO I

POEMAS REFERENTES AO TEMA

Poemas de Rosana Pereira de Lima Extraídos do livro : Estágios, 1992.

1. PARADOXO Vou, mas permaneço aqui. Paradoxo de vida, sei lá. Deixarei meu “eu’ em cada parte. Estarei no pó que sai da terra Na gota de chuva que cai do céu. Estarei morrendo na partida Para nascer no regresso. Façamos de conta que é só um tempo ruim Digamos que é só uma ausência minha. Quando tudo passar, renasço das cinzas. É só uma morte na dor da solidão E um viver depois no cio da própria vida. 2. PAREDES VAZIAS Quem vai me compor versos falar de amor e de ternura? Quem vai me cantar uma canção ao anoitecer? Quem vai me dar o braço e um abraço para que eu possa de tudo me esquecer? Nessas paredes vazias, caladas. Essa madrugada fria que custa a passar. Esse soro que pinga, gota por gota e a sonda que sonda Sem nada encontrar. Mão fria que chega a doer, e o branco, sempre branco para lembrar que a vida nem sempre é colorida. Soro, gemido, a mão que dói quando tenta a manobra de se mexer. Frio, madrugada, gemidos! Cansada, deixo de escrever. Vou dormir primeiro que a mão latejante Primeiro que toda a espera Que ficará esperando no quarto branco do doutor.

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3. SALA DE ESPERA Salas vazias e o medo no corredor. Este medo que me espia, que me sonda pelas frestas da janela E me deixa assim: na espera. Esperar o que? Se toda espera é vaga Se o que sobra é mágoa E o desconcerto para se consertar depois. Esperar que este cheiro de remédio Impregnando o ar, vire cheiro de flor, Ou esperar corredores povoados de pessoas felizes Vestidas de várias cores. Esperar por uma utopia? Se encher de fantasia? Esperar dias melhores? Alguma força diferente? Enquanto isso faço-me de lata Já que não posso desfilar de gente. O momento desencantou O vidro se quebrou E o espelho de tudo sou eu. Fragmentos de sonhos que o vento levou. Passos cansados, quase sem direção E o medo acordou. Fantasmas me rondam Fazendo a rota Espiam a casa, sopram, balançam e desaba afinal. E o espelho de tudo sou eu Nesta imagem patética, desfigurada, Na lembrança machucada que ainda grita por paz. Parto? Não, fico e espero. Assisto a tudo e não participo de nada. O vento se foi, espalhou meus medos Dividiu os tormentos Deixou os cacos E no final de tudo O espelho ainda sou eu. 4. SEM NEXO Eu não pertenço a este lugar Aliás, neste momento não pertenço a lugar nenhum. Estou passeando dentro de mim, Decifrando meus sentimentos, Buscando o meu outro lado Para saber exatamente onde desejo estar Quando sair daqui.

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5. AOS DEUSES Sou uma célula morta E outras tantas doentes. Tenho todo tempo do mundo e tempo nenhum. Carrego protocolos, números Deram-me um diagnóstico e várias fórmulas. Mudaram a minha história, moldaram minha personalidade Se sentem deuses Donos e determinadores da sobrevivência. Vestem-se de branco Desfilam ar de onipotência Atravessam os corredores E se sentem reis. Meros bobos da corte, meros impotentes da ciência. Nada sabem do ser humano e nem de vocês mesmo. Tem as mãos geladas e são congelados nos procedimentos. Tenho sim células doentes, Mas não tenho a cabeça demente. Não podem decidir tudo Não podem determinar o meu percurso, Nem brilharão sempre neste disfarce de purpurina. Pobre deuses doentes! Orgulham-se tanto desses diplomas – certificados na parede. Vão ao congresso – ouvem e não aprendem. Escondem-se atrás de um saber de altitude Colecionadores de papéis que um dia amarelarão, Ou serão devorados pelos cupins. Acordem deuses do nada! Aprendam com a morte o que é a vida. Percam essa altitude olímpica. Deuses falidos de uma época que não se encaixa em mais nada. Vocês precisam da nossa doença para aprender, Mas precisam antes de tudo e, urgentemente, Aprender a ser gente. .

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Os versos abaixo de Lya Luft e Carlos Drummond de Andrade foram

extraídos do livro "Nova Reunião". Rio de Janeiro: José Olympio,1985.

O Lado Fatal

Lya Luft

I

Quando meu amado morreu, não pude acreditar: andei pelo quarto sozinha repetindo baixo: "Não acredito, não acredito." Beijei sua boca ainda morna, acarinhei seu cabelo crespo, tirei sua pesada aliança de prata com meu nome e botei no dedo. Ficou larga demais, mas mesmo assim eu uso.

II

Muita gente veio e se foi. Olharam, me abraçaram, choraram, todos com ar de uma incrédula orfandade.

III

Aquele de quem hoje falam e escrevem (ou aos poucos vão-se esquecendo) é muito menos do que este, deitado em meu coração, meu amante e meu menino ainda.

IV

Deus (ou foi a Morte?) golpeou com sua pesada foice o coração do meu amado (não se vê a ferida, mas rasgou o meu também). Ele abriu os olhos, com ar deslumbrado, disse bem alto meu nome no quarto do hospital, e partiu.

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Quando se foram também os médicos e suas máquinas inúteis, ficamos sós: a Morte (ou foi Deus?) o meu amado e eu. Enterrei o rosto na curva do seu ombro como sempre fazia, disse as palavras de amor que costumávamos trocar. O silêncio dele era absoluto: seu coração emudecido e o meu, varados por essa dourada foice. Por onde vou deixo o rastro de um sangue denso [e triste que não estancará jamais.

V

Insensato eu estar aqui, e viva. O rosto dele me contempla vincado e triste no retrato sobre minha mesa; em outros, sorri para mim, apaixonado e feliz. Insensato, isso de sobreviver: mas cá estou, na aparência inteira.

Vou à janela esperando que ele apareça e me acene com aquele seu gesto largo e generoso, que ao acordar esteja ao meu lado e que ao telefone seja sempre a sua voz.

Sei e não sei que tudo isso é impossível, que a morte é um abismo sem pontes (ao menos por algum tempo).

Sobrevivo, mas pela insensatez.

VI

Pensei que estávamos apenas no começo: a casa mal-e-mal nos alicerces. Mas provavelmente estava concluída e eu não sabia. Tínhamos erguido em nossos poucos anos as paredes necessárias; o telhado se inclinava ao jeito certo, e havia vidraças nas janelas. (Éramos felizes ali dentro mesmo com as tempestades de fora.) Tudo se construiu num lapso tão curto: até a porta de entrada, por onde ele saiu casualmente como quem vai comprar jornal.

A porta está apenas encostada embora pareça alta, dura, intransponível: do lado de lá, o meu amor vê as maravilhas que tanto nos intrigavam nesta vida.

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VII

Tanto escrevi sobre a morte em livros e poemas nesses anos: sempre achei que a entendia um pouco.

Mas agora que ela me dilacerou a vida, me rasgou o peito, me levou o amado, sinto que mal começo a compreender sua mensagem: tirando-o de mim, a morte o devolve para que seja mais meu.

Dentro de mim um quebra-cabeças, e nele [o meu amado. Nem Deus o tirará daqui.

VIII

O meu amado morreu: viver sem ele, como dói. Não tivemos filhos juntos, nosso passado foi tão breve que era sempre [presente. Um dia ele mandou fazer um par de alianças de pesada prata, parecendo antigas; gravou apenas nossos nomes, sem data, e disse: "Somos um só desde sempre." Ainda não acreditei em sua morte, e talvez isso me salve por enquanto. Levantar-me da cama cada dia é um ato heróico, acender o cigarro, atender o telefone, tomar café. Mas faço tudo isso: falo, ando, recebo visitas. Compro móveis para a casa onde moro sem ele, imaginando: será que ele vai gostar?

De algum secreto lugar me vem a força para erguer a xícara, acender o cigarro, até sorrir quando alguém me diz: "Você hoje está com a cara ótima", quando penso se não doeria menos jogar-me de um décimo-primeiro andar.

XIX

Amado meu, agora morto, postado do lado de lá da fronteira que nos seduzia, mudo e quedo como se não existisses:

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eu sei que existes, intensamente, ardentemente existes, feito e desfeito no fogo de um amor maior que [o nosso mas que nos abrange.

Amado meu, morto agora e para sempre vivo, hás de ter ainda o intenso olhar que me entendia, as curvas amorosas da boca que chamou meu nome, as belas, inquietas mãos que ardiam nas minhas. Ajuda-me agora, silencioso que estás, a suportar a sobrevida e a decifrar esse alto, intransponível muro que me [cerca.

X

Nunca tivemos filhos juntos, e ele reclamava: "Nosso amor merecia um filho ao menos.

"Nosso filho é a minha dor de hoje, é a fulguração que nos deixava tontos, é o novelo da memória que teço e reteço nas minhas insônias.

Nosso filho é o meu tempo de agora para falar do meu amado: da sua força e sua fragilidade, da sua indignação e seus prantos, da sua necessidade de ser amado e aceito como finalmente deve estar sendo, por inteiro, na realização de todos os seus vastos desejos.

XI

O meu amor enveredou por sua morte como quem vai a um encontro de amor: impaciente. Deixou-me este coração golpeado, esta derrota. Mas também ficou a claridade desses anos e a sensação de que ele finalmente vive o encontro de amor que toda a devoção de minha vida não lhe poderia [dar.(Um dia, celebraremos juntos.)

XII

Se me tivessem amputado braços e pernas e furado o coração com frias facas e cegado meus olhos com ganchos e esfolado a minha pele como a de um podre bicho - nada doeria mais

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que te saber morto, amado meu, depositado nesse irremediável poço de silêncio de onde não [respondes.(A não ser em sonho, quando me olhas e tuas mãos tocam as minhas espalmadas, abertas, feridas, vazias.)

XIII

O meu amado morreu: preciso viver sua morte até o fim. Morreu sem que se instalasse entre nós cansaço e [banalidade. Talvez tenha morrido na medida certa para nada se desgastar. Dele me vem a dor, mas também a ternura, a claridade que me permite ver em todos os rostos o seu rosto em todos os vultos o seu vulto e ouvir em todos os silêncios o seu inesperado riso de criança

XIV

Estranha a vida: fico tangendo meus dias como um rebanho de ovelhas desordenadas nessa triste e fria cidade de Porto Alegre onde ele gostava de estar olhando o pôr-do-sol e vendo amigos. "Morrer é tomar um porre de não-desejo" dizia o meu amado, que era um homem desejoso: desejava a vida, desejava a morte, desejava [a justiça, desejava a eternidade e a paz.

Estranha a vida: quando releio uma frase sua, "viver é modular a morte", em sangue e dor preparo a minha ida.

Estranho também esse amor, com hora marcada para a mutilação da morte, o minuto acertado, e o fim consultando o relógio para nos golpear.

Estranho esse amor de agora, com meu amado atrás de um espelho baço onde às vezes penso divisar seu vulto como num aquário. Enrolado em silêncio, mais que nunca o meu amor comanda a minha vida.

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XV

Não falem alto comigo: andem sempre na ponta dos pés. Principalmente, não me toquem.

Finjam que não vêem se tenho um jeito absorto, se nem sempre entendo as perguntas com a rapidez de antigamente, se pareço fatigada e sem graça como nunca fui.

Façam silêncio ao meu redor. Não me interessa nada o cotidiano nem o místico. Não quero discutir o preço do mercado nem os grandes mistérios da eternidade.

XVI

Levo meu amado no peito como quem carrega nos braços para sempre uma criança morta.

XVII

Amado meu, que tanto ensinaste de mim a mim mesma, e do mundo a quem o conhecia pouco:

quando se desfizer escura a noite desta perda, quero enxergar pelos teus olhos, amar através do teu amor as coisas que me restaram.

Amado meu, vivo em mim para sempre, apesar da ruga a mais e do olhar mais triste, devo-te isto: voltar a amar a vida como agora amas, inteiramente, a tua morte.

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Os Ombros Suportam o Mundo

Carlos Drummond de Andrade

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus. Tempo de absoluta depuração. Tempo em que não se diz mais: meu amor. Porque o amor resultou inútil. E os olhos não choram. E as mãos tecem apenas o rude trabalho. E o coração está seco. Em vão mulheres batem à porta, não abrirás. Ficaste sozinho, a luz apagou-se, mas na sombra teus olhos resplandecem enormes. És todo certeza, já não sabes sofrer. E nada esperas de teus amigos. Pouco importa venha a velhice, que é a velhice? Teus ombros suportam o mundo e ele não pesa mais que a mão de uma criança. As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios provam apenas que a vida prossegue e nem todos se libertaram ainda. Alguns, achando bárbaro o espetáculo, prefeririam (os delicados) morrer. Chegou um tempo em que não adianta morrer. Chegou um tempo em que a vida é uma ordem. A vida apenas, sem mistificação.