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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA - PUC CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM SEMIÓTICA
PSICANALÍTICA
SILVANIA DAL BOSCO
O LUTO COMO PROPULSOR DE VIDA
São Paulo 2009
2
SILVANIA DAL BOSCO
O LUTO COMO PROPULSOR DE VIDA
Monografia apresentada à Diretoria do
Curso de Pós-Graduação da Pontifícia
Universidade Católica - PUC como
requisito parcial para a obtenção do
Título de Especialista Lato Sensu em
Semiótica Psicanalítica, sob a
orientação do Professor Claudio César
Montoto.
SÃO PAULO 2009
3
Para meu filho Gabriel (em memória)
4
AGRADECIMENTOS
Muitos contribuíram, de forma direta ou indireta, para que este trabalho
pudesse ser realizado e não teria como agradecer a cada um em particular.
Portanto agradeço especialmente ao Professor Dr. Claudio César Montoto,
pela dedicação e atenção com que me orientou. A Rosana Aparecida Pereira,
pela generosidade de ter compartilhado sua experiência de vida e enriquecido
não apenas o trabalho, mas mostrado que a dor pode ser um grande
aprendizado. Ao meu marido Edmundo Abreu por ter me apoiado na iniciativa e
ouvido todas as tentativas de estruturar o estudo pacientemente, além de
finalizar com uma leitura criteriosa. À mastologista Sirlei Costa que fez
observações que me fizeram refletir ainda mais sobre o tema e a maioria foi
utilizada no trabalho e aos jornalistas Mauro Rocha e Ana Paula Ruiz que
também dedicaram o seu tempo para a leitura e correções, especialmente de
português.
5
“E tolerar a vida continua a ser, afinal de contas, o primeiro dever de todos os seres vivos. A ilusão perde todo o seu valor quando nos obstrui esse enfrentamento.
Lembremo-nos do velho ditado: Si vis pacem, para bellum. Se queres preservar a paz, arma-te para a guerra. Estaria de acordo com o tempo em que vivemos alterá-lo para: Si vis vitam, para mortem. Se queres suportar a vida, prepara-te para a morte.”
Sigmund Freud, Reflexões para tempos de Guerra e Morte, 1915
6
SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ................................................................................... 09 2. METODOLOGIA .................................... ............................................ 13 3. O TEMPO QUE PASSOU JÁ PERTENCE À MORTE ......... ............ 14
3.1. A morte continua um mistério - Visão antropológica ................... 17
3.2. O medo que a morte desperta .................................................... 20
3.3. A religião como promessa de outra vida .................................... 23
3.4. O ateísmo perante o luto ............................................................ 27
4. O LUTO NOSSO DE CADA DIA ....................... ............................... 29
4.1. APRENDER COM A DOR ........................................................ 30
4.1.1. Luto: um processo que pode transformar ........................ 34
4.1.2. Melancolia: uma dor que não se estanca ......................... 36
4.1.3. Ressentimento: A vingança que não chega ..................... 39
4.1.4. Nascimento: A primeira grande perda............................... 41
4.1.5. Separação: A perda de uma parte de si............................ 43
4.2. Final da Infância: A difícil separação dos pais ........................... 48
4.3. Velhice: ainda há tempo para viver ............................................ 52
4.4. Doença Grave: O luto em vida ................................................... 56
5. O LUTO COMO PROPULSOR DA VIDA .................. ...................... 65
5.1. Sublimação: um caminho para retomar a vida .......................... 67
5.2. Os sobreviventes do luto ........................................................... 73
5.3. Uma experiência de luto vivenciada .......................................... 80
6. CONCLUSÃO ...................................... ............................................. 90 BIBLIOGRAFIA ..................................... .............................................. 93 ANEXO I ............................................................................................... 99
7
RESUMO
Este trabalho tem por objetivo realizar um estudo breve sobre o luto, a
dificuldade que o ser humano tem de aceitar a morte do outro e a própria e as
perdas sofridas no cotidiano da vida, desde o nascimento até a velhice. Para a
realização desse estudo o instrumental utilizado foram autores que escrevem
sobre o tema nas áreas de psicanálise e psiquiatria, psicologia, antropologia,
sociologia, filosofia e religião, pois entendemos que o assunto é muito rico e a
bibliografia vasta para nos atermos a uma área específica do conhecimento. A
relevância dada aos autores ou temas abordados foi feita por uma escolha
subjetiva, aproveitando o espaço que o coordenador do Curso de Semiótica
Psicanalítica - Sintoma da Cultura, Oscar Angel Cesarotto, nos possibilitou. O
ponto de partida, entretanto, foi o estudo de Sigmundo Freud (1916) Luto e
Melancolia.
Palavras chaves: luto, morte, perdas, reinvenção, sublimação.
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ABSTRACT The present project aims to conduct a brief study about grief and the
difficulty that human beings have to accept the death of someone and the daily
losses in life, from birth to an old age. The instruments used to accomplish this
study were authors who wrote on the topic related with psychoanalysis and
psychiatry, psychology, anthropology, sociology, philosophy and religion,
because we believe this is a very rich subject and it has an anextensive
bibliography for landfilling in a specific area of knowledge. The focus on authors
or topics discussed was a subjective choice, using the space that the
coordinator of the Course of Psychoanalytic Semiotics - Symptom of Culture,
Oscar Angel Cesarotto, gave us. The origin of this project, however, was the
study of Sigmund Freud (1916) Mourning and Melancholy.
Keywords: mourning, death, loss, reinvention, sublimation
9
1. INTRODUÇÃO
Escrever sobre o luto é um grande desafio, pois nos remete diretamente
à perda e à morte. E morte, na nossa cultura, é algo para se passar longe ou
falar bem baixinho para evitarmos a contaminação pela energia negativa que
gira em torno dela. A vida já é tão difícil de ser vivida, imagine se ainda
tivermos que viver assombrados pela morte.
Assim é a Cultura Brasileira, cheia de ritos e crendices, mas nada que
ajude a nos prepararmos para a única coisa certa na vida: a morte. Embora
seja evidente a negação da morte em nosso meio, este não é um privilégio dos
brasileiros. Se buscarmos informações nas sociedades antigas, encontraremos
uma situação semelhante. Já que não há o que fazer, melhor nem pensar nela.
Se estamos vivos, a morte não está presente, e se estamos mortos, também
não estamos presentes, então, por que se preocupar? (Ferry, 2007: 21). É
verdade o que diziam os filósofos, mas será que essa não é uma maneira de
apenas passar pela vida, e não viver?
Não pensar na morte é possível até o momento em que nos deparamos
com ela, seja pela ameaça da própria vida ou pela morte de uma pessoa
querida. A partir desse momento é impossível negá-la, mesmo que esse seja o
primeiro impulso de todo o ser humano. Negamos a morte porque queremos
desesperadamente viver e não tomar consciência de que cada dia vivido é um
passo a mais em direção à finitude. Alguns pensadores garantem que tentar
negar a morte faz parte do “conseguir viver” pois, na lucidez total, não teríamos
motivação suficiente para seguir adiante. ‘Eu acredito que têm razão, absoluta
razão, aqueles que acham que uma plena compreensão da condição humana
levaria o homem á loucura. (BECKER, 2007:49)
E, talvez, seja para unir esses dois extremos que surge a utilidade do
luto: um processo necessário para a elaboração das perdas, mas também,
10
tempo necessário para o encontro ou reencontro com o nosso verdadeiro “eu”,
aquele que reside em nossa alma e que muitas vezes deixamos camuflados
para podermos continuar na pele daquela pseudo pessoa que acreditamos
ser.
Se ao menos as pessoas se conhecessem um pouco mais, saberiam
que a busca do “eu” é o anseio da alma, diz Kreinheder (1993) ao comparar o
anseio da busca do eu, com o arquétipo de voltar a ser criança. Segundo o
autor, voltar a ser criança é tão importante, porque é uma maneira de rever o
passado. Quando se é criança, se é verdadeiramente aquilo que se é, vive-se a
própria alma. Na vida adulta, as pessoas passam a representar papéis que se
parecem muito pouco com aquilo que elas realmente são. E é isso que causa
tensão, desgaste e sofrimento ao corpo. E aí surgem as doenças, para que não
se perca esse fio de procura, de busca, de desejar desesperadamente.
Segundo o filósofo Plotino, na doença, o corpo perde contato com a alma e não
se parece com ela, porém, uma pessoa jamais chegaria a perceber a alma (a
sua verdade), se tudo corresse bem com seu ego.
O fato é que a existência humana é uma sucessão de perdas e lutos,
alguns maiores outros menores, e esse tamanho, muitas vezes, é determinado
pela nossa capacidade psíquica de absorver o impacto da dor e transformá-la.
Há uma palavra que tem origem na física, e que atualmente é muito usada e
consegue resumir essa situação: resiliência, a capacidade humana de superar
o sofrimento tirando proveito das dificuldades inerentes a ele. O resiliente é
aquele que se recupera e se molda a cada deformação ou obstáculo que
encontra pela frente.
A verdade é que todos queremos ser compreendidos, amados, não
sermos abandonados nem ficarmos sozinhos. Desejamos que as pessoas que
amamos não sofram, não queremos morrer e nem queremos que elas morram.
Pensar na morte é o passaporte para a angústia, e não toleramos viver
angustiados. Mas já que o sofrimento é inerente à vida, não temos como evitá-
lo, podemos tentar entender o que ele tem a nos dizer. Será que a dor
vivenciada é um caminho para um encontro mais profundo conosco mesmo?
11
Será uma oportunidade que a vida nos dá para que possamos reavaliar os
caminhos percorridos até o momento? Será a natureza gritando para que
prestemos atenção para a eternidade que acontece aqui e agora? Será o
Divino a nos mostrar que ainda temos muito a aprender? Ou será apenas uma
orquestração de todas as forças para que possamos nos reinventar?
O luto, sem dúvida, é a oportunidade para nos reinventarmos, sim. Dói,
joga-nos em um terreno arrasado como por uma grande queimada, mas
sabemos que debaixo das cinzas ainda há vida. Ninguém entra em um
processo de luto e sai o mesmo. Os que conseguem encarar a dor de frente,
com certeza, saem mais fortes, mais verdadeiros.
Principalmente, faz com que compreendamos que somos falíveis,
frágeis, mortais. Que nada nos pertence de fato. Que um dia, seja qual for
nosso tempo, nossa idade, nossas crenças, nosso status social, as perdas
ocorrerão e teremos que olhar para elas, saber que se foram e que por mais
que nos agarremos a elas, temos que aprender a deixá-las ir, e fazer da dor um
meio de sobrevivência e aprendizado, porque é só para isso que o sofrimento
serve: como ensinamento ou uma possibilidade de nos reposicionarmos na
vida.
Diante de uma doença grave, como um câncer, por exemplo, assunto
que será abordado neste trabalho, podemos constatar que, igualmente, temos
a oportunidade de optar por uma entrega desanimada ao pesar e nos
prostrarmos em uma contagem regressiva ou partimos para a escolha corajosa
de fazer da doença uma oportunidade para viver intensamente cada dia. A
decisão provavelmente não salvará do câncer, mas, com certeza, ajudará a ter
dias melhores de vida na vida.
A idéia ao realizar este trabalho é justamente ir tecendo feito uma colcha
de retalhos o que o sofrimento, o luto, as perdas e a morte têm a nos dizer.
Sem pretensão de trazer novidades, muito menos de esgotar o assunto, vamos
percorrer os corredores poucos iluminados deste caminho para entendermos
um pouco mais sobre este tema que angustia a todos, mas que também dá
12
coragem para recomeçar, renunciar, se reinventar e fazer da vida uma lição.
Não uma lição para os outros, mas para si mesmo.
Dentro do tema serão abordadas questões culturais e religiosas com o
objetivo de entender se quem professa alguma fé, tem mais ferramentas para
sair de um processo de luto. Para nossa abordagem foram escolhidos autores
ligados à psicanálise, sociologia, psicologia, antropologia por entendermos que
o campo é vasto; são muitos os estudiosos do assunto e cada qual dentro de
sua linha de pesquisa tem a contribuir com o tema escolhido.
Também falaremos das perdas que começam quando nascemos,
passando pelos lutos de todos os dias, até as grandes perdas de pessoas
queridas ou da ameaça de nossas próprias vidas por doenças graves. Para
concluir, optamos por uma experiência vivenciada. Uma pessoa que há muito
tempo luta contra um câncer e pode nos mostrar um pouco do luto
antecipatório. Um luto vivido em vida, como muito bem pontua Montoto (2007).
Ainda, da dor que pode nos aprisionar e nos tornar refém de nós mesmos ou
da possibilidade de partirmos para a libertação do nosso verdadeiro “eu”, para
que aprendamos cada vez mais a viver conosco mesmo, responsabilizando-
nos inteiramente pela nossa vida. Sabendo, como nos ensina Sêneca, que “um
único dia é o tamanho da vida”.
13
2. METODOLOGIA
A proposta deste estudo foi realizar um embasamento teórico básico dos
principais autores que fundamentaram a questão do luto – não só o luto da
morte, mas de todas as perdas sofridas no decorrer da vida. Com o objetivo de
mostrar que o luto também permite que a pessoa possa crescer, se reinventar
ou mesmo criar uma nova vida, foi escolhido o caso de uma paciente que há
muitos anos luta contra um câncer raro para a realização de uma entrevista
com objetivo dissertativo de fechar as questões aqui levantadas.
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3. O TEMPO QUE PASSOU JÁ PERTENCE À MORTE
O antigo filósofo Sêneca em seu livro, “Aprendendo a Viver - Carta a
Lucílio” (p.15), já questionava se alguém poderia indicar uma pessoa que
realmente desse valor a seu tempo? Pois muitos acreditam que a morte é coisa
do futuro, quando, na verdade, ela pertence a todos os momentos que se
passaram.
A morte não está no amanhã que ainda virá. Está neste tempo presente,
onde as coisas se vão e se renovam a cada dia. Ficar esperando a velhice, ou
mesmo estar muito doente para se pensar na morte, é uma forma de negar o
tempo presente. Se a cada tempo presente perdemos muito daquele que já
passou, então, o luto nosso de cada dia também precisa ser assimilado,
trabalhado, compreendido. Mas há uma resistência do ser humano, como
podemos constatar na obra do filósofo francês Luc Ferry:
“Os filósofos antigos diziam que não se deve pensar
nela, porque de duas, uma: ou estou vivo e a morte por
definição não está presente ou estou morto e, também por
definição, eu não estou presente para me afligir. Por que nessa
condição, se preocupar com um problema inútil..”(LUC FERRY,
2007:21)
Becker também enfatiza a relação que o homem tem com a morte e
como ele rejeita a idéia de finitude. Para ele, o ser humano tem dificuldade em
entender que este é o seu destino final e que por mais que ele se sinta
poderoso, ele não pode mudar a sua condição humana.
“A Idéia da morte e o medo que ela inspira perseguem o
animal humano como nenhuma outra coisa. É uma das molas
mestras da atividade humana – atividade destinada em sua
maior parte, a evitar a fatalidade da morte, a vencê-la mediante
15
a negação de que ela seja o destino final do homem”
(BECKER, 2009:11)
Na psicanálise Freud (1976:12) é enfático ao mostrar a dificuldade do
ser humano de enfrentar a sua verdade. “Cada vez que um ser humano reflete
sobre a morte, sempre a pensa como um fato que acontece com os outros,
nunca com ele mesmo.”
Quando acontece de se perder alguém, ou diante da hipótese da nossa
própria morte, perplexos olhamos para o “mundo desabado” e perguntamos:
por que eu? Por que minha mãe? Por que meu pai? Por que meu filho? E
tantos outros porquês.
A vida deve ser vivida de modo que se possa desfrutá-la plenamente e,
para isso, é necessário pensar na morte, pois ela faz parte dessa trajetória.
Estar em contato com o sentido que a morte nos traz, ao contrário do que
parece, não nos faz aprimorar o senso de morbidez, mas nos faz estar inteiros
no momento presente. Sempre significando aquilo que consideramos
importante enquanto vivemos.
Carvalho (2006:3), em seu trabalho sobre luto e religiosidade, citando
Barros (1998:8), diz: “só o homem tem consciência da morte, e desde os
primórdios de sua existência começou a construir túmulos e a prestar culto aos
mortos”. Porque a ela não escapamos e porque seus horrores e medos nos
assombram, tal como Ruffié (1987, citado por Barros) designou: “este fim
miserável, que a todos nos torna iguais, é uma razão a mais para nos
mostrarmos modestos.”
“Lidar com as adversidades, desenvolver atitudes mais
evoluídas e tirar da dor algum aprendizado para um
crescimento pessoal. Por outro lado, adotar atitudes de derrota
ou de fracasso tirânico diante das adversidades é transformar a
dor em sofrimento, com repercussões não só pessoais, mas
também para todos á sua volta”. (TAVARES, 2001:27).
16
Se pensarmos em uma perspectiva biológica sobre a morte, poderemos
entender que nada é mais natural que “o morrer”, como refere Pitte (2004),
acrescentando ainda que, para além de natural, “o morrer” é um processo
predominantemente cultural, com uma desigualdade acentuada entre seres
humanos, sendo a expectativa média de vida um dos critérios fundamentais do
desenvolvimento humano. A expectativa de vida, de acordo com este mesmo
autor (2004), depende da riqueza, da saúde, do modo de vida, assim como o
nível de educação da pessoa e da sociedade onde está inserida.
De acordo com Pereira (2006), a vida seria fútil se não houvesse
importância na forma como cada um despende a sua vida na terra. Como o ser
humano se recusa a esta perspectiva de insignificância, a religião se impôs
como a instituição social que tem controlado os rituais e conhecimentos
associados à morte, em grande parte devido ao fato descrito por Pargament de
que a religião não só fornece conforto em tempos de sofrimento e estresse
(1997), citando Scott & Wink (2005:207), mas também, pelo menos no caso do
Cristianismo, oferece uma promessa de vida após a morte e de reunião com as
pessoas anteriormente perdidas.
“A morte, juntamente com o nascimento, a doença e a velhice, são as quatro aflições básicas da condição humana. Elas são óbvias e inescapáveis, nas nossas experiências pessoais e nas experiências de outras pessoas. Além disso, essas quatro aflições estão dentro das categorias de maior sofrimento, as quais são vivenciadas por todos os seres, tanto o humano quanto não-humano. [...]. Um entendimento dos fenômenos físicos, sensoriais e mentais do processo de morte pode ser muito proveitoso, conforme a nossa própria morte se aproxima; pode também prover insights nas experiências dos outros que estão morrendo. Devemos perceber, entretanto, que as sensações estranhas da morte e a perda do suporte familiar do corpo ainda serão muito difíceis. Por esta razão, é imperativo desenvolver um reconhecimento inamovível da natureza absoluta que irá nos carregar através do tempo de morte, não importa o que surja” (EVEREST, 2003:134). 1
1 EVEREST, Tsering. Vida e Morte no Budismo Tibetano: por Lama Chagdud Tulku Rinpoche. Artigo disponível em http://www.salves.com.br/enschagvimobudtib.htm. Acesso em 30 de maio 2009.
17
3.1. A Morte Continua um Mistério - Visão Antropoló gica
Carvalho (2006: 88) cita que ao homem estão associados grandes feitos
históricos, nomeadamente descobertas científicas, avanços tecnológicos que
em muito contribuíram para o grande crescimento e a industrialização da
sociedade. Porém, a morte teima em ser um dos mistérios que o homem não
consegue desvendar e derrotar:
“A vivência da morte varia de sociedade para sociedade, de cultura para cultura, de família para família e de indivíduo” (Ferreira, 2005:43). “De acordo com Morin (1997, citado por Giorgi s/d), retratando tempos longínquos, os mortos dos povos musterenses eram cobertos de pedras com intuito de protegê-los dos animais e evitar que voltassem para junto dos vivos. Mais tarde, eram ainda depositados alimentos e as armas do morto sobre sua sepultura.”
Desde os tempos mais remotos, são incontestáveis as várias
transformações em torno da vivência da morte. Nesse sentido, é de salientar o
trabalho elaborado pelo historiador Philippe Ariès, que ao se debruçar sobre
este tema, dividiu as várias atitudes perante a morte em cinco modelos.
Baseando-se no autor, até o século XII, predominou o conceito de morte
domada, onde a morte era considerada familiar, próxima. Atualmente, esta
visão da morte está apagada dos nossos costumes, tornando-se mesmo difícil
compreender a sua essência. Naquela época, a morte era aguardada pelo
moribundo com a maior naturalidade e, habitualmente, no seu quarto,
acompanhado dos seus familiares, padre, médico, companheiros e vizinhos.
Havia um ritual a cumprir, em que o moribundo pedia perdão pelas suas
culpas, doava os seus bens e aguardava a chegada da morte. O inicio da Idade
Média era, assim, marcado por uma familiaridade com a morte, sendo esta
considerada um acontecimento público. Toda esta passagem era caracterizada
pela sua discrição e gestos emocionais excessivos não tinham lugar.
“As sepulturas, até então anônimas, reaparecem com inscrições e retratos, o que mantem estreita relação com a preservação da identidade do indivíduo após a morte. Irrompe assim, a noção de a morte de si próprio nos séculos XV e XVI,
18
onde o cadáver foi associado ao horror da morte física e da decomposição através da arte e da literatura. A ocultação definitiva do cadáver e o costume do testamento assumem um papel de extrema importância neste modelo” (ARIÈS, 2000:34).
Mais tarde, surge um novo modelo, a morte distante e próxima. Ainda
Ariès, sobre a nova face da morte:
“Esta, naquilo que antes tinha de próximo, de familiar,
de dominado, afastou-se pouco a pouco para o lado da
selvajaria violenta e dissimulada, que mete medo”. (ARIÈS,
1988:366).
Essencialmente, este modelo se refere ao medo que a idéia e a
presença da morte despertava. Um dos grandes medos dessa época era o de
ser enterrado vivo o que pressupunha a existência de um “(...) estado misto e
reversível, feito de vida e de morte” (p. 367). A grande preocupação está na
morte aparente. Com efeito, surgem com grande freqüência nos testamentos,
precauções subjacentes à confirmação da própria morte. Assim, nos
testamentos figuravam as imposições como a permanência do corpo no leito
durante 48 horas e a escarificação, designadamente, golpe nos calcanhares.
No decorrer do século XVIII, o homem dá um novo sentido à morte.
Digamos que a morte deixa de ser a morte romântica de si próprio e passa a
ser a morte do outro. Torna-se um acontecimento dramático e violento,
encarado como uma transgressão, em que o homem é roubado da sua família.
Inicia-se aqui o culto aos cemitérios, bem como as manifestações em memória
do falecido. O luto passa a ser exagerado, a atenção se foca na família e não
no morto. Não se teme a própria morte, mas antes a morte do outro.
(ARIÈS,1988:98).
Carvalho analisa o processo de transformação no tratamento da morte
ou mais precisamente do morto:
“Se até então se esperava pela morte em casa, em
meados do século XIX, a visão da morte sofre uma grande
19
transformação, precisamente pela troca desse espaço pelo
hospital.” (CARVALHO, 2006:04).
Nasce o conceito de morte invertida, outrora, competia aos familiares
informar o moribundo de que estava morrendo. Atualmente, firma-se como um
dos principais deveres dos profissionais de saúde, dissimular a gravidade em
que se encontra o doente e esconder deste que o seu fim está próximo:
“A morte passa a ser vista como vergonhosa, assunto
interdito, tabu, sendo todas as manifestações excessivas
julgadas como anormalidades e descabido qualquer culto,
como a visita ao cemitério” (ARIÈS, 1988:102).
Nos dias de hoje, a morte parece se dotar de seu caráter mais selvagem
e sombrio na medida em que, são operados os maiores esforços no sentido de
escondê-la, silenciá-la, ocultar todo o sofrimento e dor por ela causado. Glaser
e Straus (1966:1968, citado por Barros, 1998) constataram que nas sociedades
industriais, o agonizante deixou de sentir a morte chegar, pois esses sinais lhe
são ocultados pelos médicos e familiares, sendo também feito o adiamento da
sua morte nos hospitais. Tal como Elias (2001, citado por Menezes, 2004)
proferiu, nos nossos dias, morremos higienicamente e sem odores em
hospitais, onde o hábito é coordenar uma estruturação social para o evento de
morrer.
No Brasil, a sociedade passou por profundas modificações no século
XX, o que transformou o perfil social e econômico da população. Nos anos 20
houve um surto de modernização com políticas de embelezamento,
saneamento e adequação dos meios de circulação de produtos mercantis e
humanos que melhor se adequassem ao capitalismo internacional (Pinheiro
Koury, 2003:66). Mas no comportamento da população, a grande mudança
acontece nos anos 70, quando a população brasileira, predominantemente
rural até aquele momento, passou a concentrar-se nas cidades, especialmente
nos grandes centros urbanos:
20
“A mudança rápida de uma tradição rural para uma urbanidade desorientada e intensa parece atingir em cheio hábitos comportamentais, dilacerando práticas relacionais comunitárias e provocando sentimentos díspares e ambivalentes quanto ao papel a desempenhar em situações concretas do dia-a-dia da sociedade” (PINHEIRO KOURY, 2003:67).
Muitos dos hábitos e práticas correntes na sociedade rural passam a ser
considerados interioranos pela sociedade urbana, que busca ajustar-se aos
novos patamares de realidade, aproximando-se com rapidez das experiências
civilizatórias européias e americanas, “o que causou um paulatino
desbravamento de caminhos para a individualidade dos sujeitos”. A
individualidade começa a se impor como padrão comportamental e passa a ser
considerada como padrão de civilidade, de liberdade do indivíduo frente à
sociabilidade em que vivia anteriormente.
Ainda de acordo com Pinheiro Koury, o processo de luto passa a ser
cada vez mais solitário e discreto por exigência dos padrões atuais de
comportamento.
“A exposição pública do sofrimento se vê mesclada, assim, por uma condenação velada do sofrimento. A ambivalência predomina. No conjunto das relações pessoais, a tendência é de uma reprovação tácita ao luto expresso publicamente, como se a dor causada pelo sofrimento pessoal de uma perda contaminasse os outros com a presença da morte” (PINHEIRO KOURY, 2003:23).
3.2. O Medo que a Idéia da Morte Desperta
Singh e Nizamie (2003) afirmam que se analisarmos a morte desde o
ponto de vista biológico, ela ocorre quando cessa todas as funções vitais. Mas,
analisada desde um ponto de vista mais amplo, dentro dos fatores psicológico,
social e cultural, a morte é muito mais que uma etapa final de um processo
biológico. Ela é a única certeza que temos na vida. Se houve um nascimento,
provavelmente haverá a morte. Não se sabe o dia, a hora, em que
circunstância. Se ocorrerá por um atropelamento, se será morte súbita, por
21
acidente aéreo, catástrofe ou doença grave de longo tratamento. A única
certeza que se tem na vida é de que se morre e ponto!
Se, por um lado, os seres humanos possuem uma capacidade cognitiva
para entender esta inevitabilidade, possuem também para temê-la.
Segundo Ardlet (2000), “é esperado que pessoas sábias, instruídas, não
tenham medo da morte, uma vez que entendem a verdadeira natureza da
existência, vivem uma vida significativa e, portanto, são capazes de aceitar a
vida assim como a morte.”
Mas não é assim. As pessoas quando dizem que não temem a morte,
estão dizendo de uma maneira intelectual, no entanto, se essa possibilidade se
avizinhar o medo obsessivo quase sempre se fará presente, e elas poderão
deixar de ter um bom funcionamento psicológico: Tal como afirmam Barros &
Neto (2004):
“A morte pertence a todas as idades e condições
sociais e está na origem de muitos sintomas e perturbações
psíquicas, nomeadamente as insônias, a depressão, doenças
psicossomáticas, vários medos e obsessões que, no fundo, são
medos da morte”.
De acordo com Montoto (2002), de um ponto de vista geral, o medo da
morte é o resultado de um tabu. Se tivéssemos uma familiaridade com a
própria idéia da morte, não a consideraríamos uma tragédia, ou algo para não
ser discutido.
“[...] mas, o único jogo que não tem esperanças, que
não há como subornar é o da vida. [...] Para Unamuno é impossível ter a certeza de que somos imortais, mas o lema é esperança. Muito embora esse sentimento de esperança não seja um refúgio nem um truque para se eximir do sofrimento, pelo contrário. Nada exime da angústia que supõe refletir sobre essa impossibilidade humana, e o desafio unamuniano é continuar a vivenciar, a pensar na incompletude humana para
22
fazer deste mundo um lugar justo e agradável de ser vivido” (MONTOTO & PEREIRA, 2002:20).
Para Becker, o medo da morte provoca sentimentos e reações
ambíguas:
“O medo da morte é a mãe de todas as angústias e, ao
mesmo tempo, o motor de toda a atividade humana. Este
medo, não aponta para uma única direção no que concerne à
sua etiologia, sendo considerado algo que não é natural, inato.
Pelo contrário, é produto da sociedade” (BECKER,2007:31).
Ainda Becker, citando o psicanalista Gregory Zilboorg, diz que a
maioria das pessoas pensa que o temor da morte está ausente porque ele
raramente mostra a sua face:
“Porque por trás da sensação de insegurança diante do
perigo, por trás do sentimento de desânimo e depressão,
sempre se esconde o medo básico da morte, um medo que
sofre elaborações muitíssimo complexas e se manifesta de
muitas maneiras indiretas ..() ninguém está livre do medo da
morte” (BECKER, 2007:36).
Segundo Barros & Neto (2004), vários são os estudos que indicam que o
medo da morte nos adultos não é tão evidente (Barros, 1998, Kastenbaum &
Aisenberg, 1983). Kococher et. al (1976), verificaram que os alunos de Ensino
Secundário apresentavam resultados mais ansiosos que os alunos do Ensino
Básico e ainda, relativamente, aos adultos. No que se refere ao gênero,
parecem não surgirem discrepâncias significativas. No entanto, existem
investigações onde houve uma maior predisposição para a ansiedade por parte
do sexo feminino.
Relativamente à comparação entre religiões, um estudo intercultural
realizado na Índia por Parsuan e Gandhi (1994, citado por Barros & Neto)
23
demonstrou que os mulçumanos são os que atestam uma ansiedade mais
baixa perante a morte, contrariamente aos cristãos, que apresentam os valores
mais elevados.
Tal como dito por Kluber-Ross (1998), partindo de estudos de outros
povos, outras culturas e outros tempos, é notório que desde sempre o homem
repudiou a morte e que, naturalmente, sempre a repelirá:
“A morte constitui ainda um acontecimento medonho,
pavoroso, um medo universal, mesmo sabendo que podemos
dominá-lo em vários níveis” (ROSS, 2009:9).
3.3. A Religião como Promessa de Outra Vida
Acreditar em outra vida após a morte é um dos caminhos que as
pessoas enlutadas encontram para suportar a dor da perda e tentar sair mais
rapidamente da paralisia causada pelo trauma. A certeza de um reencontro em
qualquer que seja a dimensão depois da morte é um conforto que faz com que
o retorno ao cotidiano da vida seja quase uma obrigação em respeito ao futuro
encontro.
Em pesquisa realizada com 1.304 entrevistados, Pinheiro Koury
constatou que 92,4% responderam freqüentar algum tipo de igreja e entre eles,
a morte é considerada o “fim da existência” por 41,18% dos informantes, e uma
“transição” para outra vida para 41,26%. Os demais 17,56% se dizem
estupefatos com a possibilidade da morte e do vazio por ela causado. Para
esses, a morte simplesmente não deveria acontecer:
“O morrer tem um significado de um estágio preparatório para uma nova vida que se inicia com a morte. Idéia semelhante à existência no Brasil do final do século XIX onde a noção do morrer era tida como um estágio necessário ao homem, para passar em revista a sua própria vida como forma de garantir um local adequado no além” (PINHEIRO KOURY, 2003:74).
24
Outra pesquisa feita sobre o mesmo tema, porém, com uma
amostragem menor, foi a realizada por Walsh, King, Jones, Tookman e Blizard
(2002), que aborda a relação entre religião e crenças religiosas e o luto, num
estudo prospectivo com 129 parentes e amigos próximos de pacientes com
doenças terminais, onde foi analisado o efeito das crenças espirituais no luto.
Os autores concluíram que 43% tinham forte espiritualidade, 41% tinham pouca
espiritualidade e os restantes 16% não relataram qualquer crença religiosa.
Entre as 95 pessoas que participaram das avaliações de acompanhamento, as
que tinham forte espiritualidade se recuperaram firmemente do luto e relataram
progressivamente menos sofrimento com o luto no primeiro, nono e décimo
quarto meses de acompanhamento. Já os participantes com baixa
espiritualidade, relataram pouca mudança no sofrimento por causa do luto até
depois do nono mês de acompanhamento. Quanto às pessoas sem crença
religiosa, estas manifestaram uma breve melhora no sofrimento com o luto
entre o primeiro e o nono mês de acompanhamento, no entanto, e após esse
período, apresentaram uma intensidade renovada do luto que era ainda
evidente no décimo quarto mês de avaliação:
“A conclusão que nasce com este estudo, é de que as
pessoas que possuem crenças religiosas em situações de luto superam e completam mais rapidamente o próprio processo do que as pessoas que não possuem tais crenças. Da mesma forma que toda a Humanidade se assume como diversa historicamente, etnicamente e linguisticamente, o mesmo acontece na religião” (WALSH et, al.,2002:324).
Ao fazer a opção por determinado credo e defender determinadas
crenças e práticas, a escolha deverá ser cruzada com a possibilidade de uma
liberdade absoluta. De acordo com Silva (2004), essa liberdade deve incluir
também a liberdade de não crença, da expressão de ateísmos, agnosticismos
ou da simples indiferença frente aos valores religiosos.
Segundo Barros a crença no além ou em vida após a morte se manifesta
mais claramente em segmentos da sociedade com menor cultura formal:
25
“[...] os valores estatísticos sobre a crença no além ou na vida eterna variam de nação para nação e dependem também da religião dominante, bem como da percepção da própria crença. (...) partindo do estudo de Hood et al, (1996, cit por Barros, 2000), são as mulheres e os iletrados de nível mais baixo que se mostram mais crentes, quanto ao gênero e nível sociocultural, respectivamente...” (BARROS, 2000:139).
Esta diversidade persiste entre ateus e religiosos, entre formas distintas
de religião (cristãos e budistas), entre ramos religiosos com pontos em comum
(judeus e muçulmanos), entre expressões internas de uma mesma religião, e,
entre expressões geográfico-históricas da mesma fé, como por exemplo,
católicos espanhóis e católicos norte-americanos. (Silva, 2004).
Independentemente do credo ou da não crença, o ser humano busca
uma possibilidade de continuidade ou compensação para justificar o sofrimento
pelo qual passa na atual existência. É necessário que haja uma razão para
suportar a dor, as perdas, o desamor, a solidão, a incompreensão. E Becker
mais uma vez aborda o assunto com muita propriedade:
“Desde que a pessoa começa a olhar para a finitude, para o seu relacionamento com o Poder Máximo e passa a refazer seus elos, transferindo-os daqueles que os cercam para aquele Poder Máximo, ela abre para si mesma o horizonte da possibilidade ilimitada, da verdadeira liberdade (..) A pessoa passa por tudo isso para chegar à fé, à fé de que a sua própria condição de criatura tem algum significado para o Criador; de que, apesar de sua verdadeira insignificância, fraqueza, morte, sua existência tem significado em algum sentido máximo, porque existe dentro de um plano eterno e infinito de coisas provocadas e mantidas para atender a algum desígnio estabelecido por uma força criadora. Repetidas vezes, ao longo de seus trabalhos escritos, Kierkegaard repete a fórmula básica da fé: somos uma criatura que nada pode fazer, mas existimos em face de um Deus vivo para quem tudo é possível” (BECKER, 2007:119).
Essa necessidade leva à identificação do ser humano e das sociedades
em geral com o heróico que remonta das Eras mais primitivas, porque o herói,
como nos mostra Becker (2007:32), era o homem que podia entrar no mundo
espiritual, no mundo dos mortos e voltar vivo. A origem estava nos cultos e
rituais antigos que se baseavam em morte e ressurreição. O próprio
Cristianismo saiu-se vencedor porque “tinha em destaque um homem que
26
curava, tinha poderes sobrenaturais e havia ressuscitado”. Todas as religiões
históricas se dedicavam a esse mesmo problema, ou seja, como suportar o fim
da vida.
Em determinadas sociedades, Waters (2003) fala sobre a existência de
uma partilha comum de uma religião de onde se espera que todos os
elementos dessa sociedade a sigam. Religião é, em parte, o fator que une
sociedades, sendo assim, a morte de um membro implicará toda a família, a
comunidade, e mesmo (caso ocorra a morte de indivíduos de alto status social)
toda a sociedade. A religião se impõe, nesse caso, fornecer os “rituais de
morte” que são comuns a todo o grupo.
De acordo com Kahn, Lazarus e Owens (2003), esses “rituais de morte”
que são referentes a processos como o cuidado do corpo post mortem, papel
do clero, o uso da autópsia, doação de órgãos, suicídio e eutanásia, ou ainda
como acrescentam Ramondetta e Sils (2003), à duração dos rituais a partir do
momento de morte (ex: enterro imediato por parte dos judeus) e aos
pormenores relativamente ao destino do corpo (ex: cremação por parte dos
hindus).
Todas as religiões possuem crenças do que acontecerá aos seus
membros após morrerem, segundo Ramondetta e Sils (2003:21):
“Cristãos poderão viajar para o Céu, Muçulmanos para
o Paraíso e os membros de algumas variantes de Budismo
poderão ir para ‘Terra Pura do Oeste’.”
A imortalização, dentro do seio das religiões, é concebida, como
afirma Kearl (2006), através da memorização coletiva, como é o caso dos
rituais de canonização da Igreja Católica Apostólica Romana.
27
3.4. O Ateísmo Perante o Luto
Ateísmo se refere à descrença em qualquer deus, deuses ou entidades
divinas. Em termos gerais, o ateu é visto como alguém que aspira à
objetividade e que recusa qualquer dogma (Wikipédia, 2006). De acordo com
Barros (2000), o ateísmo é uma opção contra a atitude religiosa.
Segundo o mesmo autor (2000), existem várias espécies de ateísmo. O
ateísmo vulgar que toma forma nos slogans e preconceitos contra Deus; o
ateísmo prático onde o dinheiro, o prazer e o poder é que são os verdadeiros
deuses; o ateísmo existencialista ou humanista, onde impera a crença de que
Deus tem que morrer para que os homens vivam; o ateísmo revoltado ou
militante que partiu da revolta de Nietzsche, que declarava morte a Deus; o
ateísmo ético que se baseia na descrença em Deus pelo fato de existir tanto
mal e sofrimento no mundo; o ateísmo científico assente na idéia de que um
dia a ciência e tecnologia substituirão Deus; o ateísmo sociológico ou
econômico, que se refere à religião como o ópio do povo; e, finalmente, o
ateísmo psicológico, que deriva da concepção da religião como “uma neurose
obsessiva”, como uma “ilusão” sem futuro.
Vergot (1996) enumerou os processos psicológicos mais presentes no
ateísmo, nomeadamente, a defesa contra o divino, na medida em que, desde
os tempos mais antigos, o divino e o sagrado eram tidos como ameaças, a
valorização da razão, uma vez que Deus se opõe à razão que não admite
mistérios nem verdades eternas, o mito do filho rebelde, tal como Nietzsche
afirmara, o homem como um ser por natureza revoltado, e a legitimação do
prazer (sexual ou outro) por culpa de toda a contestação da religião.
Mais do que não crer em um Deus, no ateísmo e em algumas filosofias
há a proposta de encarar a morte numa dimensão terrena, num fim biológico,
num eterno que está presente em cada momento. Becker falando de Willian
James diz:
28
“James uma vez mais, sabia o quanto era difícil viver abarcando os dois mundos, o visível e o invisível. Um tendia a puxar a pessoa para longe do outro. Um dos seus preceitos favoritos, que ele repetia com freqüência era: ‘Filho do homem, fique de pé sozinho, para que eu possa falar com você’. Se os homens se apoiarem demais em Deus, não irão conseguir o que precisam fazer neste mundo com suas próprias forças” (BECKER, 2007:310).
29
4. O LUTO NOSSO DE CADA DIA
Quando se pensa em luto, imediatamente vem à cabeça a morte de
alguém, mas os lutos são muito mais freqüentes em nossa vida do que
podemos imaginar pois, perdemos não só pela morte, mas também toda vez
que abandonamos algo ou alguém, ou quando somos abandonados,
despedidos. Por mudarmos de cidade, de casa e termos que deixar nossas
coisas para trás e seguir nosso caminho. Caminho esse sempre tão
desconhecido, tão assustador, como é tudo que nos pareça novo.
Se pensarmos em perdas, devemos considerar não só as perdas de
pessoas ou de objetos, mas de nossos planos, nossos sonhos, as ilusões, as
fantasias, a perda do nosso próprio eu jovem e o que julgávamos para sempre
em nós: a beleza, a força, o rosto sem rugas, a pele sem manchas, nossos
passos sempre tão obedientes que, pouco a pouco, se tornam trôpegos.
As perdas do dia a dia, agora refletidas em um espelho, cuja imagem
temos que aceitar como sendo a nossa. As perdas que encaramos,
independentemente da dor que nos cause: a mãe que não será eternamente
nossa, nós que não seremos eternamente de nossa mãe; que as dores que
nos acometem nem sempre se curam com um simples beijo; que por mais
sábia e encantadora que a menina se ache, nunca poderá se casar com o pai
quando crescer. Que há falhas em todo e qualquer relacionamento humano e
que nossa condição (seja física, financeira, ou mesmo de saúde) é efêmera.
Que por mais que tentemos, não conseguiremos dar às pessoas que amamos
total proteção, total segurança. Que não podemos oferecer a ninguém, nem a
nós mesmos, certeza de que se sofrerá, que nunca, em momento algum, virá
uma dor tão grande que mudará todo o curso da nossa vida.
Embora saibamos que toda perda é sempre muito dolorosa, também
aprenderemos – e é para isso que o sofrimento serve – que em um
determinado momento teremos que rever nossos caminhos, nossos princípios,
nossa maneira de amar as pessoas e a nós mesmos. Que não existe uma
30
fórmula para nos livrarmos do luto, da dor, das lágrimas. Às vezes, ou quase
sempre, nosso único aliado é o tempo. Enquanto esse tempo não chega, temos
que achar de onde tirar forças. Por meio de nossas perdas poderemos nos
tornar mais desenvolvidos e em busca do que há de mais precioso: a verdade
do que realmente somos.
E como garimpeiros, vamos agora abordar alguns aspectos dos lutos
sofridos no dia a dia. Vamos tentar entender as perdas e os recomeços;
mergulhar nas dores de cada momento.
4.1. Aprender com a Dor
Vamos começar pelo caminho mais simples: toda perda é dolorosa. O
verbete “luto,” no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa significa:
“(1) sentimento de tristeza profunda por motivo de morte de alguém; (2) luto originado por outras causas (separação, partida, rompimento), amargura, desgosto; (3) tempo durante o qual devem se manifestar certos sinais de luto; (4) fato de perder um parente ou pessoa querida, perda por morte; (5) conjunto de sinais externos, por exemplo, negro no vestuário Cristão, azul no Japão, branco na China, (costumes associados à perda de parentes próximos ou pessoa querida)” (2001:1794).
Montoto (2002:21), citando uma reflexão de Unamuno diz que o
amadurecimento espiritual é diretamente proporcional à capacidade de sofrer e
de ter consciência desse afeto humano:
“A dor é a substância da vida e a raiz da personalidade,
porque só mediante o sofrimento nos convertemos em
pessoas”. (...) O homem é tanto mais homem, isto é, tanto mais
divino, quanto mais capacidade para o sofrimento tem”
(UNAMUNO, 1986:216-7).
A psicanalista Marques de Oliveira, especialista em pacientes terminais,
concorda com Unamuno e acrescenta, no momento de analisar a sua prática
31
clínica, que “apesar de, aparentemente, morte e desenvolvimento serem
paradoxais, não há desenvolvimento sem contato com essa dor, embora o ser
humano fantasie essas possibilidades” (2001:89).
De acordo com a autora, não são muitos os que aceitam aprender com a
dor. Poderíamos aprender com a alegria, felicidade ou com os momentos
felizes, mas acreditamos que eles sejam para serem curtidos, vivenciados. A
alegria é fundamental para viver e todos correm atrás dela, fazem tudo para
alcançar este estado, por isso é difícil tirar grandes lições de vida. É melhor
aproveitar esses momentos para nos abastecer e enfrentar melhor as
dificuldades.
Quem vivencia o luto, ou seja, a perda de um ente querido, de um
projeto de vida, de um grande amor ou de um emprego e até a mudança de
cidade conhece os sentimentos que vêm depois; conhece a dor, a angústia e a
sensação de ter perdido parte de si mesmo, de não mais ver sentido na vida.
Um sentimento de total desolação.
No inicio, a pessoa revive constantemente as lembranças do objeto
perdido, chora com freqüência, é acometida por sentimentos como raiva,
angústia, desamparo, solidão, falta de interesse pelo mundo exterior, vontade
de ficar retraído. Ela se sente culpada pela perda. As reações físicas mais
freqüentes costumam ser aperto no peito, falta de ar, insônia, perda de apetite
e dores no estômago. Em grau maior ou menor, todos passam por estes
sentimentos em algum momento na vida e se isso não acontecer, com certeza,
não há vida; a pessoa não está conectada com a realidade.
A diferença entre a morte e perder um emprego, mudar de cidade,
romper um relacionamento ou acabar uma amizade é que as pessoas
continuam a existir e, por mais raiva e ódio que o momento provoque, tudo
pode acontecer, inclusive reiniciar ou retomar a situação, o relacionamento ou
a amizade. Por mais desespero que a perda de um emprego ou de um projeto
de vida traga, o tempo pode mostrar que este foi um benefício para o atingido.
Ele poderá encontrar um emprego melhor, por exemplo, e até sublimar este
momento e se tornar um executivo famoso aprendendo com a dor. Porém,
32
quando se perde um ente querido ou quando a nossa vida está ameaçada por
uma doença grave, encontramos a mesma dor, o mesmo buraco dentro de nós,
mas com o agravante de que, neste momento, não teremos de volta o objeto
amado. O que temos pela frente é a perda de uma pessoa querida e a certeza
da nossa finitude, ou seja, a morte.
Para entender o luto, temos que entender os laços afetivos. Segundo
Sanders (1999), uma das teorias que tentou explicar a necessidade do ser
humano estabelecer laços afetivos foi a Teoria do Apego, desenvolvida por
Bowlby em 1980. De acordo com esse autor: “estabelecer vínculos prende-se
com o instinto inato e necessário que torna possível a sobrevivência da espécie
e potencializa sentimentos de proteção e segurança”:
“Esse instinto, será mecanismo funcional de sobrevivência encontrado em muitos animais sociais. Assim, quando se perde o objeto significativo, determinados comportamentos assumem-se como repostas automáticas perante a perda. Chorar, agarrar, e procurar foram alguns dos comportamentos observados por Bowlby, como respostas biológicas que procuram restaurar o equilíbrio perdido” (CARVALHO, 2006:78).
Coimbra de Matos (2001) defende que o luto é uma reação normal à
perda de um objeto importante, constituindo uma fase transitória e necessária
da readaptação do investimento em novos projetos.
Segundo Freud, o luto consiste em aceitar a realidade da perda e ir
desligando a libido do objeto perdido. Já Sanders (1999) considera o luto como
a representação de um estado experiencial que a pessoa sofre após tomar
consciência da perda.
Ocorrendo este processo em condições normais, parece existir
consenso entre os autores, quanto ao seu caráter adaptativo bem como quanto
à sua universalidade. Tal como havia defendido Lindemann (1994) ao
considerar o luto como uma síndrome notavelmente uniforme, que inclui
sintomas físicos e emocionais. Porém, não podemos descurar o seu caráter
idiossincrático. Mesmo sendo universal, parece estar profundamente marcado
33
pela forma como cada indivíduo, membro de determinada cultura, o experiencia
na sua individualidade. De acordo com Worden (1998, citado por Ziberman,
2003), a dor da perda não pode ser quantificada e cada indivíduo deve ser
compreendido na sua necessidade pessoal, com as suas características e
reações particulares.
Existem diversos modelos teóricos que abordam o processo de luto. De
acordo com o modelo de Bowlby (1984, citado por Escudeiro, 2005), o
processo de luto desenvolve-se em quatro fases. Logo após a perda, entramos
em um estado de entorpecimento, onde a aflição e a negação da perda se
assumem como características. Posteriormente, entramos na fase do anseio e
busca do objeto perdido. Aqui, sentimos a presença da pessoa que perdemos,
sonhamos insistentemente com ela, sentimos seu cheiro e interpretamos
qualquer sinal como a sua presença. Contudo, a realidade impõe-se ao nosso
desejo e, depois de várias tentativas frustradas para recuperar a pessoa
perdida, somos invadidos pelo desespero e pela desorganização. Nesta fase, o
luto, a raiva, a culpa apresentam-se de forma mais intensa. Procuramos
responsabilizar alguém pela perda, sentimo-nos incapazes e temos consciência
de que nada mais podemos fazer para recuperarmos nosso ente querido.
Depois de vivida a dor e a tristeza da perda, somos impulsionados para o
restabelecimento do equilíbrio perdido, o que nos levará à última fase do luto –
reorganização.
No que se refere a outros modelos, Corr (1993, citado por Neimeyer,
2001) enaltece o modelo de Rando e de Worden pelo caráter mais ativo das
tarefas que a pessoa enlutada necessita realizar para superar a perda.
Tomando como exemplo o modelo Rando (1993, citado por Asaro, 2001), o
processo de luto implica a realização de algum ou todos os processos:
1. Reconhecer a perda e seu significado;
2. Expressar sentimentos sobre a perda; reagir à perda, identificar e lamentar quaisquer
perdas adicionais e descrever as circunstâncias da morte;
3. Verbalizar a transformação no vínculo emocional com o morto e rever os aspectos
positivos e negativos do relacionamento com este;
34
4. Verbalizar a perda e suas modificações do mundo antigo e verbalizar as reações
específicas (choque e entorpecimento, tensão, raiva, ansiedade, culpa, tristeza,
desespero, hostilidade, idealização, depressão e reorganização psicológica);
5. Verbalizar novos pareceres sobre o mundo em geral ou os aspectos particulares do
mundo; adaptar-se à nova vida; verbalizar e planejar um futuro que não inclua o
morto; adaptar novos papéis, novas habilidades, comportamentos, formar uma nova
identidade e auto-imagem tendo em conta todas as mudanças associadas às perdas;
6. Redirecionar energia emocional para outras áreas, que pode incluir novos
relacionamentos ou, por exemplo, promover causas ou ideais que forneçam uma
medida de gratificação ou satisfação.
4.1.1. Luto: um Processo que Pode Transformar
Não há como negar a grande influência que Freud exerceu para o
conceito de luto em Psicanálise. A sua obra Luto e Melancolia, datada de 1917,
é uma referência para trabalhos que envolvem o tema.
Freud se preocupa em diferenciar o luto da melancolia e quais os
aspectos presentes em cada um desses estados afetivos. Os critérios adotados
são a partir da reconstrução metapsicológica e dizem respeito à relação do
sujeito com o objeto perdido. Ele escreve:
“O luto, de modo geral, é a reação à perda de
um ente querido, à perda de alguma abstração que ocupou o lugar de um ente querido, como o país, a liberdade, ou o ideal de alguém, e assim por diante. Em algumas pessoas, as mesmas influências produzem melancolia em vez de luto/ por conseguinte, suspeitamos de que essas pessoas possuem uma disposição patológica” (FREUD, 1917:249).
Freud acredita que o luto poderá ser elaborado após certo tempo, sem
haver uma interferência sobre ele. No luto, podemos encontrar traços como
desânimo profundo, perda de interesse no mundo externo, perda da
capacidade de amar e inibição de atividades.
35
Segundo Freud, a perda de interesse no mundo externo é causada pelo
fato de o mundo externo não evocar mais o objeto perdido. Há a perda da
capacidade de adotar um novo objeto de amor para substituir o que foi perdido
e o afastamento de atividades que não estejam ligadas a pensamentos sobre
esse objeto.
Kaufmann (1996) expressa essa mesma idéia quando escreve que o
luto é um estado de inércia libidinal, ou seja, não há movimento desta libido
para nenhum outro objeto. Freud coloca que é exigido que seja retirada a libido
da ligação com esse objeto. E diz no mesmo texto que esta é uma oposição,
pois as pessoas não abandonam de forma tão simples uma posição libidinal,
mesmo quando um objeto substituto aparece.
Freud ainda observa que as pessoas têm um grande dispêndio de tempo
e energia catexial2, prolongando-se psiquicamente a existência do objeto
perdido. Esse fato ainda é considerado por todos como algo natural, sendo
este um penoso desprazer. Há inibição e perda de interesse devido ao trabalho
de luto no qual o ego está absorvido. Mas quando o trabalho de luto cessa, o
ego novamente está livre para investir em outros objetos.
Lacan faz referência à melancolia em algumas de suas obras,
principalmente ao tratar do Narcisismo. Ele não apresenta uma teoria da
melancolia e transmite poucas observações a respeito dela.
2 Freud, ao estudar o atributo que têm as pulsões de impelir o homem à atividade, considerou-o análogo ao conceito de energia física, que se define como a capacidade de produzir trabalho. Assim Freud entendeu que uma parte das pulsões (impulsos) pode ser considerada energia psíquica. Tanto a energia física como a psíquica são hipóteses, já que os estados de energização não são passíveis de medida. Portanto presume-se que há um quantum de energia psíquica com o qual uma determinada pessoa ou objeto estão investidos. A palavra que Freud escolheu para designar este conceito vem do alemão Besetzung, traduzido para o inglês por Cathexis – em português – Catexia. Segundo Terzis (2001), a catexia é nada mais que o desejo. Parece que a motivação inerente ao ser humano possui um continuum de força – que se torna perceptível em suas ações. Catexia e Organização Psíquica - Noeliza Lima (Publicado em http://www.unat.com.br, seção artigos, junho de 2001 - revisado em 18/09/2006)
36
Para Lacan, o sujeito não é o mesmo após passar por uma situação de
luto. “A experiência do luto determinaria o surgimento de uma nova figura de
relação de objeto. Lacan não vê na identificação aos traços do objeto perdido
uma função reparadora” (PERES, 1996:54).
Como foi relatado no Capítulo II, que o tempo que passou já pertence à
morte, a pessoa depois de um processo de sofrimento, ao ter que assimilar
uma perda, vivenciar um luto, passa a pertencer ao passado e, na volta à
rotina, percebe que não é mais a mesma. Passa a ver as mesmas coisas e
pessoas com outro olhar. Em alguns casos, a pessoa passa a se sentir
estranha naqueles ambientes que deveriam ser familiares e perde a intimidade
com pessoas próximas. Na verdade, em alguns casos há necessidade de que
a pessoa se reinvente, pois, de fato, não é mais a mesma. Isso não quer dizer
que a pessoa esquece ou deixa de reviver suas dores, mas, ao recriar uma
nova pessoa, dá vazão a essa mutação, que pode interferir de forma positiva
em todo o percurso que terá pela frente.
4.1.2. Melancolia: uma Dor que não se Estanca
Também utilizando o texto de Freud - Luto e Melancolia (1917) - como
referência, pode-se pensar a melancolia como um estado em que o sujeito
sofre a perda, mas não sabe claramente o que foi perdido, logo, não pode
conscientemente saber o que perdeu. Na inibição do melancólico não podemos
ver o que o absorve tão completamente.
“Num conjunto de casos é evidente que a melancolia
também pode constituir reação à perda de um objeto amado.
(...) Existe uma perda de natureza mais ideal. O objeto talvez
não tenha realmente morrido, mas tenha sido perdido enquanto
objeto de amor.” (FREUD, 1917:251)
Na melancolia, além dos sintomas que estão presentes no luto, como o
desânimo profundamente penoso, a cessação de interesse pelo mundo
37
externo, a perda da capacidade de amar, inibição de atividades, há diminuição
da auto-estima e empobrecimento do ego em grande escala. Surgindo assim,
auto-recriminações e auto-envilecimento. No estado afetivo do luto, o mundo
torna-se pobre e vazio. Na melancolia, o ego torna-se vazio. Freud considera
que apenas a perturbação da auto-estima não está presente no luto.
Outros aspectos do delírio de inferioridade da melancolia, é que este
poderá vir acompanhado de insônia e recusa a se alimentar e por uma
superação do instinto que compele todo ser vivo a se apegar à vida. O paciente
melancólico mostra seu ego como sendo desprovido de valor, incapaz de
qualquer realização, desprezível.
Ele espera ser punido. Peres (1996) acredita que o paciente
melancólico, ao assumir uma atitude passiva, obtém prazer de seu sofrimento e
permanece preso a pensar sobre si. “A melancolia esconde uma fonte oculta
de prazer” (Peres, 1996:39). Isso se deve ao fato de que há uma repressão do
sadismo e isto provoca depressão, ansiedade, auto-acusações e aumento de
tendências masoquistas, segundo afirma a autora:
“O melancólico não tem sentimento de vergonha diante
de outras pessoas. Pelo contrário, há nele uma intensa
capacidade de comunicação e que poderá ser satisfeita no
desmascaramento de si mesmo” (PERES, 1996:39).
De acordo com Freud, na melancolia há perda de amor-próprio e o
melancólico deve ter tido boas razões para isso, pois sofre a perda de um
objeto, mas que o paciente aponta como tendo sido uma perda relativa ao seu
próprio ego. O paciente em sua auto-avaliação se preocupa pouco com a
enfermidade do corpo, feiúra ou fraqueza ou inferioridade social.
As auto-recriminações que o melancólico realiza são feitas a um objeto
amado, que foram deslocadas desse objeto para o próprio ego. “Eles não se
envergonham nem se ocultam, já que tudo de desairoso que dizem sobre eles
próprios, refere-se, no fundo, à outra pessoa” (FREUD, 1917:254).
38
Ao invés de demonstrarem humildade e submissão, atitudes que
caberiam ás pessoas que se acham desprezíveis, eles se tornam pessoas mais
maçantes, tentando mostrar que se sentem desconsideradas e que foram
injustiçadas.
Lambotte (1996) relata que Freud classificou a melancolia em 1924 na
categoria de “neuroses narcísicas”, uma categoria que é diferente da neurose e
da psicose. Seu interesse neste tema foi devido aos tratados de Psiquiatria e à
atenção dada ao discurso do doente. A excitação psíquica própria do doente
melancólico acaba por cavar uma espécie de furo no psiquismo, no qual a
tensão ou libido não pára de escoar.
Freud distingue a melancolia da neurastenia, pois nesta há o
escoamento da energia sexual no somático. Na melancolia há o
desapontamento proveniente da pessoa amada, a quem foi realizada a escolha
objetal, ou seja, a ligação da libido a uma pessoa. A partir desta
desconsideração sofrida, a catexia objetal foi liquidada:
“A libido não foi deslocada para outro objeto e sim foi retirada para o ego. Assim, pôde ser estabelecida uma identificação do ego com o objeto que foi abandonado. Pode-se dizer então que a sombra do objeto caiu sobre o ego e assim este pôde ser julgado como se fosse o objeto abandonado. Daí ‘uma perda objetal’ se transformou numa perda do ego, e o conflito entre o ego e a pessoa amada, numa separação entre a atividade crítica do ego e o ego enquanto alterado pela identificação” (FREUD, 1917:255).
A investigação psicanalítica demonstra que na melancolia existe também
a perda de um objeto querido com a respectiva diferença diante do enlutado, o
qual, geralmente, passa pela perda da morte concreta e, como se percebe, é
no inconsciente que ocorre a reparação afetiva. Assim, a existência de uma
perda real ou intrapsíquica de um objeto querido aproxima o luto normal da
melancolia patológica, os quais se separam pela consciência e inconsciência
do processo, ou seja, o desconhecimento da perda do objeto ao sentimento de
como se tivesse perdido o próprio ego.
39
4.1.3. Ressentimento: a Vingança que não Chega
O ressentido é alguém que não quer esquecer o mal que o vitimou. Não
quer perdoar, mas sim ”não deixar barato”. Para Scheler (1912) apud Kehl
(2004), o ressentimento gera afetos como rancor, desejo de vingança, raiva,
maldade, ciúmes, inveja, malícia, e a esse conjunto o autor chamou de
constelação afetiva. A palavra ressentimento indica uma reação, mas se o
ressentido tivesse reagido, o sentimento de injúria ou agravo poderia ter sido
tranqüilizado.
Ramos ao abordar essa situação afirma:
“O ressentimento está mais relacionado aos afetos do
que a uma estrutura clínica e que pode ser tomado como sintoma. Este serve aos conflitos do homem contemporâneo, este que é dividido por exigências imaginárias que são próprias ao individualismo e mecanismos de defesa do eu próprios que estão a serviço do narcisismo” (RAMOS, 2006:89).
Silva, abordando Kehl (2004), diz que o ressentimento é um termo
utilizado pelo senso comum e a Psicanálise está apropriando-se dele para
realizar algumas articulações. Esse re como prefixo da palavra ressentimento
significa o retorno da mágoa, a reiteração de um sentimento. Há uma repetição
mantida por aquele sujeito que foi ofendido:
“Ressentir-se significa atribuir a outro a
responsabilidade pelo que nos faz sofrer. Outro a quem se delega o poder de decidir por nós, de modo a poder culpá-lo pelo que venha a fracassar. O ressentido é aquele que tem como característica a servidão inconsciente e a impossibilidade de implicar-se como sujeito do desejo“ (KEHL, 2004:53).
A vingança, nesse caso, é considerada uma necessidade psíquica
quando a vítima não foi capaz de reagir na hora. Decorre da falta de resposta
imediata ao agravo. Ocorre depois de certo espaço de tempo, como se tivesse
sido adiada, mas esse desejo nunca é renunciado. É alimentado pela raiva ou
40
impossibilidade de esquecimento de uma raiva passada. Embora no
ressentimento, esse tempo de vingança nunca chegue, pois o ressentido é
incapaz de se vingar.
Para que o ressentimento surja é necessário que a pessoa sinta-se
incapaz, fraca, inferior, e não se sinta a altura de responder ao agressor.
Poderíamos questionar qual a relação do ressentimento com a abordagem do
luto? Essas duas questões podem ser articuladas por uma situação comum, ou
seja, a dificuldade que a pessoa sente em elaborar suas perdas. Segundo Kehl
(2004:33) “o ressentido reconhece seu sofrimento, mas atribui toda
responsabilidade a um outro mais poderoso que ele, suposto agente do mal
que o vitimou.”
Quanto mais os motivos da queixa encontrem validação na realidade
social a que pertence o sujeito ressentido, mais difícil é fazer com que ele se
desloque do lugar de vítima para começar as indagar-se sobre sua
responsabilidade quanto ao que o faz sofrer. Em um processo de análise, as
queixas ressentidas impedem a implicação do analisando. Ele coloca-se como
vítima e, na clínica, dirige ao analista um lamento de quem sofreu uma
injustiça, um agravo ou ofensa. Dessa forma, o trabalhar em análise com um
sujeito nesta posição, fica comprometido.
“Se o sujeito está convicto de que sofre porque não
pode esquecer o mal que lhe fizeram nem apagar as
conseqüências do agravo, sua implicação no processo analítico
fica comprometida. Isto é o que o ressentido quer, do ponto de
vista das resistências próprias do narcisismo do eu” (KEHL,
2004:34).
Ao elaborar suas perdas, seus lutos, o ressentido sempre fica retido no
objeto ou na pessoa que perdeu sem conseguir abrir uma porta para o
autoconhecimento e crescimento pessoal.
41
4.1.4. Nascimento: a Primeira Grande Perda
Freud e especialmente Otto Rank, de acordo com o professor da
PUC Dr. Claudio César Montoto em aula proferida em 17 de outubro de 2003,
refletem sobre a importância que tem no ser humano o momento traumático do
nascimento. Podemos imaginar que um ser que esteve durante nove meses ou
quase no ventre da mãe, com uma temperatura corporal constante, protegido
de ruídos, se alimentando mediante um conduto e respirando em uma matéria
líquida, de um momento a outro deixa, abandona esse lugar protegido para se
defrontar com um ambiente desconhecido. Para ter que começar a respirar por
meio dos pulmões, de sentir uma temperatura que afeta grandemente seu
equilíbrio anterior, com barulho externo, luzes e outros estímulos que são
estranhos à sua natureza ou, melhor dito, à vida que até então levava.
Para Freud, bem como para Lacan, o luto ocorre desde o momento em
que se nasce. Jaquetti e Mariotto ressaltam essa questão ao abordar o luto do
parto:
“O próprio parto significa um luto que a mulher deve
elaborar, na medida em que promove um corte na relação
fusional, simbiótica entre a mãe e o seu bebê. Um corte que
muitas vezes ocorre no real através da cesariana” (JAQUETTI
E MARIOTTO, 2004:53).
Benhaim (2004) coloca que o nascimento do filho é não mais o ter e, por
isso, deve ser realizada a elaboração não apenas da criança no útero, mas
daquela que acabara de nascer. Para a autora, é difícil acabar com essa fusão,
com a ilusão de um corpo no corpo. Ela supõe que na gravidez o princípio de
prazer supera o princípio de realidade. Há uma dupla perda, que seria a perda
do estado de encantamento em relação ao Imaginário e o Real e a perda do
objeto, que é a criança.
42
Riedmiller (2006) relata que toda mãe vivencia o estado de “Blues”. O
estado de “baby blues” é experimentado pela mãe no período puerperal.
Segundo Riedmiller, trata-se de um estado depressivo que a mulher vivencia,
umas com maior intensidade, outras com menor. Há casos em que a mulher
nem percebe que foi acometida. As que percebem, ou seja, quando ocorre em
maior intensidade, atribui-se à história de vida, ao momento, à dinâmica
familiar. É possível que, nesse caso, se torne uma depressão puerperal ou até
mesmo uma psicose puerperal. Szejer e Stewart (1997) acreditam que o “baby
blues” é o mesmo que uma depressão puerperal e o fenômeno é tão comum
que os obstetras integram-no no quadro normal de um parto. Segundo os
autores, os leigos dizem que isto se deve aos hormônios:
“Ainda que as explicações dadas a esse fenômeno continuem sendo insatisfatórias, há muito tempo temos uma idéia precisa sobre essa questão e podemos descrevê-la: trata-se de um estado depressivo benigno, habitualmente transitório, que aparece na grande maioria das mulheres que acabaram de ter um parto. As estatísticas oscilam entre 70% e 90% das mulheres e essa variação se explica pelo fato de que nem todos falam exatamente da mesma coisa. Uns contabilizam todos os estados depressivos, inclusive os mais leves, enquanto outros destacam apenas os mais expressivos” (SZEJER e STEWART, 1997:297).
Mesmo aquelas mulheres que permanecem com seus filhos dois meses
na incubadora, ao voltar para casa com o recém-nascido podem deparar-se
com esse sentimento. É algo que as aflige pelo medo de não saber cuidar da
criança, achar que não vão conseguir. E Szejer e Stewart descrevem melhor
esse fenômeno:
“São lágrimas abundantes, o sentimento de que jamais vai conseguir, que ela não foi feita para ser mãe, que isso tudo é demais para ela – enfim, é o ‘baby blues’. É uma designação muito boa: ‘blues’ do bebê. ‘Blues’ quer dizer melancolia, depressão que vem por meio do bebê, depressão aparentemente inexplicável provocada por sua presença” (SZEJER e STEWART, 1997:300).
Segundo Benhaim (2004) “o objeto perdido na melancolia implica uma
separação, pois a perda faz parte do objeto, visto que o objeto não poderia ser
constituído sem antes se perder”. Ou seja, quando há a separação entre a mãe
43
e o filho, subentende-se que este bebê pode se constituir como sujeito. De
qualquer forma, haverá essa perda.
Nasio fala de outro momento difícil que mostra quão traumática é a
separação da mãe e do seu bebê.
“O desligamento do bebê do seio ou do corpo da mãe se
dá de uma forma traumática. Os objetos só se desligam ou
separam do corpo ao preço da ação da fala. A primeira fala, a
fala mais primitiva que ao mesmo tempo, separa o seio do corpo
da mãe e esse mesmo seio da boca do bebê é,
fundamentalmente, o grito” (J.D.NASIO,1997:100).
4.1.5. Separação: a Perda de uma Parte de Si
Para a grande maioria dos autores pesquisados, entre os sentimentos
mais comumente vivenciados pelo casal após uma separação estão: a perda,
raiva, culpa desamor, solidão, fracasso, depressão, desespero,
arrependimento, indiferença, ciúme, posse, desilusão, dúvida, entre tantos
outros. É preciso ressaltar, contudo, que tanto o sentimento quanto a maneira
pela qual o luto será vivenciado dependerá do contexto no qual a separação se
insere.
O fim da união, no entanto, é sempre muito doloroso independentemente
de quem seja a iniciativa de separação. Nas palavras de Giusti:
“Trata-se daquele estado emotivo provocado pela perda
do objeto do amor, quer externo (perda da pessoa amada, que
nos abandona), quer interno (perda do amor pela pessoa que
abandonamos)” (GIUSTI, 1987:51).
Em ambos os casos sobrevêm uma sensação de falta e solidão, cuja
intensidade varia de acordo com a intensidade emotiva do apego. Não é por
44
acaso que muitos são os casais que ainda "preferem" permanecer em
casamentos fracassados, insuportáveis, por não conseguirem (ou não
poderem) lidar com estes ou outros sentimentos e situações. Muitas vezes os
próprios filhos, quando existem, são utilizados como motivo para a
continuidade da relação. É o que afirma Colares:
"É difícil assumir o desejo de separação. Muitas vezes,
acaba-se por manter a aparência do casamento; estabelecem-
se relações extraconjugais, paralelas, para suportar a relação
oficial e os filhos são meras desculpas. É o discurso consciente
sobrepondo-se ao desejo inconsciente" (COLARES, 2000:19).
De acordo com Giusti, a separação conjugal constitui uma quebra, um
trauma interno que não adianta negar, fingir que não existe, acreditando,
assim, que o sofrimento não vai ocorrer:
"Quase sempre a separação provoca um abalo emotivo
que, na escala das causas de estresse, vem imediatamente
após a morte de um parente ou o choque de ser preso, que
pode ser considerado equivalente ao trauma causado pela
perda da única fonte de subsistência" (GIUSTI,1987:49).
Assim, pode-se afirmar que a mobilização emocional, o desprendimento
de energia psíquica após o rompimento de um vínculo matrimonial costuma ser
muito intenso. Tanto maior diante da história individual dos cônjuges, da
organização psíquica do casal, da idade dos parceiros, do tempo e da
intimidade da união, das razões da separação, da existência ou não de filhos e,
principalmente, das expectativas de cada um frente à instituição do casamento.
O sofrimento, por exemplo, na separação de um casal com filhos costuma ser
maior e a separação mais difícil do que quando da relação não resultou prole.
Nesse último caso, conforme Maldonado (1986), o sentimento de perda
é muito intenso: perde-se a possibilidade de juntos ver os filhos crescerem, se
desenvolverem. Normalmente, surge o sentimento de culpa por estar causando
sofrimento aos filhos por meio da separação.
45
Ainda, conforme Giusti, o peso que os filhos têm em uma decisão de
separação do casal é muito grande:
"Em torno dos filhos, para quem os tem, gira a maior
carga de temores e sentimentos de culpa: como é que eles vão
nos julgar? Que imagem terão de nós? Que repercussões terá
em suas vidas? Como poderemos criá-los e educá-los
sozinhos?" (GIUSTI, 1987:39).
Quase sempre a separação traz à tona inúmeros sentimentos, os quais,
não raras vezes, divergem entre si. A maioria dos autores que escreveram
sobre o tema parece concordar que alguns sentimentos são, particularmente,
mais dolorosos e difíceis de superar, estando presentes em praticamente todas
as separações, ainda que possam variar em intensidade e qualidade. Um deles
é o sentimento de perda.
Separar-se significa perder muita coisa. Perde-se segurança,
estabilidade e padrão social. Perde-se todo um projeto de vida. E mais, perde-
se o parceiro (a), objeto do amor, e junto com ele (a) a esperança inconsciente
de restabelecer o vínculo simbiótico, aquele estado de unicidade, de amor
incondicional que se tinha originalmente com a mãe. Resta, ao final, um ego
profundamente abalado, precisando recompor-se com urgência.
Perder um (a) parceiro (a) é o mesmo que perder uma parte de si
próprio, “pedaços faltando”, nas palavras de Porchat (1992:122). Em realidade,
ou apenas no desejo de que assim seja, o parceiro é aquele que completa, que
preenche. No rompimento, essas partes ausentes já que projetadas no
parceiro, voltam ao seu lugar de origem. Muitas delas re-introjetadas, agora de
forma diferente. Cada um dos cônjuges se vê diante de uma terrível solidão e
desamparo de ser apenas para si e por si.
Lya Luft, no poema O Lado Fatal expressa esse sentimento:
46
“Insensato eu estar aqui, e viva. O rosto dele me contempla vincado e triste no retrato sobre minha mesa; em outros, sorri para mim, apaixonado e feliz. Insensato, isso de sobreviver: mas cá estou, na aparência inteira. Vou à janela esperando que ele apareça e me acene com aquele seu gesto largo e generoso, que ao acordar esteja ao meu lado e que ao telefone seja sempre a sua voz. Sei e não sei que tudo isso é impossível, que a morte é um abismo sem pontes (ao menos por algum tempo). Sobrevivo, mas pela insensatez“ (LYA LUFT,1989:15).
Usualmente as perdas, quaisquer que sejam elas, deixam marcas que
tendem a reaparecer em outros momentos da vida. A Literatura Psicanalítica
acredita que todas as perdas pelas quais o indivíduo passa tem relação com
aquelas vivenciadas na primeira infância. Nas palavras de Viorst (2005:33),
portanto: "Todas as nossas experiências de perdas relacionam-se à Perda
Original, a da conexão mãe-filho". Ou seja, a forma de lidar com as relações
estabelecidas e de reagir a elas depende de como se deram as separações
nos primeiros anos de vida de um indivíduo, embora, conscientemente, em
geral, não se tenha lembrança dessas experiências. Assim, diante da perda
provocada por uma dissolução conjugal, as experiências da primeira infância
tendem a reaparecer:
“As pessoas que quando crianças viveram traumaticamente a experiência do abandono, por exemplo, certamente encontrarão maiores dificuldades. Elas sentem o afastamento com particular ansiedade: uma verdadeira angústia do abandono, causada por uma fundamental insegurança afetiva, com profundas raízes na infância. É inevitável que no novo afastamento sejam confirmadas muitas razões de insegurança: ‘ninguém me ama !’é um leitmotiv que se ouve com freqüência e que reflete uma convicção bem arraigada” (GIUSTI 1987:52).
Por outro lado, ainda Giusti (1987:52) diz que aquelas pessoas que, ao
contrário, viveram uma infância gratificada pelo afeto, criadas em uma
atmosfera serena, encontram em sua bagagem de vida muitos recursos para
enfrentar melhor os momentos de solidão; estas terão menos probabilidades de
conhecer a verdadeira angústia.
47
Um fragmento de depoimento extraído do texto de Alfredo Naffah Neto
confirma:
“(...) Pude perceber que a dor que me tomava era
infinitamente maior do que a perda que a fizera eclodir. Não era apenas a perda da Carmem que eu chorava, mas também a da Adriana, a dos fetos abortados, a da minha mãe, a de todas as mulheres importantes que eu já tivera e perdera. Quiçá eu chorasse também pelo meu lado mulher, abortado nessa figura de homem, nessa escolha inconsciente que os genes e posteriormente a cultura nos impõe desde o nascimento e sobre a qual não temos opção” (NAFFAH NETO, 1992:80).
Assim como qualquer outra situação de perda, a separação conjugal traz
consigo um trabalho de luto que pode durar anos. O luto, neste caso
específico, explica Caruso (1984:47): "É uma tentativa de defesa contra o
vazio, a negação e a depauperação do Ego." Esse luto é semelhante ao vivido
pela morte de uma pessoa querida, representa a "morte real" de alguém que
possuía significado para o outro. Se antes o indivíduo encontrava-se em estado
de identificação e união com o parceiro, agora deve reaprender a viver sozinho.
Afinal, aquele deixou de fazer parte para "sempre" de sua vida, do seu dia-a-
dia.
A constatação dessa realidade é analisada por Caruso (1984:51) como
uma das sensações mais terríveis que o homem pode sofrer, conforme diz no
seguinte relato: "Nunca mais dormirei ao calor de um corpo! Nunca mais:
quanto frio! Quando me dei conta disso, pensei que fosse morrer". Apresenta-
se aí um outro sentimento vivenciado por quem está separado e, na visão do
autor um dos mais preocupantes, a vivência de morte: morte do outro em
nossa consciência e a nossa morte na consciência do outro:
"É brutal o sofrimento de se ver morrendo no psiquismo do outro e ver o outro morrendo dentro de nós. Isto certamente não se dá da noite para o dia. O certo é que no outro são depositadas diversas expectativas, introjetado um ideal de parceiro, acreditando-se na união total (...) Desfazer-se de tudo isto não é simples e leva tempo. Muitas vezes os indivíduos chegam a desejar por um momento a verdadeira morte do outro como se isto pudesse fazer desaparecer todo o
48
sentimento de perda, de fracasso, de abandono, decorrente da separação: Se você já não existisse eu estaria íntegro (curado); assim, pois o mesmo se diga de mim para você” (CARUSO, 1984:52).
Como em todo luto, um importante remédio é o tempo. Tempo para se
refazer, para se acostumar com a falta do outro, com a perda do outro e
novamente encontrar uma fusão (do Ego), se redescobrir, se re-inventar.
Tempo para que possamos nos achar em meio aos escombros e entender que
a vida segue em frente e temos que recomeçar.
4.2. O Final da Infância: a Difícil Separação dos P ais
Podemos analisar essa transição como a lagarta que passará a ser
borboleta. Enquanto lagarta, totalmente protegida em seu casulo e que ainda
não se sabe borboleta, não precisa “plasmar” nada. Tudo o que necessita está
ali no seu “habitat”. Não precisa temer os colecionadores, nem os devoradores
de borboletas, muito menos saber se voará alto ou baixo, se tornará uma
borboleta bela e formosa, muito menos se será apreciada por outras ou outros
insetos enquanto borboleta.
Para Viorst, o processo de afastamento começa com o esforço para sair
do colo da mãe, depois ficar de pé, depois ir para outras salas da casa,
passando das imagens, sons e cheiros da vida em família para os estudos,
tarefas e brincadeiras do período da latência. Depois na puberdade, na praia
de um mar turbulento, onde ela percebe com clareza que partir pode significar
afogamento. Ou ainda, segundo a autora, o assassinato:
“Na verdade, existe a noção de que o fato de afirmar o direito a uma existência separada pode inconscientemente significar que estamos matando nossos pais, e que assim, na maioria dos casos – talvez em todos, especialmente no caso de pais possessivos – forma-se um certo grau de sentimento de culpa pela separação. Foi colocado também que a culpa pela separação é adequada, que crescer é uma forma de homicídio , e que assumir a responsabilidade pela própria vida e pelo
49
modo de conduzi-la, dentro da realidade psíquica, corresponde a assassinar os pais’ (..) O assassinato metafórico é apenas um dos problemas da adolescência, quando o corpo e a mente começam a separar-se, quando o estado normal do adolescente é ás vezes dificilmente diferenciado do ‘estado de insanidade’, quando o desenvolvimento normal – exige a perda, o abandono, a desistência de tudo” (VIORST, 2005:151).
Na adolescência, o corpo começa a ser estimulado por hormônios, há o
aumento das partes sexuais, aparecem os pêlos. A menstruação surge e com
ela a menina é elevada à categoria de mulher, capaz de “fazer bebês”. Há
mudança na altura e no peso, na forma e na pele, na voz e nos odores. A cada
manhã pode ser encontrado algo de novo no corpo.
As transformações são incontroláveis e irreprimíveis na adolescência –
mudanças não só no corpo, mas também na mente. Na viagem em direção à
adolescência, a normalidade é definida como um estado de desarmonia. Para
Viorst, essa desarmonia não é constante, nem mesmo visível: “muitas vezes,
na verdade, é silenciosa e secreta.” Apenas os conflitos e mudanças bruscas
no espírito é que se tornam escandalosos, barulhentos e excessivamente
exagerados.
O adolescente que age normalmente, não é um adolescente normal.
Viorst ao citar Ana Freud concorda e esclarece essa observação:
“[...] que é normal para o adolescente comportar-se durante um considerável período de tempo de modo imprevisível e inconsistente: lutar contra os impulsos e aceitá-los; livrar-se deles e ser dominado por eles; amar os pais e odiá-los; revoltar-se contra eles e depender deles; sentir-se profundamente envergonhado em reconhecer a mãe na frente dos amigos e, inesperadamente, desejar ter uma conversa íntima com ela; esforçar-se para imitar e se identificar com outras pessoas enquanto procura incessantemente a própria identidade; ser mais idealista, artístico, generoso e desprendido do que jamais será pelo resto da vida, mas também o oposto: egocêntrico, egoísta, calculista” (VIORST, 2008:154).
Em outras etapas, essas mudanças extremistas seriam consideradas
altamente anormais. Na adolescência, elas significam que é necessário um
50
tempo para que se faça o ajuste e possa aparecer a estrutura adulta da
personalidade.
Erikson citado por Viorst (2008:155) vê nessa crise, a luta para nos
tornarmos pessoas completas por direito, e isso só se consegue por meio da
unificação – uma síntese interior – do que fomos e do que esperamos ser: da
nossa identidade sexual (que é mais ampla que o gênero); das partes ética,
étnica, ocupacional e social de nós mesmos; de novas identificações com
companheiros da mesma idade e pessoas adultas especiais fora da família;
das escolhas e dos sonhos.
“Embora identificação e formação da identidade não
terminem no fim da adolescência, a continuação do
crescimento e do desenvolvimento será baseada na resposta
de quem-sou–eu na adolescência” (VIORST,2008:155).
Para a autora, o período de adolescência, da puberdade até mais
ou menos os dezoito anos, é relativamente marcado pelos seguintes fatos
principais:
1. No começo da adolescência, há preocupações com as
alterações físicas da puberdade;
2. No meio da adolescência há a luta do quem-sou-eu e a
procura, fora de casa, do amor sexual;
3. No fim da adolescência há um maior abrandamento da
consciência, e a inclusão de valores e compromissos
relacionados com nosso lugar no vasto mundo.
Todas as etapas vivenciadas até o fim da adolescência são
atravessadas pelo luto de uma coleção enorme das perdas sentidas e, muitas
vezes, incompreendidas, que devem ser incorporadas. Perdas novas e
necessárias para que haja realmente a separação dos pais. Essa perda da
união e a separação são sempre muito assustadoras e tristes.
51
Finalmente o casulo se abre e perde-se o eu criança. Perde-se aquele
corpo que antes se conhecia, a inocência que trazia certa segurança, e diante
de nós surgem as verdades dolorosas do mundo nos chamando, pedindo que
cresçamos, que assumamos responsabilidades. Como acontece com todas as
perdas, essa perda precisa ser lamentada, sentida, chorada para que depois
possamos adquirir a tão propagada liberdade emocional e maturidade para,
então, sermos lançados ao amor, ao trabalho e inseridos na comunidade
adulta:
“Afirma-se que os adolescentes, nesse estágio de
desistência, experimentam ‘uma intensidade de sofrimento
desconhecida nas fases anteriores’.. É quando compreendem
afinal o significado do transitório. Assim, sentem saudade do
passado, da ‘Idade de Ouro’, que nunca mais vai voltar”
(VIORST, 2008:157).
O reconhecimento do fim definitivo da infância, da natureza obrigatória
dos compromissos, da limitação definitiva da própria existência do indivíduo,
cria uma espécie de pânico, de sensação de urgência, de perigo, de medo.
Para se evitar isso, muitos adolescentes procuram continuar uma fase
transitória de desenvolvimento chamada de “adolescência prolongada”.
Para muitos adolescentes, crescer significa abrir mão de tudo: dos
sonhos, das coisas, das fantasias, da inocência. Significa formar-se na
faculdade, trabalhar, arrumar uma esposa, formar uma família, ter sucesso na
vida.
Chega um momento em que é preciso dar esse salto: assumir
responsabilidades, deixar o lugar seguro e saber que nunca mais se voltará a
ele, entrar para um mundo de equações inexatas, de amores contraditórios, de
desejos que nem sempre poderão ser satisfeitos. Haverá sempre o impossível
e o proibido. Mas saber fazer escolhas (a que menos fere), encontrar a
liberdade, saber quem se é e o que queremos nos tornar é parte fundamental
52
desse processo. Fazer escolhas e ser um adulto responsável não nos livrará
das dores, mas estaremos muito mais aptos a lidar com elas.
4.3. Velhice: ainda há Tempo para Viver
Enquanto escrevia o subtítulo deste capítulo me veio à mente um trecho
do poema de Carlos Drummond de Andrade: ...“Chegou um tempo em que não
adianta morrer (..) os ombros suportam o peso deste mundo”. Talvez tenha
feito uma associação do quanto demoramos para aprender algo sobre nós
mesmos e só entendemos esse tipo de lição quando atingimos a chamada
“percepção", uma espécie de “terceiro olho” ou de sabedoria que nos avisa
mesmo quando nada está explícito. Aquele sentimento que nos faz saber que
muito embora tenhamos que abrir mãos de alguns de nossos sonhos, pela
limitação imposta pela idade, pela própria capacidade ou incapacidade de
praticar a tolerância, pelas condições físicas e psíquicas que nos encontramos,
podemos olhar com ternura para o caminho que percorremos e nos
orgulharmos de ter feito o melhor que conseguimos em cada etapa.
A mudança importante que resulta de uma rebelião na meia-idade está
no modo como se percebe a vida. O conhecimento menos fantasiado daquilo
que realmente queremos, do que somos, no que nos transformamos no
decorrer do tempo, o que fizemos com os nossos sonhos e até mesmos como
caminhamos: lentamente. Já não precisamos nos apressar. Podemos
reconhecer e desfrutar com mais calma os bons momentos que a vida nos
proporciona. Valorizar os encontros, a família, um bom livro. Cada minuto! O
relógio faz agora uma contagem retroativa e quando pensamos um dia a mais
de vida, na verdade dizemos a nós mesmos: menos um dia. Ou melhor, mais
um tempo perdido no horizonte da juventude e mais um passo dado em direção
à velhice.
“Crescer e mudar na meia-idade pode significar
renovação, aceitação, ou fim de arranjos prévios. Mas seja qual
53
for a abordagem acolhida, a vida não será a mesma. Externa
ou internamente, os anos da meia-idade expressarão as
perdas e ganhos da crise da meia–idade” (VIORST, 2008:283).
Crescer e mudar na meia-idade pode significar, por exemplo, o desfazer
de um casamento. Agora, com os filhos crescidos, aquele relacionamento
amarelado, sem viço, pode ter um final. Até mesmo reencontrar um novo amor.
Crescer e mudar na meia-idade pode significar também o final daquele
emprego maçante e sem nenhum brilho. O caminho para uma ocupação com
menos rendimentos, mas com uma grande satisfação.
Crescer e mudar na meia-idade pode significar sair para trabalhar fora,
pode significar não mais trabalhar fora. Pode significar conhecer o que não se
conhece, avançar onde se recuou.
Roger Gould (1995) diz que na meia-idade aprendemos que, por melhor
que tenhamos nos tornado, vamos morrer. Finalmente, aprende-se que não
existe segurança lá fora. Abandona-se a crença infantil de que sendo bons
meninos ou meninas, sempre seremos protegidos e resguardados. Desastre e
morte descobre-se, então, atingem pecadores e santos, puros e impuros.
Já a velhice traz em si muitas perdas. Muitos demoram a aceitar essas
perdas. Perda da memória, perda da agilidade, perda de entes queridos.
Para muitas pessoas, inclusive para Simone de Beauvoir (1970),
envelhecer é a pior das desgraças, pior mesmo que a morte, pois com a
velhice vemos mutilado muito daquilo que fomos ou pensamos ser.
Para Ovídio (43 a.C), “Tempo é o grande destruidor, e velhice invejosa,
juntos, arruinais todas as coisas.”
Montaigne (2006) diz: “Nenhuma alma se vê, ou muito poucas, que, ao
envelhecer não adquira um cheiro azedo e bolorento.”
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Já para Gide (1924): “Há muito tempo deixei de existir. Preencho apenas
o espaço de alguém que todos imaginam ser.”
Chateaubriand (1850): “A velhice é um naufrágio”.
“A velhice”, diz De Beauvoir (1970), fazendo um resumo da evidência, “é
a paródia da vida.”
Mas não podemos negar que existem pessoas que ao envelhecer
conseguem fazer essa transição de uma maneira suave, sem muitos
assombros. Transformam a fase da velhice em algo que ainda “se tem muito
para aproveitar”, para reaprender. Fazem da velhice um rico acontecimento, de
visões esplêndidas, sem amarguras, sem ressentimentos, sem culpas e nem
arrependimentos. Continuam tendo alegria em viver.
No entanto, não existe uma maneira certa de viver a velhice como em
nenhuma outra etapa. Cada um a viverá a sua maneira. Muitas pessoas, ao
envelhecer, não é que se tornam amargas, rabugentas, amarguradas,
implicantes. Na verdade, elas já eram isso tudo. Só que, por algum motivo,
conseguiam refrear um pouco essa personalidade. Parece que a idade tira
essa obrigação delas e, então, elas se mostram.
Consideremos como exemplo, a bela “Advertência” de Jenny Joseph
(1997:16)
“Quando eu for velha vou usar roxo Com o chapéu vermelho que não combina e não fica bem em mim, E vou gastar minha pensão em conhaque e luvas de verão E sandálias de cetim e dizer que não tenho dinheiro para a manteiga. Vou me sentar na calçada quando ficar cansada E comer vorazmente amostras grátis nas lojas e apertar botões de alarme E passar minha bengala pelas grades de ferro dos parques E compensar a sobriedade de minha juventude. Vou sair na chuva de chinelos E colher as flores dos jardins dos outros E vou aprender a cuspir”.
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Para Viorst (2008:311), não há provas de que os velhos sejam
especialmente atormentados pela idéia da morte. Na verdade, talvez tenham
menos medo do que os jovens. Além disso, as condições da própria morte,
costuma-se dizer, os preocupa muito mais do que a morte propriamente dita.
Mas também temos que admitir que, independente do modo de morrer,
independente de como se dará a morte, chega-se a um momento em que é
necessário enfrentar a separação final, a definitiva. Não há como fugir da
morte.
Sêneca coloca bem essa questão, ressaltando que há vida na velhice e
que se pode encontrar encantos diferentes daqueles da juventude, mas não
menos significativos:
“De cada prazer, o melhor é o fim. É doce a idade
avançada, mas não ainda sob a decrepitude, e também eu
penso que o período extremo da vida tem os seus prazeres ou
ao menos, no lugar dos prazeres, não sentir mais necessidade
deles. Como é doce ter se cansado e abandonado os desejos!”
(SÊNECA, 2008:21).
Diz, ainda, que de “qualquer maneira é triste ter a morte diante dos
olhos”. E a morte tanto está nos olhos dos velhos quanto dos jovens. Mesmo
aquele que é velho ainda pode esperar pelo único dia de vida, ou quem sabe,
mais um dia. E por ser o único dia, pode se tornar o maior dia de toda sua vida.
Ao morrer, na verdade, seja na juventude, seja na velhice, o que morre é
o “eu”. Podemos chorar eternamente a morte de uma pessoa amada, mas a
nossa não podemos chorar. Da nossa morte, podemos dizer que é a ausência
de nós mesmos. É quando a cortina se fecha, o último ato acontece sem a
nossa presença.
56
4.4. Doença Grave: O luto em vida
A doença, quando chega, traz consigo a idéia da inevitabilidade da
morte e a fantasia do próprio corpo sem vida. Segundo Kreinheder (1990:27),
ao pensarmos no entorpecimento inerte da morte, nos damos conta de que, em
todo lugar, ao nosso redor e dentro de nós, acontece o surpreendentemente
milagre da vida. Por meio da doença, podemos perceber como o mundo é lindo
e com que tristeza tomamos conhecimento de que em breve não mais
desfrutaremos dessas maravilhas, de que o espírito da vida deixará nosso
corpo para sempre.
Segundo Platão (1996), sempre que alguém se depara com a
experiência da beleza original (uma experiência arquetípica) as “penas da
alma” ficam eriçadas. Como ele explicou antigamente, acreditava-se que a
alma tinha penas. O arrepio da pele seria o brotar das penas da alma.
É claro que ao depararmo-nos com a notícia de uma doença grave, seja
nossa, ou de alguém próximo, não temos ainda essa consciência. O primeiro
sentimento é o de um susto muito grande. Vamos morrer ou fulano morrerá?
Mas quando se aprende a elaborar o luto passo a passo, muito se aprende
com aquilo que o sofrimento tem a dizer.
Para Montoto (2002) mesmo não tendo sido educados para aprender
com a idéia da morte, ou do sofrimento:
“(...) quando alguém que amamos tem uma doença mortal - é hora de sair do casulo de proteção que a própria ignorância nos dá, da defesa de não querer ver, de fechar os olhos para que não seja realidade, encarar a realidade com a única finalidade de não acrescentar mais dores ás que o paciente tem” (MONTOTO, 2002:14)
Quando se descobre que alguém de nossa família está com uma
doença grave, vive-se um luto antecipatório, ou seja, um processo em que o
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paciente ou os familiares precisam realizar diante de uma morte iminente. As
reações de cada um são diferentes, mas o caminho é praticamente o mesmo
para todos.
Montoto (2002) citando Paulo da Fonseca (2001) mostra, por meio de
uma pesquisa, as várias etapas que acometem uma pessoa mediante a notícia
de uma doença grave própria ou de familiares. As fases são as seguintes:
Choque : Acontece quando se recebe a noticia da doença. Ocorre um
entorpecimento, uma confusão. As reações perante essa nova informação
podem variar desde uma apatia completa até a superatividade.
Negação: Acontece quando a pessoa demonstra não saber lidar com a
situação e se protege muito mais numa tentativa de continuar a viver como se
nada tivesse mudado. A pessoa pode preferir ficar isolada, ensimesmada,
calar-se, tornar-se reflexiva ou simplesmente apática. Neste caso, geralmente o
silêncio é um mecanismo que a pessoa encontra para não ter que se confrontar
com a realidade.
Ambivalência: é o momento em que a pessoa oscila entre a possibilidade de
vir perder alguém que ama e, ao mesmo tempo, se recusa a aceitar essa
possibilidade e começa a fazer planos para um futuro a longo prazo. Para o
pesquisador, muitas vezes esse mecanismo de defesa usado pelo paciente,
tem um efeito altamente positivo. O fato da pessoa sentir desejo de ir à luta
para ver seus planos realizados é um poderoso incentivo para fazê-la se
manter viva e lúcida.
Revolta : Esse é o sentimento mais comum. A pessoa fica com muita raiva,
ressentimento, com uma sensação de estar sendo castigada e acaba
proferindo protestos contra Deus, o Universo etc.
Negociação: Fica mais forte aquela questão já abordada antes: a
religiosidade; se a pessoa tem fé, ela começa a negociar com Deus ou com o
Universo a cura ou o adiamento da morte. Cada qual seguirá um ritual (o da
58
sua religião) para intensificar os resultados. Muitos fazem promessas; caso
consigam curar-se serão pessoas melhores, farão as pazes com fulano, com
cicrano.
Depressão : É o momento em que a tristeza profunda toma conta dos
familiares ou do paciente. Esse sentimento é o que mais pode retardar o
tratamento da pessoa acometida de uma doença grave e também em nada
ajudará se forem as pessoas da família acometidas de depressão. Muito pelo
contrário, criar-se-á um problema maior. A depressão faz com que o paciente
resista menos ao calvário do tratamento e morra antes, porque a depressão
atua como inibidor daquela mola propulsora que dá ao paciente uma firme
vontade de sarar, de se recuperar, de viver, de continuar lutando para
melhorar.
Montoto (2002) menciona que o ponto mais forte em nossa sociedade,
tratando dos itens apresentados, é a negação. Quando as pessoas negam o
que está acontecendo, elas se tornam mais frágeis. É como se uma venda
tampasse os olhos para que não vejam o que se passa. E tudo aquilo que se
oculta fica no escombro, nunca vem à superfície para que possa ser lapidado,
trabalhado, conhecido.
Winnicott (1982) assegura que não existe uma maneira certa de reagir.
Não dá para apostar em uma única reação ou mesmo saber ao certo qual será
a seqüência lógica. Cada qual reagirá do seu jeito, de acordo com a sua
cultura, com sua religiosidade ou com sua pouca fé. Se as pessoas começam
a se comportarem como se o “doente” fosse um pobre coitado, um condenado
à morte ficará mais difícil ajudá-lo. Muitas pessoas acabam antecipando seu
“momento de morrer” ou abandonando o tratamento para que as pessoas que
estão à sua volta parem de sofrer.
Montoto ressalta a importância dessa questão ser encarada de frente,
com toda a honestidade:
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“...não façamos o péssimo negócio de esconder a cabeça ‘avestruzmente’ por uns tempos e depois carregar a culpa pelo resto de nossas vidas por não termos agido segundo o que se espera de quem ama. Apostemos na luta pela vida. Talvez estejamos necessitando aprender mais com a dor e decifrar a mensagem que ela tem para nos dizer”.(MONTOTO, 2002:27)
Cada dor, cada doença, cada sintoma tem um componente psicológico.
Esse componente é a parte simbólica, a maneira como nossa imaginação
percebe a doença, o sintoma. Geralmente, é muito difícil entender o conteúdo
simbólico, mas ele esteve e estará sempre presente, antes e durante a doença.
Quando as pessoas estão doentes, querem ficar boas. Ponto final. Não
querem mudar a personalidade, as atitudes ou qualquer de seus hábitos.
Kreinheder elabora essa questão ao colocar:
“Considere, por exemplo, fumantes com enfisema, que não conseguem parar de fumar ou alcoólatras com problemas de fígado, que não conseguem parar de beber. Se as pessoas não podem parar quando a causa e o efeito são tão óbvios, o que se pode esperar quando os elos são mais sutis?” (KREINHEDER,1997:55).
Em sua profunda e sábia investigação sobre os símbolos ou sobre
os problemas psicológicos que levam uma pessoa a ficar doente gravemente,
Kreinheder (1993), lembrando o filósofo Kierkegaard (1934), mostra que para
nos livrarmos do desespero, precisamos nos livrar do nosso eu – do eu que
nos desespera. Mas, segundo o mesmo filósofo, livrar-se do eu também é
motivo de desespero, pois significa deixarmos de ser nós mesmos. Esse é um
conceito repetidamente sugerido pelos pacientes de câncer. Eles sentem que
não podem mais ser eles mesmos e, portanto, não amados e solitários – ou,
que podem desistir de si mesmos transformando-se em outra pessoa e, assim,
serem amados. Para muitos deles, esses se tornam os únicos caminhos
possíveis.
Leshan ilustra este processo em seu trabalho realizado como
psicoterapeuta de doentes terminais:
60
“Praticamente em todos os meus pacientes encontrei alguma manifestação desse dilema. Todos sentiam, com diferentes intensidades, que para conseguir o que necessitavam, algo que trouxesse significado às suas vidas, precisavam desistir de si mesmos e se transformar em outra pessoa. Mesmo cogitar dessa solução, ocasionava o desespero.”(LESHAN, 1976:45)
Na medida em que o indivíduo aprende a reconhecer quem ele é e tenta
viver uma vida honesta e plenamente à sua maneira, há uma redução dos
sintomas, tanto nos aspectos psicológicos quanto nos aspectos físicos de seu
ser. Quanto mais expressa seu eu básico de forma orgânica e natural, mais
saudável tende a se tornar em todos os níveis. Quanto menos for ele mesmo,
maior a tensão e a tendência à doença. Em Dr. Jivago, Boris Pasternak
escreveu:
“A maior parte das pessoas precisa viver uma vida de duplicidade constante e sistemática. Sua saúde fatalmente será afetada se você dia após dia, disser o contrário daquilo que sente, se rastejar diante daquilo que não gosta e exultar com coisas que lhe trazem apenas infelicidade. Nosso sistema nervoso não é apenas ficção, é uma parte de nosso corpo físico, e nossa alma existe no espaço e está dentro de nós, como os dentes estão dentro da boca. Ela não pode ser eternamente violada, com impunidade” (KREINHEDER, 1993:91).
Pacientes são diferentes e, como são diferentes, também estão
buscando estilos de vida diferentes. Da mesma maneira que cada qual reage a
uma notícia de “estar doente”, assim também reagem na questão do
tratamento, na questão da elaboração do seu luto interno. É preciso ajudá-los a
descobrir quem “vai morrer” e quem ele quer salvar. Se for aquele que acredita
ser ou é o ser que ele está pensando em se tornar? Esse é o grande desafio de
médicos, familiares e profissionais ligados à Saúde, psicoterapeutas,
psicanalistas e quem quer ajudar um paciente.
Podemos comparar o universo do paciente com dor crônica com o
universo dos pesadelos. Para Leshan (1997), existem três componentes
estruturais básicos nos pesadelos:
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1. Coisas terríveis estão acontecendo e coisas piores estão na iminência
de acontecer;
2. Forças externas estão no controle e nossa vontade é inútil;
3. Não existe limite de tempo e não podemos prever quando tudo
terminará.
Compreender que o paciente de câncer, por exemplo, vive um pesadelo
acordado e transmitir-lhe essa compreensão, muitas vezes, pode ajudá-lo a se
tornar mais resistente à dor.
Quando um paciente com câncer descobre que pode ser amado como
ele é, torna a dor mais aceitável e, com sua nova força, torna-se capaz de
resistir a ela.
Em seu relato sobre a questão de se saber com um câncer muito raro,
quase sem nenhuma esperança de cura, Lima me escreveu:
“Aprendi que se pode ser amada. Mandei um casamento de brincadeirinha embora e deixei meu coração aberto para um amor verdadeiro entrar. E ele entrou. E me aceitou com todas as limitações que tenho. Sou desastrada! Uso talheres invertidos. A quimioterapia me deixou sem muita coordenação e só consigo usar a faca com a mão esquerda. E mesmo assim freqüentamos bons restaurantes. De vez em quando deliro por causa das febres e ele tem paciência, cuida de mim como só um companheiro de verdade sabe cuidar”.
“Sua dor”, diz Kahlil Gibran, em O Profeta, “é o rompimento da concha
que envolve sua compreensão”
Autocontrole emocional. Idealismo. Responsabilidade. Aprendemos que
todas essas qualidades são virtudes e não há dúvida que são quando surgem
em um contexto apropriado. Mas, até uma virtude pode ser levada a extremos.
Se a responsabilidade e o autocontrole forem rigidamente mantidos em
detrimento da expressão de sentimentos verdadeiros, uma parte do eu é
negada. Quando as tensões não são liberadas e a raiva é reprimida, podem
tornar-se mais fortes. Sabemos que isso acontece no desenvolvimento de
62
úlceras. Será que podemos negar a possibilidade de que isso também
aconteça no desenvolvimento do câncer?
Para Leshan (1994) é certo que precisamos ser responsáveis em
relação às pessoas. Mas também, precisamos ser responsáveis em relação a
nós mesmos. Para ilustrar a questão, o autor usa o exemplo do delinqüente
juvenil, que ao se recusar a aceitar sua responsabilidade perante os demais,
manifesta sua raiva por meio de atitudes anti-sociais. Mas será que a pessoa
cujo senso de responsabilidade em relação aos outros elimina o senso de
responsabilidade em relação a ela mesma não poderia descarregar a raiva em
si mesma? Em seu livro How Will Tomorrow (1997:32), o Dr. Samuel
Silverman, da Harvard Medical School, observa que, quando a raiva, a tristeza
ou a preocupação não encontram uma válvula de escape, acabam afetando o
corpo. “Se houver uma tendência latente para desenvolver um câncer”,
escreve, “a incapacidade para expressar seus sentimentos irá atingir o corpo
em algum ponto vulnerável.”
Os pesquisadores acreditam que as células cancerígenas estão quase
que constantemente presentes em todos nós, mas que, em circunstâncias
normais, nosso “sistema imunológico contra o câncer” encontra e destrói essas
células anormais, impedindo seu crescimento ou disseminação. A questão é
saber quais as circunstâncias anormais que podem impedir o sistema
imunológico de realizar seu trabalho. Qual mecanismo físico do corpo é
suficientemente influenciado pelos fatores psicológicos, formando uma ligação
entre as emoções e o colapso do sistema imunológico contra o câncer?
Toda doença é uma investida violenta contra o que somos. Por alguma
razão, ficamos tão alienados do todo da vida que se faz necessário uma
invasão radical para romper nossa estrutura enrijecida. Precisamos ser
enfraquecidos e esmagados até que, finalmente, fiquemos tão amolecidos e
liquefeitos que o espírito da vida possa nos inundar novamente. Estar doente é
estar desligado, isolado. Toda doença é como uma força invasora que tenta
destruir nossa estrutura rígida e nos torna mais inteiros.
63
“Todo sintoma invasor traz consigo um conteúdo simbólico e é tarefa da
alma se expandir para que possa agregar os símbolos e as imagens
invasores.” (Kreinheder, 1993:40). Isso pode ser uma batalha mas, em última
análise, não é uma luta e sim um processo de libertação e expansão à medida
que ultrapassamos nossos limites anteriores.
Leshan (1994), em suas pesquisas com doentes de câncer aborda
essas questões e ressalta que o paciente realmente deseja é preencher aquela
parte de si mesmo que foi rejeitada, cujos desejos e impulsos são considerados
inaceitáveis. Por mais difíceis que sejam as buscas, as interrogações, o único
jeito de ajudar uma pessoa que está passando por esses momentos de crises é
ajudá-la a se reintegrar. A encontrar o seu “eu”.
Para ilustrar esse posicionamento, Kreinheder compara esse momento
com o encontro da própria alma:
“A alma vive no limite exato do milagre. Quando encontro minha alma, mesmo que seja de vez em quando e apenas por um momento, nesse exato momento sinto que aconteceu um milagre. A alma é a minha parte mais verdadeira. E diria mais, a parte de todos nós que se assemelha mais fielmente à imagem de Deus. Se isso for verdade, a experiência da alma é também a experiência de Deus, como se a própria alma fizesse contato e se unisse com Deus. O que é uma idéia extraordinária – a alma em si é onde o humano e o divino se encontram e se tocam. Além disso, se estamos presentes e vivemos no plano da alma, somos fortes e saudáveis tanto física como emocionalmente, até onde é possível para um ser humano” (KREINHEDER, 1993:30).
A doença não deixará mais que a pessoa viva como antes. De um jeito
ou de outro, há uma transformação. A doença vem para destruir o que
somos ou pensamos ser. “Os sintomas são o pranto do corpo”, alertando-o
de que já basta. Os sintomas vão quebrá-lo exatamente nos lugares onde
mais se conteve.
Embora no momento de dor, de sofrimento, não tenhamos capacidade
para perceber, nunca recebemos mais do que podemos agüentar. Mesmo que
64
isso signifique morrer. Chega uma hora em que podemos lidar com a morte.
Para Kreinheder, “o objetivo da cura não é permanecer vivo, mas sim caminhar
em direção à plenitude”. A cura pode acontecer na morte, morte como cura
final. “O que quer que chegue a nós é nosso e podemos enfrentá-lo”.
65
5. O LUTO COMO PROPULSOR DE VIDA
Já foi dito anteriormente que todo sofrimento tem muito a nos ensinar,
embora tenhamos imensa dificuldade em ouvir o que o sofrimento tem a nos
dizer.
Por meio de estudiosos do assunto, também pudemos perceber que
toda fase de transição traz em si uma dor muito grande, uma sensação de
melancolia, tristeza, de descida às profundezas. Depois de enfrentarmos um
luto, jamais retornamos ao lugar de onde saímos. Algo em nós se transforma.
Podemos ficar mais fortalecidos ou amargurados, mas nunca mais os mesmos.
O nosso “eu” transformado terá que inventar outra história, terá que se
reinventar, terá que reencontrar as partes fragmentadas para que numa sutura,
num remendo (nem sempre bem feito) possa seguir em frente.
Quem tem que conviver por um motivo de doença grave com a idéia
constante da morte, tem que aprender a fazer da idéia de morrer uma forma
nova e intensa de viver. Quem não tem capacidade de morrer, também não
tem capacidade de viver. Porque, antagonicamente, esses caminhos são
cruzados. Caminhar pela vida, significa indubitavelmente que estamos indo ao
encontro da morte.
O luto, dependendo de como é elaborado, pode ser um caminho para
chegar à dura verdade de quem realmente somos. No sofrimento nos
despreocupamos com a nossa “máscara”, com a imagem que criamos, com o
que os outros pensam, com a fortaleza que acreditávamos ser e vamos nos
refugiar no único lugar seguro que temos: nós mesmos. E é de lá que virá a
força, a coragem para continuarmos a viver, para transformarmos a dor em luta
pela vida.
Não há como não temer a morte, seja a nossa, de nossos parentes,
amigos, conhecidos e até mesmo dos nossos animais de estimação. Tememos
66
tudo que não conhecemos. Tudo que não podemos ter o controle. Tudo que
não podemos mudar. Temos medo até daquilo que duvidamos: que podemos
morrer e depois de mortos termos que pagar aquela duplicata que assinamos
quando nascemos e que conhecemos por pecados. Faz parte da cultura,
mesmo para aqueles que juram não acreditar que exista alguma coisa depois
da morte. Que se morre e pronto!
Cada separação é um contato com a morte. Quantos já ouviram de
pessoas a beira do leito de morte a frase “já morri tanto nesta vida que agora
só me resta partir.” Mas falar da morte ainda é um tabu em nosso meio, onde
as pessoas evitam a proximidade e mesmo o assunto para não serem
contagiadas pela energia ruim que existe em torno do tema ou, simplesmente,
porque não conseguem entrar em contato com essa realidade.
Na verdade, esses tabus que nos impedem de falar da morte e as
mentiras e enganos que existem em torno do assunto têm sido questionados
nos últimos anos por autores como Montoto (2002), Koury (2003) e Elisabeth
Kluber-Ross (1997), que têm incentivado o diálogo com os doentes terminais.
Kluber-Ross (1997) descreve o enorme alívio dos pacientes que estão
morrendo, quando são convidados a compartilhar seus temores e suas
necessidades. Segundo ela, esses diálogos podem facilitar a jornada para a
morte.
Não podemos ensinar ninguém como é que se morre, mas podemos
estar por perto e ajudar na fase de transição, na superação ou na assimilação
dos estágios já abordados.
Voltando à afirmação que morremos como vivemos, Viorst (1998:286)
faz uma observação a respeito: morremos de acordo com o que somos,
morremos tal qual vivemos: o corajoso morre com coragem. As pessoas
austeras se submetem sem protesto a essa necessidade final. Os que negaram
a realidade continuarão negando até a morte. Os que cultuam certa
independência passarão por esse processo com certa vergonha por estar
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dependendo de outras pessoas. E para aqueles que a separação sempre foi
um terror, a separação última é o maior de todos os terrores.
Mas a questão principal deste capítulo é abordar como algumas
pessoas, diante de um sofrimento atroz, de uma perda irreparável ou mesmo
da convivência com uma doença grave conseguem transforma a dor em um
processo de crescimento e mudança. Conseguem avaliar e reavaliar a vida, os
caminhos percorridos, os laços afetivos construídos, as experiências
vivenciadas e, com maturidade, buscar novas aprendizagens, certamente, essa
mudança não fará com que a dor desapareça e sim “doa até onde tem que
doer”, para depois poder olhar para o que sobrou ou para quem sobrou e
recriar uma nova vida. E com um novo olhar aproveitar mais intensamente
cada momento dessa nova vida.
5.1. Sublimação : um Caminho para Retomar a Vida
Perder é o preço que pagamos por estarmos vivos. Essa é a moeda de
troca. Quem muito vive, perde muito. Também é o caminho mais curto para
recolhermos os aprendizados e para se chegar a um crescimento interior.
Depois de cada perda, podemos sair aniquilados, ou fortalecidos. O que vai
fazer a diferença nessa travessia é a nossa visão sobre os acontecimentos.
Podemos expressar o nosso sentimento de dor em uma canção, em um
poema, em uma obra de arte, em um livro. Podemos também ficar
amargurados pelo resto da vida, mas quem consegue sublimar essa dor pode
até criar algo para ajudar os que sofrem da mesma dor.
Na Física, a palavra “sublimar” significa aquilo que se transforma da
fase sólida para o vapor. Na Psicanálise ela é definida como um processo
inconsciente que consiste em desviar a energia da libido para novos objetos,
aquilo que tem um caráter útil.
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Então sublimar nosso sofrimento é transformar nosso luto em algo que
seja útil a outras pessoas e nós mesmos. Usar o resto de energia que sobrou
para transmutar uma situação, mudar a vida de alguém. Ou tomar consciência
de uma habilidade, dom ou algo que antes nem sabíamos ter.
Um exemplo de sublimação pode ser o de uma pessoa que teve as
pernas saudáveis durante muito tempo e não tinha nenhum interesse em
praticar esportes, ou qualquer outra atividade. Em circunstância trágica ela
perde essas pernas e ao descentralizar a atenção naquele membro que já não
mais existe, consegue se superar participando de atividades físicas em uma
cadeira de rodas. A perna já não está mais lá, mas algo a substitui. A força
para se vencer uma Paraolimpíada vem daquele membro que foi amputado.
Pereira aborda a questão em seu livro Frente e Verso mostrando que há
uma força oculta no ser humano:
“Somos o que pensamos. Somos o que comemos, o
que vestimos, como agimos. Somos uma força gigantesca, que
só aflora quando realmente desejamos, mais do que tudo,
despertar o gigante que há em nós” (PEREIRA, 2002:45).
A mesma autora fala da força que algumas pessoas encontram em meio
a tanto sofrimento que faz com que muitas delas consigam superar as
tragédias:
“Algumas mães, ao perderem seus filhos, transformaram-
se em algo sombrio, triste pela vida afora (...) outras,
agarrando-se a uma força que outrora até parecia inexistente,
transformaram-se em heroínas das causas alheias e
transmutam a própria dor em benesses para a humanidade”
(2002:45).
Nesse contexto, podemos tomar como exemplo a mãe do cantor Cazuza
que ao perder seu único filho, fez de sua morte uma batalha para salvar outras
vidas.
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Depois que o filho se transformou no Cazuza, ídolo da juventude
brasileira dos anos 1980 e morreu de Aids em 1990, ela levou à frente o projeto
da Fundação Viva Cazuza, uma das primeiras entidades civis no Brasil voltada
ao apoio a soropositivos. Hoje, a Fundação abriga 22 crianças com idade entre
três e quinze anos. Mantém um site educativo e informativo sobre Aids com
objetivo de trazer informações científicas atualizadas sobre o tema em
português. Desenvolve um trabalho de apoio social para 120 pacientes adultos
em acompanhamento ambulatorial no Hospital da Lagoa e no Instituto Estadual
de Infectologia São Sebastião, desenvolve projetos de Prevenção à Aids em
escolas e empresas; produziu e distribui a cartilha “Uma babá mais que
perfeita” para profissionais que trabalham com portadores do vírus da Aids.3
Podemos, então, pensar que a sublimação é uma busca alternativa de
satisfação da pulsão num alvo de natureza não sexual diferente do alvo natural
da pulsão. Enquanto o sintoma representa o retorno do recalcado, a
sublimação permite ao sujeito orientar parte de sua energia erótica e mesmo
agressiva para objetos e/ou atividades socialmente valorizadas, especialmente
atividades artísticas e intelectuais.
Como a sublimação poderia libertar o paciente melancólico de seu
aprisionamento psíquico? Como seria possível uma reorganização dessa
dinâmica numa tentativa de minimizar a tensão?
Para Laplanche (1989), na origem da dinâmica psíquica presente na
melancolia, encontra-se sempre um eu frágil, insuficientemente investido pela
figura materna em sua fase de constituição cujo duplo especular aparece como
um vazio. Este déficit originário será ilusoriamente compensado pela presença,
no objeto eleito, de um ou mais traços idealizados que funcionarão como uma
prótese egóica ou uma “suplência imaginária” do sujeito. Enquanto esta
identificação se mantém, o sujeito sente-se possuidor dos atributos (que na
realidade pertencem ao objeto amado) que lhe conferem uma imagem
3 Site da Sociedade Viva Cazuza: www.vivacazuza. com.br. consultado em 06/7/2009.
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idealizada de si. Nesta situação, o eu que é frágil, sente-se forte, compensado
em sua insuficiência narcísica e mais próximo ao ideal de eu, podendo, assim,
contar com uma atitude benevolente do super eu.
Como disse Lacan, a melancolia não está assentada sobre uma
representação, mas, justamente corresponde a um furo no simbólico. Trata-se
de um vazio que a sublimação é capaz de fazer representar por meio do objeto
criado, oferecendo ao sujeito a ilusão de um domínio sobre este vazio que se
encontra no âmago de nossa humanidade, ao qual o melancólico permanece
fixado de maneira mortífera.
A sublimação também proporciona ao sujeito o reconhecimento
narcísico do qual carece, necessário ao incremento de sua auto-estima.
Satisfeito consigo mesmo, o eu se aproxima de um ideal acolhedor e recebe os
aplausos do super eu, contribuindo para a cicatrização do ferimento narcísico.
Para Násio (1997), esse momento põe, simultaneamente, em circulação
a libido que estava retida e submetida à pulsão de morte e o sujeito contempla
a esperança de libertar-se de seu aprisionamento psíquico. O começo da
subida. Se o luto coloca a pessoa no patamar mais baixo da existência, a
sublimação aqui faz o papel de degrau. Ou um espelho, cuja imagem já não
está mais invertida, nem mesmo de ponta cabeça. No meio da vista
embaralhada da melancolia ou da tristeza aguda, o sujeito já consegue agora
se olhar. Pode até não saber ainda em que lugar o seu “eu” se encontra, mas
consegue começar a se ver.
Devemos compreender que a sublimação não está ao alcance de todos.
Entretanto, se levarmos em conta que a satisfação via sublimação pode ser
obtida por meio de qualquer ato que proporcione ao sujeito um prazer de
natureza estética, esta possibilidade torna-se mais viável.
Para Quinet (2002:151), “a passagem da impotência, que corresponde à
falência do desejo, para a impossibilidade, indicada pelos limites estabelecidos
pela castração, marca a saída da depressão.” Trata-se da passagem do “eu
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não dou conta” do deprimido, para “isto não é possível”, da castração assumida
pelo sujeito. Em resumo, trata-se de lutar pelo que é possível fazer e não se
deixar levar pelo pessimismo e pelo desânimo e, por outro lado, admitir e
aceitar os limites que a vida impõe.
Para integrarmos nossos sonhos e desejos de vida, mesmo diante do
mistério da morte, que se mostra como caos em nossas vidas, é que podemos
contar com a imaginação e fazer ajustes criativos. A imaginação articulada à
criatividade muda a forma de perceber a realidade. Para que isto ocorra de
forma saudável e adequada, o enlutado precisa confiar nos seus objetos
internalizados. O sofrimento da perda pode estimular sublimações que
contribuem para elaboração do luto. Temos pessoas que, após um luto intenso,
tornam-se mais produtivas, mais tolerantes em suas relações com os demais.
Assim como também outros produzem de forma criativa para se aliviar,
desenvolvendo muitas vezes habilidades desconhecidas até o momento,
deparando-se com a criatividade expressa na pinturas, obras de arte etc.
Sendo experiências prazerosas, encontram maneiras de enfrentar o desprazer
e suas frustrações, podendo assim criar perspectivas de renovação, utilizando
suas habilidades manuais como maneira de encontrar sentido na vida.
Podemos considerar a imaginação como o elo entre a fantasia e a realidade. “É
particularmente rica na medida em que se pode ‘decolar e plantar’ na realidade
interior e depois aterrizar no chão firme da realidade exterior, do vivido”
(TAVARES, 2001: 28).
“A dor de perder não precisa ser sinônimo de amargura. É algo que nos atinge, nos deixa feridos, abatidos, e não tem, necessariamente, que nos derrotar. A dor também oferece a oportunidade de mergulho interior, levando à revisão de valores, projetos e propósito de vida. É um esforço, uma luta, aceitar o que não podemos mudar. A grande ultrapassagem é desenvolver a capacidade de transformação dentro de nós mesmos, sem nos trapacearmos. A transformação se dá a partir de uma reflexão consciente. É o reconhecimento da dor que nos direciona para a busca da aceitação. Enquanto não aceitamos a realidade, ficamos impotentes para agir. Deixar de aceitar a realidade é negar que podemos fazer escolhas que façam sentido” (TAVARES, 2000:35).
72
Ao trazermos aqui a discussão que se faz em torno da sublimação,
buscamos apenas desenvolver o entendimento dos mecanismos de reparação
que fazem com que uma energia libidinal primitiva, dessexualizada, possa se
deslocar para objetos e finalidades valorizados social e narcisisticamente. A
sublimação é um processo de transformação fecundo da economia psíquica e
Freud, ao discuti-la, a propósito da obra de Leonardo da Vinci, considera:
“A observação da vida cotidiana dos seres humanos nos mostra que a maioria consegue guiar para sua atividade profissional porções muito consideráveis de suas forças pulsionais sexuais, e pulsão sexual é particularmente idônea para prestar estas contribuições, pois está dotada de uma atitude para a sublimação; ou seja, que é capaz de permutar sua meta imediata por outros que possam ser mais estimadas e não sexuais.” (FREUD,1974:122)
A construção da alma não é fácil. Todo o material adjacente que está por
trás dos sintomas é difícil e perturbador, muitas vezes, segundo Kreinheder,
“acima da resistência humana.” É onde reside o começo ou pelo menos de
onde recomeçaremos. Só conseguimos suportar tudo se tivermos uma visão,
se acreditamos que tudo aquilo nos conduzirá a algum lugar. “É a busca da
alma que nos inspira e nos dá condição de enfrentar o perigo e a adversidade”.
Porque, em algum lugar, em alguma época, experienciamos a alma e, sua
lembrança, nos encorajará a ir em frente nos piores momentos.
Scheweitzer (1995) cita que “o homem tem que decidir sobre a atitude
perante a sua vontade de viver.” Pode negar essa vontade. Pode transformá-la
numa vontade de não viver, como é o caso na ideologia hindu e em todas as
ideologias pessimistas. “Neste caso, ele estabelece uma contradição entre ela
e si mesmo”.
Para ele, quando o homem afirma sua vontade de viver, ele procede de
maneira natural e verdadeira.
“A afirmação da vida é o ato espiritual através
do qual ele deixa de vegetar simplesmente e começa a
entregar-se á sua vida como reverência para imprimir-lhe o
73
verdadeiro valor. A afirmação da vida é o aprofundamento, é
espiritualização e é um crescente impulso da vontade de viver”
(SCHWEITZER, 1995:126).
5.2. Os Sobreviventes do Luto
Superar um momento de luto, como já foi dito exaustivamente, não é um
processo fácil. Diante das nossas dores ou mesmo diante das dores dos outros
nos sentimos perplexos, sem saídas. É como dizem alguns autores: uma
passagem pelas trevas, um olhar na escuridão e nem sequer saber se
direcionar em busca de um flash, de uma pequenina luz que venha a clarear
nosso interior e nos nortear ao encontro de ajuda.
Também, como já foi abordado, toda perda de alguém ou de algo é, na
verdade, a perda de nós mesmos. É quando temos que reinventar uma nova
maneira de nos ver. Reinventar uma nova maneira de viver. É quando temos
que ressurgir do nada que ficou em nossas vidas. É um ressurgir das cinzas,
se reinventar, remexer nos nossos lixos e garimpar nosso lodo. Isso nunca é
algo agradável de fazer. Um mergulho sem proteção ao fundo mais sagrado de
nós mesmos. E ter a coragem de olharmos para nós mesmos, tentarmos nos
encontrar, repensar os nossos caminhos e valores.
No entanto, se desejamos de fato sairmos do luto, do abismo, das
trevas, temos que percorrer todos os corredores escuros, confrontarmo-nos
com nossos fantasmas arrastadores de correntes e fazer uma escolha, uma
nova opção pela vida.
De uma maneira ou de outra, todos nós somos sobreviventes das
nossas perdas, das nossas dores. Todos nós temos forças, condições de
passar por esses processos e mudar a nossa história. Não como bravos heróis
que partem para uma trincheira, mas como seres humanos ”normais” que
aprendem com o sofrimento, com a palavra nem sempre doce, mas forte:
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Superação. E superação no sentido de livrar-se. Tornar-se livre daquele “eu”
que nos aprisiona, que nos manipula e manipula muitas vezes as pessoas que
convivem conosco.
É provável que percebamos lá na frente que nessa superação não
haverá vencidos nem vencedores. Apenas vontade de prosseguir em frente.
Nossas feridas permanecerão cicatrizadas ou sangrando às vezes, mas
podemos olhar para elas e saber exatamente quando e como surgiram.
Saberemos também, garantidamente, que não poderemos evitar novos
machucados, novas arranhaduras. Teremos que apostar naquilo que nos
tornamos e saber que, de certa forma, seremos novamente outras pessoas,
com outros valores, com outras idéias. Mutantes desta e nesta vida.
No momento do luto, faz diferença nos reconhecermos como mutantes.
Saber que podemos mudar, criar, recriar, inventar. Podemos conhecer a
pessoa nova que nos tornamos e apaixonarmo-nos por ela ou partir para os
ajustes psicológicos.
O ser humano está sempre numa busca constante e sente uma
permanente falta sem saber explicar que buraco é este que está no meio do
peito e nada preenche. O luto só o defronta mais nitidamente com suas lutas
contínuas, obrigando-o a parar e olhar para dentro de si mesmo e entrar em
contato com a realidade.
Essa realidade atroz que nos “rouba” coisas, pessoas e até momentos.
Que nos obriga a ver que nada nos pertence (nem nós mesmos); que a única
coisa que temos de concreto, de certo, é o momento em que se vive no aqui e
no agora. O resto (aquela imortalidade), aquela nossa sensação de possuir,
não nos pertence. Tudo é efêmero e se vai a uma rajada de vento. Estavam ali,
tão próximos, tão acostumados a nós e de uma hora para outra já se foram. Só
deixaram saudade, lembranças e um desejo desesperador de querer que o
tempo volte. Que os malditos ponteiros dos relógios que determinam esses
exatos momentos falhem, parem e nos devolvam o que acreditávamos que era
tão e somente nosso.
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O tempo, sem que saibamos inexoravelmente faz isso. Leva nossa
infância tão cheia de gozo, de ilusão, de fantasia, de fadas, duendes, proteção,
segurança e tantas cantigas e nos traz uma mocidade. Mocidade essa que nos
permitirá conhecer outras pessoas, outros colégios, outros amores. Que nos
trará a magia e a doçura do primeiro beijo, do primeiro assombro, o primeiro
carro, a formatura, os filhos que nos farão acreditar novamente na completude
perdida. No elo que foi soldado. E depois novamente a ruptura: amores
desfeitos, lares desfeitos, filhos crescidos ou perdidos e sabe-se lá com
quantas outras perdas e dores estaremos chorando.
Depois o tempo nos traz a maturidade. Quando tudo parece tão mais
certo, tão mais rápido. Onde a brevidade da vida é olhada assim meio de lado,
não querendo prestar muita atenção a esse detalhe: a vida acaba. A eternidade
da vida é só isso: por hora e agora. Esta maturidade nos leva outros sonhos e
esperanças, mas também traz muito mais suporte para vermos e entendermos
as pessoas, as limitações de cada um, a alteridade. Nossos espelhos já estão
mais virados para o outro lado e não tanto para nós mesmos. Isso o tempo faz.
Quando queremos e deixamos que ele faça.
Viorst (1998) tem uma bela colocação a respeito: “quando o talento
falha, quando fenece a beleza, quando a carreira brilhante declina, o mundo
não reflete mais a perfeição de Narciso.” Como o eu no espelho é o único que
ele sempre reconheceu, perde-se esse eu e mergulha-se na depressão. Ao
mergulhamos na depressão e darmos de frente com o nosso espelho trincado,
nosso “eu” desfigurado, já não podemos mais reconhecer nossa face.
Podemos passar a vida toda olhando para a imagem partida ou podemos criar
uma nova face. Longe do Narcisismo, longe dos jogos dos espelhos. Podemos
aprender a conviver com a realidade, com quem somos. Aprender a nos aceitar
e nos amar. A dizer carinhosamente para nós mesmos: agora estou aqui.
Agora sou só eu. O outro ou os outros se foram e apesar da dor, do medo, das
lágrimas, ainda estou aqui. Ainda pertenço a mim e tenho uma história para
viver, contar, escrever.
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Os amores, os relacionamentos que terminamos. A nossa melhor amiga
que já não é tão melhor e muito menos amiga, o homem a quem juramos amor
por toda vida, trocou-nos por outro amor para a vida toda. Mas quantas coisas
não ficam de cada coisa? Quanto de cada um não fica em nós? E depois o
tempo traz um novo amor, um novo recomeço. Só que essa entrega vem sem
nenhum certificado de garantia de vida eterna, de relacionamento duradouro.
Vamos chorar novamente, sentir raiva, revolta, mágoa e o juramento convicto
de nunca mais amarmos, nunca mais confiarmos em ninguém. De nunca mais
sofrermos por quem quer que seja. Mas nem os juramentos que fazemos a nós
mesmos são eternos. Voltamos e tentamos novamente porque uma vida sem
conexão é muito mais sofrida do que todos os amores que se rompem.
Mudar de casa, de cidade, de país? As perdas que se acumulam são
extensas. Sair do lugar acostumado, de pessoas e rostos conhecidos e se
jogar em direção ao novo. Que susto! Que medo! Mas, o tempo, esse nosso
volante, traz junto com as dores das mudanças, oportunidades. Oportunidades
de andarmos por ruas diferentes, de vermos rostos diferentes, outras
paisagens, outras culturas. Tem pessoas que conseguem “sair da casa”,
outras, embora estejam em lugares diferentes continuam morando sempre na
mesma casa. Tem pessoas que nunca estão satisfeitas com o que tem.
Sempre idealizam coisas impossíveis de serem alcançadas que é para
continuar não tendo.
Algumas perdas permanecem em nós por toda vida. Estamos
condenados a viver com elas. Nenhum processo (seja terapêutico ou outro)
consegue fazer com que aprendamos a viver sem lembrar daqueles a quem
tanto amamos e se foram. Estarão sempre em nós. Sempre! Também nas
fotografias guardadas, na comida que apreciava, nos lugares que costumava
visitar, nas palavras que disseram, nos jardins que cultivavam, nos livros que
escreveram. Lembranças que se alojam em um terreno sagrado chamado
intimidade. Quando choramos ou lamentamos a morte de alguém, choramos e
lamentamos a perda e a morte de nós mesmos. Uma parte nossa (aquela mais
conectada) morre junto com as pessoas que amamos. Morre mesmo.
Ressurgimos quando o tempo nos traz a aceitação do que perdemos.
77
O lamento das nossas perdas depende da nossa idade e da idade de
quem perdemos, depende de quanto estamos preparados para isso, depende
de como a pessoa sucumbiu à mortalidade, depende das nossas forças
interiores e do apoio externo e, sem dúvida, depende da nossa história – nossa
história ao lado da pessoa que morreu e nossa história individual de amor e de
perda. Entretanto, parece haver um padrão típico no luto normal do adulto, a
despeito das idiossincrasias individuais. Aparentemente todos concordam em
dizer que passamos por fases de mudança, fases sobrepostas na nossa
lamentação, e que, depois de mais ou menos um ano, às vezes menos, mas
geralmente mais, “completamos” a parte principal do processo.
Para Montoto (2002), se aceitarmos as fases pelas quais
necessariamente deveríamos passar não como um pesadelo, mas como um
acontecimento doloroso da vida, talvez seja possível compreender por que “a
dor (..) passa a ser não um estado, mas um processo.”
A primeira fase desse processo, antecipada ou não, é de “choque, apatia
e uma sensação de descrença”, como diz o autor. “Isto não pode estar
acontecendo”! “Não, não é possível”! Talvez choremos e nos lamentemos em
voz alta; talvez fiquemos sentados em silêncio; talvez períodos de dor se
alternem com períodos de atônita incompreensão. O choque pode ser menor
quando se vive muito tempo com a iminência da morte da pessoa amada. O
choque pode ser menor (temos de admitir) do que o alívio. Mas o fato de que
alguém que amamos não existe mais está além do que podemos aceitar.
Vimos anteriormente incredulidade e negação podem continuar muito
depois do choque inicial. Na verdade, pode ser necessário todo o período do
luto para que o impossível – a morte – seja aceita como uma realidade. Depois
da primeira fase da dor, que é relativamente curta, passa-se para uma fase
mais longa, de intenso sofrimento psíquico. Há choro e lamento, mudanças
bruscas de temperamento e desconfortos físicos. Passa-se por fases de
letargia, atividade exagerada, regressão (a um estágio mais carente: “ajude-
me”), ansiedade pela separação e um desespero sem remédio. Como não
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poderia deixar de ser, raiva. Algumas pessoas relatam que sentem raiva de
Deus, raiva de quem morreu, raiva dos que ficaram, raiva de si própria.
Depois das várias fases chega-se ao “final do luto”. Ainda há momentos
de choro, mas são menos freqüentes, a saudade continua mas há sinais de
recuperação, aceitação e adaptação. Recupera-se aos poucos a estabilidade, a
energia, a esperança, a capacidade para ter prazer e investir na vida.
É justamente neste processo de aceitação que mudamos nosso
comportamento, nossas expectativas, nossas autodefinições. O psicanalista
George Pollock (1971), que escreveu extenuantemente sobre o assunto,
chama o processo de lamentação “uma das formas mais universais de
adaptação e crescimento...”. Vencer esse período com sucesso, diz ele, é
“muito mais do que fazer o melhor possível numa má situação. Lamentar
nossos mortos pode levar a mudanças criativas”.
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5.3. UMA EXPERIÊNCIA DE LUTO VIVENCIADA - Relato d o Caso
Identificação: R. P. L.
Idade: 48 anos
Escolaridade: Nível Superior
O interesse pelo caso surgiu após ler o livro Frente e Verso publicado
por ela e pelo psicanalista Claudio César Montoto. A forma firme e forte da
autora de relatar os acontecimentos de sua vida a partir da descoberta de um
câncer, fez com que eu entrasse um contato e agendasse uma conversa
(informal) sobre os acontecimentos anteriores e posteriores à descoberta da
doença.
Na conversa encontrei uma pessoa inteira, que embora convivendo com
uma doença grave há muitos anos, tinha brilho no olhar. Estava muito viva
sem negar sua condição. Não lamentou a vida em nenhum momento, ao
contrário, disse que o contato próximo com a morte fez com que aos poucos
fosse se aproximando cada vez mais das coisas que lhe são importantes e
caras na vida. Fez com que valorizasse cada minuto, especialmente aqueles
em que não está sofrendo dores ou internada e pode andar no sol, tomar um
café demoradamente, descobrir novos lugares ou discutir com o delegado de
sua cidade, uma atividade que já se tornou corriqueira e da qual ri, pois no
passado já teve brigas homéricas.
Ela continua uma sonhadora, lutando pelos direitos dos que não
conseguem se manifestar, na cidade de Itapira, onde mora até hoje. Sua
última denúncia é de gravidade ímpar: os casos de estupros de mulheres de
idade, com 70 anos ou mais, têm aumentado na comunidade. Atribui isso a
constituição da nova família, onde há um verdadeiro mosaico de pessoas
vivendo juntas sem grau de parentesco e sem compromisso e respeito pelos
mais velhos. Isso sem falar que em casas da periferia, de muitas cidades,
amontoam-se mais de dez pessoas em pequenos cubículos.
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Atualmente ela está com três novos nódulos: na mama, na boca e outro
no cérebro. Sabe da gravidade e sabe também que seu corpo se tornou mais
frágil e dificilmente agüentará novos tratamentos, mas não diminuiu sua
vontade de viver. Sua fibra, fragilidade, paixão e honestidade são
emocionantes.
Aos 26 anos a paciente começou o seu périplo. Apresentou sintomas de
febre, cansaço e muito desânimo, sem contar com um súbito emagrecimento.
Procurou um médico e submeteu-se a vários exames sem conseguir um
diagnóstico. Tomou remédios e por algum tempo sentiu-se melhor. Até esse
momento sua vida era considerada normal para uma pessoa de classe média
alta. Casada, duas filhas, uma de seis anos e outra de quatro, morava em uma
casa espaçosa, participava da política local, aparecia em colunas sociais e
culturais, escrevia, participava de grupos religiosos, em fim, era uma pessoa
ativa na cidade:
“Tola! Antes eu era bem tolinha. Achava que morreria
bem velhinha, definhada e sem voz. Tolinha e prepotente. Adorava comprar sapatos! Tinha coleção deles e não conseguia imaginar que algo de ruim pudesse acontecer com uma pessoa de 26 anos. Um belo dia (aliás não tão belo assim), amanheci com uma sensação terrível de cansaço. Mal estar, febre e achei que estava com gripe, tomei um chá qualquer, sucos e fiquei assim por mais três dias. Estava péssima. Procurei o meu ginecologista, que era o único médico que havia consultado até então. Ele achou que poderia ser uma infecção renal, pediu exame. Antes mesmo dos exames ficarem prontos, meu estado piorou muito. Já não tinha apetite e mal parava em pé. Ele então solicitou uma internação no Hospital da minha cidade e ai começou uma maratona de exames, antibióticos e nada! Não havia um diagnóstico preciso.”
Sem recursos em sua cidade, foi internada em um hospital na cidade de
Campinas (SP), que possui mais de um milhão de habitantes e mais recursos
em se tratando de rede hospitalar. Seu quadro continuou piorando e não havia
mais recursos naquele hospital também. Foi, então, encaminhada a um
hospital universitário para que pudesse se submeter a exames mais criteriosos,
com os mais avançados equipamentos da época. O diagnóstico foi Linfoma
Hodgkin.
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“Nunca fui fútil, mas utópica. Achava que podia salvar o mundo com meus grandes ideais e as brigas políticas na cidade eram constantes. Éramos ameaçados com freqüência. Não deixava minhas filhas com outras pessoas, porque tinha medo que algo ruim pudesse acontecer. Só saíam de casa com seguranças.
Fazia muito, mas não exercia nenhuma profissão formal. Nem cozinhar sabia e nem tinha por que aprender. Viajava bastante e achava que envelheceria ao lado do pai das minhas filhas e que sempre teríamos o controle das nossas vidas. “A vida iria para a direção que indicássemos”.
O tratamento que se seguiu foi rigoroso e a manteve no hospital por um
ano. Com aspecto cadavérico, pesava apenas 40 quilos, e pelas condições do
hospital, preferiu não ver as filhas enquanto estive inernada, pois não queria
que elas vissem a mãe definhando. “Tudo era incerto, assustador e
angustiante”. Em relação ao diagnóstico, sabia que era grave, mas sequer quis
saber ao certo o que Hodgkin significava. Houve negação total.
Para ocupar o tempo, realizava atividades dentro do hospital-escola.
Ajudava na elaboração do jornal interno da universidade, ficava no elevador
levando os visitantes aos andares, auxiliava as profissionais do serviço social,
levava os doentes mais debilitados para passearem e ajudava os que não
podiam se locomover.
“Parecia que um fantasma havia roubado minha vida e trancado-a em uma parede invisível que eu não conseguia acessar. Um ano sem ver minhas filhas. Eu não aceitava a idéia de que elas pudessem me ver naquele hospital horrível e só nos comunicávamos por desenhos, cartinhas e trocas de presentes.
Foi um ano vendo todos os dias pessoas morrendo. Um ano sem saber o que era linfoma. Não me atrevia a perguntar. Da mesma maneira que não queria saber que remédios horríveis eram aqueles que em vez de me curar, me faziam sentir pior: com mais febre, com mais dor e cada vez mais sem ânimo. Me sentia um verdadeiro protocolo. Estava no limite. Protestava, brigava por qualquer motivo. Colocava cartazes no meu quarto: “não entre sem bater, mas também não bata”
Nos dias que estava mais animada decorava os quartos com vidrinhos de remédios e copinhos descartáveis para as festas de aniversários e final de ano. Participava das reuniões da “máfia branca” como, por iniciativa minha, chamávamos os médicos.
Tinha imensa saudade da minha vida agitada. De brincar com as minhas filhas, das algazarras que fazíamos à
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noite antes de dormir. Queria voltar a ser o que era. Invejava os mendigos que ficavam na pracinha que eu conseguia avistar da janela do meu quarto no sexto andar do prédio. Sonhava estar nos ônibus, no trânsito, na multidão.
Pedi para ir embora. Queria me curar em casa. Queria
devolver a mim a minha vida. Concordaram, mesmo porque segundo um dos médicos, eu teria mais seis meses de vida. Os ânimos já estavam exaltados. Respondi jogando o rolo de esparadrapo que tinha em minhas mãos no rosto dele. Fui para casa e nunca mais voltei aquele lugar. (revolta)
Exaurida, revoltada com um longo tratamento que não resultou em
melhoras foi para casa, mas ainda sem saber o que tinha de fato. Continuou
sem querer saber. Em casa tudo estava estranho. As filhas sentiam medo
dela, pois, a ausência prolongada havia acabado com a intimidade e
cumplicidade anterior. Seu primeiro desafio foi o de reaproximar-se das filhas.
A mais nova, na época com cinco anos, apresentava um problema de
crescimento. O então marido (hoje estão separados) se negava a falar sobre a
doença.
“Resgatei as minhas filhas, fomos todas para o psicanalista
para aprendermos a viver com aqueles momentos. Rezei para
Deus que me desse mais uma chance. Só até minhas meninas
crescerem suficientemente para poderem andar por elas
mesmas. Ele me atendeu!”
A volta para casa foi complicada, mas, ao mesmo tempo, foi o caminho
que a levou a entrar em contato, de fato, com a doença e assumir o controle do
tratamento junto com os médicos.
“ Em casa eu era uma estranha para mim e para as minhas filhas. A pessoa que entrou naquele hospital saiu outra. Eu era outra. Estava sempre com medo de ter febre, de sangrar, de ter que voltar para o hospital. Menos de morrer. Acho que uma parte minha já havia morrido. Fiquei rodopiando a esmo por semanas. Não queria mais aqueles médicos, mas também não sabia a quem procurar. Fui visitar um amigo que tinha se formado recentemente e perguntei a ele o que era linfoma. Ele me explicou detalhadamente. Sai do consultório apavorada. Eu tinha câncer e era dos mais graves e por mais que eu lutasse nunca mais teria a vida de antes. Estava ali com o estigma da
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morte, com o estigma do silêncio. Marcada pelo preconceito (meu talvez), e pela autocomiseração. ‘As pessoas sentirão pena de mim, me tratarão como defunto vivo’
Decidi que não seria assim. Contei logo que estava doente e que continuaria a tocar a minha vida. Assumi a minha doença”.
Consciente da doença e entregue aos melhores especialistas no
assunto, começou outro doloroso tratamento: quimioterapia, radioterapia,
imunoterapia. Nesse novo período no hospital fez um acordo com Deus: que
deixasse as filhas crescerem primeiro e depois ela poderia morrer
(negociação). Porém, sua personalidade forte não havia mudado e a doença
não a tornara mais tolerante. Durante a conversa, ela confessou que às vezes
ficava tão revoltada que em uma dessas ocasiões, mesmo debilitada
fisicamente, conseguiu quebrar os móveis do seu quarto e depois permaneceu
inerte, por seis horas, sentada em meio aos destroços.
O tratamento não estava dando resultados. O câncer passava de um
órgão para o outro: tinha no pâncreas, outro no baço, no útero e mamas.
Nenhuma quimioterapia conseguia fazer os tumores regredirem. Novas
avaliações. Especialistas de outros países vieram para dar um parecer sobre o
caso. Virou case de estudo científico. Depois dessa nova rodada foi descoberto
que era um câncer na célula de manto e ela não produzia célula B.
Diante da nova descoberta, foi necessário redirecionar todo o
tratamento. Novas quimioterapias foram indicadas, imunoterapias foram
reforçadas. Nesse período ela se submeteu à retirada completa do útero devido
as constantes hemorragias e foi parar na UTI pela primeira vez. “Senti medo,
me vi frente a frente com a morte”.
Saiu do hospital, ainda mais magra, com 39 quilos, já sem cabelo, com
os ossos doendo e sem dinheiro. Decidiu voltar a trabalhar.
“Fiquei sem recursos com os tratamentos caríssimos e resolvi
trabalhar meio período, assim usava as manhãs para continuar o tratamento que ia de domingo a domingo. Mas continuei tocando a vida. Cuidava das minhas filhas, militava em um partido político, realizava trabalhos sociais, sem contar que nesse período ainda era extremamente religiosa e não deixava a minha responsabilidade com a
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pastoral. As minhas filhas, já recuperadas, foram a minha grande força na longa jornada dos tratamentos”
Ainda que o tratamento parecesse ir bem, tempo depois perdeu o útero,
uma mama e teve várias recaídas. Mesmo muito debilitada decidiu se submeter
a um transplante de célula B, pois havia alguma esperança. Os reagentes
provocavam muitos efeitos colaterais e chegar até o final do tratamento foi uma
prova de resistência.
“Encontrei uma força gigantesca dentro de mim. Nem eu imaginei ser tão forte. Ficava uma semana em casa e dez dias no hospital. Tinha hemorragia constante e aos 30 anos tive o meu primeiro órgão amputado: o útero. Fui para a UTI, mas não morri. Na seqüência perdi a mama direita, o baço, mais tarde meu fígado ficou comprometido por causa das drogas e meu rim mal funcionava.
Mas o meu luto maior foi quando perdi o útero. Minha (pro)criação estava condenada. Fiquei árida. Não conseguia sequer escrever uma linha.
Lembro-me que na véspera da cirurgia – próximo ao Dia das Crianças, eu estava comprando presentes para as minhas filhas e em vez de olhar os brinquedos ou roupas compatíveis com as idades delas, eu só olhava objetos e roupas de bebê.
Recebeu apoio dos amigos que restaram, da família e de algumas
pessoas ligadas à Igreja. Confessa que acreditar em Deus nessa época foi
essencial, mas continuar ativa também ajudou bastante.
“Candidatei-me a vice-prefeita e fui a primeira
mulher a disputar um cargo eletivo na história da cidade. Saia
dos comícios com hemorragias e amanhecia no hospital
tomando coagulante. Mas me sentia viva.”
Quando as filhas já estavam crescidas e casadas, resolveu que daria um
novo rumo à sua vida afetiva. ”Havia ficado um buraco na relação e insistir
seria ruim para os dois”. Separou-se. Alugou uma casa e contratou uma
enfermeira para tomar conta dela nos momentos de crise. Quando a doença
dava uma trégua, continuava o trabalho, as atividades políticas. A esperança
ou ilusão de estar curada aparecia mais intensamente nessa fase, para logo
em seguida continuar sua rotina hospitalar. Depois de algum tempo separada,
conheceu um novo amor, como gosta de ressaltar, e mesmo sabendo da sua
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história decidiram se casar e estão juntos há mais de oito anos. Os tratamentos
continuaram:
“Fiz três auto-transplantes e funcionaram apenas por algum tempo. Em seguida outra descoberta: havia surgido um câncer na célula de manto e qualquer órgão poderia ser atingido a qualquer momento por causa da irrigação sanguínea das células doentes.
Fiquei careca, perdi alguns dentes, quase todos os supostos amigos e fiquei sozinha por muito tempo. Aprendi a gostar do escuro e da solidão.
Minhas filhas cresceram, ganhei cinco netos (três meninas lindas e dois meninos maravilhosos).
Perdi a vesícula, apareceu outro câncer na mama esquerda. Meus pés têm ictiose, minha arcada dentária não suporta mais implantes e por causa de um recente incidente, apareceu um tumor no osso da boca e um na região do cérebro que não deu para fazer biópsia por causa da localização”.
Seu organismo já está debilitado pela quantidade de remédios ingeridos
não tem mais a mesma resistência. A cada dia surgem novos tratamentos e
cada vez mais eficazes, porém ela acredita que pode ser tarde, não porque
desistiu, mas porque o corpo não agüenta mais.
“A única certeza que tenho aqui e agora é que estou
vivíssima e tem dias que sou plenamente feliz. Não consegui
minha vida de volta, mas re (inventei) outra vida.”
Conseguir passar por tudo o que passou e continuar produtiva é motivo
de orgulho. “Isso me dá uma satisfação muito grande e já não me importo com
o tempo que me resta”, garante. “O tempo é a gente que faz”. Acredita que
poderia ter morrido lá atrás se tivesse se entregado. Poderia morrer de susto
quando soube que lhe restavam poucos meses de vida, ou poderia ter morrido
pelas complicações cirúrgicas ou poderia ter se entregue a uma depressão
profunda, mas preferiu fazer de cada dia, um dia para ser aproveitado.
“Não sou reconhecida como antigamente, mas continuo
envolvida nas questões políticas. Nunca mais fui candidata a nada, porém, continuo militando em movimentos sociais (idosos) e nas questões de violência contra as mulheres. Dou
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palestras e procuro mostrar que cada doença vem para nos ensinar o que precisamos aprender. Eu aprendi a não ser prepotente.
Brinco com minhas netas, tenho o amor de minhas filhas e ganhei de presente do Universo um grande amor. Um homem maravilhoso que torna minha caminhada mais florida, mais amena. Rimos de tudo e choramos quando a dor se faz mais forte. Não fazemos de conta que a dor não existe e nem damos mais valor do que ela tem. Cada momento é um momento. A gente torce um pelo outro e já vivemos todo o luto que poderíamos ter vivido nestes anos. Tenho um co-filho maravilhoso e sempre que estamos juntos a vida é uma grande festa. Sou “rueira, adoro conversar com as pessoas, falo com quem conheço e com quem não conheço.
Hoje, quando olha para trás diz que encontra uma pessoa melhor.
“Antes de adoecer eu era neurótica, minha alma era doente, hoje sou mais
comedida e minha alma mais saudável”. Antes, era apegada aos bens
materiais. “Hoje gosto de comprar flores”. Aprendeu a demonstrar os
sentimentos sem rodeios. “Digo para as pessoas que me são caras que eu as
amo muito e sempre”. As pequenas coisas passaram a ter grandes dimensões.
“É muito bom olhar para o céu e poder contemplar o sol, sentir o seu calor. Ver
as estrelas, ouvir o barulho da chuva o canto dos pássaros”. E emenda:
“parece lugar comum, mas quando se vive um dia de cada vez é o que há de
mais lindo”.
Sem dúvida hoje é uma nova pessoa que foi forjada à base de muita dor.
O que mudou? Ela diz que aprendeu a resolver as questões da vida sem tantas
brigas, com mais equilíbrio e com bons resultados. “Aprendi a entender meus
inimigos, mas não aprendi ainda a amá-los. Acho que entendê-los já é um bom
avanço”, brinca. “Não aceito ser humilhada, mas aprendi a ser mais humilde.
Aprendi a saborear os alimentos, a valorizar cada pedaço de pão. E mais:
“Aprendi a não ter tanta pressa. Antigamente era muito imediatista. Hoje um dia
já basta para aquele dia”.
“Não tenho nada a temer. Nada do que me arrepender. Fiz tudo o que quis, fiz mais do que poderia ter feito dentro das minhas limitações. Descobri que a dor dói até um limite e quando se ultrapassa esse limite, a dor não é mais sentida. Não aceito ser tratada como uma pessoa doente, porque não quero viver como uma morta. Quero que a morte me encontre bem viva”.
87
Ver o rosto da morte de tão perto, também fez com que ela mudasse sua
visão de mundo. Hoje encara a vida com mais humor e ironia “ela não é
mesmo para ser levada muito a sério”. Já não tem tanta certeza na fé que
sempre professou e também já não sabe se acredita em vida depois da morte.
“Às vezes acho que morremos e pronto e o mais complicado é que só a gente
não vai participar dessa cerimônia”, diz pensativa. “Aprendi a me redimir todos
os dias com o Universo”:
“Ás vezes, ou quase sempre, acho que ter um câncer foi um marco importante na minha vida. De outra maneira eu não teria aprendido o que sei. O câncer me obrigou a ter mais responsabilidade comigo mesma. A ter a obrigação de viver um dia de cada vez. A ter sempre diante de mim a finitude. A saber que a vida acaba quer estejamos prontos ou não. Não sei se sou grata ao fato de ter um câncer, mas sou muito grata pela força que descobri em mim nessa luta. Uma vez li que câncer é para quem pode, quem quer e quem precisa. Eu não queria, mas talvez precisasse e pudesse. Não acredito que alguém consiga estar pronto para morrer. A gente sempre negocia um dia. Mais um dia. Faz parte de quem tem que conviver com a morte. Espero a primavera (amo a primavera), espero as férias, espero estar mais um dia nos braços do homem que amo. Acredito, no entanto, que somos eternos. A eternidade está nas lembranças que deixamos, nas atitudes que temos perante os acontecimentos. Toda vez que alguém sentir saudade de mim, voltarei um pouquinho”.
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3. CONCLUSÃO
As citações e a revisão de literatura permitiram que percorrêssemos os
diferentes caminhos que a experiência de ter um vínculo rompido por morte ou
perda causa no âmbito emocional, social, somático e cultural. Ao estudar o luto
procuramos considerar essa experiência, sempre dolorosa, em algumas áreas
do conhecimento, pois seria restringir demais ver o luto somente do ponto de
vista da psiquiatria ou psicanálise. Também seria ambicioso demais pretender
perpassar por todas as áreas do conhecimento. Nos limitamos, como dito
inicialmente, a alguns aspectos da psicanálise, antropologia, sociologia,
psicologia e religião.
No decorrer de nossa vida nos deparamos com diversos tipos de perdas
e mortes, mas jamais conseguimos nos acostumar a elas. Sempre nos deixam
prostrados, mesmo aquelas mortes e perdas anunciadas. Sabemos que a
morte é inevitável, irreversível, universal, mas isso não diminui a surpresa e
angústia que sentimos quando ela se apresenta. O fato de saber que uma
pessoa querida está com uma doença grave e vai partir em breve, não diminui
a dor da despedida. E também, por mais próximos que cheguemos dela, a
morte não deixa de ser um mistério para toda a humanidade.
Um mistério que uma maioria prefere “resolver” com a explicação e o
conforto das religiões que indicam uma vida depois da morte, para dar sentido
ao sofrimento vivido. Os ateus e agnósticos, no entanto, dizem acreditar no fim
biológico, mas não deixam de crer em situações cotidianas, planos e projetos
que ajudam a dar sentido à vida. Não há certo ou errado. O melhor é a escolha
pessoal que faz com que cada um viva mais intensamente o momento
presente, se responsabilize pela sua vida, felicidade, aventuras e desventura,
erros e acertos.
O ser humano tem a tendência a acreditar que está sendo punido cada
vez que alguma coisa acontece e o impede de estar no conforto característico
dos momentos de felicidade, alegria. Lacan diz: “Durante os diferentes
períodos de sua evolução o sujeito ‘consome’ e perde, sucessivamente, a
89
placenta, o seio, depois os excrementos, e ainda o olhar e a voz”. Portanto, as
perdas fazem parte da vida. Mais do que isso, as perdas são vida tanto quanto
os momentos de alegria, euforia e lazer. Quando se nasce, não há nenhuma
promessa de que seremos felizes. Apenas que teremos que fazer o melhor que
conseguirmos da nossa vida.
Portanto, encarar o desconforto do nascimento, a separação da mãe, as
inseguranças e mudanças físicas da adolescência, a difícil escolha da
profissão, mudanças de casa e cidade, a perda do emprego, a separação no
casamento, a separação dos filhos, os inúmeros fracassos, a velhice, a doença
e a morte é difícil, sem dúvida. Não é algo simples nem fácil, mas acreditamos
que podemos ao menos tentar, pois vivemos de perdas e abandonos e, mais
cedo ou mais tarde, com maior ou menor sofrimento, todos nós
compreenderemos que a perda é, sem dúvida, uma condição permanente da
vida humana.
Lamentar é o processo de adaptação às perdas. Então, pergunta Freud
em Luto e Melancolia: “em que consiste a lamentação pelo que perdemos?” Ele
responde que se trata de um processo interior difícil e lento, extremamente
doloroso, em que desistimos passo a passo. Ele está se referindo, como já
citado, à lamentação pela morte das pessoas que amamos. Mas podemos
lamentar todas essas outras perdas que já enumeramos acima. Lamentar faz
parte do processo de recuperação das perdas.
Os filósofos gregos pensavam no passado e no futuro como dois males
que pesam sobre a vida humana, centros de todas as angústias que vêm
estragar a única e exclusiva dimensão da existência que vale a pena ser vivida,
simplesmente por que é a única real: a do instante presente. Luc Ferry escreve
resumindo o pensamento grego: o passado não existe mais e o futuro ainda
não chegou e, no entanto, vivemos quase toda a nossa vida entre lembranças
e projetos, entre nostalgia e esperança. Imaginamos que seríamos muito mais
felizes se tivéssemos isso ou aquilo. “Mas, de tanto lamentar o passado e ter
esperanças no futuro acabamos por perder a única vida que vale a pena ser
90
vivida, a que depende do aqui e agora, aquela que não sabemos amar,
certamente, como ela merece.
91
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97
ANEXO I
POEMAS REFERENTES AO TEMA
Poemas de Rosana Pereira de Lima Extraídos do livro : Estágios, 1992.
1. PARADOXO Vou, mas permaneço aqui. Paradoxo de vida, sei lá. Deixarei meu “eu’ em cada parte. Estarei no pó que sai da terra Na gota de chuva que cai do céu. Estarei morrendo na partida Para nascer no regresso. Façamos de conta que é só um tempo ruim Digamos que é só uma ausência minha. Quando tudo passar, renasço das cinzas. É só uma morte na dor da solidão E um viver depois no cio da própria vida. 2. PAREDES VAZIAS Quem vai me compor versos falar de amor e de ternura? Quem vai me cantar uma canção ao anoitecer? Quem vai me dar o braço e um abraço para que eu possa de tudo me esquecer? Nessas paredes vazias, caladas. Essa madrugada fria que custa a passar. Esse soro que pinga, gota por gota e a sonda que sonda Sem nada encontrar. Mão fria que chega a doer, e o branco, sempre branco para lembrar que a vida nem sempre é colorida. Soro, gemido, a mão que dói quando tenta a manobra de se mexer. Frio, madrugada, gemidos! Cansada, deixo de escrever. Vou dormir primeiro que a mão latejante Primeiro que toda a espera Que ficará esperando no quarto branco do doutor.
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3. SALA DE ESPERA Salas vazias e o medo no corredor. Este medo que me espia, que me sonda pelas frestas da janela E me deixa assim: na espera. Esperar o que? Se toda espera é vaga Se o que sobra é mágoa E o desconcerto para se consertar depois. Esperar que este cheiro de remédio Impregnando o ar, vire cheiro de flor, Ou esperar corredores povoados de pessoas felizes Vestidas de várias cores. Esperar por uma utopia? Se encher de fantasia? Esperar dias melhores? Alguma força diferente? Enquanto isso faço-me de lata Já que não posso desfilar de gente. O momento desencantou O vidro se quebrou E o espelho de tudo sou eu. Fragmentos de sonhos que o vento levou. Passos cansados, quase sem direção E o medo acordou. Fantasmas me rondam Fazendo a rota Espiam a casa, sopram, balançam e desaba afinal. E o espelho de tudo sou eu Nesta imagem patética, desfigurada, Na lembrança machucada que ainda grita por paz. Parto? Não, fico e espero. Assisto a tudo e não participo de nada. O vento se foi, espalhou meus medos Dividiu os tormentos Deixou os cacos E no final de tudo O espelho ainda sou eu. 4. SEM NEXO Eu não pertenço a este lugar Aliás, neste momento não pertenço a lugar nenhum. Estou passeando dentro de mim, Decifrando meus sentimentos, Buscando o meu outro lado Para saber exatamente onde desejo estar Quando sair daqui.
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5. AOS DEUSES Sou uma célula morta E outras tantas doentes. Tenho todo tempo do mundo e tempo nenhum. Carrego protocolos, números Deram-me um diagnóstico e várias fórmulas. Mudaram a minha história, moldaram minha personalidade Se sentem deuses Donos e determinadores da sobrevivência. Vestem-se de branco Desfilam ar de onipotência Atravessam os corredores E se sentem reis. Meros bobos da corte, meros impotentes da ciência. Nada sabem do ser humano e nem de vocês mesmo. Tem as mãos geladas e são congelados nos procedimentos. Tenho sim células doentes, Mas não tenho a cabeça demente. Não podem decidir tudo Não podem determinar o meu percurso, Nem brilharão sempre neste disfarce de purpurina. Pobre deuses doentes! Orgulham-se tanto desses diplomas – certificados na parede. Vão ao congresso – ouvem e não aprendem. Escondem-se atrás de um saber de altitude Colecionadores de papéis que um dia amarelarão, Ou serão devorados pelos cupins. Acordem deuses do nada! Aprendam com a morte o que é a vida. Percam essa altitude olímpica. Deuses falidos de uma época que não se encaixa em mais nada. Vocês precisam da nossa doença para aprender, Mas precisam antes de tudo e, urgentemente, Aprender a ser gente. .
100
Os versos abaixo de Lya Luft e Carlos Drummond de Andrade foram
extraídos do livro "Nova Reunião". Rio de Janeiro: José Olympio,1985.
O Lado Fatal
Lya Luft
I
Quando meu amado morreu, não pude acreditar: andei pelo quarto sozinha repetindo baixo: "Não acredito, não acredito." Beijei sua boca ainda morna, acarinhei seu cabelo crespo, tirei sua pesada aliança de prata com meu nome e botei no dedo. Ficou larga demais, mas mesmo assim eu uso.
II
Muita gente veio e se foi. Olharam, me abraçaram, choraram, todos com ar de uma incrédula orfandade.
III
Aquele de quem hoje falam e escrevem (ou aos poucos vão-se esquecendo) é muito menos do que este, deitado em meu coração, meu amante e meu menino ainda.
IV
Deus (ou foi a Morte?) golpeou com sua pesada foice o coração do meu amado (não se vê a ferida, mas rasgou o meu também). Ele abriu os olhos, com ar deslumbrado, disse bem alto meu nome no quarto do hospital, e partiu.
101
Quando se foram também os médicos e suas máquinas inúteis, ficamos sós: a Morte (ou foi Deus?) o meu amado e eu. Enterrei o rosto na curva do seu ombro como sempre fazia, disse as palavras de amor que costumávamos trocar. O silêncio dele era absoluto: seu coração emudecido e o meu, varados por essa dourada foice. Por onde vou deixo o rastro de um sangue denso [e triste que não estancará jamais.
V
Insensato eu estar aqui, e viva. O rosto dele me contempla vincado e triste no retrato sobre minha mesa; em outros, sorri para mim, apaixonado e feliz. Insensato, isso de sobreviver: mas cá estou, na aparência inteira.
Vou à janela esperando que ele apareça e me acene com aquele seu gesto largo e generoso, que ao acordar esteja ao meu lado e que ao telefone seja sempre a sua voz.
Sei e não sei que tudo isso é impossível, que a morte é um abismo sem pontes (ao menos por algum tempo).
Sobrevivo, mas pela insensatez.
VI
Pensei que estávamos apenas no começo: a casa mal-e-mal nos alicerces. Mas provavelmente estava concluída e eu não sabia. Tínhamos erguido em nossos poucos anos as paredes necessárias; o telhado se inclinava ao jeito certo, e havia vidraças nas janelas. (Éramos felizes ali dentro mesmo com as tempestades de fora.) Tudo se construiu num lapso tão curto: até a porta de entrada, por onde ele saiu casualmente como quem vai comprar jornal.
A porta está apenas encostada embora pareça alta, dura, intransponível: do lado de lá, o meu amor vê as maravilhas que tanto nos intrigavam nesta vida.
102
VII
Tanto escrevi sobre a morte em livros e poemas nesses anos: sempre achei que a entendia um pouco.
Mas agora que ela me dilacerou a vida, me rasgou o peito, me levou o amado, sinto que mal começo a compreender sua mensagem: tirando-o de mim, a morte o devolve para que seja mais meu.
Dentro de mim um quebra-cabeças, e nele [o meu amado. Nem Deus o tirará daqui.
VIII
O meu amado morreu: viver sem ele, como dói. Não tivemos filhos juntos, nosso passado foi tão breve que era sempre [presente. Um dia ele mandou fazer um par de alianças de pesada prata, parecendo antigas; gravou apenas nossos nomes, sem data, e disse: "Somos um só desde sempre." Ainda não acreditei em sua morte, e talvez isso me salve por enquanto. Levantar-me da cama cada dia é um ato heróico, acender o cigarro, atender o telefone, tomar café. Mas faço tudo isso: falo, ando, recebo visitas. Compro móveis para a casa onde moro sem ele, imaginando: será que ele vai gostar?
De algum secreto lugar me vem a força para erguer a xícara, acender o cigarro, até sorrir quando alguém me diz: "Você hoje está com a cara ótima", quando penso se não doeria menos jogar-me de um décimo-primeiro andar.
XIX
Amado meu, agora morto, postado do lado de lá da fronteira que nos seduzia, mudo e quedo como se não existisses:
103
eu sei que existes, intensamente, ardentemente existes, feito e desfeito no fogo de um amor maior que [o nosso mas que nos abrange.
Amado meu, morto agora e para sempre vivo, hás de ter ainda o intenso olhar que me entendia, as curvas amorosas da boca que chamou meu nome, as belas, inquietas mãos que ardiam nas minhas. Ajuda-me agora, silencioso que estás, a suportar a sobrevida e a decifrar esse alto, intransponível muro que me [cerca.
X
Nunca tivemos filhos juntos, e ele reclamava: "Nosso amor merecia um filho ao menos.
"Nosso filho é a minha dor de hoje, é a fulguração que nos deixava tontos, é o novelo da memória que teço e reteço nas minhas insônias.
Nosso filho é o meu tempo de agora para falar do meu amado: da sua força e sua fragilidade, da sua indignação e seus prantos, da sua necessidade de ser amado e aceito como finalmente deve estar sendo, por inteiro, na realização de todos os seus vastos desejos.
XI
O meu amor enveredou por sua morte como quem vai a um encontro de amor: impaciente. Deixou-me este coração golpeado, esta derrota. Mas também ficou a claridade desses anos e a sensação de que ele finalmente vive o encontro de amor que toda a devoção de minha vida não lhe poderia [dar.(Um dia, celebraremos juntos.)
XII
Se me tivessem amputado braços e pernas e furado o coração com frias facas e cegado meus olhos com ganchos e esfolado a minha pele como a de um podre bicho - nada doeria mais
104
que te saber morto, amado meu, depositado nesse irremediável poço de silêncio de onde não [respondes.(A não ser em sonho, quando me olhas e tuas mãos tocam as minhas espalmadas, abertas, feridas, vazias.)
XIII
O meu amado morreu: preciso viver sua morte até o fim. Morreu sem que se instalasse entre nós cansaço e [banalidade. Talvez tenha morrido na medida certa para nada se desgastar. Dele me vem a dor, mas também a ternura, a claridade que me permite ver em todos os rostos o seu rosto em todos os vultos o seu vulto e ouvir em todos os silêncios o seu inesperado riso de criança
XIV
Estranha a vida: fico tangendo meus dias como um rebanho de ovelhas desordenadas nessa triste e fria cidade de Porto Alegre onde ele gostava de estar olhando o pôr-do-sol e vendo amigos. "Morrer é tomar um porre de não-desejo" dizia o meu amado, que era um homem desejoso: desejava a vida, desejava a morte, desejava [a justiça, desejava a eternidade e a paz.
Estranha a vida: quando releio uma frase sua, "viver é modular a morte", em sangue e dor preparo a minha ida.
Estranho também esse amor, com hora marcada para a mutilação da morte, o minuto acertado, e o fim consultando o relógio para nos golpear.
Estranho esse amor de agora, com meu amado atrás de um espelho baço onde às vezes penso divisar seu vulto como num aquário. Enrolado em silêncio, mais que nunca o meu amor comanda a minha vida.
105
XV
Não falem alto comigo: andem sempre na ponta dos pés. Principalmente, não me toquem.
Finjam que não vêem se tenho um jeito absorto, se nem sempre entendo as perguntas com a rapidez de antigamente, se pareço fatigada e sem graça como nunca fui.
Façam silêncio ao meu redor. Não me interessa nada o cotidiano nem o místico. Não quero discutir o preço do mercado nem os grandes mistérios da eternidade.
XVI
Levo meu amado no peito como quem carrega nos braços para sempre uma criança morta.
XVII
Amado meu, que tanto ensinaste de mim a mim mesma, e do mundo a quem o conhecia pouco:
quando se desfizer escura a noite desta perda, quero enxergar pelos teus olhos, amar através do teu amor as coisas que me restaram.
Amado meu, vivo em mim para sempre, apesar da ruga a mais e do olhar mais triste, devo-te isto: voltar a amar a vida como agora amas, inteiramente, a tua morte.
106
Os Ombros Suportam o Mundo
Carlos Drummond de Andrade
Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus. Tempo de absoluta depuração. Tempo em que não se diz mais: meu amor. Porque o amor resultou inútil. E os olhos não choram. E as mãos tecem apenas o rude trabalho. E o coração está seco. Em vão mulheres batem à porta, não abrirás. Ficaste sozinho, a luz apagou-se, mas na sombra teus olhos resplandecem enormes. És todo certeza, já não sabes sofrer. E nada esperas de teus amigos. Pouco importa venha a velhice, que é a velhice? Teus ombros suportam o mundo e ele não pesa mais que a mão de uma criança. As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios provam apenas que a vida prossegue e nem todos se libertaram ainda. Alguns, achando bárbaro o espetáculo, prefeririam (os delicados) morrer. Chegou um tempo em que não adianta morrer. Chegou um tempo em que a vida é uma ordem. A vida apenas, sem mistificação.