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ISSN 2238-0205
Por entre espaços e lugares da área portuária do Rio de Janeiro: a dimensão da vivência no Morro da ConceiçãoPaulo Mauricio Rangel Gonçalves
Geograficidade | v.5, n.2, Inverno 2015
POR ENTRE ESPAÇOS E LUGARES DA ÁREA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: A DIMENSÃO DA VIVÊNCIA NO MORRO DA CONCEIÇÃOThrough spaces and places of the port area of Rio de Janeiro: the dimension of experience in Morro da Conceição
Paulo Maurício Rangel Gonçalves1
1 MestreemGeografiapelaUniversidadedoEstadodoRiodeJaneiro(UERJ).ProfessordeGeografiadaFAETECedaSecretariaMunicipaldeEducaçã[email protected].
RuaJoãoVicente,1775,MarechalHermes,RiodeJaneiro,RJ.21610-210.
Resumo
SobosprincípiosdaGeografiahumanista,procuroinvestigaropoderda identidade e do pertencimento de moradores e frequentadoresdo Morro da Conceição. Esta localidade atravessa instigantesprocessos de revitalização urbana e turistificação, que transbordamseusimpactosnomundovividodosindivíduos,noselosdosmesmospara com seus lugares de significado, plenos de simbolismo.Nestecontexto,o lugardeveservistocomoumcontínuodinâmico,plenode nuances, fragrâncias, simbolismos e identidades. Afinado comprincípiosfenomenológicos,buscoentenderasrelaçõesdosindivíduoscomseuslares,traduzindoassimaalmadosseuslugares,identidadeesimbiose.Apoiadoemdepoimentos,quesãoveículosdeidentidadesquepodemtraduzir culturaspulsantes,procuroelucidara forçadasvivênciaseopoderdolugarfaceàstransformaçõesqueocorremnalocalidade.
Palavras-chave: Lugar.Geografia Humanista. Morro da Conceição.Turistificação.
Abstract
UndertheprinciplesofHumanistGeography,Iattempttoinvestigatethe power of identity and belonging of residents and frequentersof the Morro da Conceição. This location is passing through instigating processes of urban revitalization and touristification,overflowingitsimpactinthelivedworldofindividuals,ontheirlinkswith theirplacesofmeaning, full of symbolism. In this context, theplace should be seen as a continuous dynamic, full of nuances,fragrances, symbolism and identity. Tuned with phenomenologicalprinciples, I seek to understand the relationship of individuals withtheir homes, thus translating the spirit of their places, identity andsymbiosis. Supported by statements, that are vehicles of identitiesthatcantranslatepulsatingcultures,Iseektoelucidatethestrengthoftheexperiencesandthepowerofplaceinfaceofthechangesthatareoccurringinthelocality.
Keywords: Place. Humanist Geography. Morro da Conceição.Touristification.
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Por entre espaços e lugares da área portuária do Rio de Janeiro: a dimensão da vivência no Morro da ConceiçãoPaulo Mauricio Rangel Gonçalves
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Considerações iniciais
Sobaégidedeintensasmudançasemovimentaçõesquemarcama globalização contemporânea, os lugares e símbolos adquiremumaconotaçãoaindamaisespecial,tantoparaosqueacreditamnaresistênciaounofenecimentodosmesmosquantoparaosquecreememumnovopulsardeseussimbolismosechamamentos.Nestemote,selecionamos um recorte espacial específico: a área portuária daCidadedoRiodeJaneiro.Hátempossendopensadaparasercenáriode intensas alterações urbanas, tais metamorfoses hodiernamentemarcamestesolodaCidade,natentativadeinfringirumarevitalizaçãodaáreaportuáriadaCidadedoRiodeJaneiro,bemcomoaconteceraemoutrosexemplosbem-sucedidosmundoafora.Neste perímetro, algumas localidades nos convidam a tecer
considerações e mergulhar em seus meandros pelo seu poder deresistência.Ao caminharmos pelo centro doRio, nos confrontamoscom um lugar central, uma área core para os negócios, gestão emovimentosqueemanamesãoirradiadosdaepelacidade,estendendosua ação por sua hinterlândia e arredores. Todavia, a rapidez dosfluxos, ladeados pelas torres, sedes de grandes empresas, destoabastantedacontiguidadeespacialdaárea.Deumlado,observa-seaverticalizaçãodonúcleocentralcomedificaçõesdediversospatamarese,nascircunvizinhanças,odomíniodeumaáreaassobradadarepletade funções“pouconobres”, taiscomobares,mercearias,depósitos,hotéis de alta rotatividade, sebos, brechós, oficinas, borracharias,além de residências unifamiliares e plurifamiliares (CORRÊA, 1995).Nessecaso,façamosumaalusãodiretaaumpontodaáreaportuáriadacidade,oMorrodaConceição,quepodeserentendidocomoumaporçãoespacialdiferenciadadoseuentorno.Noquetangealocalizaçãoe vias, embora sejam logradouros relativamente próximos, há um
contrasteenormeentreaagitaçãodaAvenidaRioBrancoeaquaseletargiadaLadeiradoJoãoHomem.Nosmapeamentossocioespaciais,aprimeirapertenceaocentronervosoeaoutraaobairrodaSaúde,aoqualoMorrodaConceiçãoépertencente,incluídonaperiferiadaÁreaCentraldoRiodeJaneiro(RABHA,1984).OMorrodaConceiçãoéumdosremanescentesdosquatromorros
quedelimitavamosítiooriginaldacidade(SãoBento,SantoAntônio,Castelo e Morro da Conceição), permanecendo, até os dias atuais,preservado.Situadojuntoaocoraçãofinanceirodacidade,oMorrodaConceiçãoéreservadoaosolhosmaisdistraídos,seescondendoentreosaltosedifícioseantigosarmazéns.Possuidordemíticasgeografiasquesedesvelamdesdeimperiaiseescravocratastemposidos,oMorropassahojeportransformações,oriundasdeinvestimentospúblicoseprivados,quetendemaalteraroperfileolayoutdolugar.De acordo com Denis Cosgrove, somos geógrafos a qualquer
momento, estando aGeografia em toda parte (COSGROVE, 1998).Nestaexploraçãogeográfica,amultiplicidadedelugareseaexplosãode centralidades em um único espaço urbano se tornam focos defascínio(MELLO,2002),assimcomoasespacialidadesdegrupossociaisdistintos, portadores de diferenciados lares/lugares. À procura deentenderumaurbequevivenciaumprocessodeintensasmetamorfosese interações, aGeografia tem explorado extraordinárias mutações.Emmeioaestecenáriodesignificativosfluxos,evidenciaremosolar(oulugar)comoumapausa,emummundodefugacidadeseacolhida.ParaogeógrafoYi-FuTuan,retomandoumamáximadosanos40,“aGeografiaéoestudodaTerracomoolardaspessoas”(TUAN,1991,p.189).Emelucidaçãoaoqueseriaumlar,oautor(1983,p.3)sublinha:“olaréavelhacasa,ovelhobairro,avelhacidadeouapátria”sendoestes fontes de permanência, segurança e trânsito que podem serentendidos como pausas nestas movimentações. Em sintonia com
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Tuan no que tange aos lares/lugares e sua conectividade com osindivíduos,“emqualquerlugarondehajasereshumanos,haveráolaralguém–comtodoosignificadoafetivodapalavra”(TUAN,1980,p.130).AotermoscomoguiaasideiasdeTuan,nodecorrerdesteartigo,abordaremoso referido recortedaáreaportuáriaatravésdasvozesde alguns dos seus indivíduos com seus lugares em transformação,traduzindomundosdesignificados,dramas,teiassociais,conflitosefelicidades,quepodemproduzir,porextensão,laresemmutação.Notocanteaosobjetivosdesteartigo,emconcórdiacomofilósofo
Jean-Marc Besse, acreditamos que “o geógrafo habita omundo ao mesmo tempo que procura compreender-lhe as estruturas e osmovimentos”(BESSE,2006,p.82).Tendocomonorteestepreceito,opresentetrabalhotemcomopropósitoexploraraatualdinâmicadoMorrodaConceição.Sabendoque“cadacidadãotemvastasassociaçõescomalgumapartedesuacidade,eaimagemdecadaumestáimpregnadadelembrançasesignificados”(LYNCH,2010,p.1),busca-se,apartirdaslembrançasesignificados,acompreensãodosseuslugares.Aotercomo referência aspalavrasdeClaval, concomitantemente,o textobusca “estudaras relações complexasque sedesenvolvementreoshomenseosambientesondeelesvivem”(CLAVAL,2004,p.21).Sobesteprisma,oaproveitamentodefragmentosquelancemluzessobreascomplexidadesdorelacionamentodohomemcomaTerra,queépalco de diferentes mundos, é obrigatório. Em concordância comWertherHolzer,queseamparanasideiasdeTuan(1965),“omundoéumcampoderelaçõesestruturadoapartirdapolaridadeentreoeueooutro,eleéoreinoondeahistóriaocorre,ondeencontramosascoisas,osoutrosenósmesmos,edestepontodevistadeveserapropriadopelaGeografia”(HOLZER,1999,p.69).Emvistadisso,amaneiracomqueosindivíduosdoMorrodaConceiçãoestãovivenciandoosseuslugareshodiernamente, um período em que este recorte espacial está em
grandeevidênciamidiáticaeemincitanteprocessodeturistificação,serevelacomoumfocodegrandeinteresse,pelofatodolugarpoderrepresentaromundodo(s) indivíduo(s).Nestecontexto,ogeógrafoJoãoBaptistaFerreiradeMellocontribuiaoafirmarque“oslugaresdemodismoeascentralidades,emseusmaisdiversospatamares,podemdesabrochar,sofrerumaespéciedetorporouatémesmofenecer,aosabordasoscilaçõesperiódicasedeoutrasinjunções”(MELLO,2011,p.11).Destamaneira,noscumpreinvestigarospertencimentoseoselosimbricadosentreapopulaçãoesuasarenasdevida.Esteartigoestáorganizadoemtrêspartes,semcontarmoscomas
considerações iniciaiseconclusão.Aprimeira, intitulada“OMorroeumabreverevisãoconceitualsobrelugar”,destina-seaumareflexãosobrediferentesabordagensconceituaisdelugar,trazidasàexposiçãoporcontadesuaimportânciaparaafundamentaçãodesteconceito-chave que delineará as inquietações propostas neste artigo. Nasegundaparte–“OdescortinardoslugaresnoMorrodaConceição”–mostraremosalgumaslocalidadesdoMorrodaConceiçãoiluminadaspela ótica e traduzidas pelas vozes demoradores e frequentadoresdopróprioMorro.Buscamos,destamaneira,exploraromundovividoeos lugareseleitospelospróprios insiders,que traduzemsingularesgeografiasexistenciais.Otítulodaterceiraparte–“OpulsarturísticonoMorrodaConceição”–sintetizaoquenelesepropõe.Emlinhasgerais,efetivamosumaleituradaatividadeturísticaquesedesenrolanoMorrodaConceição,apoiando-nostantonavozdosmoradoresefrequentadorescomoporfontesmidiáticas,assimcomo,porfim,emnossaprópriavivêncianoperímetro.
O Morro e uma breve revisão conceitual sobre lugar
Desde o final do século passado, na esteira de um processo deturistificaçãoqueatingeespaçoselugaresdoCentrodoRio,oMorro
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da Conceição, tal qual um belo cartão postal, teve sua visitaçãoampliada.Ocasariodefachadashistóricas,inspiradosnaarquiteturalusitana,aindaconservadoemdiversosdeseuspontos,édescobertoebatizadopelamídiacultdaCidadeMaravilhosa.Ateliêsebaressãoabertos,convidandocadavezmaisoutsidersavivenciaremoespaçodoMorro.Conformeforavistoemestudosanteriores(GONÇALVES,2013),emumdossopésdoMorrodaConceição,namíticaPedradoSal,éverificadaumasuper-utilizaçãodaescadarialocal,situaçãoestaque suscita opiniões conflitantes dos insiders, ou seja, dos própriosmoradoresdaárea.SegundoCosgrove,“olocaléumlugarsimbólico,onde muitas culturas se encontram e talvez entrem em conflito”(COSGROVE,1998,p.93).Emcoadunaçãocomestaideia,atéquandoestapopularizaçãodoMorrodaConceiçãonãose transformariaemum transtorno para a população que nele habita e tem seu espaçodevivênciaenquantoumlugar?Nestestermos,oqueviriaaserumlugar?Aprioristicamenteà“rolança”dosacontecimentosefatosquesedesenrolamnoslugaresdoMorroquepodemconvidarmoradoresemesmofrequentadoresamergulharemsuasraízeseproblematizarassuasconsequências,manifestemosumpoucomaissobreoconceitodelugar,poistalqualnosensinaogeógrafofrancêsPaulClaval,“estudarGeografiaépartirdaposiçãodo lugarepensarascirculaçõesqueoafetam”(CLAVAL,2010,p.40).No que tange à questão espacial, o conceito lugar, de suma
importância para o estudo geográfico, norteará as investigações einquietações aqui propostas. Em diálogo com este viés de análise,Lukermannafirmaqueoestudodolugaréamatéria-primadaGeografia(LUKERMANN,1964;citadoporHOLZER,1999,p.69).Destarte,noscumpreefetivarumadistinçãoentredoisconceitos-chavepilaresdaGeografia contemporânea: o espaço e o lugar. Diferentemente doespaço, aberto, livre, amplo, vulnerável, desconhecido causador de
ansiedades; o lugar é fechado, íntimo, aconchegante, organizado,pleno de ternura e empatia (MELLO,1997).O lugar seria assim um“mundo de significado organizado” (TUAN, 1983, p. 198), frente àamplitudedocontinuumespaço.AindasegundoTuan, “as ideiasde“espaço”e“lugar”nãopodemserdefinidasumasemaoutra.Apartirdasegurançaeestabilidadedolugar,estamoscientesdaamplidãodaliberdadeedaameaçadoespaço,evice-versa” (TUAN,1983,p.6).Destamaneira,paraogeógrafohumanista,
o espaço fechado e humanizado é lugar. Comparado com oespaço, o lugar é um centro calmo de valores estabelecidos.Os seres humanos necessitam de espaço e de lugar.As vidashumanassãoummovimentodialéticoentrerefúgioeaventura,dependênciaeliberdade(TUAN,1983,p.61)
Contribuindoparaestadiferenciação,ogeógrafocanadenseEdwardRelphafirma:
oespaçoéamorfoeintangívelenãoumaentidadequepossaserdiretamente descrita e analisada.Ainda, de qualquermaneiraquesintamos,conheçamosouexpliquemosoespaço,hásemprepróximoumsensoouconceitodelugarassociado(RELPH,1976,p.8)2.
Em complementaridade a estas ideias, acrescentaAuroraGarciaBallesteros:
[...]centrodesignificados,condiçãodaprópriaexperiência,focodevinculaçãoemocionalparaossereshumanos,contextoparanossasaçõese fontedanossa identidade,oconceitode lugarse opõe ao geométrico espaço abstrato do neopositivismo e,diferenciando-sedeste,estácheiodesignificadosevalores,que
2 Traduçãodooriginal:“Space is amorphous and intangible and not an entity that can be directly described and analyzed. Yet, however we feel or know or explain space, there is nearly always some associated sense or concept of place”.
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são inseparáveisdaexperiênciadosquenelehabitam,deseuspensamentosesentimentos(BALLESTEROS,1992,p.11)3
Nestacirandadeexplanaçõesesignificaçõesacercadoconceitodelugar,soboprismadasociologia,StuartHallcontribuiaoafirmarque“olugaréespecífico,concreto,conhecido,familiar,delimitado:opontodepráticas sociais específicasquenosmoldaramenos formaramecomasquaisnossasidentidadesestãoestreitamenteligadas”(HALL,2006,p. 72),pois comonosensinaogeógrafoMello (1990,p. 102),“olugarérecortadoemocionalmentenasexperiênciascotidianas”.É,portanto,umaporçãodoespaçotalhadapornossabem-querênciaeafetividadecomaqualnos identificamos.Ouseja,quandooespaçoganha significado e qualidade se transforma em lugar. Se for umperímetronãoportadordesignificadospositivos trata-seapenasdeespaço,aserdesbravado,conquistado,capturado(TUAN,1983;1998;TORRESRIBEIRO,1995;MELLO,2000).Entretanto,sobaperspectivahumanista,nãopodemosconfundiraantítesedolugar,oespaço,comoconceitosociológicodenão-lugar,cunhadoporMarcAugé.Paraosociólogo,
osnão-lugaressãotantoasinstalaçõesnecessáriasàcirculaçãoaceleradadaspessoasebens(viasexpressas,trechosrodoviários,aeroportos) quanto os próprios meios de transporte ou osgrandes centros comerciais, ou ainda os campos de trânsitoprolongado onde são estacionados os refugiados do Planeta(AUGÉ,1994,p.36-37).
3 Traduçãodooriginal:“Centro de significados, condición de la própria experiência, foco de vinculación emocional para los seres numanos, contexto para nuestras acciones y fuente de nuestra identidad, el concepto de lugar se opone al geometrizado espacio abstracto del neopositivismo y, a diferencia de este, está lleno de significados y valores, que son insepa-rables de la experiencia de quienes lo habitan, de sus pensamientos y sentimientos”.
Em meio aos domínios conceituais da Geografia humanista, atémesmocertaslocalidades,comoviasexpressas,trechosrodoviárioseaeroportos,podemserlugaresparaalguém.Emborapossamparecer“lugares-sem-lugaridade” (RELPH, 1976)4 para outrem, integram omosaicodeporções terrestresespeciaisparaalguns indivíduose/ougrupossociais,conformenoslembraogeógrafoJoãoBaptistaFerreiradeMello:
ospertences,parentes,amigoseabaseterritorialexperienciadafazempartedoacervoíntimodoindivíduo.Pausa,movimentoemorada conferem aomundo vivido a distinção de lugar.Asexperiênciaslocaisdehabitação,trabalhodivertimento,estudoedosfluxostransformamespaçosemlugares(MELLO,1990,p.102).
Nestes termos, recorremos a Kevin Lynch quando afirma, paraum outro sentido, “se o ambiente for visivelmente organizado enitidamente identificado, o cidadão poderá impregná-lo de seusprópriossignificadoserelações.Entãosetornaráumverdadeirolugar,notáveleinconfundível”(LYNCH,2010,p.101-102).Portanto,pormeiode contribuiçõesdeestudiososde variadasáreasdo conhecimento,podemos compreender a potencialidade do conceito de lugar.SegundoageógrafaLíviadeOliveira,tradutoradeobrasdeYi-FuTuanparaalínguaportuguesa(EspaçoeLugar,1983;PaisagemdoMedo,2006;Topofilia,2013)emrelaçãoaesta inconfundibilidadedo lugar,“conhecemosonosso lugar;cadaumtemoseu lugar.Assimsendo,ondevivemos,nossa residência,nossobairro inteiro, se tornamumlugarparanós”(OLIVEIRA,2012,p.11).Nomesmolivro“QualoEspaçodoLugar?”nosutilizamosdaponderaçãodeEdwardRelph:
4 ParaEdwardRelph,olugar-sem-lugaridadeéumapaisagemrepetida,estandardizada.Estetermofoiobtidomedianteatraduçãodoneologismoplacelessness(Relph,1976)cunhadopelopróprioautor.
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lugar não é meramente aquilo que possui raízes, conhecer eser conhecido no bairro; não é apenas distinção e apreciaçãode fragmentos de geografia.O núcleo do significado de lugarseestende,pensoeu,emsuasligaçõesinextricáveiscomoser,comanossaprópriaexistência.Lugaréummicrocosmo.Éondecadaumdenósserelacionacomomundoeondeomundoserelacionaconosco(RELPH,2012,p.31).
Neste trecho em exposição, Relph (2012) externa e amplia oconceitode lugar,ondeesteénãoapenas inextricavelmente ligadoàexperiência localdodia-a-dia,mastambémconectadoaomundo,pois “lugar é onde conflui a experiência cotidiana, e tambémcomoesta experiência se abre para omundo” (RELPH, 2012, p. 29). Estaconcepção é também adotada por Eduardo Marandola Jr. (2012),queacreditaque“olugarfazpartedonossocotidianoeapartirdelequenosinserimosnomundo.Épelolugarquenosidentificamos,ounos lembramos, constituindo assim a base de nossa experiência nomundo”(MARANDOLAJR;,2012,p.228).NainterpretaçãodeAuroraGarcia Ballesteros, referindo-se às elucubrações de Daniels, “eminglêsotermoplace temconotaçõesdeestabilidadeepertencimentoderivadasdeumsentidoestritoeexcessivamente inclusodeordemedecontrolesocial,porqueanoçãodelugarseriadominantementeconservadoraeopostaatodamudança5”(BALLESTEROS,1992,p.13).Indodeencontroaestasideias,EdwardRelphsublinha:“éimportantecompreenderqueépormeiodelugaresqueindivíduosesociedadesse relacionamcomomundo,equeessa relaçãotempotencialparaseraomesmotempoprofundamenteresponsáveletransformadora”(RELPH, 2012, p. 27). Em síntese, visando umnão esgotamento de
5 Traduçãodooriginal:“en inglés el termino place tiene connotaciones de estabilidade y pertencia derivadas de um sentido estricto e incluso excessivo del orden y del control so-cial, por lo que la nocion de lugar sería dominantemente conservadora e opuesta a todo cambio”.
interpretações e acepções do conceito supracitado, Marandola Jr.(2012)edificaumenlaçamentoentreastraduçõesdelugar:
referindo-se a própria forma de ser-e-estar-no-mundo, lugaré inalienávele,portanto,permanececomo fundantedenossaexperiênciacontemporânea,independentedastransformaçõessocioespaciais. Longe de ser estático, ele é dinâmico, poiscorresponde à própria essência do ser, que é igualmente viva(MARANDOLAJR.,2012,p.230).
Concernente a uma leitura sobre as linhas gerais em que foramfundamentadas as distintas apreciações sobre o conceito de lugar,façamos umapanhadode pareceres conceituais, suasmodificaçõese transgressões. Durante as décadas de setenta e oitenta doséculo vinte,o surgimentodo interesseno lugarestavaatreladoaoempenhonapreservaçãodopatrimônio,emdecorrênciadedrásticastransformações urbanísticas que estavam acontecendo em cidadesdosEstadosUnidoseEuropa,assimcomoemoutrospontosdoGloboTerrestre (COSGROVE, 1998;RELPH, 2012). Posto isso, aGeografiahumanista,preocupadacomaproliferaçãodelugares-sem-lugaridadeeseusefeitosnocivosnarelaçãoidentitáriadosindivíduoscomseusespaçosvividos,abreumnovolequedepossibilidadesnoâmbitodosabergeográfico.Apartir dadécadadenoventa, soba emergênciadeumperíododeassombrosavelocidadedefluxosemarcadopelapreocupaçãodeteóricosdapós-modernidade,oconceitodelugaréamplamenterevisitado.SegundonosapontaJoãoBaptistaFerreiradeMello(2000)emsuatesededoutoramento,
osesforçosdeconstruçãodoconceitolugar,convémreconhecer,nãoserestringemaosfilósofosouadeptosdacorrentehumanista,notadamente nos últimos tempos, quando beneficiando-se e em confronto ou paralelo ao ritmo das inovações e da instantaneidadedosfluxosemummundoglobalizadoassomam
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geografias vívidas e pulsantes em um Planeta fragmentado,cujos estilhaços encontram-se pulverizados nosmais diversoslongínquosrecantos(MELLO,2000,p.119).
Sobestalógica,osindivíduoseoslugaresestão“plugadosnarede”,lembrandoqueawebapresentaàhumanidade“umritmoalucinante,umamaneira de se comunicar e ver o outro lado domundo aqui eagora” (MELLO, 2010, p. 176).Trata-se da dromologia, a lógica dacorrida,comoescreveuofilósofoPaulVirilio(1984).ParaourbanistacatalãoManuelCastells(2003),emsuaobraAGaláxiadaInternet,esterecursoextraordinárioéacimadetudo,“umacriaçãocultural”estandoemtodaparte,fazendo,assim,comquelugaresseentrecruzem.Nestaseara,emcontrastecomoglobal,comofonteeexpressão
de diferença, o lugar passou a atrair cada vez mais a atenção deoutrasdisciplinasacadêmicas.Emboraaproeminênciadesteconceitotão caro àGeografia humanista seja objeto de comemorações porparte de seus principais formuladores, efetivavam-se problemas ecríticas decorrentes. Entre estes, estavam a criação e manipulaçãodelugaresporcontadeempresas,queexploravamaidentidadedoslugaresnabuscaincessantedelucrosnomercadoexibindo,emmuitasoportunidades,modos,hábitoseespelhosdelugaresalém-mar,comonocasoda“hiltonização”e“sheratonização”(SANGUIN,1981,p.571-572)6daspaisagens, invençãoderesortse ilhasparadisíacas.Nestascircunstâncias,pulularamcríticasdeeconomistasegeógrafosdaalamarxistaàs ideiashumanistasde lugar.Osmarxistascontrapunhamaos “locais de nostalgia, limitados, autênticos e de algum modoentendidoscomoeternos.[...]taislocaissãoexcludentes,alémde[...]
6 Expressões criadas pelo geógrafo francêsAndre-LouisSanguin, em alusão àmimetizaçãodepaisagensmediantepadrõespré-estabelecidosporempresas.ComoreconhecimentodeSanguin(1981,p.571),estavisualizaçãofoiincialmenteconcebidaporEdwardRelphem1976,naobra“PlaceandPlacelessness”.
manifestaçõesprovincianasdetudooqueéradical”(RELPH,2012,p.21).Emconectividadeaestascríticas,queviamolugarcomofontedesentimentalismoeestabilidadeaprofundadosporraízesdeindivíduose grupos, osmarxistas formularamuma concepção diferenciada delugar,queconsideravaoslugares
comonósparticularesdasinteraçõesdasredessocial,econômicae política global, na qual os lugares são manifestações locaisde macroprocessos econômicos ao invés de surgirem de umcontextohistóricoespecifico.Estesnósestãoassociadosaumprogressivosentidoglobaldelugar,quepodeservircomobasederesistênciacontraasinjustiçassociais,exclusãoedesigualdadequeresultamdaglobalizaçãoneoliberal(RELPH,2012,p.21).
ParaRelph,emboraasteseshumanistaemarxistapossamparecercontraditórias e contestadas, na verdade convergem, visto queinsistemnaforçadolugar,faceamassificaçãodoglobalismo,comsuapersistênciaemerodirolocal(RELPH,2012).Consubstanciandoestaideia,“estudarepromoverolugarsejadeumaperspectivahumanista,radical,sejadeumaperspectivaarquitetônicaoupsicológica,éumapraticade resistência” (RELPH,2012,p. 21).Sobumpontodevistainovador,quecongregaestasduasacepçõesdelugardistintas,citamosoepistemólogodaGeografiaRuyMoreira:
[...] lugar como relação nodal e lugar como relação depertencimentopodemservistospordoisângulosdiferentesdeolhar sobreomesmoespaçodohomemno tempodomundoglobalizado.Tantoosentidonodalcomoodavivenciaestãoaipresentes,masdistintosjustamentepeladiferençadosentido.Sentidodevezque,sejacomofor,olugaréhojeumarealidadedeterminada em sua forma e conteúdo pela rede global danodosidade,eaomesmotempopelanecessidadedohomemde(re)fazerosentidodoespaço,ressignificando-ocomorelaçãodeambiênciaedepertencimento.Ditodeoutromodo,éo lugar
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que dá o tomde diferenciação do espaço do homem– não ocapital–emnossotempo(MOREIRA,2012,p.174-175).
Dando a entender que os conceitos de lugar deTuan, damatrizhumanista, e de Santos, da matriz crítica, não são distintos eexcludentes,podendoser combinadose transcritos faceaoperíodoemquevivenciamos.Contudo, a despeito das proposições da tese crítica e da pactual
sínteseelaboradapelocélebregeógrafoRuyMoreira,muitoimportantese fundantes para o pensamento geográfico contemporâneo,prosseguiremos com o emprego do conceito de lugar erigido pelamatrizhumanista,anossovernorteadordeumviéspluralesubjetivoda “realidade” vivenciada (o universo vivido) pelos mais comuns ediversosindivíduosegrupossociais.Emrelaçãoaessessujeitos,quehabitamlugaresprenhesdesignificados,mergulhemosemexposiçõesoraisacercadesuasarenasdevidaedepertencimento.Nesteplano,vejamos sucintamente o complexo jogo de analogias, valores,representações e identidades correntes em algumas localidades doMorrodaConceição, eleitaspelopesquisadormedianteo resultadode suas entrevistas e vivências, demaneira a trazermos para nossaanáliseoricofluxodecotidianidadeseespontaneidadesexistentesnorecorteespacialenfocado.Explicitamosque,demaneiraalguma,talexposiçãopossuiapretensãodeesgotaraspossibilidadesdeoutrasanálises abordarem a mesma temática em artigos ou agendas detrabalhosfuturos.
O descortinar dos lugares no Morro da Conceição
Apartirdaspremissashumanistas,denotandoanecessidadedanãobanalizaçãodoconceitodelugar,vistoserumimprescindívelconceitoemGeografia,principalmentenavertentehumanista,nestemomentobuscamosdecodificaros lugaresdoMorrodaConceiçãoapartirdas
pessoas que os integram/elegem. No tocante a desfraldar um dosespaçose lugaresmais característicosdoRiodeJaneiro,de seculartradiçãoenaordemdodiaparaturistase legiõesdecariocasnestemilênio,cumpre-nosvivenciaralgunspontosdoMorrodaConceiçãoocupado nos primeiros de colonização sob as bênçãos da SenhoradaConceição;onde lugares se fundemcomexperiênciaspessoais einterpessoais.Oscaminhosde investigaçãoparaesta interaçãocomosindivíduosdoMorrodaConceiçãoforaminspiradosporumatrilhajápercorridapelogeógrafocatalãoNoguéyFont.Orenomadogeógrafoespanhol,emsuatesededoutoramento,defendidaem1985,buscouexplorar e descobrir os fenômenos domundo vivido nas paisagensexistenciaisdecincodiferentesgruposdeindivíduosemLaGarrotxa,comarcasituadaanordestedaCatalunha,naEspanha.Assimcomoele, optamos por trabalhos de campo experienciais, objetivando oestabelecimentodeentrevistaspessoais.Acercadametodologiadostrabalhosdecampoexperienciais,contribuiBallesteros:
se trata de buscar o conhecimento interpessoal através daimersãoemlugaresvividoscotidianamenteporaquelaspessoasquequeremosestudar.Umtrabalhodestetiposupõeumlentoprocesso de aproximação com o grupo estudado e o recursoa técnicas utilizadas em outras ciências sociais: a observaçãoparticipante, entrevistas em profundidade, histórias de vida,dinâmica de grupos, etc., buscando sempre a compreensãoempatética dos entrevistados e interferindo omenos possívelemseusrelatos”(BALLESTEROS,1992,p.14)7.
7 Traduçãodooriginal:“Se trata de buscar el conocimiento interpersonal a través de la in-mersión em los lugares vividos cotidianamento por aquellas personas que queremos estu-diar. Um trabajo de este tipo supone um lento processo de aproximación al grupo estudia-do y el recurso a técnicas utilizadas em otras ciências sociales: observación participante, entrevistas em profundidad, historias de vida, dinâmica de grupos, etc, buscando siempre la compreensión empatética de los entrevistados e interfiriendo lo menos posible em sus relatos”.
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Por intermédiodo contatodireto comaspopulaçõeslocais, ou insiders, é construído um arcabouço deinformaçõesgenuínas sobreas vivênciasdos indivíduosem seus lugares. Segundo os preceitos da geógrafaAnne Buttimer, “devemos consistentemente retornarà experiência direta. Os dados primários para apercepçãosãotomadosdecontatosdiretosentrecorpoemundo”(BUTTIMER,1982,p.175).Destamaneira,porintermédio destes contatos, buscamos a compreensãodas macroestruturas a partir das pessoas comuns.Entrementes, não buscamos oferecer uma mostraquantitativa representativa da realidade, mas sim umamostraqualitativa.Ouseja,abuscapelaexponencialidadee singularidade de discursos e depoimentos não zelarápelasuaquantidadeetamanhodedepoimentos,massimpelasignificânciaetraduçãoderealidadeseexperiências.TendocomodiretrizesaspalavrasdeDenisCosgrove,
“os múltiplos significados das paisagens simbólicasaguardamdecodificaçãogeográfica”(COSGROVE,1998,p.108),setornaminstigantesavisualizaçãodavivacidadee da criatividade dos sujeitos nos espaços e lugares, eo entendimento de como “os ambientes humanos setornamextensõesdonossoprópriocorpo”(BERQUE,1999apudCLAVAL,2004,p.51).Nestenicho,umsignificativodepoimento ilustraesta conectividade: “o pessoal daqui não costuma chamar esta praça pelo nome dela mesmo, não. Chamamos é de praça da santinha. É mais fácil, não é? Não tem a Nossa Senhora lá mesmo?”,considerouumsenhorresidenteemumadascasasdafamosaPraçaMajorValô,daelevaçãoemcurso,nodia20dedezembrode2012.Apraça,situadaàfrentedaFortalezadaConceição,recebeuestatoponímiaem1929,emhomenagemaum
austríaco quemodernizou o serviço geográficomilitar (GERSON, 2000, p. 144-145).Noentanto, conforme foravisto,paraapopulação localeste logradouroévernacularmenteconhecidocomo“praçadasantinha”,emreverênciaà imagemdeNossaSenhoradaConceição,demonstrandoempatia,zeloedevoçãocomesteperímetrocoletivo,quesedesvelacomoumlugarparaosvisitantese,sobretudo,paraosqueestabelecemvínculosafetivoscomseusdomínios.Hoje,apraçaservede palco não para a entrada de armamentos na Fortaleza, como fora projetadaoriginalmente,séculosatrás,masparareuniõespopularesdaBandadaConceiçãoe do bloco Escravos da Mauá, que, em mágicas coreografias, integrantes dadança-do-lugar8, congregamapopulaçãodoMorroedo “asfalto”emefusivasesonorasreuniões(Figuras1e2).Apolivocalidadedasformasdolugarevidenciamapluralidadedesignificadosedeinterpretaçõesdistintasqueenriquecemocenárioemtela,percorridonodia-a-diapelaspessoasdaConceiçãoemesmoporturistasocasionais(CORRÊA,2007).
Figura1 Figura2
AsfotosrepresentammomentosdistintosdaPraçaMajorValô,sobavisãodasantanopedestal,sendoànoiteiluminadaemseuesplendor.Naprimeirafotosobressaiotrabalhoenasegundaolazer,quandoaPraçadaSantinha,comoditonabocadopovo,étomadaporcentenasdepessoasparaassistiraoshowdosEscravosdaMauá.
Fonte:Arquivopessoal,2012
8 EsteéumconceitocriadooriginalmenteporDavidSeamom(1980),naobra“Body-subject,time-spaceroutinesandplace-ballets”,pertinenteaumacaracterísticapeculiarquecada lugarvividopodeviraapresentar,medianteumafusãodemuitasrotinasespaço-temporaisedebalésdocorpoemtermosdeespaço.
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Osentimentofamilialapregoadoaolugaresuarelaçãocom a estátua deNossaSenhora daConceição confluemparaosapontamentosdeMello (2012,p.64),ao sinalizarque “o lugar transcende a materialidade, mas não estádesassociadodesta,poisaosobjetososhomensatribuemsignificados que são construídos na vivência individualou dos grupos”, ou seja, no contexto da experiência daspessoas, a imagem se funde à praça, como algo único eindissociável.Notocanteàscelebraçõesquesedesvelamnestaporção
espacial, sagrada para muitos, contribui um moradorentrevistado,comasseguintespalavras:“no dia da festa de Nossa Senhora, todo mundo vem pro Morro, até quem já saiu. É o dia mais importante do Morro. Pode ver como tá lotado de gente nesta praça, que tá toda enfeitada com flores”9.Nestedepoimento,omoradorexternasuaopiniãoacercadafestadeNossaSenhoradaConceição, “o dia mais importante do Morro”.A praça ostenta um simbolismo tão vultuoso quenelaseconcentraopontoaltodafestadeNossaSenhorada Conceição, com procissão, orações e distribuição deflores,quecongregamnãoapenasosmoradoresdoMorrodaConceição,mastambémpessoasquevemdefora,emtododia8dedezembrodecadaano(Figuras3e4).Nesteplano, se configuram,a cadaano, “itinerários simbólicos”(CORRÊA, 2012), em que nesta data em específico, umaprocissãotomadegenteosprincipaislogradourosdoMorrodaConceição.Opontodepartidaedechegadadesteitineráriosimbólico
deféeesperançaséuma“igrejinha muito importante, que batizou todo mundo aqui do Morro”10, a Igreja de Nossa
9 Entrevistarealizadanodia8dedezembrode2012.10Partedodepoimentodeumavelhamoradorasobrea IgrejadeNossaSenhoradaConceição,obtidonodia24dejulhode2012.
SenhoradaConceição (Figuras5,6e 7),popularmentechamadade IgrejadaConceiçãopelosmoradores.Finalizadapelosportugueses,moradoresdoMorro,emfacedesuadevoção,em 10dejulhode1892,naruaJogodaBola,osantuárioéatéosdiasatuaisbastantevisitadoedecorado.Situadaemum logradourocentraldoMorro,emumaáreadensamenteresidencial,aigrejafuncionacomoumenclavereligioso,quecongregamoradoresefrequentadoresdoMorroemreuniõesreligiosasefestivas.Aigrejaé,marcadamente,umlugarquetranscendegeraçõesnoMorrodaConceição.
Figura3 Figura4
AestátuadeNossaSenhoraécobertaporfloresemcelebraçãoaoseudia,noqualcentenasdepes-soassaemdesuascasasesobemoMorrodaConceiçãoparaacelebração
Fonte:Arquivopessoal,2012e2012.
Porintermédiodasconversaserelatos,entendemosqueoMorrodaConceiçãoatravessaumperíododegrandeefervescência.AcercadestamaiorexposiçãoevisitaçãodoMorro,emumadeclaraçãoemtomirritadiço,afirmaraumsenhordemeiaidade,“as pessoas parecem que nunca viram isto aqui. Eu fico aqui dentro do meu estabelecimento e as pessoas tirando fotos e mais fotos, parece que eu sou um animal em um zoológico”,disseraomesmoemumestabelecimentodoMorrodaConceição11.Estedepoimentoilustraimpertinênciasqueosflashesfotográficos
11Depoimentoobtidonodia16dejulhode2011.
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Figura5 Figura6
Figura7
AsfotosmostramaIgrejadeNossaSenhoradaConceiçãoemumdiacomum,desemana,emqueamesmapermanecefechada,eaIgrejaapinhadadepessoas,nodiadaprocissãodeNossaSenhora
Fonte:Arquivopessoal,2012,2013e2013.
podem vir a causar na elevação em destaque. Neste caso, associamos (emsincronia comosmoradores) aos agentesmidiáticosumaposiçãodeoutsiders que, no afã de captaremas tão belas paisagens e situações humanas, retirama privacidade dos indivíduos doMorro (Figura 8).Asmatérias jornalísticas, noMorroestãomaisvoltadasparaacaptaçãodassingularespaisagens,compostas
por casarios com fachadas de séculos passados, ruasestreitasenomesfantasiososdelogradouros,conferindovisibilidade e glamour ao perímetro. Entretanto, estamaiorexposiçãopoderetrairapopulaçãoresidentedestascasas.Ressaltamosqueosmoradoresfazempartedolugar,abarrotadodeelementossimbólicos,quesuperexpostos,paraosoutsiderscriaumasensaçãode“mesmoquenãoosconheçamos,nósosreconhecemos”(AUGÉ,1994,p.35),intensificandoavisitaçãoeindodeencontroaodiscretoepacíficocotidianodemaiorpartedaspessoasdoMorrodaConceição.Nesta seara, baseando-nos em trabalhos de campo
e nos depoimentos obtidos ao longo desta pesquisa,caminhemosrumoaumaabordagemsobreaexplosãodoturismo,umfenômenorecentenoacidentegeográficoemtela.
O pulsar turístico no Morro da Conceição
Temoso conhecimentodeque “o Morro da Conceição está na moda”, conforme nos apontou um entrevistadoemmeadosdoúltimomêsde2012ecomoqueinformarauma fonte midiática impressa no ano de 201312. Nestatrilha, durante um trabalho de campo experiencial quese desenrolava no Morro da Conceição em janeiro de2013, por intermédio de um telefonema, um inusitadoconvite de um querido ente familiar é proferido: “estou com a minha namorada e gostaria de ir a algum lugar legal. Estou pensando em ir ao Morro da Conceição ou à Santa
12OGlobo,CadernoRio,de3demarçode2013.
Figura 8 – A placa reflete umagrande preocupação dos mo-radores:aperdadesuapriva-cidade.
Fonte:Arquivopessoal,2012.
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Tereza. Vamos?”13.Comoretorno,paraaestupefaçãodocasal,afirmeijáestarnoMorroeosconvideipassara tardedesábadoemminhacompanhia, proposta esta imediatamente aceita.Tal fato ilustra osnovosapelosdesteendereçonãoapenasparameufamiliar,masparaoutros outsiders, indivíduos que,mesmo sendo de fora, descobremvaloreseriquezasnoMorrodaConceição.Estasituaçãoéexpostanamancheteeamatériadeumimportantejornalimpresso,sobotítulo:“redescobrimentodomapados tesouros”14.Aexpressão“mapadostesouros”fazmençãoàsatraçõesculturaisegastronômicasdaÁreaPortuária,dentreasquaisoMorrodaConceiçãorecebeumenfoqueespecial. A matéria jornalística tem como pano de fundo a festivainauguração do Museu de Arte do Rio, também conhecido comoMAR,tidoporespecialistascomoummarcoparaorestaurodaÁreaPortuáriacarioca(Figura9).Indoaoencontrodesteretumbantedebutar,outrafonteimpressa
endossaosdiscursosdos indivíduosedamídia:“coma inauguraçãodo MAR, os cariocas começam a frequentar novamente a PraçaMauá ou até mesmo o Morro da Conceição, antes dois lugarespoucoconhecidospelosmais jovens”.15ConformeapontaramalgunsmoradoresdoMorroemsuaprimeiravisitaaoMuseu16,aconstruçãodesteartefatodegrandemagnitudefoimarcante:“omuseudoMARfoi muito importante para a comunidade, pois agora temos umaopçãodelazermuitointeressanteedegraça”(vistoqueosresidentesdoMorrodaConceiçãonãopagam ingressoparaentrarnomuseu).Nestasituação,acontiguidadeespacialentreoMorroeoMARdevesersublinhada,vistoqueomesmoselocalizaemumadasfranjasdoMorrodaConceição,juntoàPraçaMauá,defácilerápidoacessopara
13Conversarealizadaem12dejaneirode2013.14OGlobo,CadernoRioShow,de1demarçode2013.15OGlobo,CadernoRioImóveis2013–Projetosdemarketing,de24demarçode2013.16Entrevistarealizadaem25demaiode2013.
osmoradoresdoMorro(Figura10).Percorrendoestatrilha,qualseriaofatorpropulsordesteprocessode(re)descobrimentoquesedesvelanaÁreaPortuáriaenoMorrodaConceição,áreasoutrora“abandonadas”pelaPrefeituraequehojeexperimentamumaoutramovimentação?Nesta pós-modernidade líquida (BAUMAN, 1998), marcada pela
velocidadedasinteraçõeseporexperiênciasinterpessoaiseespaciaiscadavezmaisfugidias(SENNETT,2005),algumasáreasinternasdascidades,quesãolugaresparaumououtroindivíduoou,ainda,esteouaquelegruposocial,estãosendotoporreabilitadasparao retrofitdeprédiosoutorres,assimcomorefuncionalizaçãoeembelezamentodezonasedomíniosemescalasdiversas.Nestenexo,seguindoaatualtendênciadevalorizaçãodaculturalocaledosentidodepertencimento,algumas Prefeituras estão voltadas para antigas áreas degradadasde grandes cidades, principalmente porções portuárias, para uma
Figura 9–AilustraçãoexibeumdesenhodoMAR,comtraçadosdiferenciados,oriundosdauniãodoPalácioD.JoãoVIcomumedifíciodeestilomodernista
Fonte:<http://www.museumar.com>
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reabilitaçãoeparaseremrevividascomolócusdelazer(RODRIGUES,2001).Nestequadro,aPrefeituradaCidadedoRiodeJaneiro17sefazpresente. Por intermédio do Projeto Porto Maravilha, alavancandoempreendimentos com vistas ao aparelhamento da cidade para omegaeventoOlímpicode2016,aPrefeituraeoconsórcioPortoNovodesenvolveram investimentos visando a recuperação das históricasladeirasdoMorrodaConceiçãoedoslogradourosdoentorno.Nestascondições extensionistas, melhorias se sucederam no calçamentoe iluminaçãodasvias,comapretensãodeaprimoraraqualidadedevidadoshabitantesdoMorrodaConceição,atraindo,comisto,cada
17Ver: <www.portomaravilhario.com.br/projetos/morro-da-conceicao>. Aces-so em 10 Ago. 2010. Ver: <www.portomaravilha.com.br/conteudo/revistas/Boletim20%do20%porto%201%20web.pdf>.Acessoem:20mar.2011.
Figura 10 – Nesta foto, temosumapanorâmicadoMorrodaConceiçãodoúltimoandardoMAR,emumaperspectiva in-tegradora,emqueoMorroeoMARseentreolhamcontinua-mente
Fonte:Arquivopessoal,2013.
vezmaisvisitantesparaorecorteemfoco.Emtalperíodo,noqualoslugaresdoMorroearredoressãomuitofrequentadosporcariocaseturistas,omesmotemsidomuitoprocuradoporempresasegruposparafornecer“lazeresurbanos”(RODRIGUES,2001,p.89)alternativosparainsiders e outsidersdoRiodeSãoSebastião.NaesteiradesteprocessodeturistificaçãodoMorrodaConceição,
incrementadopelasmelhoriasinfraestruturaisqueestãoocorrendo,oProjetoMauárevelaseupioneirismoebem-querência,comolembraumuniversitárioresidentena“Conceição”:“o projeto foi desenvolvido por poucos artistas em 2002, se não me engano. Eles utilizavam as casas como ateliês para a exposição de obras de arte e de artesãos daqui da cidade e de fora. Isso foi bom, pois trouxe maior movimentação pro Morro”18.Comopassardosanos,parceriasforamincorporadasaestaempreitada,comoaFundaçãoSesieaprópriaPrefeituradaCidadedoRiodeJaneiro.Nadivulgaçãodesuasobras,ocorretambémumapropagaçãodosespaçose lugaresdoMorro,acarretando, inclusive,a criação de bares-restaurantes de certo requinte, face à presençade turistas na área.Utilizando como base o depoimento do jovem,amaiormovimentação não é um problema, diferentemente o quedisse o senhor demeia idade de parágrafos anteriores, a quem osflashes e maior movimentação incomodavam. Isto evidencia ascontraditóriasopiniõesacercadoturismonoMorro,quepodemtrazertantoaacolhidacomoarejeiçãonosdiferentes“mosaicosdelugares”(BUTTIMER,1982,p.177)individuaisoucoletivosexistentesnoMorrodaConceição.Neste diapasão, empreendimentos turísticos florescem no
Morro,palcoeroteirodeatividadesturísticas.InúmerosgruposhojeimplementamcaminhadaspelasruasevielasdoMorroemtrajetososquaisemtempospassadoserammonopolizadosportrabalhosdecampo
18Entrevistarealizadaem3dedezembrode2011.
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acadêmicosdeGeografia,ArquiteturaeUrbanismo,principalmente.AcriaçãodoProjeto PaláciosdoRio, por iniciativadeuma instituiçãopúblicadeEnsinoSuperiordoEstadodoRiodeJaneiro,ilustratalação.Como intuitode fomentarodesenvolvimento local sustentáveleavalorizaçãodopatrimôniohistóricoeculturaldacidade,visitasguiadassão promovidas, conferindo oportunidades para o desenvolvimentodeatividadesnasruasdoMorrodaConceiçãoeparaguiasdeturismo,bemcomolucratividadeparacomercianteslocais.Nestaseara,torna-seimportanterealizarumaanálisedodiscursoturísticopresenteemumantigofolderdomencionadogrupoPaláciosdoRio(verFigura11).AindaquelouvávelsejaaatitudededivulgaraculturaepatrimôniodoMorro,apropagandautilizadapodeconferirumaoutranoçãoacercadarealidadeaserexposta(TOMAZZONI,2006).Aodifundir“VisitasguiadasaoPalácio,FortalezaeMorrodaConceição”,externaliza-seoPalácioeaFortalezadaConceiçãodopróprioMorrodaConceição,quandoestesestãoinseridosnareferidaelevação,conferindo-lheumpapelcomplementar,aomenosporestaviadeinterpretaçãodotítulotranscrito/lido/propagandeado.Naverdade,sobnossaanálise,obtidamedianteasdiversasentrevistasrealizadasparaotextodesteartigoedenossavivêncianoperímetro,tantooPaláciocomoaFortalezafazempartedeumamiríadedelugaresqueconstituemoconjuntodoMorrodaConceiçãoequeseconfundemcomaalmadeste (GONÇALVES,2013).Em suma, por entre ruas e becos, símbolos e flores, as vivências
e diferentes trajetórias geográficas dos indivíduos e grupos sociaisresidentes e frequentadores do Morro da Conceição enriquecemsobremaneiraorecorteemtela.Acordialidadedosmoradores,aquilivrementechamadosdelocais,paracomosquevisitamospontosdoMorroénotóriae,porcontadisto,setornaextremamenterelevanteparanossaanálise.Ser“chamadopelonome”assimqueseconheceum
moradorlocaléalgohabitual,assimcomoorespeitoeocumprimentoterno, sempre repetidos, criando uma atmosfera de familiaridademesmo para os que nunca antes ali estiveram. Em uma conversa
informalcomumamoradora19,estaressalta:“moro há mais de trinta
anos no mesmo número e acho que vou morrer ali. Aqui eu criei três filhos.
Adoro este lugar”.SegundoasconcepçõesdeDavidLowenthal,todo
serhumanoéumgeógrafoinformal(LOWENTHAL,1985),capacitado
paradiscorrersobreaalmadoslugares(MELLO,1991)eportandosua
geograficidade,amoradoracomumamordesmedidoserefereaoseu
nichodehistóriasedetempopresentecomooseulugar,umaarena
paraela repletadevivênciase simbolismo.Damesmamaneira,em
19Entrevistarealizadaem19deoutubrode2011.
Figura 11 –O antigo Pa-lácioEpiscopal e a For-talezadaConceição in-tegrantes do Morro daConceição
Fonte:<http://palaciosdo-rio.blogspot.com/>
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umatardeensolaradadeoutubrode2011,umjovemestudantequando
voltava do colégio para casa alega: “nasci no Morro e não pretendo
sair não, todos os meus amigos moram por aqui”20.Sabendoquenosso
lugardenascimentodeixaumamarcanamaneiracomoentendemos
o mundo (POCOCK, 1981), nos cumpre realçar os fortes laços de
pertencimentodojovemparacomoseutorrãonatalegruposocialde
convivência.Istoédetalordemevidenteque,falandodeseuuniverso
vivido,o jovemusademaneira livreeemotivaovocábulo“morro”,
porvezes,pejorativamenteutilizadonoRiodeJaneiro,transpassando
umavisãoetnocêntricanegativa,aomencionaroMorrodaConceição.
AindasegundoPocock,“olugar,então,contémnossasraízes”,nosso
ponto de referência (POCOCK, 1981, p. 339)21 ou seja, a topofílica
ligaçãodestesindivíduoscomoseusoloédeclaraexpressão,matéria-
primaparaoentendimentodesuasrelaçõescomomundo.
Nesteâmbito,fascinadoscomaatmosferadoMorrodaConceição,
comabelaarquiteturaportuguesaaindaconservadana fachadade
muitasdassuascasasecomahospitalidadedosmoradores,pessoas
de várias procedências tendem a voltar, fazendo desta visita um
itineráriodevivacidadeenostalgia.Emmeioaestecontexto,emum
fragmentocolhidonaelevaçãoemdestaque,consideremosasideias
aseguirexpostas:“as coisas aqui parecem ter um poder de permanência
maior. Embora não seja daqui, me sinto muito identificado, muito
familiarizado”, afirmara um jovem frequentador em umamanhã de
novembrode201122.Postoisto,oMorrodaConceiçãoseconfiguraum
lugar–ouumconjuntodelugares–quepulsa(m)fortemente,juntoao
coraçãodaCidadeMaravilhosa.
20Entrevistarealizadaem26deoutubrode2011.21Traduçãodooriginal:“Place, then, contains our roots”.22Entrevistarealizadaem12denovembrode2011.
Conclusão
Contrariandoosqueacreditamnofimdacidade,dosencontrosedossimbolismos,onde“cadaumquepasseia,corre,senta-senochãoou fala sozinhona indiferençade todosos que comele se cruzam”(AGIER, 2011, p. 113), noMorro daConceição temos uma sensaçãodediferencialidade,ondeaconcórdiaeamistosidadeparecemestarsuspensasnoar,ofertando-nosumclimadesegurançaeacolhida.Emmeioàsdocespermanênciaseatuaismodificações,estariasurgindouma nova SantaTereza23 no seio da zona portuária?24Acreditamosser ainda cedo para tal afirmativa. Na verdade, acreditamos queas pessoas estãobuscandonovas referências para repetir a vida derelaçõeseoglamourexibidospelocitadobairro.Noentanto,paraapopulaçãodoMorrodaConceição,faceesteprocessodeturistificação,pairaoriscodeperderoprincipalelementodequalidadedevidanaárea,ouseja,umcertoperfilinteriorano,depazetranquilidade.Estessãoitensdeagradabilidadequepodemsersubstituídaspelaagitaçãoderestaurantesvoltadosparaosvisitantes,gerandograndetráfegode veículos, poluição sonora e atmosférica, além de problemas desegurança típicos dessas áreas, que podem emergir em meio àsamenidades como mar/montanha. Acrescenta-se a este universovividoofatodoavançodaespeculaçãoimobiliáriapoderviramudardrasticamenteoperfildoMorrodaConceição.EmconsonânciacomasideiasdeEdwardRelph,“aspessoassãoosseuslugareseolugaréoseupovo”(RELPH,1976,p.34)25,ouseja,emtermosconceituais
23Ver:OGlobo,CadernoCentro,de26deagostode2011.24Estebairro,situadonaZonaCentraldacidadedoRiodeJaneiro,sobreumaserraqueligaocentroàZonaSul,éumaprazívelpointparaturistas,porcontadeluxuososhotéiserestaurantesderequinte.Estabelecimentosestesemolduradospelocharmedasrue-lasevielasque“cortam”asíngremesladeirasde“Santa”.
25Traduçãodooriginal:“People are their place and place is its people”.
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e de experiência, por se revelarem imbricados, não são facilmentediferenciáveis. Logo, sabendo que um indivíduo não é distinto deseulugar,eleéesselugar(RELPH,1976),concluímosqueasaídadeindivíduosoumesmodeumgrupo social pode vir a transformarosrecortesespaciaisemtela,indubitavelmente.Aopartilharmosdasconcepçõesdeque“oturismoeolazerdevem
serabordadosnasquestõesrelativasàqualidadedevidaurbana,tendocomopanodefundoaconservaçãoeamelhoriadomeioambiente”(RODRIGUES, 2001, p. 93) e que “o turismo é uma prática social eatividadeeconômicaque,nomaisdasvezes,seimpõemaoslugares,maselanãosedásobreumatábularasa,sobreespaçosvaziosesemdonos” (CRUZ, 2007, p. 14), nos cumpre continuar acompanhandose existirão significativas mudanças no ambiente e quais serão asimplicações dessas mudanças no modo de vida, no cotidiano dosindivíduosemsuarelaçãoidentitáriacomseuslares/lugares.Ouseja,emumperíododetoporreabilitaçãodoMorrodaConceição,espaços,lugareselugares-sem-lugaridade(RELPH,1976;TUAN,1983;MELLO,1997)sãopostosnomanifesto,podendotantosuscitaratopofiliacomootopocídioparaosindivíduosinsiders e outsidersnestasarenasdevida(TUAN,1980).Emprofundidade,noquetangemestasmudançaseopapeldaGeografiahumanista,nosbaseamosnosescritosdeVicent
BerdoulayeNicholasEntrikin(2012),queelucidam:
o conceito de lugar convida, efetivamente, a lançar um olharnovosobreaquestãomoral,asaber,sobreocampodeexercícioedepertinênciadaresponsabilidade.Nofundo,oqueoconceitode lugar implica é uma concepção da geografia como ciênciamoral(BERDOULAY;ENTRIKIN,2012,p.111).
Nestasenda,aGeografiahumanistaseagiganta.Aodecodificaros
sentimentos, alegrias, anseios,medos e transgressões do indivíduo
emseuespaçovivido,setornaportadoraeumveículodesignificados
nãoapenasemocional,mastambémpolítico,que(enfatizemos)pode
convidarhomenspúblicos edenegócios a enxergaros indivíduos e
seusresplandecentesmundosdesignificadosantesdarealizaçãodegrandesobraseempreendimentosque,nocasodaolímpicaCidadeMaravilhosa,estãoaplenovapor.À guisa de um arremate final ou introdutório, em uma das
entrevistas livresrealizadasnoanoretrasado–nodianovede julho–,aoconversarsobreassignificaçõesdoMorrodaConceiçãocomummorador,residentehámaisde40anosnolocal,omesmocomentou:“oMorrodaConceiçãoparecepequeno,masémuitogrande”.Nestaconcepção,procurandoaprofundamentonasubjetividadedaresposta,convémfazermosumparaleloentreacartografiaeodepoimento.SecartograficamenteoMorrodaConceiçãopossuireduzidasproporções,paraesteindivíduotrata-sedeumuniversoesplendoroso,detentordeumrelicáriodememórias,presentee,quiçá,futuro,“opontozerodosistemadecoordenadasqueatribuiaomundoafimdesemovimentardentrodele”(SHULTZ,1979,p.299).Oumelhor,oMorroéoseular-e-mundo,éoseuuniversodotadodeumaexpressivagrandiosidade,tão extenso quanto o seumosaico de experiências no lugar. Lugarquetrazemseubojorelaçõesidentitáriasquepodemtantoseretraircomoseintensificar,faceoatualprocessodeturistificaçãodoMorrodaConceição.
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SubmetidoemSetembrode2014.RevisadoemMarçode2015.AceitoemMarçode2015.