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Por que primitivismo? - contraciv.noblogs.org · a perspectiva analítica deve mudar radicalmente. 7 Ulrich Beck, Ecological Enlightenment: Essays on the Politics of the Risk Society

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Por que primitivismo?John Zerzan

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Esta obra é livre. Pode e deve ser reproduzida no todoou em parte, além de ser liberada a sua distribuição.

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Por que primitivismo?

O biógrafo de Guy Debord, Anselm Giap1,formulou o quebra-cabeça do presente com a se-guinte frase: “[um lugar] onde os resultados daatividade humana são antagônicos para a huma-nidade”, retomando a questão exposta a mais de50 anos por Joseph Wood Krutch2: “o que acon-teceu com a oportunidade de realização humanaprometida pelo 'controle da natureza'“?

A crise geral está rapidamente se aprofun-dando em todas as esferas da vida. No nível dabiosfera, esta realidade de crise é tão conhecidaque citá-la seria banal, se não fosse um proble-ma tão horripilante: aumento do número de es-pécies em extinção, a proliferação das zonasmortas em oceanos do mundo, buraco na cama-da de ozônio, aquecimento global, o envenena-mento do ar, da água, e do solo, etc.

1 Anselm Jappe, Guy Debord (Berkeley: CaliforniaUniversity Press, 1999), p. 3.

2 Joseph Wood Krutch, Human Nature and the Human Condition (New York: Greenwood, 1959), p. 192.

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Uma terrível conexão com o mundo social é acrescente contaminação farmacêutica das bacias hi-drográficas.3 Neste caso, a destruição é guiada pelamassiva alienação, disfarçada pelos remédios. NosEUA, a obesidade mórbida está crescendo, e mi-lhões sofrem seriamente de depressão e ansiedade.4

Frequentemente ocorrem explosões de múlti-plos assassinatos em lares, escolas, e locais detrabalho, enquanto o índice de suicídios entre jo-vens tem triplicado nas décadas recentes.5 Fibro-mialgia, síndrome de fadiga crônica, e outras do-enças psicossomáticas “misteriosas” têm se mul-tiplicado, juntamente com o surgimento de no-vas doenças de conhecidas origens fisiológicas:

3 Janet Raloff, “More Waters Test Positive for Drugs,” inScience News 157 (April 1,2000).

4 A dramática insurgência de obesidade mórbida ocasio-nou muitos artigos, mas os números exatos são elusivospor enquanto. 27% de Americanos adultos sofrem dedepressão e ansiedade. Ver G. S. Malhi, et al., “Recog-nizing the Anxious Face of Depression”, no Journal ofNervous and Mental Diseases 190 (Junho de 2002).

5 S. K. Goldsmith, T. C. Pellner, A. M. Kleinman, W. E. Bunney, eds..Reducing Suicide: A National Imperative (Washington, DC: National Academy Press, 2002).

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Ebola, Febre Lassa, AIDS, etc. A ilusão do domí-nio tecnológico é ridicularizada pelo retorno damalária, agora resistente a antibióticos, sem men-cionar epidemias de amebíase, doença da VacaLouca, o vírus do Nilo, etc. Uma raiva mal supri-mida, um sentimento de vazio, a corrosão da cren-ça nas instituições, o alto nível de stress, tudo con-tribui para o que Claude Kamoouh tem chamadode “a crescente fratura dos laços sociais”.6

A realidade atual realça a inadequação dos di-agnósticos correntes e o afastamento absoluto dequalquer projeto de redenção. O que é deixadode vida na Terra é subtraído. Onde está a profun-didade das análises para unir a extremidade dacondição humana e a fragilidade do futuro doplaneta? Estamos apenas numa corrente totali-zante de degradação e perda de tudo o que resta?

A crise é difusa, mas também é visivelmentemarcante em todos os níveis. Como Ulrich Beckcolocou: “pessoas tem começado a questionar a

6 Claude Kamoouh, “On Interculturalism and Multicultu-ralism,” in Telos 110 (Winter 1998), p. 133.

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modernidade, suas premissas têm começado abalançar. Muitas pessoas estão profundamente in-comodadas com o castelo de cartas do super-indus-trialismo”.7 A condição humana se tornou menosequilibrada e mais propensa ao caos na medida emque se afasta da natureza, contrariando a ideologiadominante do progresso e do desenvolvimento.8

Com o desencanto vem uma crescente sensação deque algo diferente é urgentemente necessário.

Para uma nova orientação, o desafio está a umaprofundidade que teóricos tem evitado completa-mente. Para ir além de um mal sem perspectiva, docolapso da confiança social tão arrasadoramenteexpressado em Les Particules élémentaires (o ro-mance de fim de milênio de Michel Houlebecq)9,a perspectiva analítica deve mudar radicalmente.

7 Ulrich Beck, Ecological Enlightenment: Essays on thePolitics of the Risk Society (Atlantic Highlands, NJ:Prometheus Books, 1995), p. 37.

8 Agnes Heller, Can Modernity Survive? (Berkeley: Uni-versity of California Press, 1990), p. 60.

9 Veja Michel Houellebecq, The Elementary Particles, tr. by FrankWynne (New York: Knopf, 2001). More prosaically, ZygmuntBauman, Liquid Modernity (Cambridge: Blackwell, 2000) e Pi-erre Bordieu, Acts of Resistance: Against the Tyranny of theMarket, tr. by Richard Nice (New York: New Press, 1999), ca-racterizaram a sociedade moderna ao longo dessas linhas.

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Isto poderia consistir, para começar, em recusar aconclusão de Foucault de que as relações humanasestão inevitavelmente tecnologizadas.10

Como Voegelin colocou, “a morte do espíritoé o preço do progresso”.11 Mas, se o progressodo niilismo é idêntico ao niilismo do progresso,onde está o ponto de ruptura? Como romper ra-dicalmente com a totalidade do progresso, datecnologia e da modernidade?

Um exame rápido de modas passageirasacadêmicas recentes mostra precisamente ondetal perspectiva não foi encontrada. A formula-ção de Frederic Jameson introduz o tópico: “Opós-modernismo é o que se tem quando o pro-cesso de modernização está completo e a natu-reza se foi para sempre”.12

10 Michel Foucault, “What is Enlightenment?” in TheFoucault Reader, ed. by Paul Rabinow (New York:Random House, 1984), pp. 47-48.

11 Eric Voegelin, The Collected Works of Eric Vogelin,Vol. S, Modernity Without Restraint (Columbia, MO:University of Missouri Press, 2000), p.105.

12 Fredric Jameson, Postmodernism, or. The Cultural Lo-gic of Late Capitalism (Durham, NC: Duke UniversityPress, 1991), p. ix.

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O pós-modernismo é o espelho de um ethos dederrota e reação13, uma deficiência da vontade edo intelecto que está acomodada a novos extremosde estranhamento e destruição. Para os pós-modernistas, quase nada pode ser oposto. A reali-dade, afinal, é tão confusa, inconstante, complexa,indeterminada; e as oposições, é claro, são apenasfalsos binarismos. Jargões vagos e fugas infinitastranscendem dualismos passageiros. Daniel Whi-te, por exemplo, prescreveu “uma assinatura eco-lógico-pós-moderna que supera o tradicional parexclusivo de Opressor e Oprimido…”14

13 John Zerzan, “The Catastrophe of Postmodernism,” inFuture Primitive (New York/Columbia, MO: Autono-media & Anarchy/C.A.L. Press, 1994).

14 Daniel R. White, Postmodern Ecology (Albany,1998), p. 198. Bordieu se referiu à “futilidade dasconclamações estridentes de filósofos ‘pós-moder-nos’ pela ‘supressão do dualismo’. Estes dualismosprofundamente enraizados nas coisas (estruturas) enos corpos, não surgem do simples efeito de nome-ação verbal e não podem ser abolidas por um atode mágica performativa...”. Ver Pierre Bordieu,Masculine Domination (Stanford, 2001), p. 103.

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No reino consumista da liberdade, “este nódulocomplexo, onde a tecnologia é difusa, onde tecno-logias são escolhidas”, de acordo com Mike Mi-chael15, quem pode dizer se alguma coisa está fal-tando? Iain Chambers é uma voz eloquente daaberração pós-moderna, considerando se a aliena-ção não é simplesmente algo eternamente dado: “Ese a alienação for um constrangimento terreno, des-tinada a frustrar o 'progresso' introjetado em todasas teleologias? Talvez não haja uma alternativa se-parada e autônoma à estruturação capitalista domundo atual. A modernidade, o ocidentalização domundo, a globalização, são as etiquetas de uma or-dem econômica, política e cultural que aparente-mente será instalada para o futuro previsível”.16

A fixação no superficial (profundidade é umailusão, assim como a presença e a imediação), ofim da unificação de narrativas e da pergunta

15 Ver Mike Michael, Reconnecting Culture, Technologyand Nature (London: Routledge, 2000) p. 8. O própriotítulo é o testemunho à rendição à dominação.

16 Ian Chambers, Culture After Humanism (London: Rou-tledge, 2002), pp. 41 e 122.

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pelas origens; a indiferença ao método e à evi-dência, a ênfase no efeito e na inovação, tudo issoencontra expressão na cultura pós-moderna. Estasatitudes e práticas se espalham em todo lugar, jun-to com a tecnologia que o pós-modernismo abraçasem reservas. Ao mesmo tempo, existem sinais deque esta trivialização e as receitas derivativas parao “pensamento” podem estar perdendo seu ape-lo.17 Um antídoto à rendição pós-moderna foi pos-to à disposição, basicamente pelo que é conhecidocomo movimento antiglobalização.

Jean-François Lyotard, que já pensou que aexistência tecnológica oferecia opções, agora es-creve sobre o desenvolvimento de um sinistro ne-ototalitarismo, um aprisionamento instrumentalista.

17 Títulos recentes em várias áreas indicam uma virada.Veja, e.g., Martin Beck Matustic and William L. McBri-de, eds., Calvin 0. Schrag and the Task of Philosophy Af-ter Postmodemity (Evanston, IL: Northwestern Univer-sity Press, 2002) and Camel Flaskas, Family Therapybeyond Postmodernism (New York: Taylor and FrancisInc.. 2002). Tilottama Rajan and Michael J. Driscoll, eds.After Post-structuralism: Writing the Intellectual Historyof Theory (Toronto: University of Toronto Press, 2002)está cheio de temas como origens e o primitivo.

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Em ensaios anteriores, ele apontou para uma per-da do afeto como parte da condição pós-moder-na. Recentemente, ele tem atribuído esta perda àhegemonia tecnocientífica. Indivíduos mutiladossão apenas parte do quadro, enquanto Lyotard re-trata os efeitos sociais do que só pode ser chama-do de razão instrumental, numa ascensão patoló-gica. E contrariamente a Habermas, esta domina-ção pela razão instrumental não é de modo algumdesafiada pela pela “ação comunicativa”.18 Refe-rindo-se ao desenvolvimento urbano global, Lyo-tard declarou: “Habitamos a megalópole apenasna medida em que a declaramos inabitável. Deoutra maneira, estamos apenas alojados lá”.Além disso, “com a megalópole, o que é chama-do de Oeste realiza e difunde o seu niilismo. Istoé chamado de desenvolvimento”.19

18 Jean-Francois Lyotard, “Domus and the Megalopolis” [que poderia muito bem ter se chamado, de modo anti-pós-modernista, “From Domus to the Megalopolis”] in The Inhuman: Reflections of Time (Stanford: Stanford University Press, 1991), p. 200.

19 Ibid., p. 200, and Jean-Francois Lyotard, Postmodern Fables(Minneapolis: University of Minnesota Press, 1997), p. 23.

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Em outras palavras, pode haver um caminho forado beco sem saída pós-moderno, pelo menos paraalguns. Os que ainda são contidos pela Esquerda têmum legado muito diferente de fracasso em descartar,que obviamente transcende o “meramente” cultural.Descreditada e agonizante como uma alternativareal, esta perspectiva certamente também precisa ir.

Império20, de Hardt e Negri, servirá como umartefato clássico do esquerdismo, um compêndiodo que é desgastado e deixado de lado. Estesauto-descritos militantes comunistas não possu-em noção alguma da crise que nos envolve. As-sim, continuam a procurar “alternativas dentro damodernidade”. Localizam a força por trás de suarevolução comunista nas “novas práticas produti-vas e a concentração de trabalho produtivo noterreno plástico e fluído das novas tecnologiascomunicativas, biológicas e mecânicas”.21 Aanálise esquerdista valentemente defende o coração

20 Michael Hardt and Antonio Negri, Empire (Cambridge,MA: Harvard University Press, ‘ 2000), p. 218.

21 Hardt and Negri, p. 218.

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do marxismo reducionista, diante de uma técnicade avanço contínuo, padronizante e destrutiva.Não é de admirar que Hardt e Negri falham emconsiderar a pulverização das culturas indígenase do mundo natural, ou o constante movimentoglobal rumo à completa desumanização.

Claude Kamoouh considera monstruosa “a ideiade que o progresso consiste num total controle doestoque genético de todos os seres vivos”. Para ele,isso significaria uma não liberdade “que nem sequer o mais sanguinário totalitarismo do século XXfoi capaz de alcançar”22. Hardt e Negri não se as-sustam com tal controle, já que eles não questio-nam suas premissas, dinâmicas e pré-condições.

Não é menos irônico que os militantes de Im-pério sejam expostos na incompreensão da traje-tória da modernidade por um dos seus principaisopositores, Oswald Spengler. Por mais naciona-lista e reacionário que Spengler era, O Declínio

22 Claude Kamoouh, “Heidegger on History and Politics as Events,” in Telos 120 (Summer 2001), p. 126.

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do oeste é uma grande obra prima da históriamundial, e sua compreensão da lógica interna dacivilização Ocidental é incrível em sua previsão.

Especialmente relevante aqui são os julga-mentos de Spengler, muitas décadas atrás, a res-peito do desenvolvimento tecnológico e seus im-pactos sociais, culturais e ambientais. Ele perce-beu que a natureza dinâmica, prometéica (“faus-tiana”) da civilização global se torna plenamenterealizada enquanto uma sociedade de massasauto-destrutiva e uma igualmente calamitosa tec-nologia moderna. A subjugação da natureza levainevitavelmente à sua destruição, e à destruiçãoda civilização. “Um mundo artificial está perme-ando e envenenando o mundo natural. A civiliza-ção em si se tornou uma máquina que faz, outenta fazer, tudo em termos mecânicos”.23 O ho-mem civilizado é um “mesquinho criador contraa natureza. (…) Este revolucionário no mundo da

23 Oswald Spengler, Man and Technics: A Contribution toa Philosophy of Life, tr. by Charles F. Atkinson (New York: Knopf, 1932), p. 94.

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vida… tem se tornado o escravo de sua criatura.A Cultura, o agregado de forma de vida artifici-ais, pessoais, auto-geradas, se desenvolve dentrode uma gaiola fechada”.24

Enquanto Marx via a civilização industrialcomo a razão encarnada e uma conquista per-manente, Splenger a viu como derradeiramenteincompatível com o seu ambiente físico, e porisso suicida e transitória. “O Homem Superioré uma tragédia. Com suas covas, ele deixa paratrás a terra como um campo de batalha e umdeserto. Ele tem levado plantas e animais, omar e a montanha para o declínio. Ele tem pin-tado a face do mundo com sangue, deformandoe mutilando”.25 Spengler entendeu que “a his-tória dessas técnicas está rapidamente chegan-do ao seu inevitável fim”.26

24 Ibid., p. 69.25 Oswald Spengler, Fruhzeit der Weltgeschichte, #20.

Quoted in John Farrenkopf, Prophet of Decline (BatonRouge, LA: University of Louisiana Press, 2001), p. 224.

26 Spengler, Man and Technics, op. cit., 103.

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Theodor Adorno pareceu concordar com ele-mentos do pensamento de Spengler: “o que podese opor ao declínio do ocidente não é uma cultu-ra ressuscitada, mas a utopia que está silenciosa-mente contida na imagem do seu declínio”.27 Di-alética do Esclarecimento de Adorno e Horkhei-mer28 tem uma crítica da civilização em seu cer-ne, com sua imagem focal de Odisseu reprimindoa força o canto da Sereia de eros. A tese central éque “a história da civilização é… a história da re-núncia”.29 Como Albrecht Wellmer resumiu, “Di-alética do Esclarecimento é a teoria de uma mo-dernidade irremediavelmente sombria”.30 Estaperspectiva, agora continuamente confirmada pordados, tende a tornar irrelevantes tanto as fontesda teoria quanto a lógica do progresso. Se não hásaída de uma condição que podemos entenderbem até demais, o que mais há a dizer?

27 Theodor W. Adorno; Prisms (Cambridge. MA: MITPress, 1990), p. 72.

28 Max Horkheimer and Theodor Adorno, Dialectic of En-lightenment (New York, 1947).

29 Horkheimer and Adorno, Dialectic of Enlightenment, p. 55.30 Albrecht Wellmer, Endgames: the Irreconcilable Nature

of Modernity (Cambridge, MA, 1998), p. 255.

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Herbert Marcuse tentou traçar uma rota de es-cape no livro Eros e Civilização31, tentando sepa-rar a civilização da modernidade. Para preservaros “ganhos” da modernidade, a solução é uma ci-vilização “não repressiva”. Marcuse dispensaria a“repressão excessiva”, deixando implícito que arepressão em si é indispensável. Já que a moderni-dade depende de produção, em si mesma uma ins-tituição repressiva, redefinir o trabalho como ati-vidade livre pode salvar tanto a modernidadequanto a civilização. Eu considero isso uma im-plausível, ou mesmo desesperada defesa da civili-zação. Marcuse falha em refutar a visão de Freudde que a civilização não pode ser reformada.

Freud argumentava em O Mal-estar na Civi-lização, que uma civilização não repressiva éimpossível, porque o fundamento da civilizaçãoé uma proibição forçosa da liberdade instintuale do eros. Para introduzir o trabalho e a cultura,a proibição deve ser permanentemente imposta.

31 Herbert Marcuse, Eros and Civilization (Boston: Beacon Press, 1990).

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Já que esta repressão e sua constante manutençãosão essenciais para a civilização, uma civilizaçãouniversal leva a uma neurose universal.32 Durk-heim já havia notado que enquanto a humanidade“avança” com a civilização e a divisão de traba-lho, “a felicidade geral da sociedade diminui”.33

Como um bom burguês, Freud justificou a ci-vilização sobre as bases de que o trabalho e acultura são necessários e que a civilização possi-bilita aos seres humanos sobreviver num planetahostil. “A principal tarefa da civilização, sua ver-dadeira razão de ser, é nos defender da natureza”.E mais: “Mas quão ingrato, quão míope acima detudo é esforçar-se pela abolição da civilização! Oque permaneceria então seria um estado da natu-reza, e seria muito mais difícil de suportar”.34

32 Sigmund Freud, Civilization and its Discontents (NewYork: Random House, 1994).

33 Emile Durkheim, The Division of Labor in Society (New York, 1933), p. 249.

34 Sigmund Freud, “The Future of an Illusion,” in The Complete Works of Sigmund Freud, Vol. 21 (London: Norton, 1976), p. 15.

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Provavelmente a justificativa ideológica maisfundamental da civilização seja a caracterização deHobbes do estado de natureza pré-civilizado como“sórdido, brutal e curto”. Freud concordou comesta visão, assim como Adorno e Horkheimer.

Desde os meados dos anos 60, tem havidouma mudança de paradigma em como os antro-pólogos entendem a pré-história, com implica-ções profundas para a teoria. Baseados num sóli-do corpo de pesquisa arqueológica e etnográfica,as principais correntes da antropologia tem aban-donado a hipótese hobbesiana. A vida antes oufora da civilização é agora definida mais especi-ficamente como uma existência social anterior àdomesticação de plantas e animais. Cada vezmais evidências indicam que a antes da mudançaNeolítica de um modo de vida forrageador ou co-letor-caçador para um modo de vida agricultor, amaioria das pessoas tinham amplo tempo livre,uma considerável autonomia e igualdade sexual,um ethos de igualitarismo e compartilhamento, enenhuma violência organizada.

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Uma conferência (enganosamente) chama-da de “Homem, o Caçador”, na Universidadede Chicago em 1966 lançou o reverso da vi-são Hobbesiana, que por séculos tinha forne-cido a pronta justificação para todas as insti -tuições repressivas da complexa e imperialis-ta cultura ocidental. As evidências de suportepara esse novo paradigma vieram adiante apartir de arqueólogos e antropólogos comoMarshall Sahlins, Richard B. Lee, AdrienneZihlman, e muitos outros.35 Estes estudos es-tão amplamente disponíveis, e agora formama base para tudo desde cursos de graduaçãoaté a pesquisa de campo.

35 Veja Eleanor Leacock and Richard B. Lee, Politics and His-tory in Band Societies (New York: Cambridge UniversityPress, 1982); Richard B. Lee and Richard Daly, The Cam-bridge Encyclopedia of Hunters and Gatherers (Cambridge:Cambridge University Press, 1999); Marshall Sahlins, StoneAge Economics (Chicago: Aldine de Grecyter, 1972); ColinTurnbull, The Forest People (New York: Simon and Schus-ter, 1988); Adrienne Zihiman, et al.. The Evolving Female(Princeton: Princeton University Press, 1997).

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Arqueólogos continuam descobrindo exem-plos de como os povos do paleolítico viveramprincipalmente de forma pacífica, igualitária, esaudável por cerca de dois milhões de anos. Ouso de fogo para cozinhar vegetais a cerca de1,9 milhões de anos, viagens marítimas a longadistância a cerca de 800.000 anos atrás, sãoduas descobertas dentre muitas que testificamuma inteligência igual à nossa.36

A engenharia genética e a iminente clonagemhumana são precisamente as maiores manifesta-ções atuais de uma dinâmica de controle e domi-nação da natureza que os seres humanos coloca-ram em marcha 10.000 anos atrás, quando nossosancestrais começaram a domesticar animais eplantas. Nas 400 gerações de existência humanadesde então, toda a vida natural tem sido penetra-da e colonizada nos níveis mais profundos, com-parando-se ao controle que tem sido cada vez

36 Ver, por exemplo, M. J. Morwood, et al., “Fission-trackAges of Stone Tools and Fossils on the East IndonesianIsland of Flores,” na Nature (March 12, 1998).

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mais minuciosamente engendrado no nível social.Agora podemos ver essa trajetória pelo que real-mente é: uma transformação que inevitavelmentetrouxe uma destruição global que de modo algumera necessária. Significativamente, os registros ar-queológicos ao redor do mundo demonstram quemuitos grupos humanos tentaram a agricultura e/ouo pastoralismo, e que depois desistiram, voltandoàs estratégias da caça e coleta mais seguras. Outrosse recusaram por gerações a adotar as práticas dadomesticação de seus vizinhos próximos.

É aqui que uma alternativa primitivista começaa emergir, na teoria e na prática.37 À questão datecnologia, deve ser adicionada a da civilização

37 Esta crítica está crescendo nos EUA, via periódicoscomo Anarchy, Disorderly Conduct, The Final Days,Green Anarchy, Green Journal, e Species Traitor. Vejatambém Chellis Glendinning, My Name is Chellis andI’m in Recovery from Western Civilization (Boston:Shambhala Publications, 1994); Derrick Jensen, Cultu-re of Make Believe (New York: Context Books, 2002);Daniel Quinn, Ishmael (New York: Bantam, 1995);John Zerzan, Running on Emptiness: The Pathology ofCivilization (Los Angeles: Feral House, 2002).

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em si. Uma documentação crescente da pré-histó-ria humana como um longo período de vida nãoalienada permanece em agudo contraste com ocrescente fracasso da insustentável modernidade.

No contexto da sua discussão das limitações deHabermas, Joel Whitebook escreveu: “Pode ser queo alcance e a profundidade da crise social e ecoló-gica sejam tão grandes que nada além de umatransformação histórica de visões mundiais sejaproporcional a elas”.38 Desde aquele tempo, Casto-riadis concluiu que uma transformação radical “teráque lançar um ataque à divisão de trabalho em to-das as suas formas conhecidas”.39 Divisão de traba-lho, lentamente emergindo através da pré-história,foi a fundação da domesticação e continua dirigin-do adiante o imperativo tecnológico.

38 Joel Whitebook, “The Problem of Nature in Haber-mas,” in Telos 40 (Summer, 1979), p. 69.

39 Cornelius Castoriadis, Crossroads in the Labyrinth(Cambridge, MA: MIT Press, 1984), p. 257. See alsoKeekok Lee, “To De-Industrialize—Is It So Irrational?”in The Politics of Nature, ed. by Andrew Gobson andPaul Lucardie (London: Routledge, 1993).

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O desafio é refutar as teses de George Grantde que vivemos “num mundo onde apenas umacatástrofe pode reduzir a expansão das potencia-lidades da técnica”40, e efetivar o julgamento deClaude Kornoouh de que a revolução só pode serredefinida contra o progresso.41

40 George Grant, Technology and Empire (Toronto: Uni-versity of Toronto Press, 1969), p. 142. É claro, a situa-ção torna-se cada vez mais grave, com súbitas e drásti-cas modificações muito possíveis. M. Sheffer, et al.,“Catastrophic Shifts in Ecosystems,” in Nature (Octo-ber 11, 2001); M. Marion and W.M. Evan sobre a pro-babilidade crescente de desastres, “Technological Ca-tastrophes: their causes and preventions.” in Techno-logy in Society 24 (2002), pp. 207-224.

41 Claude Kamoouh, “Technology and Destiny,” in Telos 124 (Summer, 2002), pp. 71-94.

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