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Por que todas as coisas cooperam para o bem do homem piedoso? 1. O supremo motivo pelo qual todas as coisas cooperam para o bem é o íntimo e carinhoso interesse que Deus tem pelo Seu povo. O Senhor fez uma aliança com eles. “Eles serão o meu povo, e eu serei o seu Deus” (Jeremias 32.38). Em virtude desse pacto, todas as coisas cooperam, e devem mesmo cooperar, para o bem deles. “Eu sou Deus, o teu Deus” (Salmo 50.7). Essa expressão, “o teu Deus”, é a mais doce expressão em toda a Bíblia; ela revela as melhores relações, e é impossível que haja tais relações entre Deus e o Seu povo e, ainda assim, todas as coisas não cooperem para o bem deles. Essa expressão, “Eu sou o teu Deus”, implica: (1) A relação de um médico: “Eu sou o teu Médico”. Deus é um Médico habilidoso. Ele sabe o que é melhor. Deus observa os diferentes temperamentos dos homens, e sabe o que irá funcionar com mais eficácia. Alguns são de uma disposição mais dócil e são conduzidos pela misericórdia. Outros são vasos mais ríspidos e complicados; com esses, Deus trata de uma maneira mais forçosa. Algumas coisas se conservam em açúcar, outras, em salmoura. Deus não trata com todos de maneira indistinta; Ele tem provações para o forte e consolos para o fraco. Deus é um Médico fiel, e portanto usará todas as coisas para o melhor. Se Deus não lhe dá aquilo de que você gostaria, Ele dará aquilo de que você precisa. Um médico não estuda tanto para satisfazer os gostos do paciente, mas para curá-lo de sua enfermidade. Nós nos queixamos de que provações muito dolorosas vêm sobre nós; lembremo-nos de que Deus é o nosso Médico, portanto Seu trabalho é para nos curar, ao invés de para nos entreter. A maneira de Deus tratar com os Seus filhos, embora seja severa, é uma maneira segura e que visa a nos curar; ” para te humilhar, e para te provar, e, afinal, te fazer bem” (Deuteronômio 8.16). (2) Essa expressão, “o teu Deus”, implica a relação de um Pai. Um pai ama o seu filho; portanto, seja um sorriso, seja uma palmada, tudo é para o bem da criança. “Eu sou o seu Deus, o seu Pai, portanto tudo o que Eu faço é para o seu bem”. “Sabe, pois, no teu coração, que, como um homem disciplina a seu filho, assim te disciplina o SENHOR, teu Deus” (Deuteronômio 8.5). A disciplina de Deus não é para destruir, mas para aperfeiçoar. Deus não pode causar dano aos Seus filhos, pois Ele é um Pai de terno coração: “Como um pai se compadece de seus filhos, assim o SENHOR se compadece dos que o temem” (Salmo 103.13). Acaso um pai buscará a ruína do seu filho, do filho que veio dele mesmo e que carrega a sua imagem? Todo o seu cuidado e disposição são

Por Que Todas as Coisas Cooperam Para o Bem Do Homem Piedoso

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Page 1: Por Que Todas as Coisas Cooperam Para o Bem Do Homem Piedoso

Por que todas as coisas cooperam para o bem do homem piedoso?1. O supremo motivo pelo qual todas as coisas cooperam para o bem é o íntimo e carinhoso interesse que Deus tem pelo Seu povo.

O Senhor fez uma aliança com eles. “Eles serão o meu povo, e eu serei o seu Deus” (Jeremias 32.38). Em virtude desse pacto, todas as coisas cooperam, e devem mesmo cooperar, para o bem deles. “Eu sou Deus, o teu Deus” (Salmo 50.7). Essa expressão, “o teu Deus”, é a mais doce expressão em toda a Bíblia; ela revela as melhores relações, e é impossível que haja tais relações entre Deus e o Seu povo e, ainda assim, todas as coisas não cooperem para o bem deles. Essa expressão, “Eu sou o teu Deus”, implica:

(1) A relação de um médico: “Eu sou o teu Médico”. Deus é um Médico habilidoso. Ele sabe o que é melhor. Deus observa os diferentes temperamentos dos homens, e sabe o que irá funcionar com mais eficácia. Alguns são de uma disposição mais dócil e são conduzidos pela misericórdia. Outros são vasos mais ríspidos e complicados; com esses, Deus trata de uma maneira mais forçosa. Algumas coisas se conservam em açúcar, outras, em salmoura. Deus não trata com todos de maneira indistinta; Ele tem provações para o forte e consolos para o fraco. Deus é um Médico fiel, e portanto usará todas as coisas para o melhor. Se Deus não lhe dá aquilo de que você gostaria, Ele dará aquilo de que você precisa. Um médico não estuda tanto para satisfazer os gostos do paciente, mas para curá-lo de sua enfermidade. Nós nos queixamos de que provações muito dolorosas vêm sobre nós; lembremo-nos de que Deus é o nosso Médico, portanto Seu trabalho é para nos curar, ao invés de para nos entreter. A maneira de Deus tratar com os Seus filhos, embora seja severa, é uma maneira segura e que visa a nos curar; ” para te humilhar, e para te provar, e, afinal, te fazer bem” (Deuteronômio 8.16).

(2) Essa expressão, “o teu Deus”, implica a relação de um Pai. Um pai ama o seu filho; portanto, seja um sorriso, seja uma palmada, tudo é para o bem da criança. “Eu sou o seu Deus, o seu Pai, portanto tudo o que Eu faço é para o seu bem”. “Sabe, pois, no teu coração, que, como um homem disciplina a seu filho, assim te disciplina o SENHOR, teu Deus” (Deuteronômio 8.5). A disciplina de Deus não é para destruir, mas para aperfeiçoar. Deus não pode causar dano aos Seus filhos, pois Ele é um Pai de terno coração: “Como um pai se compadece de seus filhos, assim o SENHOR se compadece dos que o temem” (Salmo 103.13). Acaso um pai buscará a ruína do seu filho, do filho que veio dele mesmo e que carrega a sua imagem? Todo o seu cuidado e disposição são para o seu filho: em favor de quem ele deixa a sua herança, senão para o seu filho? Deus tem um terno coração e é o “Pai de misericórdias” (2Coríntios 1.3). Ele derrama todas as misericórdias e toda a bondade nas criaturas.

Deus é um Pai eterno (Isaías 9.6). Ele era o nosso Pai desde a eternidade; antes que nós fôssemos crianças, Deus era nosso Pai, e Ele será nosso Pai para a eternidade. Um pai provê para o seu filho enquanto vive; mas o pai morre, e então o filho pode ser exposto a danos. Mas Deus nunca cessa de ser um Pai. Você, que é um crente, tem um Pai que nunca morre; e, se Deus é o seu Pai, você nunca ficará desamparado. Todas as coisas devem cooperar para o seu bem.

(3) Essa expressão, “o teu Deus”, implica a relação de um Marido. Essa é uma relação íntima de doce. O marido busca o bem de sua esposa; seria antinatural que ele vagueasse para destruir sua mulher. “Porque ninguém jamais odiou a própria carne” (Efésios 5.29). Há uma relação marital entre Deus e o Seu povo. “Porque o teu Criador é o teu marido” (Isaías 54.5). Deus ama plenamente o Seu povo. Ele o tem gravado na palma de Suas mãos (Isaías 49.16). Ele o põe como um selo sobre o Seu coração (Cântico dos Cânticos 8.6). Ele dará reinos pelo seu resgate (Isaías 43.3). Isso mostra quão próximos eles estão em Seu coração. Se Ele é um Marido cujo

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coração é pleno de amor, então Ele irá buscar o bem de Sua esposa. Ou Ele a protegerá de um dano, ou Ele o converterá para o seu melhor.

(4) Essa expressão, “o teu Deus”, implica a relação de um Amigo. “Tal [é] o meu amigo” (Cântico dos Cânticos 5.16, ARC). Um amigo é, como diz Agostinho, metade do nosso eu. Ele é atento e desejoso acerca de como pode fazer bem ao seu amigo; ele promove o bem-estar dele como se fosse o seu próprio. Jônatas enfrentou o aborrecimento do rei pelo seu amigo Davi (1Samuel 19.4). Deus é nosso Amigo; portanto, Ele converterá todas as coisas para o nosso bem. Existem falsos amigos; Cristo foi traído por um amigo; mas Deus é o melhor Amigo.

Ele é um Amigo fiel. “Saberás, pois, que o SENHOR, teu Deus, é Deus, o Deus fiel” (Deuteronômio 7.9). Ele é fiel em Seu amor. Ele deu o Seu próprio coração a nós, quando Ele entregou o Filho do Seu amor. Ali estava um padrão de amor sem paralelo. Ele é fiel em Suas promessas. “O Deus que não pode mentir prometeu” (Tito 1.2). Ele pode mudar a Sua promessa, mas não pode quebrá-la. Ele é fiel em seu proceder; mesmo quando Ele está afligindo, Ele é fiel. “Bem sei, ó SENHOR, que os teus juízos são justos e que com fidelidade me afligiste” (Salmo 119.75). Ele está nos peneirando e nos refinando como a prata (Salmo 66.10).

Deus é um Amigo imutável. “De maneira alguma te deixarei, nunca jamais te abandonarei” (Hebreus 13.5). Amigos às vezes falham numa emergência. Muitos procedem com os seus amigo como as mulheres, com as flores: enquanto elas estão frescas, elas as põem junto ao peito, mas, quando começar a murchar, elas as jogam foram. Ou como um viajante faz com o relógio de sol: se o sol brilha sobre o relógio, o viajante sai da estrada para consultar o relógio; mas se o sol não brilha sobre ele, ele segue dirigindo, sem sequer se lembrar do relógio. Assim, se a prosperidade brilha sobre um homem, então os amigos atentam para ele; mas se uma nuvem de adversidade paira sobre ele, eles não se aproximarão. Mas Deus é um Amigo para sempre; Ele disse: “De maneira alguma te deixarei”. Embora Davi andasse pelo vale da sombra da morte, ele sabia que tinha um Amigo ao seu lado. “Não temerei mal nenhum, porque tu estás comigo” (Salmo 23.4). Deus nunca afasta completamente o Seu amor do Seu povo. “Tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim” (João 13.1). Sendo Deus tal Amigo, Ele fará todas as coisas cooperarem para o nosso bem. Não há amigo que não busque o bem do seu amigo.

(5) Essa expressão, “o teu Deus”, implica uma relação ainda mais íntima, a relação entre a Cabeça e os membros. Há uma união mística entre Cristo e os santos: Ele é chamado “o Cabeça da igreja” (Efésios 5.23). Não é verdade que a cabeça delibera pelo bem do corpo? Todas as partes da cabeça estão dispostas para o bem do corpo. O olho é posto como se estivesse numa torre de guarda; ele fica a postos para vigiar qualquer perigo que possa advir ao corpo, e preveni-lo. A língua serve tanto para provar como para discursar. Se o corpo fosse um microcosmo, ou um pequeno universo, a cabeça seria o sol desse universo, da qual procederia a luz da razão. A cabeça está posta para o bem do corpo. Cristo e os santos compõem um único corpo místico. Nossa Cabeça está nos céus, e certamente Ele não irá permitir que o Seu corpo sofra dano, mas irá deliberar para a sua segurança, e fará com que todas as coisas cooperem para o bem do corpo místico.

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2. Inferências da proposição de que todas as coisas cooperam para o bem dos santos.

(1) Se todas as coisas cooperam para o bem, consequentemente aprendemos que existe uma providência. As coisas não operam por si mesmas, mas Deus as dispõe de maneira que elas cooperem para o bem. Deus é o grande Arranjador de todos os eventos e circunstâncias; Ele põe todas as coisas em operação. “O seu reino domina sobre tudo” (Sl 103.19). Isso nos fala do Seu reino providencial. As coisas no mundo não são governadas por causas secundárias, pelos conselhos dos homens, pelas estrelas e planetas, mas pela divina providência. A providência é a rainha e a governanta do mundo. Há três coisas na providência: a presciência de Deus, a determinação de Deus, e a direção de Deus para que todas as coisas ocupem os seus devidos tempos e lugares. Sejam quais forem as coisas que operam no mundo, é Deus quem as põe em operação. Nós lemos no primeiro capítulo de Ezequiel acerca de rodas, e olhos nas rodas, e o movimento das rodas. As rodas são o universo inteiro, os olhos nas rodas são a providência de Deus, e o movimento das rodas é a mão da providência, movendo todas as coisas aqui embaixo. Aquilo que alguns chamam de “oportunidade” nada mais é senão o resultado da providência.

Aprendamos a adorar a providência. A providência tem uma influência sobre todas as coisas aqui embaixo. É ela quem une os ingredientes e compõe toda a mistura.

(2) Observemos a feliz condição de todo filho de Deus. Todas as coisas cooperam para o bem dele, as melhores e as piores coisas. “Ao justo, nasce luz nas trevas” (Sl 112.4). As mais nubladas e escuras providências de Deus têm nelas algum raio de sol. Em que bendita condição se acha um crente verdadeiro! Quando ele morre, ele vai para Deus; e, enquanto ele vive, todas as coisas lhe causam bem. A aflição é para o seu bem. Que dano pode o fogo causar ao ouro? Ele apenas o purifica. Que dano pode a joeira causar ao trigo? Ela apenas separa dele o joio. Que dano podem as sanguessugas causar ao corpo? Elas apenas sugam o sangue ruim. Deus nunca usa os Seus métodos, senão para remover a poeira. A aflição faz aquilo que a Palavra muitas vezes não faz, ela “abre-lhes também os ouvidos para a disciplina” (Jó 36.10). Quando Deus derruba os homens sobre as suas costas, então eles olham para o céu. Deus golpeando o Seu povo é como um músico tocando violino, o qual com a vara faz que dele saia um som harmonioso. Quanto bem é feito aos santos por meio da aflição! Quando eles estão esmagados e quebrados, é que deles sai o seu mais doce aroma. A aflição é uma raiz amarga, mas ela produz frutos doces. “Ao depois, entretanto, produz fruto pacífico aos que têm sido por ela exercitados, fruto de justiça” (Hb 12.11). A aflição é a estrada para o céu; embora seja pedregosa e espinhosa, ainda assim é o melhor caminho. A pobreza pode enfraquecer os nossos pecados. A doença pode tornar a graça mais útil (2Co 4.16). A injúria pode fazer com que repouse sobre nós “o Espírito da glória e de Deus” (1Pe 4.14). A morte pode interromper o cálice de lágrimas, e abrir o portão do Paraíso. O dia da morte de um crente é o dia de sua ascensão para a glória. Sendo assim, os santos têm incluído suas aflições no inventário de suas riquezas (Hb 11.26). Temístocles, ao ser banido de seu próprio país, posteriormente alcançou o favor do rei do Egito, diante de quem ele disse: “Eu teria perecido, se não tivesse perecido”. Assim também um filho de Deus pode dizer: “Se eu não tivesse sido afligido, eu teria sido destruído; se minha saúde e minhas posses não se tivessem perdido, minha alma se teria perdido”.

(3) Vejamos então que encorajamento há aqui para que nos tornemos piedosos. Todas as coisas devem cooperar para o bem. Oh, que isso possa induzir o mundo a cair de amores pela religião! Pode haver um ímã mais poderoso para atrair-nos à piedade? Pode haver algo mais eficaz em persuadir-nos a sermos bons do que isto: que todas as coisas devem cooperar para o nosso bem? A religião é a verdadeira pedra filosofal que transforma todas as coisas em ouro. Pegue a porção mais azeda da religião, a porção dos sofrimentos, e ainda assim há conforto

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nela. Deus ameniza o sofrimento com alegria; Ele suaviza a nossa amargura com açúcar. Oh, como isso pode nos seduzir à piedade! “Reconcilia-te, pois, com ele e tem paz, e assim te sobrevirá o bem” (Jó 22.21). Nenhum homem jamais se tornou um perdedor em face de sua reconciliação com Deus. Através dela, o bem sobrevirá a você, abundância de bem, as doces emanações da graça, o maná escondido, sim, todas as coisas hão de cooperar para o bem. Oh, sendo assim, reconcilie-se com Deus, una-se ao Seu interesse.

(4) Notemos a miserável condição dos homens ímpios. Para aqueles que são piedosos, coisas más cooperam para o bem; para aqueles que são maus, coisas cooperam para causar-lhes dano.

(i) As boas coisas temporais cooperam para causar dano aos ímpios. Riquezas e prosperidade não são benefícios, mas armadilhas, como afirma Sêneca. Coisas mundanas são dadas aos ímpios assim como Mical foi dada a Davi, para ser-lhe por laço (1Sm 18.21). Diz-se que o abutre extrai doença de um perfume; assim também o ímpio o faz com o doce perfume da prosperidade. Suas misericórdias são como o pão embolorado que é dado aos cães; suas mesas são suntuosamente postas, mas há um anzol por debaixo da isca. “Sua mesa torne-se-lhes diante deles em laço, e a prosperidade, em armadilha” (Sl 69.22). Todos os seus gozos são como os codornizes de Israel, os quais foram temperados com a ira de Deus (Nm 11.33). Orgulho e luxúria são os gêmeos da prosperidade. “Mas, engordando-se o meu amado, deu coices; engordou-se, engrossou-se, ficou nédio e abandonou a Deus, que o fez” (Dt 32.15). As riquezas são não apenas como a teia da aranha, sem valor, mas como o ovo do basilisco, pernicioso. “As riquezas que seus donos guardam para o próprio dano” (Ec 5.13). As misericórdias comuns que os homens ímpios possuem não são ímãs que os conduzem para mais perto de Deus; antes, são pedras de moinho que os fazem descer ainda mais fundo no inferno (1Tm 6.9). Suas deliciosas iguarias são como o banquete de Hamã: depois de todo o seu nobre banquete, a morte é quem lhes traz a conta, e eles haverão de pagá-la no inferno.

(ii) As boas coisas espirituais cooperam para causar dano aos ímpios. Da flor das bênçãos espirituais, eles sugam veneno.

Os ministros de Deus cooperam para causar-lhes dano. O mesmo vento que conduz um barco para um porto, conduz outro barco contra uma rocha. O mesmo fôlego no ministério que conduz um homem piedoso para o céu, conduz um pecador profano para o inferno. Eles, que trazem a palavra de vida em suas bocas, ainda assim são para muitos um aroma de morte. “Torna insensível o coração deste povo, endurece-lhe os ouvidos e fecha-lhe os olhos” (Is 6.10). O profeta foi enviado com uma mensagem triste, para pregar o sermão fúnebre deles. Os homens ímpios tornam-se piores com a pregação. “Aborreceis na porta ao que vos repreende” (Am 5.10). Pecadores tornam-se mais obstinados em pecar; Deus lhes diz o que Ele quer, e eles fazem o que eles desejam. “Quanto à palavra que nos anunciaste em nome do SENHOR, não te obedeceremos a ti” (Jr 44.16). A palavra pregada não lhes cura; antes, lhes endurece. E que coisa terrível é essa, que homens sejam afundados no inferno com sermões!

A oração coopera para causar-lhes dano. “O sacrifício dos perversos é abominável ao SENHOR” (Pv 15.8). Um homem ímpio acha-se num grande dilema: se ele não ora, peca; se ele ora, peca. “[Seja] tida como pecado a sua oração” (Sl 109.7). Seria uma triste condenação se toda a comida que um homem comesse resultasse em mau humor e provocasse doenças no corpo; e assim é com um homem ímpio. Aquela oração que deveria fazer-lhe bem, coopera para causar-lhe dano; ele ora contra o pecado, e peca contra a sua oração. Os seus deveres espirituais estão manchados de ateísmo, corrompidos de hipocrisia. Deus os abomina.

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A Ceia do Senhor coopera para causar-lhes dano. “Não podeis beber o cálice do Senhor e o cálice dos demônios; não podeis ser participantes da mesa do Senhor e da mesa dos demônios. Ou provocaremos zelos no Senhor?” (1Co 10.21-22). Alguns mestres continuavam em seus banquetes idólatras, e ainda assim vinham à mesa do Senhor. O apóstolo diz: “Vocês estão provocando a ira de Deus?”. Indivíduos profanos banqueteiam-se com seus pecados, e ainda assim vêm para o banquete da mesa do Senhor. Isso é provocar a Deus. Para um pecador, há morte no cálice, ele “come e bebe juízo para si” (1Co 11.29). Desse modo, a Ceia do Senhor coopera para causar dano aos pecadores impenitentes. Depois da refeição, o diabo entra.

O próprio Cristo coopera para causar dano aos pecadores deseperados. Ele é uma “Pedra de tropeço e rocha de ofensa” (1Pe 2.8). Isso Ele é mediante a depravação do coração dos homens; pois, ao invés de crerem Nele, eles se ofendem diante Dele. O sol, embora em sua própria natureza seja puro e agradável, ainda assim é prejudicial a olhos inflamados. Jesus Cristo é designado para a queda, assim como para o levantamento, de muitos (Lucas 2.34). Os pecadores tropeçam diante do Salvador, e colhem morte da árvore da vida. Assim como certos compostos químicos recuperam alguns pacientes, mas destroem outros, assim também o sangue de Cristo, embora seja remédio para alguns, para outros é condenação. Aqui está a miséria sem par daqueles que vivem e morrem no pecado. As melhores coisas cooperam para causar-lhes dano. Os próprios tônicos lhes levam à morte.

(5) Vejamos aqui a sabedoria de Deus, que pode fazer com que todas as coisas imagináveis se voltem para o bem dos santos. Ele pode, por uma química divina, extrair ouro da escória. “Ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus!” (Rm 11.33). É o grande propósito de Deus expor a maravilha de Sua sabedoria. O Senhor fez com que a prisão de José fosse um degrau para a sua promoção. Não havia qualquer possibilidade de Jonas ser salvo, exceto sendo engolido pelo grande peixe. Deus permitiu que os egípcios odiassem a Israel (Sl 106.41), e esse foi o meio para a sua libertação. São Paulo estava amarrado em correntes, e aquelas correntes que o prendiam foram o meio para a propagação do evangelho (Fp 1.12). Deus enriquece um homem ao fazê-lo empobrecer; Ele provoca um aumento de graça ao diminuir o seu patrimônio. Quando as criaturas se afastam de nós é que Cristo pode estar mais perto de nós. Deus trabalha de maneira estranha. Ele traz ordem da confusão, harmonia da discórdia. Ele frequentemente faz uso de homens injustos para fazer aquilo que é justo. “Ele é sábio de coração” (Jó 9.4). Ele pode obter glória para Si por meio da fúria dos homens (Sl 76.10): ou os ímpios serão impedidos de fazerem o mal que pretendem, ou eles serão levados a fazerem o bem que não intencionam. Deus frequentemente traz auxílio quando há menos esperança, e salva o Seu povo daquela maneira que eles pensavam fosse causar-lhes destruição. Ele fez uso da malícia do sumo sacerdote e da traição de Judas para redimir o mundo. Movidos por cólera imprudente, nós podemos encontrar defeito nas coisas que acontecem; como se um analfabeto pudesse censurar a filosofia, ou se um homem cego pudesse encontrar defeito num trabalho de jardinagem. “Mas o homem estúpido se tornará sábio, quando a cria de um asno montês nascer homem” (Jó 11.12). Agindo assim, animais tolos estariam acusando a Providência, e chamando a sabedoria de Deus aos limites da razão. Os caminhos de Deus são “inescrutáveis” (Rm 11.33). Eles são para serem admirados, ao invés de investigados. Nessa admiração, nós não vemos nunca a providência de Deus em si, mas a misericórdia ou a maravilha que há nela. Quão estupenda e infinita é essa sabedoria, que faz as circunstâncias mais adversas cooperarem para o bem dos Seus filhos!

(6) Aprendamos quão poucas razões nós temos, então, para ficarmos descontentes diante de tribulações exteriores e emergências! Como assim? Ficar descontente com aquilo que nos fará bem! Todas as coisas cooperam para o bem. Não há pecados aos quais o povo de Deus esteja mais sujeito do que a incredulidade e a impaciência. Eles estão sempre prontos, seja para

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desmaiarem em incredulidade, seja para se irritarem em impaciência. Quando os homens se enfurecem contra Deus por descontentamento ou impaciência, isso é um sinal de que eles não creem neste texto. Descontentamento é um pecado ingrato, porque todos nós temos mais misericórdias do que aflições; e é um pecado irracional, porque as aflições cooperam para o bem. Descontentamento é um pecado que nos leva a mais pecados. “Não te indignes para fazer o mal” (Sl 37.8, ARC). Aquele que se indigna estará pronto a fazer o mal: Jonas se indignou e, por isso mesmo, pecou (Jonas 4.9). O diabo abana as brasas da cólera e do descontentamento, e então aquece a si mesmo naquele fogo. Oh, que nós não venhamos a nutrir essa serpente abrasadora em nosso peito. Que este texto produza paciência em nós: “Todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus” (Rm 8.28). Devemos nós ficar descontentes com aquilo que coopera para o nosso bem? Se um amigo atirasse uma sacola de dinheiro no outro e, ao jogá-la, a sacola raspasse em sua cabeça, ele não ficaria muito incomodado, tendo em vista que por meio daquilo ele acabara de obter uma sacola de dinheiro! Assim também o Senhor pode nos ferir com aflições, mas isso é para nos enriquecer. Essas aflições produzem para nós um peso de glória, e nós ficaríamos descontentes?

(7) Vejamos aqui o cumprimento daquela Escritura: “Com efeito, Deus é bom para com Israel” (Sl 73.1). Quando nós atentamos para essas providências adversas, e vemos o Senhor cobrindo o Seu povo com cinzas e nos embriagando com absinto (Lm 3.15), nós podemos prontamente pôr em dúvida o amor de Deus, e dizer que Ele trata severamente o Seu povo. Mas, oh não, ainda assim Deus é bom para com Israel, porque Ele faz todas as coisas cooperarem para o bem. Não é Ele um Deus bom, que transforma tudo em bem? Ele remove o pecado e infunde a graça; isso não é bom? “Somos disciplinados pelo Senhor, para não sermos condenados com o mundo” (1Co 11.32). A profundidade da aflição é para nos livrar da profundidade da condenação. Que nós sempre justifiquemos a Deus; quando a nossa condição exterior for a pior possível, que possamos dizer: “Ainda assim, Deus é bom”.

(8) Vejamos que motivo os santos têm para serem constantes nas ações de graças. Nisso os cristãos são deficientes; embora eles sejam muitos no momento de súplica, ainda assim são poucos no momento de gratidão. O apóstolo diz: “Em tudo dai graças” (1Ts 5.18). Por que devemos fazê-lo? Porque Deus faz todas as coisas cooperarem para o nosso bem. Nós agradecemos ao médico, embora ele nos dê um remédio amargo e que nos dá náuseas, porque aquilo é para nos curar. Nós agradecemos qualquer homem que nos dê algum bem-estar; e não deveríamos ser gratos a Deus, que faz todas as coisas cooperarem para o nosso bem? Deus ama um cristão agradecido. Jó deu graças a Deus quando Ele lhe tirou tudo: “O SENHOR o deu e o SENHOR o tomou; bendito seja o nome do SENHOR!” (Jó 1.21). Muitos dão graças a Deus quando Ele dá; Jó deu graças a Deus quando Ele lhe tirou, porque ele sabia que Deus faria aquilo tudo resultar em bem. Nós lemos acerca de santos com harpas em suas mãos (Ap 14.2), um emblema de louvor. Nós encontramos muitos cristãos que possuem lágrimas em seus olhos e queixas em seus lábios; mas há poucos com harpas em suas mãos, que louvam a Deus na aflição. Ser grato na aflição é uma obra peculiar aos santos. Todo pássaro pode cantar na primavera, mas alguns pássaros cantarão no cair do inverno. Praticamente todos os homens podem ser gratos na prosperidade, mas um verdadeiro santo pode ser grato na adversidade. Um bom cristão bendirá a Deus não apenas no amanhecer, mas também no pôr do sol. Que nós possamos seguramente, na pior circunstância que nos sobrevier, ter um salmo de gratidão, porque todas as coisas cooperam para o bem. Oh, que sejamos frequentes em bendizer a Deus: nós daremos graças a Ele que nos trata com favor.

(9) Pensemos: se as piores coisas cooperam para o bem do crente, o que dizer das melhores coisas – Cristo e o céu! Quanto mais devem essas coisas cooperar para o bem! Se a cruz tem em si tanto bem, o que dizer da coroa? Se tão preciosos cachos crescem no Gólgota, quão delicioso é aquele fruto que cresce em Canaã? Se há alguma doçura nas águas de Mara, o que

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dizer do vinho do Paraíso? Se a vara de Deus possui mel em sua ponta, o que há em Seu cetro de ouro? Se o pão da aflição é tão saboroso, o que dizer do maná? O que dizer do alimento celestial? Se os golpes e ataques de Deus cooperam para o bem, que efeito terão os sorrisos de Sua face? Se tentações e sofrimentos têm em si uma substância de alegria, que substância a glória terá? Se tanto bem procede do mal, em que então consistirá aquele bem no qual não há mal nenhum? Se as misericórdias que procedem da disciplina de Deus são tão grandes, como serão as misericórdias que procedem da coroação? Que possamos confortar uns aos outros com essas palavras.

(10) Consideremos que, se Deus torna todas as coisas para o nosso bem, quão justo é que nós deveríamos fazer todas as coisas servirem à Sua glória! “Fazei tudo para a glória de Deus” (1Co 10.31). Os anjos glorificam a Deus, eles cantam hinos divinos de louvor. Assim também devem glorificá-Lo os homens, aqueles por quem Deus tem feito mais do que em favor dos anjos! Ele nos dignificou acima dos anjos, ao unir a nossa natureza com o Cabeça. Cristo morreu por nós, não pelos anjos. O Senhor nos deu não apenas do tesouro comum de sua generosidade, mas Ele nos enriqueceu com as bênçãos da aliança, Ele nos concedeu o Seu Espírito. Ele atenta para o nosso bem-estar; Ele faz todas as coisas cooperarem para o nosso bem; a sua livre graça elaborou um plano para a nossa salvação. Se Deus busca o nosso bem, não deveríamos nós buscar a Sua glória?

Pergunta. Como pode ser dito adequadamente que nós devemos glorificar a Deus, se Ele é infinito em Suas perfeições, e não pode obter qualquer incremento de nossa parte?

Resposta. É verdade que, em um sentido estrito, nós não podemos dar glória a Deus, mas, em um sentido evangélico, nós podemos. Quando nós tomamos aquilo que há em nós para erguer o nome de Deus no mundo, e para levar outros a nutrirem pensamentos altos e reverentes acerca de Deus, isso é interpretado pelo Senhor como Sua glorificação; do mesmo modo como se diz que um homem desonra a Deus, quando ele faz com que o nome de Deus seja mal-falado.

Nós somos convocados a fazer a glória de Deus avançar de três maneiras: (i) Quando nós almejamos a Sua glória; quando nós fazemos Dele o primeiro em nossos pensamentos, e o nosso alvo final. Assim como todos os rios correm para o mar, e todas as linhas se encontram no centro, assim todas as nossas ações terminam e têm o seu centro em Deus. (ii) Nós fazemos a glória de Deus avançar ao sermos frutíferos na graça. “Nisto é glorificado meu Pai, em que deis muito fruto” (Jo 15.8). Esterilidade demonstra desonra para com Deus. Nós glorificamos a Deus quando nós crescemos em formosura como o lírio, em altura como o cedro, em fertilidade como a videira. (iii) Nós glorificamos a Deus quando nós damos todo o louvor e glória por tudo aquilo que fazemos a Deus. Foi o caso de um excelente e humilde discurso de um rei da Suécia: ele temia que o povo atribuísse a ele aquilo que era devido a Deus e, por causa disso, fosse removido antes que sua obra estivesse concluída. Quando a lagarta da seda tece a sua curiosa obra, ela esconde a si mesma sob a seda, e não é vista. Quando nós tivermos feito o nosso melhor, devemos desaparecer de nossos próprios pensamentos, e transferir toda a glória a Deus. O apóstolo Paulo disse: “Trabalhei muito mais do que todos eles” (1Co 15.10). Alguém poderia considerar esse discurso recheado de orgulho; mas o apóstolo arranca a coroa de sua própria cabeça, e a põe sobre a cabeça da livre graça: “Todavia, não eu, mas a graça de Deus comigo”. Constantino costumava escrever o nome de Cristo sobre a porta, e nós deveríamos fazer o mesmo sobre os nossos deveres. Sendo assim, esforcemo-nos para fazer o nome de Deus glorioso e renomado. Se Deus busca o nosso bem, busquemos a Sua glória. Se Ele faz todas as coisas servirem à nossa edificação, façamos todas as coisas servirem à Sua exaltação.

Page 8: Por Que Todas as Coisas Cooperam Para o Bem Do Homem Piedoso

É o que nos basta falar acerca do privilégio mencionado em nosso texto.