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Gladys Sabina Ribeiro* AnáliseSocial,vol.xxix(127), 1994 (3.º), 031-054 «Por que você veio encher o pandulho aqui?»** Os portugueses, o antilusitanismo e a exploração das moradias populares no Rio de Janeiro da República Velha Uma das formas de análise da República Velha consiste no estudo do controle social. A formação e a utilização de diversas «imagens» sobre os estrangeiros, e mais especificamente sobre os portugueses, passaram por uma questão de classe e de recriação dos preconceitos raciais e nacionais existentes naquela sociedade, bem como pelas suas manipulações de acordo com os períodos de calma ou tensão social. Desta forma, as «visões» sobre os portu- gueses constituíram-se numa forma de controle social e num modo sutil de exercício de poder. Formaram-se a partir de todos os segmentos sociais e foram vivenciadas de formas diferentes. Portanto, manifestaram-se não só de acordo com as vivências, como também em consonância com as conjunturas sócio- -econômicas e com as necessidades de se construir esta nova ordem, baseada no valor fundamental do trabalho e tendo como horizonte a reconstrução da nacionalidade. Muitas vezes os portugueses aparecem como sujeitos «trabalha- dores», outras como «exploradores» e «sugadores». Explorariam desde as oportunidades de trabalho, o comércio a retalho, as moradias, até a «terra», no seu sentido político — de ainda mandarem no Brasil. É o medo da recolonização, que é usado retoricamente... Assim, «explorar» e «exploração» constituem-se em verbo e substantivo básicos para o entendimento da formação do antilusitanismo na cidade do Rio de Janeiro, e quiçá no país. No âmago da palavra, o sentimento contra o português percorreu o tempo e as épocas. Exploração econômica e exploração política. As duas eram vividas pelos cariocas, que davam conta do que sentiam bradando pelas ruas contra os lusos. A exploração econômica, entretanto, parecia ser a que mais tocava a todos: afetava o nó da existência. Era, sem dúvida, a «mais sentida» e a explicitada há *Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF). ** Pergunta feita pelo acusado ao português no processo criminal de Abílio da Cruz e outro (réus), n.° 194, 1920, Arquivo do Primeiro Tribunal do Juri (APTJ), Rio de Janeiro. 631

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Gladys Sabina Ribeiro* Análise Social, vol. xxix (127), 1994 (3.º), 031-054

«Por que você veio encher o pandulho aqui?»**Os portugueses, o antilusitanismo e a exploraçãodas moradias populares no Rio de Janeiroda República Velha

Uma das formas de análise da República Velha consiste no estudo docontrole social. A formação e a utilização de diversas «imagens» sobre osestrangeiros, e mais especificamente sobre os portugueses, passaram por umaquestão de classe e de recriação dos preconceitos raciais e nacionais existentesnaquela sociedade, bem como pelas suas manipulações de acordo com osperíodos de calma ou tensão social. Desta forma, as «visões» sobre os portu-gueses constituíram-se numa forma de controle social e num modo sutil deexercício de poder. Formaram-se a partir de todos os segmentos sociais e foramvivenciadas de formas diferentes. Portanto, manifestaram-se não só de acordocom as vivências, como também em consonância com as conjunturas sócio--econômicas e com as necessidades de se construir esta nova ordem, baseadano valor fundamental do trabalho e tendo como horizonte a reconstrução danacionalidade. Muitas vezes os portugueses aparecem como sujeitos «trabalha-dores», outras como «exploradores» e «sugadores».

Explorariam desde as oportunidades de trabalho, o comércio a retalho, asmoradias, até a «terra», no seu sentido político — de ainda mandarem no Brasil.É o medo da recolonização, que é usado retoricamente...

Assim, «explorar» e «exploração» constituem-se em verbo e substantivobásicos para o entendimento da formação do antilusitanismo na cidade do Rio deJaneiro, e quiçá no país. No âmago da palavra, o sentimento contra o portuguêspercorreu o tempo e as épocas. Exploração econômica e exploração política. Asduas eram vividas pelos cariocas, que davam conta do que sentiam bradandopelas ruas contra os lusos.

A exploração econômica, entretanto, parecia ser a que mais tocava a todos:afetava o nó da existência. Era, sem dúvida, a «mais sentida» e a explicitada há

*Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF).** Pergunta feita pelo acusado ao português no processo criminal de Abílio da Cruz e outro

(réus), n.° 194, 1920, Arquivo do Primeiro Tribunal do Juri (APTJ), Rio de Janeiro. 631

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mais tempo. Não era novidade: vinha da colônia e do império. Os portuguesesforam os colonizadores e controlavam as instituições coloniais. Além disso, eramos monopolizadores das atividades econômicas. Antes da formação do Estadoindependente e de se pensar em construção de uma dada nacionalidade, a cons-ciência dos «portugueses do Brasil» começou a ser formada a partir dos laçoscoloniais e da exploração econômica feita pela metrópole. A presença de comer-ciantes luso-brasileiros no país foi fundamental para a formação da consciênciae a necessidade da nossa chamada independência1.

Ao longo da história brasileira, vez por outra, o alerta contra os portugueses sefazia sentir. Na época da independência e por ocasião da abdicação de D. PedroI, o antilusitanimo varreu as ruas da cidade e muitos conflitos aconteceram ao somdo grito de «mata galego!»2. Em 1848, período que estourou a revolução praieira,foi feita uma representação à Assembléia Legislativa de Pernambuco. Pedia pro-vidências contra a influência estrangeira. Estes estrangeiros eram os portugueses,acusados de terem invadido o comércio e se apropriado da indústria brasileira.Reivindicava-se uma lei que garantisse aos nacionais o comércio a retalho, odireito de exercerem a profissão de caixeiro e de ocuparem diferentes ramos daindústria brasileira3. Por esta representação, dar-se-ia o prazo de quinze dias parao embarque de todos os lusos solteiros e se pedia a convocação de uma assembléiaconstituinte «para tratar de uma reforma social que se harmonize com o progressoliberal do século e estado presente da sociedade brasileira»4.

As reclamações acima não deram em nada. Mas, ainda na República Velhaa exploração económica era abordada pelos jornais, pela Câmara e/ou Intendên-cia e pelos populares nas ruas. Contudo, não era sentida, vivenciada ou enun-ciada da mesma forma pelos diversos segmentos sociais. Cada qual via a «explo-ração» à sua maneira.

Em uma primeira leitura, parece que não havia distinção entre o portuguêspobre e o rico, embora por motivos diferentes ambos representassem a «desor-dem» como «exploração». Não é à toa que o português podia ser chamado de«mau capitalista» ou de «anarquista»5 ou podia ser perseguido aos gritos de

1 «Portugueses do Brasil» era como os nascidos na colônia eram designados. Para a questão daindependência, cf., entre outros, o trabalho já clássico de Maria Odila Silva Dias, «Interiorizaçãoda metrópole», in Carlos Guilherme Mota (org.), Dimensões — 1822, São Paulo, Perspectiva, 1972,e João Luis Fragoso e Manolo Florentino, O Arcaísmo como Projeto, Rio de Janeiro, Diadorim,1993. Estes trabalhos revelam a importância dos comerciantes luso-brasileiros residentes na praçacomercial do Rio de Janeiro para o processo político dos finais do xviii e inícios do xix. Os trabalhosde João Fragoso e Manolo Florentino são originais porque demonstram a existência de um mercadointerno na colónia e processos de acumulação endógenos ao escravismo colonial. O tráficotransatlântico de escravos também era dominado por esses «negociantes de grosso trato».

2 Galegos era como os portugueses eram conhecidos nas ruas do Rio de Janeiro.3 Pedidos de medidas contra a caixeirada portuguesa também estão presentes nos debates

parlamentares do início da década de 1830, por ocasião das discussões que presidiram as reformasconstitucionais consolidadas no Ato Adicional de 1834. Entretanto, tais pedidos não resultaram demedidas permanentes.

4 O Jacobino, n.° 24, de 8-12-1894, p. 1.632 5 O Dia, n.° 134, de 8-7-1921, p. 1.

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A exploração das moradias populares no Rio de Janeiro

«galego vai para a tua terra». Já na imprensa antilusitana o brasileiro era nor-malmente visto como «família», «nação», como «unidade sem divisões» oudistinções, devendo «entrincheirar-se contra o português». Este era encarado,por esses jornais e pelos populares, como uma unidade sem clivagens ou divi-sões intestinas.

A exploração e o antilusitanismo apareciam sempre ligados à sobrevivênciae à reprodução da própria existência. Brasileiros e portugueses brigavam porpesos e medidas, por troco, por aumento de preços e produtos consideradoscaros, por rivalidades comerciais, por dinheiro, trabalho, etc. A luta era árdua.A situação de animosidade era quase latente; mas eclodia e pegava fogo aomenor chispar mais foguento de palavras, ânimos, rixas, alusões à situaçõesdifíceis e à ressentimentos vivos, antigos ou novos. Esta era a guerra constante-mente travada nas ruas. Tinha como armas pedras, cacetes, foices, achas, tiros...Foi assumida pela imprensa em dois períodos específicos: na década de 1890 epróximo aos anos 20, tornando-se, então, «guerra de palavras», com insultos,artigos, réplicas e tréplicas atirados de ambos os lados.

A presença da população portuguesa na cidade do Rio de Janeiro era bastanteforte na República Velha. Dentre os estrangeiros, os portugueses eram bastantenumerosos. Em 1890 havia 106 461 portugueses na cidade, dentre os quais 77 954homens e 28 507 mulheres. Os homens correspondiam a 50% da populaçãoestrangeira e as mulheres a 18%. Homens e mulheres somavam um total de 68%dos estrangeiros.

O recenseamento de 1890 ainda nos revela a percentagem de portugueses queadotaram a nacionalidade brasileira, 18% (14% homens; 4% mulheres), e tam-bém os brasileiros de origem lusa: 120 983 habitantes filhos de pai e mãeportugueses, 2895 habitantes filhos de pai brasileiro e mãe portuguesa e 37 325habitantes filhos de mãe brasileira e pai português.

Portanto, se considerarmos o número total de habitantes portugueses nacidade em 1890, estes eram um quinto da população. Se a estes números acres-centarmos os filhos de portugueses, a população de origem portuguesa crescepara 267 664 habitantes. Havia, portanto, uma verdadeira presença portugue-sa na cidade. Porém, mais do que uma presença numericamente alta, os por-tugueses eram também uma presença no mercado de trabalho e no númerode proprietários da cidade. Em geral, os imigrantes portugueses vinham parao Brasil na faixa dos 15 aos 30 anos de idade e, por serem na sua maioriahomens e solteiros, competiam com os brasileiros no mercado de trabalho e nasquestões ligadas à sobrevivência, incluindo aí a disputa amorosa, já que onúmero de mulheres portuguesas era bem inferior ao de homens6.

A imigração portuguesa não parou de crescer a partir de 1890. Justamenteentre esta data e 1930 houve o maior fluxo migratório de portugueses para oBrasil, sendo que na sua maioria entravam pelo porto do Rio de Janeiro. Depois

' Recenseamento de 1890. 633

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de 1930, o número de imigrantes portugueses caiu rapidamente. Assim, podemosacompanhar abaixo essas entradas:

1820-1883

1884-1890 .

1891-1900

1901-1910 .

1911-1920

1921-1930...

1931-1940

1941-1945

Anos Portugueses

221 536

91 489

201 429

218 193

321 507286 772

95 740

9 073?

Os dados referentes aos censos de 1906, do Distrito Federal, e de 1920, novocenso geral, apresentam a mesma tendência expressa acima. Em 1906, o Rio deJaneiro tinha 811 443 habitantes, sendo 463 453 homens e 347 990 mulheres. Ototal de brasileiros era de 600 928 e de estrangeiros 210 515. Dentre estes havia133 393 portugueses. O número de solteiros ainda continuava bem superior aonúmero de casados: 527 675 (314 378 homens e 213 297 mulheres) para 214 730(124 904 homens e 89 826 mulheres).

Dentre a população portuguesa, a maioria ainda se concentrava entre 15 e 50anos; portanto, havia 80 805 homens e 22 346 mulheres nesta faixa8.

De acordo com o Recenseamento Geral do Brasil de 1920, a população do Riode Janeiro, na época, era de 1 157 873 habitantes, sendo 598 307 homens e 559 566mulheres. Havia 917 481 (79,2%) brasileiros e 239 129 (20,8%) estrangeiros.A percentagem de estrangeiros nas cidade diminuiu um pouco, em comparaçãocom os outros censos. O número e a percentagem de portugueses também decres-ceu: 172 338, equivalente a aproximadamente 14% da população total. Destes,117 604 eram homens e 54 734 mulheres.

A respeito da concentração por idade, mais uma vez, relativamente, os dadosnão sofrem grande alteração: ainda em 1920, a faixa entre 15 e 49 anos concen-trava o maior número de portugueses que habitavam a cidade do Rio de Janeiro.

Estes dados demonstram que o imigrante português, na sua maioria solteiro eem idade considerada produtiva, era um concorrente em potencial num mercado detrabalho com oportunidades escassas. A capital do país contava com uma «popu-lação em proporção superior às limitadas necessidades do seu setor industrial e deserviços»9, logo a oferta de força de trabalho era superior às colocações no

7 Aroldo Azevedo, Brasil, a terra e o homem, vii, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1970,tabela n.° 4, Brasil: entrada de imigrantes, segundo as principais nacionalidades, de 1820 a 1960.

8 Recenseamento do Distrito Federal, 1906.9 Fausto Boris, Trabalho Urbano e Conflito Social, Rio de Janeiro, São Paulo, Difel, 1977,

634 p. 25.

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A exploração das moradias populares no Rio de Janeiro

mercado de trabalho, o que resultava, conseqiientemente, no desemprego e nadificuldade de obtenção de uma colocação. Os estudos existentes apontam custosde alimentação altos, queixas contra a carestia de vida e insatisfações salariais10.

Assim, apesar de o final do século xix ter sido marcado pelo início da indus-trialização da cidade, houve forte deterioração do poder aquisitivo na primeiradécada republicana, ligada à crise do café, à política do encilhamento e às revoltasda Armada. Além disto, nos anos de 1900 inicia-se uma recessão. Os alimentossofreram uma alta entre 1905 e 1906; os salários perderam o seu poder de compra,principalmente os salários menores. As condições de vida se agravaram. Asassociações de caráter étnico e mutualista deram lugar às associações de resistên-cia. As greves iniciaram-se na primeira década do século e tiveram algumavirulência até os anos 2011.

Em 1914 ocorreu uma séria crise. Houve uma retração nos negócios e docrédito. A possibilidade de desemprego maciço rondava a vida dos cidadãosrepublicanos. A corrente de capitais foi paralisada e os preços do café sofreramuma queda substancial, provocando uma corrida à Caixa de Conversão, o quecausou o seu fechamento. As exportações reduzidas e a crise cambial provoca-ram o corte de importações12. É bem verdade que com a Primeira Guerra Mun-dial houve um surto industrial, principalmente do setor têxtil. Porém, exatamenteno período de 1913 a 1918 aumentou o custo da alimentação e houve outraqueda geral no poder aquisitivo das classes trabalhadoras. Não foi por meracausalidade que o período foi pontilhado de greves, culminando com a primeiragrande greve geral de 1917.

Pelos anos de 1920, nova crise apresentou-se. O excesso de oferta de mão-de--obra era desfavorável ao operário na luta pela melhoria de padrão de vida. Osimigrantes eram grandemente responsáveis pelo aumento da taxa de crescimentodemográfico na cidade (a população se expandiu de 811 443, em 1906, para 1 157873, em 1920). Além disso, os estrangeiros tinham um capital considerável apli-cado na indústria (126.858:497$000), e que superava ligeiramente o dos brasilei-ros (123.385:437$000). Na área do Distrito Federal (cidade do Rio de Janeiro) osportugueses ocupavam o primeiro lugar quanto ao capital aplicado na região.

De uma maneira geral, a década de 20 não foi muito fácil do ponto de vistaeconômico. Em 1922-1923 e 1924-1926. houve crises comerciais com reflexos

10 Eulália Maria Lahmeyer Lobo, La revolución industrial y Ia vivienda popular em Rio deJaneiro (1880-1920), Madrid, separata da Revista de índias, 1980, pp. 301-305, e História do Riode Janeiro (Do Capital Comercial ao Capital Industrial e Financeiro), vol. 2, Rio de Janeiro,IBMEC, 1978, pp. 445-552; id. et al, Questão Habitacional e o Movimento Operário, Rio deJaneiro, UFRJ, 1989.

11 Eulália Maria Lahmeyer Lobo, História do Rio de Janeiro (Do Capital Comercial ao CapitalIndustrial e Financeiro), vol. 2, Rio de Janeiro, IBMEC, 1978, pp. 501 a 510.

12 Id., La revolución industrial y Ia vivienda popular em Rio de Janeiro (1880-1920), Madrid,separata da Revista de índias, 1980, pp. 301-305, e História do Rio de Janeiro (Do Capital Comercialao Capital Industrial e Financeiro), vol. 2, Rio de Janeiro, IBMEC, 1978; id. et al, QuestãoHabitacional e o Movimento Operário, Rio de Janeiro, UFRJ, 1989. As análises que se seguemtomaram por base estes trabalhos e notícias de jornais da época, que serão oportunamente citados. 635

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na indústria. Este período foi caracterizado pelo declínio das grandes plantaçõesnos subúrbios do Rio de Janeiro, pela tendência à estagnação da produção secun-dária e por uma política anti-industrial por parte do governo.

Toda esta dificuldade de vida era corroborada pela imprensa da época. Foino jornal Correio da Manhã que encontrámos várias notícias sobre os problemaseconômicos da cidade e do país, bem como seus reflexos na vida da população.Estas notícias estão concentradas no ano de 1918.

A questão mais grave era a da carestia. Para contorná-la e controlá-la, ogoverno federal havia criado o Comissariado da Alimentação Pública e nomeadoBulhões de Carvalho para presidi-lo. A sua função básica era controlar os esto-ques e os preços. A situação era tão caótica que a 3-9-1918 foi assinada a Leide n.° 3533, conhecida como a lei da requisição civil. Transformada em decreto,garantia poderes ao Executivo, tais como: usar a propriedade imóvel de particu-lares; desapropriar toda a sorte de bens; requisitar qualquer quantidade de gêne-ros de primeira necessidade, etc. A crise era atribuída à guerra e as medidasdeveriam durar até a regulamentação do estoque. Acompanhando o decreto pre-sidencial, vinha uma tabela para vendas em grosso.

Logo após a assinatura deste decreto, no dia 13-9, o presidente viu-se forçadoa assinar outro. Este último regulava as atribuições do Comissariado da Alimen-tação Pública, revogando a tabela de preços e estabelecendo nova tabela, queentraria em vigor no dia 19-9. Era o Decreto n.° 13 193.

As dificuldades não se resolveram dessa forma. Os produtos começaram a sersonegados e a desaparecer do mercado. Isto agravou ainda mais a situação.Certos produtos aumentaram de preço, tais como a carne, a querosene e a gaso-lina. De um modo geral, os aumentos foram vertiginosos.

No dia 5 de Setembro de 1918 houve uma reunião das «classes conservadoras».Reuniram-se a Associação Comercial e a Federação das Associações Comerciais.A culpa da situação calamitosa foi colocada no governo, que não havia agido nomomento oportuno. Por sua vez, a população apelava contra os «exploradores dopovo» e colocava a culpa da crise nos comerciantes e donos das casas de aluguel.

Estes, por sua vez, acusavam os açambarcadores e atacadistas. A situação erabastante tensa. Marchas e contramarchas ocorriam. Um jogo de acusações edefesas sem fim se dava.

O certo é que o Comissariado havia sido criado na tentativa de conter a popu-lação, que, comprimida pela fome, atacava os estabelecimetos comerciais. Se é bemverdade que o Comissariado não havia conseguido cumprir todos os seus objetivos,ruim com ele, pior sem ele. Por volta de 3 de Dezembro de 1918 correu o boato desua extinção. O Correio da Manhã do dia anunciou a iminência de uma greve gerale publicou o depoimento de um operário falando da «greve justa». O articulista seapavorou porque pensou que se pudesse estar à beira de uma revolução! Revoluçãoera uma palavra que causava estremecimento. A rebeldia da população na rua eragrande e os comerciantes e proprietários eram os mais atacados13.

13 Os jornais utilizados para esta panorâmica sócio-econômica do período foram: Correio da636 Manhã de 22-7-1918, p. 1 (artigo «O Comissariado e a carestia de vida»), de 4-9-1918, p. 3 (artigo

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A exploração das moradias populares no Rio de Janeiro

Se na promulgação do decreto que regulamentava a requisição civil o gover-no culpava a Guerra Mundial pela crise, havia também a acusação sutil contraos comerciantes e proprietários. Já era tradição no país estabelecer como culpa-dos pelos aumentos vertiginosos o comerciante e os proprietários de imóveis paraalugar. A política econômica do governo, bem como suas ligações com a situaçãoeconómica mundial, não eram colocadas em questão pelos populares.

Nas ruas do estado de São Paulo, sírios e italianos eram perseguidos. No Riode Janeiro, os portugueses estavam novamente no centro da problemática: aindaeram eles o grosso dos proprietários de imóveis e do comércio a varejo; tambémeram responsáveis pela maior quantidade de capital aplicado na indústria e eramconcorrentes dos nacionais na luta por um emprego.

É nesse panorama que várias fontes e bibliografia dão conta de que os portu-gueses ocupavam maciçamente certos ramos do comércio a varejo e profissões,bem como monopolizavam as casas de aluguel14. Sobre eles recaía o adjetivo de«explorador» e eram associados, quase como sinónimos, aqueles de «mesquinho»,«avaro» e «ladrão». Era nas suas mãos que os populares compravam o arroz comfeijão do dia a dia, alimentavam-se precariamente de iscas ou caldos d'unto nascasas de pasto e tomavam a goles o copázio de paraty. A noite, já bem tarde,recolhiam-se exauridos nos pequenos cómodos sujos e sem higiene das estalagens,hospedarias, casas-de-cômodos e/ou cortiços do centro da cidade e adjacências.

É a partir deste monopólio que se foi construindo e reforçando oantilusitanismo. O português era acusado de roubar de todas as formas possíveise de enriquecer às custas do nacional, tanto na cidade quanto no campo.

Era difícil saber a exata diferença entre estalagens, hospedarias, cortiços ecasas-de-cômodos. Os termos eram utilizados de maneira indistinta nos proces-sos criminais. Podiam ser casas grandes e velhas que tiveram seus vários apo-sentos subdivididos e alugados, ou acréscimos desordenados a uma casa-matrize igualmente bastante antiga, ou mesmo muitas casinholas construídas umas apósoutras, como na obra O Cortiço, de Aluísio de Azevedo.

Eulália Lobo e Lia Aquino, citando o engenheiro Everardo Backheuser, ten-taram uma classificação para as habitações populares. Assim:

A estalagem, segundo esse engenheiro, era a casa coletiva com mais ar eluz do que a casa de cómodos, constituída por pequenas casinhas de porta e

«A alimentação pública. Uma grande e agitada reunião na Associação Comercial»), de 14-9-1918,p. 1 (artigo «Alimentação pública. O Presidente da República assinou ontem o decreto que regulaas atribuições do Comissariado da Alimentação Pública»), de 3-12-1918, p. 1 (artigo «Os operáriose a extinção do Comissariado»), de 5-12-1918, p. 2 (artigo «O Comissariado é indispensável e osexploradores»), 12-12-1918, p. 2 (artigo «O Comissariado e os açambarcadores»).

14 Cf. José Murilo de Carvalho, Os bestializados. O Rio de Janeiro e a República que não foi,São Paulo, Companhia das Letras, 1987, p. 79, June Hahner, «Jacobinos versus galegos: urbanradicais versus portuguese immigrants in Rio de Janeiro in the 1890's», in Journal of InteramericanStudies and World Affairs, 18 (2), Maio de 1976, Luis Edmundo, O Rio de Janeiro de meu tempo,Rio de Janeiro, Conquista, 1957, vol. 1, pp. 117-120 e vol. 3, p. 516, e Luis Felipe de Alencastro,«Proletaires et esclaves: immigrés portugais et captifs africains à Rio de Janeiro — 1850-1872, inCahiers du CRIAR, n.° 4, Publications de 1'Université de Rouen, 1984, entre outros. 637

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janela, alinhadas, contornando o pátio central, separadas em quatro peças:sala, dormitório de frente, alcova e cozinha. Os banheiros são escassos ecoletivos. Classifica de cortiço a estalagem mais anti-higiênica, geralmentede madeira, com separações internas as mais precárias.

A avenida era uma estalagem aperfeiçoada com uma rua central, calçadae com passeios, ladeada por casinhas de alvenaria e piso ladrilhado, perfei-tamente separadas em cozinha, banheiro e latrinas independentes. Além darua com serventia comum apenas para o trânsito, cada casa tem, geralmente,três quartos, cozinha e banheiros bem arejados e iluminados.

[...] As hospedarias, albergues e casas de cômodos destinavam-se a mo-radia temporária, por dia15.

Nessas habitações conviviam operários, artesão e população pobre a maisvariada.

Como o português João Romão, personagem do romance O Cortiço, publicadopela primeira vez em 1890, os portugueses eram proprietários da maioria esma-gadora das casas disponíveis para aluguel. O problema da habitação era resultadodo grande número de cariocas desabrigados, ou mal abrigados, e de migrantes quecontinuamente chegavam de todos os cantos do país e do exterior. Juntavam-sea isto os salários mirrados da população. A solução eram as habitações coletivas,que nem por isso eram baratas. Excesso de gente e pouca moradia: realidade queconferia aos proprietários o poder de cobrarem o quanto quisessem, de aumenta-rem continuamente os aluguéis e mesmo despejarem os inquilinos pela força, emuma época em que não existiam leis reguladoras dos contratos.

No início do século xx, novas formas de organização do espaço urbano eramexigidas. As moradias populares eram consideradas focos de doenças, devido àsprecárias condições de higiene. Além do mais, convinha modernizar o centro dacidade, de aspecto ainda tão colonial, como se dizia na época. Com o «bota--abaixo» do governo Pereira Passos (1902-1906), a situação não melhorou.Muito pelo contrário, chegou a piorar bastante. Aos poucos a população pobreia sendo removida do centro da cidade.

Se em 1888 as freguesias centrais de Santana, Santo e Sacramento concen-travam as habitações populares, já em 1905, segundo Backheuser, estas encon-travam-se na Cidade Nova e pela Gamboa e Saúde16. Aos poucos, essas moradiasforam sendo deslocadas do centro da cidade.

Com desespero que se assistiu, na gestão do prefeito Barata Ribeiro, à der-rubada do cortiço «Cabeça-de-Porco», onde habitavam centenas de pessoas17. Os

15 Eulália Lobo e Lia de Aquino Carvalho, «A questão habitacional operária no Rio de Janeiro,1880-1920», in Eulália Lobo et. al., Questão Habitacional e o Movimento Operário, Rio de Janeiro,UFRJ, 1989, citam dois artigos do engenheiro Everardo Backheuser, da Revista Renascença deMaio de 1905, n.os 13 e 15.

16 Id., ibid., p. 13.17 Segundo Sidney Chalhoub, «A guerra contra os cortiços: cidade do Rio, 1850-1906», in

Primeira Versão, Campinas, IFCH/UNICAMP, 1990, houve uma verdadeira «operação de guerra»638 para a derrubada deste cortiço, situado a Rua Barão de São Félix n.° 154. Segundo este autor, no

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anos da República Velha foram passando e arrastando consigo o drama de mi-lhares de cariocas que moravam mal ou longe — nos bairros de subúrbios,depois das demolições do início do século e do arrasamento do morro do Castelo,em 1922 —, ou não tinham para onde ir após a jornada de trabalho18. Nestesentido, é significativa a observação das «Relações de recolhimento» existentesno Arquivo Nacional19. Salta aos olhos, em todas as varas e pretorias, o aumentodo número de prisões por vadiagem e mendicidade no período estudado. Só em1921, com o início da discussão da lei do inquilinato, o problema chegou a seconcretizar na Câmara Federal. Muitos debates foram travados sobre este assuntonos anos subsequentes.

Até a aprovação da dita lei, e mesmo depois, o problema da habitação cons-tituía um dos episódios da «guerra» contra os portugueses na cidade. Eramacusados de aumentarem os preços a seu bel-prazer e, com isto, piorarem aqualidade de vida dos cariocas. Talvez no mesmo ritmo dos aumentos de aluguelcrescessem os sentimentos antilusitanos.

Não raro os papéis dos proprietários de casas comerciais e de imóveis dealuguel eram um só. O dono da venda ou quitanda alugava cômodos ou pequenascasas para seus empregados, ou para trabalhadores pobres. Ali conviviam todosno mesmo minúsculo espaço urbano. Não havia grandes separações entre ocomércio e o local de moradia; eram contíguos ou unidos por corredores e portas.O controle do proprietário sobre o inquilino era total, tanto no que diz respeitoao espaço quanto às contas e dívidas, que com frequência eram misturados. Tudopassava a ser uma coisa única e indivisa.

Um exemplo típico desta problemática pode ser encontrado no processo emque foi réu Manoel Antonio Esteves, português, natural do Minho e negociante20.Manoel tinha quitanda ligada à uma estalagem. Ambas situadas à rua Camerinon.° 108, ou antiga Rua da Imperatriz. No palco da contenda, portugueses ebrasileiros habitando um velho casarão subdividido em quartos. No centro havia

seu tempo áureo chegou a possuir 4000 moradores. Tal operação de demolição deu-se em 26-1--1893, com a presença de «impressionante lista de autoridades» (p. 4).

18 Há uma extensa bibliografia sobre este período, abordando as questão da urbanização e dascondições de vida dos populares (cf., entre outros, Oswaldo Porto Rocha, A Era das Demolições.Cidade do Rio de Janeiro, 1870-1920, Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura, 1986, Liade Aquino Carvalho, Contribuição ao Estudo das Habitações Populares: Rio de Janeiro, 1886--1906, Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura, 1986, Sidney Chalhoub, Trabalho, Lar eBotequim. O Cotidiano dos Trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Époque, São Paulo,Brasiliense, 1986, e José Murilo Carvalho, Os bestializados. O Rio de Janeiro e a República quenão foi, São Paulo, Companhia da Letras, 1987).

19 Foram consultadas as «Relações de recolhimento» n.os 22, 23, 23-A, 24, 24-A, 25, 25-A, 26,26-E, 27, 27-E, 28, 28-A, 29, 29-E, 30, 30-B, 31 , 32, 32-A, 33, 33-E, 34 (Tribunal de Júri). Estasrelações foram enviadas pelos cartórios para o Arquivo Nacional na ocasião do recolhimento dadocumentação. São muito diferentes quanto ao seu detalhamento. Dizem respeito às diferentes varascriminais existentes no acervo do judiciário do Arquivo Nacional (SPJ). Correspondiam às vintevaras criminais, que, por sua vez, correspondiam às quinze pretorias, agrupadas estas em freguesias.

20 Todas as qualif icações dos personagens apresentados , bem como as descr ições edenominações, tanto das pessoas como dos locais das contendas, estão sendo feitas de acordo comos processos crimes analisados. 639

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um pátio interno com uma bica d'água, usada por todos. Muitos corredores eportas ajudavam a formar um verdadeiro labirinto; alguns caminhos levavam àquitanda, outros à Rua Camerino.

Os habitantes da estalagem participavam ativamente uns da vida dos outros.Sabiam dizer com detalhes hábitos de seus vizinhos: hora de chegada, de saída,costumes vários... Se, por um lado, tinham um amplo contato com o que Robertoda Matta chama do «mundo da rua»21, com todo o seu complexo de vida cheiade meandros e malandragens, por outro lado, viviam «fechados» no «pequeno»círculo e mundo que era a estalagem — pedaço de vida próprio e à parte, quetinha seus códigos e leis habituais.

Na nossa historinha não se sabe bem como a discussão começou. As versõessão plurais. Algumas das testemunhas narram a briga a partir de um bate-boca docaixeiro Francisco Teixeira com a amásia do pardo José Alves de Paixão, de nomeHenriqueta. Outras dizem que a pendenga iniciou-se direto com o ofendido,Paixão.

Paixão e Henriqueta moravam na estalagem de Esteves. Eram seus vizinhos,além do dono da estalagem, os portugueses Domingos (marinheiro mercante) eJosé Marques (alfaiate), bem como os brasileiros José Guilherme (marceneiro),Cândido (trabalhador braçal), Zacharias (escultor), Isaura (costureira), Angelina(doméstica) e outros. Todos ali viviam e da quitanda do português retiravam onecessário para se alimentarem. Conta da quitanda e problemas de moradia evizinhança misturavam-se. A discussão começou e, com os ânimos exaltados, oportuguês cobrou a Paixão a quantia correspondente a um frango. Segundo ele,o brasileiro devia-lhe há mais de três meses. Os dois atracaram-se e um tiroacertou Paixão.

O processo é rico em informações importantes sobre a realidade vivida porproprietários e inquilinos. Elas podem nos ajudar a traçar um quadro mais amplodestas relações e de como o antilusitanismo se gerava e se manifestava.

Fica claro, ao longo da leitura dos autos, que o português insistia em cobraro frango adquirido em sua quitanda. Levava o problema do espaço comercialpara o habitacional. O pagamento do frango foi o meio usado por Esteves parapressionar Paixão; e efetiva-se como poder quase total sobre ele e sua amásia.A cobrança soou como uma «ameaça» e Paixão reagiu a tapas.

Não se pode saber se o brasileiro devia ou não a quantia cobrada. O funda-mental é que ele recusa-se a pagar e resiste à «ameaça». Diz mesmo, de acordocom testemunhas, nada dever e defende-se das acusações de «ladrão» e «gatu-no», que lhe foram feitas pelo português e foram incentivadoras da contenda.

A «ameaça» à Paixão é incorporada pelos habitantes da estalagem. Na delega-cia e na pretoria fica patente a formação de dois grupos rivais: o de brasileiros eo dos portugueses. Estes últimos depõem a favor de Manoel, dizendo que Paixão

21 Roberto da Matta, Carnavais, Malandros e Heróis. Para uma Sociologia do DilemaBrasileiro, Rio de Janeiro, Zahar, 1983, e A Casa e a Rua. Espaço, Cidadania, Mulher e Morte no

640 Brasil, São Paulo, Brasiliense, 1985.

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havia proferido palavrões para o patrício, chamando-o de «safado», «filho daputa», etc. Além do mais, o ofendido era «para quatro da força do acusado».O grupo de portugueses procura também justificativar alegando não ter vistodireito o crime por já estar anoitecendo, ou lançar a suspeita no caixeiro Francisco,«inimigo de Paixão por questões antigas». Já os brasileiros acusam o português deter chamado Paixão de «gatuno» — o que não era verdade, na sua opinião, por esteser carpinteiro — e narram o crime com clareza, culpando, obviamente, Esteves.

A rivalidade entre portugueses e brasileiros e o antilusitanismo fica aindaevidente na própria consciência que Esteves teve da situação. Na sala de audiên-cias, toda vez que a palavra era dada a ele, réu, afirmava, em defesa própria, quetal ou qual testemunha não havia assistido ao fato e «que só queria depor contraele por ser estrangeiro», isto é, português, e «por não querer vender fiado»22.Mais uma vez, aparece o problema da sobrevivência...

O monopólio dos portugueses ameaçava os brasileiros. Do mesmo modo queestes se recusavam a pagar contas de bar, aludindo à «exploração» e às péssimascondições de sobrevivência, atribuída aos portugueses (donos de casas-de-pasto,bares, botequins, pequenos restaurantes, ou, simplesmente «frege-moscas»), fa-ziam o mesmo com os aluguéis. Nos processos criminais que encontramos, cujacena se dava dentro de imóveis para alugar, a briga entre proprietários e inqui-linos remete-se sempre à aluguéis atrasados.

Assim ocorreu no auto, datado de 1902, no qual foram réus os portuguesesJoaquim Saraiva e Mariana Teixeira de Macedo, e em outro cujo acusado foi obrasileiro pardo José Esteves Gomes, em 191623.

O primeiro processo (1902) é mais detalhado. Os portugueses eram donos deuma casa-de-cômodos no Largo da Imperatriz n.° 3. Ao voltarem da festa daPenha, foram ao quarto do estivador Martinho, brasileiro de cor parda, cobrar--lhe dois meses de aluguel em atraso. Martinho recusou-se a pagar a quantia.O português Saraiva, com auxílio de sua mulher, agrediu o brasileiro aos gritosde «tratante eu te mato».

A briga atraiu a atenção de outros moradores e populares. Os portuguesestentaram fugir e se esconderem. Entretanto, não conseguiram. Foram barradospor brasileiros, e presos. Na delegacia e na pretoria há somente depoimentos detestemunhas de nacionalidade brasileira culpando o casal português pela agressãoa punhaladas. Na versão de Joaquim e Mariana, eles apenas reagiram a Martinho,que os havia recebido com um «cacete no nariz».

O segundo processo (1916) ocorreu na casa-de-cômodos da Rua da Saúden.° 221. Novamente o motivo da contenda a tiros foi o pagamento dos aluguéis.Só que, desta feita, há uma declaração explícita de falta de dinheiro não «per-doada» nem «compreendida».

Em comum com as brigas ocorridas dentro de botequins, bares, casas-de--pasto, pequenos restaurantes ou «fregemoscas», no tocante aos espaços de

22 Processo criminal Manoe l Antonio Esteves (réu), m. 58 , 1898, APTJ.23 Processo criminal Joaquim Saraiva e Mariana Teixeira de Macedo (réus), m. 85, 1903, APTJ,

e processo criminal José Esteves Gomes (réu), m. 192, 1916, APTJ. 641

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moradia, os brasileiros também se recusavam a pagar aluguéis altos para seuspadrões salariais e resistiam24. Porém, aí existia uma diferença. No caso dashabitações, além da falta de dinheiro — bastante provável —, como no processoacima mencionado, havia o medo concreto do despejo em uma época de «mo-radias» caras e raras. Julgamos que se deve a este fato não termos encontrado,no caso das brigas entre proprietários e inquilinos, provocações propositais,desafios ostensivos ou «petulantes».

Em todas as versões e nos diferentes processos, o início da contenda ficavasempre por conta do proprietário e de suas cobranças. O inquilino «apenas»reagia ou resistia: não pagar o aluguel, para além da falta de dinheiro, com todoo rito das acusações e xingamentos, consistia em uma forma de desafio, deprovar, diante do inevitável despejo, a posse política de um território seu de fato,não de direito.

O «tomar posse da terra» e o ser brasileiro revestiam-se de um significadopolítico de luta pela sobrevivência e por encontrar um lugar de trabalho. Assim, a«exploração política» não era considerada só da própria terra, era inclusive de simesmo. Na prática, estas duas coisas confundiam-se. Neste caso, a «exploraçãoeconômica» revestia-se de significado político a medida que quem tinha maisposses e dinheiro possuía maior poder e controle. Portanto, logicamente, seria o«dono da terra».

São muitos os processos encontrados em que os conflitos se dão nos espaçosde lazer (entendidos como espaços de diversão; neste caso incluem-se os botequinse casas-de-pasto, entre outros, onde se conversava, se bebia para matar o tempo,inclusive o tempo que deveria ser dedicado ao trabalho), de moradia (estalagens,hospedarias e cortiços, na sua maioria) e de trabalho. É a sobrevivência materialque está em jogo.

A resistência ou rebeldia, a docilidade ou resignação, a adaptação ou não, sóexistem contextualizadas. O próprio indivíduo português pode se acomodar, sesubmeter ou se rebelar de acordo com as suas necessidades e conveniências. Hávárias formas de resistir. Resistir não se traduz só na formação de barricadas outrincheiras, como foi o caso da revolta da vacina, no Rio de Janeiro da RepúblicaVelha. As resistências podem ser flagradas nos considerados crimes e podem serbem sutis, tais como a negação do tempo capitalista, de valores sociais estabele-cidos, do trabalho, etc. Várias formas de resistência dos brasileiros foram encon-tradas com relação à «exploração econômica» e à «exploração política». Resistirà um tipo de dominação pode significar impor limites, como bem demonstrouThompson25, escrevendo sobre as cartas anónimas e determinados tipos de barga-nha na Inglaterra do século xviii. No caso da população carioca e do momento daafirmação de uma dominação burguesa, se apreende com clareza que o limite era

24 A adjetivação de «aluguéis altos» é feita de acordo com os processos.25 E. P. Thompson , Whigs and Hunters. The Origin of the Black Act, Londres , Allen Lane ,

1975, «The cr ime of anonymity», in, Albion' s Fatal Tree. Crime and Society in Eighteenth CenturyEngland, Londres , Allen Lane , 1975, e «The moral economy fo the Engl ish c rowd in the eighteenth

642 century», in Past and Present, n.° 50, Fevereiro de 1971.

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considerado a «exploração», tal como era percebida. Na época não se colocava emquestão, habitualmente e corriqueiramente, a propriedade privada. O grande pro-blema era o «excesso» de «exploração».

Exemplos de tipos de situações conflituosas em locais de lazer, moradia etrabalho, encontramos nos autos. Em uma casa-de-pasto, Aristides Evangelista deLemos, brasileiro, foi réu, e João da Silva Pinheiro, português, e João MiguezVasquez, espanhol, foram ofendidos (1908). Em uma hospedaria existe o processomovido contra o nacional Aníbal de Soares Campos (1910), e já dentro de umagaragem, na Rua Salvador de Sá, há a ação contra o português Manoel Pereira daSilva (1913).

A tentativa de homicídio ocorrida na casa-de-pasto deu-se em 190826. Joãoda Silva Pinheiro era dono do tal estabelecimento no Bairro de Botafogo e obrasileiro Aristides seu freguês. O português comunicou ao brasileiro que não lhevenderia fiado porque seu fiador não se responsabilizava mais pelas contas e eleera um sujeito desmoralizado. Na versão do praça brasileiro Aristides, ele haviapago suas contas, inclusive o jantar daquele dia, e havia sido comunicado quenão poderia mais comprar fiado. Isto originou o rolo. Um espanhol, MiguelVasquez, levou um tiro ao resolver apartar a confusão.

No caso entre o brasileiro Aníbal Soares de Campos e o português João deAlmeida Pinto Corte Real, acontecido na hospedaria da Praça Municipal, em191027, os depoimentos na delegacia e pretoria são totalmente contraditórios. Nadelegacia, o fato é narrado como tendo sido o brasileiro, morador na hospedariana qual o português era encarregado, o responsável por provocar desordens nointerior da casa e ameaçar o português. Este só então teria ido dar queixas àdelegacia, tendo voltado acompanhado de guardas, que intimaram o acusado.Aníbal, na ocasião, disse que só iria à delegacia acompanhado de Pinto Corte Real.Ao mesmo tempo, mostrando-se altaneiro e cheio de razões, deu uma bofetada noencarregado e inutilizou os fardamentos dos soldados, ciente das suas razões edesafiando o «poder». Na pretoria, as testemunhas desmentem os depoimentos dadelegacia. Dizem que o brasileiro, apesar de embriagado, não resistiu à prisão eque é sujeito «trabalhador», enquanto o português é tido como «desordeiro»,certamente por perturbar a «ordem» estabelecida no cotidiano dos populares.

Constantemente os depoimentos da delegacia são modificados com relaçãoaos da pretoria, tornando-se contraditórios. Esta utilização dos processos crimi-nais permite-nos recuperar um universo social mais extenso e suas manifestaçõesculturais. Através deles observarmos como se dá o exercício do poder, no seusentido mais amplo: o controle social feito em todas as direções e construído deforma dinâmica, a partir das experiências compartilhadas dos indivíduos; asquestões referentes aos conflitos sociais e de classe, além da formação de pre-conceitos em uma leitura na qual o cultural é parte importante e básica noentendimento do movimento da história.

26 Processo criminal Aristides Evangelista de Lemos (réu), m. 457, 1910, APTJ.27 Processo criminal Aníbal Soares de Campos (réu), m. 457, 1910, APTJ. 643

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A leitura e análise dos autos criminais dá acesso à uma determinada históriado cotidiano, que não ignora os acontecimentos nem tem como horizonte umahistória fragmentada e miúda de mais; ao contrário, pensa a realidade comoconstrução multifacetada onde o acesso ao «real» se dá pela análise das práticasdiscursivas dos depoentes, nunca perdendo de vista a totalidade social.

Não há a fala «pura» das testemunhas. Existe sim a mediação dos delegados,juizes, escrivães, que não raro modificam a linguagem, ou mesmo criam «ver-sões». E são vários os processos nos quais os advogados denunciam esta práti-ca... Nestes discursos «filtrados» o que nos interessou não foi o que de fatoaconteceu, a «verdade». Coisas aconteceram, sem dúvida, e sobre elas foramcriadas versões. O crime, nesta perspectiva, abre caminho para algumas represen-tações do real existentes naquele contexto social. Desta forma, a partir dos de-poimentos das testemunhas, a tarefa do historiador é propor uma interpretação,uma análise daquela sociedade construída através do que era possível existir, erealmente existiu, com vistas à uma interpretação mais global.

É um método antropológico que recupera versões narradas com intuito dedesvendar conteúdos simbólicos28. Os depoimentos conflitantes possibilitam che-garmos às lutas, à tentativa de recuperação analítica da consciência que aqueleshomens tinham das suas realidades vividas e à forma como o controle social eraexercido. Não foi o crime ou a criminalidade o nosso objeto de estudo. Estes sãoprodutos das tensões sociais e lutas, ou do que aquela sociedade acreditava ser justoou injusto, passível ou não de punição; em última análise, como já vimos, o crimepode se constituir em um limite colocado a um determinado tipo de dominação29.

Finalmente, depois dessa digressão, uma breve palavra sobre um conflito emum local de trabalho (1913)30. Há também duas versões do fato. Na primeira, adas testemunhas e do ofendido, o português Manoel Pereira da Silva trabalhavasob as ordens do espanhol Viscaria. Tendo tido um atrito com este, fora mudadode seção e repreendido pelo chefe geral das oficinas, o brasileiro chamadoOlympio. No dia seguinte, Manoel foi à garagem e tentou agredir Olympio.Levando sopapos deste, reagiu atirando. Na versão do acusado, pelo motivodescrito ele fora demitido, insultado e agredido pelo chefe geral e outros empre-gados brasileiros porque estes tinham outra pessoa para colocar em seu lugar.

28 Para as «análises densas» de conteúdos simbólicos, cf. Clifford Geertz, «Uma descriçãodensa: por uma teoria interpretativa da cultura», in A Interpretação das Culturas, Rio de Janeiro,Zahar, 1978, pp . 13-41.

29 Cf. E. P. Thompson, Whigs and Hunters. The Origin of the Black Act, Londres, Allen Lane,1975; id. et al., Albions Fatal Tree. Crime and Society in Eighteenth-Century England, Londres ,Allen Lane, 1975 (em especial, consultar o prefácio). As relações entre culturas distintas em umasociedade, bem como às colocações de limites e os mecanismos que engendram a disciplina social,são da mesma forma trabalhados em «Patrician society, plebeian culture», in Journal of SocialHistory, v. 7, n.° 4, 1974. Também que a concepção de classe com a qual se está trabalhando éigualmente aquela definida por este mesmo autor no «Prefácio» da edição inglesa do The Makingof the English Working Class, Middlessex/New York, Penguin Books , 1982, e no artigo «Lasociedad inglesa del siglo xviii. Lucha de clases sin clases?», in Tradición, Revuelta y Conscienciade Clase, Barcelona, Ed. Crítica, 1982.

644 30 Processo criminal Manoel Pereira da Silva (réu), m. 147, 1913, APTJ.

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No processo de Aristides Evangelista de Lemos, aquele ocorrido dentro dacasa-de-pasto, nitidamente está em primeiro plano a sobrevivência do nacional.Sentia-se usurpado no seu direito legítimo de subsistir, de poder pagar a suaconta e alimentação, em um período no qual a carestia de vida era alardeadapelos jornais e aos lusos eram atribuídas as causas da miséria e da fome.O português João da Silva Pinheiro apenas comunicou-lhe o fato e sequer abriuum espaço para o diálogo e posterior entendimento. De uma outra forma, quetambém pode ser entendida como «política», o proprietário havia se apossadoda terra e dos direitos de sobreviver. A figura do português como «bode--expiatório» era veiculada pela imprensa31 e vivenciada pelos populares. Não hápreconceito ou visões culturais tecidas em uma única e inequívoca direção.As imagens propaladas foram diferenciadas, construídas por todos os segmentossociais a partir de vivências múltiplas e plurais. O português era «trabalhador»,«morigerado», «ordeiro», tanto por ser proprietário como assalariado exemplar,deixando-se explorar. Como «indivíduo pernicioso», era tido como«monopolizador», «solapador», das tentativas de ordenação social da nascenteRepública, tanto por controlar estabelecimentos comerciais e de moradia quantopor garantir, na maioria das vezes, empregos privilegiados. No dia a dia dasruas questionam-se os direitos dos portugueses e dos outros estrangeiros, emgeral, beneficiados com a ideologia da «modernização» e «branqueamento».

«Ordeiro»-«desordeiro» e «trabalhador»-«vadio» são binômios recorrentesnos autos criminais. Pretendem justificar ações e delimitar direitos civis ao longoda Primeira República. Elites e trabalhadores, nacionais e estrangeiros sabiamrecorrer ao que podia lhes beneficiar no júri. No conflito passado dentro dahospedaria, entre o brasileiro Aníbal e o português Pinto Corte Real, as diferentesversões do fato são reveladoras neste sentido. Na primeira narrativa, ainda nadelegacia, que é aquela do português ofendido e de várias testemunhas, o brasileiroé «desordeiro». Já na pretoria, o «desordeiro» passa a ser o português... Parecebastante razoável achar que no momento que o problema da habitação estava napauta do dia o português, encarregado de gerir os cómodos para aluguel, fosseelemento «pernicioso» e «desordeiro»; provocava a desordem na sociedade pordominar e manter, como outros conterrâneos seus, o controle sobre algo tãofundamental: morar.

No conflitos, descritos acima, da garagem à Rua Salvador de Sá fica evidentea necessidade de os brasileiros disporem da própria terra como lhes conviesse:sentiram-se no direito de, após o conflito, substituírem o português ManoelPereira da Silva por outro empregado, brasileiro. Vale lembrar que na maioriados casos encontrados os portugueses ocupavam postos de trabalho privilegiadose nas rixas tinham crédito da polícia e do juri, causando mesmo a dispensa debrasileiros do trabalho. Claro que, quando lhes era possível, como no caso nar-rado acima, a substituição do português é tida como uma vingança.

31 A imprensa antilusitana existiu com virulência nos primeiros anos da República (O Jacobino,O Nacional, A Bomba e o Estrangeiro) e por volta da década de 1920 (O Dia). A grande imprensa,vez por outra, divulgava notícias antilusitanas, contando «casos» ou piadas. 645

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No final do xix e inícios do xx, com a implantação de novos conteúdos parao «bem-trabalhar», o antilusitanismo pode ser visto, em certos aspectos, comouma contestação à «ideologia do trabalho» e uma forma concreta de seassenhorar da terra, um modo alternativo de participar abrindo novos espaços, naprática, e imprimindo novos conteúdos políticos às experiências do cotidiano.

Voltemos aos autos do réu Aníbal Soares de Campos, ocorrido na hospedariada Praça Municipal. Aí encontramos uma ação mais violenta contra o portuguêsJoão de Almeida Pinto Corte Real, encarregado da dita casa. Pelo que sedepreende do processo, o acusado nada devia. Talvez por isto mesmo tenha tidoliberdade de provocar o português e descarregar nele a sua raiva, gerada ereforçada pelas condições em que os brasileiros habitavam e pelas relações quevimos descrevendo e analisando entre proprietários portugueses e inquilinosnacionais. O motivo da rixa parece explícito: o antilusitanismo manifesto,contruído nesses espaços e selado pelo ataque raivoso a Pinto Corte Real.

Como nos casos ocorridos dentro dos botequins, casas-de-pasto, bares, res-taurantes e «fregemoscas», nos quais na maioria das vezes se tentava burlar ascontas, sair de modo sorrateiro e discreto para não chamar a atenção, encontra-mos o caso de uma mulher: Violeta Maria, solteira, de 25 anos32. Ela tentoudesocupar uma casa de avenida sem ser percebida, às 8 horas da noite. «Resistiu»pagar o aluguel atrasado há quatro meses. Tentou se mudar porque temia quecom a ordem de despejo agissem violentamente e inutilizassem seus pertences,além de «quitar» a seu modo a dívida. Provavelmente, havia conseguido outracasa, onde poderia entrar e, quem sabe, novamente atrasar o aluguel.

A briga gerada pela «mudança» deu-se contra o português Joaquim Gonçal-ves, proprietário da avenida de casas da Rua Comendador Lisboa. Na delegacia,Violeta Maria declarou:

[...] que vive amasiada com Jorge Lima da Silva residindo como já disseem uma casa da Avenida de Joaquim Gonçalves há quinze meses; pelo fatode haver seu amásio Jorge se desempregado, atrasou-se nos aluguéis emquatro meses; não há ainda um mês que Jorge encontrou emprego e entrouentão em acordo com o proprietário da casa ir pagando as poucos os aluguéisatrasados; que ainda no domingo último levou quinze mil réis a JoaquimGonçalves que os aceitou mas travou forte discussão com seu amásio Jorge,exigindo deste que queria sessenta mil réis; que sabendo então ontem queGonçalves ia tirar no sábado próximo um mandato de despejo, Jorge resolveumudar-se para evitar a perca de seus trastes e nesse intuito e ontem mesmo[sic] tratou de retirar seus móveis e guardá-los em uma casa fronteira ondereside uma senhora de nome Guilhermina Couto; que cerca de oito horas danoite quando carregavam seus trastes, indo ela depoente a sair com uma camarecebeu um empurrão de Joaquim Gonçalves que a insultou muito e comonesse ato viesse chegando Jorge do seu trabalho Joaquim Gonçalves voltou--se contra ele armado de revólver e lhe desfechou três tiros; que o amásio

646 32 Processo criminal Joaquim Gonçalves (réu), m. 453, 1909, APTJ.

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dela depoente ferido e com as roupas ensanguentadas ainda foi para casa tiraras botinas e ainda deitou-se em uma cama, sendo que essa casa onde eleentrou e deitou-se foi de um vizinho de nome Olegário, daí carregado porvárias pessoas levaram-no para uma farmácia no Largo de Madureira; quedesde o momento que Jorge foi ferido não viu mais Joaquim Gonçalves33.

Na versão de Violeta, ela e seu amásio haviam começado a pagar os aluguéisatrasados e tentaram um acordo. Já o acusado, o português Joaquim Gonçalves,defendeu-se dizendo serem seus inquilinos todos maus pagadores.

Na história narrada pela amásia de Jorge também percebemos a existência dedois grupos. De uma parte alinharam-se os brasileiros, todos locatários de Joa-quim Gonçalves; de outra, o locador e sua amásia. Na hora de deporem, osbrasileiros procuraram carregar nas tintas para o lado do português, atribuindo--lhe a provocação da briga e os atributos de homem rixoso e incompreensível.

Os laços de solidariedade eram flagrantes: todos auxiliaram Violeta e Jorge— Dona Guilhermina Couto havia se prontificado a guardar os móveis do casalde amásios locatários, enquanto Sr. Olegário acolhera Jorge, ferido, em suaprópria cama. Este tipo de fato fazia de tal forma parte do cotidiano destas pessoasque Joaquim Gonçalves, na pretoria, declarou viver em «contínua desavença»com os seus inquilinos «por motivos de falta de pagamento de aluguéis». O seumedo de represália era tamanho que após o acontecido «ausentou-se algumashoras». Na justificação34 declarou também «que no lugar de sua moradia é tidocomo homem honesto, bondoso e muito morigerado», porém «Jorge Lima daSilva era antigo inimigo do suplicante e considerado homem perigoso», sendo ele«vítima de uma combinação ilícita por parte de seus inquilinos que supondo nãoser, enquanto o suplicante estiver na prisão, obrigados ao pagamento de aluguéis,acabaram de acusar o suplicante pelo fato da morte de Jorge Lima da Silva».

A rixa e a raiva dos inquilinos contra o proprietário português podem serpercebidas não só pelos depoimentos dos mesmos e pelo do próprio português;nos testemunhos da sua amásia, Guilhermina Maria da Glória, igualmente ficapatente o antilusitanismo. Segundo ela, seu «marido» havia se encolerizado apartir do insulto de «galego» (este apelido era considerado um xingamento e erausado na cidade com relação aos portugueses que vinham para o Brasil amealharfortuna, sujeitando-se aos piores empregos e papéis para enriquecerem, a exem-plo dos galegos em Portugal). A companheira de Joaquim Gonçalves atribuiu aseus inquilinos «comentários ocres e pesados» [sic], depois do ato de despejo deDona Palmyra — outra locatária, despejada anteriormente.

Certos ou errados, o fato verdadeiro é a existência das rivalidades e rixas entreproprietários e inquilinos. Aquela não era uma sociedade amena e esperançosa,como fazem crer as imagens da belle époque e, mesmo depois de ocorrida aPrimeira Guerra Mundial, os movimentos vanguardistas brasileiros dos inícios do

33 Ibid.34 Nome de uma das partes do auto criminal. 64 7

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século xx. Ao longo dos autos criminais analisados comprova-se o poder dosproprietários sobre todos os aspectos da vida dos inquilinos. Proprietários não sópressionavam com o despejo, mas interferiam no cotidiano dos inquilinos e seusdependentes, nos seus trabalhos e vida pessoal. Invadiam a privacidade daquelesque dependiam deles para morar. De uma certa forma, podem os até afirmar queeram «presidentes» de uma república à parte, com suas leis, costumes e códigospeculiares. Eram «presidentes» pela força, é claro.

Mas, na realidade, havia lideranças saídas do grupo e a quem todos deviamuma certa obediência moral. A título de ilustração, podemos lembrar o já citadoromance O Cortiço, de Aluísio de Azevedo. No cortiço de João Romão haviavida e honra próprias, defendidas na batalha contra um grupo rival de capoeiras,de um cortiço inimigo, e em lideranças populares bem delineadas no cotidiano.Não é à toa que nas análises literárias da obra citada o principal personagem sejao cortiço em «pessoa», com suas gentes e problemas.

A interferência e o poder de coação dos proprietários podem ser apreendidosem um dos depoimentos do processo movido contra Joaquim Gonçalves, jácitado acima. Theodoro António da Silva, testemunha, era brasileiro, lustrador emorador na avenida. Na pretoria afirmou:

[...] quando aconselhou a vítima a não procurar o acusado foi receoso dasconsequências de tal fato, pois embora não tivesse motivo algum para con-siderar a vítima rixosa ou briguenta, todavia só o genio do acusado poderiadar esse mal resultado. Que assim fala porque sendo inquilino do acusado,este, depois de dezoito dias apenas de residência da testemunha na sua casa,foi procurá-lo dizendo-lhe diversos desaforos por não ter recebido ainda oaluguel, sendo ainda certo que foi procurar o patrão da testemunha na cidadeao qual disse entre outras coisas e a propósito de aluguéis que a testemunhanão mangasse com as barbas brancas dele, pois que ele o mandaria para ooutro mundo e que se lembrasse do que ele tinha feito ao Coronel Paes Leme,autoridade policial, dando dois tiros no mesmo e nada sofrendo [sic].

Neste trecho, o proprietário português aparece como «desordeiro» para olocatário nacional, mormente porque se investe de um determinado poder: vai aoseu trabalho procurar o seu patrão e chega a ameaçá-lo de morte, sobretudodizendo-se «protegido».

Os proprietários portugueses eram «protegidos» pelas autoridades. Na casa--de-cômodos da Rua do Catete n.° 117, no dia 31 de Dezembro de 1914, obrasileiro Carlos de Oliveira Guimarães encontrou com seu pai e deixou queentrasse no seu quarto. Enquanto isto, o senhorio e seu primo, ambos portugue-ses, galhofavam de Carlos e chamavam-lhe atenção pelo fato. Carlos replicoudizendo fazer do seu quarto o que quisesse. Como represália, os dois portuguesesdesceram e foram cobrar-lhe os aluguéis atrasados e colocá-lo na rua. O inqui-

648 Uno, então, ponderou que só sairia em noventa dias. A discussão deu motivos

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A exploração das moradias populares no Rio de Janeiro

para a briga. Carlos foi ofendido com uma vassourada e, quando reagiu, levouum tiro do primo do senhorio35.

É evidente a interferência dos portugueses na vida privada e nas questõesfamiliares do ofendido Carlos. O aluguel, neste caso, era a arma de coação e oelemento indicativo de poder. Nos autos existe uma peça bastante curiosa: é aapelação escrita, feita pelo promotor público aos desembargadores, por ocasiãoda apelação do julgamento. São palavras do advogado:

Não posso começar sem apontar a circunstância bastante grave da proteçãodispensada aos acusados recorrentes, deixando o delegado de submeter odesprotegido ofendido a exame de sanidade, ao passo que o seu algoz, talvezpor ser dono da casa-de-cômodos da zona ia gozando imerecida liberdade...

E bem ao final, concluiu que o aluguel era, ele em si, uma «arma», no sentidopor nós anteriormente explicitado:

Os réus não podem vir agora alegar que foram cobrar os aluguéis atrasa-dos, pois às 10 h e meia da noite, a hora era imprópria, e depois de teremantes rusga e terem deixado a vítima acomodar-se ao tempo provavelmenteem que eles preparavam o revólver!

O promotor fez a apelação com o intuito de pedir a anulação de uma testemunhaportuguesa. O advogado percebeu o alinhamento dos lusos a favor do senhorio,porém, isto nada adiantou. O julgamento, apesar da apelação, prosseguiu o seucurso normal. O português Antonio Corrêa Soares pegou somente a pena de trêsmeses de prisão celular.

Os proprietários portugueses, quer fossem negociantes ou possuidores de imó-veis, tinham proteção. Lembremos aqui o caso de Dona Judith Martins com oindustrial Moreira Mesquita. Antes de narrarmos o «rolo», recordemos como ocronista Luis Edmundo36 traduzia certa visão dos brasileiros sobre os «erros» dosportugueses negociantes:

«Manso» é o freguês que não protesta, sendo que «brabo» é o gritão,impontual ou caloteiro, freguês de alta-consideração, quase sempre um dou-tor que anda de tílburi ou caleça e tem assinatura do Teatro Lírico...37.

35 Processo criminal Joaquim de Oliveira Cardoso e Antonio Corrêa Soares (réus), m. 184,1915, APTJ.

36 Luiz Edmundo viveu os «rolos» do Rio de Janeiro do início do século. Foi cronista de jornaiscomo Cidade do Rio, Correio da Manhã, O Estado de São Paulo, a Gazeta de São Paulo, da revistaKosmos, entre outros. Os seus escritos possuíam coloração antilusitana. O livro O Rio de Janeiro doMeu Tempo, retratando o Rio do início do século, é boa crónica de costumes. Teve a sua primeira ediçãoem 1936-1937 (cf. Renata Augusta dos Santos Silva, Luiz Edmundo e a construção de tempos eimagens: a produção de discursos sobre a cidade do Rio de Janeiro na virada do século xx, Niterói,monografia de final de curso apresentada ao Departamento de História da UFF, Dezembro de 1993(mimeog.) .

37 Luiz Edmundo , op. cit, vol. 2 , pp. 361-362. 649

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O texto segue falando nos «erros» cometidos nas cobranças e nos pesos emedidas. Na visão do cronista todos esses atos eram seguidos pelo refrão: «Eucá sou plú direito».

Assim, normalmente «mansos» eram aqueles pobre-diabos explorados e quese calavam frente às ameaças ou sob o peso do monopólio econômico; contudo,estes mesmos, vez por outra, podiam se tornar «brabos» e fazer valer seusdireitos pela «lei das ruas».

Em «brabo» e «gritão» transfigurou-se, então, o brasileiro Victorino de SáCarneiro ao defender os direitos de sua irmã, viúva, Dona Judith Martins, tidacomo «caloteira»38.

Dona Judith havia comprado há algum tempo móveis na firma do industrialportuguês Moreira Mesquita. Devia pagar cinco contos em notas promissó-rias. O industrial fez a viúva assinar as promissórias com valor que somava umaquantia maior à da dívida. Ao fazer a cobrança, Dona Judith ficou detida diversasvezes no corpo de segurança até que, finalmente, apelou para seu irmão. Aotentarem um acordo com o industrial, e tendo este recusado a conversa dizendoque «o que começava levava até o fim, fosse no céu ou na terra», Victorinoacabou ferindo gravemente o dito comerciante.

Este era mais um caso de «erro», ao que parece, bastante usual. O sentimentode exploração não parte apenas de Dona Judith e seu irmão. É endossado pelarepercussão do fato pela cidade.

Usando a sua liberdade e desejo de ajudar, como aparece nos autos, o bra-sileiro João Thiago Santos Velho, antigo patrão do acusado Victorino, elaboraum documento atestando ser o mesmo «cumpridor de seus deveres com condutaexemplar». Neste sentido é interessante perceber em um documento não só o queele «fala» explicitamente, mas também o que afirma claramente através de lacu-nas e insinuações, ou mesmo por oposição. O texto elaborado pelo ex-patrão deVictorino deixa entrever ter este se despedido por «livre e espontânea vontade»,sendo homem digno e correto. Pelo fio condutor de sua argumentação, coloca oindustrial, em oposição ao «discurso» por ele usado com referência ao seu ex--empregado, no campo daqueles que não são cumpridores do seu dever e nãotêm uma conduta exemplar.

O fato também teve ressonância nos jornais da cidade, que noticiaram ampla-mente o ocorrido com detalhes e comentários a favor do acusado.

O jornal Gazeta dos Tribunais, de 2-9-1922, publicou matéria extensa atri-buindo o tiro ao desespero em que o industrial lançava os seus devedores,ameaçando-os com prisão e penhora dos bens:

A morte de Moreira Mesquita, atingido por uma bala mortífera, merecejustificativa por parte do autor do delito e não posso deixar de explanar oscasos de prisões praticadas por esse industrial, e há quem suponha terematingido cerca de 700 prisões...

650 38 Processo criminal Victoriano de Sá Carneiro (réu), m. 204, 1922, APTJ.

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A exploração das moradias populares no Rio de Janeiro

O artigo, assinado por F. R. Moura Escobar, defendia Victorino. Fazia, igual-mente, a defesa de todos os que praticassem atos semelhantes, explorados porcomerciantes do centro da cidade que majorassem seus preços e explorassem aboa fé dos consumidores.

O Jornal do Brasil, de 19-8-1922, também condena o industrial, «que não seportou como devia portar em tudo o que se passava». O jornal Última Hora, damesma data, vai ainda mais longe. Associa o comerciante à figura do agiota, fatoque encontra corroboração nos processos criminais que analisamos no universodos crimes envolvendo portugueses.

Eis alguns trechos da notícia da Última Hora:

Para melhor garantir os seus negócios, os agiotas e os vendedores deobjetos a prestações costumam fraudar os institutos jurídicos, dando aos tí-tulos de garantia das transações um caráter especial, que a lei só permite emcasos que especifica [...]

Em resumo: D. Judith Martins já tinha pago grande parte dos móveiscomprados a Moreira Mesquita. Para pagar o resto, constituída em mora,D. Judith podia sofrer a penhora de bens, mas nunca a obrigação de entregá--los integralmente (já havia pago parte) e muito menos em ação violenta dedespejo.

Reflitam os juizes sobre essa fraude e atentem nesse caso de abuso e demiséria.

Apesar das análises dos jornais, como ainda o fez a Gazeta de Notícias, de30-8-1922, nada pode favorecer o réu. O julgamento ocorreu a 22 de Dezembrode 1922. Foi condenado a 6 anos de prisão celular, mas apelou para a 3.a Câmara,tendo o seu provimento negado pelo procurador-geral, Luiz Guedes de MoraesSarmento.

Portanto, de nada adiantou a denúncia sobre a fraude nos institutos jurídicosque favoreciam os comerciantes ou mesmo a apelação a favor do réu...

Joaquim Gonçalves, o dono da avenida de casas do penúltimo processo ana-lisado, envolvendo senhorios e inquilinos, ameaçou Theodoro, dizendo garantir--se, pois havia até ofendido a um coronel e nada havia lhe acontecido. Noresultado final dos autos alcançou a absolvição.

Fazendo um recorrido dos processos desse tipo analisados e contidos naamostragem, todos os senhorios portugueses são absolvidos. Exceção apenas parao caso Esteves, aquele da cobrança da quantia devida por um frango. Aí, nodocumento, não se encontra o julgamento do réu, apesar de ter sido pronunciado.

Ao contrário do ditado popular muito utilizado na República Velha, «quemmata galegos não tem crime»39, os portugueses eram protegidos quando acusados

39 Processo criminal Epaminondas Mirandella, n.° 735, maço 883, Galeria A, Arquivo Nacionaldo Rio de Janeiro. 657

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de algum tipo de delito. Podemos dizer, mais uma vez, que as visões sobre oportuguês e contra este não eram as mesmas para todos os segmentos da popu-lação, tampouco eram uniformes independentemente das circunstâncias. A ima-gem do «explorador» transpassava toda sociedade e era vivida pelas camadasmais pobres como algo doloroso, que incetivava e não poupava manifestações deira. Recordemos também se tratar de uma sociedade regida por princípios libe-rais, na qual é preciso sobretudo e acima de tudo defender a propriedade privadae os proprietários.

OBSERVAÇÃO SOBRE AS FONTES

Para abordagem das diferentes formas de antilusitanismo da população carioca noperíodo, bem como a questão da exploração econômica e política sentidas na cidade,foram estudados 161 processos criminais do arquivo do Primeiro Tribunal do Juri (APTJ).Optamos por nos ater aos processos criminais classificados no Código Penal de 1890 sobos artigos 294 e 295, no capítulo sobre homicídio, e sob o artigo 304, das lesões corporais.Somente alguns crimes iam a julgamento no tribunal do juri. Destes, os crimes de homi-cídio e de ofensas físicas nos pareceram aqueles que mais serviriam ao nosso objetivo,pois, além de revelarem em enfrentamento direto, geralmente se constituíam em processosmais ricos em detalhes, depoimentos e partes dos autos, sendo, portanto, bastante volu-mosos. Assim, percorremos maço a maço do arquivo, separando processos envolvendobrasileiros e portugueses, de acordo com os nossos objetivos e hipóteses de trabalho.Separamos autos cujas brigas, rixas, conflitos e crimes se dessem nos espaços destinadosao trabalho, ou envolvendo motivos de trabalho; crimes por questão de preconceito(antilusitanismo expresso ou preconceito racial contra o negro); crimes que demonstras-sem a solidariedade existente na comunidade lusa; crimes relacionados à divida de dinhei-ro ou empréstimo e crimes ocorridos nos espaços de bares, botequins, casas-de-pasto erestaurantes, bem como nos espaços de moradia. Para o objetivo deste artigo analisaremoso material referente ao espaço da habitação popular. Por último, vale dizer que os pro-cessos possuem uma primeira parte, na delegacia, e uma segunda parte, na pretoria. Emambos os locais é feita uma qualificação do depoente e as versões, por vezes diferentes,produzidas sobre o crime, com suas contradições, são fontes ricas de análise. É precisotambém esclarecer que adoto a qualificação de português ou brasileiro de acordo com osautos, ou em consonância com as informações prestadas pelos depoentes.

Procuramos também pesquisar jornais que tivessem «versões» e «visões» diferentessobre o imigrante português. Estes foram encontrados para os anos da década de 1890(O Jacobino, A Bomba, o Nacional e o Estrangeiro —jornais que, apesar de classificadoscomo operários, tinham ideologia pequeno-burguesa e linguagem virulenta contra oslusos) e para o período que se avizinha a década de 1920 (O Dia, revistas Braziléa e GilBlás — antilusitanos — e o Jornal Português — órgão defensor dos portugueses e dacolónia lusa). Para uma noção geral de todo o período, e para fugir de uma imprensacompletamente «tendenciosa», consultámos outros jornais: O País, Correio da Manhã e

652 Jornal do Comércio. Estes últimos eram considerados os grandes jornais do período

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A exploração das moradias populares no Rio de Janeiro

porque tinham boa circulação. É curioso perceber como a grande imprensa pouco men-ciona a questão do antilusitanismo, mesmo porque veicular este tipo de notícia seria, deuma certa forma, comprometer a ordem e reconhecer que havia tensões e lutas sociais,fatos que iriam contra o discurso pacificador e homogeneizador de consciências de umEstado autoritário, característico do período.

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