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Roberto Corrêa dos Santos: como se em direção a uma crítica do re- corte Introdução: por que você escreve assim, Roberto Corrêa dos Santos? Experiências não se registram || Experiências não se relatam || A virulência, a insubordinação, o descontrole que constituem o cerne das experiências impe- dem || O-que-tem-de-ser expõe-se em sangue || Com recursos retirados de al- mas manchadas, refaz-se aquilo que tende a perder-se – a atualidade anterior ao acontecimento || O raio que vai do banal ao solene exige, para ser dese- nhado, paciência, velocidade, alegria || Vivas ao largo erotismo do não-ocor- rido || Tempo e tempo para intuir e acusar os elos com o corpo || (página de Primeiras convulsões: últimas notas sobre o grande vi- dro, de Roberto Corrêa dos Santos) Ele não escreve assim à toa. Traços, linhas, minúsculas depois de pontos, espaços, negritos – ele, Roberto Corrêa dos Santos, nos desloca em leitura. Desde sua tessitura a sua obra crítica sem dúvida nos apresenta algo, por assim dizer, diferente, novo. É van- guardista, sabe-se. Fala em nome de um “contemporâneo”, em um corte com um “mo- derno”. Propõe que nada se fez ainda de poesia contemporânea, a não ser pelo “ensaio teórico-crítico-experimental, quase poema – poema expandido” (2011a 1 ), gênero do qual, sem dúvida, participa grande parte de sua produção (e talvez toda a parcela mais recente desta). Pode ser que, segundo a potência desbravadora da vanguarda, chegue o tempo em 1 Para facilitar o leitor, mas ao mesmo tempo, agilizar a leitura, às citações de obras de Roberto Corrêa dos Santos segue-se, entre parênteses, somente o ano da publicação e a página, como de praxe, porém sem a explicitação do autor (que constará para o caso de outros). Quando as citações se referem à mesma página da anterior, tomamos a liberdade de não repetir a referência. No caso dos livros que não contém paginação explícita, como Zeugma e Naco, tomamos a liberdade de não dispor a referência quando o nome vem citado no corpo do texto.

Por uma crítica do recorte

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Ensaio original de Mauricio C. Gutierrez

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Page 1: Por uma crítica do recorte

Roberto Corrêa dos Santos: como se em direção a uma crítica do re-

corte

Introdução: por que você escreve assim,

Roberto Corrêa dos Santos?

Experiências não se registram || Experiências não se relatam || A virulência, a

insubordinação, o descontrole que constituem o cerne das experiências impe-

dem || O-que-tem-de-ser expõe-se em sangue || Com recursos retirados de al-

mas manchadas, refaz-se aquilo que tende a perder-se – a atualidade anterior

ao acontecimento || O raio que vai do banal ao solene exige, para ser dese-

nhado, paciência, velocidade, alegria || Vivas ao largo erotismo do não-ocor-

rido || Tempo e tempo para intuir e acusar os elos com o corpo ||

(página de Primeiras convulsões: últimas notas sobre o grande vi-dro, de Roberto Corrêa dos Santos)

Ele não escreve assim à toa. Traços, linhas, minúsculas depois de pontos, espaços,

negritos – ele, Roberto Corrêa dos Santos, nos desloca em leitura. Desde sua tessitura a

sua obra crítica sem dúvida nos apresenta algo, por assim dizer, diferente, novo. É van-

guardista, sabe-se. Fala em nome de um “contemporâneo”, em um corte com um “mo-

derno”. Propõe que nada se fez ainda de poesia contemporânea, a não ser pelo “ensaio

teórico-crítico-experimental, quase poema – poema expandido” (2011a1), gênero do

qual, sem dúvida, participa grande parte de sua produção (e talvez toda a parcela mais

recente desta).

Pode ser que, segundo a potência desbravadora da vanguarda, chegue o tempo em

1 Para facilitar o leitor, mas ao mesmo tempo, agilizar a leitura, às citações de obras de Roberto Corrêa dos Santos segue-se, entre parênteses, somente o ano da publicação e a página, como de praxe, porém sem a explicitação do autor (que constará para o caso de outros). Quando as citações se referem à mesma página da anterior, tomamos a liberdade de não repetir a referência. No caso dos livros que não contém paginação explícita, como Zeugma e Naco, tomamos a liberdade de não dispor a referência quando o nome vem citado no corpo do texto.

Page 2: Por uma crítica do recorte

que a escrita crítica de Roberto Corrêa dos Santos não represente mais para nós qual-

quer surpresa ou estranheza. Pode ser que o dia raie em que ela tenha cumprido seu ci-

clo de abertura, e que se realize o desejo, mais ou menos secreto, mais ou menos consci-

ente, de toda vanguarda, o de tornar-se, no futuro, história e, em certo sentido, retaguar-

da. (Mesmo não podendo deixar de lembrar que isso não vale para a maior parte das

obras que as vanguardas do séc. XX nos legaram; e que, além disso, como pudemos

mostrar em um texto sobre Mário de Andrade, nos parece muito mais interessante e eró-

tica a hipótese – a ser firmada em leituras possíveis – de uma abertura fundamental até

mesmo de seus manifestos, tão passíveis de novas e surpreendentes releituras quanto

suas obras.) De qualquer forma, esse tempo com certeza ainda não chegou. Longe de

aparecer para nós como terreno conquistado, colônia povoada, a crítica-em-escrita de

Roberto Corrêa dos Santos talvez seja, pelo contrário, o mundo mais selvagem e novo

de que se tem tido notícia em termos de escrita. Pode mesmo ser que o gesto inerente a

essa crítica-de-artista, diante da qual o olhar e o aparato linguístico-conceitual da época

detêm-se estarrecidos ou ignorantes, seja um dos que melhor nos permite formular, ma-

pear e expandir um labirinto de questões em torno da crítica contemporânea.

Que se comece, então, pela pergunta aparentemente ingênua, mas que merece ser

feita, a título de honestidade. Para largar a máscara blasé do tempo que acredita ter es-

gotado possíveis da escrita e que teme sobretudo se espantar – o cinismo estático do

tempo que, talvez por não querer mais se surpreender, corre o risco (esse, sim, um risco

real) de não fazer pergunta alguma – por que ele escreve assim? Por que diabos ele es-

creve assim?

Se somente algumas ou poucas formas se repetem, se ele não se contenta com um

escrever assim, com uma estranha escrita, mas varia em sua variada estranheza, desbra-

va mais e mais, isso só pode querer dizer que a resposta a essa pergunta, qualquer que

ela seja (para que seja minimamente aceitável, mesmo sabendo que será, como mais ou

menos qualquer resposta, provisória e parcial), deverá conter em si o índice de um dra-

ma continuado. O que quer apontemos como a razão de tal escrita deverá tomar as vezes

de um motivo, motor. Máquina – como ele gosta – que só é porque age, porque se deslo-

ca e força deslocamentos.

Assim, à pergunta ingênua poderia se seguir uma outra não tão ingênua e ainda

mais honesta: por que diabos ele não escreve logo um poema? Por que ele não escreve

Page 3: Por uma crítica do recorte

em poesia? – Na medida em que essa pergunta é, por sua vez, mais arguta do que a pri-

meira; na medida em que os textos e livros críticos de Roberto Corrêa dos Santos se

sustentam ainda enquanto textos críticos, ou seja, enquanto textos que em algum grau

ainda respiram esse ar parasitário que é o de viver da força de deslocamentos que po-

dem produzir em outros textos; enfim, na medida em que O livro fúcsia de Clarice Lis-

pector, ou Luiza Neto Jorge – códigos de movimento, não deixam de ser livros sobre

Clarice Lispector e Luiza Neto Jorge – é somente nessa medida que este ensaio se justi-

fica. Por que ele não escreve em poema? – se nos for permitido assumir o direito que

essa pergunta tem a existir, se ela não for da ordem da imbecilidade, mas propuser algo

de valioso ao pensamento (e ao pensamento contemporâneo), talvez possamos, a partir

de sua aparente ingenuidade e do que nela talvez ainda haja de passadista, propor algu-

mas questões a respeito da escrita e da crítica.

* * * * *

De maneira insegura, é certo, vem-se colocando entre nós, faz tem-po, a possibilidade de a crítica literária vir a ser ela mesma um ou-tro tipo de processo criador por, entre outros motivos, elaborar também, ao ler, uma escritura. Enquanto tal, reescreve o texto es-colhido. Aqui e ali, dentro do trajeto ensaístico, encontram-se, di-gamos, passagens escriturais que procuram nitidamente desman-char o cerceamento do método, suavizar o sentido seco e duro da escrita 'parasita' da crítica. (DOS SANTOS, 1989: 32)

Muito mais do que uma agudeza do olhar – seja como instância discernidora de

interpretação, seja como instância jurídica de avaliação –, o que está em jogo, na escrita

estranha (e disforme em um sentido muito especial) da crítica de Roberto Corrêa dos

Santos, é um procedimento ativo, criativo, capaz de mobilizar e demover as forças do

objeto que põe diante de si. Muito mais do que um saber, que tende à autossuficiência

paralisante, trata-se de jogar com a ignorância, usá-la para uma locomoção e um deslo-

camento da máquina da escrita: “a ignorância aciona o motor da criação. Seguem os ho-

mens às cegas: à luz do não saber; por iluminantes cegueiras. Para tornarem-se leitores,

convoquem-se espectros” (2011b: 88). Produzir, reproduzir, proliferar, por cegueira.

Produzir, por sua vez, a cegueira ela mesma, como ponto de partida: convocar um fan-

Page 4: Por uma crítica do recorte

tasma ou espectro pelo qual fazer passar um feixe de luz, desviando sua trajetória, dan-

do plural à luz (há uma teoria da relatividade em Roberto: a luz faz curvas, induzida,

pela proximidade de grandes massas de afeto, a criar ângulos e desvios inesperados). Se

a pergunta quase ingênua que fazíamos se voltava para a poesia, não era à toa: segundo

uma concepção corrente, é desta que provém as grandes forças discursivas de mobiliza-

ção, de realocação e deslocamento. É dela que se esperaria um “novo olhar”, e não da

crítica – da qual talvez se espere ainda somente as migalhas da acurácia objetiva de ob-

servação e limpa avaliação qualitativa. Não é esse o caso da crítica-em-escrita de Rober-

to Corrêa dos Santos e, em certa medida, não seria ingenuidade responder: Mas qual a

grande diferença entre essa escrita e a poesia?, afrontando, para começar, a possibilida-

de da diferença entre estes dois campos, ambos de criação e olhar (é essa, sabe-se, a tese

central que pauta a leitura de Alberto Pucheu, em Roberto Corrêa dos Santos: o poema

contemporâneo enquanto “ensaio teórico-crítico-experimental”. Rio de Janeiro, Azou-

gue Editorial, 2012).

De acordo com uma das mais interessantes teses de Para uma teoria da interpre-

tação, qualquer leitura já é em si um processo fundamentalmente ativo. Ler, segundo

uma equação comum na obra de Roberto, é desde sempre agir, interferir no texto (ou

obra) lido. Se o paradigma tradicional da leitura e da interpretação que foi, e em certa

medida ainda é, o da distância do olhar (mais ou menos acurado, mais ou menos próxi-

mo) precisa e começa a ser substituído, segundo Roberto, pelo da nuance (de um olhar

de que se espera ângulos, ângulos inesperados) (cf: 1989: 8), é porque, em uma geogra-

fia dos olhares, o olho que se volta para um texto precisa abdicar tanto do ideal de pro-

ximidade neutra quanto de seu oposto, uma suposta “distância objetiva”. O ângulo, a

nuance, é fundamentalmente um recorte, um posicionamento possível do olhar, entre

outros, e o olhar procede necessariamente por “escolha de detalhes” (2011b: 27). É de-

certo uma hipótese mais erótica, a de que para poder ver qualquer coisa que seja, é pre-

ciso antes de mais nada abdicar de qualquer postura supostamente transcendente, exteri-

or, metalinguística, neutra, em nome de um corpo a corpo, que perverte e, por isso mes-

mo, se faz desde sempre como relação de desejo:

O que pretende [a interpretação], como uma de suas perversões, é entrar no jogo da escritura, quebrando a passividade de uma leitura que tenda a seguir, sem brincar e sem considerar a ação escritural, um fio unitário de estória cujo desenlace quer co-nhecer. A interpretação quer escrever sempre diferente, cada vez que toca um texto.

Page 5: Por uma crítica do recorte

Como quem toca rasga. (1989: 21) 2

Perversão ativa, que consiste em “perverter” o objeto. (Há uma mecânica quântica

nos recortes de Roberto: a observação altera os próprios dados, cria coordenadas.) Um

olhar perverso para depor um olhar neutro ou transcendente, que cai em descrédito, mas,

sobretudo, que já não seduz mais: um velho olhar, pudico, no fundo, autoritário, e às ve-

zes ambos de uma só vez; olhar que preferiria transitar em uma zona de sombra, um ter-

ritório cinzento porém bem mapeado em torno da obra (nunca saindo da barra de sua

saia) a se arriscar na precipitação de uma leitura que, por assumir e desejar a diferença

em si mesma, nunca se afirma definitivamente, nunca “sabe” nada (Para uma teoria da

interpretação fala em e desde um “saber instável”). Na crítica-interpretação-leitura de

Roberto Corrêa dos Santos, a neutralidade do olhar é somente um mito, derivado por

sua vez do mito da paternidade da obra, e todo olhar, desde sempre procedendo por es-

colha de detalhes, por seleção ativa, afronta seu limite. Na história do olhar para a arte,

devoção à figura autoral, como ponto transcendente onde vem-se reunir todas as signifi-

cações de uma obra, caiu por terra. Mas a todo o momento a obra corre o risco de se tor-

nar pai de si mesma, ou mãe-terra de sua própria crítica, e, ao lançar uma sombra ao seu

redor, ameaça um gesto de reter a interpretação, circunscrevendo-a a essa zona cinzenta

de significações possíveis onde ela supostamente se limita a girar – ou seja, onde ela

não fere, não desloca muito ou desarruma demais aquilo que a obra lida monta, compõe.

À velha fidelidade ao autor se substitui por uma espécie de “fidelidade à obra”, sem que

se saiba exatamente o que isso quer dizer – sabendo somente que isso quer frear, conter,

e que é pudor ou censura (delimitação de uma impropriedade).3

Toda obra pode ser lida segundo um potencial soberano do qual ela não parece po-

der abdicar completamente – que Roberto chama o il y a do poema, o seu there is – , na

medida em que se afirma por si mesma, na simples medida em que diz aquilo que diz (a

gravidade é o que faz a luz se curvar, a gravidade da enorme massa de afeto). E a essa

soberania, a crítica responde com traição: “destituir, verbo da morte e da arte, o isto”

2 Parece ser digno de nota que esta última frase citada de Roberto Corrêa dos Santos ecoa o futuro mais radical de seu ensaísmo, obviamente em seu conteúdo, mas principalmente em sua formulação: Como quem toca rasga – difícil sintaxe, estilosa de qualquer forma, desvio do esperado “Como quem toca rasgando”...

3 Haveria uma história do olhar, segundo a qual, no século XX, o olhar neutro metalinguístico deixa de ser dominante e perde crédito? De qualquer forma, seria o caso de assumir que o ciclo histórico desse olhar não terminou e que, sincronicamente, parece não acabar o jogo de forças que decide entre neu-tralidade e recorte, paternidade e fraternidade.

Page 6: Por uma crítica do recorte

(2011b: 62). A violência desse gesto de destituição é o correspondente do potencial so-

berano (sem o qual não haveria efetivamente destituição ou traição) de todo isto: there

isto. Toda obra se lança em um risco no duplo sentido: perigo e traço. O que a crítica

por escolha de detalhes busca é seguir o perigo, mais do que o traçado bem assentado

que ele deixa atrás de si. Arriscar. Ou riscar, rasurar o risco rastreável do isto.

É certo que somente uma transcendência pode ser onisciente, e uma postura neutra

seria a única capaz de se arrogar a condição de afrontar a totalidade de seu objeto, qual-

quer que ele fosse. Diante de um olhar envolvido, o objeto não aparece mais como com-

pleto, inteiro, obra acabada de que cumpriria dar conta. Ora, não há operação ativa que

possa se voltar para uma totalidade sem vilipendiá-la, sem a retorcer – mesmo que isso

signifique remontá-la, em uma operação sempre ficcional que reconstitui uma nova tota-

lidade. Escolher detalhes é uma manobra ativa com (e sobre) o objeto-obra, e, por isso

mesmo, o desmonte de sua suposta totalidade. Desde o instante em que se desce do céu

de uma oni-observação frígida, em direção a um confronto erótico e operador com o ob-

jeto, firma-se a posição segundo a qual “sentido é eminentemente recorte” (1989: 31). A

escolha de detalhes é o recorte: o olhar e a leitura, como práticas significantes que são,

procedem necessariamente por recortes, manobras, desmonte e rearrumação. Ver em

Roberto Corrêa dos Santos é atividade de sentido e, por isso mesmo, uma operação vio-

lenta de cisões, seleções ativas, tomadas de posição, esquecimentos e desapropriações

múltiplas de um objeto: “Uma tesoura de jardinagem para destruir motivos, efeitos e

amarras entre” (2006a: s/ página). Sim, a imagem é violenta (uma tesoura de jardinagem

é, talvez, a maior tesoura em que se possa pensar), e a violência é, sobretudo, motora. O

jardim de recortes de Roberto é selvagem, atlântico, rizomático. Podar para fazer cres-

cer, cortar, abrir, substituir nós, cegos em mais de um sentido, por laços frouxos de uma

corda elástica. Ou rebentá-la.

Em uma etimologia a nós acessível, o texto compreende a tessitura, a costura de

linhas, ou seja, uma multiplicidade de constituintes que o predisporia ao recorte – mes-

mo que, para dar conta do procedimento crítico do corte, fosse mais acurado falar, com

Deleuze, em patchwork, em colcha de retalhos 4. Para um Roberto desde sempre preo-

cupado em romper as barreiras de disciplinas e franquear fronteiras entre modos de se

fazer arte, o corte não é jamais privativo de uma das artes. Se, nas artes plásticas, por

4 cf: o ensaio “Bartleby, ou a fórmula”. In: DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica. São Paulo: Editora 34, 1997.

Page 7: Por uma crítica do recorte

exemplo, a palavra tela também deriva da palavra latina para tecido e fio, Roberto vai

mais além e subsume o recorte como constituinte da pintura: “A tela, por maiores que

venham a ser suas dimensões, será sempre um espaço recortado. Por isso pode-se cin-

di-la mais ainda...” (1998: 38). A obra já ela mesma é recorte, desmontagem e arranjo ou

miniaturização, em um procedimento que cumpre à crítica, por sua vez, refazer, com

suas próprias forças – radicalizar.

Em um livro cujo nome já denota o recorte, Naco, no qual fala da fotografia a par-

tir da Câmama Clara de Barthes, Roberto refaz o mesmo processo (cf: 2009: s/ página).

Ela, fotografia, que em seu próprio processo de feitura é já um recorte, é levada ainda

mais longe, além não só das divisões disciplinares, mas em direção ao que poder-se-ia

chamar uma planificação da crítica, da política e da sexualidade. Em referência explícita

a Roland Barthes, mas em uma equação também em muito deleuzeana 5, é uma teoria do

fetiche e de suas tecnociências (entre as quais coloca a fotografia) que permite a Rober-

to nivelar (sem abdicar da diferença) arte, desejo e crítica: todas as três, operações do

olhar, do contato, e, consequentemente, de um só golpe, do recorte e do desejo. Um li-

vro curto, pequeno, ele próprio um naco de livro, mas que ao mesmo tempo recusa qual-

quer separação ou ordenação interna que não a do período e a da frase. Escrito em blo-

co, sem parágrafo ou numeração de páginas, como se, hesitando entre o tamanho dimi-

nuto e a condição de bloco unitário-organismo compacto, ele se prestasse melhor ainda

ao corte alheio e se desse inteiro à violência (não numerar páginas: desrecalcar a violên-

cia do recorte? Remover a singeleza da mediação ano tal, página tal...). Ali, o fetiche,

como pedaço que se arranca, naco que se abocanha, partícula passível de manuseio.

“Objeto parcial” que é ao mesmo tempo “pedaço completo”, operador de devires, multi-

plicador do desejo 6, o fetiche aparece aqui como proliferador de modos de relação com

a letra – modos diante dos quais o insosso pé-da-letra é ele mesmo somente mais um fe-

tiche, um do tipo pudico. “Por ser o gozo também morte (vitalizada) caberá cortar. Cor-

tar a letra, dar-lhe novos destinos, espalhá-la” (2009, s/ página).

Gozo é também morte, e, segundo essa equação, o corte fende e fere: em última

5 Referimo-nos ao conceito de plano de imanência, onde se inscreveriam desejo, crítica, experimenta-ção, arte e política. Cf: Introdução: Rizoma. In: Mil Platôs, vol. 1.

6 Mais uma vez seria talvez o caso de nos referirmos ao nome de Deleuze e sua leitura, junto com Félix Guattari, do objeto parcial ao qual nada falta, que não é reenviado a uma totalidade de origem ou de destino e que só é parcial na medida em que é puro movimento conectivo, máquina desejante operado-ra de sínteses conectivas. Cf. L'Anti-Oedipe. Paris, Les Éditions de Minuit, 1972. Detidamente, nas páginas 52-53.

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instância, mata seu próprio objeto (mesmo que seja – e é – objeto de amor). Morrer as-

sim é tornar-se outro. Nas mãos do manipulador desejante da crítica, o que se encena

nessa morte é um recorte à totalização, é perda de consistência, é tornar-se mais olhar

do que ente, ângulo, pedaço de si mesmo. “Pode-se portanto ler Luiza em cortes, remon-

tando sequências, dedicando-se a um trecho, a uma palavra; (...) Poemas com engates de

poemas, daí poder-se vê-los, como em artes plásticas – por escolhas de detalhes”

(2011b: 26-27). Desde o recorte, qualquer completude ou totalidade só é pensável para

além de toda leitura: Luiza Neto Jorge, o nome, a autora, o conjunto de uma obra poéti-

ca que é, sim, total, mas somente no sentido de sempre excedente, de não exaurível, em

qualquer leitura ou número de leituras. Para além de qualquer olhar porque para além de

qualquer recorte, a totalidade passa a referir-se a um conjunto aberto, à próprio abertura

do conjunto que inclui seu próprio resto – o resto que nunca deixa de pairar como passí-

vel de recorte, jamais se atualizando. Morrer assim é tornar-se, em última instância, ina-

cessível (porque não passível de ser objeto de um recorte totalizante), sempre outro de si

mesmo.

Os nomes de autor e de obra, que, mesmo na crítica menos ativa, remetem-se sem-

pre a conjuntos nebulosos e de difícil delineamento, ganham uma condição dupla, pas-

sando a nomear o recorte desde aquele que o enuncia, e, ao mesmo tempo não podendo

deixar de apontar para o que, naquele objeto, sombria e silenciosamente, se recusa ao

corte, e transborda de qualquer olhar. Luiza quem? Luiza Neto Jorge (a predileta de Ro-

berto quando se fala em recorte): o nome para nacos, trechos vários objetos de amor,

mas, ao mesmo tempo, nome de um resto – naco que sempre sobra no prato da crítica e

que ela não pode terminar de comer –, de um mundo possível do qual o amor da crítica

não pode jamais participar ou conhecer completamente. Esse resto é a mina de outros da

leitura, seu limite e, ao mesmo tempo, a condição de sua feitura. A totalidade não é mais

do que o índice de uma infinidade e, por isso, de uma eterna diferença. “Catamos ontem

o ouro dos restos” (2006a: s/ página)...

Recortar não se distingue tanto assim de assassinar seu objeto. Mas, contra qual-

quer hipótese de culpabilização, trata-se de defender a tese de que é nessa dinâmica, de

resto e corte, que um texto goza. A obra é mais obra quando goza dessa (ou com essa)

condição de abertura e torção, pela qual é transformada “no que já era desde sempre, e

no que jamais foi, a não ser por essa lente” (2002: 57). Esse é o objetivo, o sentido em

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direção ao qual se movem esses objetos-de-arte-e-literatura. A abertura à leitura, a doa-

ção ao outro é gesto de uma generosidade que funda um outro modo da paternidade: a

do pai ausente e da obra órfã. Uma obra não quer nunca ocupar o lugar do pai cruel, da

instância jurídica de permissão/proibição, mas, o de objeto do amor – amante, consorte,

ou ainda, o lugar do amante morto:

Morrer (ser outro) pode ser o objetivo de toda aparelhagem-isto-arte: a morte, ei-la – sábio afirma um poema escrito por todos. A morte, não para se tornar comentada; sequer vivida. Para ser posta em uso: tantos e tão ricos seus nutrientes. (...) Poemas ganham quando explodem ou ardem. Quando recusam. Ou cedem, por destemor. (2011b: 62)

Morrer assim, é sobretudo generosidade e doação. E, do outro lado da demanda

por seu próprio assassinato, é necessário o destemor, a audácia sem culpa de um gesto

crítico que acredita (ou sabe) que é a traição que melhor cumpre o salto que a criação

começa. Assassinar para tornar útil, para que a obra de arte possa ser, sim, máquina,

como Roberto tanto gosta, mas de funcionamento incerto, sem manual de instruções ou

função clara. Só se usa uma máquina ao avesso, contra a natureza – sussurra aqui e ali

Roberto Corrêa dos Santos. Desmontem para fazer funcionar, montada a máquina-de-ar-

te não funciona. Não há crítica que não proceda dessa forma... (Lembremos que o corte

se infiltra como um espião mesmo na crítica mais pudica que se possa imaginar: por

meio da citação e mesmo entender do modo mais passivo ainda é somente mais um

modo de usar.)

“Nada resiste à plasticidade, eis o remédio estético” (2008a: 31), remédio de que a

crítica de Roberto se embebe. Texto, tela ou filme, toda obra torna-se plástica porque

plasmável. E desde que se assume que ela, obra, faz do plasmar sua tarefa, o resto é o

resguardo de plasmabilidade e inacabamento sem os quais se esgotariam as leituras. As-

sim, em um paradoxo que iguala “morrer” com nascer de novo e de novo, a obra de-

manda o recorte, não aceita se esgotar, se oferece em partes, nacos, trechos. A vida da

obra é a do uso e do desmonte, a do acaso: é o incontrolável das leituras possíveis. Daí a

reticente reprimenda de Roberto à nota explicativa de Um lance de dados, de Mallarmé:

A palavra-em-torno não confia na solitária afirmação e na poderosa independência da arte, tantas vezes por si só plena, contundente, irradiante. Por isso pensa ser pre-ciso ampará-la, sendo necessário, no máximo de paroxismo, dar uma terceira per-na, dar um eixo a uma arte nutrida no impulso da liberdade e da dispersão (1998: 83).

Dar um eixo ao que busca dispersão e se faz dela seria um recuo assutado, uma

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“resposta ao morrer de medo por não ser amado” (1998: 81). A leitura não pode jamais

abolir o acaso ou o desejo de recorte do leitor, não pode controlar seu próprio futuro e,

caso tentasse, a escolha seria entre a exaustão enlouquecida e o completo silêncio – e re-

presentaria, como pontua Roberto, uma negação de sua própria constituição, constitui-

ção essa que é mais bem esposada no recorte ativo da fraternidade traidora do que em

uma explicação. Uma das definições (não-definitiva por sua própria constituição) de

arte, a partir da obra de Roberto Corrêa dos Santos, talvez fosse essa: objeto que vive de

se prestar a plasmabilidades. 7 E um parâmetro provisório de potência estética poderia

ser inferido justamente a partir da prontidão ao plasmável e, assim, do grau de, talvez,

liberdade: “A liberdade talvez fosse deixar uma forma livre seguir e deparar-se com o

que for, hábil ou ingênuo” (1998: 82-83).

É por essa liberdade, por esse grau inferido de favorecimento à plasmabilidade do

recorte que passa o meridiano da escrita estranha de Roberto Corrêa dos Santos. Segun-

do outra das instigantes teses de Para uma teoria da interpretação, a leitura, a leitura

crítico-interpretativa, só pode se afirmar e se fazer enquanto procedimento de escritura:

“a leitura é ela mesma uma escritura e vice-versa” (1989: 65); “ler e escrever constitu-

em-se em processos que se estimulam, que se fazem produtivos” (1989: 20). Ora, se

todo olhar trabalha por recortes e arrumações ativas que pervertem ou subvertem a pa-

ternidade da obra, a demanda da escrita, enquanto radicalização desse aspecto ativo de

toda leitura, se dá por duas razões. Ela é primeiramente, uma função do desejo e da se-

dução: “O saber instável é o que participa da atividade das significações. (...) Consiste

numa prática que tem como valor a produção prazerosa” (p. 27). O saber instável, para-

digma para um entendimento ativo da interpretação, só vem a ser efetivamente na medi-

da em que se escreve. Só a escrita pode consumar o tanto de desejo que está implicado

no recorte, na leitura-interpretação. Uma escrita não qualquer, mas prazerosa, não so-

mente porque sua realização implica uma sensação de prazer (a escrita prazerosa com-

porta impasses, loucura, e silêncios aterradores: ela não é sem drama); mas, mais do que

isso, porque sua feitura parte de uma mobilização das forças desejantes: o que leva a es-

crever são as forças eróticas, o prazer e o gozo envolvidos no gesto da escrita, um enga-

7 A essa definição cumpriria adicionar duas outras. A primeira, da tradição: conjunto de objetos que se assumiu serem, ao longo do tempo, plasmáveis e aos quais não é mais possível deixar de atribuir essa plasticidade e diante dos quais é impossível conter a continuidade desse impulso plástico. E outra, que talvez precisasse ser fundada em uma outra leitura, mais problemática e detida, mas que, mesmo assim está já em jogo neste texto: (pós-?)modernidade enquanto tempo que deixa de considerar a plasmabili-dade um dado do objeto e se dedica a atribuí-la a um rol cada vez maior e virtualmente infinito destes.

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jamento amoroso com o objeto sobre o qual se escreve.

Esse engajamento das forças eróticas é um denominador comum com a escrita

poético-ficcional (“...faz-se o poema em nome de íntimas exigências...”, 2008a: 22) e,

desse modo, se opõe ao método (“...desmanchar o cerceamento do método, suavizar o

sentido seco e duro da escrita 'parasita' da crítica”, 1989: 32) como um recalque do de-

sejo e de sua condição de motor/motivo da escrita. O método quer apagar, do objeto fi-

nal, todas as mobilizações desejantes implicadas em sua feitura e recalcar o “prazer re-

volucionário” da perversão envolvida no ato crítico. É a partir deste prazer que Para

uma teoria da interpretação imagina um paradigma de crítica ativa, uma outra crítica,

cuja ação estaria relacionada à cópia no estudos de Belas Artes, mas infundindo nesse

gesto de “fazer igual”, um prazer revolucionário de perverter que só assume para si o

igual como igualdade de condições (mais uma vez, planificação, no sentido do rizoma

deleuzeano, assim como esse paradigma da crítica talvez se definisse pela fórmula tam-

bém deleuzeana de fazer a diferença, e fazê-la por seus próprios meios):

Os estudos artísticos têm-se organizado predominantemente nessa esfera: na da re-pressão da experiência, na do controle do gozo, na da limitação do prazer. (...) Fal-ta, na investigação da produtiva força do literário, o prazer revolucionário – que em nada contraria a seriedade e o sincero desejo de conhecimento; pelo contrário, os facilita. É pelo experimentar e pelo vivenciar que se pode dar início a um trabalho de perversão, que faça do ler um gesto criador. Nesse sentido, a prática da cópia nas Belas Artes, apesar de tudo, era menos estável. Pelo menos se procurava fazer. Igual, é verdade, mas aproximando-se um pouco da espessura da produção artísti-ca. (1989: 71)

O melhor exemplo de tal prazer revolucionário talvez se encontre no tratamento

diferencial que os jazzistas dão aos temas standard consagrados; tratamento esse que

não somente injeta no tema o irrepetível diferencial do improviso, como também tende a

perverter a constituição do tema ele mesmo, alterando-o radicalmente. De qualquer for-

ma, trata-se do mesmo projeto de (re)leitura: aproximar-se da espessura da produção ar-

tística – mais do que pôr-se diante de algo: pôr algo diante de si. Experimentar partici-

pativamente, pois é a possibilidade de fazer algo que seduz, que engaja.

O engajamento erótico é o motor, ele liberta a escrita da crítica do parasitismo bu-

rocrático e submisso (porque passivo e ilustrativo). As formas estranhas da escrita de

Roberto Corrêa dos Santos são uma forma (finalmente!) de vaidade da crítica. Seu dese-

jo de ser, de não simplesmente se submeter. Essa vaidade desvela uma verdade: a de que

todo texto tem seu il y a, o seu there is; a de que todo texto participa ou se aproxima, à

Page 12: Por uma crítica do recorte

sua maneira, da espessura da criação artística. Toda leitura quer, é interessada. Ao méto-

do cumpre mascarar o interesse; ao recorte cumpre torná-lo evidente. O desejo se torna

uma política: em segundo lugar, a demanda da escrita tem uma função política.

Se sentido é eminentemente recorte, é só no momento em que concretiza sua pro-

dutividade que a leitura atinge seu ponto máximo: é somente quando essas manobras se

circunscrevem em um texto que a leitura se recorta completamente do outro texto de

que ela trata. Escrever fecha o ciclo do recorte, é a radicalização da montagem e do ar-

ranjo, da arrumação de sentidos. Assim, a escrita representa uma culminância do gesto

ativo do olhar-leitura: na escrita, a leitura goza. Um gozo que não se resume ao prazer

de cortar o objeto, desviá-lo, e de erigir um outro texto; mas um gozo que é também

morte (vivificada): por se escrever, a leitura imediatamente se dá a ler, ou seja, se entre-

ga ao assassinato nas mãos do outro (ela mesma, que assassinara por amor seu objeto,

pede ao outro não mais do que o mesmo gesto de amor e traição), esse seu gesto é polí-

tico em um sentido muito especial: a crítica não passa por uma trapaça qualquer, porque

ela convida ao (e, em certa medida, exige de seu leitor o) mesmo crime que ela comete.

Ao se escrever, a leitura passa a ser um texto – somente mais um texto, ao lado daquele

que ela comenta –, ela se torna um objeto de linguagem, e, dessa forma, abdica de qual-

quer suposto lugar privilegiado de metalinguagem, convidando-se, por sua vez, à desti-

tuição.

Não se trata de averiguar uma qualquer acurácia de observação, mas de chegar

mesmo à citação propositadamente errônea, e de ler a crítica sem a preocupação de so-

mente saber o que o crítico “pensa”, mas acioná-lo, usá-lo como ignição. Muito ou qua-

se tudo do que escreveu recentemente Roberto Corrêa dos Santos só se permite essa for-

ma de leitura, traidora, perversora. Escrever de modo que não se possa ser lido a não

ser por recorte, isso funda a poeticidade da escrita de Roberto (e de muitos outros antes

e depois dele, parece). Não à toa, a marca que mais se repete nessas publicações inquie-

tantes é a das peles e invólucros que revestem e envelopam os livros, como se o leitor

estivesse, desde o gesto primário de folhear, condenado a um crime: o de ser o violador

daquele objeto que se retrai, fazendo-se sempre parcialmente ilegível, mas, por isso

mesmo, sempre legível em alguma medida. Desmonte-me, desarticule-me, use-me – so-

pra a crítica de Roberto.

Tarefa difícil tanto quanto necessária: deslocar-se do habitual para deslocar-nos

Page 13: Por uma crítica do recorte

em leitura. Traços, linhas, minúsculas depois de pontos, espaços, negritos, desenhos, ta-

manhos e fontes diversos – são as marcas do corte e das operações de traição que vemos

na estranheza dessa escrita: os rastros de sua montagem. Não bastariam, é claro, as aca-

dêmicas aspas e os gentis parênteses contendo a referência generosa – marcar o corte

não é o mesmo que conferir ao leitor as condições de confrontar uma leitura com um

“original”, mesmo porque esses gestos banais não livram o olhar de uma grande leitura,

de uma leitura poderosa e soberana a ponto de afetar o texto supostamente original (as

citações, por exemplo, tem um poder reverso de afirmar o recorte em questão). A expli-

citação da referência (da proveniência do recorte) é, de todo modo, generosa, mas não o

bastante. Marcar o corte faz-se com não embriagar, e impingir à leitura, a todo o mo-

mento, pequenos choques, deslocamentos, descargas elétricas que despertem o leitor de

qualquer embriaguez de sentido (do aspecto embriagante e autossuficiente de qualquer

sentido). Dar a ouvir “De uma frase a outra os sons quebradiços” (2006a: s/ página) é a

tarefa da escrita ativa, não somente os sons e sentidos que ali se erigem e ficam de pé,

mas o que desaba, o que cai, fora de qualquer leitura.

E se assim, “A forma já não embriaga” (2006a: s/ página), é porque já não deve

embeber o leitor com seu poder encantatório, mas despertá-lo para os cortes e manobras

de que se faz seu canto de sereia, dar a ver seus rastros. A crítica ativa não pode esque-

cer nem deixar a leitura esquecer do resto que sobrevive ao seu recorte, a qualquer re-

corte que ela possa realizar. Ela não pode deixar de apontar para o vazio que a funda,

vazio pelo qual o leitor pode, por sua vez, fugir em uma outra leitura (vazio que é, é cer-

to, seu gozo). A forma não quer embriagar porque não quer seguidores extáticos, mas

traidores independentes, escrevendo eles mesmos, por sua vez – e por sua própria conta

e risco. E se os choques, resultantes de experimentações eróticas do desejo selvagem da

escrita de Roberto, afrontam a possibilidade do não entendimento do leitor, é porque,

trata-se menos de entender do que de escapar, ou ainda, segundo uma equação que radi-

caliza seus pressupostos, trata-se de “Não entender para escapar” (2006a: s/ página).

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Pós-escrito: Zeugma, a elipse, os rastros

Talvez o mais ininteligível e estranho dos livros de Roberto Corrêa dos Santos,

desde seu título seguidamente subtitulado, Zeugma Livro dos Rastros O que você sabe

sobre a dor – sentenças-impulso para a criação de obras artísticas contemporâneas nos

aparece como a radicalização dessa equação. Segundo um impulso que não é sem par na

obra de Roberto (e que não somente está presente, também desde o título – ou subtítulo

– , em Perdão, Caio: carta a-quem-escreva, mas talvez seja ainda a mola propulsora de

outro de seus mais estranhos livros, Primeiras Convulsões – últimas notas sobre o

grande vidro), Zeugma é pensado e escrito como o impulsionador de obras artísticas

contemporâneas. Trata-se de um puro acionador, sem objeto, de um livro que deseja

para si esse lugar de ignição de outros, de obras alheias, que ser um propulsor de futu-

ros, de possíveis.

“Falar das coisas até escapar // das coisas” (2008b: s/ página), diz Zeugma, e essa

é a fórmula do recorte, de sua obra crítica tal qual a entendemos até aqui: usar o objeto

contra ele mesmo, escapando dele, criando seu outro, recortar o objeto lido em formula-

ções novas, em um novo texto, que captura, rapta o primeiro e põe em ação suas forças

(uma configuração possível para elas). Ora, segundo essa força de recorte, de rapto, toda

obra crítica é potencialmente um acionador, um impulsionador de outras obras, já que

seu gesto de arrumação-e-montagem-em-escrita não é isento de vácuos, de brechas por

onde fujam outros, outras leituras e mesmo outras obras (essa é mesmo, segundo vimos,

a necessidade política de sua escrita). Zeugma, no entanto, só se justifica enquanto acio-

nador, quer ser uma espécie de puro propulsor de obras futuras, de obras 8. Sua estraté-

gia, portanto, não é a de se dar a conhecer desde o rapto de outro objeto, rapto esse que,

se traça um desvio possível, não deixa de formular certas atualizações passíveis de cris-

talização, mas a de se fazer desde o poço, pelo poço vazio de qualquer objeto, o poço

desde o qual todo objeto é recortado: “não conhecerás o poço por/ meio do rapto”

(2008b: s/ página).

8 De obras contemporâneas, seria preciso frisar. É provável que só se venha a ter real dimensão das for -ças em jogo nesse livro quando se levar em consideração a problemática desse termo na atualidade e, principalmente, na obra de Roberto. No entanto, na medida em que essa questão, pelo menos por en-quanto, não nos concerne e ultrapassa em muito o âmbito desse ensaio, preferimos mantê-la em silên-cio.

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Aqui talvez se trate menos de recorte do que de pulverização (ou: mosaico), me-

nos de montagem perversora do que de pura formulação do abandono – do marco zero

de um não-lugar que retorna em todo recorte e que trabalha de dentro qualquer monta-

gem, a explode: “utopias: pólvoras”. Zeugma se situa em um ponto cego de nossas con-

siderações sobre a crítica até aqui, e inverte suas setas: a preposição que rege sua fala

não é a partir de, desde ou sobre, mas para (sentenças impulso para a criação de obras

artísticas contemporâneas). Enquanto obra crítica, ele quer ocupar um lugar análogo ao

das poéticas clássicas e ao conferido à poética aristotélica no período clássico: o lugar

da prescrição formal de um como-deve-ser (ao invés de uma leitura posterior, de um

olhar voltado às obras, como devia ser a questão para o filósofo grego). O intuito pres-

critivo-acionador escapa ao problema da crítica tal qual o formulamos, enquanto proble-

ma de ver-ler, e se relacionaria muito mais a uma possível problemática do antever, do

prever, já que não se trata mais de escolher detalhes de um objeto relativamente atuali-

zado e cujo risco é a cristalização, mas de impulsionar a criação de obras outras, futuras,

ainda somente possíveis.

Ora, em um tempo em que a arte aprendeu sobretudo a prezar e garantir os seus

possíveis, que tipo de prescrição poderia se arrogar o poder de fazer jus a esses possí-

veis? Justamente, uma elíptica (zeugma denomina, em gramática, um tipo de elipse).

Um conjunto de proposições em que falta o objeto, a lei, o centro, a arrumação: “a ira de

Moisés/ teria lançado longe as tábuas/ não fosse a força do fazer: em arte/ concentrar-se

e saltar” (2008b: s/ página). Zeugma é a própria formulação de um abandono, já é, em

justa medida, ele mesmo uma das obras que impulsiona, porque não faz mais do que

formular de novo e de novo (de concentrar-se sobre) o vazio do salto artístico, conju-

gando elipse de seu próprio “desde onde”, do “como” que ele, enquanto prescrição, pro-

poria, e impulso vazio, elã sem direção (ou com um mínimo direcional, incapaz de tra-

zer qualquer conforto ou estabelecer qualquer parâmetro). Lança longe quaisquer tábuas

que pudesse ter escrito, no gesto de uma generosidade absoluta de que a obra artística

mais altruísta talvez não fosse capaz, pela força de seu próprio fazer. Como que o en-

saio extremo de uma obra isenta de todo il y a, de qualquer isto, onde nada há de consis-

tente o bastante para se recortar e se remontar, e onde cada frase ganha sentido como

que em um relance, para logo em seguida voltar para seu desde-onde negativo e vazio –

concentrar-se e saltar...

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O sentido, que estabeleceria o como das obras futuras, prevendo os possíveis e

mesmo prescrevendo um contemporâneo, não comparece. (O contemporâneo, assim, se

mantém mais ou menos oco, em expectativa, como começo...) Comparece, no entanto, a

demanda de sentido, a forma de um sentido que nenhum conteúdo vem preencher, per-

gunta sem resposta, ou entonação de conclusão sem solução: a ostra sem pérola ou car-

ne, que vibra tão mais intensamente desde esse vazio. As mais repetidas, as imagens de

revelação divina encenam, a todo o momento, isso: um futuro a se precipitar, o preen-

chimento do porvir, sua previsão. Previsão e revelação de nada, de lei nenhuma, da pura

espera ou impulso por uma lei possível, sem que se possa jamais formulá-la em termos

positivos: “seria incômodo o termo certo no // virgem centro do sagrado: // história es-

quecida cale: voilá” (2008b: s/ página). O sagrado, portanto, somente se virgem, se es-

vaziado de qualquer positividade. Devoção só se a um deus ausente e sem atributos, cor-

porificação do próprio silêncio e do esquecimento: “deus nega os atributos”, “apagou de

vez todos os vestígios // mnésicos: // as aderências” (2008b: s/ página). Nada que grude,

que se mantenha ou se assegure. (A aderência, a manutenção, o cumprimento, o conteú-

do, a positividade – todo o rol das relações de segurança. Zeugma inverte os valores: o

incômodo seria o termo certo no centro...) Uma dedicação somente ao vazio de um

abismo, aberto ao aparecimento do que quer que seja por ele impulsionado: “por aproxi-

mar-se tanto e // tanto do abismo: um fervoroso dedicar-se”.

Quando a revelação parece ganhar objeto é somente para rir, para quebrar, tam-

bém comicamente, a expectativa pelo preenchimento do que só pode ficar vazio: “sete

são os princípios do divino: / aspargo e / couve e alface e cebola”. Frustra-se a expecta-

tiva de revelação, os princípios do divino não são mais do que legumes e verduras. E se,

à primeira vista, frustra-se também a contabilização numérica – ao número, sete, núme-

ro pleno de referências mágicas e religiosas, se segue uma enumeração de somente qua-

tro, três faltantes –, é (somente ou também) porque os conectivos “... e... e... e...” en-

tram, até com mais pertinência do que os legumes, como princípios de um sagrado cujo

centro é vazio. A reiteração (tão cara a Deleuze) do “... e... e... e...” só esvazia mais ain-

da o lugar do sagrado e o descentraliza, “e” é, desde sempre, um conector vazio, sem

conteúdo que não o da pura adição, adição que mantem potencialmente em aberto o

aparecimento possível de outros e outros e outros princípios.

Zeugma é, assim, o livro de uma escrita sobre que elide seu próprio objeto e como

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que frustra o intuito crítico: sobre o porvir. Enquanto obra crítica ele não está livre da

potência de recorte, mas a mascara, oculta seu sobre, seguindo seu desejo próprio de im-

pulsionar o possível, o de acionar aberturas (a elisão de todo e qualquer objeto é a con-

dição da manutenção dessa a abertura, sem a qual ele descambaria para uma fatalmente

errônea prescrição). É uma radicalização do recorte, e escreve a si mesmo muito mais

do que escreve sobre qualquer coisa. É, do mesmo modo, o manifesto em sua forma

mais pura, precipitação de um futuro ou um porvir que se confunde imediatamente com

um presente potencial, só que completamente esvaziado de qualquer prescrição. (Para

brincar com os termos do Freud de que tanto gosta Roberto: um manifesto latente...)

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