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Murray N. Rothbard Por uma Nova Liberdade

Por Uma Nova Liberdade

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Murray N. Rothbard -

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  • Murray N. Rothbard

    Por uma Nova Liberdade

  • Sumrio Prefcio ......................................................................................................................................... 3

    A herana libertria: A Revoluo Americana e o liberalismo clssico ..................................... 4

    Aps a Revoluo .................................................................................................................. 7

    A resistncia liberdade ....................................................................................................... 9

    A decadncia interna ........................................................................................................... 14

    O Credo Libertrio ....................................................................................................................... 19

    Propriedade e Troca ................................................................................................................ 19

    O axioma da no-agresso .................................................................................................. 19

    Os direitos de propriedade ................................................................................................. 21

    A sociedade e o ndividuo ................................................................................................... 30

    Livre troca e livre contrato .................................................................................................. 31

    Direitos de propriedade e "direitos humanos" ................................................................... 33

    O Estado .................................................................................................................................. 37

    O estado e os intelectuais ................................................................................................... 44

    Abordagens libertrias dos problemas atuais ............................................................................. 56

    Os problemas .......................................................................................................................... 56

    Servido involuntria .............................................................................................................. 65

    Educao ................................................................................................................................. 66

    O bem-estar social e o Estado assistencialista ........................................................................ 67

    Inflao e Ciclos de Negcio: O Colapso do Paradigma Keynesiano ....................................... 68

    Dinheiro e Inflao .............................................................................................................. 70

    O Federal Reserve e a Banca de Reserva Fracionria ......................................................... 73

    Crdito Bancrio e Ciclos de Negcio .................................................................................. 77

    O Setor Pblico, I: o Governo como Empresrio ..................................................................... 86

    O setor pblico, II: desestatizando a segurana, as ruas e as estradas .................................. 92

    Protegendo as ruas ............................................................................................................. 92

    Precificando ruas e estradas ............................................................................................... 98

    O setor pblico, III: Polcia, leis e cortes ............................................................................... 102

    Conservao, ecologia e crescimento ................................................................................... 103

    A guerra e a poltica externa ................................................................................................. 104

    Eplogo ....................................................................................................................................... 105

    Uma estratgia para a liberdade ........................................................................................... 105

  • Prefcio Quando a edio original deste livro foi publicada (em 1973), o novo movimento libertrio nos Estados Unidos estava em sua infncia. Em cinco anos, o movimento amadureceu com espantosa velocidade e se expandiu grandemente tanto em quantidade quanto em qualidade. Assim, embora a discusso do libertarismo neste livro tenha sido fortalecida e completamente atualizada, a maior mudana est em nosso tratamento do movimento libertrio. O primeiro captulo original, "O novo movimento libertrio", tornou-se irrelevante e obsoleto e foi transformado num apndice, que delineia a complexa estrutura do atual movimento. O novo captulo I, "A herana libertria", faz uma breve, porm necessria, apresentao histrica da tradio americana e ocidental de liberdade, de seus sucessos e fracassos, abrindo caminho para nossa discusso de seu renascimento no movimento atual. Um novo captulo 9 foi adicionado, sobre o tpico vital da inflao e dos ciclos econmicos e do papel do governo e do livre-mercado em aliviar esses males. Finalmente, no captulo final, sobre estratgia, foi adicionada uma apresentao e uma explicao de minha recente convico de que a liberdade vai triunfar, e de que vai dar grandes passos no apenas no longo prazo mas tambm de imediato em suma, de que a liberdade uma idia cuja hora chegou.

    Devo a origem e a inspirao deste livro ao meu primeiro editor, Tom Mandel, que foi capaz de antecipar o enorme crescimento em tempos recentes do interesse no libertarismo. O livro no teria sido concebido nem escrito sem ele. Para esta edio revisada, Roy A. Childs, Jr., editor da Libertarian Review, foi extremamente til ao sugerir as mudanas necessrias. Eu gostaria tambm de agradecer a Dominic T. Armentano, do departamento de economia da Universidade de Hartford, Williamson M. Evers, editor da Inquiry, e Leonard P. Liggio, editor da Literature of Liberty, por suas bem-vindas sugestes. O entusiasmo sem limites de Walter C. Mickleburgh para com este livro foi de importncia vital para a preparao da edio revisada; e Edward H. Crane III, presidente do Cato Institute, de So Francisco, foi uma indispensvel fonte de auxlio, encorajamento, conselhos e sugestes.

    Murray N. Rothbard Palo Alto, Califrnia

    Fevereiro de 1978

  • A herana libertria: A Revoluo Americana e o liberalismo clssico No dia da eleio de 1976, a chapa do Partido Libertrio de Roger L. MacBride para presidente e David P. Bergland para vice conseguiu 174.000 votos em trinta e quatro estados por todo o pas. O sbrio Congressional Quartely foi levado a classificar o inexperiente Partido Libertrio como o terceiro maior partido poltico dos Estados Unidos. O notvel crescimento deste novo partido pode ser percebido ao se considerar que ele foi fundado apenas em 1971, por um punhado de pessoas reunidas numa sala de estar no Colorado. No ano seguinte, sua chapa presidencial chegou s cdulas de dois estados. E agora ele o terceiro maior partido da Amrica.

    O que ainda mais notvel que o Partido Libertrio conseguiu esse crescimento com uma adeso consistente a um novo credo ideolgico "libertarismo" , trazendo assim ao cenrio poltico americano, pela primeira vez em um sculo, um partido interessado em princpios e no meramente no ganho de dinheiro ou de cargos pblicos. Comentaristas e cientistas polticos j nos disseram inmeras vezes que a beleza da Amrica e de nosso sistema partidrio sua ausncia de ideologias e seu "pragmatismo" (uma amvel palavra para o enfoque exclusivo no ganho de dinheiro e empregos s custas dos infelizes pagadores de impostos). Como, ento, explicar o crescimento incrvel de um novo partido que franca e ardentemente dedicado ideologia?

    Uma explicao a de que os americanos nem sempre foram to pragmticos e no-ideolgicos. Pelo contrrio, os historiadores agora percebem que a prpria Revoluo Americana no foi somente ideolgica, mas foi tambm o resultado de uma devoo ao credo e s instituies do libertarismo. Os revolucionrios americanos se apoiavam no credo libertrio, uma ideologia que os levou a resistir com as prprias vidas, fortunas e dignidades s invases de seus direitos e liberdades cometidas pelo governo imperial britnico. Os historiadores debateram por muito tempo as causas precisas da Revoluo Americana: teriam sido constitucionais, econmicas, polticas ou ideolgicas? Ns agora percebemos que, como libertrios, os revolucionrios no viam qualquer conflito entre os direitos morais e polticos e a liberdade econmica. Pelo contrrio, eles consideravam a liberdade civil e moral, a independncia poltica e a liberdade de produo e comrcio como partes de um s sistema, o qual Adam Smith chamaria, no mesmo ano em que a Declarao de Independncia foi escrita, de "bvio e simples sistema de liberdade natural".

    O iderio libertrio emergiu dos movimentos "liberais clssicos" dos sculos XVII e XVIII no mundo ocidental, mais especificamente a partir Revoluo Inglesa do sculo XVII. Esse movimento libertrio radical, embora apenas parcialmente bem sucedido em sua terra de origem, a Gr-Bretanha, foi capaz de inaugurar l a Revoluo Industrial, atravs da liberao das sufocantes restries do controle estatal e das guildas urbanas apoiadas pelo governo. Pois o movimento liberal clssico foi, por todo o mundo ocidental, uma grande "revoluo" libertria contra o que podemos chamar de Velha Ordem o ancien rgime que dominou seus sditos por sculos. Este regime havia, no comeo da era moderna no sculo XVI, imposto um Estado central absoluto e o governo de um rei pelo direito divino sobre uma rede mais antiga de monoplios feudais de terras e restries e controles de guildas urbanas. O resultado foi uma Europa estagnada sob uma pesada rede de controles, impostos e privilgios monopolsticos para a produo e venda conferidos pelos governos centrais (e locais) a

  • produtores favorecidos. Esta aliana do novo burocrtico e beligerante Estado com mercadores privilegiados uma aliana que seria chamada de "mercantilismo" por historiadores posteriores e com uma classe de senhores feudais constitua a Velha Ordem, contra a qual o novo movimento de liberais clssicos e radicais se rebelou nos sculos XVII e XVIII.

    Os liberais clssicos defendiam a liberdade individual em todos os seus aspectos interrelacionados. Na economia, os impostos deveriam ser drasticamente reduzidos, os controles e as regulaes, eliminados, e a energia, a empresa humana e os mercados, liberados para produzir e beneficiar toda a massa de consumidores. Os empreendedores deveriam ser, por fim, livres para competir, produzir, criar. A liberdade pessoal e civil deveriam ser garantidas contra a depredao e a tirania do rei e de seus asseclas. A religio, fonte de sangrentas guerras por sculos, quando diferentes faces lutavam pelo controle do Estado, seria liberada da imposio e interferncia estatais, de forma que todas as religies ou no-religies pudessem coexistir em paz. A paz, inclusive, era a poltica externa do liberalismo clssico; a velha poltica imperial de engrandecimento do Estado, em busca de poder e riqueza, deveria ser substituda por uma poltica estrangeira de paz e livre comrcio com todas as naes. E, uma vez que a guerra era engendrada por exrcitos e marinhas permanentes, pelo poder militar em busca de expanso, esses establishments militares deveriam ser substitudos por milcias locais voluntrias, por cidados-civis que apenas desejariam lutar em defesa de seus lares e comunidades particulares.

    Assim, a to conhecida "separao da Igreja e do Estado" era apenas uma das muitas idias interrelacionadas que poderiam ser sumarizadas como a "separao da economia e do Estado", a "separao da imprensa e do Estado", a "separao das terras e do Estado", a "separao da guerra e das questes militares e do Estado" de fato, a separao do Estado de virtualmente tudo.

    O Estado, em suma, deveria ser mantido extremamente pequeno, com um oramento muito baixo, quase insignificante. Os liberais clssicos nunca desenvolveram uma teoria da taxao, mas todo aumento de impostos era combatido fervorosamente na Amrica, dois aumentos de impostos foram a fasca que desencadeou, ou quase, a Revoluo (o imposto sobre os selos e o imposto sobre o ch).

    Os primeiros tericos do liberalismo clssico foram os Levelers, durante a Revoluo Inglesa, e o filsofo John Locke, no final do sculo XVII, seguidos pelos "verdadeiros whigs", a oposio libertria radical ao "Whig Settlement" o regime da Gr-Bretanha do sculo XVIII. John Locke estabeleceu os direitos de propriedade de cada indivduo a sua pessoa e propriedade; o propsito do governo estava estritamente limitado defesa desses direitos. Nas palavras da Declarao de Independncia, de inspirao lockeana, "para assegurar estes direitos, os Governos so institudos entre os Homens, derivando seus justos poderes do consentimento de seus governados. E sempre que qualquer Forma de Governo se torna destrutiva desses fins, de Direito do Povo alter-la ou aboli-la".

    Embora Locke fosse amplamente lido nas colnias americanas, sua filosofia abstrata no foi calculada para incitar os homens revoluo. Esta tarefa foi realizada pelos lockeanos radicais do sculo XVIII, que escreviam de forma mais popular, agressiva e apaixonada, e que

  • aplicavam a filosofia bsica aos problemas concretos do governo especialmente do governo britnico de seu tempo. Os escritos mais importantes desse tipo foram as "Cartas de Cato", uma srie de artigos de jornal publicados no comeo dos anos 1720 em Londre pelos verdadeiros whigs John Trenchard e Thomas Gordon. Embora Locke houvesse mencionado a presso revolucionria, que poderia ser devidamente exercida quando o governo se tornasse uma ameaa liberdade, Trenchard e Gordon notaram que o governo sempre tendia a destruir os direitos individuais. De acordo com as "Cartas de Cato", a histria humana um registro do conflito irreprimvel entre o Poder e a Liberdade, estando o Poder (governo) sempre pronto para aumentar seu escopo atravs da invaso dos direitos das pessoas e da usurpao de suas liberdades. Assim, declarou Cato, o Poder deve ser mantido pequeno e sujeito a eterna vigilncia e hostilidade por parte do pblico, para que se assegure que ele se mantenha dentro de seus estreitos limites:

    Sabemos, atravs de infinitos Exemplos e da Experincia, que o Homem investido de Poder, em vez de ced-lo, far qualquer coisa, at mesmo a pior e mais sinistra, para mant-lo; e jamais houve qualquer Homem sobre a Terra que o houvesse abandonado enquanto pudesse fazer tudo de sua prpria Forma com ele. (...) Isto parece certo. O Bem do Mundo, ou de seu Povo, jamais foi um de seus Motivos ter continuado no Poder, ou para abdicar dele.

    da Natureza do Poder tornar-se cada vez mais abusivo e transformar todo Poder extraordinrio, concedido em Momentos particulares, e em Ocasies particulares, em um Poder ordinrio, para ser usado a todos os Momentos, e quando no h qualquer Ocasio, nem qualquer Vantagem em seu emprego. (...)

    Ora! O Poder usurpa diariamente a Liberdade, com Sucesso sempre evidente; e o Equilbrio entre eles est quase perdido. A Tirania absorveu quase a totalidade da Terra, e, atacando as Razes e Ramos da Humanidade, torna o Mundo um Matadouro; e certamente continuar a destruir, at que seja ele prprio destrudo, ou, o que mais provvel, at que no haja nada mais para se destruir.1

    Esses avisos foram rapidamente absorvidos pelos colonos americanos, que reimprimiram as "Cartas de Cato" muitas vezes pelas colnias at o tempo da Revoluo. Essa atitude determinada levou ao que o historiador Bernard Bailyn chamou apropriadamente de o "libertarismo radical transformador" da Revoluo Americana.

    Pois a revoluo no foi somente a primeira tentativa moderna de livrar-se do jugo do imperialismo ocidental naquele tempo, da maior potncia do mundo. O que mais importante que, pela primeira vez na histria, os americanos cercaram seus novos governos com numerosos limites e restries, incorporados em constituies e, particularmente, em cartas de direitos. A Igreja e o Estado eram rigorosamente separados nos novos estados e a liberdade religiosa era considerada da maior importncia. As reminiscncias do feudalismo foram eliminadas por todos os estados com a abolio dos privilgios feudais de vnculo e primogenitura. (No primeiro caso, um ancestral morto capaz de vincular terras a sua famlia para sempre, impedindo que seus herdeiros vendam qualquer parte delas; no segundo, o governo exige que o nico herdeiro de propriedades seja o filho mais velho.)

  • No era permitido que o novo governo federal, formado pelos Artigos da Confederao, cobrasse quaisquer impostos do pblico; e qualquer extenso fundamental de seus poderes requeria consentimento unnime de todos os governos estaduais. Acima de tudo, o poder militar do governo nacional era limitado por barreiras e suspeitas; pois os libertrios do sculo XVIII compreendiam que a guerra, os exrcitos permanentes e o militarismo h muito tempo eram o mtodo principal de engrandecimento do poder do Estado.2

    Bernard Bailyn resumiu da seguinte maneira a conquista dos revolucionrios americanos:

    A modernizao da poltica americana e do governo durante e aps a Revoluo foi uma repentina e radical realizao do programa que havia sido estabelecido em primeiro lugar pela inteligentsia de oposio (...) durante o reinado de George I. Onde a oposio inglesa, forando seu caminho por uma complacente ordem social e poltica, havia apenas sonhado e ambicionado, os americanos, levados pelas mesmas aspiraes, mas vivendo em uma sociedade moderna de diversas maneiras, e agora libertados politicamente, poderiam repentinamente agir. Onde a oposio inglesa havia podido apenas agitar por reformas parciais (...) os americanos se moveram de forma rpida e com poucas rupturas sociais para implementar sistematicamente as mais extremas possibilidades de toda a gama de idias de liberao radicais.

    Durante esse processo, eles (...) infundiram na cultura poltica americana (...) os maiores temas do sculo XVIII que o libertarismo radical realizou aqui. A crena de que o poder mal, uma necessidade talvez, mas uma m necessidade; que ele infinitamente corruptvel; e que ele deve ser controlado, limitado, restrito de toda forma compatvel com um mnimo de ordem civil. Constituies escritas; a separao dos poderes; cartas de direitos; limitaes dos executivos, das legislaturas e das cortes; restries ao direito de coagir e iniciar guerras tudo isso expressa uma profunda descrena no poder que est no corao ideolgico da Revoluo Americana e que permaneceu conosco como um legado permanente desde ento.3

    Assim, embora o pensamento liberal clssico tenha nascido na Inglaterra, ele alcanaria seu desenvolvimento mais consistente e radical e sua vida mais longa na Amrica. Pois as colnias americanas estavam livres dos monoplios feudais das terras e das castas aristocrticas que estavam entranhadas na Europa; na Amrica, os governantes eram oficiais britnicos coloniais e alguns poucos mercadores privilegiados, de quem seria relativamente mais fcil de se livrar com a chegada da Revoluo e com a derrubada do governo britnico. O liberalismo clssico, portanto, teve maior suporte popular e menos resistncia institucional nas colnias americanas do que em casa. Alm do mais, estando geograficamente isolados, os rebeldes americanos no tinham que se preocupar com exrcitos invasores de governos vizinhos contra-revolucionrios, como, por exemplo, ocorreu na Frana.

    Aps a Revoluo Dessa forma, a Amrica, acima de todos os pases, nasceu numa revoluo explicitamente libertria, uma revoluo contra um imprio; contra a taxao, os monoplios comerciais e as regulaes; e contra o militarismo e o poder executivo. A revoluo resultou em governos com restries nunca antes vistas aos prprios poderes. Mas, embora houvesse pouca resistncia institucional na Amrica ao avano do liberalismo, comearam a surgir, desde o comeo, poderosas foras elitistas, especialmente entre os grandes mercadores e fazendeiros, que

  • desejavam manter o restritivo sistema "mercantilista" britnico de altos impostos, controles e privilgios monopolsticos concedidos pelo governo. Esses grupos desejavam um forte governo central, ou mesmo imperial; em resumo, eles queriam o sistema britnico sem a Gr-Bretanha. Essas foras conservadoras e reacionrias primeiro surgiram durante a Revoluo e, mais tarde, formaram o Partido Federalista e a administrao federalista nos anos 1790.

    Durante o sculo XIX, porm, o mpeto libertrio continuou. Os movimentos jeffersoniano e jacksoniano, o Partido Democrtico-Republicano e mais tarde o Democrata, explicitamente ambicionavam a virtual eliminao do governo da vida americana. Ele deveria ser um governo sem um exrcito ou uma marinha permanentes; um governo sem dvidas, sem impostos federais diretos, sem impostos diretos sobre a produo e virtualmente sem tarifas de importao isto , com nveis desprezveis de taxao e gastos; um governo que no empreendesse obras pblicas ou melhorias internas; um governo que no controlasse ou regulasse; um governo que deixasse a moeda e o sistema bancrio livres e sem inflao; em suma, nas palavras de H. L. Mencken, "um governo que mal consiga ser mais que nenhum governo".

    O movimento jeffersoniano rumo a virtualmente nenhum governo declinou depois que Jefferson assumiu a presidncia, primeiro com concesses aos federalistas (possivelmente resultado de um acordo pelos votos federalistas para desfazer um desempate no colgio eleitoral), e ento com a compra inconstitucional do territrio da Louisiana. Mas, particularmente, ele declinou com o avano imperialista rumo guerra com a Gr-Bretanha no segundo mandato de Jefferson, um avano que levou guerra e a um sistema unipartidrio que estabeleceu virtualmente todo o programa estatista dos federalistas: altos gastos militares, um banco central, tarifas protecionistas, impostos federais diretos, obras pblicas. Aterrorizado com os resultados, Jefferson aposentou-se e retirou-se para Monticello,4 onde inspirou os jovens polticos Martin Van Buren e Thomas Hart Benton a formar um novo partido o Partido Democrata que tomaria de volta a Amrica das mos do novo federalismo e parar reviver o esprito do velho programa jeffersoniano. Quando os dois lderes agarraram-se a Andrew Jackson como seu salvador, o novo Partido Democrata havia nascido.

    Os libertrios jacksonianos tinham um plano: haveriam oito anos de presidncia de Andrew Jackson, seguidos de oito anos de Van Buren e ento mais oito anos de Benton. Depois de vinte e quatro anos de uma triunfante Democracia Jacksoniana, o ideal menckeniano de virtual ausncia de governo deveria ser alcanado. No era um sonho impossvel, uma vez que estava claro que o Partido Democrata havia se tornado rapidamente o partido majoritrio no pas. A massa de pessoas era alistada na causa libertria. Jackson teve seus oito anos, que destruram o banco central e a dvida pblica, e Van Buren teve quatro, que separaram o governo federal do sistema bancrio. Mas a eleio de 1840 foi uma anomalia, j que Van Buren foi derrotado por uma demaggica campanha sem precedentes, feita pelo primeiro grande lder de campanha moderno, Thurlow Weed, que foi o precursor do emprego de todos os enfeites de campanha com que estamos familiarizados hoje em dia bordes pegajosos, abotoaduras, msicas, paradas, etc. As tticas de Weed colocaram na presidncia um desconhecido e pssimo whig, o General William Henry Harrison, mas essa foi claramente uma casualidade; em 1844, os Democratas estariam preparados para contra-atacar com as mesmas tticas de campanha, e estavam destinados a reconquistar a presidncia naquele ano. Van Buren, claro,

  • deveria continuar a triunfante marcha jacksoniana. Mas ento um evento fatdico ocorreu: o Partido Democrata estava dividido na questo crtica da escravido, ou melhor, na questo da expanso da escravido em um novo territrio. A fcil renomeao de Van Buren afundou com uma diviso nas fileiras da Democracia quanto admisso na Unio da Repblica do Texas como um estado escravocrata; Van Buren se opunha, Jackson era a favor, e esta diviso simbolizava o grande racha dentro do Partido Democrata. A escravido, a grave falha antilibertria no libertarismo do programa dos Democratas, surgiu para destruir o partido e seu libertarismo completamente.

    A Guerra Civil, em adio a seu derramamento de sangue e devastao sem precedentes, foi usada pelo triunfante e virtualmente unipartidrio regime republicano para avanar seu programa estatista, anteriormente whig: poder governamental nacional, tarifas protecionistas, subsdios a grandes negcios, papel-moeda inflacionrio, continuao do controle do governo federal sobre os bancos, obras pblicas de larga escala, altos impostos sobre a produo e, durante a guerra, o alistamento obrigatrio e um imposto de renda. Alm disso, os estados vieram a perder seu direito de secesso e outros poderes em relao aos do governo federal. O Partido Democrata deu prosseguimento ao seu programa libertrio aps a guerra, mas agora ele teria uma estrada muito maior e mais difcil para chegar liberdade do que tinha antes.

    Ns vimos como a Amrica veio a ter a mais profunda tradio libertria, uma tradio que sobrevive em grande parte de nossa retrica poltica e ainda se reflete na atitude irritvel e individualista em relao ao governo nutrida por boa parte do povo americano. H muito mais solo frtil neste pas do que em qualquer outro para o ressurgimento do libertarismo.

    A resistncia liberdade Podemos ver agora que o rpido crescimento do movimento libertrio e do Partido Libertrio nos anos 1970 tem razes no que Bernard Bailyn chamou de "legado permanente" da Revoluo Americana. Mas se este legado to vital para a tradio americana, o que deu errado? Por que h a necessidade agora do nascimento de um novo movimento libertrio para reclamar o sonho americano?

    Para comear a responder esta pergunta, devemos primeiramente lembrar que o liberalismo clssico constitua uma ameaa profunda aos interesses polticos e econmicos s classes dominantes que se beneficiavam da Velha Ordem: aos reis, aos nobres, aos aristocratas feudais, aos mercadores privilegiados, mquina militar, s burocracias estatais. Apesar das trs maiores revolues violentas precipitadas pelos liberais a inglesa do sculo XVII e a americana e a francesa do XVIII , as vitrias na Europa foram apenas parciais. A resistncia foi dura e conseguiu manter com sucesso os monoplios das terras e, por um tempo, o sufrgio restrito s elites ricas. Os liberais tinham que se concentrar em aumentar o alcance do sufrgio, porque estava claro para ambos os lados que os interesses econmicos e polticos da massa do povo estavam com a liberdade individual. interessante notar que, no comeo do sculo XIX, as foras do laissez-faire eram conhecidas como "liberais" e "radicais" (para os mais puros e consistentes dentre eles), e os opositores que desejavam preservar ou retroceder Velha Ordem eram amplamente conhecidos como "conservadores".

    De fato, o conservadorismo comeou, no comeo do sculo XIX, como uma tentativa consciente de desfazer e destruir o odiado trabalho do novo esprito liberal clssico das

  • revolues Americana, Francesa e Industrial. Liderado por dois pensadores franceses reacionrios Bonald e De Maistre, o conservadorismo aspirava substituir os direitos iguais e a igualdade perante a lei pelo domnio estruturado e hierrquico das elites privilegiadas; a liberdade individual e o governo mnimo pelo governo absoluto e o governo mximo; a liberdade religiosa pelo governo teocrtico de uma igreja estatal; a paz e o livre comrcio pelo militarismo, por restries mercantilistas e pela guerra para benefcio do Estado-nao; e a indstria e a manufatura pela velha ordem feudal e agrria. E eles queriam substituir o novo mundo de consumo de massa e de padres de vida mais altos para todos pela Velha Ordem de subsistncia para as massas e luxo e consumo para a elite dominante.

    Na metade e certamente no final do sculo XIX, os conservadores comearam a perceber que sua causa estava inevitavelmente condenada caso eles continuassem a clamar pela supresso da Revoluo Industrial e de seu enorme aumento dos padres de vida para as massas e caso continuassem a se opor ao aumento do escopo do sufrgio, dessa forma francamente se colocando em oposio aos interesses do pblico. Assim, a "direita" (um rtulo baseado num acidente geogrfico, pelo qual os porta-vozes da Velha Ordem se sentaram direita na Assemblia Nacional durante a Revoluo Francesa) decidiu mudar seu tom e atualizar seu credo estatista abandonando a oposio aberta ao industrialismo e ao sufrgio democrtico. Os novos conservadores substituram o franco dio e desprezo pela massa do pblico do velho conservadorismo por uma duplicidade e demagogia. Os novos conservadores galanteavam as massas com o seguinte discurso: "Ns tambm favorecemos o industrialismo e padres mais altos de vida. Mas, para alcanarmos esses objetivos, ns precisamos regular a indstria pelo bem comum; ns precisamos substituir a competio voraz do mercado livre e competitivo pela cooperao organizada; e, acima de tudo, ns precisamos substituir os princpios liberais de paz e livre comrcio por medidas que exaltam a nao: a guerra, o protecionismo, o imprio e as faanhas militares." Para todas essas mudanas, claro, um Estado inchado, em lugar de um governo mnimo, era necessrio.

    Dessa maneira, no final do sculo XIX, o estatismo e o Estado inchado retornaram, mas desta vez com uma cara pr-industrial e pr-bem-estar geral. A velha Ordem havia retornado, porm os beneficirios dela mudaram um pouco; no eram mais tanto a nobreza, os senhores de terras feudais, o exrcito, a burocracia e os mercadores privilegiados agora eram o exrcito, a burocracia, os enfraquecidos senhores de terras feudais e especialmente os industriais privilegiados. Liderada por Bismarck na Prssia, a Nova Direita defendia um coletivismo direitista baseado na guerra, no militarismo, no protecionismo e na cartelizao compulsria de empresas e indstrias uma rede gigantesca de controles, regulaes, subsdios e privilgios que moldaram a grande aliana entre o Estado e certos elementos favorecidos dos grandes negcios e indstrias.

    Algo tambm deveria ser feito a respeito do novo fenmeno de trabalhadores assalariados industriais o "proletariado". Durante o sculo XVIII e o comeo do XIX de fato, at mesmo o final do sculo XIX , a massa de trabalhadores era a favor do laissez-faire e considerava o mercado livremente competitivo como o melhor para seus salrios, para suas condies de trabalho e para permitir o acesso a uma gama maior de bens de consumo. At mesmo os primeiros sindicatos trabalhistas eram firmes defensores do laissez-faire. Os novos conservadores, encabeados por Bismarck na Alemanha e Disraeli na Gr-Bretanha,

  • enfraqueceram o mpeto libertrio dos trabalhadores, derramando lgrimas de crocodilo sobre as condies de trabalho dos trabalhadores industriais e cartelizando e regulando a indstria, no por acidente impedindo uma competio eficiente. Finalmente, no comeo do sculo XX, o novo "Estado corporativista" conservador o sistema poltico prevalente ento e hoje em dia incorporou os sindicatos trabalhistas "responsveis" como parceiros do governo e dos grandes negcios privilegiados num novo sistema estatista e corporativista de tomada de decises.

    Para estabelecer este novo sistema, para criar uma Nova Ordem que fosse uma verso modernizada e maquiada do ancin rgime de antes das revolues Americana e Francesa, as novas elites dominantes tiveram que que executar um gigantesco trabalho de enganao do pblico, um trabalho que continua at hoje. Embora a existncia de todo governo, desde a monarquia absoluta at a ditadura militar, repouse sobre o consentimento da maioria da populao, um governo democrtico deve trabalhar esse consentimento de maneira mais imediata, diria. Para fazer isso, as novas elites dominantes conservadoras tiveram que fraudar o pblico de vrias formas cruciais e fundamentais. Pois as massas agora tiveram que ser convencidas de que a tirania melhor que a liberdade, de que um feudalismo industrial melhor para os consumidores que um mercado livremente competitivo, de que uma cartelizao monopolstica deveria ser imposta em nome do antimonopolismo, e de que a guerra e o militarismo, que serviam aos interesses das elites dominantes, na verdade eram dos interesses do conscrito, taxado e freqentemente massacrado pblico. Como isso podia ser feito?

    Em todas as sociedades, a opinio pblica determinada pelas classes intelectuais, os formadores de opino da sociedade. Pois a maior parte das pessoas no d origem nem dissemina idias e conceitos; pelo contrrio, elas tendem a adotar essas idias propagadas pelas classes intelectuais profissionais, pelos negociantes profissionais de idias. Ao longo da histria, como veremos mais adiante, os dspotas e as elites dominantes dos Estados tm tido muito maior necessidade dos servios dos intelectuais que os cidados pacficos de uma sociedade livre. Pois os Estados sempre precisaram dos intelectuais formadores de opinio para levar o pblico a acreditar que seu domnio sbio, bom e inevitvel; a acreditar que o "imperador est vestido". At o mundo moderno, esses intelectuais eram inevitavelmente clrigos (ou curandeiros), os guardies da religio. Era uma aliana confortvel, esta antiga aliana entre a Igreja e o Estado; a Igreja informava seus fiis enganados de que o rei governava por comando divino e que, portanto, deveria ser obedecido; em troca, o rei direcionava grandes receitas de impostos para os cofres da Igreja. Da a grande importncia para os liberais clssicos da separao da Igreja e do Estado. O novo mundo liberal era um mundo no qual os intelectuais poderiam ser seculares poderiam sustentar-se com as prprias pernas, no mercado, longe da subveno estatal.

    Para estabelecer sua nova ordem estatista, seu Estado corporativista neomercantilista, os novos conservadores precisavam fomentar uma nova aliana entre os intelectuais e o Estado. Numa era cada vez mais secular, isso significava uma aliana com intelectuais seculares, no com divinos: isto , com uma classe de professores, doutores, historiadores, economistas tecnocratas, trabalhadores sociais, socilogos, mdicos e engenheiros. Esta nova aliana surgiu em duas partes. No comeo do sculo XIX, os conservadores, concedendo a razo a seus

  • inimigos liberais, dependiam fortemente das alegadas virtudes da irracionalidade, do romantismo, da tradio, da teocracia. Na segunda metade do sculo XIX, o novo conservadorismo veio a abraar a razo e a "cincia". Agora era a cincia que supostamente requeria o controle da economia e da sociedade por "especialistas" tecnocratas. Em troca da disseminao dessa mensagem para o pblico, a nova classe de intelectuais foi premiada com empregos e prestgio, como apologistas da Nova Ordem e planejadores e reguladores da nova sociedade cartelizada.

    Para assegurar a predominncia do novo estatismo junto opinio pblica, para assegurar que o consentimento do pblico seria conseguido, os governos do mundo ocidental, no final do sculo XIX e no comeo do XX, moveram-se para tomar o controle da educao, das mentes dos homens: das universidades e da educao geral, atravs de leis de freqncia obrigatria e da rede de escolas pblicas. As escolas pblicas eram conscientemente usadas para inculcar obedincia ao Estado e outras virtudes cvicas entre os jovens alunos. Alm disso, esta estatizao da educao assegurava que os maiores interessados na expanso do estatismo seriam os professores e educadores profissionais dos pases.

    Uma das formas pelas quais os novos intelectuais estatistas faziam seu trabalho era atravs da mudana dos significados de velhos rtulos, para que assim pudessem manipular nas mentes das pessoas as conotaes emocionais vinculadas a eles. Por exemplo, os libertrios pr-laissez-faire eram conhecidos h muito tempo como "liberais", e os mais puros e militantes entre eles como "radicais"; eles tambm eram conhecidos como "progressistas", porque eram aqueles que estavam em sintonia com o progresso industrial, com o avano da liberdade e com o aumento dos padres de vida dos consumidores. A nova classe de acadmicos e intelectuais estatistas se apropriou das palavras "liberal" e "progressista" e teve sucesso em rotular seus oponentes pr-laissez-faire com a acusao de serem atrasados, "neandertais" e "reacionrios". At mesmo o nome "conservador" foi jogado sobre os liberais clssicos. E, como j vimos, os novos estatistas foram capazes tambm de se apropriar do conceito de "razo".

    Se os liberais laissez-faire ficaram confusos com a nova recrudescncia do estatismo e do mercantilismo na forma do estatismo corporativista "progressista", outra razo para o declnio do liberalismo clssico no fim do sculo XIX foi o crescimento de um peculiar novo movimento: o socialismo. O socialismo se iniciou nos anos 1830 e se expandiu grandemente aps os anos 1880. A peculiaridade do socialismo era a de que ele era um movimento confuso, hbrido, influenciado por ambas as ideologias polares preexistentes, o liberalismo e o conservadorismo. Dos liberais clssicos os socialistas adotaram uma franca aceitao do industrialismo e da Revoluo Industrial, a glorificao inicial da "cincia" e da "razo", e pelo menos uma devoo retrica aos ideais liberais clssicos de paz, liberdade individual e padres mais altos de vida. De fato, os socialistas, muito antes dos posteriores corporativistas, foram pioneiros na cooptao da cincia, da razo e do industrialismo. E os socialistas no apenas adotaram a adeso democracia dos liberais clssicos como tambm comearam a clamar por uma "expanso da democracia", que permitisse que "o povo" controlasse a economia e que os indivduos controlassem uns os outros.

  • Por outro lado, dos conservadores os socialistas adotaram uma devoo coero e aos meios estatistas para atingir esses fins liberais. A harmonia industrial e o crescimento seriam alcanados pelo crescimento do Estado e sua transformao numa instituio toda-poderosa, que controlasse a economia e a sociedade em nome da "cincia". Uma vanguarda de tecnocratas assumiria o controle de todas as pessoas e propriedades em nome do "povo" e da "democracia". No contentes com a conquista liberal da razo e da liberdade de pesquisa cientfica, o Estado socialista instauraria o controle dos cientistas sobre todos os outros; no contentes com a liberao dos trabalhadores conseguida pelos liberais para que eles alcanassem uma prosperidade jamais vista, o Estado socialista instauraria o controle dos trabalhadores sobre todos os outros ou melhor, o controle dos polticos, burocratas e tecnocratas em nome dos trabalhadores. No contentes com o credo liberal da igualdade de direitos, da igualdade perante a lei, o Estado socialista o esmagaria em favor do monstruoso e impossvel objetivo da igualdade ou uniformidade de resultados ou melhor, erigiria uma nova elite privilegiada, uma nova classe, em nome dessa impossvel igualdade.

    O socialismo era um movimento hbrido e confuso porque tentava alcanar os fins liberais de liberdade, paz, harmonia industrial e crescimento fins que s podem ser alcanados atravs da liberdade e da separao do governo de virtualmente tudo pela imposio dos velhos meios conservadores de estatismo, coletivismo e privilgios hierrquicos. Ele foi um movimento que s poderia fracassar, e que de fato fracassou miseravelmente nos vrios pases onde alcanou o poder no sculo XX, levando as massas a despotismos sem precedentes, pobreza e fome.

    Mas a pior parte do crescimento do movimento socialista foi o fato de ele ter sido capaz de substituir os liberais clssicos na "esquerda": isto , como o partido da esperana, do radicalismo, da revoluo no mundo ocidental. Pois, uma vez que os defensores do ancien rgime se sentavam direita da Assemblia durante a Revoluo Francesa, os liberais e radicais se sentavam esquerda; da at a emergncia do socialismo, os liberais clssicos eram a "esquerda", e at mesmo a "extrema esquerda", do espectro ideolgico. Ainda em 1848, liberais franceses como Frdric Bastiat se sentavam esquerda na Assemblia Nacional. Os liberais clssicos haviam comeado como o partido radical, revolucionrio, do ocidente, como o partido da esperana e da mudana em favor da liberdade, da paz e do progresso. Permitir que eles fossem substitudos, que os socialistas pudessem posar como o "partido da esquerda" foi um grande erro estratgico que fez com que os liberais fossem colocados falsamente numa confusa posio de "centro", com o socialismo e o conservadorismo como plos opostos. Uma vez que o libertarismo no nada seno o partido da mudana e do progresso rumo liberdade, o abandono daquele papel significou o abandono de sua razo de ser seja na realidade, seja nas mentes das pessoas.

    Porm, nada disso teria acontecido se os liberais clssicos no tivessem permitido que ocorresse essa decadncia interna. Eles podiam ter notado como alguns de fato o fizeram que o socialismo era um movimento confuso, autocontraditrio, semiconservador, que era a monarquia absoluta e o feudalismo com uma nova cara, e que eles prprios eram os nicos radicais verdadeiros, que insistiam na completa vitria do ideal libertrio.

  • A decadncia interna Mas depois de alcanarem impressionantes vitrias parciais contra o estatismo, os liberais clssicos comearam a perder o prprio radicalismo, a teimosa insistncia em lutar contra o estatismo conservador at a vitria final. Em vez de usar as vitrias parciais como suporte para uma presso cada vez mais ferrenha, os liberais clssicos comearam a perder seu fervor pela mudana e pela pureza de princpios. Eles passaram a se contentar em salvaguardar as vitrias conquistadas, transformando-se dessa maneira de um movimento radical em um movimento conservador "conservador" no sentido de que se satisfaziam com a preservao do status quo. Em suma, os liberais deixaram o lugar vago para que os socialistas se transformassem no partido da esperana e do radicalismo, e at mesmo para que os posteriores corporativistas posassem de "liberais" e "progressistas" contra os "extremistas de direita" e "conservadores" liberais clssicos, j que estes se permitiram ser jogados numa posio de esperar por pouco mais que a inatividade, que a ausncia de mudanas. Tal estratgia tola e insustentvel num mundo em constante mutao.

    Mas a degenerao do liberalismo no se deveu somente estratgia e alterao de sua posio no espectro ideolgico, mas tambm aos princpios. Porque os liberais se satisfizeram em deixar o poder de guerra, a educao, o controle sobre a moeda, o sistema bancrio, as ruas e as estradas nas mos do Estado ou seja, concederam ao Estado o domnio sobre todas as alavancas de poder fundamentais da sociedade. Em contraste com a hostilidade total ao executivo e burocracia nutrida pelos liberais do sculo XVIII, os liberais do sculo XIX toleravam e at apoiavam o fortalecimento do poder executivo e da enraizada burocracia de funcionrios pblicos.

    Alm disso, os princpios e a estratgia se juntaram no declnio da antiga devoo liberal ao "abolicionismo" a crena de que, seja a escravido, seja qualquer outro aspecto do estatismo, ele deve ser abolido o mais rpido possvel, uma vez que a imediata eliminao do estatismo, embora improvvel na prtica, deve ser buscada como a nica posio moral possvel. Pois preferir uma diminuio gradual em vez de uma abolio imediata de uma instituio m e coercitiva significa ratificar e sacionar esse mal, violando assim os princpios libertrios. Como explicou o grande abolicionista anti-escravagista e libertrio William Lloyd Garrison: "Insistemos numa abolio imediata o tanto quanto pudermos e, diabos!, no fim ela ser uma abolio gradual. Ns nunca dissemos que a escravido seria derrubada com um nico golpe; que ela deve ser, ns sempre defenderemos."5

    Ocorreram duas mudanas crticas na filosofia e ideologia do liberalismo clssico que exemplificaram e contriburam para seu declnio como uma fora viva, progressista e radical do mundo ocidental. A primeira e mais importante, tendo ocorrido a partir do comeo at o final do sculo XIX, foi o abandono da filosofia dos direitos naturais e sua substituio pelo tecnocrtico utilitarismo. Em vez de a liberdade ser fundamentada no imperativo moral de que todo indivduo tem direito a sua pessoa e propriedade, isto , em vez de a liberdade ser baseada primariamente na justia e no que certo, o utilitarismo via a liberdade como o melhor modo, em geral, de alcanar um bem-estar geral e um bem comum vagamente definidos. Houve duas conseqncias graves oriundas desta mudana dos direitos naturais para o utilitarismo. Primeiro, a pureza do objetivo e a consistncia dos princpios foram inevitavelmente abaladas. Ao passo que, por um lado, o libertrio defensor dos direitos

  • naturais, buscando a moralidade e a justia, se agarra militantemente a princpios puros, o utilitarista s valoriza a liberdade como uma convenincia ad hoc. E como a convenincia pode e de fato muda de acordo com os ares, fcil para o utilitarista, em seu frio clculo de custos e benefcios, passar a defender o estatismo com argumentos ad hoc aplicados caso a caso, abandonando assim os princpios. De fato, isso foi precisamente o que ocorreu com os utilitaristas benthamistas na Inglaterra: comeando com um libertarismo e um laissez-faire ad hoc, eles acharam fcil deslizar cada vez mais para dentro do estatismo. Um exemplo foi a campanha pela "eficincia", e, portanto, pelo fortalecimento, dos servios pblicos e do poder executivo, uma eficincia que teve precedncia sobre qualquer conceito de justia, vindo at a substitu-la.

    Segundo, e igualmente importante, absurdamente raro encontrar um utilitarista que seja tambm um radical, que anseie por uma abolio imediata do mal e da coero. Utilitaristas, com sua devoo convenincia, quase que inevitavelmente se opem a qualquer forma de distrbio ou mudana radical. Jamais existiram revolucionrios utilitaristas. Logo, os utilitaristas nunca so abolicionistas imediatistas. O abolicionista s o porque deseja eliminar o mal e a injustia o mais rpido possvel. Ao escolher seu objetivo, no h espao para uma avaliao fria, ad hoc, de custos e benefcios. Sendo assim, os liberais clssicos utilitaristas abandonaram o radicalismo e se tornaram meros reformadores gradualistas. Mas ao se tornarem reformadores, eles tambm se colocaram numa posio de conselheiros e especialistas em eficincia a servio do Estado. Em outras palavras, eles inevitavelmente vieram a abandonar no s o princpio libertrio, como tambm uma estratgia libertria consistente. Os utilitaristas acabaram sendo meros apologistas da ordem existente, do status quo, e portanto estavam abertos s acusaes dos socialistas e corporativistas progressistas de que eles tinham curta viso e de que eram somente oponentes conservadores de toda e qualquer mudana. Assim, comeando como radicais e revolucionrios, como opostos extremos dos conservadores, os liberais clssicos terminaram como a imagem do que combatiam.

    Este enfraquecimento utilitrio do libertarismo ainda persiste. Quando o pensamento econmico dava os primeiros passos, o utilitarismo seduziu os economistas de livre-mercado, atravs da influncia de Bentham e Ricardo, e esta influncia est mais viva hoje do que nunca. A atual economia de livre-mercado est permeada de apelos em prol do gradualismo, com desprezo pela tica, pela justia e pelos princpios, e com um desejo de abandonar os princpios do livre-mercado aps a primeira anlise de custos e benefcios. Dessa forma, a economia de livre-mercado geralmente vislumbrada pelos intelectuais como uma mera apologia de um status quo ligeiramente modificado, e freqentemente essas acusaes so corretas.

    A segunda mudana fatal na ideologia dos liberais clssicos ocorreu durante a segunda metade do sculo XIX, quando, pelo menos por algumas dcadas, eles adotaram as doutrinas do evolucionismo social, freqentemente chamado de "darwinismo social". Em geral, historiadores estatistas tm pintado darwinistas sociais liberais como Herbert Spencer e William Graham Sumner como cruis defensores do extermnio, ou pelo menos do desaparecimento, dos "menos aptos" socialmente. Boa parte disso era simplesmente a maquiagem das doutrinas econmicas e sociolgicas de livre-mercado nos termos

  • evolucionistas que ento estavam em voga. Mas o aspecto realmente importante e prejudicial do darwinismo social era a transposio ilegtima para a esfera social da viso de que as espcies (ou, mais tarde, os genes) se modificam muito, muito lentamente, depois de milnios. Os liberais darwinistas sociais vieram ento a abandonar a prpria idia de revoluo ou mudanas radicais em favor de uma atitude indolente, de aguardo das pequenas mudanas evolucionrias atravs das eras. Em resumo, ignorando o fato de que o liberalismo havia tido que destruir o poder das elites dominantes com uma srie de mudanas radicais e revolues, os darwinistas sociais se tornaram conservadores, opondo-se a quaisquer medidas radicais e favorecendo apenas as menores das mudanas graduais.6

    De fato, o grande libertrio Spencer ele prprio uma ilustrao fascinante dessa mudana no liberalismo clssico (e seu caso semelhante ao do americano William Graham Sumner). Em certo sentido, Herbert Spencer incorpora em si muito do declnio do liberalismo no sculo XIX. Pois Spencer comeou como um liberal magnificamente radical, virtualmente um libertrio puro. Mas, ao passo que o vrus da sociologia e do darwinismo social tomavam sua alma, Spencer abandonou o libertarismo como um movimento histrico dinmico e radical, sem contudo abandon-lo na teoria pura. Embora aguardasse uma eventual vitria da liberdade pura, do "contrato" contra o "status", da indstria contra o militarismo, Spencer passou a considerar essa vitria inevitvel, mas apenas aps milnios de gradual evoluo. Assim, Spencer abandonou o liberalismo como um credo combativo e radical e confinou seu liberalismo, na prtica, a aes de retaguarda enfadonhas, conservadoras, contra o crescimento do coletivismo e do estatismo de seu tempo.

    Porm, se o utilitarismo, apoiado pelo darwinismo social, era o principal agente do declnio filosfico e ideolgico do movimento liberal, a razo nica mais importante, at desastrosa, para sua destruio foi seu abandono dos previamente rgidos princpios anti-guerra, anti-imprio e anti-militaristas. Pas a pas, foi a melodia sedutora do Estado-nao e do imprio que destruiu o liberalismo clssico. Na Inglaterra, os liberais, no final do sculo XIX e no comeo do XX, abandonaram a posio anti-guerras e anti-imperialista, o "Little Englandism"7 de Cobden, Bright e da Escola de Manchester. Em seu lugar, eles adotaram uma obscenidade intitulada "imperialismo liberal" juntando-se aos conservadores na expanso do imprio, e aos conservadores e socialistas de direita no imperialismo e coletivismo destrutivos da Primeira Guerra Mundial. Na Alemanha, Bismarck foi capaz de dividir os anteriormente quase triunfantes liberais ao empreender a sedutora unificao da Alemanha a ferro e fogo. Em ambos os pases, o resultado foi a destruio da causa liberal.

    Nos Estados Unidos, o partido liberal clssico h muito tempo era o Partido Democrata, conhecido na segunda metade do sculo XIX como "o partido da liberdade pessoal". Basicamente, ele era no s o partido da liberdade pessoal, mas tambm da liberdade econmica; o resoluto oponente da Proibio, das blue laws8 e da educao compulsria; o devotado defensor do livre comrcio, do hard money (ausncia de inflao governamental), da separao do sistema bancrio do Estado e do absoluto mnimo governo. Ele tentava minimizar a nveis desprezveis a influncia dos governos estaduais e o poder do governo federal a virtualmente zero. Nas questes externas, o Partido Democrata, embora menos rigorosamente, tendia a ser o partido da paz, do antimilitarismo e do antiimperialismo. Mas o libertarismo pessoal e econmico foram ambos abandonados com a tomada do Partido

  • Democrata por Bryan e seus aliados em 1896, e a poltica externa de no-interveno foi ento rudemente abandonada por Woodrow Wilson duas dcadas mais tarde. Foi uma interveno e uma guerra que deram incio a um sculo de morte e devastao, de guerras e despotismos, e tambm um sculo em todos os pases beligerantes do novo estatismo corporativista de um welfare-warfare State9 liderado por uma aliana entre o governo, os grandes negcios, os sindicatos e os intelectuais que mencionamos anteriormente.

    O ltimo suspiro do antigo liberalismo laissez-faire na Amrica foi dado por corajosos e quase idosos libertrios que se uniram para formar a Anti-Imperialist League na virada do sculo, para combater a guerra americana contra os espanhis e a subseqente guerra imperialista americana para esmagar os filipinos que tentavam conquistar a independncia tanto da Espanha quanto dos Estados Unidos. Aos olhos atuais, a idia de um antiimperialista que no seja marxista pode parecer estranha, mas a oposio ao imperialismo se iniciou com liberais como Cobden e Bright na Inglaterra e Eugen Richter na Prssia. Na verdade, a Anti-Imperialist League, liderada pelo economista e industrial de Boston Edwad Atkinson (e que inclua Sumner) consistia em sua maior parte de liberais radicais que haviam lutado o bom combate pela abolio da escravatura e que, ento, defenderam o livre comrcio, o hard money e o governo mnimo. Para eles, a batalha final contra o novo imperialismo americano era simplesmente uma parte da luta de suas vidas inteiras contra a coero, o estatismo e a injustia contra a extenso do governo sobre todas as reas da vida, tanto no plano domstico quanto no estrangeiro.

    Ns traamos a histria um tanto sinistra do declnio e da queda do liberalismo clssico aps o seu crescimento e triunfo parcial nos sculos anteriores. Qual, ento, a razo do ressurgimento e do florescimento do pensamento e das atividades libertrias nos ltimos anos, particularmente nos Estados Unidos? Como as incrveis foras e coalizes em prol do estatismo puderam ceder tanto a um movimento libertrio ressuscitado? No deveria a continuada marcha do estatismo no final do sculo XIX e no sculo XX causar pessimismo em vez de abrir as portas para um ressurgimento de um libertarismo aparentemente moribundo? Por que o libertarismo no permaneceu morto e enterrado?

    Ns vimos por que o libertarismo poderia naturalmente nascer e se desenvolver primeiro nos Estados Unidos, uma terra impregnada de tradio libertria. Mas ns ainda no examinamos a questo: Por que aconteceu renascimento do libertarismo nos ltimos anos? Que condies contemporneas levaram a este desenvolvimento surpreendente? Devemos adiar a resposta desta questo at o final do livro, at que examinemos primeiro o que o credo libertrio e como esse credo pode ser aplicado para resolver os principais problemas de nossa sociedade.

    Notas

    1 Veja Murray N. Rothbard, Conceived in Liberty, vol. 2, "Salutary Neglect": The American Colonies in the First Half of the 18th Century (New Rochelle, N.Y.: Arlington House, 1975), p. 194. Confira tambm John Trenchard e Thomas Gordon, Cato's Letters, em D. L. Jacobson, ed. The English Libertarian Heritage (Indianpolis: Bobbs-Merrill Co. 1965). 2 Para o impacto libertrio radical da Revoluo na Amrica, veja Robert A. Nisbet, The Social Impact of the Revolution (Washington, D.C.: American Enterprise Institute for the Public Policy

  • Research, 1974). Para o impacto na Europa, veja o importante trabalho de Robert R. Palmer, The Age of the Democratic Revolution, vol. I (Princeton, N.J.: Princeton University Press, 1959). 3 Bernard Bailyn, "The Central Themes of the American Revolution: An Interpretation", in: S. Kurtz e J. Hutson, eds. Essays on the American Revolution (Chapel Hill, NC.: University of North Carolina Press, 1973), pp. 26-28. 4 Monticello o nome da casa de Thomas Jefferson, localizada prximo a Charlottesville, na Virginia. [N.T.] 5 Citado em William H. Pease e Jane H. Pease, eds., The Antislavery Argument (Indianpolis: Bobbs-Merrill Co., 1965), p. xxxv. 6 Ironicamente, porm, a moderna teoria evolucionria est abandonando completamente a teoria das mudanas evolucionrias graduais. Em vez disso, agora se percebe que uma explicao mais exata da evoluo a de agudos e repentinos saltos de uma espcie esttica de equilbrio para outra; isto est sendo chamado de teoria do "equilbrio pontuado". Como um dos expositores desta nova viso, o Professor Stephen Jay Gould escreve: "O gradualismo uma filosofia de mudana, no uma induo da natureza. (...) O gradualismo tambm tem fortes componentes ideolgicos mais responsveis por seu prvio sucesso do que qualquer similaridade objetiva com a natureza externa. "(...) A utilidade do gradualismo como uma ideologia deve explicar muito de sua influncia, pois ele se tornou o dogma quintessencial do liberalismo contra as mudanas radicais mudanas radicais vo contra as leis da natureza." Stephen Jay Gould, "Evolution: Explosion, Not Ascent", New York Times (22 de janeiro de 1978). 7 "Pequeno Inglaterrismo", isto , a posio de que a Inglaterra no deveria embarcar em aventuras expansionistas. [N.T.] 8 A Proibio foi o perodo dos anos 1920 em que vigorou a Lei Seca nos Estados Unidos. As blue laws so leis que obrigam o cumprimento de certos padres morais, principalmente a observncia do domingo como dia de descanso. [N.T.] 9 Isto , da combinao de um Estado de bem-estar com um Estado beligerante. [N.T.]

  • O Credo Libertrio

    Propriedade e Troca

    O axioma da no-agresso O credo libertrio se baseia em um axioma central: o de que nenhum homem ou grupo de homens pode agredir a pessoa ou a propriedade de outro homem. Isto pode ser chamado de axioma da no-agresso. A agresso definida como a iniciao ou a ameaa do uso de violncia fsica contra a pessoa ou a propriedade de algum. Agresso , portanto, sinnimo de invaso.

    Se nenhum homem pode agredir outro homem, ou seja, se todos tm o absoluto direito de estar livres de agresses, isso significa que o libertrio defende firmemente as chamadas liberdades civis: a liberdade de se expressar, de publicar, de se associar e de executar quaisquer crimes sem vtimas, como o uso ou a compra de pornografia, os desvios sexuais e a prostituio (os quais, na verdade, nem mesmo so considerados crimes pelo libertrio, j que ele define o crime como a invaso violenta da vida ou propriedade de algum). Alm disso, ele considera o alistamento militar obrigatrio como equivalente escravido em grande escala. E, uma vez que a guerra, principalmente a guerra moderna, implica o massacre em massa de civis, o libertrio considera tais conflitos o mesmo que assassinatos em massa e, portanto, totalmente ilegtimos.

    Todas estas posies so consideradas esquerdistas no espectro ideolgico contemporneo. Por outro lado, uma vez que o libertrio tambm se ope invaso dos direitos de propriedade privada, isso significa que ele, da mesma forma, se ope a interferncia do governo nos direitos de propriedade ou na economia de livre mercado atravs de controles, regulaes, subsdios ou proibies. Pois se todos tm direito a ter sua propriedade livre de depredaes agressivas, ento todo indivduo tambm tem o direito de transferir sua propriedade (doao e herana) e de troc-la pela propriedade dos outros (livre contrato e economia de livre mercado) sem qualquer interferncia. O libertrio defende o direito irrestrito propriedade privada e livre troca; ou seja, ele defende o sistema do capitalismo laissez-faire.

    Na terminologia atual, a posio libertria em relao propriedade e economia seria considerada de extrema direita. Mas o libertrio no v qualquer inconsistncia em ser esquerdista em algumas questes e direitista em outras. Pelo contrrio, ele considera a prpria posio virtualmente como a nica consistente consistente com a liberdade de cada indivduo. Como pode o esquerdista se opor violncia da guerra e ao alistamento militar obrigatrio enquanto d suporte violncia da taxao e dos controles governamentais? E como pode o direitista trombetear sua devoo propriedade privada e livre empresa enquanto apia guerras, o alistamento obrigatrio e a proibio de atividades no-invasivas que ele considera imorais? Como pode o direitista defender o livre mercado se no v nada de errado nos enormes subsdios, distores e ineficincias envolvidas do complexo industrial-militar?

    Opondo-se a qualquer tipo de agresso de um indivduo ou grupo de indivduos contra os direitos vida e propriedade, o libertrio percebe que, ao longo da historia e at os dias

  • presentes, tem existido um agressor central, dominante e primordial desses direitos: o Estado. Ao contrrio de todos os outros pensadores, sejam de esquerda, de direita ou de centro, o libertrio se recusa a dar ao Estado a sano moral para cometer aes que quase todos concordam que seriam imorais, ilegais, e criminosas caso fossem praticadas por qualquer pessoa ou grupo na sociedade. O libertrio, em suma, insiste na aplicao dos princpios morais de justia a todos e no abre excees especiais a qualquer pessoa ou grupo de pessoas. Se ns observarmos o Estado despido, por assim dizer, ns percebemos que universalmente aceito e que ele at incentivado a praticar atos que at no-libertrios consideram ser crimes condenveis. O Estado freqentemente comete assassinatos em massa, que ele chama de guerras, ou, s vezes, de supresso da subverso; o Estado pratica a escravido atravs das suas foras armadas, e a chama de alistamento militar obrigatrio; sua existncia se deve pratica do roubo que ele chama de taxao. O libertrio insiste que mesmo que estas prticas sejam apoiadas pela maioria da populao, isso irrelevante para suas naturezas: independentemente da aceitao popular, a guerra assassinato em massa, servio militar obrigatrio escravido e a taxao roubo. Resumindo, o libertrio quase como a criana da fbula, que aponta insistentemente que o rei est nu.

    Ao longo dos tempos, o rei teve uma srie de pseudo-roupas feitas para ele pela casta de intelectuais das naes. Nos ltimos sculos, os intelectuais disseram ao pblico que o Estado ou seus chefes tinham origem divina ou que, ao menos, estavam investidos de autoridade divina. Assim, o que poderia parecer aos olhos ingnuos e destreinados despotismo, assassinato em massa e roubo em larga escala se tratava apenas do divino exercendo seus desgnios benignos e misteriosos atravs do corpo poltico. Em dcadas recentes, com o desgaste da sano divina, os intelectuais da corte do rei se sofisticaram em sua apologia: informaram o pblico de que o que o governo faz visa o bem comum e o bem-estar pblico, de que a taxao e os gastos do governo esto sujeitos a um misterioso processo multiplicador que mantm a economia em equilbrio, e de que, de qualquer forma, uma grande variedade de servios governamentais nunca poderia ser provida por cidados agindo voluntariamente no mercado ou na sociedade. O libertrio nega tudo isso: ele considera essas vrias apologias como formas fraudulentas de se obter suporte do pblico para o domnio estatal, e insiste que quaisquer servios que o governo de fato prov poderiam ser fornecidos muito mais eficientemente e moralmente por empresas e cooperativas privadas.

    O libertrio, por essa razo, considera como uma de suas principais tarefas educacionais a de propagar a desmistificao e dessacralizao do Estado entre seus infelizes sditos. Sua tarefa demonstrar repetidamente que no s o rei, mas tambm o Estado democrtico est nu, que todos os governos continuam a existir atravs da explorao do pblico, e que essa explorao vai de encontro s necessidades reais. Ele se esfora para mostrar que a prpria existncia da taxao e do Estado necessariamente cria uma diviso de classes entre os governantes exploradores e os governados explorados. Ele busca mostrar que a tarefa dos intelectuais da corte, que sempre apoiaram o Estado, sempre foi a de construir uma nuvem de mistificao com o objetivo de induzir o pblico a aceitar a autoridade do Estado, e que estes intelectuais obtm, em troca, uma parte do poder e dos bens extrados pelos governantes dos seus sditos enganados.

  • Tome-se, por exemplo, a instituio da taxao, que os estatistas dizem ser, em algum sentido, voluntria. Todo aquele que realmente acredita na natureza voluntria da taxao est convidado a se recusar a pagar os impostos e a ver o que ento acontece consigo. Se analisarmos a taxao, vemos que, dentre todas as pessoas e instituies da sociedade, somente o governo adquire sua receita atravs da coero violenta. Todos os outros componentes da sociedade adquirem seus rendimentos atravs de doaes voluntrias (hospedagens, sociedades beneficentes, clubes de xadrez) ou da venda de produtos ou servios voluntariamente comprados pelos consumidores. Se qualquer pessoa ou instituio que no o governo comeasse a cobrar impostos, isso seria claramente considerado coercitivo e criminoso. Contudo, as mistificaes a respeito da soberania esconderam to bem esse processo que somente os libertrios esto preparados para chamar a taxao do que ela realmente : roubo legalizado e organizado em grande escala.

    Os direitos de propriedade Se o axioma central do credo libertrio a no-agresso pessoa e propriedade de qualquer pessoa, como se chegou at ele? Qual sua base ou sustentao? Neste ponto os libertrios do passado e do presente tm discordado consideravelmente. De modo geral, existem trs tipos de fundamentao para o axioma libertrio, correspondendo a trs tipos de filosofias ticas: a emotivista, a utilitarista e a dos direitos naturais. Os emotivistas afirmam que eles aceitam como sua premissa a liberdade ou no-agresso em bases puramente subjetivas e emocionais. Mas embora suas intensas emoes possam parecer bases vlidas para sua prpria filosofia poltica, isso mal pode servir para convencer qualquer outra pessoa. Ao se exclurem do terreno da racionalidade, os emotivistas asseguram a falta de sucesso do prprio estimado discurso.

    Os utilitaristas afirmam, a partir do estudo das conseqncias da liberdade em comparao a sistemas alternativos, que a liberdade pode assegurar que os objetivos aprovados pela maioria sejam alcanados: a harmonia, a paz, a prosperidade, etc. Ningum disputa agora que as conseqncias relativas devam ser estudadas ao se avaliar os mritos e demritos das idias respectivas. Mas existem muitos problemas em nos prendermos a uma tica utilitria. Um dos motivos que o utilitarismo assume que podemos avaliar as alternativas e decidir entre polticas a partir de suas boas ou ms conseqncias. Mas se legtimo aplicar julgamento de valores s conseqncias de X, por que no igualmente legtimo aplicar tais julgamentos ao prprio X? Ser que no pode haver algo da prpria natureza de um ato que permita que ele seja considerado bom ou ruim?

    Outro problema que os utilitaristas raramente adotam um princpio como absoluto e consistente critrio para ser aplicado s variadas situaes concretas do mundo real. Na melhor das hipteses, eles usam os princpios como uma orientao ou aspirao, como uma tendncia que poderiam escolher ignorar a qualquer momento. Este foi o maior defeito dos radicais ingleses do sculo XIX, que adotaram as posies laissez-faire dos liberais do sculo XVIII, mas substituram o conceito supostamente mstico dos direitos naturais pelo supostamente cientfico utilitarismo como base para a prpria filosofia. Assim, os liberais do sculo XIX passaram a tomar o laissez-faire como uma vaga tendncia, no como um critrio absoluto, e por essa razo comprometeram fatalmente o credo libertrio. Dizer que no se pode confiar num utilitarista para manter o princpio libertrio em cada aplicao especfica

  • pode parecer spero, mas coloca as coisas da forma que so. Um exemplo contemporneo notvel o economista de livre mercado Milton Friedman, que, como os economistas clssicos que o antecederam, defende a liberdade contra a interveno estatal como uma tendncia geral, mas na prtica concede inmeras danosas excees excees que servem para enfraquecer o princpio quase que completamente, especialmente nas reas da polcia, das questes militares, da educao, da taxao, da assistncia social, das externalidades, das leis antitruste, da moeda e do sistema bancrio.

    Consideremos um exemplo extremo: suponha-se que uma sociedade cresse fervorosamente que todos os ruivos fossem agentes do demnio e que, por isso, deveriam ser executados quando encontrados. Assumamos ainda que exista somente uma pequena parcela de ruivos em qualquer gerao to poucos que sejam estatisticamente insignificantes. O libertrio utilitarista pode muito bem concluir: Embora o assassinato de ruivos isolados seja deplorvel, as execues so pequenas em nmero; a grande maioria do pblico, no sendo ruiva, obtm uma satisfao psquica enorme pela execuo pblica de ruivos. O custo social insignificante, o benefcio social e psquico para o resto da sociedade grande; portanto, correto e apropriado para a sociedade executar os indivduos ruivos. O libertrio defensor dos direitos naturais, muito preocupado com a justia dos atos, reagir com horror e se opor determinada e inequivocamente s execues, uma vez que so totalmente injustificveis o assassinato e a agresso de pessoas pacficas. A conseqncia de parar os assassinatos a privao da maior parte da sociedade de grandes prazeres psquicos no influenciaria de qualquer maneira esse tipo de libertrio, o libertrio absolutista. Tendo uma devoo justia e consistncia lgica, o libertrio dos direitos naturais alegremente admite ser um doutrinrio ser, em suma, um imperturbvel seguidor das prprias doutrinas.

    Voltemo-nos ento fundamentao dos direitos naturais do credo libertrio, fundamentao que, de uma forma ou de outra, foi adotada pela maioria dos libertrios, do passado e do presente. Os direitos naturais so o pilar de uma filosofia poltica que est cravada na estrutura maior do direito natural. A teoria do direito natural se baseia da compreenso de que vivemos em um mundo em que h mais de uma entidade e que, de fato, h um grande nmero delas e que cada entidade tem propriedades distintas e especficas, uma natureza diversa, que pode ser investigada pela razo humana, por suas percepes sensoriais e faculdades mentais. O cobre tem uma natureza particular e se comporta de certa forma, assim como o ferro, o sal, etc. A espcie humana, portanto, tem uma natureza especificvel, assim como o mundo sua volta e as formas pelas quais eles podem interagir. Para expressar isso em termos indevidamente breves, a atividade de cada entidade inorgnica e orgnica determinada por sua prpria natureza e pela natureza das outras entidades com as quais ela se relaciona. Especificamente, ao passo que o comportamento das plantas e, pelo menos, dos animais menos evoludos determinado por suas naturezas biolgicas ou, talvez, por seus instintos, a natureza do homem tal que cada pessoa precisa, para agir, escolher seus prprios fins e empregar seus prprios meios para alcan-los. Sem possuir instintos automticos, cada homem deve aprender sobre si mesmo e sobre o mundo, usar sua mente para escolher valores, aprender sobre causas e efeitos e agir propositadamente para se manter e promover sua vida. Uma vez que os homens podem pensar, sentir, estimar e agir somente como indivduos, vital para a sobrevivncia e prosperidade de cada homem que ele seja livre para aprender, escolher, desenvolver suas aptides e agir baseado em seus conhecimentos e

  • valores. Este o caminho necessrio para a natureza humana; interferir e prejudicar este processo atravs da violncia vai frontalmente de encontro ao que requerido pela natureza humana para a vida e prosperidade do homem. A interferncia violenta nos aprendizados e nas escolhas dos homens , deste modo, profundamente anti-humana; ela viola as leis naturais das necessidades humanas.

    Os individualistas sempre foram acusados por seus inimigos de serem atomistas de postularem que cada indivduo vive numa espcie de vcuo, pensando e escolhendo sem relao com mais ningum na sociedade. Este, porm, um argumento-espantalho que revela certo autoritarismo; poucos individualistas foram atomistas talvez nenhum tenha sido. Pelo contrrio, evidente que os indivduos sempre aprendem uns com os outros, cooperam e interagem entre si, e que isto tambm necessrio para a sobrevivncia humana. Mas o ponto que cada indivduo quem faz a escolha final de quais influncias adotar e quais rejeitar, ou quais adotar primeiro e quais posteriormente. O libertrio aprova o processo de trocas voluntrias e cooperao entre os indivduos livres; o que ele abomina o uso de violncia para interferir nessa cooperao voluntria e para forar algum a escolher e a agir de maneira diferente da ditada por sua prpria mente.

    O mtodo mais fcil para elaborar a demonstrao dos direitos naturais da posio libertria dividindo-a em partes e tomando-se como ponto de partida o axioma bsico do direito de auto-propriedade. O direito de auto-propriedade afirma que de direito absoluto de cada pessoa, por sua natureza humana, possuir o prprio corpo; isto , control-lo livre de interferncias coercitivas. Uma vez que o indivduo precisa pensar, aprender, estimar e escolher os seus fins e meios para sobreviver e prosperar, o direito de auto-propriedade d ao homem o direito de realizar essas atividades vitais sem ser impedido ou restringido por agressores.

    Consideremos tambm as conseqncias da negao do direito de propriedade de cada homem sobre sua prpria vida. Haveria ento apenas duas alternativas: ou (1) certa classe de pessoas, A, tem o direito de propriedade sobre outra classe, B; ou (2) todos tm o direito de possuir uma igual poro de todas as outras pessoas. A primeira alternativa implica que a Classe A merece possuir direitos humanos, mas que a Classe B , na realidade, formada por indivduos subumanos e, portanto, no digna de tais direitos. Porm, uma vez que eles so de fato seres humanos, a primeira alternativa se contradiz por negar os direitos humanos naturais a um grupo de humanos. Alm disso, como veremos, conceder Classe A a propriedade sobre a Classe B significa que a primeira pode explorar, e portanto viver parasitariamente, s custas da segunda. Mas este parasitismo em si viola o requisito econmico bsico da vida: a produo e a troca.

    A segunda alternativa, que podemos chamar de comunalismo participativo ou comunismo participativo , afirma que cada homem deve ter o direito de possuir uma quota igual de todas as outras pessoas. Se existem dois bilhes de pessoas no mundo, ento todos tm o direito de possuir um dois bilhes de avos de cada outra pessoa. Em primeiro lugar, ns podemos dizer que este ideal se baseia em um absurdo: afirmar que cada homem tem o direito de possuir uma parte de todas as pessoas, embora no possa possuir a si prprio. Em segundo lugar, podemos imaginar a viabilidade de tal mundo: um mundo em que nenhum

  • homem livre para executar nenhuma ao qualquer sem a aprovao, ou, de fato, o comando, de todas as outras pessoas na sociedade. Deve estar claro que, neste tipo de mundo comunista, ningum seria livre para fazer nada e a raa humana iria rapidamente desaparecer. Mas se um mundo onde h zero de auto-propriedade e cem por cento de propriedade sobre os outros implica na extino da raa humana, qualquer passo nesta direo tambm contraria as leis naturais do que melhor para o homem e sua vida na terra.

    Finalmente, contudo, o mundo comunista participativo no pode ser posto em prtica. Pois fisicamente impossvel que todas as pessoas mantenham registros contnuos sobre todas as outras para que assim exeram suas propriedades parciais sobre elas. Na prtica, portanto, o conceito universal e equivalente de propriedade sobre os outros utpico e impossvel, e a superviso, o controle e a posse dos outros necessariamente recairia sobre um grupo especializado, o qual, deste modo, se tornaria a classe dominante. Assim, na prtica, qualquer tentativa de um regime comunista automaticamente geraria uma classe dominante e ns estaramos de volta nossa primeira alternativa.

    O libertrio, assim, rejeita estas alternativas e adota o direito universal de auto-propriedade, um direito possudo por todos em virtude do prprio fato de serem humanos. Uma tarefa mais difcil estabelecer uma teoria de propriedade sobre objetos no-humanos, sobre as coisas da terra. comparativamente fcil reconhecer quando algum est agredindo o direito de propriedade de outra pessoa: se A ataca B, ele est violando o direito de propriedade de B sobre o seu prprio corpo. Mas com objetos no humanos o problema mais complexo. Se, por exemplo, ns virmos X agarrando um relgio que est em posse de Y ns no podemos automaticamente assumir que X est agredindo o direito de propriedade de Y sobre o relgio; pois no poderia ocorrer que o original, verdadeiro proprietrio do relgio fosse X, que poderia por isso afirmar estar restituindo sua propriedade legtima? Para decidir a questo, ns precisamos de uma teoria de justia para as propriedades, uma teoria que nos diga se X ou Y, ou mesmo outro indivduo, o proprietrio legtimo.

    Alguns libertrios tentam resolver o problema afirmando que quem quer que o governo existente declare ter o ttulo de certa propriedade deve ser considerado o proprietrio legtimo dela. At aqui ns no investigamos profundamente a natureza do Estado, mas a anomalia aqui deve estar clara: realmente estranho que um grupo sempre suspeitoso de praticamente todas as funes do governo repentinamente deixe que o governo defina e aplique o precioso conceito de propriedade, a base e a sustentao de toda a ordem social. So especialmente os utilitaristas pr-livre mercado que acreditam que mais vivel comear o novo mundo libertrio confirmando todos os ttulos de propriedade existentes; isto , ttulos e direitos de propriedade decretados pelo mesmo governo que condenado como um agressor crnico.

    Ilustremos este ponto com um exemplo hipottico. Suponha-se que a agitao e a presso libertrias tenham chegado a um ponto tal que o governo e suas vrias ramificaes estejam prontos para abdicar. Mas eles armam um ardiloso estratagema. Logo antes de o governo de Nova York abdicar, ele aprova uma lei que torna toda a rea territorial de Nova York uma propriedade privada da famlia Rockefeller. Os legisladores de Massachusetts fazem o mesmo para a famlia Kennedy. E assim por diante, para cada estado. O governo poderia ento abdicar

  • e decretar a abolio dos impostos e das legislaes coercitivas, mas os libertrios vitoriosos estariam agora diante de um dilema. Devem eles reconhecer os novos ttulos de propriedade como legtimos? Os utilitaristas, que no tm qualquer teoria de justia dos direitos de propriedade, se fossem consistentes em sua aceitao dos ttulos de propriedades decretados pelo governo, teriam que aceitar a nova ordem social, na qual cinqenta novos comandantes coletariam impostos na forma de aluguis impostos unilateralmente. O ponto que somente os libertrios que defendem os direitos naturais, somente aqueles libertrios que tm uma teoria de justia dos ttulos de propriedade que no depende do decreto governamental, estariam em posio de ridicularizar as pretenses dos novos governantes de terem legtimas propriedades sobre o territrio do pas. Como o grande liberal do sculo XIX Lord Acton observou, o direito natural fornece a nica base slida para uma crtica continuada das leis e dos decretos governamentais.1 Qual a posio especfica dos direitos naturais em relao aos ttulos de propriedade a questo que abordaremos agora.

    Ns estabelecemos o direito de cada indivduo auto-propriedade, ao direito de propriedade sobre seu corpo e sua pessoa. Mas as pessoas no so espectros flutuantes; no so entidades auto-suficientes; elas s podem sobreviver e prosperar trabalhando com a terra sua volta. Elas precisam, por exemplo, estar situadas em algum lugar; precisam tambm, para que possam sobreviver, transformar os recursos naturais em bens de consumo, em objetos mais apropriados para seu uso. Os alimentos precisam ser cultivados e comidos; os minerais precisam ser minerados, transformados em capital e ento em bens de consumo teis, etc. O homem, em outras palavras, precisa possuir no s sua prpria pessoa, mas tambm objetos materiais para seu controle e uso. Como, ento, os ttulos de propriedade destes objetos devem ser alocados?

    Tomemos como nosso primeiro exemplo um escultor que trabalha numa obra de arte de argila e outros materiais; deixemos de lado, por ora, a questo dos direitos de propriedade originais sobre a argila e as ferramentas do escultor. Surge ento a questo: quem o dono da obra de arte finalizada pelo escultor? Ela , de fato, uma criao do escultor, no no sentido de que ele criou matria, mas no de que ele transformou uma matria provida pela natureza a argila em outra forma ditada por suas prprias idias e modelada por suas prprias mos e sua prpria energia. No h dvidas de que, se todo homem tem o direito de auto-propriedade, e se ele precisa trabalhar os objetos materiais da terra para ser capaz de sobreviver, ento o escultor tem o direito de possuir o produto, que foi tornado por ele, atravs de suas energias e esforos, uma verdadeira extenso da sua personalidade. Ele imprimiu a marca de sua pessoa sobre a matria-prima, misturando seu trabalho com a argila, nas palavras do grande terico dos direitos de propriedade John Locke. E o produto transformado pela energia do escultor se tornou uma incorporao material das idias e da viso dele. John Locke coloca a questo da seguinte forma:

    (...) [T]odo homem tem uma propriedade sobre sua pessoa. Sobre ela ningum tem qualquer direito a no ser ele. O trabalho de seu corpo e de suas mos, podemos dizer, so propriamente dele. Ento, com qualquer coisa que ele remova do estado em que a natureza a proveu e deixou, ele misturou o seu trabalho e juntou algo que prprio seu, tornando-a sua propriedade. Sendo ela removida por ele do estado comum em que a natureza a colocou, esta coisa teve por seu trabalho algo anexado a ela que exclui o direito comum de todos os outros

  • homens. Por este trabalho ser propriedade inquestionvel do trabalhador, nenhum outro homem alm dele tem o direito sobre aquilo a que se juntou (...).2

    Como no caso da propriedade sobre os corpos das pessoas, ns novamente temos trs alternativas lgicas: (1) ou o transformador, ou criador, tem o direito de propriedade sobre sua criao; ou (2) outro homem ou grupo de homens tem o direito sobre aquela criao, i.e., tem o direito de se apropriar dela pela fora sem o consentimento do escultor; ou (3) todo indivduo no mundo tem uma quota igual de propriedade sobre a escultura a soluo comunal. Novamente, em termos diretos, so poucos os que no reconheceriam a injustia monstruosa de confiscar a propriedade do escultor, em benefcio de uma ou mais pessoas, ou mesmo do mundo inteiro. Com que direito eles fazem isso? Com que direito eles se apropriam do produto da mente e energia do criador? Neste caso simples, o direito do criador de possuir o que ele misturou com sua pessoa e trabalho seria geralmente concedido. (De novo, como no caso da propriedade comunal de pessoas, a soluo comunal, na prtica, iria se reduzir a uma oligarquia de alguns poucos, que explorariam o trabalho do criador em nome da propriedade pblica mundial).

    O ponto principal, contudo, que o caso do escultor aqui no qualitativamente diferente de todos os casos de produo. O homem ou o conjunto de homens que extraiu a argila do cho e venderam para o escultor, podem no ser to criativos quanto o escultor, mas tambm so produtores. Eles tambm misturaram suas idias e conhecimentos tecnolgicos ao solo provido pela natureza para criar um produto til. Eles tambm so produtores" e tambm misturaram seu trabalho a materiais naturais para transform-los em bens teis. Estas pessoas tambm tm direito propriedade do que produziram. Onde, ento, comea o processo? Novamente, nos voltemos a Locke:

    Aquele que se alimentou das nozes que colheu embaixo de um carvalho, ou das mas que colheu dos pomares da floresta, certamente os apropriou para si. Ningum pode negar que os frutos eram dele. Eu pergunto ento: quando comearam a ser dele? Quando ele os digeriu? Ou quando os comeu? Ou quando os cozinhou? Ou quando os levou para casa? Ou quando os colheu? E evidente que se a primeira coleta no os tornou dele, nada mais poderia. Aquele trabalho traou uma distino entre eles e a propriedade comum. Ele adicionou a eles mais do que a Natureza, a me comum de todos, havia adicionado, e assim eles se tornaram suas propriedades privadas. E algum dir que ele no tinha o direito a estas nozes ou mas de que ele se apropriou somente porque no tinha o consentimento de toda a humanidade para faz-lo? Teria sido um roubo a apropriao para ele do que pertencia a todos em comum? Se tal consentimento fosse necessrio, o homem morreria de fome, apesar da fartura com que Deus lhe proveu. (...) Deste modo, a grama que meu cavalo mordeu, o gramado que meu servente cortou e o minrio que eu escavei onde estou, no local onde tenho um direito comum com os outros, se tornam minha propriedade sem a designao ou o consentimento de ningum. Meu trabalho, ao remov-los do estado comum em que se encontravam, fixou neles minha propriedade.

    Ao tornar-se necessrio o consentimento explcito de cada cidado para se apropriar de qualquer parte do que comum, crianas ou serventes no poderiam cortar a carne que seus pais ou mestres forneceram a eles sem prover a cada um sua parte particular. Ainda que a

  • gua corrente na fonte seja de todos, quem pode duvidar que a gua do jarro somente seja daquele que a recolheu? O seu trabalho a tirou das mos da Natureza, onde ela era comum (...) e por meio disso ele se apropriou dela.

    Deste modo a lei da razo torna os veados propriedade dos indianos, que os mataram; permitido que sejam bens de quem aplicou seu trabalho sobre eles, embora, antes, fossem de direito comum de todos. E dentre aqueles que so considerados a parte civilizada da raa humana (...) essa lei da natureza original para o incio da propriedade, no que antes era comum, ainda ocorre, e em virtude disso, o peixe que algum pesca no oceano, esta grande propriedade comum de toda a humanidade que ainda resta, ou o mbar que qualquer um consegue atravs dele, torna-se, por meio do trabalho que o remove do estado comum em que a natureza o deixou, propriedade daquele que aplicou seu esforo.3

    Se todo homem dono de sua pessoa e, portanto, de seu trabalho, e se por extenso possui qualquer propriedade que tenha criado ou retirado de seu estado natural, previamente sem uso, sem dono, e quanto ltima grande questo, o direito de possuir e controlar a prpria terra? Isto , se cada coletor tem o direito de possuir as nozes ou mas que pegar, ou se o fazendeiro tem o direito de possuir sua colheita de trigo ou pssego, quem tem o direito de propriedade sobre a terra na qual estas coisas cresceram? neste ponto que Henry George e seus seguidores, que percorreram todo o caminho at aqui ao lado dos libertrios, tomam um caminho diferente e negam o direito individual de propriedade sobre a prpria terra, o cho onde estas atividades ocorreram. Os georgistas argumentam que, embora todo homem deva possuir os bens que produz ou cria, nenhum indivduo tem o direito de tomar a prpria terra como propriedade, porque foi a Natureza ou Deus quem a criou. Contudo, se a terra deve de fato ser usada eficientemente como um recurso, ela precisa ser possuda ou controlada por algum ou algum grupo, e ns novamente nos deparamos com nossas trs alternativas: ou a terra pertence ao primeiro usurio, que a usa para produo; ou pertence a um outro grupo de pessoas; ou pertence ao mundo como um todo, com cada indivduo tendo propriedade sobre uma parte igual de cada acre de terra. A opo de George pela ltima alternativa dificilmente resolver seu problema moral: se a prpria terra pertence a Deus ou Natureza, por que a propriedade coletiva de cada acre do mundo mais moral do que a propriedade individual? Na prtica, novamente, obviamente impossvel que cada pessoa exera a propriedade efetiva de sua poro de quatro bilhes avos (se a populao mundial for, digamos, de quatro bilhes) de cada pedao de terra na superfcie do planeta. Na prtica, evidentemente, uma pequena oligarquia teria o controle e as posses, no o mundo como um todo.

    Porm, apesar destas dificuldades da posio georgista, a justificao dos direitos naturais para a propriedade da terra a mesma que a justificao original de todas as outras propriedades. Pois, como vimos, nenhum produtor realmente cria matria; ele toma a matria natural e a transforma atravs da energia de seu trabalho de acordo com suas idias e planos. Mas isso precisamente o que o pioneiro o homesteader4 faz quando toma para si a posse de terras previamente no usadas. Da mesma forma que o homem que produz ao a partir do minrio do ferro e transforma aquele minrio atravs de seu conhecimento e da sua energia, da mesma forma como faz o mesmo o homem que retira o ferro do solo, tambm transforma a terra o homesteader que desobstrui, cerca, cultiva ou constri sobre a terra. O

  • homesteader tambm transforma as caractersticas da terra natural com seu trabalho e sua personalidade. O homesteade