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Obra Incompleta. Prefácio Quando a edição original deste livro foi publicada (em 1973), o novo movimento libertário nos Estados Unidos estava em sua infância. Em cinco anos, o movimento amadureceu com espantosa velocidade e se expandiu grandemente tanto em quantidade quanto em qualidade. Assim, embora a discussão do libertarismo neste livro tenha sido fortalecida e completamente atualizada, a maior mudança está em nosso tratamento do movimento libertário. O primeiro capítulo original, "O novo movimento libertário", tornou-se irrelevante e obsoleto e foi transformado num apêndice, que delineia a complexa estrutura do atual movimento. O novo capítulo I, "A herança libertária", faz uma breve, porém necessária, apresentação histórica da tradição americana e ocidental de liberdade, de seus sucessos e fracassos, abrindo caminho para nossa discussão de seu renascimento no movimento atual. Um novo capítulo 9 foi adicionado, sobre o tópico vital da inflação e dos ciclos econômicos e do papel do governo e do livre-mercado em aliviar esses males. Finalmente, no capítulo final, sobre estratégia, foi adicionada uma apresentação e uma explicação de minha recente convicção de que a liberdade vai triunfar, e de que vai dar grandes passos não apenas no longo prazo mas também de imediato em suma, de que a liberdade é uma idéia cuja hora chegou. Devo a origem e a inspiração deste livro ao meu primeiro editor, Tom Mandel, que foi capaz de antecipar o enorme crescimento em tempos recentes do interesse no libertarismo. O livro não teria sido concebido nem escrito sem ele. Para esta edição revisada, Roy A. Childs, Jr., editor da Libertarian Review, foi extremamente útil ao sugerir as mudanças necessárias. Eu gostaria também de agradecer a Dominic T. Armentano, do departamento de economia da Universidade de Hartford, Williamson M. Evers, editor da Inquiry, e Leonard P. Liggio, editor da Literature of Liberty, por suas bem-vindas sugestões. O entusiasmo sem limites de Walter C. Mickleburgh para com este livro foi de importância vital para a preparação da edição revisada; e Edward H. Crane III, presidente do Cato Institute, de São Francisco, foi uma indispensável fonte de auxílio, encorajamento, conselhos e sugestões. Murray N. Rothbard Palo Alto, Califórnia Fevereiro de 1978

Por uma Nova Liberdade - O Manifesto Libertário - Murray N. Rothbard (Incompleto)

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Obra Incompleta.

Prefácio

Quando a edição original deste livro foi publicada (em 1973), o novo movimento

libertário nos Estados Unidos estava em sua infância. Em cinco anos, o movimento

amadureceu com espantosa velocidade e se expandiu grandemente tanto em quantidade

quanto em qualidade. Assim, embora a discussão do libertarismo neste livro tenha sido

fortalecida e completamente atualizada, a maior mudança está em nosso tratamento do

movimento libertário. O primeiro capítulo original, "O novo movimento libertário",

tornou-se irrelevante e obsoleto e foi transformado num apêndice, que delineia a

complexa estrutura do atual movimento. O novo capítulo I, "A herança libertária", faz

uma breve, porém necessária, apresentação histórica da tradição americana e ocidental

de liberdade, de seus sucessos e fracassos, abrindo caminho para nossa discussão de seu

renascimento no movimento atual. Um novo capítulo 9 foi adicionado, sobre o tópico

vital da inflação e dos ciclos econômicos e do papel do governo e do livre-mercado em

aliviar esses males. Finalmente, no capítulo final, sobre estratégia, foi adicionada uma

apresentação e uma explicação de minha recente convicção de que a liberdade vai

triunfar, e de que vai dar grandes passos não apenas no longo prazo mas também de

imediato — em suma, de que a liberdade é uma idéia cuja hora chegou.

Devo a origem e a inspiração deste livro ao meu primeiro editor, Tom Mandel, que foi

capaz de antecipar o enorme crescimento em tempos recentes do interesse no

libertarismo. O livro não teria sido concebido nem escrito sem ele. Para esta edição

revisada, Roy A. Childs, Jr., editor da Libertarian Review, foi extremamente útil ao

sugerir as mudanças necessárias. Eu gostaria também de agradecer a Dominic T.

Armentano, do departamento de economia da Universidade de Hartford, Williamson M.

Evers, editor da Inquiry, e Leonard P. Liggio, editor da Literature of Liberty, por suas

bem-vindas sugestões. O entusiasmo sem limites de Walter C. Mickleburgh para com

este livro foi de importância vital para a preparação da edição revisada; e Edward H.

Crane III, presidente do Cato Institute, de São Francisco, foi uma indispensável fonte de

auxílio, encorajamento, conselhos e sugestões.

Murray N. Rothbard

Palo Alto, Califórnia

Fevereiro de 1978

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1. A herança libertária: A Revolução Americana e o liberalismo

clássico

No dia da eleição de 1976, a chapa do Partido Libertário de Roger L. MacBride para

presidente e David P. Bergland para vice conseguiu 174.000 votos em trinta e quatro

estados por todo o país. O sóbrio Congressional Quartely foi levado a classificar o

inexperiente Partido Libertário como o terceiro maior partido político dos Estados

Unidos. O notável crescimento deste novo partido pode ser percebido ao se considerar

que ele foi fundado apenas em 1971, por um punhado de pessoas reunidas numa sala de

estar no Colorado. No ano seguinte, sua chapa presidencial chegou às cédulas de dois

estados. E agora ele é o terceiro maior partido da América.

O que é ainda mais notável é que o Partido Libertário conseguiu esse crescimento com

uma adesão consistente a um novo credo ideológico — "libertarismo" —, trazendo

assim ao cenário político americano, pela primeira vez em um século, um partido

interessado em princípios e não meramente no ganho de dinheiro ou de cargos públicos.

Comentaristas e cientistas políticos já nos disseram inúmeras vezes que a beleza da

América e de nosso sistema partidário é sua ausência de ideologias e seu "pragmatismo"

(uma amável palavra para o enfoque exclusivo no ganho de dinheiro e empregos às

custas dos infelizes pagadores de impostos). Como, então, explicar o crescimento

incrível de um novo partido que é franca e ardentemente dedicado à ideologia?

Uma explicação é a de que os americanos nem sempre foram tão pragmáticos e não-

ideológicos. Pelo contrário, os historiadores agora percebem que a própria Revolução

Americana não foi somente ideológica, mas foi também o resultado de uma devoção ao

credo e às instituições do libertarismo. Os revolucionários americanos se apoiavam no

credo libertário, uma ideologia que os levou a resistir com as próprias vidas, fortunas e

dignidades às invasões de seus direitos e liberdades cometidas pelo governo imperial

britânico. Os historiadores debateram por muito tempo as causas precisas da Revolução

Americana: teriam sido constitucionais, econômicas, políticas ou ideológicas? Nós

agora percebemos que, como libertários, os revolucionários não viam qualquer conflito

entre os direitos morais e políticos e a liberdade econômica. Pelo contrário, eles

consideravam a liberdade civil e moral, a independência política e a liberdade de

produção e comércio como partes de um só sistema, o qual Adam Smith chamaria, no

mesmo ano em que a Declaração de Independência foi escrita, de "óbvio e simples

sistema de liberdade natural".

O ideário libertário emergiu dos movimentos "liberais clássicos" dos séculos XVII e

XVIII no mundo ocidental, mais especificamente a partir Revolução Inglesa do século

XVII. Esse movimento libertário radical, embora apenas parcialmente bem sucedido em

sua terra de origem, a Grã-Bretanha, foi capaz de inaugurar lá a Revolução Industrial,

através da liberação das sufocantes restrições do controle estatal e das guildas urbanas

apoiadas pelo governo. Pois o movimento liberal clássico foi, por todo o mundo

ocidental, uma grande "revolução" libertária contra o que podemos chamar de Velha

Ordem — o ancien régime que dominou seus súditos por séculos. Este regime havia, no

começo da era moderna no século XVI, imposto um Estado central absoluto e o governo

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de um rei pelo direito divino sobre uma rede mais antiga de monopólios feudais de

terras e restrições e controles de guildas urbanas. O resultado foi uma Europa estagnada

sob uma pesada rede de controles, impostos e privilégios monopolísticos para a

produção e venda conferidos pelos governos centrais (e locais) a produtores

favorecidos. Esta aliança do novo burocrático e beligerante Estado com mercadores

privilegiados — uma aliança que seria chamada de "mercantilismo" por historiadores

posteriores — e com uma classe de senhores feudais constituía a Velha Ordem, contra a

qual o novo movimento de liberais clássicos e radicais se rebelou nos séculos XVII e

XVIII.

Os liberais clássicos defendiam a liberdade individual em todos os seus aspectos

interrelacionados. Na economia, os impostos deveriam ser drasticamente reduzidos, os

controles e as regulações, eliminados, e a energia, a empresa humana e os mercados,

liberados para produzir e beneficiar toda a massa de consumidores. Os empreendedores

deveriam ser, por fim, livres para competir, produzir, criar. A liberdade pessoal e civil

deveriam ser garantidas contra a depredação e a tirania do rei e de seus asseclas. A

religião, fonte de sangrentas guerras por séculos, quando diferentes facções lutavam

pelo controle do Estado, seria liberada da imposição e interferência estatais, de forma

que todas as religiões — ou não-religiões — pudessem coexistir em paz. A paz,

inclusive, era a política externa do liberalismo clássico; a velha política imperial de

engrandecimento do Estado, em busca de poder e riqueza, deveria ser substituída por

uma política estrangeira de paz e livre comércio com todas as nações. E, uma vez que a

guerra era engendrada por exércitos e marinhas permanentes, pelo poder militar em

busca de expansão, esses establishments militares deveriam ser substituídos por milícias

locais voluntárias, por cidadãos-civis que apenas desejariam lutar em defesa de seus

lares e comunidades particulares.

Assim, a tão conhecida "separação da Igreja e do Estado" era apenas uma das muitas

idéias interrelacionadas que poderiam ser sumarizadas como a "separação da economia

e do Estado", a "separação da imprensa e do Estado", a "separação das terras e do

Estado", a "separação da guerra e das questões militares e do Estado" — de fato, a

separação do Estado de virtualmente tudo.

O Estado, em suma, deveria ser mantido extremamente pequeno, com um orçamento

muito baixo, quase insignificante. Os liberais clássicos nunca desenvolveram uma teoria

da taxação, mas todo aumento de impostos era combatido fervorosamente — na

América, dois aumentos de impostos foram a faísca que desencadeou, ou quase, a

Revolução (o imposto sobre os selos e o imposto sobre o chá).

Os primeiros teóricos do liberalismo clássico foram os Levelers, durante a Revolução

Inglesa, e o filósofo John Locke, no final do século XVII, seguidos pelos "verdadeiros

whigs", a oposição libertária radical ao "Whig Settlement" — o regime da Grã-Bretanha

do século XVIII. John Locke estabeleceu os direitos de propriedade de cada indivíduo a

sua pessoa e propriedade; o propósito do governo estava estritamente limitado à defesa

desses direitos. Nas palavras da Declaração de Independência, de inspiração lockeana,

"para assegurar estes direitos, os Governos são instituídos entre os Homens, derivando

seus justos poderes do consentimento de seus governados. E sempre que qualquer

Forma de Governo se torna destrutiva desses fins, é de Direito do Povo alterá-la ou

aboli-la".

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Embora Locke fosse amplamente lido nas colônias americanas, sua filosofia abstrata

não foi calculada para incitar os homens à revolução. Esta tarefa foi realizada pelos

lockeanos radicais do século XVIII, que escreviam de forma mais popular, agressiva e

apaixonada, e que aplicavam a filosofia básica aos problemas concretos do governo —

especialmente do governo britânico — de seu tempo. Os escritos mais importantes

desse tipo foram as "Cartas de Catão", uma série de artigos de jornal publicados no

começo dos anos 1720 em Londre pelos verdadeiros whigs John Trenchard e Thomas

Gordon. Embora Locke houvesse mencionado a pressão revolucionária, que poderia ser

devidamente exercida quando o governo se tornasse uma ameaça à liberdade, Trenchard

e Gordon notaram que o governo sempre tendia a destruir os direitos individuais. De

acordo com as "Cartas de Catão", a história humana é um registro do conflito

irreprimível entre o Poder e a Liberdade, estando o Poder (governo) sempre pronto para

aumentar seu escopo através da invasão dos direitos das pessoas e da usurpação de suas

liberdades. Assim, declarou Catão, o Poder deve ser mantido pequeno e sujeito a eterna

vigilância e hostilidade por parte do público, para que se assegure que ele se mantenha

dentro de seus estreitos limites:

Sabemos, através de infinitos Exemplos e da Experiência, que o Homem

investido de Poder, em vez de cedê-lo, fará qualquer coisa, até mesmo a pior

e mais sinistra, para mantê-lo; e jamais houve qualquer Homem sobre a

Terra que o houvesse abandonado enquanto pudesse fazer tudo de sua

própria Forma com ele. (...) Isto parece certo. O Bem do Mundo, ou de seu

Povo, jamais foi um de seus Motivos ter continuado no Poder, ou para

abdicar dele.

É da Natureza do Poder tornar-se cada vez mais abusivo e transformar todo

Poder extraordinário, concedido em Momentos particulares, e em Ocasiões

particulares, em um Poder ordinário, para ser usado a todos os Momentos, e

quando não há qualquer Ocasião, nem qualquer Vantagem em seu emprego.

(...)

Ora! O Poder usurpa diariamente a Liberdade, com Sucesso sempre

evidente; e o Equilíbrio entre eles está quase perdido. A Tirania absorveu

quase a totalidade da Terra, e, atacando as Raízes e Ramos da Humanidade,

torna o Mundo um Matadouro; e certamente continuará a destruir, até que

seja ele próprio destruído, ou, o que é mais provável, até que não haja nada

mais para se destruir.1

Esses avisos foram rapidamente absorvidos pelos colonos americanos, que

reimprimiram as "Cartas de Catão" muitas vezes pelas colônias até o tempo da

Revolução. Essa atitude determinada levou ao que o historiador Bernard Bailyn chamou

apropriadamente de o "libertarismo radical transformador" da Revolução Americana.

Pois a revolução não foi somente a primeira tentativa moderna de livrar-se do jugo do

imperialismo ocidental — naquele tempo, da maior potência do mundo. O que é mais

importante é que, pela primeira vez na história, os americanos cercaram seus novos

governos com numerosos limites e restrições, incorporados em constituições e,

particularmente, em cartas de direitos. A Igreja e o Estado eram rigorosamente

separados nos novos estados e a liberdade religiosa era considerada da maior

importância. As reminiscências do feudalismo foram eliminadas por todos os estados

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com a abolição dos privilégios feudais de vínculo e primogenitura. (No primeiro caso,

um ancestral morto é capaz de vincular terras a sua família para sempre, impedindo que

seus herdeiros vendam qualquer parte delas; no segundo, o governo exige que o único

herdeiro de propriedades seja o filho mais velho.)

Não era permitido que o novo governo federal, formado pelos Artigos da Confederação,

cobrasse quaisquer impostos do público; e qualquer extensão fundamental de seus

poderes requeria consentimento unânime de todos os governos estaduais. Acima de

tudo, o poder militar do governo nacional era limitado por barreiras e suspeitas; pois os

libertários do século XVIII compreendiam que a guerra, os exércitos permanentes e o

militarismo há muito tempo eram o método principal de engrandecimento do poder do

Estado.2

Bernard Bailyn resumiu da seguinte maneira a conquista dos revolucionários

americanos:

A modernização da política americana e do governo durante e após a

Revolução foi uma repentina e radical realização do programa que havia

sido estabelecido em primeiro lugar pela inteligentsia de oposição (...)

durante o reinado de George I. Onde a oposição inglesa, forçando seu

caminho por uma complacente ordem social e política, havia apenas sonhado

e ambicionado, os americanos, levados pelas mesmas aspirações, mas

vivendo em uma sociedade moderna de diversas maneiras, e agora libertados

politicamente, poderiam repentinamente agir. Onde a oposição inglesa havia

podido apenas agitar por reformas parciais (...) os americanos se moveram

de forma rápida e com poucas rupturas sociais para implementar

sistematicamente as mais extremas possibilidades de toda a gama de idéias

de liberação radicais.

Durante esse processo, eles (...) infundiram na cultura política americana

(...) os maiores temas do século XVIII que o libertarismo radical realizou

aqui. A crença de que o poder é mal, uma necessidade talvez, mas uma má

necessidade; que ele é infinitamente corruptível; e que ele deve ser

controlado, limitado, restrito de toda forma compatível com um mínimo de

ordem civil. Constituições escritas; a separação dos poderes; cartas de

direitos; limitações dos executivos, das legislaturas e das cortes; restrições

ao direito de coagir e iniciar guerras — tudo isso expressa uma profunda

descrença no poder que está no coração ideológico da Revolução Americana

e que permaneceu conosco como um legado permanente desde então.3

Assim, embora o pensamento liberal clássico tenha nascido na Inglaterra, ele alcançaria

seu desenvolvimento mais consistente e radical — e sua vida mais longa — na América.

Pois as colônias americanas estavam livres dos monopólios feudais das terras e das

castas aristocráticas que estavam entranhadas na Europa; na América, os governantes

eram oficiais britânicos coloniais e alguns poucos mercadores privilegiados, de quem

seria relativamente mais fácil de se livrar com a chegada da Revolução e com a

derrubada do governo britânico. O liberalismo clássico, portanto, teve maior suporte

popular e menos resistência institucional nas colônias americanas do que em casa. Além

do mais, estando geograficamente isolados, os rebeldes americanos não tinham que se

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preocupar com exércitos invasores de governos vizinhos contra-revolucionários, como,

por exemplo, ocorreu na França.

Após a Revolução

Dessa forma, a América, acima de todos os países, nasceu numa revolução

explicitamente libertária, uma revolução contra um império; contra a taxação, os

monopólios comerciais e as regulações; e contra o militarismo e o poder executivo. A

revolução resultou em governos com restrições nunca antes vistas aos próprios poderes.

Mas, embora houvesse pouca resistência institucional na América ao avanço do

liberalismo, começaram a surgir, desde o começo, poderosas forças elitistas,

especialmente entre os grandes mercadores e fazendeiros, que desejavam manter o

restritivo sistema "mercantilista" britânico de altos impostos, controles e privilégios

monopolísticos concedidos pelo governo. Esses grupos desejavam um forte governo

central, ou mesmo imperial; em resumo, eles queriam o sistema britânico sem a Grã-

Bretanha. Essas forças conservadoras e reacionárias primeiro surgiram durante a

Revolução e, mais tarde, formaram o Partido Federalista e a administração federalista

nos anos 1790.

Durante o século XIX, porém, o ímpeto libertário continuou. Os movimentos

jeffersoniano e jacksoniano, o Partido Democrático-Republicano e mais tarde o

Democrata, explicitamente ambicionavam a virtual eliminação do governo da vida

americana. Ele deveria ser um governo sem um exército ou uma marinha permanentes;

um governo sem dívidas, sem impostos federais diretos, sem impostos diretos sobre a

produção e virtualmente sem tarifas de importação — isto é, com níveis desprezíveis de

taxação e gastos; um governo que não empreendesse obras públicas ou melhorias

internas; um governo que não controlasse ou regulasse; um governo que deixasse a

moeda e o sistema bancário livres e sem inflação; em suma, nas palavras de H. L.

Mencken, "um governo que mal consiga ser mais que nenhum governo".

O movimento jeffersoniano rumo a virtualmente nenhum governo declinou depois que

Jefferson assumiu a presidência, primeiro com concessões aos federalistas

(possivelmente resultado de um acordo pelos votos federalistas para desfazer um

desempate no colégio eleitoral), e então com a compra inconstitucional do território da

Louisiana. Mas, particularmente, ele declinou com o avanço imperialista rumo à guerra

com a Grã-Bretanha no segundo mandato de Jefferson, um avanço que levou à guerra e

a um sistema unipartidário que estabeleceu virtualmente todo o programa estatista dos

federalistas: altos gastos militares, um banco central, tarifas protecionistas, impostos

federais diretos, obras públicas. Aterrorizado com os resultados, Jefferson aposentou-se

e retirou-se para Monticello,4 onde inspirou os jovens políticos Martin Van Buren e

Thomas Hart Benton a formar um novo partido — o Partido Democrata — que tomaria

de volta a América das mãos do novo federalismo e parar reviver o espírito do velho

programa jeffersoniano. Quando os dois líderes agarraram-se a Andrew Jackson como

seu salvador, o novo Partido Democrata havia nascido.

Os libertários jacksonianos tinham um plano: haveriam oito anos de presidência de

Andrew Jackson, seguidos de oito anos de Van Buren e então mais oito anos de Benton.

Depois de vinte e quatro anos de uma triunfante Democracia Jacksoniana, o ideal

menckeniano de virtual ausência de governo deveria ser alcançado. Não era um sonho

impossível, uma vez que estava claro que o Partido Democrata havia se tornado

rapidamente o partido majoritário no país. A massa de pessoas era alistada na causa

libertária. Jackson teve seus oito anos, que destruíram o banco central e a dívida

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pública, e Van Buren teve quatro, que separaram o governo federal do sistema bancário.

Mas a eleição de 1840 foi uma anomalia, já que Van Buren foi derrotado por uma

demagógica campanha sem precedentes, feita pelo primeiro grande líder de campanha

moderno, Thurlow Weed, que foi o precursor do emprego de todos os enfeites de

campanha com que estamos familiarizados hoje em dia — bordões pegajosos,

abotoaduras, músicas, paradas, etc. As táticas de Weed colocaram na presidência um

desconhecido e péssimo whig, o General William Henry Harrison, mas essa foi

claramente uma casualidade; em 1844, os Democratas estariam preparados para contra-

atacar com as mesmas táticas de campanha, e estavam destinados a reconquistar a

presidência naquele ano. Van Buren, é claro, deveria continuar a triunfante marcha

jacksoniana. Mas então um evento fatídico ocorreu: o Partido Democrata estava

dividido na questão crítica da escravidão, ou melhor, na questão da expansão da

escravidão em um novo território. A fácil renomeação de Van Buren afundou com uma

divisão nas fileiras da Democracia quanto à admissão na União da República do Texas

como um estado escravocrata; Van Buren se opunha, Jackson era a favor, e esta divisão

simbolizava o grande racha dentro do Partido Democrata. A escravidão, a grave falha

antilibertária no libertarismo do programa dos Democratas, surgiu para destruir o

partido e seu libertarismo completamente.

A Guerra Civil, em adição a seu derramamento de sangue e devastação sem

precedentes, foi usada pelo triunfante e virtualmente unipartidário regime republicano

para avançar seu programa estatista, anteriormente whig: poder governamental nacional,

tarifas protecionistas, subsídios a grandes negócios, papel-moeda inflacionário,

continuação do controle do governo federal sobre os bancos, obras públicas de larga

escala, altos impostos sobre a produção e, durante a guerra, o alistamento obrigatório e

um imposto de renda. Além disso, os estados vieram a perder seu direito de secessão e

outros poderes em relação aos do governo federal. O Partido Democrata deu

prosseguimento ao seu programa libertário após a guerra, mas agora ele teria uma

estrada muito maior e mais difícil para chegar à liberdade do que tinha antes.

Nós vimos como a América veio a ter a mais profunda tradição libertária, uma tradição

que sobrevive em grande parte de nossa retórica política e ainda se reflete na atitude

irritável e individualista em relação ao governo nutrida por boa parte do povo

americano. Há muito mais solo fértil neste país do que em qualquer outro para o

ressurgimento do libertarismo.

A resistência à liberdade

Podemos ver agora que o rápido crescimento do movimento libertário e do Partido

Libertário nos anos 1970 tem raízes no que Bernard Bailyn chamou de "legado

permanente" da Revolução Americana. Mas se este legado é tão vital para a tradição

americana, o que deu errado? Por que há a necessidade agora do nascimento de um

novo movimento libertário para reclamar o sonho americano?

Para começar a responder esta pergunta, devemos primeiramente lembrar que o

liberalismo clássico constituía uma ameaça profunda aos interesses políticos e

econômicos — às classes dominantes — que se beneficiavam da Velha Ordem: aos reis,

aos nobres, aos aristocratas feudais, aos mercadores privilegiados, à máquina militar, às

burocracias estatais. Apesar das três maiores revoluções violentas precipitadas pelos

liberais — a inglesa do século XVII e a americana e a francesa do XVIII —, as vitórias

na Europa foram apenas parciais. A resistência foi dura e conseguiu manter com sucesso

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os monopólios das terras e, por um tempo, o sufrágio restrito às elites ricas. Os liberais

tinham que se concentrar em aumentar o alcance do sufrágio, porque estava claro para

ambos os lados que os interesses econômicos e políticos da massa do povo estavam com

a liberdade individual. É interessante notar que, no começo do século XIX, as forças do

laissez-faire eram conhecidas como "liberais" e "radicais" (para os mais puros e

consistentes dentre eles), e os opositores que desejavam preservar ou retroceder à Velha

Ordem eram amplamente conhecidos como "conservadores".

De fato, o conservadorismo começou, no começo do século XIX, como uma tentativa

consciente de desfazer e destruir o odiado trabalho do novo espírito liberal clássico —

das revoluções Americana, Francesa e Industrial. Liderado por dois pensadores

franceses reacionários Bonald e De Maistre, o conservadorismo aspirava substituir os

direitos iguais e a igualdade perante a lei pelo domínio estruturado e hierárquico das

elites privilegiadas; a liberdade individual e o governo mínimo pelo governo absoluto e

o governo máximo; a liberdade religiosa pelo governo teocrático de uma igreja estatal; a

paz e o livre comércio pelo militarismo, por restrições mercantilistas e pela guerra para

benefício do Estado-nação; e a indústria e a manufatura pela velha ordem feudal e

agrária. E eles queriam substituir o novo mundo de consumo de massa e de padrões de

vida mais altos para todos pela Velha Ordem de subsistência para as massas e luxo e

consumo para a elite dominante.

Na metade e certamente no final do século XIX, os conservadores começaram a

perceber que sua causa estava inevitavelmente condenada caso eles continuassem a

clamar pela supressão da Revolução Industrial e de seu enorme aumento dos padrões de

vida para as massas e caso continuassem a se opor ao aumento do escopo do sufrágio,

dessa forma francamente se colocando em oposição aos interesses do público. Assim, a

"direita" (um rótulo baseado num acidente geográfico, pelo qual os porta-vozes da

Velha Ordem se sentaram à direita na Assembléia Nacional durante a Revolução

Francesa) decidiu mudar seu tom e atualizar seu credo estatista abandonando a oposição

aberta ao industrialismo e ao sufrágio democrático. Os novos conservadores

substituíram o franco ódio e desprezo pela massa do público do velho conservadorismo

por uma duplicidade e demagogia. Os novos conservadores galanteavam as massas com

o seguinte discurso: "Nós também favorecemos o industrialismo e padrões mais altos de

vida. Mas, para alcançarmos esses objetivos, nós precisamos regular a indústria pelo

bem comum; nós precisamos substituir a competição voraz do mercado livre e

competitivo pela cooperação organizada; e, acima de tudo, nós precisamos substituir os

princípios liberais de paz e livre comércio por medidas que exaltam a nação: a guerra, o

protecionismo, o império e as façanhas militares." Para todas essas mudanças, é claro,

um Estado inchado, em lugar de um governo mínimo, era necessário.

Dessa maneira, no final do século XIX, o estatismo e o Estado inchado retornaram, mas

desta vez com uma cara pró-industrial e pró-bem-estar geral. A velha Ordem havia

retornado, porém os beneficiários dela mudaram um pouco; não eram mais tanto a

nobreza, os senhores de terras feudais, o exército, a burocracia e os mercadores

privilegiados — agora eram o exército, a burocracia, os enfraquecidos senhores de

terras feudais e especialmente os industriais privilegiados. Liderada por Bismarck na

Prússia, a Nova Direita defendia um coletivismo direitista baseado na guerra, no

militarismo, no protecionismo e na cartelização compulsória de empresas e indústrias

— uma rede gigantesca de controles, regulações, subsídios e privilégios que moldaram

a grande aliança entre o Estado e certos elementos favorecidos dos grandes negócios e

indústrias.

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Algo também deveria ser feito a respeito do novo fenômeno de trabalhadores

assalariados industriais — o "proletariado". Durante o século XVIII e o começo do XIX

— de fato, até mesmo o final do século XIX —, a massa de trabalhadores era a favor do

laissez-faire e considerava o mercado livremente competitivo como o melhor para seus

salários, para suas condições de trabalho e para permitir o acesso a uma gama maior de

bens de consumo. Até mesmo os primeiros sindicatos trabalhistas eram firmes

defensores do laissez-faire. Os novos conservadores, encabeçados por Bismarck na

Alemanha e Disraeli na Grã-Bretanha, enfraqueceram o ímpeto libertário dos

trabalhadores, derramando lágrimas de crocodilo sobre as condições de trabalho dos

trabalhadores industriais e cartelizando e regulando a indústria, não por acidente

impedindo uma competição eficiente. Finalmente, no começo do século XX, o novo

"Estado corporativista" conservador — o sistema político prevalente então e hoje em dia

— incorporou os sindicatos trabalhistas "responsáveis" como parceiros do governo e

dos grandes negócios privilegiados num novo sistema estatista e corporativista de

tomada de decisões.

Para estabelecer este novo sistema, para criar uma Nova Ordem que fosse uma versão

modernizada e maquiada do ancién régime de antes das revoluções Americana e

Francesa, as novas elites dominantes tiveram que que executar um gigantesco trabalho

de enganação do público, um trabalho que continua até hoje. Embora a existência de

todo governo, desde a monarquia absoluta até a ditadura militar, repouse sobre o

consentimento da maioria da população, um governo democrático deve trabalhar esse

consentimento de maneira mais imediata, diária. Para fazer isso, as novas elites

dominantes conservadoras tiveram que fraudar o público de várias formas cruciais e

fundamentais. Pois as massas agora tiveram que ser convencidas de que a tirania é

melhor que a liberdade, de que um feudalismo industrial é melhor para os consumidores

que um mercado livremente competitivo, de que uma cartelização monopolística

deveria ser imposta em nome do antimonopolismo, e de que a guerra e o militarismo,

que serviam aos interesses das elites dominantes, na verdade eram dos interesses do

conscrito, taxado e freqüentemente massacrado público. Como isso podia ser feito?

Em todas as sociedades, a opinião pública é determinada pelas classes intelectuais, os

formadores de opinão da sociedade. Pois a maior parte das pessoas não dá origem nem

dissemina idéias e conceitos; pelo contrário, elas tendem a adotar essas idéias

propagadas pelas classes intelectuais profissionais, pelos negociantes profissionais de

idéias. Ao longo da história, como veremos mais adiante, os déspotas e as elites

dominantes dos Estados têm tido muito maior necessidade dos serviços dos intelectuais

que os cidadãos pacíficos de uma sociedade livre. Pois os Estados sempre precisaram

dos intelectuais formadores de opinião para levar o público a acreditar que seu domínio

é sábio, bom e inevitável; a acreditar que o "imperador está vestido". Até o mundo

moderno, esses intelectuais eram inevitavelmente clérigos (ou curandeiros), os

guardiões da religião. Era uma aliança confortável, esta antiga aliança entre a Igreja e o

Estado; a Igreja informava seus fiéis enganados de que o rei governava por comando

divino e que, portanto, deveria ser obedecido; em troca, o rei direcionava grandes

receitas de impostos para os cofres da Igreja. Daí a grande importância para os liberais

clássicos da separação da Igreja e do Estado. O novo mundo liberal era um mundo no

qual os intelectuais poderiam ser seculares — poderiam sustentar-se com as próprias

pernas, no mercado, longe da subvenção estatal.

Page 10: Por uma Nova Liberdade - O Manifesto Libertário - Murray N. Rothbard (Incompleto)

Para estabelecer sua nova ordem estatista, seu Estado corporativista neomercantilista, os

novos conservadores precisavam fomentar uma nova aliança entre os intelectuais e o

Estado. Numa era cada vez mais secular, isso significava uma aliança com intelectuais

seculares, não com divinos: isto é, com uma classe de professores, doutores,

historiadores, economistas tecnocratas, trabalhadores sociais, sociólogos, médicos e

engenheiros. Esta nova aliança surgiu em duas partes. No começo do século XIX, os

conservadores, concedendo a razão a seus inimigos liberais, dependiam fortemente das

alegadas virtudes da irracionalidade, do romantismo, da tradição, da teocracia. Na

segunda metade do século XIX, o novo conservadorismo veio a abraçar a razão e a

"ciência". Agora era a ciência que supostamente requeria o controle da economia e da

sociedade por "especialistas" tecnocratas. Em troca da disseminação dessa mensagem

para o público, a nova classe de intelectuais foi premiada com empregos e prestígio,

como apologistas da Nova Ordem e planejadores e reguladores da nova sociedade

cartelizada.

Para assegurar a predominância do novo estatismo junto à opinião pública, para

assegurar que o consentimento do público seria conseguido, os governos do mundo

ocidental, no final do século XIX e no começo do XX, moveram-se para tomar o

controle da educação, das mentes dos homens: das universidades e da educação geral,

através de leis de freqüência obrigatória e da rede de escolas públicas. As escolas

públicas eram conscientemente usadas para inculcar obediência ao Estado e outras

virtudes cívicas entre os jovens alunos. Além disso, esta estatização da educação

assegurava que os maiores interessados na expansão do estatismo seriam os professores

e educadores profissionais dos países.

Uma das formas pelas quais os novos intelectuais estatistas faziam seu trabalho era

através da mudança dos significados de velhos rótulos, para que assim pudessem

manipular nas mentes das pessoas as conotações emocionais vinculadas a eles. Por

exemplo, os libertários pró-laissez-faire eram conhecidos há muito tempo como

"liberais", e os mais puros e militantes entre eles como "radicais"; eles também eram

conhecidos como "progressistas", porque eram aqueles que estavam em sintonia com o

progresso industrial, com o avanço da liberdade e com o aumento dos padrões de vida

dos consumidores. A nova classe de acadêmicos e intelectuais estatistas se apropriou

das palavras "liberal" e "progressista" e teve sucesso em rotular seus oponentes pró-

laissez-faire com a acusação de serem atrasados, "neandertais" e "reacionários". Até

mesmo o nome "conservador" foi jogado sobre os liberais clássicos. E, como já vimos,

os novos estatistas foram capazes também de se apropriar do conceito de "razão".

Se os liberais laissez-faire ficaram confusos com a nova recrudescência do estatismo e

do mercantilismo na forma do estatismo corporativista "progressista", outra razão para o

declínio do liberalismo clássico no fim do século XIX foi o crescimento de um peculiar

novo movimento: o socialismo. O socialismo se iniciou nos anos 1830 e se expandiu

grandemente após os anos 1880. A peculiaridade do socialismo era a de que ele era um

movimento confuso, híbrido, influenciado por ambas as ideologias polares

preexistentes, o liberalismo e o conservadorismo. Dos liberais clássicos os socialistas

adotaram uma franca aceitação do industrialismo e da Revolução Industrial, a

glorificação inicial da "ciência" e da "razão", e pelo menos uma devoção retórica aos

ideais liberais clássicos de paz, liberdade individual e padrões mais altos de vida. De

fato, os socialistas, muito antes dos posteriores corporativistas, foram pioneiros na

cooptação da ciência, da razão e do industrialismo. E os socialistas não apenas adotaram

a adesão à democracia dos liberais clássicos como também começaram a clamar por

Page 11: Por uma Nova Liberdade - O Manifesto Libertário - Murray N. Rothbard (Incompleto)

uma "expansão da democracia", que permitisse que "o povo" controlasse a economia —

e que os indivíduos controlassem uns os outros.

Por outro lado, dos conservadores os socialistas adotaram uma devoção à coerção e aos

meios estatistas para atingir esses fins liberais. A harmonia industrial e o crescimento

seriam alcançados pelo crescimento do Estado e sua transformação numa instituição

toda-poderosa, que controlasse a economia e a sociedade em nome da "ciência". Uma

vanguarda de tecnocratas assumiria o controle de todas as pessoas e propriedades em

nome do "povo" e da "democracia". Não contentes com a conquista liberal da razão e da

liberdade de pesquisa científica, o Estado socialista instauraria o controle dos cientistas

sobre todos os outros; não contentes com a liberação dos trabalhadores conseguida

pelos liberais para que eles alcançassem uma prosperidade jamais vista, o Estado

socialista instauraria o controle dos trabalhadores sobre todos os outros — ou melhor, o

controle dos políticos, burocratas e tecnocratas em nome dos trabalhadores. Não

contentes com o credo liberal da igualdade de direitos, da igualdade perante a lei, o

Estado socialista o esmagaria em favor do monstruoso e impossível objetivo da

igualdade ou uniformidade de resultados — ou melhor, erigiria uma nova elite

privilegiada, uma nova classe, em nome dessa impossível igualdade.

O socialismo era um movimento híbrido e confuso porque tentava alcançar os fins

liberais de liberdade, paz, harmonia industrial e crescimento — fins que só podem ser

alcançados através da liberdade e da separação do governo de virtualmente tudo — pela

imposição dos velhos meios conservadores de estatismo, coletivismo e privilégios

hierárquicos. Ele foi um movimento que só poderia fracassar, e que de fato fracassou

miseravelmente nos vários países onde alcançou o poder no século XX, levando as

massas a despotismos sem precedentes, à pobreza e à fome.

Mas a pior parte do crescimento do movimento socialista foi o fato de ele ter sido capaz

de substituir os liberais clássicos na "esquerda": isto é, como o partido da esperança, do

radicalismo, da revolução no mundo ocidental. Pois, uma vez que os defensores do

ancien régime se sentavam à direita da Assembléia durante a Revolução Francesa, os

liberais e radicais se sentavam à esquerda; daí até a emergência do socialismo, os

liberais clássicos eram a "esquerda", e até mesmo a "extrema esquerda", do espectro

ideológico. Ainda em 1848, liberais franceses como Frédéric Bastiat se sentavam à

esquerda na Assembléia Nacional. Os liberais clássicos haviam começado como o

partido radical, revolucionário, do ocidente, como o partido da esperança e da mudança

em favor da liberdade, da paz e do progresso. Permitir que eles fossem substituídos, que

os socialistas pudessem posar como o "partido da esquerda" foi um grande erro

estratégico que fez com que os liberais fossem colocados falsamente numa confusa

posição de "centro", com o socialismo e o conservadorismo como pólos opostos. Uma

vez que o libertarismo não é nada senão o partido da mudança e do progresso rumo à

liberdade, o abandono daquele papel significou o abandono de sua razão de ser — seja

na realidade, seja nas mentes das pessoas.

Porém, nada disso teria acontecido se os liberais clássicos não tivessem permitido que

ocorresse essa decadência interna. Eles podiam ter notado — como alguns de fato o

fizeram — que o socialismo era um movimento confuso, autocontraditório,

semiconservador, que era a monarquia absoluta e o feudalismo com uma nova cara, e

que eles próprios eram os únicos radicais verdadeiros, que insistiam na completa vitória

do ideal libertário.

Page 12: Por uma Nova Liberdade - O Manifesto Libertário - Murray N. Rothbard (Incompleto)

A decadência interna

Mas depois de alcançarem impressionantes vitórias parciais contra o estatismo, os

liberais clássicos começaram a perder o próprio radicalismo, a teimosa insistência em

lutar contra o estatismo conservador até a vitória final. Em vez de usar as vitórias

parciais como suporte para uma pressão cada vez mais ferrenha, os liberais clássicos

começaram a perder seu fervor pela mudança e pela pureza de princípios. Eles passaram

a se contentar em salvaguardar as vitórias conquistadas, transformando-se dessa

maneira de um movimento radical em um movimento conservador — "conservador" no

sentido de que se satisfaziam com a preservação do status quo. Em suma, os liberais

deixaram o lugar vago para que os socialistas se transformassem no partido da

esperança e do radicalismo, e até mesmo para que os posteriores corporativistas

posassem de "liberais" e "progressistas" contra os "extremistas de direita" e

"conservadores" liberais clássicos, já que estes se permitiram ser jogados numa posição

de esperar por pouco mais que a inatividade, que a ausência de mudanças. Tal estratégia

é tola e insustentável num mundo em constante mutação.

Mas a degeneração do liberalismo não se deveu somente à estratégia e à alteração de

sua posição no espectro ideológico, mas também aos princípios. Porque os liberais se

satisfizeram em deixar o poder de guerra, a educação, o controle sobre a moeda, o

sistema bancário, as ruas e as estradas nas mãos do Estado — ou seja, concederam ao

Estado o domínio sobre todas as alavancas de poder fundamentais da sociedade. Em

contraste com a hostilidade total ao executivo e à burocracia nutrida pelos liberais do

século XVIII, os liberais do século XIX toleravam e até apoiavam o fortalecimento do

poder executivo e da enraizada burocracia de funcionários públicos.

Além disso, os princípios e a estratégia se juntaram no declínio da antiga devoção

liberal ao "abolicionismo" — a crença de que, seja a escravidão, seja qualquer outro

aspecto do estatismo, ele deve ser abolido o mais rápido possível, uma vez que a

imediata eliminação do estatismo, embora improvável na prática, deve ser buscada

como a única posição moral possível. Pois preferir uma diminuição gradual em vez de

uma abolição imediata de uma instituição má e coercitiva significa ratificar e sacionar

esse mal, violando assim os princípios libertários. Como explicou o grande abolicionista

anti-escravagista e libertário William Lloyd Garrison: "Insistemos numa abolição

imediata o tanto quanto pudermos e, diabos!, no fim ela será uma abolição gradual. Nós

nunca dissemos que a escravidão seria derrubada com um único golpe; que ela deve ser,

nós sempre defenderemos."5

Ocorreram duas mudanças críticas na filosofia e ideologia do liberalismo clássico que

exemplificaram e contribuíram para seu declínio como uma força viva, progressista e

radical do mundo ocidental. A primeira e mais importante, tendo ocorrido a partir do

começo até o final do século XIX, foi o abandono da filosofia dos direitos naturais e sua

substituição pelo tecnocrático utilitarismo. Em vez de a liberdade ser fundamentada no

imperativo moral de que todo indivíduo tem direito a sua pessoa e propriedade, isto é,

em vez de a liberdade ser baseada primariamente na justiça e no que é certo, o

utilitarismo via a liberdade como o melhor modo, em geral, de alcançar um bem-estar

geral e um bem comum vagamente definidos. Houve duas conseqüências graves

oriundas desta mudança dos direitos naturais para o utilitarismo. Primeiro, a pureza do

objetivo e a consistência dos princípios foram inevitavelmente abaladas. Ao passo que,

por um lado, o libertário defensor dos direitos naturais, buscando a moralidade e a

justiça, se agarra militantemente a princípios puros, o utilitarista só valoriza a liberdade

Page 13: Por uma Nova Liberdade - O Manifesto Libertário - Murray N. Rothbard (Incompleto)

como uma conveniência ad hoc. E como a conveniência pode e de fato muda de acordo

com os ares, é fácil para o utilitarista, em seu frio cálculo de custos e benefícios, passar

a defender o estatismo com argumentos ad hoc aplicados caso a caso, abandonando

assim os princípios. De fato, isso foi precisamente o que ocorreu com os utilitaristas

benthamistas na Inglaterra: começando com um libertarismo e um laissez-faire ad hoc,

eles acharam fácil deslizar cada vez mais para dentro do estatismo. Um exemplo foi a

campanha pela "eficiência", e, portanto, pelo fortalecimento, dos serviços públicos e do

poder executivo, uma eficiência que teve precedência sobre qualquer conceito de

justiça, vindo até a substituí-la.

Segundo, e igualmente importante, é absurdamente raro encontrar um utilitarista que

seja também um radical, que anseie por uma abolição imediata do mal e da coerção.

Utilitaristas, com sua devoção à conveniência, quase que inevitavelmente se opõem a

qualquer forma de distúrbio ou mudança radical. Jamais existiram revolucionários

utilitaristas. Logo, os utilitaristas nunca são abolicionistas imediatistas. O abolicionista

só o é porque deseja eliminar o mal e a injustiça o mais rápido possível. Ao escolher seu

objetivo, não há espaço para uma avaliação fria, ad hoc, de custos e benefícios. Sendo

assim, os liberais clássicos utilitaristas abandonaram o radicalismo e se tornaram meros

reformadores gradualistas. Mas ao se tornarem reformadores, eles também se colocaram

numa posição de conselheiros e especialistas em eficiência a serviço do Estado. Em

outras palavras, eles inevitavelmente vieram a abandonar não só o princípio libertário,

como também uma estratégia libertária consistente. Os utilitaristas acabaram sendo

meros apologistas da ordem existente, do status quo, e portanto estavam abertos às

acusações dos socialistas e corporativistas progressistas de que eles tinham curta visão e

de que eram somente oponentes conservadores de toda e qualquer mudança. Assim,

começando como radicais e revolucionários, como opostos extremos dos conservadores,

os liberais clássicos terminaram como a imagem do que combatiam.

Este enfraquecimento utilitário do libertarismo ainda persiste. Quando o pensamento

econômico dava os primeiros passos, o utilitarismo seduziu os economistas de livre-

mercado, através da influência de Bentham e Ricardo, e esta influência está mais viva

hoje do que nunca. A atual economia de livre-mercado está permeada de apelos em prol

do gradualismo, com desprezo pela ética, pela justiça e pelos princípios, e com um

desejo de abandonar os princípios do livre-mercado após a primeira análise de custos e

benefícios. Dessa forma, a economia de livre-mercado é geralmente vislumbrada pelos

intelectuais como uma mera apologia de um status quo ligeiramente modificado, e

freqüentemente essas acusações são corretas.

A segunda mudança fatal na ideologia dos liberais clássicos ocorreu durante a segunda

metade do século XIX, quando, pelo menos por algumas décadas, eles adotaram as

doutrinas do evolucionismo social, freqüentemente chamado de "darwinismo social".

Em geral, historiadores estatistas têm pintado darwinistas sociais liberais como Herbert

Spencer e William Graham Sumner como cruéis defensores do extermínio, ou pelo

menos do desaparecimento, dos "menos aptos" socialmente. Boa parte disso era

simplesmente a maquiagem das doutrinas econômicas e sociológicas de livre-mercado

nos termos evolucionistas que então estavam em voga. Mas o aspecto realmente

importante e prejudicial do darwinismo social era a transposição ilegítima para a esfera

social da visão de que as espécies (ou, mais tarde, os genes) se modificam muito, muito

lentamente, depois de milênios. Os liberais darwinistas sociais vieram então a

abandonar a própria idéia de revolução ou mudanças radicais em favor de uma atitude

indolente, de aguardo das pequenas mudanças evolucionárias através das eras. Em

Page 14: Por uma Nova Liberdade - O Manifesto Libertário - Murray N. Rothbard (Incompleto)

resumo, ignorando o fato de que o liberalismo havia tido que destruir o poder das elites

dominantes com uma série de mudanças radicais e revoluções, os darwinistas sociais se

tornaram conservadores, opondo-se a quaisquer medidas radicais e favorecendo apenas

as menores das mudanças graduais.6

De fato, o grande libertário Spencer é ele próprio uma ilustração fascinante dessa

mudança no liberalismo clássico (e seu caso é semelhante ao do americano William

Graham Sumner). Em certo sentido, Herbert Spencer incorpora em si muito do declínio

do liberalismo no século XIX. Pois Spencer começou como um liberal magnificamente

radical, virtualmente um libertário puro. Mas, ao passo que o vírus da sociologia e do

darwinismo social tomavam sua alma, Spencer abandonou o libertarismo como um

movimento histórico dinâmico e radical, sem contudo abandoná-lo na teoria pura.

Embora aguardasse uma eventual vitória da liberdade pura, do "contrato" contra o

"status", da indústria contra o militarismo, Spencer passou a considerar essa vitória

inevitável, mas apenas após milênios de gradual evolução. Assim, Spencer abandonou o

liberalismo como um credo combativo e radical e confinou seu liberalismo, na prática, a

ações de retaguarda enfadonhas, conservadoras, contra o crescimento do coletivismo e

do estatismo de seu tempo.

Porém, se o utilitarismo, apoiado pelo darwinismo social, era o principal agente do

declínio filosófico e ideológico do movimento liberal, a razão única mais importante,

até desastrosa, para sua destruição foi seu abandono dos previamente rígidos princípios

anti-guerra, anti-império e anti-militaristas. País a país, foi a melodia sedutora do

Estado-nação e do império que destruiu o liberalismo clássico. Na Inglaterra, os liberais,

no final do século XIX e no começo do XX, abandonaram a posição anti-guerras e anti-

imperialista, o "Little Englandism"7 de Cobden, Bright e da Escola de Manchester. Em

seu lugar, eles adotaram uma obscenidade intitulada "imperialismo liberal" — juntando-

se aos conservadores na expansão do império, e aos conservadores e socialistas de

direita no imperialismo e coletivismo destrutivos da Primeira Guerra Mundial. Na

Alemanha, Bismarck foi capaz de dividir os anteriormente quase triunfantes liberais ao

empreender a sedutora unificação da Alemanha a ferro e fogo. Em ambos os países, o

resultado foi a destruição da causa liberal.

Nos Estados Unidos, o partido liberal clássico há muito tempo era o Partido Democrata,

conhecido na segunda metade do século XIX como "o partido da liberdade pessoal".

Basicamente, ele era não só o partido da liberdade pessoal, mas também da liberdade

econômica; o resoluto oponente da Proibição, das blue laws8 e da educação

compulsória; o devotado defensor do livre comércio, do hard money (ausência de

inflação governamental), da separação do sistema bancário do Estado e do absoluto

mínimo governo. Ele tentava minimizar a níveis desprezíveis a influência dos governos

estaduais e o poder do governo federal a virtualmente zero. Nas questões externas, o

Partido Democrata, embora menos rigorosamente, tendia a ser o partido da paz, do

antimilitarismo e do antiimperialismo. Mas o libertarismo pessoal e econômico foram

ambos abandonados com a tomada do Partido Democrata por Bryan e seus aliados em

1896, e a política externa de não-intervenção foi então rudemente abandonada por

Woodrow Wilson duas décadas mais tarde. Foi uma intervenção e uma guerra que

deram início a um século de morte e devastação, de guerras e despotismos, e também

um século em todos os países beligerantes do novo estatismo corporativista — de um

welfare-warfare State9 liderado por uma aliança entre o governo, os grandes negócios,

os sindicatos e os intelectuais — que mencionamos anteriormente.

Page 15: Por uma Nova Liberdade - O Manifesto Libertário - Murray N. Rothbard (Incompleto)

O último suspiro do antigo liberalismo laissez-faire na América foi dado por corajosos e

quase idosos libertários que se uniram para formar a Anti-Imperialist League na virada

do século, para combater a guerra americana contra os espanhóis e a subseqüente guerra

imperialista americana para esmagar os filipinos que tentavam conquistar a

independência tanto da Espanha quanto dos Estados Unidos. Aos olhos atuais, a idéia de

um antiimperialista que não seja marxista pode parecer estranha, mas a oposição ao

imperialismo se iniciou com liberais como Cobden e Bright na Inglaterra e Eugen

Richter na Prússia. Na verdade, a Anti-Imperialist League, liderada pelo economista e

industrial de Boston Edwad Atkinson (e que incluía Sumner) consistia em sua maior

parte de liberais radicais que haviam lutado o bom combate pela abolição da escravatura

e que, então, defenderam o livre comércio, o hard money e o governo mínimo. Para

eles, a batalha final contra o novo imperialismo americano era simplesmente uma parte

da luta de suas vidas inteiras contra a coerção, o estatismo e a injustiça — contra a

extensão do governo sobre todas as áreas da vida, tanto no plano doméstico quanto no

estrangeiro.

Nós traçamos a história um tanto sinistra do declínio e da queda do liberalismo clássico

após o seu crescimento e triunfo parcial nos séculos anteriores. Qual, então, é a razão do

ressurgimento e do florescimento do pensamento e das atividades libertárias nos últimos

anos, particularmente nos Estados Unidos? Como as incríveis forças e coalizões em prol

do estatismo puderam ceder tanto a um movimento libertário ressuscitado? Não deveria

a continuada marcha do estatismo no final do século XIX e no século XX causar

pessimismo em vez de abrir as portas para um ressurgimento de um libertarismo

aparentemente moribundo? Por que o libertarismo não permaneceu morto e enterrado?

Nós vimos por que o libertarismo poderia naturalmente nascer e se desenvolver

primeiro nos Estados Unidos, uma terra impregnada de tradição libertária. Mas nós

ainda não examinamos a questão: Por que aconteceu renascimento do libertarismo nos

últimos anos? Que condições contemporâneas levaram a este desenvolvimento

surpreendente? Devemos adiar a resposta desta questão até o final do livro, até que

examinemos primeiro o que é o credo libertário e como esse credo pode ser aplicado

para resolver os principais problemas de nossa sociedade.

Notas:

1 Veja Murray N. Rothbard, Conceived in Liberty, vol. 2, "Salutary Neglect": The

American Colonies in the First Half of the 18th Century (New Rochelle, N.Y.:

Arlington House, 1975), p. 194. Confira também John Trenchard e Thomas Gordon,

Cato's Letters, em D. L. Jacobson, ed. The English Libertarian Heritage (Indianápolis:

Bobbs-Merrill Co. 1965).

2 Para o impacto libertário radical da Revolução na América, veja Robert A. Nisbet, The

Social Impact of the Revolution (Washington, D.C.: American Enterprise Institute for

the Public Policy Research, 1974). Para o impacto na Europa, veja o importante

trabalho de Robert R. Palmer, The Age of the Democratic Revolution, vol. I (Princeton,

N.J.: Princeton University Press, 1959).

Page 16: Por uma Nova Liberdade - O Manifesto Libertário - Murray N. Rothbard (Incompleto)

3 Bernard Bailyn, "The Central Themes of the American Revolution: An Interpretation",

in: S. Kurtz e J. Hutson, eds. Essays on the American Revolution (Chapel Hill, NC.:

University of North Carolina Press, 1973), pp. 26-28.

4 Monticello é o nome da casa de Thomas Jefferson, localizada próximo a

Charlottesville, na Virginia. [N.T.]

5 Citado em William H. Pease e Jane H. Pease, eds., The Antislavery Argument

(Indianápolis: Bobbs-Merrill Co., 1965), p. xxxv.

6 Ironicamente, porém, a moderna teoria evolucionária está abandonando

completamente a teoria das mudanças evolucionárias graduais. Em vez disso, agora se

percebe que uma explicação mais exata da evolução é a de agudos e repentinos saltos de

uma espécie estática de equilíbrio para outra; isto está sendo chamado de teoria do

"equilíbrio pontuado". Como um dos expositores desta nova visão, o Professor Stephen

Jay Gould escreve: "O gradualismo é uma filosofia de mudança, não uma indução da

natureza. (...) O gradualismo também tem fortes componentes ideológicos mais

responsáveis por seu prévio sucesso do que qualquer similaridade objetiva com a

natureza externa.

"(...) A utilidade do gradualismo como uma ideologia deve explicar muito de sua

influência, pois ele se tornou o dogma quintessencial do liberalismo contra as mudanças

radicais — mudanças radicais vão contra as leis da natureza." Stephen Jay Gould,

"Evolution: Explosion, Not Ascent", New York Times (22 de janeiro de 1978).

7 "Pequeno Inglaterrismo", isto é, a posição de que a Inglaterra não deveria embarcar em

aventuras expansionistas. [N.T.]

8 A Proibição foi o período dos anos 1920 em que vigorou a Lei Seca nos Estados

Unidos. As blue laws são leis que obrigam o cumprimento de certos padrões morais,

principalmente a observância do domingo como dia de descanso. [N.T.]

9 Isto é, da combinação de um Estado de bem-estar com um Estado beligerante. [N.T.]

2. Propriedade e troca

O credo libertário se baseia em um axioma central: o de que nenhum homem ou grupo

de homens pode agredir a pessoa ou a propriedade de outro homem. Isto pode ser

chamado de “axioma da não-agressão”. A “agressão” é definida como a iniciação ou a

ameaça do uso de violência física contra a pessoa ou a propriedade de alguém. Agressão

é, portanto, sinônimo de invasão.

Se nenhum homem pode agredir outro homem, ou seja, se todos têm o absoluto direito

de estar “livres” de agressões, isso significa que o libertário defende firmemente as

chamadas “liberdades civis”: a liberdade de se expressar, de publicar, de se associar e de

executar quaisquer “crimes sem vítimas”, como o uso ou a compra de pornografia, os

Page 17: Por uma Nova Liberdade - O Manifesto Libertário - Murray N. Rothbard (Incompleto)

desvios sexuais e a prostituição (os quais, na verdade, nem mesmo são considerados

“crimes” pelo libertário, já que ele define o “crime” como a invasão violenta da vida ou

propriedade de alguém). Além disso, ele considera o alistamento militar obrigatório

como equivalente à escravidão em grande escala. E, uma vez que a guerra,

principalmente a guerra moderna, implica o massacre em massa de civis, o libertário

considera tais conflitos o mesmo que assassinatos em massa e, portanto, totalmente

ilegítimos.

Todas estas posições são consideradas “esquerdistas” no espectro ideológico

contemporâneo. Por outro lado, uma vez que o libertário também se opõe à invasão dos

direitos de propriedade privada, isso significa que ele, da mesma forma, se opõe a

interferência do governo nos direitos de propriedade ou na economia de livre mercado

através de controles, regulações, subsídios ou proibições. Pois se todos têm direito a ter

sua propriedade livre de depredações agressivas, então todo indivíduo também tem o

direito de transferir sua propriedade (doação e herança) e de trocá-la pela propriedade

dos outros (livre contrato e economia de livre mercado) sem qualquer interferência. O

libertário defende o direito irrestrito à propriedade privada e à livre troca; ou seja, ele

defende o sistema do “capitalismo laissez-faire”.

Na terminologia atual, a posição libertária em relação à propriedade e à economia seria

considerada de “extrema direita”. Mas o libertário não vê qualquer inconsistência em

ser “esquerdista” em algumas questões e “direitista” em outras. Pelo contrário, ele

considera a própria posição virtualmente como a única consistente – consistente com a

liberdade de cada indivíduo. Como pode o esquerdista se opor à violência da guerra e ao

alistamento militar obrigatório enquanto dá suporte à violência da taxação e dos

controles governamentais? E como pode o direitista trombetear sua devoção à

propriedade privada e à livre empresa enquanto apóia guerras, o alistamento obrigatório

e a proibição de atividades não-invasivas que ele considera imorais? Como pode o

direitista defender o livre mercado se não vê nada de errado nos enormes subsídios,

distorções e ineficiências envolvidas do complexo industrial-militar?

Opondo-se a qualquer tipo de agressão de um indivíduo ou grupo de indivíduos contra

os direitos à vida e propriedade, o libertário percebe que, ao longo da historia e até os

dias presentes, tem existido um agressor central, dominante e primordial desses direitos:

o Estado. Ao contrário de todos os outros pensadores, sejam de esquerda, de direita ou

de centro, o libertário se recusa a dar ao Estado a sanção moral para cometer ações que

quase todos concordam que seriam imorais, ilegais, e criminosas caso fossem praticadas

por qualquer pessoa ou grupo na sociedade. O libertário, em suma, insiste na aplicação

dos princípios morais de justiça a todos e não abre exceções especiais a qualquer pessoa

ou grupo de pessoas. Se nós observarmos o Estado despido, por assim dizer, nós

percebemos que é universalmente aceito e que ele é até incentivado a praticar atos que

até não-libertários consideram ser crimes condenáveis. O Estado freqüentemente comete

assassinatos em massa, que ele chama de “guerras”, ou, às vezes, de “supressão da

subversão”; o Estado pratica a escravidão através das suas forças armadas, e a chama de

“alistamento militar obrigatório”; sua existência se deve à pratica do roubo que ele

chama de “taxação”. O libertário insiste que mesmo que estas práticas sejam apoiadas

pela maioria da população, isso é irrelevante para suas naturezas: independentemente da

aceitação popular, a guerra é assassinato em massa, serviço militar obrigatório é

escravidão e a taxação é roubo. Resumindo, o libertário é quase como a criança da

fábula, que aponta insistentemente que o rei está nu.

Page 18: Por uma Nova Liberdade - O Manifesto Libertário - Murray N. Rothbard (Incompleto)

Ao longo dos tempos, o rei teve uma série de pseudo-roupas feitas para ele pela casta de

intelectuais das nações. Nos últimos séculos, os intelectuais disseram ao público que o

Estado ou seus chefes tinham origem divina ou que, ao menos, estavam investidos de

autoridade divina. Assim, o que poderia parecer aos olhos ingênuos e destreinados

despotismo, assassinato em massa e roubo em larga escala se tratava apenas do divino

exercendo seus desígnios benignos e misteriosos através do corpo político. Em décadas

recentes, com o desgaste da sanção divina, os “intelectuais da corte” do rei se

sofisticaram em sua apologia: informaram o público de que o que o governo faz visa o

“bem comum” e o “bem-estar público”, de que a taxação e os gastos do governo estão

sujeitos a um misterioso processo “multiplicador” que mantém a economia em

equilíbrio, e de que, de qualquer forma, uma grande variedade de “serviços”

governamentais nunca poderia ser provida por cidadãos agindo voluntariamente no

mercado ou na sociedade. O libertário nega tudo isso: ele considera essas várias

apologias como formas fraudulentas de se obter suporte do público para o domínio

estatal, e insiste que quaisquer serviços que o governo de fato provê poderiam ser

fornecidos muito mais eficientemente e moralmente por empresas e cooperativas

privadas.

O libertário, por essa razão, considera como uma de suas principais tarefas educacionais

a de propagar a desmistificação e dessacralização do Estado entre seus infelizes súditos.

Sua tarefa é demonstrar repetidamente que não só o rei, mas também o Estado

“democrático” está nu, que todos os governos continuam a existir através da exploração

do público, e que essa exploração vai de encontro às necessidades reais. Ele se esforça

para mostrar que a própria existência da taxação e do Estado necessariamente cria uma

divisão de classes entre os governantes exploradores e os governados explorados. Ele

busca mostrar que a tarefa dos intelectuais da corte, que sempre apoiaram o Estado,

sempre foi a de construir uma nuvem de mistificação com o objetivo de induzir o

público a aceitar a autoridade do Estado, e que estes intelectuais obtêm, em troca, uma

parte do poder e dos bens extraídos pelos governantes dos seus súditos enganados.

Tome-se, por exemplo, a instituição da taxação, que os estatistas dizem ser, em algum

sentido, “voluntária”. Todo aquele que realmente acredita na natureza “voluntária” da

taxação está convidado a se recusar a pagar os impostos e a ver o que então acontece

consigo. Se analisarmos a taxação, vemos que, dentre todas as pessoas e instituições da

sociedade, somente o governo adquire sua receita através da coerção violenta. Todos os

outros componentes da sociedade adquirem seus rendimentos através de doações

voluntárias (hospedagens, sociedades beneficentes, clubes de xadrez) ou da venda de

produtos ou serviços voluntariamente comprados pelos consumidores. Se qualquer

pessoa ou instituição que não o governo começasse a “cobrar impostos”, isso seria

claramente considerado coercitivo e criminoso. Contudo, as mistificações a respeito da

“soberania” esconderam tão bem esse processo que somente os libertários estão

preparados para chamar a taxação do que ela realmente é: roubo legalizado e organizado

em grande escala.

Os direitos de propriedade

Se o axioma central do credo libertário é a não-agressão à pessoa e propriedade de

qualquer pessoa, como se chegou até ele? Qual é sua base ou sustentação? Neste ponto

os libertários do passado e do presente têm discordado consideravelmente. De modo

geral, existem três tipos de fundamentação para o axioma libertário, correspondendo a

três tipos de filosofias éticas: a emotivista, a utilitarista e a dos direitos naturais. Os

Page 19: Por uma Nova Liberdade - O Manifesto Libertário - Murray N. Rothbard (Incompleto)

emotivistas afirmam que eles aceitam como sua premissa a liberdade ou não-agressão

em bases puramente subjetivas e emocionais. Mas embora suas intensas emoções

possam parecer bases válidas para sua própria filosofia política, isso mal pode servir

para convencer qualquer outra pessoa. Ao se excluírem do terreno da racionalidade, os

emotivistas asseguram a falta de sucesso do próprio estimado discurso.

Os utilitaristas afirmam, a partir do estudo das conseqüências da liberdade em

comparação a sistemas alternativos, que a liberdade pode assegurar que os objetivos

aprovados pela maioria sejam alcançados: a harmonia, a paz, a prosperidade, etc.

Ninguém disputa agora que as conseqüências relativas devam ser estudadas ao se

avaliar os méritos e deméritos das idéias respectivas. Mas existem muitos problemas em

nos prendermos a uma ética utilitária. Um dos motivos é que o utilitarismo assume que

podemos avaliar as alternativas e decidir entre políticas a partir de suas boas ou más

conseqüências. Mas se é legítimo aplicar julgamento de valores às conseqüências de X,

por que não é igualmente legítimo aplicar tais julgamentos ao próprio X? Será que não

pode haver algo da própria natureza de um ato que permita que ele seja considerado

bom ou ruim?

Outro problema é que os utilitaristas raramente adotam um princípio como absoluto e

consistente critério para ser aplicado às variadas situações concretas do mundo real. Na

melhor das hipóteses, eles usam os princípios como uma orientação ou aspiração, como

uma tendência que poderiam escolher ignorar a qualquer momento. Este foi o maior

defeito dos radicais ingleses do século XIX, que adotaram as posições laissez-faire dos

liberais do século XVIII, mas substituíram o conceito supostamente “místico” dos

direitos naturais pelo supostamente “científico” utilitarismo como base para a própria

filosofia. Assim, os liberais do século XIX passaram a tomar o laissez-faire como uma

vaga tendência, não como um critério absoluto, e por essa razão comprometeram

fatalmente o credo libertário. Dizer que não se pode “confiar” num utilitarista para

manter o princípio libertário em cada aplicação específica pode parecer áspero, mas

coloca as coisas da forma que são. Um exemplo contemporâneo notável é o economista

de livre mercado Milton Friedman, que, como os economistas clássicos que o

antecederam, defende a liberdade contra a intervenção estatal como uma tendência

geral, mas na prática concede inúmeras danosas exceções – exceções que servem para

enfraquecer o princípio quase que completamente, especialmente nas áreas da polícia,

das questões militares, da educação, da taxação, da assistência social, das

externalidades, das leis antitruste, da moeda e do sistema bancário.

Consideremos um exemplo extremo: suponha-se que uma sociedade cresse

fervorosamente que todos os ruivos fossem agentes do demônio e que, por isso,

deveriam ser executados quando encontrados. Assumamos ainda que exista somente

uma pequena parcela de ruivos em qualquer geração – tão poucos que sejam

estatisticamente insignificantes. O libertário utilitarista pode muito bem concluir:

“Embora o assassinato de ruivos isolados seja deplorável, as execuções são pequenas

em número; a grande maioria do público, não sendo ruiva, obtém uma satisfação

psíquica enorme pela execução pública de ruivos. O custo social é insignificante, o

benefício social e psíquico para o resto da sociedade é grande; portanto, é correto e

apropriado para a sociedade executar os indivíduos ruivos.” O libertário defensor dos

direitos naturais, muito preocupado com a justiça dos atos, reagirá com horror e se

oporá determinada e inequivocamente às execuções, uma vez que são totalmente

injustificáveis o assassinato e a agressão de pessoas pacíficas. A conseqüência de parar

Page 20: Por uma Nova Liberdade - O Manifesto Libertário - Murray N. Rothbard (Incompleto)

os assassinatos – a privação da maior parte da sociedade de grandes prazeres psíquicos –

não influenciaria de qualquer maneira esse tipo de libertário, o libertário “absolutista”.

Tendo uma devoção à justiça e à consistência lógica, o libertário dos direitos naturais

alegremente admite ser um “doutrinário” – ser, em suma, um imperturbável seguidor

das próprias doutrinas.

Voltemo-nos então à fundamentação dos direitos naturais do credo libertário,

fundamentação que, de uma forma ou de outra, foi adotada pela maioria dos libertários,

do passado e do presente. Os “direitos naturais” são o pilar de uma filosofia política que

está cravada na estrutura maior do “direito natural”. A teoria do direito natural se baseia

da compreensão de que vivemos em um mundo em que há mais de uma entidade – e

que, de fato, há um grande número delas – e que cada entidade tem propriedades

distintas e específicas, uma “natureza” diversa, que pode ser investigada pela razão

humana, por suas percepções sensoriais e faculdades mentais. O cobre tem uma

natureza particular e se comporta de certa forma, assim como o ferro, o sal, etc. A

espécie humana, portanto, tem uma natureza especificável, assim como o mundo à sua

volta e as formas pelas quais eles podem interagir. Para expressar isso em termos

indevidamente breves, a atividade de cada entidade inorgânica e orgânica é determinada

por sua própria natureza e pela natureza das outras entidades com as quais ela se

relaciona. Especificamente, ao passo que o comportamento das plantas e, pelo menos,

dos animais menos evoluídos é determinado por suas naturezas biológicas ou, talvez,

por seus instintos, a natureza do homem é tal que cada pessoa precisa, para agir,

escolher seus próprios fins e empregar seus próprios meios para alcançá-los. Sem

possuir instintos automáticos, cada homem deve aprender sobre si mesmo e sobre o

mundo, usar sua mente para escolher valores, aprender sobre causas e efeitos e agir

propositadamente para se manter e promover sua vida. Uma vez que os homens podem

pensar, sentir, estimar e agir somente como indivíduos, é vital para a sobrevivência e

prosperidade de cada homem que ele seja livre para aprender, escolher, desenvolver

suas aptidões e agir baseado em seus conhecimentos e valores. Este é o caminho

necessário para a natureza humana; interferir e prejudicar este processo através da

violência vai frontalmente de encontro ao que é requerido pela natureza humana para a

vida e prosperidade do homem. A interferência violenta nos aprendizados e nas escolhas

dos homens é, deste modo, profundamente “anti-humana”; ela viola as leis naturais das

necessidades humanas.

Os individualistas sempre foram acusados por seus inimigos de serem “atomistas” – de

postularem que cada indivíduo vive numa espécie de vácuo, pensando e escolhendo sem

relação com mais ninguém na sociedade. Este, porém, é um argumento-espantalho que

revela certo autoritarismo; poucos individualistas foram “atomistas” – talvez nenhum

tenha sido. Pelo contrário, é evidente que os indivíduos sempre aprendem uns com os

outros, cooperam e interagem entre si, e que isto também é necessário para a

sobrevivência humana. Mas o ponto é que cada indivíduo é quem faz a escolha final de

quais influências adotar e quais rejeitar, ou quais adotar primeiro e quais

posteriormente. O libertário aprova o processo de trocas voluntárias e cooperação entre

os indivíduos livres; o que ele abomina é o uso de violência para interferir nessa

cooperação voluntária e para forçar alguém a escolher e a agir de maneira diferente da

ditada por sua própria mente.

O método mais fácil para elaborar a demonstração dos direitos naturais da posição

libertária é dividindo-a em partes e tomando-se como ponto de partida o axioma básico

Page 21: Por uma Nova Liberdade - O Manifesto Libertário - Murray N. Rothbard (Incompleto)

do “direito de auto-propriedade”. O direito de auto-propriedade afirma que é de direito

absoluto de cada pessoa, por sua natureza humana, “possuir” o próprio corpo; isto é,

controlá-lo livre de interferências coercitivas. Uma vez que o indivíduo precisa pensar,

aprender, estimar e escolher os seus fins e meios para sobreviver e prosperar, o direito

de auto-propriedade dá ao homem o direito de realizar essas atividades vitais sem ser

impedido ou restringido por agressores.

Consideremos também as conseqüências da negação do direito de propriedade de cada

homem sobre sua própria vida. Haveria então apenas duas alternativas: ou (1) certa

classe de pessoas, A, tem o direito de propriedade sobre outra classe, B; ou (2) todos têm

o direito de possuir uma igual porção de todas as outras pessoas. A primeira alternativa

implica que a Classe A merece possuir direitos humanos, mas que a Classe B é, na

realidade, formada por indivíduos subumanos e, portanto, não é digna de tais direitos.

Porém, uma vez que eles são de fato seres humanos, a primeira alternativa se contradiz

por negar os direitos humanos naturais a um grupo de humanos. Além disso, como

veremos, conceder à Classe A a propriedade sobre a Classe B significa que a primeira

pode explorar, e portanto viver parasitariamente, às custas da segunda. Mas este

parasitismo em si viola o requisito econômico básico da vida: a produção e a troca.

A segunda alternativa, que podemos chamar de “comunalismo participativo” – ou

“comunismo participativo” –, afirma que cada homem deve ter o direito de possuir uma

quota igual de todas as outras pessoas. Se existem dois bilhões de pessoas no mundo,

então todos têm o direito de possuir um dois bilhões de avos de cada outra pessoa. Em

primeiro lugar, nós podemos dizer que este ideal se baseia em um absurdo: afirmar que

cada homem tem o direito de possuir uma parte de todas as pessoas, embora não possa

possuir a si próprio. Em segundo lugar, podemos imaginar a viabilidade de tal mundo:

um mundo em que nenhum homem é livre para executar nenhuma ação qualquer sem a

aprovação, ou, de fato, o comando, de todas as outras pessoas na sociedade. Deve estar

claro que, neste tipo de mundo “comunista”, ninguém seria livre para fazer nada e a raça

humana iria rapidamente desaparecer. Mas se um mundo onde há zero de auto-

propriedade e cem por cento de propriedade sobre os outros implica na extinção da raça

humana, qualquer passo nesta direção também contraria as leis naturais do que é melhor

para o homem e sua vida na terra.

Finalmente, contudo, o mundo comunista participativo não pode ser posto em prática.

Pois é fisicamente impossível que todas as pessoas mantenham registros contínuos

sobre todas as outras para que assim exerçam suas propriedades parciais sobre elas. Na

prática, portanto, o conceito universal e equivalente de propriedade sobre os outros é

utópico e impossível, e a supervisão, o controle e a posse dos outros necessariamente

recairia sobre um grupo especializado, o qual, deste modo, se tornaria a classe

dominante. Assim, na prática, qualquer tentativa de um regime comunista

automaticamente geraria uma classe dominante e nós estaríamos de volta à nossa

primeira alternativa.

O libertário, assim, rejeita estas alternativas e adota o direito universal de auto-

propriedade, um direito possuído por todos em virtude do próprio fato de serem

humanos. Uma tarefa mais difícil é estabelecer uma teoria de propriedade sobre objetos

não-humanos, sobre as coisas da terra. É comparativamente fácil reconhecer quando

alguém está agredindo o direito de propriedade de outra pessoa: se A ataca B, ele está

violando o direito de propriedade de B sobre o seu próprio corpo. Mas com objetos não

Page 22: Por uma Nova Liberdade - O Manifesto Libertário - Murray N. Rothbard (Incompleto)

humanos o problema é mais complexo. Se, por exemplo, nós virmos X agarrando um

relógio que está em posse de Y nós não podemos automaticamente assumir que X está

agredindo o direito de propriedade de Y sobre o relógio; pois não poderia ocorrer que o

original, “verdadeiro” proprietário do relógio fosse X, que poderia por isso afirmar estar

restituindo sua propriedade legítima? Para decidir a questão, nós precisamos de uma

teoria de justiça para as propriedades, uma teoria que nos diga se X ou Y, ou mesmo

outro indivíduo, é o proprietário legítimo.

Alguns libertários tentam resolver o problema afirmando que quem quer que o governo

existente declare ter o título de certa propriedade deve ser considerado o proprietário

legítimo dela. Até aqui nós não investigamos profundamente a natureza do Estado, mas

a anomalia aqui deve estar clara: é realmente estranho que um grupo sempre suspeitoso

de praticamente todas as funções do governo repentinamente deixe que o governo

defina e aplique o precioso conceito de propriedade, a base e a sustentação de toda a

ordem social. São especialmente os utilitaristas pró-livre mercado que acreditam que é

mais viável começar o novo mundo libertário confirmando todos os títulos de

propriedade existentes; isto é, títulos e direitos de propriedade decretados pelo mesmo

governo que é condenado como um agressor crônico.

Ilustremos este ponto com um exemplo hipotético. Suponha-se que a agitação e a

pressão libertárias tenham chegado a um ponto tal que o governo e suas várias

ramificações estejam prontos para abdicar. Mas eles armam um ardiloso estratagema.

Logo antes de o governo de Nova York abdicar, ele aprova uma lei que torna toda a área

territorial de Nova York uma propriedade privada da família Rockefeller. Os

legisladores de Massachusetts fazem o mesmo para a família Kennedy. E assim por

diante, para cada estado. O governo poderia então abdicar e decretar a abolição dos

impostos e das legislações coercitivas, mas os libertários vitoriosos estariam agora

diante de um dilema. Devem eles reconhecer os novos títulos de propriedade como

legítimos? Os utilitaristas, que não têm qualquer teoria de justiça dos direitos de

propriedade, se fossem consistentes em sua aceitação dos títulos de propriedades

decretados pelo governo, teriam que aceitar a nova ordem social, na qual cinqüenta

novos comandantes coletariam impostos na forma de “aluguéis” impostos

unilateralmente. O ponto é que somente os libertários que defendem os direitos naturais,

somente aqueles libertários que têm uma teoria de justiça dos títulos de propriedade que

não depende do decreto governamental, estariam em posição de ridicularizar as

pretensões dos novos governantes de terem legítimas propriedades sobre o território do

país. Como o grande liberal do século XIX Lord Acton observou, o direito natural

fornece a única base sólida para uma crítica continuada das leis e dos decretos

governamentais.1 Qual é a posição específica dos direitos naturais em relação aos títulos

de propriedade é a questão que abordaremos agora.

Nós estabelecemos o direito de cada indivíduo à auto-propriedade, ao direito de

propriedade sobre seu corpo e sua pessoa. Mas as pessoas não são espectros flutuantes;

não são entidades auto-suficientes; elas só podem sobreviver e prosperar trabalhando

com a terra à sua volta. Elas precisam, por exemplo, estar situadas em algum lugar;

precisam também, para que possam sobreviver, transformar os recursos naturais em

“bens de consumo”, em objetos mais apropriados para seu uso. Os alimentos precisam

ser cultivados e comidos; os minerais precisam ser minerados, transformados em capital

e então em bens de consumo úteis, etc. O homem, em outras palavras, precisa possuir

Page 23: Por uma Nova Liberdade - O Manifesto Libertário - Murray N. Rothbard (Incompleto)

não só sua própria pessoa, mas também objetos materiais para seu controle e uso.

Como, então, os títulos de propriedade destes objetos devem ser alocados?

Tomemos como nosso primeiro exemplo um escultor que trabalha numa obra de arte de

argila e outros materiais; deixemos de lado, por ora, a questão dos direitos de

propriedade originais sobre a argila e as ferramentas do escultor. Surge então a questão:

quem é o dono da obra de arte finalizada pelo escultor? Ela é, de fato, uma “criação” do

escultor, não no sentido de que ele criou matéria, mas no de que ele transformou uma

matéria provida pela natureza – a argila – em outra forma ditada por suas próprias idéias

e modelada por suas próprias mãos e sua própria energia. Não há dúvidas de que, se

todo homem tem o direito de auto-propriedade, e se ele precisa trabalhar os objetos

materiais da terra para ser capaz de sobreviver, então o escultor tem o direito de possuir

o produto, que foi tornado por ele, através de suas energias e esforços, uma verdadeira

extensão da sua personalidade. Ele imprimiu a marca de sua pessoa sobre a matéria-

prima, “misturando seu trabalho” com a argila, nas palavras do grande teórico dos

direitos de propriedade John Locke. E o produto transformado pela energia do escultor

se tornou uma incorporação material das idéias e da visão dele. John Locke coloca a

questão da seguinte forma:

(...) [T]odo homem tem uma propriedade sobre sua pessoa. Sobre ela

ninguém tem qualquer direito a não ser ele. O trabalho de seu corpo e de

suas mãos, podemos dizer, são propriamente dele. Então, com qualquer coisa

que ele remova do estado em que a natureza a proveu e deixou, ele misturou

o seu trabalho e juntou algo que é próprio seu, tornando-a sua propriedade.

Sendo ela removida por ele do estado comum em que a natureza a colocou,

esta coisa teve por seu trabalho algo anexado a ela que exclui o direito

comum de todos os outros homens. Por este trabalho ser propriedade

inquestionável do trabalhador, nenhum outro homem além dele tem o direito

sobre aquilo a que se juntou (...).2

Como no caso da propriedade sobre os corpos das pessoas, nós novamente temos três

alternativas lógicas: (1) ou o transformador, ou “criador”, tem o direito de propriedade

sobre sua criação; ou (2) outro homem ou grupo de homens tem o direito sobre aquela

criação, i.e., tem o direito de se apropriar dela pela força sem o consentimento do

escultor; ou (3) todo indivíduo no mundo tem uma quota igual de propriedade sobre a

escultura – a solução “comunal”. Novamente, em termos diretos, são poucos os que não

reconheceriam a injustiça monstruosa de confiscar a propriedade do escultor, em

benefício de uma ou mais pessoas, ou mesmo do mundo inteiro. Com que direito eles

fazem isso? Com que direito eles se apropriam do produto da mente e energia do

criador? Neste caso simples, o direito do criador de possuir o que ele misturou com sua

pessoa e trabalho seria geralmente concedido. (De novo, como no caso da propriedade

comunal de pessoas, a solução comunal, na prática, iria se reduzir a uma oligarquia de

alguns poucos, que explorariam o trabalho do criador em nome da “propriedade pública

mundial”).

O ponto principal, contudo, é que o caso do escultor aqui não é qualitativamente

diferente de todos os casos de “produção”. O homem ou o conjunto de homens que

extraiu a argila do chão e venderam para o escultor, podem não ser tão “criativos”

quanto o escultor, mas também são “produtores”. Eles também misturaram suas idéias e

conhecimentos tecnológicos ao solo provido pela natureza para criar um produto útil.

Page 24: Por uma Nova Liberdade - O Manifesto Libertário - Murray N. Rothbard (Incompleto)

Eles também são “produtores" e também misturaram seu trabalho a materiais naturais

para transformá-los em bens úteis. Estas pessoas também têm direito à propriedade do

que produziram. Onde, então, começa o processo? Novamente, nos voltemos a Locke:

Aquele que se alimentou das nozes que colheu embaixo de um carvalho, ou

das maçãs que colheu dos pomares da floresta, certamente os apropriou para

si. Ninguém pode negar que os frutos eram dele. Eu pergunto então: quando

começaram a ser dele? Quando ele os digeriu? Ou quando os comeu? Ou

quando os cozinhou? Ou quando os levou para casa? Ou quando os colheu?

E é evidente que se a primeira coleta não os tornou dele, nada mais poderia.

Aquele trabalho traçou uma distinção entre eles e a propriedade comum. Ele

adicionou a eles mais do que a Natureza, a mãe comum de todos, havia

adicionado, e assim eles se tornaram suas propriedades privadas. E alguém

dirá que ele não tinha o direito a estas nozes ou maçãs de que ele se

apropriou somente porque não tinha o consentimento de toda a humanidade

para fazê-lo? Teria sido um roubo a apropriação para ele do que pertencia a

todos em comum? Se tal consentimento fosse necessário, o homem morreria

de fome, apesar da fartura com que Deus lhe proveu. (...) Deste modo, a

grama que meu cavalo mordeu, o gramado que meu servente cortou e o

minério que eu escavei onde estou, no local onde tenho um direito comum

com os outros, se tornam minha propriedade sem a designação ou o

consentimento de ninguém. Meu trabalho, ao removê-los do estado comum

em que se encontravam, fixou neles minha propriedade.

Ao tornar-se necessário o consentimento explícito de cada cidadão para se

apropriar de qualquer parte do que é comum, crianças ou serventes não

poderiam cortar a carne que seus pais ou mestres forneceram a eles sem

prover a cada um sua parte particular. Ainda que a água corrente na fonte

seja de todos, quem pode duvidar que a água do jarro somente seja daquele

que a recolheu? O seu trabalho a tirou das mãos da Natureza, onde ela era

comum (...) e por meio disso ele se apropriou dela.

Deste modo a lei da razão torna os veados propriedade dos indianos, que os

mataram; é permitido que sejam bens de quem aplicou seu trabalho sobre

eles, embora, antes, fossem de direito comum de todos. E dentre aqueles que

são considerados a parte civilizada da raça humana (...) essa lei da natureza

original para o início da propriedade, no que antes era comum, ainda

ocorre, e em virtude disso, o peixe que alguém pesca no oceano, esta grande

propriedade comum de toda a humanidade que ainda resta, ou o âmbar que

qualquer um consegue através dele, torna-se, por meio do trabalho que o

remove do estado comum em que a natureza o deixou, propriedade daquele

que aplicou seu esforço.3

Se todo homem é dono de sua pessoa e, portanto, de seu trabalho, e se por extensão

possui qualquer propriedade que tenha “criado” ou retirado de seu “estado natural”,

previamente sem uso, sem dono, e quanto à última grande questão, o direito de possuir e

controlar a própria terra? Isto é, se cada coletor tem o direito de possuir as nozes ou

maçãs que pegar, ou se o fazendeiro tem o direito de possuir sua colheita de trigo ou

pêssego, quem tem o direito de propriedade sobre a terra na qual estas coisas cresceram?

É neste ponto que Henry George e seus seguidores, que percorreram todo o caminho até

Page 25: Por uma Nova Liberdade - O Manifesto Libertário - Murray N. Rothbard (Incompleto)

aqui ao lado dos libertários, tomam um caminho diferente e negam o direito individual

de propriedade sobre a própria terra, o chão onde estas atividades ocorreram. Os

georgistas argumentam que, embora todo homem deva possuir os bens que produz ou

cria, nenhum indivíduo tem o direito de tomar a própria terra como propriedade, porque

foi a Natureza ou Deus quem a criou. Contudo, se a terra deve de fato ser usada

eficientemente como um recurso, ela precisa ser possuída ou controlada por alguém ou

algum grupo, e nós novamente nos deparamos com nossas três alternativas: ou a terra

pertence ao primeiro usuário, que a usa para produção; ou pertence a um outro grupo de

pessoas; ou pertence ao mundo como um todo, com cada indivíduo tendo propriedade

sobre uma parte igual de cada acre de terra. A opção de George pela última alternativa

dificilmente resolverá seu problema moral: se a própria terra pertence a Deus ou à

Natureza, por que a propriedade coletiva de cada acre do mundo é mais moral do que a

propriedade individual? Na prática, novamente, é obviamente impossível que cada

pessoa exerça a propriedade efetiva de sua porção de quatro bilhões avos (se a

população mundial for, digamos, de quatro bilhões) de cada pedaço de terra na

superfície do planeta. Na prática, evidentemente, uma pequena oligarquia teria o

controle e as posses, não o mundo como um todo.

Porém, apesar destas dificuldades da posição georgista, a justificação dos direitos

naturais para a propriedade da terra é a mesma que a justificação original de todas as

outras propriedades. Pois, como vimos, nenhum produtor realmente “cria” matéria; ele

toma a matéria natural e a transforma através da energia de seu trabalho de acordo com

suas idéias e planos. Mas isso é precisamente o que o pioneiro – o “homesteader”4 – faz

quando toma para si a posse de terras previamente não usadas. Da mesma forma que o

homem que produz aço a partir do minério do ferro e transforma aquele minério através

de seu conhecimento e da sua energia, da mesma forma como faz o mesmo o homem

que retira o ferro do solo, também transforma a terra o homesteader que desobstrui,

cerca, cultiva ou constrói sobre a terra. O homesteader também transforma as

características da terra natural com seu trabalho e sua personalidade. O homesteader é

um dono tão legítimo da propriedade quanto o escultor ou o manufatureiro; ele é um

“produtor” tanto quanto os outros.

Além disso, se a terra é provida pela natureza ou por Deus, também são os talentos, a

saúde e a beleza das pessoas. E assim como todos estes atributos são dados para

indivíduos específicos e não para toda a “sociedade”, também são a terra e os recursos

naturais. Todos estes recursos são dados para indivíduos e não para a “sociedade”, que é

uma abstração e na realidade não existe. Não existe uma entidade chamada “sociedade”;

existem apenas indivíduos em interação. Dizer que a “sociedade” deve ter a propriedade

comum das terras ou de qualquer outra coisa, portanto, significa que um grupo de

oligarcas – na prática, burocratas do governo – deve possuí-las, ao custo da

expropriação do criador ou homesteader que originalmente colocaram o produto em

existência.

Além do mais, ninguém pode produzir nada sem o auxílio da terra, mesmo que somente

como um local para se situar. Nenhum homem pode produzir ou criar nada apenas

através do trabalho; ele precisa do auxílio da terra e de outras matérias-primas.

O homem vem ao mundo somente consigo próprio e com o mundo à sua volta – a terra

e os recursos naturais fornecidos pela natureza. Ele usa esses recursos e os transforma

em bens mais úteis através de seu trabalho, sua mente e sua energia. Portanto, se o

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indivíduo não pode ter a propriedade de terras, ele também não pode ter a propriedade,

num sentido amplo, de nenhum dos frutos de seu trabalho. O fazendeiro não pode ter a

propriedade sobre sua colheita de trigo se não pode possuir a terra onde o trigo é

cultivado. Tendo sido seu trabalho inextricavelmente misturado à terra, ele não pode ser

privado da propriedade sobre ela sem ser privado da propriedade sobre o que produziu.

Ademais, se um produtor não tem direito aos frutos de seu trabalho, quem tem? Não é

fácil perceber por que um recém-nascido paquistanês deve ter uma legítima reclamação

moral a um pedaço da terra do Iowa que alguém tenha acabado de transformar numa

plantação de trigo – e vice versa, evidentemente, para um bebê do Iowa em relação a

uma fazenda paquistanesa. Os georgistas e outros comunalistas de terras poderiam

argumentar que toda a população mundial de fato “possui” as terras, mas se ninguém

ainda as usou, ela não é realmente possuída ou controlada por ninguém. O pioneiro, o

homesteader, o primeiro utilizador e transformador da terra, é o homem que leva este

simples recurso sem valor à produção e ao uso social. É difícil visualizar a moralidade

de privá-lo da propriedade da terra em favor de pessoas que nunca estiveram num raio

de mil milhas dela e que podem nem saber da existência da propriedade da qual

supostamente elas são as legítimas donas.

A questão moral, de direitos naturais, envolvida aqui fica ainda mais clara se

considerarmos o caso dos animais. Os animais são “terras econômicas”, uma vez que

são recursos dados pela natureza originalmente.5 No entanto alguém negaria o título

total de propriedade sobre um cavalo a um homem que o encontrou e domesticou? Seria

este caso de alguma maneira diferente das nozes e das maçãs, que são geralmente

concedidas ao coletor? Da mesma forma, algum homesteader toma a terra previamente

“selvagem”, indomada, e a “domestica”, colocando-a em algum uso produtivo. A

mistura de seu trabalho com um terreno deveria conceder a ele um título de propriedade

tão claro quanto no caso dos animais. Como afirmou Locke: “Daquela terra em que o

homem trabalha, planta, cultiva, a qual aprimora e de que dispõe dos produtos, toda ela

é sua propriedade. Ele, através de seu trabalho, por assim dizer, a retira de seu estado

comum.”6

A teoria libertária de propriedade foi eloqüentemente sumarizada por dois economistas

liberais franceses do século XIX:

Se o homem adquire direitos sobre as coisas, é porque ele é, ao mesmo

tempo, ativo, inteligente e livre; através de sua atividade ele se propaga pela

natureza externa; através de sua inteligência, ele a governa e a curva aos

seus propósitos; através de sua liberdade, estabelece entre ele próprio e ela

uma relação de causa e efeito e a torna sua. (...)

Onde há, num país civilizado, uma porção de terra, uma folha, que não

guarda a marca da personalidade do homem? Na cidade, nós estamos

rodeados pelo trabalho humano; andamos sobre calçadas e ruas

pavimentadas; foi o homem quem transformou o solo barrento, quem pegou

as pedras das laterais das colinas com as quais o cobriu. Nós vivemos em

casas; foi o homem quem retirou a pedra da pedreira, quem a lapidou, quem

planeou a madeira; foi o pensamento do homem que arranjou os materiais

apropriadamente e construiu a partir do que era antes somente pedra e

madeira. E no campo, a ação do homem também está presente em todo

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lugar; os homens cultivaram os solos e gerações de trabalhadores o

amadureceram e enriqueceram; o trabalho do homem represou os rios e

criou fertilidade onde a água só havia trazido desolação. (...) Em todo lugar,

uma poderosa mão moldou a matéria e uma vontade inteligente a adaptou

(...) para a satisfação dos desejos de um mesmo ser. A natureza reconheceu o

seu mestre, e o homem se sente em casa na natureza. A natureza foi

apropriada por ele para seu uso; ela se tornou dele; ela é sua propriedade.

Esta propriedade é legítima; ela constitui um direito tão sagrado para o

homem quanto o livre exercício de suas faculdades. Ela é dele porque veio

inteiramente dele e não é nada mais que uma emanação de seu ser. Antes

dele, não existia nada além da matéria; a partir dele, e através dele, passou a

existir uma riqueza comerciável, isto é, itens que adquiriram valor através de

alguma indústria, pela manufatura, pelo manuseio, pela extração, ou

simplesmente pelo transporte. Desde a pintura de um grande mestre, a qual,

de toda a produção material, é talvez onde a matéria tenha o menor papel,

até o balde de água que o carregador tira do rio e leva ao consumidor, a

riqueza, qualquer que seja, adquire seu valor somente por qualidades

transferidas, e estas qualidades são parte da atividade, da inteligência e da

força humanas. O produtor deixou um fragmento de sua própria pessoa

naquilo que assim ganhou valor e que pode, portanto, ser considerado um

prolongamento das faculdades do homem que age sobre a natureza externa.

Como um ser livre, ele pertence a si mesmo; a causa, isto é, a força

produtiva, é ele mesmo; o efeito, isto é, a riqueza produzida, ainda é ele

próprio. Quem ousaria contestar um título de propriedade tão claramente

marcado pelo selo de sua personalidade? (...)

Então, é para o ser humano, o criador de toda a riqueza, que nós devemos

nos voltar (...) é pelo trabalho que o homem imprime sua personalidade na

matéria. É o trabalho que cultiva a terra e faz de um terreno baldio um

campo apropriado; é o trabalho que torna uma floresta selvagem um bosque

regular; é o trabalho, ou melhor, uma sucessão de trabalhos freqüentemente

executados por numerosos trabalhadores, que transformam a semente em

cânhamo, o cânhamo em fibra, a fibra em tecido, o tecido em roupa; que

transforma a pirita sem forma, apanhada na mina, em um bronze elegante

que enfeita os locais públicos e transmite para toda uma população o

pensamento de um artista. (...)

A propriedade, manifestada pelo trabalho, é de direito da pessoa de que se

emanou; como a pessoa, a propriedade é inviolável desde que não se estenda

ao ponto de se colidir com outro direito; como a pessoa, a propriedade é um

indivíduo, porque ela tem origem na independência do indivíduo, e porque,

quando várias pessoas cooperaram em sua produção, o último proprietário a

adquiriu com um valor, o fruto de seu trabalho pessoal, o trabalho de todos

os companheiros trabalhadores que o precederam: isto é o que geralmente

ocorre com produtos manufaturados. Quando uma propriedade foi

transferida, através da venda ou da herança, de uma mão para outra, suas

condições não mudaram; é ainda o fruto da liberdade humana manifestada

pelo trabalho, e aquele que passa a possuí-la tem os mesmos direitos que o

produtor que havia tomado posse dela.7

Page 28: Por uma Nova Liberdade - O Manifesto Libertário - Murray N. Rothbard (Incompleto)

A sociedade e o indivíduo

Nós falamos extensamente sobre os direitos individuais; mas, pode-se perguntar, e os

“direitos da sociedade”? Eles não suplantam os direitos de um mero indivíduo? O

libertário, contudo, é um individualista; ele acredita que um dos erros primários da

teoria social é tratar a “sociedade” como se fosse realmente uma entidade existente. A

“sociedade” é às vezes tratada como uma figura superior ou semi-divina, com “direitos”

próprios que se sobrepõem a quaisquer outros; outras vezes, é considerada um mal que

pode ser responsabilizado for todos os problemas do mundo. O individualista defende

que apenas indivíduos existem, pensam, sentem, escolhem e agem; e que a “sociedade”

não é uma entidade viva, mas simplesmente um rótulo para um conjunto de indivíduos

em interação. Tratar a sociedade como algo que vive e age, então, obscurece as forças

reais que estão em funcionamento. Se, numa pequena comunidade, um grupo de dez

pessoas se reúne para roubar e expropriar três outras então isto é clara e evidentemente

um caso de um grupo de indivíduos agindo em conjunto contra outro grupo. Nesta

situação, se as dez pessoas pretendessem chamar a si próprias de “sociedade”, agindo de

acordo com “seus” interesses, a desculpa seria ridicularizada pelo tribunal; mesmo os

dez ladrões provavelmente teriam vergonha de usar este tipo de argumento. Mas basta

que o seu número cresça para que a verdade seja obscurecida e o público seja enganado.

O uso falacioso de uma palavra que designa o coletivo “nação”, similar neste aspecto

com a palavra “sociedade”, foi incisivamente apontado pelo historiador Parker T.

Moon:

Quando alguém usa a simples palavra “França”, pensa-se na França como

uma unidade, uma entidade. Quando (...) nós dizemos “A França enviou suas

tropas para conquistar Tunis”, nós atribuímos não apenas unidade, mas

personalidade ao país. As próprias palavras escondem os fatos e fazem das

relações internacionais um glamoroso drama no qual nações personificadas

são os atores, e facilmente nos esquecemos dos homens e mulheres de carne e

osso que são os verdadeiros atores. (...) [S]e nós não tivéssemos uma palavra

tal como “França”, (...) nós descreveríamos mais precisamente a expedição

a Tunis de uma forma tal como esta: “Alguns poucos destes trinta e oito

milhões de pessoas mandaram trinta mil outros para conquistar Tunis.” Esta

forma de expor o fato imediatamente sugere uma pergunta, ou melhor, uma

série de perguntas. Quem eram os “poucos”? Por que eles mandaram trinta

mil para Tunis? E por que estes obedeceram? A construção de impérios não

é feita por “nações”, mas por homens. O problema perante nós é descobrir

quais homens, quais minorias ativas de cada nação, estão diretamente

interessadas no imperialismo e então analisar as razões pelas quais as

maiorias pagam os custos e lutam nas guerras precipitadas pela expansão

imperialista.8

A visão individualista da “sociedade” pode ser resumida na seguinte frase: A

“sociedade” é todo mundo a não ser você. Posta desta forma, esta análise

pode ser usada para considerar aqueles casos onde a “sociedade” é tratada

não apenas como um super-herói com super-direitos, mas como um super-

vilão sobre cujos ombros é posta uma enorme culpa. Considere-se a visão

típica que não é o indivíduo o criminoso, mas sim a “sociedade”, que é

responsável por seu ato. Tome-se, por exemplo, o caso onde Smith rouba ou

mata Jones. A visão “retrógrada” é a de que Smith é responsável pelo que

Page 29: Por uma Nova Liberdade - O Manifesto Libertário - Murray N. Rothbard (Incompleto)

fez. O liberal moderno9 responde que é a “sociedade” a responsável. Isto soa

sofisticado e humanitário até que nós apliquemos a perspectiva

individualista. Então nós vemos que o que os liberais estão realmente

dizendo é que todos exceto Smith, incluindo, claro, a vítima Jones, são

responsáveis pelo crime. Quase todas as pessoas reconheceriam o absurdo

desta posição. Mas a invocação da entidade fictícia “sociedade” ofusca o

processo. Como o sociólogo Arnold W. Green afirmou: “Segue-se, então, que

se a sociedade é responsável pelos crimes, e não os criminosos, somente

aqueles membros da sociedade que não cometem crimes podem ser

responsabilizados por eles. Um absurdo desse tipo obviamente só pode ser

resolvido considerando-se a sociedade como um demônio, um mal à parte

das pessoas e do que elas fazem.”10

O grande libertário americano Frank Chodorov enfatizou esta visão da sociedade

quando escreveu que a “Sociedade é as pessoas”. “Sociedade” é um conceito coletivo e

nada mais; é uma conveniência para designar um número de pessoas. O mesmo vale

para “família”, “multidão”, “gangue” ou qualquer outro nome que nós dermos a uma

aglomeração de pessoas. A Sociedade (...) não é uma outra “pessoa”; se o censo totaliza

cem milhões de pessoas, isso é tudo que há, nem um a mais, pois não pode haver

nenhum acréscimo à Sociedade, a não ser através da procriação. O conceito de

Sociedade como uma pessoa metafísica cai completamente quando observamos que a

Sociedade desaparece quando suas partes componentes se dispersam; como no caso de

uma “cidade fantasma” ou de uma civilização que nós conhecemos através dos artefatos

que deixou. Quando os indivíduos desaparecem, também desaparece o todo. O todo não

tem uma existência separada. Usar o substantivo coletivo com um verbo no singular nos

leva a uma armadilha da imaginação; nós tendemos a personalizar o coletivo e a pensar

nele como tendo um corpo e um espírito próprios.11

Livre troca e livre contrato

O núcleo central do credo libertário, então, é o estabelecimento do direito absoluto à

propriedade privada de todo homem: primeiro, em seu próprio corpo, e segundo, nos

recursos naturais previamente não-usados transformados por ele através de seu trabalho.

Estes dois axiomas, o direito de auto-propriedade e o direito à apropriação original,

formam todo o conjunto de princípios do sistema libertário. Toda a doutrina libertária,

assim, se resume na extensão e aplicação de todas as implicações desta doutrina central.

Por exemplo, um homem, X, tem a propriedade de sua pessoa, de seu trabalho e da terra

que limpou e na qual ele cultiva trigo. Outro homem, Y, tem a propriedade do peixe que

pesca; um terceiro homem, Z, possui os repolhos que plantou e a terra abaixo deles. Mas

se um homem é realmente dono de qualquer coisa, então ele tem o direito de doar ou

trocar seus títulos de propriedade, ponto a partir do qual aquele que recebeu o bem em

questão passa a possuir o título de propriedade absoluto. Deste direito corolário à

propriedade privada advém a justificação básica do livre contrato e da economia de livre

mercado. Desta forma, se X cultiva trigo, ele pode e provavelmente vai concordar em

trocar um pouco do seu trigo por um pouco do peixe pescado por Y ou por alguns dos

repolhos plantados por Z. Com os acordos voluntários para a troca de títulos de

propriedade de X e Y (ou de Y e Z, ou de X e Z), os bens se tornam com igual

legitimidade propriedade das outras pessoas. Se X troca seu trigo pelo peixe de Y, este

peixe se torna propriedade de X para que ele faça o que desejar e o trigo se torna

propriedade de Y da mesma maneira.

Page 30: Por uma Nova Liberdade - O Manifesto Libertário - Murray N. Rothbard (Incompleto)

Além disso, um homem pode trocar não apenas os objetos tangíveis que possui, mas

também seu próprio trabalho, que evidentemente também é dele. Assim, Z pode vender

seus serviços de professor às crianças de X em troca de parte da produção do fazendeiro.

Tanto isso ocorre que a economia de livre mercado – e a especialização e divisão do

trabalho que ela implica – é a organização econômica mais produtiva conhecida pelo

homem e foi responsável pela industrialização e pela moderna economia sobre a qual a

civilização foi construída. Este é um feliz resultado utilitário do livre mercado, mas não

é, para o libertário, a razão primordial de seu suporte a este sistema. A razão primordial

é moral e baseada na defesa dos direitos naturais de propriedade privada que nós

demonstramos anteriormente. Mesmo se uma sociedade despótica onde houvesse uma

invasão sistemática dos direitos naturais fosse mais produtiva do que o que Adam Smith

chamou de “sistema de liberdade natural”, o libertário daria suporte a este sistema.

Felizmente, como em tantas outras áreas, a utilidade e a moral, os direitos naturais e a

prosperidade, andam de mãos dadas.

A economia de mercado desenvolvida, complexa como possa parecer, nada mais é do

que uma vasta rede de trocas voluntárias bilaterais e mutuamente acordadas, tal como

nós mostramos que ocorre entre os fazendeiros de trigo e repolhos, ou entre o

fazendeiro e o professor. Assim, quando eu compro um jornal por uma moeda, uma

troca bilateral mutuamente benéfica ocorre. Eu transfiro a propriedade da moeda para o

jornaleiro e ele transfere a propriedade do jornal para mim. Nós fazemos isso porque,

sob a divisão do trabalho, eu calculo que o jornal valha mais para mim do que a moeda,

enquanto o jornaleiro calcula preferir a moeda ao jornal. Ou, quando eu ensino em uma

universidade, eu estimo que prefira meu salário a não trabalhar, enquanto as autoridades

da universidade calculam que preferem meus serviços de professor a não me pagar o

dinheiro. Se o jornaleiro insistir em cobrar 50 centavos pelo jornal, eu posso decidir que

ele não vale o preço; da mesma forma, se eu insistir em triplicar meu atual salário, a

universidade pode decidir dispensar meus serviços.

Muitas pessoas estão dispostas a reconhecer a justiça e a justeza dos direitos de

propriedade e da economia de livre mercado, a reconhecer que o fazendeiro deveria

poder cobrar o quanto os consumidores estivessem dispostos a pagar por seu trigo ou

que o trabalhador deve poder cobrar tanto quanto os outros estão dispostos a pagar por

seus serviços. Mas elas hesitam num ponto: a herança. Se Willie Stargell é dez vezes

melhor e mais “produtivo” como jogador de baseball do que Joe Jack, elas estão

dispostas a reconhecer a justiça do salário dez vezes maior de Stargell; mas, perguntam

elas, qual é a justificativa para que alguém cujo único mérito foi ter nascido como um

Rockefeller herde muito mais do que alguém que nasceu como um Rothbard? A

resposta libertária é não se concentrar na pessoa que recebe a herança, na criança

Rockefeller ou na criança Rothbard, mas no doador, no homem que conferiu a herança.

Pois se Smith, Jones e Stargell têm direito a seus trabalhos e propriedades, e a trocar os

títulos de suas propriedades pelas propriedades dos outros, eles também têm o direito de

doar suas propriedades para quem quiserem. E, evidentemente, a maioria de tais

doações consiste de presentes dos proprietários a seus filhos – ou seja, heranças. Se

Willie Stargell é dono de seu trabalho e do dinheiro que ganha através dele, então ele

tem o direito de dar esse dinheiro ao bebê Stargell.

Na economia de livre mercado desenvolvida, portanto, o fazendeiro troca trigo por

dinheiro; o trigo é comprado pelo moleiro, que o tritura e transforma em farinha; o

moleiro vende a farinha ao padeiro, que produz pão; o padeiro vende o pão ao

Page 31: Por uma Nova Liberdade - O Manifesto Libertário - Murray N. Rothbard (Incompleto)

atacadista, que, por sua vez, o vende ao varejista, que finalmente o vende ao

consumidor. E em cada etapa do caminho o produtor pode contratar os serviços dos

trabalhadores em troca de dinheiro. Como o “dinheiro” entra na equação é um processo

complicado; mas deve estar claro que, conceitualmente, o uso do dinheiro é equivalente

ao uso de qualquer mercadoria ou grupo de mercadorias úteis que são trocadas pelo

trigo, pela farinha, etc. Em vez do dinheiro, a mercadoria trocada poderia ser um tecido,

ferro ou qualquer outra coisa. Em cada etapa do caminho, trocas mutuamente benéficas

de títulos de propriedade são acordadas e executadas.

Nós estamos agora em posição de ver como o libertário define o conceito de

“liberdade”. A liberdade é a condição na qual os direitos de propriedade de uma pessoa

sobre seu próprio corpo e suas legítimas propriedades materiais não são invadidos, não

são agredidos. Um homem que rouba a propriedade de outro homem está invadindo e

restringindo a liberdade da vítima, assim como faz o homem que bate na cabeça de

outro homem. A liberdade e o irrestrito direito de propriedade caminham lado a lado.

Por outro lado, para o libertário, um “crime” é um ato de agressão aos direitos de

propriedade de um homem, seja à sua pessoa ou aos seus bens materiais. Um crime é

uma invasão, através do uso da violência, da propriedade, e portanto da liberdade, de

um homem. “Escravidão” – o oposto da liberdade – é a condição na qual o escravo tem

pouco ou nenhum direito de auto-propriedade; sua pessoa e os produtos de seu trabalho

são sistematicamente expropriados por seu senhor através do uso da violência.

O libertário, portanto, claramente é um individualista, mas não um igualitário. A única

“igualdade” que ele defenderia é o igual direito de todo homem à propriedade de sua

pessoa, dos recursos não-usados de que ele se apropriou e dos bens adquiridos através

de trocas voluntárias ou doações.

Direitos de propriedade e "direitos humanos"

Os liberais geralmente concederiam o direito de todo indivíduo à sua “liberdade

pessoal”, à sua liberdade de pensar, falar, escrever, e fazer “trocas” pessoais tais como

atividades sexuais entre “adultos consensuais”. Ou seja, o liberal pretende defender o

direito do indivíduo de propriedade sobre o próprio corpo, mas nega o direito à

“propriedade”, isto é, à posse de objetos materiais. Dessa forma, o liberal típico faz uma

distinção entre os “direitos humanos”, que ele defende, e os “direitos de propriedade”,

que rejeita. Contudo, os dois, de acordo com o libertário, estão inextricavelmente

interligados; ou são ambos válidos, ou caem juntos.

Tome-se, por exemplo, o liberal socialista que defende a propriedade governamental de

todos os “meios de produção” ao mesmo tempo em que dá suporte ao direito “humano”

da livre expressão ou da liberdade de imprensa. Como poderia este direito “humano” ser

exercido se os indivíduos que constituem o público têm seus direitos de propriedade

negados? Se, por exemplo, o governo tem a propriedade sobre todo o papel para

impressão e de todas as gráficas, como poderia o direito à liberdade de imprensa ser

exercido? Se o governo é dono de todo o papel, então ele necessariamente tem o direito

e o poder para alocá-lo de qualquer maneira, e o direito do indivíduo à “liberdade de

imprensa” se torna uma piada se o governo decide não direcioná-lo a ele. E já que o

governo deve alocar o escasso papel para impressão de alguma maneira, o direito à

liberdade de imprensa de, digamos, minorias ou anti-socialistas “subversivos” não seria

realmente tão respeitado. O mesmo vale para o “direito de livre expressão” se o governo

é dono de todos os saguões de reunião e os aloca da forma que lhe convém. Ou, por

Page 32: Por uma Nova Liberdade - O Manifesto Libertário - Murray N. Rothbard (Incompleto)

exemplo, se o governo da Rússia Soviética, sendo ateu, decide não alocar muitos

recursos escassos para a produção de pães ázimos, para os judeus ortodoxos a

“liberdade de religião” se torna uma piada; mas, novamente, o governo soviético pode

sempre responder que os judeus ortodoxos são só uma pequena minoria e que os bens

de capital não deveriam ser desviados para a produção de pães ázimos.

A falha básica da divisão liberal entre “direitos humanos” e “direitos de propriedade” é

que as pessoas são tratadas como abstrações etéreas. Se um homem possui o direito de

auto-propriedade, de controlar sua vida, então no mundo real ele também deve ter o

direito de sustentar sua vida através da apropriação e da transformação de recursos; ele

deve poder ter a propriedade sobre o solo onde pisa e sobre os recursos de que faz uso.

Em suma, para sustentar seus “direitos humanos” – os direitos de propriedade sobre sua

pessoa –, ele precisa também ter direitos de propriedade sobre o mundo material, sobre

os objetos que produz. Direitos de propriedade são direitos humanos, e são essenciais

aos direitos que os liberais pretendem proteger. O direito humano à liberdade de

imprensa depende do direito humano de propriedade privada na imprensa.

Na verdade, não há direitos humanos separáveis dos direitos de propriedade. O direito

humano à livre expressão é simplesmente o direito de alugar ou possuir um saguão de

reuniões onde discursar; o direito humano à liberdade de imprensa é o direito de

propriedade de comprar materiais, imprimir panfletos ou livros e vendê-los àqueles que

desejam comprar. Não existe nenhum outro “direito à livre expressão” ou à “liberdade

de imprensa” além dos direitos de propriedade que podemos enumerar em cada caso. E,

além disso, através da descoberta e da identificação dos direitos de propriedade

envolvidos em cada caso é possível resolver qualquer conflito de direitos aparente que

possa vir a surgir.

Considere-se, por exemplo, o clássico exemplo onde os liberais geralmente concedem

que o “direito à livre expressão” de uma pessoa precisa ser restringindo em nome do

“interesse público”: o famoso dito de Justice Holmes segundo o qual ninguém tem o

direito de gritar “fogo” falsamente em um teatro lotado. Holmes e seus seguidores

utilizaram esta ilustração repetidamente para provar a suposta necessidade de que todos

os direitos sejam relativos e experimentais em vez de precisos e absolutos.

Mas o problema aqui não reside no fato de que os direitos não possam ser estendidos

dessa forma, mas no fato de que todo o caso é discutido nos vagos termos da “liberdade

de expressão” e não em termos de direitos de propriedade privada. Analisemos o

problema sob a perspectiva dos direitos de propriedade. O homem que causa tumulto

por gritar falsamente “fogo” num teatro cheio é, necessariamente, ou o dono do teatro

(ou um funcionário do dono) ou um cliente pagante. Se for o dono, então ele fraudou

seus clientes. Ele tomou o dinheiro deles em troca da promessa de que uma peça seria

encenada, e agora, ao invés disso, ele interrompe a encenação gritando falsamente

“fogo” e acaba com o espetáculo. Assim, ele quebrou suas obrigações contratuais e,

dessa forma, roubou a propriedade – o dinheiro – de seus clientes, violando seus

direitos.

Suponha-se, por outro lado, que quem deu o grito tenha sido um cliente e não o dono do

teatro. Neste caso, ele está violando o direito de propriedade do dono – assim como o

dos outros convidados que pagaram pelo espetáculo. Como convidado, ele ganhou

acesso à propriedade condicionado ao cumprimento de certos termos, incluindo a

obrigação de não violar a propriedade do dono ou interromper a encenação. Seu ato

Page 33: Por uma Nova Liberdade - O Manifesto Libertário - Murray N. Rothbard (Incompleto)

malicioso, portanto, viola os direitos de propriedade do dono do teatro e de todos os

outros clientes.

Não é necessário, por essa razão, que os direitos individuais sejam restringidos no caso

do falso grito de “fogo”. Os direitos do indivíduo ainda são absolutos; mas são direitos

de propriedade. O homem que maliciosamente grita “fogo” num teatro lotado é de fato

um criminoso, mas não porque seu “direito à liberdade de expressão” deve ser

pragmaticamente restringido em prol do “bem público”; ele é um criminoso porque

clara e obviamente violou os direitos de propriedade de outra pessoa.

Notas:

1 Veja Getrude Himmelfarb, Lord Acton: A Study in Conscience and Politics (Chicago:

Phoenix Books, 1962), PP. 194-05. Compare também com John Wild, Plato’s Modern

Enemies and the Theory of Natural Law (Chicago: University of Chicago Press, 1953),

p. 176.

2 John Locke, An Essay Concerning the True Original Extent and End of Civil

Government, in: E. Barker (ed.), Social Contract (New York: Oxford University Press,

1948), pp. 17-18.

3 Locke, Civil Government, pp. 18-49. Embora Locke fosse um teórico brilhante, nós

não afirmamos que ele tenha desenvolvido ou aplicado sua teoria de forma

completamente consistente.

4 Homestead significa “apropriação original”. Também pode ser traduzido como

“usucapião”, como é de uso corrente no vocabulário legal brasileiro. Homesteader,

portanto, é o indivíduo que se apropria originalmente de algo – no caso, da terra. Como

não há um correlato em português satisfatório, optou-se por deixar a palavra no original.

[N.T.]

5 O que o autor quis dizer é que os animais se encaixam no rótulo terra, utilizado

principalmente pelos economistas clássicos. Na economia política clássica, havia três

fatores de produção: o trabalho, o capital e a terra. A terra é definida como todo o

universo material a não ser o homem. Dessa forma, até mesmo os animais podem ser

incluídos nessa categoria. [N.T.]

6 Locke, Civil Government, p. 20.

7 Leon Wolowski e Emile Levasseur, “Property” in: Lalor’s Cyclopedia of Political

Science (Chicago: M.B. Cary & Co., 1884), III, pp. 392-93.

8 Parker Thomas Moon, Imperialism and World Politics (New York: Macmillan, 1930),

p. 58.

Page 34: Por uma Nova Liberdade - O Manifesto Libertário - Murray N. Rothbard (Incompleto)

9 “Liberal”, aqui, segundo a definição americana do termo. O “liberal” em questão

equivaleria aos social-democratas fora dos Estados Unidos. Mais adiante no texto o

autor utilizará novamente os termos na acepção americana, então é necessário que se

tenha esta distinção em mente. [N.T.]

10 Arnold W. Green, “The Recified Villain”, Social Research (Inverno, 1968), p. 656.

11 Frank Chodorov, The Rise and Fall of Society (New York: Devin Adair, 1959), pp.

29-30.

3. O estado, o agressor

O impulso central do pensamento libertário é se opor a qualquer agressão contra os

direitos de propriedade dos indivíduos em suas próprias pessoas e em objetos materiais

que eles adquiriram voluntariamente. Embora os indivíduos e gangues criminosas sejam

obviamente contestados, não há nada de exclusivo do credo libertário aqui, já que quase

todas as pessoas e escolas de pensamento se opõem ao exercício da violência aleatória

contra as pessoas e propriedades.

Há, porém, uma diferença de ênfase por parte dos libertários, até mesmo nesta área

universalmente aceita da defesa das pessoas contra o crime. Em uma sociedade

libertária não haveria um "promotor distrital" que processa criminosos em nome de uma

"sociedade" não existente, mesmo contra o desejo da vítima do crime. A própria vítima

iria decidir se faria as acusações. Além do mais, como o outro lado da mesma moeda,

em um mundo libertário a vítima poderia abrir um processo contra um malfeitor sem ter

que convencer o mesmo promotor distrital de que ele deveria prosseguir. Além disso,

no sistema de punição criminal no mundo libertário, a ênfase não seria nunca, como é

atualmente, no aprisionamento do criminoso pela "sociedade"; a ênfase seria

necessariamente em compelir o criminoso a fazer uma restituição à vítima do seu crime.

O sistema presente, no qual a vítima não é recompensada, mas ao invés disso, tem que

pagar taxas para sustentar o encarceramento do seu próprio agressor — seria um

absurdo evidente em um mundo que focasse na defesa dos direitos de propriedade e,

portanto, na vítima do crime.

Além do mais, embora a maioria dos libertários não seja pacifista, eles não iriam se

juntar ao sistema presente interferindo nos direitos das pessoas de serem pacifistas.

Assim, suponha que Jones, um pacifista, é agredido por Smith, um criminoso. Se Jones,

como resultado de suas crenças, é contra se defender com o uso da violência e se opõe,

portanto, a qualquer processo criminal, logo Jones vai simplesmente deixar de abrir um

processo e este será o fim da história. Não haverá nenhuma máquina governamental que

persegue e ataca criminosos mesmo contra a vontade da vítima.

Mas a diferença crítica entre os libertários e as outras pessoas não está na área do crime

privado; a diferença crítica consiste na sua visão do estado — o governo — como um

todo. Isto se deve ao fato de que os libertários consideram o estado como sendo o

supremo, o incessante e o mais organizado agressor das pessoas e das propriedades da

massa do público. Todos os estados em todos os lugares, sejam eles democráticos,

ditatoriais ou monárquicos, sejam vermelhos, brancos, azuis ou marrons.

Page 35: Por uma Nova Liberdade - O Manifesto Libertário - Murray N. Rothbard (Incompleto)

O estado! Sempre e sucessivamente o governo e os seus comandantes e operadores têm

sido considerados acima da lei moral geral. Os "Papéis do Pentágono" são apenas uma

instância recente entre inúmeras outras instâncias na história dos homens que mentem

até os dentes perante o público, os quais são em sua maioria perfeitamente honráveis

nas suas vidas privadas. Por quê? Por "razões do estado". Serviço para o estado supõe

desculpar todas as ações que seriam consideradas imorais e criminosas se cometidas por

cidadãos "privados". A distinção essencial dos libertários é que eles, calmamente e sem

compromisso, aplicam a lei moral geral às pessoas agindo em suas funções como

membros do aparato estatal. Os libertários não fazem exceções. Por séculos o estado (ou

mais estritamente, indivíduos agindo nas suas funções como "membros do governo")

disfarçou as suas atividades criminosas em uma retórica pretensiosa. Por séculos o

estado cometeu assassinatos em massa e os chamou de "guerra"; também enobreceu a

escravidão em massa que a "guerra" envolve. Por séculos o estado tem escravizado

pessoas nos seus batalhões armados e chamou isso de "recrutamento" para o "serviço

nacional". Por séculos o estado tem roubado pessoas em escala territorial e chamou isso

de "taxação". De fato, se você gostaria de saber como os libertários enxergam o estado e

qualquer um de seus atos, simplesmente pense no estado como uma organização

criminosa, de repente todas as atitudes libertárias irão logicamente fazer sentido.

Vamos considerar, por exemplo, o que é que formalmente distingue o governo de todas

as outras organizações na sociedade. Muitos cientistas políticos e sociólogos têm

obscurecido esta distinção vital e se referem a todas as organizações e grupos como

sendo hierárquicos, estruturados, "governamentais", etc. Anarquistas de esquerda, por

exemplo, irão se opor da mesma maneira ao governo e às organizações privadas tais

como as corporações, tomando como base que todos são igualmente "elitistas" e

"coercivos". Mas o libertário "direitista" não se opõe à desigualdade, sua concepção de

"coerção" se aplica somente ao uso da violência. O libertário enxerga uma distinção

crucial entre o governo, seja este central, estadual ou local, e todas as outras instituições

da sociedade. Ou até mesmo, duas distinções cruciais. Primeiramente, qualquer outra

pessoa ou grupo recebe sua renda através de pagamentos voluntários: seja por

contribuição ou presente voluntário (tal como a comunidade beneficente local ou um

clube de bridge), ou por compras voluntárias dos seus produtos ou serviços no mercado

(i.e., dono de armazém, jogador de baseball, manufaturador de aço, etc.). Somente o

governo obtém a sua renda através da coerção e da violência — i.e., através da ameaça

direta de confisco e detenção caso o pagamento não seja feito prontamente. Esta

cobrança coerciva se chama "taxação". Uma segunda distinção é que,

independentemente dos criminosos fora da lei, somente o governo pode usar os seus

fundos para cometer violência contra os seus próprios e quaisquer outros súditos;

somente o governo pode proibir a pornografia, compelir uma obediência religiosa, ou

colocar pessoas na prisão por venderem produtos a um preço maior do que o governo

considera que seja justo. Ambas as distinções, é claro, podem ser resumidas assim:

somente o governo, na sociedade, tem o poder de cometer a agressão contra os direitos

de propriedade dos seus súditos, seja para extrair a sua renda, para impor o seu código

moral, ou para matar aqueles dos quais ele discorda. Além do mais, todo e qualquer

governo, até mesmo o menos déspota, sempre obteve o volume de sua renda através do

poder coercivo da taxação. E já que vimos que o impulso central do pensamento

libertário é se opor a qualquer agressão contra os direitos de todos à vida e à

propriedade, o libertário necessariamente se opõe à instituição do estado por ser o

inimigo inerente e majoritariamente mais importante destes direitos preciosos.

Page 36: Por uma Nova Liberdade - O Manifesto Libertário - Murray N. Rothbard (Incompleto)

Existe outra razão pela qual a agressão estatal tem sido de longe mais importante do que

a privada, uma razão à parte da maior organização e mobilização central de recursos que

os governantes do estado podem impor. A razão é a ausência de qualquer obstáculo à

depredação estatal, um obstáculo que existe quando nós temos que nos preocupar com

assaltantes ou com a Máfia. Para nos defender de criminosos privados, temos podido

nos voltar ao estado e à sua polícia; mas quem pode nos defender do próprio estado?

Ninguém. Outra distinção crítica do estado é que ele compele o monopólio do serviço

de proteção; o estado arroga para si mesmo um monopólio virtual da violência e da

tomada de decisões na sociedade. Se nós não gostamos das decisões das cortes do

estado, por exemplo, não há outras agências de proteção para as quais nós podemos nos

voltar.

É verdade que nos Estados Unidos, pelo menos, nós temos uma constituição que impõe

limites estreitos em alguns poderes do estado. Mas, como nós descobrimos no século

passado, nenhuma constituição pode se interpretar ou se fazer cumprir; ela precisa ser

interpretada pelos homens. E se o poder máximo de interpretar a constituição é dado à

própria Corte Suprema do governo, então a tendência inevitável é que a Corte continue

dando suporte ao aumento de poderes para o próprio governo. Além do mais, as mais

altas "restrições e balanços" e "separações de poderes" no governo Americano de fato

são frágeis, já que na análise final, todas estas divisões são partes do mesmo governo e

são governados pelo mesmo conjunto de governantes.

Um dos teóricos políticos mais brilhantes dos EUA, John C. Calhoun, escreveu

profeticamente uma das tendências inerentes da quebra do estado através dos limites de

sua constituição escrita.

Uma constituição escrita certamente tem muitas vantagens consideráveis, mas é um

grande erro achar que a mera inserção de condições para restringir e limitar os poderes

do governo, sem investir de autoridade aqueles que foram inseridos na proteção, com os

meios de forçar a sua obediência, serão suficientes para prevenir o partido dominante e

majoritário de abusar dos seus poderes. Sendo o partido com a posse do governo, ele

vai. . . favorecer os poderes garantidos pela constituição e se opor às restrições que

pretendem limitá-lo. Na qualidade de partidos dominantes e majoritários, eles não terão

necessidade destas restrições para sua proteção...

O partido minoritário e mais fraco, ao contrário, iria tomar a direção oposta e considerá-

las essenciais à sua proteção contra o partido dominante... Mas onde não há meios pelos

quais eles poderiam compelir o partido majoritário a obedecer às restrições, o único

recurso deixado para eles seria uma rigorosa construção da constituição... Para isso o

partido majoritário iria se opor a uma constituição liberal — uma que daria às palavras

da concessão o mais amplo meio pelo qual eles estariam susceptíveis. Seria então a

construção contra a construção — uma para contrair e a outra para ampliar os poderes

do governo ao máximo. Mas qual poderia ser o possível benefício da rigorosa

construção pelo partido minoritário, contra a interpretação liberal do majoritário, já que

este teria todos os poderes governamentais para levar a sua construção adiante e o outro

seria privado de todos os meios de executar a sua construção. Em um contexto tão

desigual, não restaria dúvidas do resultado. O partido em favor das restrições iria ser

subjugado... O final do contesto seria a subversão da constituição... as restrições iriam

finalmente serem anuladas e o governo seria convertido em um de poderes ilimitados.

Page 37: Por uma Nova Liberdade - O Manifesto Libertário - Murray N. Rothbard (Incompleto)

Nem a divisão do governo em departamentos independentes e separados, como eles se

consideram, preveniria este resultado... como cada um e todos os departamentos — e, é

claro, o governo inteiro — estaria sob o controle de uma maioria numérica, fica

demasiadamente claro também para requerer uma explicação que uma mera distribuição

dos seus poderes dentre seus agentes e representantes poderia fazer pouco ou nada para

conter sua tendência de opressão e abuso do poder.

Mas porque se preocupar com a fraqueza dos limites do poder governamental?

Especialmente em uma "democracia", a exemplo da frase tão freqüentemente usada

pelos liberais Americanos nos seus períodos de glória, antes da metade da década de

1960, quando as dúvidas começaram a se tornar evidentes na utopia liberal: "Não somos

nós o governo?" Na frase "nós somos o governo", o útil termo coletivo "nós" tem

capacitado uma camuflagem ideológica sobre a despida realidade exploradora da vida

política. Mas se nós somos realmente o governo, então qualquer coisa que um governo

faz a um indivíduo não é somente justo e não tirânico; é também "voluntário" por parte

da concessão individual. Se o governo incorreu um débito público enorme que deve ser

pago taxando um grupo em benefício de outro, esta realidade de ônus é

convenientemente obscurecida ao se dizer alegremente "nós devemos, a dívida é nossa"

(mas quem é "nós" o que é "nossa"?). Se o governo convoca um homem para as forças

armadas, ou até mesmo o põe na cadeia por opiniões dissidentes, então o homem está

somente "fazendo isto por ele mesmo" e, portanto, nada impróprio foi feito. Por este

raciocínio, os Judeus assassinados pelo governo Nazista, então, não foram assassinados;

eles devem ter "cometido suicídio", já que eles eram o governo (que foi

democraticamente escolhido), e, portanto, tudo o que o governo fez a eles foi apenas

voluntário por parte deles. Mas não há saída de tais coisas grotescas para os defensores

do governo, os quais vêem o estado como um agente meramente benevolente e

voluntário do público.

E então nós devemos concluir que "nós" não somos o governo; o governo não somos

"nós". O governo não "representa" de nenhum modo acurado a maioria das pessoas, mas

mesmo se o fizesse, mesmo se 90% da população decidisse assassinar ou escravizar os

outros 10%, isso ainda seria assassinato e escravidão, não seria suicídio ou escravidão

voluntária por parte da minoria oprimida. Crime é crime, agressão contra os direitos é

agressão, não importa a quantidade de cidadão que concordem com a opressão. Não há

nada de sagrado na maioria; a multidão linchada é, também, a maioria no seu próprio

domínio.

Mas embora, como no caso da multidão linchada, a maioria possa se tornar ativamente

tirânica e agressiva, a condição normal e contínua do estado é o comando oligárquico; o

comando de uma elite coerciva que conseguiu ganhar o controle do maquinário estatal.

Há duas razões básicas para isso: uma é a diversidade e divisão do trabalho inerente da

natureza do homem, o que dá origem a uma "Lei Rígida da Oligarquia" em todas as

atividades do homem; e em segundo vem a natureza parasítica do próprio

empreendimento estatal.

Nós dissemos que o individualista não é um igualitário. Parte da razão disto é o

discernimento individualista sobre a vasta diversidade e individualidade da raça

humana, uma diversidade que tem a chance de florescer e expandir a civilização e o

progresso dos padrões de vida. Indivíduos se diferem em habilidades e em interesses,

ambas ao alcance e em conjunto com as ocupações; e, portanto, em todas as ocupações

Page 38: Por uma Nova Liberdade - O Manifesto Libertário - Murray N. Rothbard (Incompleto)

e caminhos da vida, seja na produção de aço ou na organização de um clube de bridge, a

liderança na atividade será inevitavelmente assumida por um punhado relativamente

mais capacitado e eficaz, enquanto a maioria restante irá se formar em comuns

seguidores. Esta verdade se aplica em todas as atividades, sejam elas benéficas ou

maléficas (como em organizações criminosas). De fato, a descoberta Lei Rígida da

Oligarquia foi feita pelo sociólogo italiano Robert Michels, quem descobriu que o

Partido Social Democrático da Alemanha, apesar de seu compromisso retórico com o

igualitarismo, era rigidamente oligárquico e hierárquico na sua função real.

Uma segunda razão básica para o comando oligárquico do estado é a sua natureza

parasítica — o fato de que ele vive coercivamente da produção dos cidadãos. Para obter

sucesso para os seus patrocinadores, os frutos da exploração parasítica devem ser

confinados a uma relativa minoria, caso contrário o saque sem sentido de todos por

todos não resultaria em ganhos para ninguém. Em nenhum lugar a natureza coerciva e

parasítica do estado foi tão claramente ilustrada quanto foi pelo grande sociólogo

alemão do século dezenove, Franz Oppenheimer. Oppenheimer apontou que há dois e

apenas dois meios mutuamente exclusivos para o homem obter bens. Um, o método de

produção e troca voluntária, o método do livre mercado, os quais Oppenheimer

denominou de "meios econômicos"; o outro, o método de roubo pelo uso da violência,

ele chamou de "meios políticos". Os meios políticos são claramente parasíticos, pois

requerem a produção prévia para que os exploradores possam confiscar, e eles subtraem

ao invés de adicionar à produção total da sociedade. Oppenheimer então procedeu em

definir o estado como sendo a "organização dos meios políticos" — a sistematização do

processo predatório sobre uma determinada área territorial.

Em resumo, o crime privado é, na melhor das hipóteses, esporádico e incerto; o

parasitismo é efêmero, e a linha de vida coerciva e parasítica pode ser cortada a

qualquer momento pela resistência das vítimas. O estado provê um canal legal,

ordenado e sistemático para os saques das propriedades dos produtores; ele faz a linha

de vida da casta parasítica da sociedade ser certa, segura e relativamente "pacífica". O

grande escritor libertário Albert Jay Nock escreveu vividamente que "o estado

reivindica e exerce o monopólio do crime... Ele proíbe o assassinato privado, mas ele

mesmo organiza assassinatos em uma escala colossal. Ele pune o roubo privado, mas

ele mesmo põe suas inescrupulosas mãos em tudo que ele quer, seja na propriedade dos

cidadãos ou dos imigrantes".

Inicialmente, é claro, é chocante para alguém considerar a taxação como sendo o

mesmo que o roubo e, portanto, o governo como um bando de assaltantes. Mas qualquer

um que persiste em pensar na taxação como sendo de algum modo um pagamento

"voluntário", pode ver o que acontece se escolher não pagar. O grande economista

Joseph Schumpeter, ele mesmo de modo algum um libertário, escreveu que "o estado

tem vivido da renda que estava sendo produzida na esfera privada para propósitos

privados e tiveram que ser desviados destes seus propósitos pela força política. A teoria

que interpreta as taxas pela analogia de mensalidades de um clube ou da compra de

serviços de, digamos, um doutor, só prova o quão afastado está esta parte das ciências

sociais dos hábitos científicos da mente." O eminente "positivista legal" de Venesa Hans

Kelsen tentou no seu tratado The General Theory of Law and the State, estabelecer uma

teoria política e justificação para o estado, à partir de um embasamento estritamente

"científico" e sem julgamento de valores. O que aconteceu é que no começo do seu

livro, ele veio com o ponto de partida crucial, o pons asinorum da filosofia política: O

Page 39: Por uma Nova Liberdade - O Manifesto Libertário - Murray N. Rothbard (Incompleto)

Que distingue os decretos do estado dos comandos de uma gangue criminosa? A

resposta de Kelsen foi simplesmente dizer que os decretos estatais são "válidos", e

procedeu alegremente daí, sem se preocupar em definir e explicar o conceito de

"validade". De fato, seria um exercício útil aos não libertários ponderar esta questão:

Como você pode definir a taxação de um modo que seja diferente do roubo?

Para o grande anarquista individualista — e advogado constitucional — Lysander

Spooner, não havia problema em achar a solução. A análise de Spooner sobre o estado

como um grupo assaltante talvez seja a mais devastadora que já foi escrita:

É verdade que na teoria de nossa constituição todos os impostos são pagos

voluntariamente; e o nosso governo é uma companhia de seguros mútua,

voluntariamente iniciada por cada uma das pessoas...

Mas esta teoria do nosso governo é completamente diferente do fato prático.

O fato é que o governo, assim como o ladrão de estrada, diz ao homem: "Seu

dinheiro, ou sua vida." E muitos dos impostos, se não a maioria, são pagos

sob a coação desta ameaça.

O governo, de fato, não intercepta um homem em um lugar isolado, brota ao

seu lado na estrada e, apontando uma pistola na sua cabeça, procede no

assalto aos seus bolsos. Mas o roubo continua sendo um roubo da mesma

maneira; e é muito mais covarde e humilhante.

O ladrão de estrada toma sozinho para si mesmo a responsabilidade, o

perigo e o crime do seu próprio ato. Ele não finge que tem qualquer

reivindicação legítima sobre o seu dinheiro, ou que ele pretende usá-lo para

o seu próprio benefício. Ele não tem a pretensão de ser nada além de um

ladrão. Ele não adquiriu a presunção suficiente para se professar um mero

"protetor", que toma o dinheiro dos homens contra a vontade deles

meramente para capacitá-lo de "proteger" aqueles tolos viajantes, os quais

se sentem perfeitamente capacitados para se protegerem ou não apreciam o

seu sistema peculiar de proteção. Ele é um homem muito sensato para fazer

declarações deste tipo. Além do mais, tendo tomado o seu dinheiro, ele te

deixa, assim como você gostaria que ele deixasse. Ele não persiste em te

seguir na estrada, contra a sua vontade; assumindo ser o seu legítimo

"soberano" por causa da proteção que ele te proporciona. Ele não se mantém

"protegendo" você, comandando você para se submeter e o servir; exigindo

que você faça isso e proibindo você de fazer aquilo; roubando mais do seu

dinheiro com a freqüência que ele julga ser do seu interesse ou pelo prazer

de fazer isso; marcando você como um rebelde, um traidor e um inimigo do

nosso país e atirando em você sem piedade se você questiona a sua

autoridade ou resiste aos seus comandos. Ele é muito cavalheiro para ser

culpado de tais imposturas, insultos e ultrajes como estes. Em resumo, ele

não pretende, além de te roubar, te enganar ou fazer de você o seu escravo.

Se o estado é um grupo de saqueadores, quem então constitui o estado? A elite

dominante consiste claramente, em qualquer momento, de (a) o aparatos de tempo

integral — os reis, políticos e burocratas que operam o estado; e (b) os grupos que

fizeram manobras para ganhar privilégios, subsídios e benefícios do estado. O restante

da sociedade constitui-se dos dominados. Foi, novamente, John C. Calhoun quem viu

com uma claridade cristalina que, não importa o quão pequeno seja o poder do Governo,

não importa o quão baixa seja a carga tributária ou o quão igual seja a sua distribuição, a

Page 40: Por uma Nova Liberdade - O Manifesto Libertário - Murray N. Rothbard (Incompleto)

pura natureza do governo cria duas classes desiguais e inerentemente conflitantes na

sociedade: aqueles que, em termos líquidos, pagam as taxas (os "pagadores de

impostos") e aqueles que, em termos líquidos, vivem das taxas (os "consumidores de

impostos"). Suponha que o governo imponha um imposto baixo, o qual pareça ser

igualmente distribuído, para pagar a construção de uma represa. Este simples ato pega

dinheiro da maioria do público para pagar os "consumidores de impostos": os burocratas

que conduzem a operação, os empreiteiros e os trabalhadores que constroem a represa,

etc. E quanto maior o escopo do poder de decisão do governo, maior a sua carga fiscal,

Calhoun prosseguiu, na carga e na diferença artificial que ela impõe entre estas duas

classes:

Os agentes e empregados do governo, que são relativamente poucos,

constituem aquela porção da comunidade que é exclusivamente a

destinatária dos procedimentos das taxas. Seja qual for a quantidade que é

retirada da comunidade na forma de taxas, se não for perdida, vai para eles

na forma de gastos e pagamentos. Os dois — pagamento e taxação —

constituem a ação fiscal do governo. Elas são correlativas. O que um tira da

comunidade sob o nome de taxas, é trasferido à porção da comunidade que é

a destinatária sob nome o de pagamentos. Mas como os destinatários

constituem apenas uma porção da comunidade, segue que, pegando juntas as

duas partes do processo fiscal, sua ação deve ser desigual dentre os

pagadores das taxas e os destinatários de seus procedimentos. Não poderia

ser diferente; a não ser que o que for coletado de cada indivíduo na forma de

taxas fosse retornado para ele na forma de pagamento, o que tornaria o

processo sem sentido e absurdo...

O resultado necessário da ação fiscal desigual do governo é, portanto, dividir a

comunidade em duas grandes classes: uma consistindo daqueles que na realidade pagam

as taxas e, é claro, exclusivamente agüentam a carga de suportar o governo; e a outra,

daqueles que são os destinatários dos procedimentos através dos seus pagamentos, os

quais são, de fato, sustentados pelo governo; ou em poucas palavras, dividi-la em

pagadores de impostos e consumidores de impostos.

Mas o efeito disto é colocá-las em relações antagônicas em referencia à ação fiscal do

governo — e o curso das práticas ligadas a elas. Quanto maiores são as taxas e

pagamentos, maior é o ganho de uma e a perda da outra, e vice versa... O efeito,

portanto, de cada aumento é enriquecer e fortalecer uma, e empobrecer e enfraquecer a

outra.

Se em todos os lugares os estados têm sido conduzidos por um grupo de predadores,

como eles têm conseguido manter seu controle sobre a massa da população? A resposta,

como o filósofo David Hume apontou há dois séculos, é que ao longo dos tempos todo

governo, não importa o quão ditatorial, vem se apoiando no suporte da maioria dos seus

súditos. Agora, é claro que isso não torna estes governos "voluntários", já que a própria

existência da taxa e outros poderes coercivos mostram quanta compulsão o estado

precisa exercer. Nem o suporte da maioria deve ser uma aprovação ávida e

entusiasmada; ele poderia bem ser uma aquiescência e resignação meramente passiva. A

conjunção na famosa frase "morte e taxas" implica a aceitação passiva e resignada da

inevitabilidade assumida do estado e da sua taxação.

Page 41: Por uma Nova Liberdade - O Manifesto Libertário - Murray N. Rothbard (Incompleto)

Os consumidores de impostos, os grupos que se beneficiam das operações do estado,

irão é claro ser seguidores mais ávidos do que passivos do mecanismo estatal. Mas estes

são apenas a minoria. Como é que pode ser assegurada a obediência e aquiescência da

massa da população? Nós chegamos aqui no problema central da filosofia política — o

ramo da filosofia que lida com a política, o exercício da violência regularizada: o

mistério da obediência civil. Por que as pessoas obedecem aos decretos e depredações

da elite dominante? O escritor conservador James Burnham, o qual é o inverso de um

libertário, põe o problema de forma muito clara, admitindo que não há justificação

racional para a obediência civil: "Nem a fonte nem a justificação do governo pode ser

posta inteiramente em termos racionais... por que eu deveria aceitar a legitimidade

hereditária ou democrática ou de qualquer outro princípio? Por que um princípio

justifica o domínio de um homem sobre a minha pessoa?" Sua própria resposta é

dificilmente calculada para convencer muitos outros: "Eu aceito o princípio, bem... por

que eu aceito, por que é o jeito como as coisas são e têm sido." Mas suponha que

alguém não aceite o princípio; qual será o "jeito" então? E por que é que o volume dos

súditos concorda em aceitá-lo?

O estado e os intelectuais

A resposta é que, desde as remotas origens do estado, seus governantes têm sempre se

voltado para uma aliança com a classe intelectual da sociedade, sendo este um amparo

necessário ao seu domínio. As massas não criam suas próprias idéias abstratas, ou

pensam estas idéias independentemente de fato; elas seguem passivamente as idéias

adotadas e promulgadas pelo corpo dos intelectuais, que se tornam os "moldadores de

opinião" efetivos da sociedade. E já que é precisamente de uma moldação de opinião em

favor dos governantes que o estado necessita quase que desesperadamente, isto forma

uma base firme para a aliança dos intelectuais e das classes dominantes do estado desde

a idade-antiga. A aliança é baseada em um quid pro quo: de um lado, os intelectuais

difundem dentre as massas que o estado e seus governantes são sábios, bons, às vezes

divinos e bem por último, inevitáveis e melhores do que quaisquer alternativas

convencíveis. Em retorno por esta ideologia protetora, o estado incorpora os intelectuais

como parte da elite dominante, garantindo a eles poder, status, prestígio e segurança

material. Além do mais, os intelectuais são necessários para prover a burocracia com

pessoal e para "planejar" a economia e a sociedade.

Antes da era moderna, a casta sacerdotal era particularmente potente dentre os ajudantes

do estado, consolidando a poderosa e terrível aliança do chefe guerreiro e do homem da

medicina, do trono e do altar. O estado "estabeleceu" a Igreja e a conferiu poder,

prestígio e riquezas extraídas dos seus súditos. Em troca, a Igreja consagrou o estado

com uma sanção divina e apontou esta sanção à população. Na era moderna, quando os

argumentos teocráticos perderam a maior parte do seu esplendor perante o público, os

intelectuais passaram a posar como um núcleo científico de "especialistas" e têm estado

ocupados informando o público infeliz que os afazeres políticos, internos e externos,

são muito complexos para as pessoas comuns se preocuparem. Só o estado e o seu

corpo de intelectuais especialistas, planejadores, cientistas, economistas, e "gerentes da

segurança nacional" podem almejar lidar com estes problemas. A função das massas,

mesmo nas "democracias", é ratificar e consentir as decisões dos sábios governantes.

Historicamente, a união da Igreja e do estado, do Trono e do Altar, foi o artifício mais

eficiente para induzir obediência e suporte perante os súditos. Burnham atesta o poder

Page 42: Por uma Nova Liberdade - O Manifesto Libertário - Murray N. Rothbard (Incompleto)

do mito e do mistério na indução do suporte público quando ele escreve que "Nos

tempos remotos, antes que as ilusões da ciência tivessem corrompido a sabedoria

tradicional, os fundadores das cidades eram conhecidos por serem deuses ou semi-

deuses." Para o estabelecido ofício-sacerdotal, o governante ou era consagrado por Deus

ou, como no caso do regime absolutista de muitos despotismos orientais, era ele o

próprio Deus; portanto, qualquer questionamento ao seu comando seria blasfêmia.

As armas ideológicas que o estado e seus intelectuais usaram ao longo dos séculos para

induzir seus súditos a aceitarem seu regime são numerosas e sutis. Uma arma excelente

foi o poder da tradição. Quanto mais longa for duração do regime de qualquer estado,

mais poderosa se torna esta arma; pois então a dinastia-X ou o estado-Y tem o peso de

uma aparente tradição de séculos por trás deles. A adoração dos ancestrais de alguém se

torna então meios não-tão-sutis de cultivar a adoração pelos ancestrais dos governantes.

A força da tradição é, de fato, apoiada pelo costume antigo, o qual confirma aos súditos

a aparente propriedade e legitimidade do regime sob o qual eles vivem. Deste modo, o

teórico político Bertrand De Jouvenel escreveu:

A razão essencial da obediência é que ela se tornou um costume das

espécies... Para nós, o poder é um fato da natureza. Desde os tempos mais

remotos da história documentada ela tem presidido sobre os destinos

humanos... as autoridades que governaram... nos tempos passados não

desapareceram sem deixar para os seus sucessores os seus privilégios ou sem

deixar na mente humana impressões que são cumulativas em seus efeitos. A

sucessão de governos que, ao longo dos séculos, comandou a mesma

sociedade, pode ser visto como um governo obscuro que emprega acréscimos

contínuos.

Outra força ideológica potente usada pelo estado é a depredação do indivíduo e a

exaltação do coletivo da sociedade, tanto do passado quanto do presente. Qualquer voz

isolada, qualquer levantador de novas questões pode ser atacado por ser um violador

profano da sabedoria de seus ancestrais. Além do mais, qualquer idéia nova, ainda mais

qualquer idéia crítica nova, deve necessariamente começar como sendo a opinião de

uma pequena minoria. Desta maneira, para repelir qualquer idéia que seja

potencialmente perigosa em ameaçar a aceitação majoritária do seu regime, o estado irá

tentar alfinetar a nova idéia, ridicularizando qualquer idéia que seja contra a opinião da

massa. Os modos pelos quais os governantes do estado nos antigos despotismos

Chineses usaram a religião como um método de cegar o indivíduo para o regime

Estatista da sociedade foi sumarizado por Norman Jacobs:

A religião chinesa é uma religião social, procurando resolver os problemas

de interesses sociais, não de interesses individuais... A religião é

essencialmente uma força de ajuste e controle social impessoal — ao invés de

um instrumento para soluções pessoais do indivíduo — e ajuste e controle

social são efetuados através da educação e da reverência pelos superiores...

Reverência pelos superiores — superiores em idade e, portanto, em educação

e experiência — é a fundação ética do ajuste e controle social... Na China, a

relação interpessoal da autoridade política com a religião ortodoxa iguala

heterodoxia com o erro político. A religião ortodoxa foi particularmente

ativa em perseguir e destruir os setores heterodoxos; com isso ele foi banido

pelo poder secular.

Page 43: Por uma Nova Liberdade - O Manifesto Libertário - Murray N. Rothbard (Incompleto)

A tendência geral do governo procurar e impedir qualquer ponto de vista heterodoxo foi

esboçado, em um estilo tradicionalmente gracioso e agradável, pelo escritor libertário

H.L. Mencken:

Tudo [que o governo] pode ver em uma idéia original é um potencial de

mudança e, portanto, uma invasão às prerrogativas. O homem mais perigoso,

para qualquer governo, é o homem capaz de pensar as coisas por ele mesmo,

sem considerar as superstições e tabus correntes. Ele, quase que

inevitavelmente, chega à conclusão que o governo sob o qual ele vive é

desonesto, insano e intolerável e assim sendo, se ele for romântico, ele vai ter

mudar isso. E mesmo se ele não for pessoalmente romântico, ele é muito apto

a difundir o descontentamento dentre aqueles que são.

É também particularmente importante para qualquer estado fazer com que o seu regime

pareça inevitável: mesmo se o seu reinado não agrade, como é freqüentemente o caso,

isso será recebido com uma resignação passiva expressa no casamento familiar da

"morte e taxas." Um método é trazer para o seu lado o determinismo histórico: se o

estado-X nos governa, então isso foi inevitavelmente decretado para nós pelas Leis

Inexoráveis da História (ou pela Vontade Divina, ou o Absoluto, ou as Forças Materiais

Produtivas), e nada que quaisquer indivíduos insignificantes façam pode mudar o

inevitável. É importante também para o estado inculcar nos seus súditos a aversão a

qualquer afloramento do que é hoje chamado de "teoria da conspiração da história."

Uma busca por "conspirações", por mais sem sentido que sejam freqüentemente os

resultados, significa uma busca por motivos e uma atribuição de responsabilidade

individual para com os delitos históricos das elites dominantes. Se, por outro lado,

qualquer tirania ou venalidade ou guerra agressiva imposta pelo estado não foi trazida

pelos governantes de um estado em particular, mas por "forças sociais" misteriosas e

enigmáticas, ou por um estado imperfeito do mundo — ou se, de alguma forma, todos

foram culpados ("Nós todos somos assassinos," proclama um slogan comum), então não

há razão pela qual alguém fique indignado e conteste tais delitos. Além do mais, o

descrédito das "teorias da conspiração" — ou até mesmo, de qualquer coisa cheia de

"determinismo econômico" — vai fazer com que os súditos fiquem mais aptos a

acreditar nas razões do "bem estar geral" que são invariavelmente postas à vista pelo

estado moderno para engajar em quaisquer ações agressivas.

É então feito com que o domínio do estado aparente inevitável. Além do mais, qualquer

alternativa ao estado existente é envolvida em uma áurea de medo. Ao negligenciar o

seu próprio monopólio do roubo e da função predatória, o estado provoca dentre os seus

súditos um aspecto de caos que supostamente iria se seguir caso o estado viesse a

desaparecer. É sustentado que as pessoas nunca poderiam sustentar, por conta própria, a

sua própria proteção contra criminosos e saqueadores esporádicos. Além do mais, cada

estado tem sido particularmente bem sucedido ao longo dos séculos em instaurar o

medo dentre os seus súditos e outros governantes do estado. Com a área territorial do

globo agora parcelada entre estados particulares, uma das doutrinas básicas e táticas dos

governantes de cada estado tem sido se identificar com o território que ele governa. A

partir do momento que a maioria dos homens tende a amar a sua terra natal, a

identificação daquela terra e da sua população com o estado é um meio de fazer o

patriotismo natural funcionar em prol do estado. Se então a "Ruritania" é atacada pela

"Walldavia", a primeira tarefa do estado Ruritanio e dos seus intelectuais é a de

convencer as pessoas da Ruritania que o ataque é realmente a elas e não simplesmente à

Page 44: Por uma Nova Liberdade - O Manifesto Libertário - Murray N. Rothbard (Incompleto)

classe dominante. Desta forma, uma guerra entre governantes se torna uma guerra entre

pessoas, com cada pessoa investindo na defesa de seus governantes pela crença errônea

de que os governantes estão as defendendo ativamente. Este mecanismo de

nacionalismo tem sido bastante eficiente nos séculos recentes; não era assim há um

tempo, pelo menos na Europa Ocidental, quando a massa dos súditos considerava

guerras como batalhas irrelevantes entre diversos grupos de nobres e suas comitivas.

Outro método experimentado e preciso para submeter os súditos à vontade de alguém é

a infusão de culpa. Qualquer aumento no bem-estar privado pode ser atacado como

"ganância inescrupulosa", "materialismo" ou "riqueza excessiva"; e trocas mutuamente

voluntárias no mercado podem ser denunciadas como "egoísmo." De alguma forma as

conclusões tiradas sempre são as de que mais recursos precisam ser expropriados do

setor privado e extraídos para o setor do público parasita, ou do estado. Freqüentemente

a intimação ao público para que este entregue mais recursos é exprimida pela elite

dominante por uma intimação severa por mais "sacrifícios" pelo bem comum ou

nacional. Porém, de alguma forma enquanto o público supostamente precisa sacrificar e

reduzir a sua "ganância materialista", os sacrifícios são sempre unilaterais. O estado não

se sacrifica; o estado impacientemente rouba mais e mais dos recursos materiais do

público. De fato, é um domínio influente útil: quando o seu governante intimar em voz

alta por "sacrifícios", olhe para a sua própria vida e seus recursos financeiros.

Este tipo de argumentação reflete um padrão duplo geral de moralidade que é sempre

aplicado somente aos governantes do estado e ninguém mais. Ninguém, por exemplo,

fica surpreso ou horrorizado por aprender que os homens de negócios procuram lucros

maiores. Ninguém se horroriza se os trabalhadores deixam os seus empregos de salários

inferiores para entrarem naqueles com salários superiores. Tudo isto é considerado um

comportamento próprio e normal. Mas se qualquer um ousar afirmar que os políticos e

burocratas são motivados pelo desejo de maximizarem seus lucros, o clamor por justiça

de "teoria conspiratória" ou "determinismo econômico" se difunde no território. A

opinião geral — cultivada cuidadosamente pelo estado é claro — é que o homem entra

na política ou no governo puramente por uma preocupação devota pelo bem comum e

pela prosperidade. O que dá aos cavalheiros do aparato estatal a sua aura de

superioridade moral? Talvez seja o conhecimento instintivo e vago da população de que

o estado está engajado no roubo e depredação sistemáticos, assim, eles poderiam sentir

que apenas uma dedicação ao altruísmo por parte do estado tornaria toleráveis estas

ações. Considerar políticos e burocratas sujeitos aos mesmos interesses monetários que

todo mundo arrancaria o disfarce de Robbin Hood da depredação estatal. Estaria claro

então que, fraseando Oppenheimer, cidadãos ordinários estavam buscando os "meios

econômicos" pacíficos e produtivos para a riqueza, enquanto o aparato estatal estava se

devotando aos "meios políticos" coercivos e exploradores. As roupas do imperador de

suposta preocupação altruísta pelo bem comum seriam então arrancadas dele.

Os argumentos intelectuais usados pelo estado ao longo da história para "engenhar o

consenso" do público pode ser classificado em duas partes: (1) que o regime do governo

existente é inevitável, absolutamente necessário e muito melhor do que os maus

indescritíveis que surgiriam com a sua queda; e (2) que os governantes do estado são

homens especialmente grandiosos, sábios e altruístas — bem mais grandiosos, sábios e

avançados do que seus mero súditos. Nos tempos passados, o último argumento tomou a

forma do regime do "direito divino" ou do próprio "governante divino", ou pela

"aristocracia" dos homens. Nos tempos modernos, como nós indicamos anteriormente,

Page 45: Por uma Nova Liberdade - O Manifesto Libertário - Murray N. Rothbard (Incompleto)

este argumento não pressiona tanta aprovação divina quanto o regime de uma sábia

associação de "cientistas experts" especialmente dotados do conhecimento da arte de

governar e dos fatos enigmáticos do mundo. O crescente uso do jargão científico,

especialmente nas ciências sociais, permitiu os intelectuais a tecerem a apologia ao

regime estatal rival ao antigo poder sacerdotal de obscurantismo. Por exemplo, um

ladrão que presumiu justificar seu roubo falando que ele estava realmente ajudando as

suas vítimas com seus gastos, deste modo dando à troca a varejo um furto necessário,

seria forçado a interromper seu discurso sem atraso. Mas quando essa mesma teoria é

fechada nas equações matemáticas Keynesianas e em referências impressionantes ao

"efeito multiplicador", ganha muito mais convicção com um público iludido.

Nos anos recentes, temos visto um crescimento nos Estados Unidos da profissão de

"gerentes da segurança nacional", de burocratas que nunca se depararam com

procedimentos eleitorais, mas que continuam, administração após administração,

secretamente usando sua suposta esperteza especial para planejar guerras, intervenções

e aventuras militares. Apenas as suas notórias asneiras na guerra do Vietnã colocaram as

suas atividades em uma espécie de questão pública; antes disso eles podiam conduzir

alto, amplo e belo sobre o público que eles viam mais como a forragem do canhão para

os seus próprios propósitos.

O debate público entre o "isolacionista" senador Robert A. Taft e um dos líderes

intelectuais da segurança nacional, Mac George Bundy, foi instrutivo em demarcar

ambas as questões em jogo e a atitude da elite dominante intelectual. Bundy atacou Taft

no começo de 1951 por abrir um debate público no decorrer da guerra coreana. Bundy

insistiu que apenas os líderes policiais executivos estavam equipados para manipular

força diplomática e militarmente em um período prolongado de guerra limitada contra

as nações comunistas. Era importante, mantinha Bundy, que a opinião pública e o

debate público fosse excluído de promulgar qualquer orientação política nesta área. Ele

avisou que o público infelizmente não estava envolvido nos rígidos propósitos nacionais

discernidos pelos gerentes políticos; isso meramente respondeu às realidades ad hoc de

certas situações. Bundy também manteve que não deveria haver recriminações ou até

mesmo análises das decisões dos gerentes políticos, porque era importante que o

público aceitasse às suas decisões sem questionar. Taft, em contra partida, denunciou as

tomadas de decisões secretas os conselheiros militares e especialistas no ramo

executivo, decisões efetivamente seladas da apuração pública. Além do mais, ele

reclamava, "se qualquer um ousasse sugerir críticas ou até mesmo um debate, ele era

tachado como um isolacionista e um sabotador da unidade e da unidade e da política

externa bipartidária".

Similarmente, em um momento quando o presidente Eisenhower e o secretário de

estado Dulles estavam contemplando ir à guerra na Indochina, outro proeminente

gerente da segurança nacional, George F. Kennan, estava advertindo ao público que

"Existem momentos em que, tendo elegido um governo, estaremos melhor se deixarmo-

lo governar, deixarmo-lo falar por nós como ele fará nos conselhos das nações".

Nós vemos claramente porque o estado precisa dos intelectuais, mas por que os

intelectuais precisam do estado? Simplificando, o sustento dos intelectuais no livre

mercado não é geralmente muito seguro; o intelectual, como qualquer um no mercado,

precisa depender dos valores e escolhas das massas de seus companheiros homens e é

da característica das massas que elas são geralmente desinteressadas por assuntos

Page 46: Por uma Nova Liberdade - O Manifesto Libertário - Murray N. Rothbard (Incompleto)

intelectuais. O estado, por outro lado, está interessado em oferecer aos intelectuais um

berço quente, seguro e permanente no seu aparato, uma renda segura e o troféu de

prestígio.

A aliança impulsiva entre o estado e os intelectuais foi simbolizada pelo desejo ávido

dos professores na Universidade de Berlin a se formarem, no século dezenove, no que

eles mesmos proclamaram de "guarda-costas intelectuais da Casa de Hohenzollern." De

uma perspectiva ideológica superficialmente diferente, isso pode ser visto na reação

reveladoramente ultrajante do eminente escolástico Marxista da China antiga, Joseph

Needham, à áspera critica de Karl Wittfogel ao antigo despotismo chinês. Wittfogel

mostrou a importância, para o suporte do sistema, da glorificação confuciana dos

cavalheiros-escolásticos que gerenciavam a burocracia dominante da China despótica.

Needham acusou indignadamente que a "civilização que o professor Wittfogel está

atacando tão amargamente era uma que podia fazer poetas e escolásticos virarem

oficiais." Que importância tem um totalitarismo desde que a classe dominante seja

apoiada abundantemente por intelectuais certificados!

A atitude respeitadora e bajuladora dos intelectuais perante seus governantes tem sido

ilustrada inúmeras vezes ao longo da história. Uma cópia contemporânea americana do

"guarda-costas intelectual da Casa de Hohenzollern" é a atitude de muitos intelectuais

liberais perante o ofício e pessoa do presidente. Deste modo, para o cientista político

Professor Richard Neustadt, o presidente é a "único símbolo da realeza da união". E o

gerente político Townsend Hoopes, no inverno de 1960, escreveu que "sob o nosso

sistema, as pessoas podem olhar apenas para o presidente para definir a natureza de

nossa política externa e dos programas nacionais e sacrifícios requeridos para satisfazê-

los com efetividade." Após gerações com essa retórica, não é de admirar que Richard

Nixon descrevesse então, na noite de sua eleição presidencial, o seu papel: "Ele [o

presidente] deve articular os valores da nação, definir seus fins e guiar os seus desejos."

A concepção de Nixon sobre o seu papel é assombrosamente parecido com a articulação

de Ernst Huber, na Alemanha dos anos de 1930, da Lei Constitucional do Grandioso

Reich Germânico. Huber escreveu que a cabeça do estado "estabelece os grandes fins

que devem ser alcançados e compõe os planos para a utilização de todas as forças

nacionais na realização dos fins comuns... ele dá à vida nacional seu verdadeiro

propósito e valor."

A atitude e motivação dos guarda-costas intelectuais da segurança nacional

contemporânea do estado foi causticamente descrita por Marcus Raskin, quem foi um

membro assistente do Conselho da Segurança Nacional durante a administração

Kennedy. Chamando-os de "intelectuais mortíferos," Raskin escreve que:

...a função mais importante deles é justificar e dar boas vindas à existência

de seus empregadores... Para justificar a contínua produção em larga-escala

destas bombas e mísseis [termonucleares], líderes militares e industriais

precisavam de algum tipo de teoria para racionalizar o seu uso... Isso se

tornou particularmente urgente durante o final dos anos de 1950, quando a

economia — membros inclinados da Administração Eisenhower começaram

a se perguntar porque tanto dinheiro e recursos, pensaram, estavam sendo

gastos com armas se o seu uso não podia ser justificado. E então começaram

uma série de racionalizações pelos "intelectuais da defesa" dentro e fora das

universidades... A aquisição militar irá continuar a florescer e eles irão

Page 47: Por uma Nova Liberdade - O Manifesto Libertário - Murray N. Rothbard (Incompleto)

continuar a demonstrar por ela deve. Neste quesito eles não são diferentes da

grande maioria dos especialistas modernos que aceitam as suposições das

organizações que os empregam por causa das recompensas em dinheiro e do

poder e prestígio... Eles sabem o suficiente para não questionarem o direito

de seus empregadores existirem.

Isso não quer dizer que todos os intelectuais em todos os lugares têm sido "intelectuais

da corte", servidores e parceiros juniores do poder. Mas isso tem sido a condição

dominante na história das civilizações — geralmente na forma de um sacerdócio —

assim como a condição dominante nestas civilizações tem sido a de uma ou outra forma

de despotismo. Existiram, porém, algumas exceções gloriosas, particularmente na

história da civilização ocidental, onde os intelectuais haviam freqüentemente sido

críticos sinceros e oponentes do poder estatal, e haviam usado seus dons intelectuais

para moldar sistemas teóricos que podiam ser usados na luta pela libertação daquele

poder. Mas, invariavelmente, estes intelectuais só puderam surgir como uma força

significante quando eles puderam operar de uma base de poder independente — uma

propriedade como base independente — separada do aparato estatal. Aonde quer que o

estado controle todas as propriedades, riqueza, e oferta de empregos, todos estão

economicamente dependentes dele e se torna difícil, se não impossível, para que essa

crítica independente surja. Foi no ocidente, com o seu foco de poder descentralizado,

suas fontes de propriedade e oferta de empregos independentes e, conseqüentemente, de

bases para criticar o estado, onde um corpo de intelectuais pode florescer. Na idade

média, a igreja católica romana que era pelo menos separada, se não independente, do

estado, e as novas cidades livres foram capazes de servir como centros de oposição

intelectual e também substantiva. Nos últimos séculos, professores, ministros e

panfleteiros em uma sociedade relativamente livre eram capazes de usar a sua

independência do estado para agitar uma maior expansão da liberdade. Em contraste,

um dos primeiros filósofos libertários, Lao-tse, morando no meio do antigo despotismo

chinês, não via esperança em alcançar a liberdade naquela sociedade totalitária, exceto

por recomendar pacifismo, do ponto de vista da saída individual pra fora da vida social

completamente.

Com um poder descentralizado, com uma igreja separada do estado, com cidades e

municípios podendo se desenvolver fora da estrutura do poder feudal, e com liberdade

na sociedade, a economia pode se desenvolver na Europa ocidental de uma maneira que

transcendeu todas as civilizações anteriores. Além do mais, a estrutura tribal germânica

— e particularmente a celta — que sucedeu à desintegração do império romano, tinha

fortes elementos libertários. Ao invés de um poderoso aparato estatal exercendo um

monopólio da violência, as disputas eram resolvidas pela consulta dos homens tribais

opostos aos anciões da tribo na natureza e aplicação dos costumes e da lei comum da

tribo. O "chefe" era geralmente um mero líder de guerra que era chamado para o seu

papel de guerreiro apenas quando havia uma guerra com outras tribos a caminho. Não

havia guerra permanente ou uma burocracia militar nas tribos. Na Europa ocidental,

assim como em muitas outras civilizações, o modelo típico da origem do estado não era

através de um "contrato social" voluntário, mas pela conquista de uma tribo por outra. A

liberdade original da tribo ou da classe camponesa conseqüentemente vira vítima dos

conquistadores. Em primeiro lugar, a tribo conquistadora matou e saqueou as vítimas e

dominou. Mas às vezes os conquistadores decidiram que seria mais lucrativo instalar-se

no meio dos camponeses conquistados e controlá-los e saqueá-los de forma sistemática

e permanente. O tributo periódico extraído dos súditos conquistados foi eventualmente

Page 48: Por uma Nova Liberdade - O Manifesto Libertário - Murray N. Rothbard (Incompleto)

chamado de "taxação". Também, com igual generosidade, os caciques das tribos

parcelaram o território da classe camponesa aos vários líderes militares, os quais eram

então capazes de se instalarem e coletarem um "aluguel" feudal da classe camponesa.

Os camponeses freqüentemente eram escravizados, ou transformados em servos, para

que a própria terra pudesse prover uma fonte contínua de trabalho explorado para os

senhores feudais.

Nós podemos notar alguns exemplos relevantes para nascimento do estado moderno

através da conquista. Um foi o a conquista militar da classe camponesa indígena na

America Latina pelos espanhóis. A Espanha conquistadora não apenas estabeleceu um

estado novo sobre os indígenas, mas a terra dos camponeses foi divida entre os líderes

militares, os quais ficaram desde então coletando aluguéis dos agricultores. Outro

exemplo foi a nova forma política imposta sobre os saxões da Inglaterra após sua

conquista pelos normandos em 1066. A terra da Inglaterra foi dividida entre os líderes

guerreiros normandos, os quais formaram então um aparato estatal e feudal de domínio

sobre a população súdita. Para o libertário, o mais interessante e certamente o mais

doloroso exemplo da criação de um estado através da conquista foi o da destruição da

sociedade libertária da Irlanda antiga pela Inglaterra no século dezessete, uma conquista

que estabeleceu um estado imperial e ejetou inúmeros irlandeses da sua terra natal. A

sociedade libertária da Irlanda, a qual durou por mil anos — e que será descrita mais

adiante — foi capaz de resistir à conquista inglesa por séculos por causa da ausência de

um estado que poderia ser facilmente conquistado e depois usado pelos conquistadores

para dominar a população nativa.

Mas enquanto do começo ao fim da história ocidental, os intelectuais formularam

teorias designadas a checar e limitar o poder estatal, cada estado tem podido usar seus

próprios intelectuais para tornar essas idéias ainda mais legitimadores do seus próprio

avanço de poder. Deste modo, na Europa ocidental, originalmente, o conceito de

"direito divino dos reis" era uma doutrina promovida pela igreja para limitar o poder

estatal. A idéia era que o rei não podia apenas impor sua vontade arbitrária. Seus

decretos eram limitados nos conformes da lei divina. Com o avanço da monarquia,

porém, os reis puderam transformar o conceito em uma idéia de que deus punha sua

estampa de aprovação em quaisquer ações dos reis; que ele governava pelo "direito

divino".

Similarmente, o conceito de uma democracia parlamentar começou como uma checada

popular no governo absoluto do monarca. O rei era limitado pelo poder do parlamento

de garantir a ele os rendimentos públicos. Gradualmente, porém, como o parlamento

deslocou o rei como a cabeça do estado, o próprio parlamento se tornou o soberano do

estado não checado. No início do século dezenove, os utilitárias ingleses, que

advogaram a liberdade individual adicional em nome da utilidade social e do bem estar

geral, viram estes conceitos serem transformados em sanções para a expansão do poder

estatal.

Como escreveu De Jouvenel:

Muitos escritores de teorias de soberania trabalharam um ou outros destes

dispositivos restritivos. Mas no fim das contas, cada teoria destas perdeu,

mais cedo ou mais tarde, o seu propósito original, vindo a atuar meramente

como um trampolim para o poder, provendo-o com o auxílio poderoso de

Page 49: Por uma Nova Liberdade - O Manifesto Libertário - Murray N. Rothbard (Incompleto)

uma soberania invisível, com a qual ele podia se identificar a tempo com

sucesso.

Certamente a tentativa mais ambiciosa na historia para impor limites no estado foi a

Declaração dos Direitos dos Cidadãos e outras partes restritivas da constituição

americana. Aqui, os limites escritos para o governo se tornam a lei fundamental, para

serem interpretados por um judiciário supostamente independente das outras partes do

governo. Todos os americanos estão familiarizados com o processo pelo qual a análise

profética de John C. Calhoun tem se justificado; o próprio monopólio judiciário do

estado tem inexoravelmente ampliado a construção do poder estatal ao longo do ultimo

século e meio. Mas poucos foram tão sagazes quanto o professor liberal Charles Black

— que saúda o processo — em ver que o estado tem sido capaz de transformar a própria

revisão judicial de um dispositivo limitador para um poderoso instrumento para ganhar

legitimidade para as suas ações nas mentes do público. Se um decreto judicial de

"inconstitucional" é uma verificação poderosa no poder governamental, também o

veredicto de "constitucional" é igualmente uma arma poderosa para alimentar a

aceitação pública de um poder governamental ainda maior.

O professor Black inicia sua análise apontando a necessidade crucial pela

"legitimidade" de qualquer para que este possa durar; isto é, a aceitação básica da

maioria ao governo e suas ações. A aceitação de legitimidade, porém, se torna um

grande problema em um país como os estados Unidos, onde "limitações substantivas

são construídas na teoria pela qual o estado sobrevive". O que é preciso, acrescenta

Black, é um método pelo qual o governo pode assegurar ao público que suas expansões

de poder são de fato "constitucionais". E assim, ele conclui, tem sido função histórica

majoritária da revisão judicial. Deixe Black ilustrar o problema:

O risco supremo [para o governo] é o desafeto e um sentimento de abuso amplamente

disseminado perante a população, e a perda de autoridade moral pelo governo de tal

maneira, por mais que seja por um longo tempo, ele pode ser estaqueado pela força ou

inércia ou pela carência de uma alternativa atraente e imediatamente disponível. Quase

todos vivendo sob um governo de poderes limitados, devem mais cedo ou mais tarde se

sujeitarem a alguma ação governamental que, como uma questão de opinião pessoal, ele

considere como estando fora do poder governamental ou positivamente proibido para o

governo. Um homem é saqueado, mesmo não encontrando nada na constituição sobre

ser saqueado... A um fazendeiro, é dito quanto trigo ele pode plantar; ele acredita, e

descobre que alguns respeitáveis advogados acreditam com ele, que o governo não tem

mais direito para lhe dizer quanto trigo ele pode plantar do que ele tem para dizer com

quem sua filha pode se casar. Um homem vai à penitenciária federal pode dizer o que

ele quer, e ele anda a passo em sua cela recitando... "O congresso não deve fazer leis

reduzindo a liberdade de expressão"... A um homem de negócios, é dito o que ele pode

perguntar, e deve perguntar, por um leitelho.

O perigo é real o bastante para que cada uma destas pessoas (e quem não está nos seus

números?) vá confrontar o conceito de limite governamental com a realidade (como ele

o vê) do excedente flagrante dos seus limites atuais, e cair na conclusão óbvia sobre o

estado de seu governo com respeito à legitimidade.

Este perigo é desviado, adiciona Black, com o estado propondo a doutrina de que a

agência de alguém deve ter a decisão final sobre a constitucionalidade, e que esta

Page 50: Por uma Nova Liberdade - O Manifesto Libertário - Murray N. Rothbard (Incompleto)

agência deve ser parte do próprio governo federal. Por um tempo a aparente

independência do judiciário federal teve um papel vital em fazer com que suas ações

ficassem virtualmente como uma Sagrada Escritura para a massa da população, também

é verdade que o judiciário é parte e parcela do aparato governamental e é designado

pelos ramos executivos e legislativos. O professor Black reconhece se estabeleceu como

um juiz no seu próprio caso e, portanto, violou um princípio jurídico básico para se

chegar a qualquer tipo de decisão justa. Mas Black é notoriamente iluminado sobre esta

brecha fundamental : "O poder final do estado... deve parar onde as leis o param. E

quem deve estabelecer o limite, e quem deve forçar a interrupção contra o maior poder?

Por que, o próprio estado, é claro, através dos juízes e leis. Quem controla o clima?

Quem ensina ao sábio?..." E então Black admite que quando nós temos um estado, nós

cedemos todas as nossas armas e meios de coerção ao aparato estatal, nós voltamos

todas os nossos poderes de tomada de decisões finais a este grupo definido, e então nós

devemos celebrar bastante, sentar para trás quietinhos e aguardar a corrente sem fim da

justiça que vai se despejar destas instituições — mesmo eles estando julgando

basicamente o próprio caso deles. Black não vê alternativa concebível a este monopólio

coercivo de decisões judiciais compelido pelo estado, mas aqui é precisamente onde o

nosso novo movimento desafia esta visão convencional e afirma que há uma alternativa

viável: o libertarianismo.

Não vendo tal alternativa, o Professor Black se volta a um misticismo na sua defesa do

estado, pois em suas análises finais ele constata que o empreendimento da justiça e a

legitimidade dos perpétuos julgamentos feitos pelo estado na sua própria causa seriam

"algo milagroso". Desta forma, o liberal Black se junta ao conservador Burnham ao

recuar-se ao milagroso e assim sendo, admitindo que não há argumento racional

satisfatório na defesa do estado.

Aplicando a sua visão realística da Suprema Corte ao famoso conflito entre a Corte e o

New Deal nos anos de 1930, o Professor Black repreende seus colegas liberais pelas

suas visões míopes ao denunciarem o obstrucionismo judicial:

...a versão padrão da história do New Deal e da Corte, apesar de acurada na

sua forma, desloca a ênfase... Ela concentra nas dificuldades; ela quase

esquece como toda a coisa terminou. O desfecho da questão foi que (e isso é

o que eu gosto de dar ênfase) depois de uns vinte quatro meses de fracasso...

A Suprema Corte, sem nem uma única alteração na composição da lei,

colocou a estampa afirmativa de legitimidade no New Deal e na completa

nova concepção do governo na América.

Desta forma, a Suprema Corte foi capaz de dar o golpe final no extenso corpo de

americanos que tinham fortes objeções constitucionais aos poderes expandidos do New

Deal:

É claro que nem todos estavam satisfeitos. O "Bonnie Prince Charlie" do laissez-faire

constitucionalmente comandado ainda agita o coração de alguns fanáticos nas

montanhas da fantasia colérica. Mas não mais nenhuma dúvida pública significante ou

perigosa quanto ao poder constitucional do congresso para lidar com a economia

nacional... Nós não tivemos meios, além da Suprema Corte, para conceder legitimidade

ao New Deal.

Page 51: Por uma Nova Liberdade - O Manifesto Libertário - Murray N. Rothbard (Incompleto)

Deste modo, até mesmo nos estados Unidos, exclusivamente dentre governos tendo uma

constituição, com partes das quais ao menos pretendiam impor limites rigorosos e

solenes nas suas ações, até mesmo aqui a Constituição provou ser um instrumento para

ratificar a expansão do poder estatal ao invés de se opor a ela. Como disse Calhoun,

quaisquer limites escritos que são deixados para o governo interpretar os seus próprios

poderes, estão fadados a serem interpretados como sanções para expandir e não amarrar

tais poderes. De um modo profundo, a idéia de amarrar o poder com as correntes de

uma constituição escrita provou ter sido um nobre experimento que falhou. A idéia de

um governo estritamente limitado provou ter sido uma utopia; outros meios, mais

radicais, precisam ser encontrados para prevenir o crescimento do estado agressivo. O

sistema libertário satisfaria este problema esmagando toda a noção de criar um governo

— uma instituição com um monopólio coercivo da força em um determinado território

— e então esperando em encontrar maneiras para evitar a expansão deste governo. A

alternativa libertária é se abster da criação de tal monopólio governamental.

Nós vamos explorar toda a noção de uma sociedade sem um estado, uma sociedade sem

um governo formal, nos próximos capítulos. Mas um exercício instrutivo é tentar

abandonar as maneiras habituais de ver as coisas e considerar o argumento pelo estado

de novo. Vamos tentar transcender o fato de que até onde lembramos, o estado tem

monopolizado os serviços policiais e judiciários na sociedade. Suponha que nós todos

começamos completamente linha de partida e que milhões de nós fomos deixados na

terra, totalmente crescidos e desenvolvidos, de algum outro planeta. O debate começa

com como a proteção (serviços policiais e judiciários) serão fornecidos. Alguém diz;

"Vamos todos dar todas as nossas armas para aquele Joe Jones ali e aos seus parentes.

Vamos também deixar o Jones e a sua família decidir todas as disputas entre a gente.

Desta maneira, os Jones vão poder proteger todos nós de qualquer agressão ou fraude

que qualquer um possa cometer. Com todo o poder e toda a capacidade para tomar as

decisões finais das disputas nas mãos de Jones, nós todos estaremos protegidos uns dos

outros. E por fim, vamos deixar os Jones obter suas rendas através deste grande serviço

usando suas armas e extorquindo tantos impostos pela coerção quanto eles desejarem."

Certamente neste tipo de situação, Ninguém trataria esta proposta como nada mais do

que ridícula. Seria totalmente evidente que não haveria maneira, neste caso, de nenhum

de nós nos protegermos contra as agressões, ou depredações, dos próprios Jones.

Ninguém então teria a tolice de responder àquela velha e discernente questão; "Quem

irá guardar os guardiões?" com idéia do Professor Black: "Quem controla o brando?". É

só porque nós estamos acostumados com milhares de anos de existência do estado que

nós damos este tipo de resposta absurda ao problema da proteção e defesa social.

E, é claro, o estado nunca de fato começou com este tipo de "contrato social". Como

Oppenheimer mostrou, o estado geralmente começou com violência e conquista; mesmo

quando processos internos deram origem ao estado, ela certamente não foi nunca

através de consenso geral ou contrato.

O credo libertário pode ser agora resumido da seguinte forma (1) o direito absoluto do

homem de possuir o próprio corpo; (a) o direito absoluto e equivalente de possuir e

desta forma controlar os recursos materiais que ele descobriu e transformou; e (3) deste

modo, o direito absoluto de trocar ou dar a posse de tais títulos a quem quer que deseje

trocar ou recebê-los. Como nós já vimos, cada um desses passos envolve diretos de

propriedade, mas se nós seguirmos nos (1) direitos "pessoais", veremos que os

problemas sobre "liberdade pessoal" inexoravelmente envolvem os direitos de

Page 52: Por uma Nova Liberdade - O Manifesto Libertário - Murray N. Rothbard (Incompleto)

propriedades materiais ou de livre troca. Ou, brevemente, os direitos de liberdade

pessoal e "liberdade de empreendimento" quase que invariavelmente se interligam e não

podem de fato ser separados.

Nós vimos que o exercício da "liberdade de expressão", por exemplo, quase que

invariavelmente envolve o exercício da "liberdade econômica" — i.e., liberdade para

possuir e trocar propriedades materiais. A realização de um encontro para exercer a

liberdade de expressão envolve a contratação de um hall, viajar para o hall através das

estradas, usar alguma forma de transporte, etc. A mais próxima "liberdade de imprensa"

envolve ainda mais evidentemente os custos de impressão e o uso de uma imprensa, a

venda de panfletos para compradores dispostos — resumindo, todos os ingredientes da

"liberdade econômica". Além do mais, nosso exemplo de "gritar fogo" em um teatro

lotado nos dá uma clara diretriz para podermos decidir de quem devem ser os direitos

que devemos defender em qualquer situação — as diretrizes fornecidas por nosso

critério: os direitos de propriedade.

4. Os Problemas

Façamos uma breve análise dos maiores problemas da sociedade atual e vejamos se

conseguimos encontrar algum traço comum a todos eles.

Os altos impostos: Os altos e crescentes impostos têm prejudicado quase todos e estão

diminuindo a produtividade, os incentivos, a poupança e o espírito empreendedor das

pessoas. No nível federal, há uma revolta cada vez maior contra o fardo dos tributos

sobre a renda e um crescente movimento de rebelião contra os impostos, que conta com

suas próprias organizações e publicações e que se recusa a pagar impostos considerados

predatórios e inconstitucionais. Em nível estadual e municipal, há uma oposição cada

vez mais sistemática aos opressivos impostos sobre imóveis. Dessa forma, o número

recorde de 1,2 milhão de pessoas assinou a petição em favor da iniciativa Jarvis-Gann

nas eleições de 1978, uma proposta que reduziria drástica e permanentemente os

impostos sobre imóveis de dois terços para um por cento e estabeleceria um teto para o

valor estimado deles. Ademais, a iniciativa Jarvis-Gann reforça o congelamento

requerendo a aprovação de dois terços de todos os eleitores registrados do estado da

Califórnia para além do teto de um por cento. E, para garantir que o estado não

simplesmente compense este com outro imposto, a iniciativa também requer a

aprovação de dois terços da legislatura estadual para aumentar qualquer outro imposto

do estado.

Além disso, no outono de 1977, milhares de proprietários do condado de Cook, no

Illinois, se recusaram a pagar o imposto sobre imóveis, que havia aumentado

dramaticamente devido às avaliações cada vez mais altas.

Não é necessário enfatizar que a tributação, sobre a renda, sobre imóveis ou sobre o que

quer que seja é um monopólio do governo. Nenhum outro indivíduo ou organização

goza do privilégio de cobrar impostos, de adquirir rendimentos por meio da coerção.

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A crise fiscal: Em todo o país, os estados e municípios têm tido dificuldades para pagar

os juros e grosso de suas dívidas públicas. A cidade de Nova York foi a primeira a pedir

moratória parcial de suas obrigações contratuais. A crise fiscal existe simplesmente em

virtude dos altos gastos dos governos, mais altos até que os impostos que eles cobram

de nós. Novamente, a quantia gasta pelos governos municipais ou estaduais é problema

deles; novamente o governo deve ser culpado.

A guerra do Vietnã e outras intervenções estrangeiras: A guerra do Vietnã foi um

completo desastre para a política externa dos Estados Unidos; após inúmeras mortes e

enormes devastações de terras, com um gasto imenso de recursos, o governo apoiado

pelos Estados Unidos finalmente entrou em colapso em 1975. O desastre na guerra do

Vietnã pôs em questão a política intervencionista americana e foi parcialmente

responsável pelo freio colocado pelo Congresso na intervenção americana em Angola.

A política externa, evidentemente, também é um monopólio do governo federal. A

guerra foi travada por nossas forças armadas que, de novo, são um monopólio

compulsório do mesmo governo federal. Assim, o governo é inteiramente responsável

por todos os problemas relativos à guerra e à política externa, como um todo e em cada

um de seus aspectos particulares.

A criminalidade nas ruas: Considere o seguinte: os crimes em questão são cometidos,

por definição, nas ruas. As ruas são propriedade quase que universalmente do governo,

que, assim, detém o virtual monopólio da propriedade delas. A polícia, que

supostamente deve nos proteger dos crimes, é um monopólio compulsório do governo.

E as cortes, que devem condenar e punir os criminosos, são também um monopólio

coercitivo do governo. Portanto, o governo tem o comando de todos os aspectos do

problema da criminalidade. E as cortes, que são existentes para perseguir e punir

criminosos, são igualmente monopólios coercitivos do governo. Então, o governo está

encarregado de cuidar cada um dos aspectos relativos aos crimes cometidos nas suas

ruas. O problema aqui, da mesma forma que o fracasso do Vietnã, deve ser debitado

exclusivamente na conta do governo.

Engarrafamentos: Mais uma vez, essa situação só ocorre nas ruas e estradas do

governo.

O complexo industrial-militar: Este complexo é uma criação integral do governo

federal. É o governo que decide gastar de incontáveis bilhões de dólares em

armamentos, que firma contratos, que subsidia a ineficiência através de garantias da

cobertura de custos, que constrói fábricas e as arrenda ou doa diretamente a

contratantes. Claro, as empresas envolvidas fazem lobbies para receberem esses

privilégios, mas é apenas através do governo que o mecanismo que permite que haja

esses privilégios — e a conseqüente má alocação de recursos — pode existir.

O transporte público: A crise do transporte público não envolve somente os

engarrafamentos nas ruas, mas também as ferrovias degradadas, as altas tarifas aéreas, o

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congestionamento dos aeroportos nos horários de pico e os metrôs (como o da cidade de

Nova York) deficitários e em visível marcha rumo ao colapso. Some-se ainda o fato de

que as ferrovias foram construídas em excesso com grandes subsídios (federais,

estaduais e municipais) durante o século XIX, e têm sido até hoje a indústria sujeita às

regulamentações mais pesadas e pelo maior período de tempo da história americana. As

linhas aéreas são cartelizadas pelo Comissão Civil de Aeronáutica e subsidiadas através

de outras regulamentações, por contratos de transporte de correspondências e por

aeroportos virtualmente de graça. Os aeroportos para linhas comerciais são, em sua

totalidade, propriedades de algum braço do governo, e do governo local em grande

parte. Os metrôs da cidade de Nova Iorque têm sido de propriedade do governo por

décadas.

A poluição dos rios: Os rios, efetivamente, não têm donos, isto é, são de domínio

público, controlados pelo governo. Além disso, os maiores culpados pela poluição são

as próprias companhias de esgoto municipais. Novamente: o governo é ao mesmo

tempo o maior poluidor e o "dono" descuidado do recurso pelo qual deveria zelar.

A escassez de água: A falta de água é um problema crônico em algumas áreas do país e

apenas intermitente em outras, a exemplo de Nova York. E é o governo, através de seu

controle do domínio público, que detém grande parte dos rios de onde vem a água que

nos abastece; o governo, como o virtual único ofertante de água, reserva para si o poder

exclusivo de poder criar aquedutos.

A poluição do ar: Novamente, é o governo, como dono do domínio público, que

controla o ar. Além disso, têm sido os tribunais, pertencentes exclusivamente ao

governo, que em atos políticos deliberados têm fracassado geração após geração na

tarefa de proteger os nossos direitos de propriedade sobre nossos corpos e bens sobre os

quais a poluição gerada pelas indústrias recai. Deve-se levar em conta que boa parte da

poluição advém diretamente de indústrias de propriedade do governo.

As faltas de energia e os apagões: Em todo o país os governos estaduais e municipais

criaram monopólios compulsórios no fornecimento de gás e luz elétrica e os

concederam a companhias privadas, que são, então, reguladas pelo governo e têm seus

preços tabelados por agências estatais que garantem lucros fixos e permanentes.

Novamente, o governo tem sido a fonte destes monopólios e destas regulamentações.

Serviços de telefonia: Os cada vez piores serviços de telefonia são ocasionados, de

novo, pelo privilégio monopolístico concedido pelo governo, que estabelece os preços

para garantir lucros aos favorecidos. Como no caso do gás e da eletricidade, ninguém

mais tem a permissão para competir com o monopólio das companhias de telefone.

Serviços postais: Sofrendo com pesados déficits desde sua criação, os correios, ao

contrário dos bens e serviços prestados pela indústria privada no mercado livre, têm

continuamente diminuído a qualidade de seus serviços e aumentado seus preços. A

maior parte do público, usuária dos serviços monopolísticos de correspondência

convencionais, tem sido forçada a subsidiar as empresas, que utilizam os serviços de

Page 55: Por uma Nova Liberdade - O Manifesto Libertário - Murray N. Rothbard (Incompleto)

entrega de anúncios e encomendas. Os correios são, desde o final do século XIX, um

monopólio compulsório do governo. Quando quer que firmas privadas tenham

competido, mesmo que ilegalmente, na entrega de correspondências, elas

invariavelmente ofereceram melhores serviços a preços mais baixos.

Televisão: A televisão caracteriza-se pela inocuidade de seus programas e pela distorção

de suas notícias. Os canais de rádio e TV foram nacionalizados há meio século pelo

governo federal, que os concede a grupos favorecidos e que pode suspender esses

privilégios quando quer que os canais passem a incomodar a Comissão Federal de

Telecomunicações. É possível que qualquer liberdade de expressão e imprensa exista

sob essas condições?

Assistencialismo: Os programas assistenciais evidentemente são seara exclusiva dos

governos, na maior parte estaduais e municipais.

Habitação urbana: Tal como a administração do tráfego, a habitação é um dos nossos

mais conspícuos fracassos urbanos. E, no entanto, há poucos setores que já tenham sido

tão conectados ao governo como o setor da habitação. O planejamento urbano tem

controlado e regulado as cidades. As leis de zoneamento têm limitado a habitação e o

uso do solo com inúmeras restrições. Os impostos sobre propriedades têm

impossibilitado o desenvolvimento urbano e forçado os moradores a abandonarem suas

casas. Os códigos de construção civil têm restringido a construção de residências e as

tornado mais dispendiosa. Os projetos de revitalização urbana têm fornecido altos

subsídios ao setor imobiliário, forçado a demolição de apartamentos e estabelecimentos

comerciais, diminuído a oferta de imóveis e intensificado a discriminação racial.

Grandes empréstimos governamentais ocasionaram uma super concentração de

construções nos subúrbios. Controles de aluguéis criaram a escassez de apartamentos e

a redução da oferta de casas residenciais.

Greves e restrições sindicais: Os sindicatos se tornaram um transtorno por conta de seu

poder de frear a economia — que somente existe graças aos vários privilégios

concedidos pelo governo. Em especial, há as imunidades sindicais concedidas pelo

Wagner Act de 1935, ainda em vigor, que obrigam os empregadores a negociar com os

sindicatos que obtiverem a maioria dos votos de uma "unidade de negociação"

arbitrariamente definida pelo próprio governo.

Educação: Outrora tão reverenciada e sacrossanta pela a opinião pública americana

quanto a maternidade ou a bandeira, a educação pública sofreu grandes ataques

recentemente, de todos os lados do espectro político. Mesmo seus defensores não

acreditam que as escolas públicas de fato ensinam qualquer coisa. E recentemente nós

vimos casos extremos nos quais as ações das escolas públicas motivaram reações

violentas em lugares tão diferentes quanto South Boston e o Condado Kanawha, em

West Virginia. As escolas públicas, evidentemente, são operadas pelos governos

estaduais e municipais, com assistência considerável da esfera federal. As escolas

públicas são mantidas por leis de freqüência compulsória que forçam todas as crianças a

irem à escola até o ensino médio. Mesmo a educação superior tem desenvolvido um

Page 56: Por uma Nova Liberdade - O Manifesto Libertário - Murray N. Rothbard (Incompleto)

relacionamento próximo com o governo em décadas recentes: muitas universidades são

de propriedade estatal e as outras são beneficiárias sistemáticas de concessões, subsídios

e contratos.

Inflação e estagflação: Os Estados Unidos, bem como o resto do mundo, sofrem há

vários anos com uma crônica e cada vez mais acelerada crise inflacionária — uma

inflação acompanhada por altas taxas de desemprego e que persiste através de recessões

severas e moderadas ("estagflação"). Uma explicação para estes eventos desagradáveis

é apresentada mais a frente. Aqui, diga-se somente que a raiz desses problemas está na

expansão contínua da oferta monetária, um monopólio compulsório do governo federal

(qualquer individuo que tentar competir com o governo emissão de moeda será

imediatamente preso por falsificação). Uma parte vital da oferta de moeda do país é

emitida como moeda-cheque pelo sistema bancário, que por sua vez, está sob total

controle pelo Federal Reserve System.

Watergate: Por último, mas não menos importante, está toda a traumática síndrome

sofrida pelos americanos conhecida como "Watergate". O caso Watergate significou

uma total dessacralização da presidência e de instituições federais outrora sacrossantas,

como a CIA e o FBI. As invasões de propriedades, os métodos totalitários, a enganação

do público, a corrupção, as múltiplas e sistêmicas comissões de apuração dos crimes do

virtualmente todo-poderoso Presidente levaram a um antes impensável impeachment e

ao descrédito das instituições do Estado no país. O establishment tem freqüentemente se

queixa desta nova e universal falta de confiança, mas é muito difícil a inocência do

público dos tempos pré-Watergate. A historiadora esquerdista Cecília Kenyon certa vez

criticou os anti-federalistas, os defensores dos Artigos da Confederação e os oponentes

da Constituição por serem "homens de pouca fé" nas instituições do governo. É de se

suspeitar que ela não fosse tão ingênua a ponto de escrever isso na era pós-Watergate.

Não é necessário mencionar que o Watergate é um fenômeno pura e exclusivamente

governamental. O Presidente é o chefe do Executivo do governo federal, os

"encanadores" foram sua ferramenta, e o FBI e a CIA são agências governamentais da

mesma maneira. Por isso, compreensivelmente a fé e a confiança no governo foram

destruídas pelo escândalo.

Se olharmos a nossa volta, se analisarmos os problemas cruciais de nossa sociedade, as

áreas de crise e fracasso, nós vemos um traço comum que os une: a influência do

governo. Em todos esses casos, o governo operou por completo ou influenciou

pesadamente a atividade. O economista John Kenneth Galbraith, em seu best-seller A

Sociedade Afluente, reconhece que o setor governamental originou nosso fracasso

social, mas curiosamente deriva a conclusão de que, portanto, ainda mais recursos

devem ser desviados do setor privado para o público. Dessa forma ele ignorava o fato de

que o papel de todas as esferas de governo nos Estados Unidos se expandiu

enormemente, tanto em termos absolutos quanto relativos, neste século e em especial

nas décadas recentes. Infelizmente, Galbraith jamais levantou a seguinte questão: Há

algo inerente na operação do governo, algo que cria as próprias falhas que nós vemos à

Page 57: Por uma Nova Liberdade - O Manifesto Libertário - Murray N. Rothbard (Incompleto)

nossa volta? Nós investigaremos alguns dos maiores problemas do governo e da

liberdade neste século, veremos de onde se originam essas falhas e proporemos soluções

com base no novo libertarismo. Façamos uma breve análise dos maiores problemas da

sociedade atual e vejamos se conseguimos encontrar algum traço comum a todos eles.

10. O Setor Público: o Governo como Empresário

As pessoas sempre tendem a seguir hábitos e rotinas inquestionáveis, principalmente

quando se trata de questões governamentais. No mercado, e na sociedade em geral,

sempre esperamos por mudanças — e nos acomodamos rapidamente a elas — que

quase sempre trazem grandes maravilhas e melhorias para nossa civilização. Novos

produtos, novos estilos de vida e novas idéias quase sempre são aceitas avidamente.

Mas quando se trata de áreas governamentais, seguimos cegamente o mesmo caminho

que vem sendo trilhado por séculos, satisfeitos em acreditar que o que quer que esteja

sendo feito deve ser o certo. Em particular, os governos — seja o americano, seja

qualquer outro — vêm desde tempos imemoriais fornecendo-nos certos tipos de

serviços essenciais e necessários, serviços esses que todos consideram importantes:

defesa (incluindo as forças armadas, a polícia, o judiciário e as leis), corpo de

bombeiros, ruas e estradas, água, esgoto e remoção de lixo, correios, etc. O estado ficou

tão identificado com a provisão de tais serviços na mentalidade das pessoas, que

qualquer crítica às finanças do estado parece ser para muitas pessoas um ataque à

natureza desses mesmos serviços. Assim, se alguém afirmar que o estado não deveria

fornecer serviços judiciários, e que empresas privadas no mercado poderiam fornecer

tais serviços de maneira bem mais eficiente, bem como de maneira mais ética, as

pessoas tendem a acreditar que isso significa negar a importância dos próprios tribunais.

O libertário que quer substituir o governo por empresas privadas nas áreas mencionadas

acima é tratado da mesma maneira que ele seria tratado se o governo tivesse, por várias

razões, o monopólio do fornecimento de sapatos — utilizando o dinheiro do

contribuinte, é claro — desde tempos imemoriais. Se o governo, e somente o governo,

tivesse o monopólio da fabricação de sapatos e fosse o dono de todas as revendedoras,

como será que a maioria das pessoas iria reagir ao libertário que viesse advogar que o

governo saísse do setor de calçados e o abrisse para empresas privadas? Sem dúvida

nenhuma as pessoas iriam bradar: "Como assim? Você não quer que as pessoas, e

principalmente os pobres, usem sapatos! E quem iria fornecer sapatos ao povo se o

governo saísse do setor? Diga! Seja construtivo! É fácil ser negativo e desrespeitoso

quando se trata do governo; mas diga-nos quem iria fornecer sapatos? Quais pessoas?

Quantas lojas de sapato haveria em cada cidade? Em cada município? Como isso seria

definido? Como as empresas de sapato seriam financiadas? Quantas marcas existiriam?

Qual material elas iriam usar? Quanto tempo os sapatos durariam? Qual seria o arranjo

de preços? Não seria necessário haver regulamentação da indústria de calçados para

garantir que o produto seja confiável? E quem iria fornecer sapatos aos pobres? E se a

pessoa não tiver o dinheiro necessário para comprar um par?"

Essas perguntas, por mais ridículas que pareçam, e são, quando se trata do setor

calçadista, são igualmente absurdas quando dirigidas ao libertário que defende um livre

mercado para o setor de combate a incêndios, para o setor policial, para os correios, ou

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para qualquer outra operação governamental. O ponto principal é que o defensor da

existência de um livre mercado para todas as áreas não pode fornecer antecipadamente

um projeto "construtivo" de como seria tal mercado. A essência e a glória do livre

mercado é que as empresas e os negócios individuais, quando competindo no mercado,

fornecem uma orquestração contínua de bens e serviços cada vez mais eficientes e

evolutivos: os produtos e os mercados estão sempre se aperfeiçoando, a tecnologia está

sempre progredindo, os custos estão constantemente sendo diminuídos (ao contrário do

que ocorre com o governo), e a inconstante demanda do consumidor está sempre sendo

satisfeita da maneira mais rápida e eficiente possível. O economista libertário pode

tentar mostrar umas poucas diretrizes sobre como os mercados poderão se desenvolver

onde atualmente eles são proibidos ou restringidos; mas ele pouco mais pode fazer do

que apontar o caminho para a liberdade: pedir que o governo saia do caminho da

produtiva e sempre inventiva energia que emana dos indivíduos quando estes se

envolvem nas atividades voluntárias do mercado. Ninguém pode prever o número de

empresas, o tamanho de cada empresa, a política de preços, etc., para qualquer futuro

mercado de qualquer serviço ou commodity. Apenas sabemos — da teoria econômica e

de um discernimento histórico — que um livre mercado em qualquer área fará um

serviço infinitamente melhor do que o monopólio compulsório de uma burocracia

governamental.

Como os pobres pagarão por serviços de defesa, proteção contra incêndios, correios,

etc., pode ser respondido basicamente com uma contra-pergunta: como os pobres pagam

por qualquer coisa que eles atualmente obtêm no mercado? (Pense nos telefones

celulares). A diferença é que sabemos que um mercado livre e privado irá fornecer esses

bens e serviços de forma muito mais barata, e em maior abundância, e com muito mais

qualidade do que monopólios governamentais fazem hoje. Toda a sociedade iria se

beneficiar, especialmente os mais pobres. E também sabemos que a enorme carga

tributária para financiar estas e outras atividades seria tirada dos ombros de todas as

pessoas, inclusive as mais pobres.

Já percebemos que todos os problemas que são universalmente admitidos como

urgentes estão todos relacionados a operações governamentais (guerras, apagões, caos

aéreo, saúde pública, cotas universitárias, malversação de dinheiro público, TV pública,

etc.). Também é fácil concluir que os enormes conflitos sociais entrelaçados no sistema

público educacional iriam todos desaparecer se a cada grupo de pais fosse dado o direito

de escolher e financiar o tipo de educação que fosse a preferida para seus filhos. As

graves ineficiências e os conflitos intensos são coisas totalmente inerentes às atividades

governamentais. Se o governo, por exemplo, fornece serviços monopolísticos (como,

por exemplo, em alguns setores da educação, o setor energético, ou o fornecimento de

água), então quaisquer decisões que o governo tome serão coercivamente impostas

sobre a infeliz maioria — quer seja uma questão de política educacional para as escolas

(integração ou segregação, progressiva ou tradicionalista, religiosa ou secular, etc.),

quer seja o tipo de água a ser vendida (por exemplo, fluoretada ou não-fluoretada), quer

seja a forma como a energia será gerada, distribuída e paga. Já deve estar claro que tais

batalhas ferozes não ocorrem quando cada grupo de consumidores pode comprar os

bens e serviços que bem querem. Não há brigas entre consumidores, por exemplo, sobre

quais tipos de jornais devem ser impressos, quais tipos de igrejas podem ou não ser

construídas, quais tipos de livros devem ser publicados, quais tipos de músicas devem

ser vendidas, ou quais tipos de carros devem ser fabricados. (Todas as brigas que por

ventura ocorram nessas áreas envolvem o uso da força do governo para fazer restrições).

Page 59: Por uma Nova Liberdade - O Manifesto Libertário - Murray N. Rothbard (Incompleto)

Tudo que é produzido no mercado reflete a diversidade, bem como a força, da demanda

do consumidor.

No livre mercado, portanto, o consumidor é rei, e qualquer empresa que queira ter

lucros e evitar prejuízos tentará fazer o seu melhor para servir o consumidor da maneira

mais eficiente e ao menor custo possível. Em uma operação governamental, ao

contrário, tudo muda. Uma dissociação grave e inevitável entre qualidade dos serviços

prestados e o pagamento dos mesmos é algo totalmente inerente a qualquer operação

do governo. A burocracia governamental não recebe sua renda da mesma forma que

uma empresa privada, que tem que servir o consumidor de maneira satisfatória e vender

seus produtos de maneira que a receita seja maior que os custos de toda a operação.

Não, a burocracia governamental adquire sua renda através da extorsão do resignado

contribuinte. Assim, suas operações se tornam ineficientes — além de os custos

continuamente aumentarem —, pois as burocracias governamentais não precisam se

preocupar com prejuízos ou falências; elas podem compensar eventuais perdas

simplesmente fazendo extrações adicionais do bolso dos cidadãos. Além disso, o

consumidor, ao invés de ser cortejado e galanteado para seu próprio benefício, se torna

uma mera chateação para o governo, um alguém que está "consumindo" os escassos

recursos do governo (pense na Previdência Social). Nas operações do governo, o

consumidor é tratado como um intruso indesejável, uma interferência no sossego do

burocrata e na sua estável renda.

Assim, caso aumente a demanda do consumidor por bens e serviços de certas áreas, as

empresas privadas ficarão contentíssimas em supri-las; elas cortejarão e saudarão as

novas oportunidades de negócios, expandindo suas operações e ansiando por satisfazer

os novos pedidos. O governo, ao contrário, geralmente encara essa situação instando e

até ordenando que os consumidores "comprem" menos, e permitindo que escassezes

ocorram, conjuntamente com a deterioração da qualidade dos serviços. Destarte, o

aumento do uso das ruas estatais das cidades descamba em congestionamentos

exacerbados e em contínuas denúncias e ameaças contra as pessoas que dirigem seus

próprios carros. A administração da cidade de Nova York, por exemplo, está

continuamente ameaçando banir o uso de carros particulares em Manhattan, onde o

congestionamento tem sido particularmente desagradável. Somente esse ente chamado

governo iria pensar em ameaçar os consumidores dessa maneira; somente o governo, é

claro, tem a audácia de "solucionar" o congestionamento tirando os carros particulares

(ou caminhões, ou táxis, ou qualquer coisa) das ruas. De acordo com esse raciocínio, a

solução "ideal" para o congestionamento seria simplesmente banir todos os veículos!

Mas esse tipo de atitude para com o consumidor não está restrito ao tráfego nas ruas. A

cidade de Nova York, novamente, tem sofrido periodicamente de "falta" de água. Eis

aqui uma situação em que, por muitos anos, o governo da cidade tem tido o monopólio

compulsório da oferta de água aos seus cidadãos. Tendo falhado em fornecer a

quantidade suficiente de água, e tendo falhado em precificar essa oferta de tal maneira a

equilibrar o mercado, a igualar a oferta à demanda (algo que as empresas privadas

fazem automaticamente), a resposta das autoridades de Nova York à escassez de água

tem sido sempre a de culpar não a eles próprios, mas o consumidor, cujo pecado tem

sido o de usar "muita" água. A única reação da administração da cidade foi banir o uso

de aspersores (sprinklers) para gramados, restringir o uso de água, e requerer que as

pessoas bebam menos água. Dessa forma, o governo transfere seus próprios fracassos

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para o usuário, que se transforma em bode expiatório e que é ameaçado e perseguido, ao

invés de ser servido de maneira satisfatória e eficiente.

Tem havido uma resposta similar do governo para o problema sempre crescente da

criminalidade. Ao invés de fornecer proteção policial eficiente, a reação de qualquer

governo tem sido a de obrigar o cidadão a ficar longe de áreas propensas ao crime.

Assim, quando o Central Park, em Manhattan, se tornou mal afamado por ser um local

de assaltos e outros crimes no período noturno, a "solução" da administração da cidade

para o problema foi impor um toque de recolher, banindo o uso do parque à noite. Ou

seja: se um inocente cidadão quiser ficar no Central Park à noite, é ele quem será preso

por estar desobedecendo ao toque de recolher; é claro que é mais fácil prender um

inocente civil do que acabar com a criminalidade no parque.

Em resumo: enquanto o velho lema da iniciativa privada é que "o consumidor sempre

tem razão", a máxima implícita de qualquer atividade governamental é que o

consumidor sempre é o culpado.

É óbvio, os burocratas e políticos já têm uma resposta padrão para as crescentes

reclamações a respeito de serviços ruins e ineficientes: "Os contribuintes precisam nos

dar mais dinheiro!" Já não basta que o "setor público" — e a sua conseqüência natural, a

taxação — tenha crescido no último século, e continue crescendo, bem mais

rapidamente que a renda nacional. Também não basta que os defeitos e as chateações

das atividades governamentais tenham se multiplicado junto com aumento do

orçamento do governo. Todos nós devemos dar ainda mais dinheiro para aquele buraco

sem fundo que é o estado!

O argumento correto contra a demanda de políticos por mais dinheiro de impostos é a

seguinte pergunta: "Como é que as empresas privadas não têm esse problema?" Como é

que empresas de eletrônicos ou companhias de fotocópias ou empresas de informática

ou qualquer outra não têm problema para encontra capital para expandir sua produção?

Por que essas empresas não publicam manifestos denunciando o povo por não dar a elas

mais dinheiro para que assim elas possam servir as necessidades do consumidor? A

resposta é que os consumidores pagam por eletrônicos ou por serviços de fotocópia ou

por computadores, e os investidores, como resultado, passam a ver que é possível

ganhar dinheiro investindo nesses negócios. No mercado privado, as empresas que

servem os consumidores com sucesso encontram facilmente capital para sua expansão;

empresas ineficientes e sem sucesso, não — e eventualmente elas saem dos negócios.

Mas para o governo não existe esse mecanismo de lucros e prejuízos que o induza a

fazer investimentos em operações eficientes e que penalize as operações ineficientes e

obsoletas, descartando-as. Não existe, para as atividades do governo, um sistema de

lucros e prejuízos que induza tanto a expansão quanto a contração das operações. No

governo, portanto, não há um real "investimento", e ninguém pode garantir que

operações de sucesso irão se expandir e as fracassadas irão desaparecer. Em contraste ao

setor privado, o governo arrecada seu "capital" literalmente por meio de um assalto, que

é a perfeita caracterização do mecanismo coercivo da taxação.

Muitas pessoas, incluindo alguns funcionários do governo, acreditam que esses

problemas poderiam ser resolvidos se o "governo fosse gerido como uma empresa

privada". O governo então criaria uma pseudocorporação monopolística, gerenciada

pelo governo, que supostamente cuidaria dos negócios seguindo "princípios de

Page 61: Por uma Nova Liberdade - O Manifesto Libertário - Murray N. Rothbard (Incompleto)

mercado" — e isso foi feito, por exemplo, para os Correios e para a constantemente

desintegrada e decadente New York City Transit Authority. Essas "corporações" seriam

então obrigadas a acabar com seus déficits crônicos e autorizadas a lançar títulos no

mercado de títulos. É verdade que os usuários diretos estariam assim aliviando um

pouco da carga sobre a massa de contribuintes, que inclui tanto os usuários como os não

usuários. Mas existem defeitos ruinosos inerentes a qualquer atividade governamental

que não podem ser evitados por esse artifício pseudocorporativo. Em primeiro lugar, um

serviço governamental sempre será um monopólio ou um semi-monopólio.

Freqüentemente, como no caso dos Correios ou da Transit Authority, é um monopólio

compulsório — toda ou praticamente toda a concorrência privada é proibida. O

monopólio significa que o serviço oferecido pelo governo será bem mais caro, mais

custoso, e de pior qualidade em comparação ao que seria no livre mercado. Empresas

privadas obtêm seus lucros cortando custos o máximo possível. O governo, que não vai

à falência e nem sabe o que é ter prejuízos, não precisa cortar custos; como ele está

protegido contra qualquer concorrência e contra qualquer prejuízo, tudo o que ele

precisa fazer é interromper o fornecimento dos serviços ou simplesmente aumentar

preços. O segundo defeito ruinoso é que, por mais que se tente, uma corporação

governamental jamais poderá ser gerida como uma empresa privada simplesmente

porque seu capital continua sendo arrancado à força dos contribuintes. Não há como

evitar isso; o fato de uma estatal poder vender títulos no mercado ainda depende do

supremo poder de taxação do governo para poder resgatar esses títulos.

Finalmente, há um outro problema crítico inerente a qualquer operação governamental.

Uma das razões que faz das empresas privadas modelos de eficiência é porque o livre

mercado estabelece preços, que é o que torna possível o cálculo por parte das empresas

e permite que elas descubram quais são seus custos e, portanto, o que elas devem fazer

para ter lucros e evitar prejuízos. É através desse sistema de preços, bem como a

motivação para aumentar lucros e evitar prejuízos, que bens e serviços são devidamente

alocados no mercado, dentre todas as intrincadas ramificações e áreas de produção que

fazem parte da moderna economia capitalista. E é o cálculo econômico que torna essa

maravilha possível; em contraste, sob um planejamento central, tal como foi tentado no

socialismo, é impossível fazer quaisquer precificações acuradas, e assim os burocratas

não podem calcular custos e preços. Essa é a principal razão pela qual o planejamento

central socialista se mostrou um grande fracasso quando os países comunistas se

tornaram industrializados. E é exatamente pelo fato de um planejamento central não

poder determinar preços e custos com qualquer acurácia que os países comunistas do

leste europeu abandonaram rapidamente o planejamento central e foram correndo em

direção a uma economia de livre mercado.

Portanto, se o planejamento central empurra a economia para um incompetente caos

calculacional, e para produções e alocações irracionais, o avanço de qualquer atividade

governamental inexoravelmente introduz ilhas caóticas cada vez maiores na economia,

e torna o cálculo dos custos e a alocação racional dos recursos produtivos cada vez mais

difíceis. À medida que as operações do governo se expandem e a economia de mercado

definha, o caos calculacional se torna mais e mais destruidor e a economia se torna

crescentemente impraticável.

O derradeiro programa libertário pode ser sumarizado em uma única frase: a abolição

do setor público, com a conversão de todas as operações e serviços executados pelo

governo em atividades realizadas voluntariamente pela economia de livre mercado.

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11. O setor público: desestatizando a segurança, as ruas e as estradas

Protegendo as ruas

Abolir o setor público significa, é claro, que todos os pedaços de terra, todas as

superfícies terrestres, inclusive ruas e estradas, se tornariam propriedade privada, sendo

geridas privadamente por indivíduos, corporações, cooperativas ou por quaisquer outros

agrupamentos voluntários de indivíduos e capital. O fato de que todas as ruas e áreas

terrestres seriam propriedade privada iria por si só resolver muitos dos aparentemente

insolúveis problemas da operação privada relativa a algumas áreas. O que precisamos

fazer é reorientar nosso pensamento para considerarmos um mundo no qual todas as

áreas de terra são geridas privadamente.

Peguemos, por exemplo, o serviço de proteção policial. Como ele funcionaria e como

ele seria fornecido em uma economia totalmente privada? Parte da resposta se torna

evidente se considerarmos um mundo de terras totalmente privadas, onde as ruas têm

donos. Considere a área de Times Square, na cidade de Nova York. Trata-se de uma

área notoriamente dominada pela criminalidade, onde a proteção policial oferecida pelas

autoridades é mínima. Cada cidadão nova-iorquino de fato sabe que ele praticamente

vive e anda pelas ruas — e não apenas na região de Times Square — em um estado de

completa "anarquia", dependendo unicamente da serenidade e da boa vontade de seus

concidadãos. A proteção policial em Nova York é mínima, fato esse que foi

dramaticamente revelado quando, em uma recente greve policial que durou uma

semana, a taxa de criminalidade, pasmem!, em nada se alterou. Não houve qualquer

aumento acima do normal, que é quando a polícia está supostamente alerta e na ativa.

De qualquer modo, suponha que a região de Times Square, incluindo as ruas, fosse

gerida privadamente pela, digamos, "Associação dos Comerciantes de Times Square".

Os comerciantes saberiam perfeitamente bem que se a criminalidade na sua região fosse

desenfreada, se os furtos e os assaltos a mão armada fossem constantes, seus clientes

iriam inevitavelmente desaparecer e iriam passar a freqüentar as áreas vizinhas, suas

concorrentes. Assim, seria do interesse econômico dessa associação comercial ofertar

uma proteção policial eficiente e abundante, de forma que os clientes se sentissem

atraídos — ao invés de repelidos — por essa região. A iniciativa privada, afinal, está

sempre tentando atrair e manter seus clientes. Assim sendo, qual seria a vantagem de ser

servido por lojas de visual atraente, iluminação agradável e serviço cortês se os clientes

podem ser assaltados ao andarem pela região?

Além do mais, a associação comercial seria induzida — por causa do seu desejo de

lucrar e de evitar prejuízos — a fornecer não apenas uma proteção policial suficiente,

mas também uma proteção cortês e aprazível. Uma polícia estatal não só não tem

qualquer incentivo para ser eficiente ou para se preocupar com os desejos dos seus

"clientes", como também está constantemente tentada a exercer seu poder de força de

maneira brutal e coerciva. A "brutalidade policial" é uma característica bem conhecida

do sistema policial estatal, e a única oposição prática a ela são algumas queixas remotas

de alguns cidadãos molestados. Agora, se a polícia privada da associação comercial

acaso caísse na tentação de brutalizar os clientes dos comerciantes, esses clientes

rapidamente desapareceriam e iriam para outro lugar. Assim, a associação dos

comerciantes teria de garantir que a sua polícia fosse cortês e eficiente.

Page 63: Por uma Nova Liberdade - O Manifesto Libertário - Murray N. Rothbard (Incompleto)

Esse tipo de proteção policial eficiente e de alta qualidade iria prevalecer por todo o

território, em todas as ruas e áreas privadas. Fábricas iriam proteger suas ruas e áreas

adjacentes; os comerciantes, as suas ruas; e as empresas donas de estradas forneceriam

uma proteção policial segura e eficiente em suas estradas pedagiadas e em qualquer

outro tipo de estrada gerida privadamente. Roubos de carga e assaltos a caminhoneiros

ou a viajantes comuns seriam nulos. O mesmo princípio é válido para bairros

residenciais. Para esses bairros, podemos prever dois tipos possíveis de gerenciamento

privado das ruas.

No primeiro tipo, todos os moradores de um determinado quarteirão podem se tornar os

proprietários conjuntos daquele quarteirão, formando por exemplo a "Companhia do

Quarteirão A". Essa companhia iria então fornecer a necessária proteção policial, os

custos da qual seriam pagos tanto pelos moradores e proprietários de imóveis, como

pelo aluguel dos inquilinos, caso a(s) rua(s) inclua(m) apartamentos alugados.

Desnecessário dizer, mais uma vez, que os donos dos imóveis terão obviamente um

interesse direto em garantir que seu quarteirão seja seguro, enquanto que aqueles que

querem alugar seus imóveis tentarão atrair inquilinos oferecendo ruas seguras, além dos

serviços mais habituais, como água, ar condicionado/calefação, zeladores, porteiros, etc.

Perguntar por que os locadores deveriam fornecer ruas seguras em uma sociedade

libertária e completamente privada seria tão tolo quanto perguntar hoje por que eles

deveriam prover água e rede elétrica para seus inquilinos. A força da concorrência e da

demanda do consumidor os obrigaria a fornecer tais serviços. Ademais, não importa se

estamos considerando os moradores ou os imóveis para alugar, em ambos os casos o

valor capital da terra e dos imóveis será função da segurança das ruas, bem como de

todas as outras conhecidas características do imóvel e da vizinhança. Ruas seguras e

bem patrulhadas irão aumentar o valor da terra e dos imóveis da mesma maneira que

apartamentos bem cuidados são valorizados; ruas tomadas pela criminalidade irão

depreciar o valor da terra e dos imóveis da mesma forma que apartamentos dilapidados

são desvalorizados. Dado que os proprietários dos imóveis sempre vão preferir um valor

maior para a sua propriedade, há um incentivo inerente para que forneçam ruas seguras,

bem pavimentadas e eficientes.

No segundo tipo de gerenciamento privado das ruas em áreas residenciais, empresas

privadas seriam donas apenas das ruas, e não das casas e dos prédios adjacentes. Essas

empresas iriam então cobrar dos moradores e dos proprietários dos imóveis os serviços

de manutenção, de melhoramento e de policiamento de suas ruas. Novamente, ruas

seguras, bem iluminadas e bem pavimentadas irão estimular proprietários e inquilinos a

se mudar para essas ruas; ruas inseguras, mal iluminadas e mal pavimentadas irão

afugentar proprietários e usuários. A satisfação dos usuários e o incremento da demanda

pelo uso das ruas — tanto por parte dos moradores como pelo trânsito de automóveis —

irão aumentar os lucros e o valor das ações das empresas privadas que gerenciam as

ruas; a insatisfação dos usuários e a diminuição do uso das ruas, bem como serviços

decadentes da empresa, irão afugentar os usuários e diminuir os lucros e o valor das

ações dessas empresas. Portanto, as empresas proprietárias das ruas farão o seu melhor

para fornecer serviços eficientes, inclusive proteção policial, de modo a conquistar

clientes e agradá-los; elas serão levadas a fazer isso pelo seu desejo de obter lucros e

aumentar o valor do seu capital. É infinitamente melhor ter de depender da busca de

interesses econômicos por parte de donos de imóveis e de empresas administradoras de

ruas a ter de depender exclusivamente do "altruísmo" duvidoso de burocratas e

funcionários do governo.

Page 64: Por uma Nova Liberdade - O Manifesto Libertário - Murray N. Rothbard (Incompleto)

Nesse ponto da discussão, é possível que alguém esteja tentado a perguntar: se as ruas

são geridas por empresas privadas, e admitindo que elas geralmente iriam se esforçar

para agradar seus clientes com a máxima eficiência, o que aconteceria se algum

proprietário de rua maluco ou tirânico repentinamente decidisse bloquear o acesso de

um proprietário vizinho à sua rua? Como é que este iria entrar ou sair? Poderia ele ficar

permanentemente bloqueado, ou mesmo ser extorquido para que lhe fosse permitida sua

entrada ou saída? A resposta para essa questão é a mesma dada a um problema similar

sobre propriedade de terras: suponha que todos os proprietários de imóveis ao redor da

propriedade de uma pessoa repentinamente não mais a deixassem sair ou entrar. E aí? A

resposta é que cada pessoa, ao comprar imóveis ou serviços de rua em uma sociedade

libertária, iria se certificar de que a compra ou o contrato de arrendamento lhe garantisse

acesso pleno por qualquer que seja o período de anos especificado. Com esse tipo de

"servidão"[1] garantido a priori por contrato, nenhum tipo de bloqueio repentino seria

permitido, já que ele seria uma invasão do direito de propriedade do dono do imóvel.

Não há obviamente nada de novo ou de assustador nos princípios dessa sociedade

libertária até então imaginada. Já estamos familiarizados com os efeitos energizantes da

concorrência entre serviços de transporte e entre determinadas localizações. Por

exemplo, quando as ferrovias privadas estavam sendo construídas nos EUA durante o

século XIX, a concorrência entre as empresas ferroviárias forneceu uma incrível força

energizante para o desenvolvimento de suas respectivas áreas. Cada empresa fez o

máximo possível para estimular a imigração e o desenvolvimento econômico nas

adjacências de seus trilhos. A intenção, é claro, era aumentar seus lucros, o valor de

suas terras e o valor do seu capital; e cada uma delas se apressou para fazer isso, pois

caso contrário as pessoas e os mercados deixariam sua área e se mudariam para os

portos, cidades e áreas servidas pelas ferrovias concorrentes. O mesmo princípio seria

válido se todas as ruas e estradas também fossem privadas.

Da mesma forma, já estamos familiarizados com os serviços de proteção policial

fornecidos por comerciantes e organizações particulares. Dentro de suas propriedades,

as lojas têm vigias e sentinelas; os bancos têm guardas; as fábricas têm vigilantes; os

shopping centers têm seguranças privados, etc. Uma sociedade libertária iria

simplesmente expandir esse saudável e funcional sistema, levando-o também para as

ruas. Não é por acaso que ocorrem muito mais assaltos e roubos violentos nas ruas fora

das lojas do que assaltos às próprias lojas; isso é porque as lojas são munidas de

precavidos guardas particulares, enquanto que nas ruas todos nós precisamos confiar na

"anarquia" da proteção policial estatal. E de fato, em várias cidades do mundo têm

crescido nos últimos anos, como resposta ao galopante problema da criminalidade, a

contratação de vigias privados para patrulhar alguns quarteirões em troca de

contribuições voluntárias dos proprietários de imóveis e moradores daquela região. A

criminalidade nessas áreas sempre é substancialmente reduzida quando se adota esse

método. O problema é que esses esforços às vezes se tornam vacilantes e ineficientes

porque as ruas não são propriedade de seus residentes, e assim não há um mecanismo

efetivo para se ajuntar o capital necessário que permita garantir uma proteção eficiente

em base permanente. Além disso, os vigias que patrulham as ruas não podem estar

legalmente armados porque eles não estão na propriedade de seus contratantes, e eles

não podem, da maneira como podem donos de loja ou de outras propriedades, abordar

qualquer pessoa que esteja agindo de maneira suspeita, porém não criminosa. Eles não

podem, em resumo, fazer as coisas, financeira ou administrativamente, que proprietários

podem fazer com suas respectivas propriedades.

Page 65: Por uma Nova Liberdade - O Manifesto Libertário - Murray N. Rothbard (Incompleto)

E mais: um sistema em que a polícia é paga por proprietários e residentes de um

quarteirão ou de um bairro iria não só pôr um fim na brutalidade policial contra os

cidadãos, mas, principalmente, iria também acabar com o espetáculo atual em que a

polícia é considerada em muitas comunidades como um grupo de colonizadores

"imperiais" estrangeiros, que estão lá não para servir, mas para oprimir a comunidade.

Por exemplo, atualmente temos uma situação comum e que é geral para todas as

grandes cidades: áreas pobres e/ou habitadas por maioria negra são patrulhadas por uma

polícia contratada por um governo central, governo esse que é tido como estranho para

essas comunidades negras e pobres. Já com uma polícia fornecida, controlada e paga

pelos próprios proprietários de imóveis e residentes de uma comunidade, a história seria

completamente diferente; essa polícia estaria fornecendo — e todos sentiriam que ela

estaria fornecendo — serviços aos seus clientes, ao invés de oprimindo-os em prol de

uma autoridade estranha.

Um contraste dramático entre os méritos de uma proteção privada vs. pública foi

fornecido por algo que aconteceu no Harlem, o bairro negro de Nova York. Na rua West

135th, entre a Sétima e a Oitava Avenida, está localizada a 82ª delegacia do

Departamento de Polícia de Nova York. Todavia, a nobre presença dessa delegacia não

evitou a erupção de uma onda de roubos noturnos a várias lojas da região. Finalmente,

durante o inverno de 1966, quinze comerciantes da região se uniram e contrataram um

vigia para patrulhar o quarteirão durante toda a noite; o vigia foi contratado junto a uma

empresa privada de segurança que estava lá para fornecer a proteção policial que não

estava sendo entregue pelos impostos sobre propriedade pagos pelos comerciantes.

Desnecessário dizer que os roubos acabaram.

Mas a mais bem sucedida e mais bem organizada polícia privada em toda a história foi

provavelmente a polícia ferroviária dos EUA, que era mantida por várias empresas

ferroviárias com a missão de evitar injúrias aos passageiros e impedir o roubo de cargas.

Essa moderna polícia ferroviária foi fundada no fim da Primeira Guerra Mundial pela

Seção de Proteção da Associação Ferroviária Americana. Funcionou tão bem que, já em

1929, os pedidos de pagamento de indenização por roubo de carga haviam caído 93%.

As prisões feitas pela polícia ferroviária — que, na época do maior estudo já feito sobre

suas atividades, no início da década de 1930, totalizavam 10.000 homens presos —

resultaram em uma porcentagem de condenações muito mais alta — variando de 83% a

97% — do que aquela atingida pelos departamentos de polícia convencionais. A polícia

ferroviária era armada, podia prender normalmente e foi retratada por um criminologista

nada simpático a ela[2] como sendo uma polícia que tinha uma ampla reputação de bom

caráter e bom preparo.

Determinando as regras das ruas

Uma das indubitáveis conseqüências de todas as áreas terrestres de um país serem

privadamente geridas por indivíduos e empresas é que haveria uma maior riqueza e

diversidade de vizinhanças. A natureza da proteção policial e as regras aplicadas pela

polícia privada dependeriam das vontades dos proprietários de imóveis ou dos donos

das ruas, isto é, os donos de uma determinada área. Assim, os moradores mais receosos

em uma área exclusivamente residencial iriam insistir que quaisquer pessoas ou carros

que entrassem em sua área tenham previamente marcado hora com um morador, ou

então que apenas fossem permitidos entrar através de interfones no portão de entrada.

Ou seja, as mesmas regras que hoje são frequentemente aplicadas em prédios e

Page 66: Por uma Nova Liberdade - O Manifesto Libertário - Murray N. Rothbard (Incompleto)

condomínios fechados poderiam ser aplicadas para as ruas privadas dos bairros

residenciais. Em outras áreas, as mais espalhafatosas, qualquer um poderia entrar a

vontade; e ainda haveria vários outros graus de vigilância entre esses extremos. Muito

provavelmente as áreas comerciais, ansiosas em não rejeitar e/ou repelir clientes,

estariam abertas para todos. A busca pelo lucro é que determinaria a escolha do método

mais eficiente. Isso forneceria uma grande disponibilidade de opções para os indivíduos,

que de acordo com seus desejos e princípios poderiam escolher a área que lhes fosse

mais aprazível.

Pode-se reclamar que tudo isso daria liberdade para "discriminar". Poderia haver

discriminação contra o uso de imóveis ou das ruas por determinados tipos de

indivíduos? Sim, não há dúvidas quanto a isso. Mas fundamental ao credo libertário é o

direito de cada homem poder escolher quem pode entrar na sua propriedade ou fazer uso

dela, considerando-se é claro que a outra pessoa queira fazê-lo.

"Discriminação", no sentido de escolher favoravelmente ou desfavoravelmente de

acordo com qualquer que seja o critério que a pessoa utilize, é parte integral da

liberdade de escolha — logo, de uma sociedade livre. Mas, é claro, no livre mercado

qualquer discriminação é custosa, e acabará sendo paga pelo dono da propriedade em

questão.

Por exemplo, suponha um indivíduo que, em uma sociedade livre, seja o proprietário de

uma casa ou de um bloco de casas, e esteja em busca de inquilinos. Ele poderia

simplesmente cobrar o preço de livre mercado do aluguel e deixar por isso mesmo. Mas

aí surgem alguns riscos; ele pode escolher discriminar casais com filhos pequenos, não

alugando o imóvel para eles por achar que há riscos substanciais de deterioração de sua

propriedade. Por outro lado, ele pode muito bem escolher cobrar um aluguel mais caro

para compensar o risco maior, de forma que o preço de livre mercado do aluguel para

famílias desse tipo tenderá a ser mais caro do que seria de outra forma. Aliás, em um

livre mercado, essa situação vai ocorrer na maioria dos casos. Mas e se houver uma

"discriminação" pessoal, ao invés de uma estritamente econômica, da parte do locador?

Suponha, por exemplo, que o locador seja um grande admirador de um determinado

grupo étnico — por exemplo, suecos loiros e muito altos — e decida alugar seus

apartamentos apenas para famílias de tal grupo. Em uma sociedade livre, ele estaria

completamente em seu direito se assim procedesse. Mas ele claramente iria sofrer um

grande prejuízo, pois teria de dispensar inquilino atrás de inquilino, em uma busca sem

fim por suecos loiros e altos. Conquanto esse possa ser considerado um exemplo

radical, o efeito é exatamente o mesmo — ainda que em grau variado — para qualquer

tipo de discriminação no livre mercado. Se, por exemplo, o locador não gostar de ruivos

e, por isso, determinar que não vai alugar seus apartamentos para esse tipo, certamente

também irá sofrer prejuízos, ainda que não tão severos quanto no primeiro exemplo.

Em qualquer caso, sempre que alguém praticar "discriminação" no livre mercado, ele

vai sofrer as conseqüências — seja na forma de prejuízos, seja na forma da perda de

serviços recebidos como consumidor. Se um consumidor decide boicotar os bens

vendidos por pessoas das quais ele não gosta - seja esse desgosto justificado ou não —,

ele consequentemente irá ficar sem esses bens ou serviços que, de outra forma, teria

comprado.

Page 67: Por uma Nova Liberdade - O Manifesto Libertário - Murray N. Rothbard (Incompleto)

Portanto, em uma sociedade livre, são os donos das propriedades quem determinam as

regras de uso de seus domínios, bem como as regras de admissão. Quanto mais

rigorosas forem essas regras, menos pessoas irão demandar os serviços dessas

propriedades, e assim o proprietário terá de fazer um equilíbrio entre rigor de admissão

e perda de receita.

O preceito de que a propriedade é administrada por seus proprietários também fornece a

refutação para um sempre utilizado argumento em favor da intervenção governamental

na economia. O argumento afirma que "afinal, é o governo quem determina as regras do

trânsito — luz verde e vermelha, direção do lado direito da pista, limites de velocidade,

etc. Certamente todo mundo tem de admitir que o trânsito degeneraria em caos se não

fossem tais regras. Portanto, por que o governo não deveria também intervir em todo o

resto da economia?" A falácia aqui não é que o trânsito deva ser regulado; é claro que

algumas regras são necessárias. Mas o ponto crucial é que tais regras sempre serão

estabelecidas por quem quer que seja o dono e que, portanto, gerencie as ruas e estradas.

O governo vem criando regras para o trânsito simplesmente porque é ele quem sempre

foi o proprietário e, consequentemente, o gerente das ruas e estradas; em uma sociedade

libertária baseada na propriedade privada seriam os proprietários quem iriam definir as

regras para o uso de suas ruas.

Entretanto, será que em uma sociedade puramente livre as regras de trânsito não

tenderiam a ser "caóticas"? E se alguns proprietários designassem a luz vermelha como

"pare", enquanto outros escolhessem a verde, ou até mesmo uma azul, etc.? Não

teríamos algumas ruas com a mão de direção no lado direito enquanto em outras ela

seria no lado esquerdo? Tais perguntas são absurdas, é claro. Obviamente, seria do

interesse de todos os proprietários de ruas e estradas terem regras uniformes para essas

questões, de modo que o tráfego possa fluir e se integrar suavemente, sem dificuldades.

Qualquer proprietário de rua excêntrico ou dissidente que insistisse em uma mão de

direção à esquerda, ou no verde para "pare" ao invés de "vá", iria rapidamente se ver

cercado de acidentes, além de perder todos os clientes e usuários.

É interessante observar que as ferrovias privadas nos EUA do século XIX enfrentaram

problemas similares e os resolveram harmoniosamente e sem dificuldades. Cada

ferrovia permitia os vagões de suas concorrentes em seus trilhos; elas se

interconectavam entre si para benefício mútuo; as bitolas das diferentes ferrovias foram

reajustadas para se tornarem uniforme; e classificações uniformes de cargas regionais

foram implementadas para 6.000 itens. E tem mais: foram as empresas ferroviárias, e

não o governo, que tomaram a iniciativa de consolidar a mixórdia caótica e

ingovernável de fusos horários que existiam até então. Para ter exatidão na programação

e na tabela de horários, as empresas tiveram de se unir; e em 1883 elas concordaram em

alterar os cinqüenta e quatro fusos horários dos EUA para apenas os quatro que

prevalecem até hoje. Um jornal financeiro de Nova York, o Commercial and Financial

Chronicle, exclamou que "as leis do comércio e o instinto de auto-preservação

efetuaram reformas e melhorias que todos os corpos legislativos juntos não conseguiram

realizar!"

Precificando ruas e estradas

Se, em comparação, examinarmos as performances das ruas e estradas estatais, torna-se

difícil imaginar que um gerenciamento privado poderia acumular um histórico mais

Page 68: Por uma Nova Liberdade - O Manifesto Libertário - Murray N. Rothbard (Incompleto)

ineficiente e irracional. Além da péssima qualidade, sobre a qual já virou clichê

falarmos, hoje já é amplamente reconhecido, por exemplo, que os governos federal e

estadual, incitados pelo lobby das fabricantes de automóveis, das petrolíferas, das

fabricantes de pneu, e de empreiteiras e sindicatos, incorreram em uma vasta expansão

de estradas. Em termos econômicos, estradas fornecem gordos subsídios aos seus

usuários; em termos práticos, elas tiveram um papel central na morte das ferrovias como

um empreendimento viável. Assim, enquanto caminhões podem operar em estradas

construídas e mantidas pelo contribuinte, as empresas ferroviárias tiveram de construir e

manter suas próprias estradas de ferro. Ademais, as estradas e ruas subsidiadas levaram

a uma demasiada expansão de subúrbios acessíveis apenas por automóveis, que por sua

vez levaram a uma demolição coerciva de várias casas e negócios, tanto para a

construção de mais estradas, como para a construção dos subúrbios, e trouxeram um

pesado fardo para o centro das cidades. O custo para o contribuinte e para a economia

têm sido enormes.

Particularmente subsidiado tem sido aquele usuário urbano de automóvel que se

locomove diariamente entre sua casa e o trabalho; e é precisamente nas cidades que os

congestionamentos vêm aumentando como conseqüência desse subsídio dado aos

usuários de automóveis, o que sempre leva a um excesso de oferta desse tipo de tráfego.

O professor William Vickrey, da Universidade Columbia, estimou que as vias expressas

urbanas foram construídas a um custo que varia entre 6 e 27 cents por veículo-milha,

enquanto que os usuários dessas vias pagam em impostos, tanto o imposto sobre a

gasolina como o imposto sobre o veículo automotor, apenas 1 cent por veículo-milha.

Portanto, é o contribuinte regular, e não o motorista, quem paga pela manutenção das

ruas. Ademais, o imposto sobre a gasolina é pago por milha rodada, não importa qual

rua ou estrada esteja sendo usada, e não importa a hora do dia. Logo, quando estradas

são financiadas pelos fundos arrecadados com o imposto sobre a gasolina, os usuários

das estradas rurais de baixo custo estão sendo taxados com o intuito de subsidiar os

usuários das vias expressas urbanas, cujos custos são muito maiores. Estradas rurais

normalmente custam apenas 2 cents por veículo-milha para serem construídas e

mantidas.

Além disso, o imposto sobre a gasolina dificilmente pode ser considerado um sistema

racional de precificação para o uso das estradas, e nenhuma empresa privada jamais iria

precificar dessa forma o uso de suas estradas. Empresas privadas precificam seus bens

de forma a "equilibrar o mercado", de maneira que a oferta iguale a demanda e não haja

nem escassez e nem excedentes. O fato de os impostos sobre a gasolina serem pagos por

milha, independentemente da estrada, significa que as altamente demandadas ruas

urbanas e estradas estão enfrentando uma situação tipicamente criada pelo governo: o

preço cobrado pelo seu uso está muito abaixo do preço de livre mercado. Esse subsídio

dado aos motoristas urbanos resulta em enormes e exacerbados congestionamentos nas

ruas e estradas, especialmente nas horas do rush, enquanto que ao mesmo tempo deixa

toda uma malha de estradas rurais praticamente inutilizada. Um sistema racional de

precificação iria, ao mesmo tempo, maximizar os lucros para os proprietários das ruas e

propiciar ruas sempre livres de congestionamento. No atual sistema, o governo mantém

o preço para os usuários de ruas congestionadas em níveis extremamente baixos, e

muito abaixo do preço de livre mercado; o resultado é uma escassez crônica de espaço

trafegável, o que resulta em congestionamento.

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Mas como seria um sistema racional de precificação instituído pelos proprietários

privados das ruas? Em primeiro lugar, as ruas iriam cobrar pedágios, mas com variação

de preços de acordo com a demanda. Por exemplo, os pedágios seriam bem mais caros

durante a hora do rush e durante quaisquer outras horas de pico, e mais baratos durante

as horas mais calmas. Em um livre mercado, a maior demanda durante as horas de pico

levaria a preços de pedágio maiores, até que o congestionamento fosse eliminado e o

fluxo do tráfego se tornasse estável. Mas as pessoas têm de trabalhar!, o leitor vai reagir.

É claro, mas elas não têm de ir em seus próprios carros. Alguns irão compartilhar seus

carros com outras pessoas (transporte solidário), enquanto outros irão pegar ônibus

expressos (que seriam abundantemente ofertados em um livre mercado) ou trens; já

outros irão se esforçar para alterar seus horários de trabalho, de modo a poderem ir e

voltar em horas escalonadas. Dessa forma, o uso das ruas durante as horas de pico

estaria restringido àqueles mais dispostos a pagar o preço de equilíbrio de mercado por

seu uso.[3] Finalmente, os maiores lucros obtidos pelas empresas operadoras de túneis e

pontes, por exemplo, estimulariam outras empresas privadas a construir mais dessas

estruturas. A construção de ruas e estradas seria governada não pelos clamores de

grupos de interesse e de usuários que querem mais subsídios, mas pelos eficientes

cálculos de demanda e custo efetuados pelo mercado.

Não obstante tudo isso, a idéia de ruas urbanas privadas ainda espanta as pessoas.

Afinal, como elas seriam precificadas? Onde exatamente ficariam os pedágios? Haveria

pedágios em cada quarteirão? É óbvio que não, dado que tal sistema seria claramente

anti-econômico, além de proibitivamente custoso tanto para o proprietário como para o

motorista. Em primeiro lugar, os proprietários das ruas vão precificar o estacionamento

em suas ruas muito mais racionalmente do que o modelo atual. Eles vão cobrar muito

mais caro para se estacionar nas ruas congestionadas do centro, em resposta à enorme

demanda. E contrariamente à prática atual, eles vão cobrar proporcionalmente mais

caro, ao invés de mais barato, de quem estacionar durante todo o dia. Ou seja, os donos

das ruas tentarão induzir uma rápida rotatividade nas áreas congestionadas. OK, tudo

certo quanto a estacionar; novamente, esse é um quesito de fácil compreensão. Mas, e

quanto a dirigir em ruas congestionadas? Como isso poderia ser precificado? Existem

várias maneiras possíveis. Com a tecnologia moderna e seu constante aperfeiçoamento,

desafios desse tipo são risíveis. Uma técnica arcaica sugere que câmeras de TV ou

máquinas fotográficas sejam instaladas nas esquinas das ruas de modo a captar as placas

dos veículos, com as faturas sendo enviadas aos motoristas ao final de cada mês. Outra,

mais moderna, sugere que cada carro seja equipado com um receptor eletrônico que

emitiria um sinal exclusivo por carro, sinal esse que seria captado por um aparelho

instalado na referida esquina. Outra, ainda mais moderna, garante que sensores óticos,

de alguma forma que só os engenheiros sabem, fariam todo o serviço.

O que importa aqui é que o problema da precificação racional das ruas seria de fácil

resolução para a iniciativa privada e para a tecnologia moderna. A técnica que será

utilizada para tal é problema para engenheiros. O que sabemos como economistas é que

o livre mercado, a busca por lucros sob um o regime de propriedade privada e a

moderna tecnologia são capazes de viabilizar essa exigência. Empreendedores em um

livre mercado já se mostraram capazes de solucionar rapidamente problemas muito mais

difíceis; tudo o que é necessário é dar a eles o espaço para agirem.

Page 70: Por uma Nova Liberdade - O Manifesto Libertário - Murray N. Rothbard (Incompleto)

Conclusão

Se todos os sistemas de transporte se tornassem livres, se as estradas, as companhias

aéreas, as ferrovias e as hidrovias fossem liberadas de suas labirínticas redes de

subsídios, controles e regulamentações, e se elas se tornassem um sistema puramente

privado, como os consumidores iriam alocar seu dinheiro para transporte? Será que

voltaríamos às viagens ferroviárias, por exemplo? As melhores estimativas de custo e

demanda para transportes predizem que as ferrovias se tornariam o principal meio de

transporte de carga de longa distância, os aviões seriam os preferíveis para transporte de

passageiros de longo alcance, os caminhões para cargas de pequena distância e os

ônibus para as comutações púbicas diárias. Embora as ferrovias ressuscitassem para uso

em transporte de cargas de longa distância, elas não seriam restabelecidas como

transporte de passageiros.

Portanto, não é difícil imaginar um setor aéreo e uma rede de ferrovias particulares, não

subsidiados e desregulamentados; mas poderia haver um sistema de estradas privadas?

Tal sistema seria viável? Uma resposta é que estradas privadas funcionaram

admiravelmente bem no passado. Na Inglaterra antes do século XVIII, por exemplo, as

estradas — invariavelmente geridas pelos governos locais — eram mal construídas e

pessimamente mantidas. Essas estradas públicas jamais teriam suportado a poderosa

Revolução Industrial que a Inglaterra vivenciou no século XVIII, a "revolução" que

prenunciou a era moderna. A vital tarefa de aperfeiçoar as praticamente intransitáveis

estradas inglesas ficou a cargo de companhias privadas que, começando em 1706,

organizaram e estabeleceram a grande rede de estradas que fez da Inglaterra a inveja do

mundo. Os proprietários dessas companhias privadas eram em geral mercadores, donos

de terras e industrialistas da área que estava sendo servida pela estrada, e eles

recuperaram seus custos cobrando pedágios em pontos selecionados. Frequentemente, a

coleta de pedágios era arrendada por um ano ou mais para indivíduos selecionados

através de licitações concorrenciais. Foram essas estradas privadas que desenvolveram

um mercado interno na Inglaterra e que reduziram enormemente os custos de transporte

do carvão e de outros materiais volumosos. E já que era mutuamente benéfico para elas,

as companhias de pedágio se interligaram entre si para poder formar uma rede de

estradas interconectadas por todo o país — tudo isso resultado da iniciativa privada em

ação.

Como na Inglaterra, o mesmo ocorreu nos EUA algum tempo depois. Defrontando-se

novamente com estradas praticamente intransitáveis construídas por unidades

governamentais locais, companhias privadas construíram e financiaram uma grande

rede de estradas pedagiadas por todos os estados do nordeste americano,

aproximadamente entre 1800 e 1830. Mais uma vez, a iniciativa privada provou-se

superior na construção e manutenção de estradas, em oposição às retrógradas operações

do governo. As estradas foram construídas e operadas por corporações privadas, que

cobravam pedágios dos usuários. Essas empresas foram amplamente financiadas por

mercadores e pelos donos das propriedades adjacentes às estradas, e elas

voluntariamente se interligaram, formando uma rede interconectada de estradas. E essas

foram as primeiras estradas realmente boas dos EUA.

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Murray N. Rothbard (1926-1995) foi um decano da Escola Austríaca e o fundador do

moderno libertarianismo. Também foi o vice-presidente acadêmico do Ludwig von

Mises Institute e do Center for Libertarian Studies.

Notas

[1] Em termo jurídico, servidão é um encargo que dá ao possuidor de um terreno o

direito de usar ou tirar algum proveito de uma área contígua que pertence a terceiros.

Por exemplo, direito de passagem, busca de água, instalação de fios elétricos, etc. [N. do

T.]

[2] Ver Jeremiah P. Shalloo, Private Police (Philadelphia: Annals of the American

Academy of Political and Social Science, 1933).

[3] Algumas pessoas podem argumentar que essa é uma idéia "elitista", pois apenas os

mais ricos poderiam fazer uso constante de seus veículos. Como contra-argumento,

basta lembrar que em uma sociedade puramente libertária não existe absolutamente

qualquer tipo de imposto. E como a carga tributária média de um país como o Brasil

está na casa dos 35%, isso significa que a ausência de todos os impostos deixaria toda a

população mais rica, na média (os funcionários públicos, de início, empobreceriam;

porém, em uma economia totalmente desregulamentada, eles não teriam dificuldades

em encontrar empregos mais produtivos e bem mais importantes, como os de

manobrista, frentista, caixa de padaria, coveiro, etc. Não mais viveriam luxuosamente à

custa de seus concidadãos). Além disso, a ausência de impostos incidentes sobre

mercadorias e transações, bem como a ausência de uma burocracia estatal que eleva o

custo dessas transações, faria com que os preços dos bens e serviços caíssem

significativamente. Logo, haveria um duplo aumento da riqueza.

Ademais, no caso brasileiro, o pagamento anual de pedágios dificilmente sairia mais

caro do que o IPVA pago por dois carros, quantidade hoje normal para uma família de

classe média-baixa. E isso sem levar em consideração o benefício da melhor qualidade

das ruas e das estradas privadas, bem como a ausência de congestionamentos e a

garantia de segurança plena. [N. do T.]