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Ciência e Dialética em Aristóteles

Porchat_Ciencias e Dialetica Em Aristoteles

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  • Cincia e Dialticaem Aristteles

  • FUNDAO EDITORA DA UNESP

    Presidente do Conselho CuradorJos Carlos Souza Trindade

    Diretor-PresidenteJos Castilho Marques Neto

    Assessor EditorialJzio Hernani Bomfim Gutierre

    Conselho Editorial AcadmicoAntonio Celso Wagner ZaninAntonio de Pdua Pithon CyrinoBenedito AntunesCarlos Erivany FantinatiIsabel Maria F. R. LoureiroLgia M. Vettorato TrevisanMaria Sueli Parreira de ArrudaRaul Borges GuimaresRoberto KraenkelRosa Maria Feiteiro Cavalari

    Editora ExecutivaChristine Rhrig

  • Oswaldo Porchat Pereira

    Cincia e Dialticaem Aristteles

    Coleo Biblioteca de Filosofia

    Direo Marilena Chau

    Organizao Floriano Jonas Csar

  • 4 2000 Oswaldo Porchat Pereira

    Direitos de publicao reservados :Fundao Editora da UNESP (FEU)Praa da S, 10801001-900 So Paulo SPTel.: (0xx11) 232-7171Fax: (0xx11) 232-7172Home page: www.editora.unesp.brE-mail: [email protected]

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Pereira, Oswaldo PorchatCincia e dialtica em Aristteles / Oswaldo Porchat Pereira

    So Paulo: Editora UNESP, 2001. (Coleo Biblioteca de Filosofia)

    Bibliografia.ISBN 85-7139-340-0

    1. Aristteles 2. Cincia 3. Dialtica I. Ttulo

    01-0853 CDD-185

    ndice para catlogo sistemtico:

    1. Aristteles: Obras filosficas 185

    Editora afiliada:

  • 5Apresentao da ColeoBiblioteca de Filosofia

    No correr dos ltimos vinte anos, vimos crescer no Brasil a pro-

    duo de trabalhos em filosofia, bem como o interesse de natureza

    profissional ou no despertado pela filosofia em um novo pblico

    leitor. Do lado universitrio, esse crescimento decorreu, sem dvida,

    da expanso dos cursos de ps-graduao em filosofia, provocando

    pesquisas originais e rigorosas nos mais diversos campos filosficos.

    No entanto, em sua maior parte esses trabalhos permanecem igno-

    rados ou so de difcil acesso, pois so teses acadmicas cujos exem-

    plares ficam disposio apenas nas bibliotecas universitrias, mes-

    mo porque a maioria de seus autores so jovens e no so procurados

    pelo mercado editorial. Disso resulta que bons trabalhos acabam sendo

    do conhecimento de poucos. Do lado dos leitores universitrios, au-

    mentou a procura desses trabalhos porque constituem um acervo

    bibliogrfico nacional precioso para o prosseguimento das pesquisas

    acadmicas. Do lado dos leitores no-especialistas, a demanda por

    textos de filosofia tambm cresceu, possivelmente ocasionada pelas

    dificuldades prticas e tericas do tempo presente, que vive a crise

    dos projetos de emancipao, da racionalidade moderna e dos valo-

  • 6res ticos e polticos, fazendo surgir o interesse renovado pelos fru-

    tos da reflexo filosfica.

    Biblioteca de Filosofia pretende, na medida do possvel, responder

    tanto necessidade de dar a conhecer a produo universitria em

    filosofia como ao interesse dos leitores pelas questes filosficas. Por

    isso, as publicaes se destinam a divulgar os resultados de pesqui-

    sas de jovens estudiosos, mas tambm trabalhos que, entre os espe-

    cialistas, so hoje clssicos da filosofia no Brasil e que, escritos como

    teses, jamais haviam sido editados.

    Esta coleo, publicando trabalhos dos mais jovens e dos mais

    velhos, busca dar visibilidade ao que Antonio Candido (referindo-se

    literatura brasileira) chama de um sistema de obras, capaz de sus-

    citar debate, constituir referncia bibliogrfica nacional para os pes-

    quisadores e despertar novas questes com que v alimentando

    uma tradio filosfica no Brasil, alm de ampliar, com outros leito-

    res, o interesse pela filosofia e suas enigmticas questes. Que, afi-

    nal, so as de todos, pois, como escreveu Merleau-Ponty, o filsofo

    simplesmente aquele que desperta e fala, e que, para isso, precisa ser

    um pouco mais e um pouco menos humano.

  • 7para Ieda, Patrcia, Ana e Julia

  • 9Sumrio

    Apresentao 15

    Prefcio 21

    Introduo 25

    I O saber cientfico 35

    1 A noo de cincia 35

    1.1 A cincia, a causa e o necessrio 35

    1.2 A cincia e a categoria da relao 44

    1.3 A cincia e a alma 47

    1.4 Os outros usos do termo cincia 52

    2 A cincia que se tem 54

    2.1 A noo de cincia, a opinio comum e a realidade cientfica 54

    2.2 As coisas celestes e a cincia humana 57

    2.3 O paradigma matemtico 59

    2.4 Aristteles e a concepo platnica de cincia 64

  • 10

    3 Cincia e silogismo demonstrativo 67

    3.1 A demonstrao ou silogismo cientfico 67

    3.2 O silogismo e as matemticas 70

    3.3 O silogismo cientfico e o conhecimento do que 74

    3.4 Das condies de possibilidade da demonstrao 76

    II O saber anterior 79

    1 As premissas da demonstrao 79

    1.1 Natureza das premissas cientficas 79

    1.2 Justificao de suas notas caractersticas 81

    1.3 O conhecimento dos princpios, outra forma de cincia 81

    2 Cincia e verdade 83

    2.1 O ser e o verdadeiro, no pensamento e nas coisas 83

    2.2 A inteligncia e as coisas simples 87

    2.3 A verdade, funo da razo humana 88

    2.4 A cincia, sempre verdadeira 89

    3 O que e o porqu 91

    3.1 As premissas, como causas 91

    3.2 Silogismos do que e silogismos do porqu 93

    3.3 A ratio cognoscendi e a ratio essendi 97

    3.4 As cincias do que 98

    4 Do que se conhece mais e antes 100

    4.1 Anterioridade e conhecimento prvio 100

    4.2 Maior cognoscibilidade das premissas 101

    4.3 A aporia do conhecimento absoluto 104

    4.4 A noo de anterioridade 105

    4.5 Comparao entre Metafsica e Categorias, 12 108

    4.6 A anterioridade segundo a essncia e a natureza 111

    4.7 O caminho humano do conhecimento: investigao e cincia 117

    5 Os indemonstrveis 125

    5.1 A noo de princpio 125

    5.2 A indemonstrabilidade dos princpios 126

  • 11

    5.3 Um falso dilema: regresso ao infinito ou demonstrao hipottica 128

    5.4 A teoria da demonstrao circular 133

    III Do demonstrado ao indemonstrvel 137

    1 O por si e o acidente 138

    1.1 As mltiplas acepes de por si e de acidente 138

    1.2 O por si e a essncia; o prprio 143

    1.3 O por si, o acidente e a cincia 146

    1.4 O necessrio que a cincia no conhece 148

    2 A catolicidade da cincia 152

    2.1 O 152

    2.2 O universal e a cincia 153

    2.3 Universalidade e sujeito primeiro 154

    2.4 Acepes diferentes de universal 156

    2.5 Objees e respostas 161

    2.6 Superioridade da demonstrao universal 164

    2.7 O universal cientfico e a percepo sensvel 169

    3 A falsa catolicidade 172

    3.1 Um primeiro erro contra a universalidade 172

    3.2 O segundo erro 173

    3.3 O terceiro erro 175

    3.4 Verdadeira cincia e saber aparente 177

    4 O freqente 178

    4.1 Pode haver cincia do freqente? 178

    4.2 O acidente, o freqente e a matria 181

    4.3 Duas acepes de possvel 182

    4.4 A necessidade hipottica 185

    4.5 O freqente e o devir cclico 186

    4.6 O freqente, objeto de cincia 187

    4.7 O que no mais das vezesocorre e o que muitas vezes acontece 189

  • 12

    5 Da necessidade, nas premissas da cincia 192

    5.1 Ainda o por si e o necessrio 192

    5.2 Prova-se a natureza necessria das premissas 193

    5.3 Necessidade ontolgica e necessidade do juzo 195

    5.4 Sobre a multiplicidade de causas 196

    6 Da indemonstrabilidade dos princpios 198

    6.1 Proposies primeiras e cadeias de atribuies 198

    6.2 Do carter finito das cadeias: primeira prova lgica 200

    6.3 Segunda prova lgica 203

    6.4 A prova analtica 205

    6.5 A existncia dos princpios e a anlise da demonstrao 207

    6.6 Finidade da cincia e finidade do real 208

    IV A multiplicao do saber 211

    1 Os gneros da demonstrao 211

    1.1 A noo de gnero cientfico 211

    1.2 A passagem proibida 212

    1.3 A passagem permitida, uma contradio aparente 216

    1.4 A fsica matemtica e a doutrina da passagem 219

    2 Os princpios prprios 223

    2.1 Gneros e princpios 223

    2.2 Teses, hipteses e definies 225

    2.3 As formas de conhecimento prvio 228

    2.4 Soluo de uma falsa aporia 230

    3 Os axiomas ou princpios comuns 234

    3.1 O terceiro elemento da demonstrao 234

    3.2 Comuns e axiomas, dialtica e cincia do ser 236

    3.3 Os axiomas e o silogismo demonstrativo 240

    3.4 Os axiomas matemticos, a matemtica universal e a filosofia primeira 244

    4 A unidade impossvel do saber 250

    4.1 Argumentos lgicos e argumentos analticos 250

  • 13

    4.2 As categorias do ser e os gneros cientficos 252

    4.3 Um paralelo com o platonismo 255

    4.4 A dialtica, os comuns e a sofstica 259

    4.5 As questes cientficas e o a-cientfico 260

    4.6 Novos argumentos dialticos: sobre o nmero de princpios 263

    5 A diviso das cincias 269

    5.1 As cincias, as partes da alma e as coisas 269

    5.2 Ao, produo e contingncia 272

    5.3 Os elementos tericos das cincias prticas e poiticas 273

    5.4 O homem, a contingncia e os limites da cientificidade 276

    V Definio e demonstrao 279

    1 Do que se pergunta e sabe 281

    1.1 Quatro perguntas que se fazem 281

    1.2 A ambigidade das expresses aristotlicas 283

    1.3 Ser em sentido absoluto e ser algo 285

    1.4 A categoria da essncia e as essncias das categorias 288

    1.5 Perguntar pelo ser, perguntar sobre a causa 291

    1.6 Aporias sobre o termo mdio 294

    1.7 O sentido da discusso preambular 297

    2 Aporias sobre a definio 300

    2.1 O que se demonstra, o que se define 300

    2.2 O silogismo da definio 305

    2.3 Definies nominais e conhecimento da qididade 310

    3 Demonstrao e definies 313

    3.1 Consideraes preliminares 313

    3.2 O silogismo lgico do o que 316

    3.3 A busca do o que e o silogismo cientfico 320

    3.4 A demonstrao, caminho para a definio 325

    3.5 Confirma-se e complementa-se a doutrina 329

    3.6 As vrias espcies de definio 331

  • 14

    3.7 Cincia, conhecimento de essncias 334

    3.8 Termina a exposio sobre a doutrina da cincia 335

    VI A apreenso dos princpios 337

    1 O problema 337

    1.1 Recapitulao 337

    1.2 Um conhecimento anterior ao dos princpios? 339

    1.3 Sensao, experincia e apreenso dos universais 344

    1.4 A induo dos princpios 347

    1.5 Induo ou inteligncia dos princpios? 351

    2 Os Tpicos e a dialtica 355

    2.1 A dialtica e as cincias filosficas 355

    2.2 Caractersticas gerais da arte dialtica 359

    2.3 Estrutura e contedo dos Tpicos 361

    2.4 Os Tpicos e a metodologia da definio 369

    2.5 A dialtica e a viso dos princpios 370

    3 A soluo 374

    3.1 Um mtodo dialtico nos tratados 374

    3.2 A dialtica e os Analticos 378

    3.3 Induo e mtodo dialtico 384

    3.4 Induo dialtica e viso dos princpios 387

    Concluso 395

    1.1 A cincia lgica e o sistema aristotlico 395

    1.2 A doutrina da cincia e a problemtica do critrio 400

    Referncias bibliogrficas 411

  • 15

    Apresentao

    Depois de ter lido o prefcio que Oswaldo Porchat Pereira escre-

    veu para a primeira edio desta sua obra, terminada h mais de trin-

    ta anos mas somente agora publicada, no via qualquer motivo para

    esta minha apresentao. A parte hagiogrfica, vamos dizer assim, j

    estava ali desenvolvida, contando inclusive como nossa longa e pro-

    funda amizade se entrelaou com a fabricao deste livro. No que res-

    peita a seu contedo, obviamente no tenho competncia para

    examin-lo no seu pormenor, pois, embora leitor assduo de

    Aristteles, no participo do grupo de helenistas capaz de ver novida-

    des numa obra que tem sido lida e repensada por mais de dois mil

    anos. Sou apenas consumidor de comentrios especializados. Mas

    como no queria estar ausente da festa desta publicao, imaginei que

    poderia escrever sobre o que este trabalho nos ensinou l pelos anos70. No estaria assim sugerindo uma pista, dentre muitas, para aju-

    dar o leitor na dura tarefa de digerir este livro? Nem mesmo isso sejustificaria, entretanto, se o prprio Porchat inclusse em sua apresen-

    tao os tpicos vistos por ele como os mais relevantes de seu traba-lho, ele mesmo desbastando o caminho do leitor. Fiz-lhe ento duas

    sugestes: 1) que trocasse o nome de prefcio por posfcio, porquantoestava apresentando um texto j pronto; 2) que ele mesmo indicasse

    as linhas que lhe aparecessem as mais interessantes e mais inovadoras.

  • 16

    Apresentao

    Porchat me olhou muito concentrado e me respondeu: Vou conside-

    rar muito seriamente esta sua sugesto.

    Somente o fato de lev-la em conta j era auspicioso, pois de cos-

    tume recusa-se a mudar uma vrgula do texto que lhe aparece acaba-

    do. Lembra-me que Victor Goldschmidt lhe propusera picar o livro em

    vrios artigos que facilmente poderiam ento ser publicados em revis-

    tas francesas. Obviamente isso nunca aconteceu. Admiro essa capa-

    cidade de fechar, caracterstica de suas aulas e de seus escritos, mas

    s vezes desconfio que nela se escondam resqucios de seu dogma-

    tismo. Costumo brincar dizendo que Porchat, de todos ns, o mais

    dogmtico, com a nica diferena que escreve dogmaticamente para,

    em seguida, juntar s suas proposies o operador Aparece que.

    Dias depois ele me deu a resposta esperada: Se os autores escre-

    vem prefcios s edies subseqentes de uma obra j publicada, por

    que no posso escrever um prefcio a um texto j escrito?. De minha

    parte, continuo a pensar que um prefcio a uma segunda edio toma

    o livro sob novo aspecto, inclusive para dizer, quando o caso, que

    nada foi mudado. Obviamente, no que respeita ao contedo do tex-

    to, depois de muitas gentilezas, acabou me confessando que no ha-

    via nada a mudar. Fez-me, porm, uma proposta inesperada: Se voc

    continua querendo lembrar os aspectos relevantes do livro para nos-

    sa discusso daqueles anos, posso eu mesmo escrever-lhe um rotei-

    ro facilitando sua tarefa. Posso resumir a discusso que tivemos ou-

    tro dia.

    Fiquei encantado com a soluo e de imediato imaginei a mole-

    cagem de introduzir em meu prprio texto o roteiro do autor. Prati-

    caria uma boa traio. No extraordinrio prefcio escrito para o livro

    de Flvio Josefo, A guerra dos judeus, Pierre Vidal-Naquet mostra como

    esse historiador, embora profundamente judeu, assume aparentemen-

    te uma posio pr-romana, pois s assim, acreditava ele, seria pos-

    svel conciliar os interesses de seu povo diante da invencibilidade,

    naquele momento, da maquinaria das legies de Roma. nesse sen-

    tido que falar numa tradio pode ter bom uso, pois em poltica nem

  • 17

    Cincia e Dialtica em Aristteles

    tudo pode estar claro, sobrando contudo aos traidores a responsabi-

    lidade de ter ou no acertado quando se metem a pescar em guas tur-

    vas. No seria o caso de imit-lo? Se inicialmente traio a confiana de

    Porchat, que, depois do susto, porm, entrou na brincadeira, no

    porque ele deve ser o primeiro a indicar os pontos relevantes de uma

    obra que deixou rolar anos na gaveta? Mas nessa boa traio, antes de

    tudo o que aparece o prprio Porchat, do qual no poderia fazer me-

    lhor retrato se no me ocultasse atrs de um texto, que ele somente

    daria para uns poucos amigos. Eis o texto e seu autor.

    Cincia e dialtica em Aristteles

    Uma anlise longa e exaustiva da estrutura e contedo dos Segun-

    dos Analticos.

    Estudo aprofundado da noo aristotlica de epistme, fazendo-nos

    remontar a seus elementos e a suas condies de possibilidade. Mos-

    trando como, ao contrrio do que por muito tempo se disse, Aris-

    tteles valorizou de modo todo especial o saber matemtico, que

    tomou como paradigma em sua anlise da cientificidade. So as ma-

    temticas que revelam a Aristteles a natureza da epistme.

    Cincia, saber demonstrativo. A natureza dos silogismos da cin-

    cia. A natureza das premissas cientficas. A noo de princpio e a

    indemonstrabilidade dos princpios. As noes de por si e de

    universal, de freqente(hs ep t pol), de necessrio.

    A noo de gnero cientfico e o problema da metbasis (passagem

    de um gnero a outro). A doutrina da metbasis e a natureza parti-

    cular da fsica matemtica. A questo da diviso das cincias.

    Todas essas questes so estudadas nos quatros primeiros captu-

    los, mostrando-se como se inter-relacionam e mutuamente se ex-

    plicam. Como compem uma doutrina coerente da cincia e se

    concatenam entre si de modo rigoroso. O que h de original nesse

    estudo no so os tpicos abordados, mas precisamente a recons-

    truo da estrutura da teoria aristotlica da cincia e sua lgica

  • 18

    Apresentao

    interna, tal como ela se desenvolve no livro I dos Segundos Analti-

    cos. Contra os estudos que preferiram apontar pretensas ambigi-

    dades, aporias e hesitaes na doutrina aristotlica da cincia.

    O cap.5 uma anlise do livro II dessa obra, tem por contedo a

    importante noo de definio e sua relao com o saber demons-

    trativo. Mostra-se como o livro II complemento indispensvel do

    primeiro, como a teoria da definio, que ele difcil e laboriosamen-

    te desenvolve nos seus dez primeiros captulos, um estudo

    aprofundado da temtica da essncia e da qididade no quadro do

    conhecimento epistmico. Aqui, por certo, um segundo ponto ori-

    ginal da tese, uma vez que os estudiosos da problemtica da cin-

    cia aristotlica se tinham antes preocupado com realar as ineg-

    veis dificuldades do texto, sem lograr refazer os passos lgicos

    de sua estruturao e sem apreender a unidade profunda dos Segun-

    dos Analticos.

    O cap. 6, que trata da apreenso dos princpios, e a Concluso cons-

    tituem a parte crucial da tese e contm sua contribuio mais im-

    portante para a compreenso da filosofia aristotlica. Estuda-se

    aqui a relao entre a teoria analtica da cincia e a dialtica

    aristotlica, a que o filsofo consagra seus Tpicos, por muito tem-

    po a parte menos estudada do rganon. Sobre o pano de fundo da

    teoria da cincia exposta nos Segundos Analticos, o seu ltimo e to

    discutido captulo (Anal. Post. II,19), iluminado pela comparao

    com os Tpicos e outras passagens sobre a dialtica, objeto de uma

    nova interpretao.

    Mostra-se a complementaridade entre a Dialtica e a Analtica.Como a primeira se constitui como propedutica cincia, pratica ummtodo preliminar de argumentao contraditria e crtica, que nose constri sobre a verdade, mas se move no terreno da opinio e la-boriosamente prepara o terreno para a apreenso dos princpios das

    cincias, princpios pelos quais as cincias principiam. Trata-se, na

    dialtica, da etapa ascendente do processo de conhecimento, de natu-

    reza indutiva, indo do particular ao universal, do que mais conhecido

  • 19

    Cincia e Dialtica em Aristteles

    para ns e est mais prximo sensao e observao ao que delas

    est mais distanciado, ao que em si mesmo mais cognoscvel. Pelasimplicidade de seus objetos, as matemticas dispensavam a argumen-

    tao dialtica. Mas, para que algo mais ou menos aproximado cien-tificidade matemtica se alcance nos outros domnios, o processo de

    investigao dialtica se faz imprescindvel, ele chamado a desem-penhar uma funo tanto mais importante quanto mais complexo o

    objeto investigado, quanto maior a distncia entre nosso conheci-mento comum das coisas e a realidade delas em si mesmas, quanto

    maior o risco de nos enredarmos nas artimanhas do lgos.

    O esforo todo da dialtica ela cumpre tambm a funo do que

    hoje chamamos de pesquisa cientfica precisamente o de per-mitir que a maior cognoscibilidade segundo a natureza e a essn-

    cia se transforme numa cognoscibilidade tambm para ns, vencen-do a espontaneidade do estado de servido do esprito humano.

    A dialtica no engendra a intuio dos princpios, ela a torna pos-svel. A intuio deles o ponto de inflexo em que se consuma a

    inverso crucial do processo de conhecimento, quando termina aetapa ascendente, investigativa, prospectiva e heurstica e pode,

    ento, ter comeo a etapa descendente, demonstrativa e dedutiva,em que a cincia exibe sua estrutura lgica que reproduz a estru-

    turao causal pela qual o real mesmo se articula.

    A elucidao das relaes entre teoria do conhecimento cientfico

    e a dialtica permite que se lance uma luz diferente sobre os trata-

    dos vrios que compem o corpus aristotelicum. Eles no se apresen-

    tam como cadeias silogsticas dedutivas, o que neles Aristteles ha-

    bitualmente nos expe so os meandros de sua investigao

    (dialtica) em marcha, o lento tatear do trabalho preliminar de pes-

    quisa, os argumentos de vria natureza, mais ou menos conclu-

    sivos, por vezes entre si contraditrios, de que lanou mo para

    estabelecer seus princpios e premissas. Mostra-se ento como um

    grande nmero de estudiosos e comentadores, porque no compre-

    enderam a complementaridade entre dialtica e cincia, se vem

  • 20

    obrigados a postular oposies desnecessrias entre a teoria da cin-

    cia e a prtica da cincia em Aristteles. Aqui tambm se torna

    bvio quo impertinente e errneo querer traduzir em linguagem

    formal (moderna ou mesmo silogstica) a seqncia dos argumen-

    tos aristotlicos nos diferentes tratados: a investigao dialtica,

    mesmo se ela tambm se serve aqui e ali de raciocnios dedutivos,

    demasiado complexa e rica, permite-se toda sorte de expedien-

    tes, usa livremente de argumentos entre si contraditrios, explo-

    ra opinies, avana indues de variada natureza, ela tudo menos

    uma seqncia dedutiva que pode ser formalizada.

    Depois desse roteiro, publicado graas a uma boa traio, s cabe

    a palavra direta do prprio Porchat.

    So Paulo, janeiro de 2001

    Jos Arthur Giannotti

    Apresentao

  • 21

    Prefcio

    Este livro foi minha tese de doutoramento no Departamento deFilosofia na USP em 1967. Por vrias razes no foi possvel public-la naquela poca. Posteriormente, fui adiando a publicao, por faltade tempo e de disposio para uma reviso completa do texto. Feliz-mente para mim, h alguns poucos anos, meu amigo e ex-alunoRicardo Terra, ento chefe do Departamento de Filosofia, tomou ainiciativa de fazer digitar o texto inteiro e presenteou-me com o dis-quete respectivo. Isso tornou finalmente possvel a reviso. As modi-ficaes que fiz se restringiram, no entanto, a algumas pequenas pas-sagens e a detalhes menores. Porque me pareceu que no havia por quealterar os pontos fundamentais de minha anlise e interpretao emface da bibliografia mais recente sobre a problemtica da cincia e dadialtica em Aristteles, tomei a deciso de manter quase intacta aredao primitiva. E, por falta de nimo para tanto, nem mesmo pro-cedi atualizao da bibliografia e indicao de meus acordos ou de-sacordos com os trabalhos mais recentes. Entendi que tais modifica-es no trariam nenhum acrscimo substancial. Por isso mesmo, querparecer-me que se justifica a publicao do livro na sua verso origi-nal. Mas cabe aos eventuais leitores, no a mim, o julgamento defini-tivo sobre a questo.

    Marilena Chaui props-me gentilmente que o livro aparecesse naexcelente coleo Biblioteca de Filosofia, que ela dirige. Aceitei com pra-

  • 22

    zer o seu convite e lhe sou muito agradecido. Trinta e trs anos depois

    de ser escrita, minha tese , finalmente, publicada.

    Quero, nesta ocasio, lembrar a memria de meus saudosos mes-

    tres Livio Teixeira e Victor Goldschmidt. Fui aluno de Livio Teixeira

    em 1956, na USP, quando eu completava meu bacharelado em Letras

    Clssicas. Desde essa ocasio, passei a admirar seu rigor e competncia

    como historiador da filosofia moderna. Suas pesquisas sobre o pensa-

    mento de Descartes e Espinosa se tornaram marcos importantes da

    bibliografia brasileira nessa rea. Mas admirveis tambm eram sua

    honestidade intelectual e sua extraordinria modstia. Embora tenha

    sido seu aluno somente naquele ano, sua influncia foi decisiva para

    a definio de meu campo de trabalho. Foi Livio Teixeira quem primei-

    ro me incentivou a orientar-me para o estudo da filosofia grega. Apoiou

    minha deciso de estudar filosofia na Frana e de trabalhar com Victor

    Goldschmidt, cuja obra admirava e utilizava em seus cursos sobre Pla-

    to. Quando voltei mais tarde ao Brasil, convidou-me para ser seu as-

    sistente no Departamento de Filosofia da USP e encarregou-me dos

    cursos sobre o pensamento antigo. Acompanhou sempre com interes-

    se e carinho meus trabalhos.

    A Victor Goldschmidt, com quem estudei em Rennes e Paris du-

    rante quatro anos, devo minha formao de historiador da filosofia.

    Ensinou-me a laboriosa arte da historiografia, a metodologia rigoro-

    sa na leitura dos filsofos e de suas obras. Foi ele que me orientou ex-

    plicitamente para o estudo da relao entre dialtica e conhecimento

    em Aristteles. Se eu tiver acaso conseguido algum resultado srio e

    mais significativo nesta minha pesquisa, eu o devo ao mtodo gold-

    schmidteano. Goldschmidt me proporcionou tambm o exemplo not-

    vel da dedicao de um mestre a seus estudantes. Tive a oportunidade

    de rev-lo posteriormente algumas vezes, por ocasio de outras viagens

    Frana. Uma grande amizade uniu-nos at sua morte prematura.

    Quero tambm lembrar aqui o nome do Prof. George Henri Aubre-

    ton. Foi meu professor no curso de Letras Clssicas, incentivou-me

    muito ao estudo da lngua e da literatura grega. Se pude fazer estudos

    Prefcio

  • 23

    na Frana, foi porque Aubreton para l me enviou, tendo conseguido

    para mim uma bolsa do governo francs. Aceitou de boa vontade que

    eu mudasse de rea e substitusse aos estudos de grego o da filosofia

    antiga. Continuou sempre a encorajar-me. Guardo tambm dele uma

    grata recordao.

    O velho mestre Alexandre Correia deu-me livre acesso sua ex-

    celente biblioteca de textos gregos e latinos, na poca em que eu pre-

    parava meu doutoramento. Durante quase um ano, freqentei diaria-

    mente sua casa e pude ter acesso a fontes que no poderia consultar

    naquele tempo em outro lugar. A importncia disso para minha pes-

    quisa foi muito grande. de toda justia que eu o lembre aqui.

    Meu amigo Jos Arthur Giannotti desempenhou um papel muito

    importante em meus estudos. Foi ele que me convenceu a ir primeiro

    para Rennes e no para Paris, a fim de que eu pudesse estudar com

    Victor Goldschmidt. Foi ele que me levou casa do grande historia-

    dor, de quem se fizera amigo e a quem me recomendara. Nesse mes-

    mo dia se decidiu meu destino intelectual. Goldschmidt aceitou a su-

    gesto, que Giannotti na hora lhe fez, de tomar-me sob sua orientao.

    E o mestre persuadiu-me a desistir da ps-graduao em lngua e li-

    teratura grega e a dedicar-me por inteiro, desde aquele mesmo mo-

    mento, unicamente filosofia. Tenho, pois, razes de sobra para ser

    muito grato a Giannotti. Tenho o privilgio de usufruir at hoje de sua

    amizade leal e carinhosa, embora ele nunca me tenha perdoado por eu

    ter mais tarde abandonado a filosofia grega clssica.

    A Ricardo Terra, como j indiquei, devo a possibilidade que tive

    de retomar minha tese para reviso e publicao. E a insistncia ami-

    ga para que eu o fizesse. Sem sua iniciativa e seu encorajamento, o texto

    ficaria indito, pois, em verdade, eu j tinha desistido de public-lo. Mais

    no preciso dizer.

    A digitao do texto, com centenas de palavras e citaes em gre-

    go, foi uma faanha de Marisa Lopes. Ela a isso consagrou um ano in-

    teiro, por puro amor a Aristteles. No sei como agradecer-lhe. Como

    tambm no sei como agradecer a Roberto Bolzani, dileto ex-aluno e

    Cincia e Dialtica em Aristteles

  • 24

    bom amigo, que supervisionou toda a digitao das palavras gregas e

    se encarregou incansavelmente de adaptar nova paginao do livro

    as dezenas de referncias cruzadas contidas nas notas, que remetem

    a passagens anteriores do prprio texto. Porque revi todas essas refe-

    rncias uma a uma, pude dar-me conta de quo extraordinrio foi o

    seu trabalho, levado a cabo com grande propriedade.

    The last, but not the least, quero agradecer a Ieda, minha mulher. A

    seu continuado apoio, dedicao, amor e carinho eu devo tudo quan-

    to possa ter feito de bom nestes ltimos quarenta anos.

    So Paulo, 8 de setembro de 2000

    Oswaldo Porchat Pereira

    Prefcio

  • 25

    Introduo

    Tanto j se disse e escreveu sobre a cincia em Aristteles que po-

    deramos recear ser acusados de temeridade por termos consagrado

    todo um longo trabalho a uma temtica sobre a qual amplamente dis-

    sertam quantas obras se dedicam a uma exposio geral do pensamen-

    to aristotlico. E ningum desconhece que a intensa renovao dos

    estudos aristotlicos nas ltimas dcadas, em todo o mundo, tem-nos

    brindado com obras de inegvel valor, nas quais se abordam, com pro-

    fundidade, problemas direta ou indiretamente relacionados com a dou-

    trina aristotlica da cincia. Porque se poderia, por isso mesmo, estra-

    nhar que tenhamos a pretenso de trazer algo de novo sobre a questo

    e que nela insistamos to demoradamente, compreender-se- que jul-

    guemos justificada uma sucinta explanao sobre o empreendimento

    a que nos lanamos.

    Nosso intuito inicial era o de redigir uma pesquisa sobre a dialtica

    de Aristteles, conforme nos sugerira V. Goldschmidt, quando termi-

    namos, em Rennes, nossa licena de filosofia. Mostrara-nos o ilustre

    historiador como se fazia necessrio um estudo aprofundado dos Tpi-

    cos, revalorizando a dialtica aristotlica e redescobrindo a significao

  • 26

    Introduo

    que o filsofo lhe conferira e que a tradio historiogrfica, com rara

    exceo, sistematicamente desprezara. Com efeito, coubera a Le

    Blond, em 1939, com sua bela obra sobre a lgica e o mtodo cientfi-

    co de Aristteles,1 despertar a ateno para a importncia da dialtica

    dentro da metodologia aristotlica. E, anos mais tarde, E. Weil insis-

    tira2 na urgncia com que se impunha a reviso de uma concepo tra-

    dicionalmente errnea das relaes entre a tpica e a analtica.

    Aubenque no publicara ainda a sua obra,3 na qual, estudando o pro-

    blema aristotlico do ser, ocupar-se-ia longamente em comparar a dia-

    ltica e a ontologia. Tudo j indicava, porm, que a dialtica aristotlica

    viria a atrair, proximamente, a ateno dos especialistas, conforme se

    evidenciaria com a realizao, em 1963, do terceiro Symposium

    Aristotelicum, dedicado, precipuamente, ao estudo dos Tpicos, e com

    a recente publicao da obra de De Pater.4 O curso de nossas pesqui-

    sas desviou-nos, entretanto, da inteno original; de fato, empreen-

    dendo a redao de um primeiro captulo para a obra que nos propu-

    sramos escrever, nele procuramos examinar a concepo aristotlica

    da cincia, porque se nos afigurava til e, mesmo, imprescindvel de-

    terminar, com exatido, um conceito ao qual, precisamente, teramos

    sempre de contrapor, em expondo a doutrina do filsofo, a noo de

    dialtica. Aconteceu, porm, que esse estudo preliminar adquiriu di-

    menses bem maiores que as que lhe tnhamos a priori fixado. E o

    surgimento de dificuldades de interpretao concernentes prpria

    noo de cincia que no tnhamos previsto, a necessidade, em que nos

    vimos, de resolver questes que se nos afiguraram obscuras, assim

    como a de recusar solues que, para elas, se haviam formulado e que

    nos pareceram insatisfatrias ou francamente inaceitveis, levaram-

    nos, finalmente, a querer consubstanciar, neste trabalho, os resulta-

    dos a que julgamos ter chegado, no que respeita a uma tal problem-

    1 Le Blond, Logique et mthode chez Aristote, 1939.2 Weil, La place de la logique dans la pense aristotlicienne, 1951.3 Aubenque, Le problme de ltre chez Aristote, 1962.4 De Pater, Les Topiques dAristote et la dialectique platonicienne, 1965.

  • 27

    Cincia e Dialtica em Aristteles

    tica, oferecendo-os agora crtica construtiva dos especialistas. Seja-nos

    lcito dizer que a aceitaremos com humildade, por sermos o primeiro

    a reconhecer nossas falhas e lacunas.

    Planejramos escrever um livro sobre a dialtica de Aristteles,

    cujo primeiro captulo versaria sobre a cincia. Acabamos, no entanto,

    escrevendo um livro sobre a cincia, cujo ltimo captulo trata, mais

    particularmente, da dialtica. No se creia, porm, que nos ocupamos,

    aqui, de toda a doutrina aristotlica da cincia. Ao contrrio, muitas

    so as questes que deixamos propositalmente de lado ou que rapi-

    damente tratamos, como, por exemplo, o importante problema do

    sistema aristotlico das cincias, que no abordamos seno na exata

    medida em que isso pode contribuir para melhor esclarecer a noo

    de cincia, que precipuamente nos importava.5 Por isso mesmo, con-

    centramos particularmente nossa ateno sobre os Segundos Analticos,

    cujo objeto se sabe ser a definio e a anlise do conhecimento cient-

    fico. Trata-se de um texto, por certo, difcil, que no entrega seus se-

    gredos a uma primeira leitura, o que explicar, talvez, que tenha sido,

    at hoje, to mal compreendido. E, entretanto, se se lhe busca desven-

    dar a ordem interna que o estrutura, mediante uma leitura repetida,

    atenta e rigorosa, descobre-se, em verdade, como cremos t-lo mos-

    trado, um texto ordenado e coerente, que no vem macular nenhuma

    contradio interna, cumprindo adequadamente o objetivo que o fi-

    lsofo lhe traou e oferecendo-nos uma doutrina unitria do saber

    cientfico. Ao contrrio de A. Mansion, nele no encontramos os si-

    nais de uma composio atormentada nem a manifestao de hesita-

    es de doutrina;6 por outro lado, os dois livros que compem o tra-

    tado pareceram-nos harmonizar-se plenamente, sem que pudssemos

    descobrir, na doutrina da definio exposta no livro II, mais do que um

    complemento do estudo da demonstrao que o livro I desenvolve, que

    a este no se contrape nem o corrige, como se tem pretendido.7 No

    5 Cf., adiante, cap.IV, 5: A diviso das cincias.6 Cf. A. Mansion, Introduction la physique aristotlicienne, 1946, p.12-3.7 Conforme, adiante, detalhadamente veremos, no cap.V.

  • 28

    Introduo

    artigo j referido,8 Weil julgava desejvel, para uma compreenso cor-

    reta das relaes entre a dialtica e a analtica, uma reinterpretao dos

    Analticos: ficaremos satisfeitos se tivermos podido contribuir para que

    se cumpra, ao menos em parte, um tal voto.

    Mas, se os Segundos Analticos foram o objeto primeiro de nosso

    esforo de interpretao, ver-se- que, muito ao invs de a eles nos

    restringirmos, fomos buscar, na obra inteira do filsofo, os elemen-

    tos que pudessem vir a confirmar ou a contradizer a doutrina que, na-

    quele tratado, encontramos explicitada. O que significa deixar mani-

    festo que, no que respeita questo controversa da unidade e

    coerncia ou incoerncia e contradio da doutrina aristotlica da

    cincia, no partimos de nenhum pressuposto nem formulamos hi-

    pteses iniciais que devesse verificar nossa pesquisa; moveu-nos, to-

    somente, a inteno de deixar-nos guiar pelos prprios textos do fil-

    sofo, buscando reapreender seu movimento prprio e refazer os

    caminhos do pensamento que neles se exprimira.

    No que se refere s questes de cronologia e datao das obras de

    Aristteles, seguindo o exemplo de V. Goldschmidt, em sua obra con-

    sagrada ao estudo da estrutura e mtodo dialtico nos dilogos de

    Plato,9 ns as ignoramos resolutamente, recusando-nos a dissolver,

    no tempo da gnese, as dificuldades da doutrina. Como afirmou, comrazo, Aubenque: na ausncia de critrios externos, um mtodo cro-nolgico fundado sobre a incompatibilidade dos textos e cuja fecun-didade se apia, assim, sobre os insucessos da compreenso, corre, acada instante, o risco de preferir s razes de compreender os pretex-tos de no compreender.10 No nos pareceu correto, com efeito, di-ante de contradies aparentes que no buscamos dissimular e de di-ficuldades de interpretao que no minimizamos, postular, como meioeficaz para san-las, uma evoluo qualquer da doutrina aristotlica,atribuindo-lhe momentos diferentes aos quais faramos corresponder

    8 Cf., acima, n.2.9 Goldschmidt, Les dialogues de Platon, 19632, p.X.

    10 Cf. Aubenque, Le problme de ltre..., 1962, p.12.

  • 29

    Cincia e Dialtica em Aristteles

    os textos que pareciam contradizer-se. Felizmente, alis, a moda

    jaegeriana de interpretao vem sendo pouco a pouco abandonada, no

    tendo contribudo pouco para seu insucesso o desacordo generaliza-

    do, entre seus seguidores, quanto aos critrios de datao das obras

    do filsofo e de suas partes, assim como no que concerne aos pretensos

    resultados que o mtodo gentico deveria ter propiciado para a com-

    preenso do pensamento de Aristteles. Recortados os textos de di-

    ferentes maneiras, ao sabor dos caprichos da imaginao dos intrpre-

    tes, no mais se conseguiu do que converter toda a obra num imenso

    mosaico de textos justapostos, que nenhuma meditao filosfica

    poderia mais vivificar. Assim, A. Mansion descobria, nos Segundos

    Analticos, restos de redaes de datas diversas, representado o pen-

    samento do autor em fases de elaborao tambm diversas, e adapta-

    dos de maneira por vezes bastante insuficiente ao plano de conjunto no

    qual ele os fez entrar.11

    Mas no privilegiamos, tambm, com aodamento, aquelas con-

    tradies nem nos apressamos a denunciar incoerncias; renuncia-

    mos, desse modo, ao que se nos afigurava, antes, um expediente de

    simplificao e de facilidade. No quisemos acoimar, sem mais, de in-

    conseqente, o pensador que, a justo ttulo, se orgulhava de ter sido

    o primeiro a estudar tcnica e metodicamente a arte de raciocinar.12

    Tampouco julgamos vlido abandonar o plano de anlise lgica do

    sistema filosfico, para ir buscar, num plano psicolgico, como pro-pe Le Blond, na falta da unidade lgica, a unidade viva desse siste-

    ma.13 Antes de apontar as incongruncias do aristotelismo, emgeral, e da concepo aristotlica da cincia, em particular, antes de fa-

    lar em contradio e em ambigidades e de para elas forjar explicaesimaginosas, quisemos esforar-nos por reconstituir a ordem das ra-

    zes e os mecanismos lgicos prprios obra. No que buscssemosa coerncia a qualquer preo ou que nos tenhamos aventurado, reco-

    11 Cf. A. Mansion, Introduction la physique aristotlicienne, 1946, p.1312 Cf. Ref. Sof. 34, 183b16 seg., part. 184b1-3.13 Cf. Le Blond, Logique et mthode..., 1939, p.XX.

  • 30

    Introduo

    lhendo elementos tirados de todos os tratados do filsofo, a uma sn-

    tese coerente, mas artificial, desses dados, tentando uma conciliao

    do inconcilivel.14 Um mtodo que se pretenda rigoroso no se ali-

    menta de preconceitos nem sabe o que vai encontrar: descobre. Mas

    procuramos situar-nos, em relao ao texto, do ponto de vista do seu

    prprio autor, encontrando em sua mesma obra os elementos que nos

    permitissem l-la com a sua leitura, julg-la a partir de seu mesmo

    ponto de vista crtico sobre ela, tendo a humildade necessria para

    levar a srio o que ele levou a srio,15 sabedores de que se no mede a

    coerncia de um sistema por uma teoria da contradio que se lhe

    imponha do exterior.

    Fiis ao mtodo que o filsofo preconiza, no nos apressamos a

    conciliar os textos e somente aps insistir em percorrer as aporias

    que empreendemos trabalhar de resolv-las. Entendendo que as asser-

    es de um sistema no podem ter como causas, ao mesmo tempo

    prximas e adequadas, seno razes, e razes conhecidas do filsofo

    e alegadas por ele,16 tudo fizemos para no separar as teses propos-

    tas pelo filsofo do movimento de pensamento que a elas conduziu e

    do mtodo que presidiu a esse movimento. Mas, assim fazendo, acon-

    teceu-nos ver as aporias pouco a pouco resolver-se e as aparncias de

    contradio explicar-se, dissipando-a. Aconteceu-nos, tambm, des-

    cobrir que muitas dificuldades provinham mais da leitura e interpre-

    tao com que a tradio e os autores gravaram os textos que da pr-

    pria natureza destes, na sua ingenuidade. Tendo preferido a atitude

    mais humilde do discpulo que se dispe pacientemente a compreen-

    der antes de formular qualquer juzo crtico, temos a pretenso de ter

    sido premiados por nossa obstinao em apegar-nos a um mtodo sem

    14 Como teme Mansion que acontea com os que no colocam o problema da cronologia dasobras de Aristteles. Cf. A. Mansion, Introduction la physique aristotlicienne, 1946, p.4-5.

    15 Como disse Owens, a propsito do mtodo apropriado para interpretar Aristteles: Itrequires taking seriously what Aristotle himself took seriously. Cf. Owens, The Doctrine ofBeing in the Aristotelian Metaphysics, 1951, p.11.

    16 Goldschmidt, V., Temps historique et temps logique dans linterprtation des systmesphilosophiques, in Actes du XIme Congrs International de Philosophie, v.XII, 1953, p.8.

  • 31

    Cincia e Dialtica em Aristteles

    preconceitos; com efeito, a doutrina aristotlica da cincia apareceu-

    nos, finalmente, contra a opinio da imensa maioria dos autores acre-

    ditados, perfeitamente coerente e provida de inegvel unidade, rica na sua

    complexidade e moderna na sua problemtica e em muitas de suas

    solues, dessa modernidade que freqentes vezes atribuem aos

    tempos de hoje os que ignoram a histria dos tempos passados. E no

    tememos, por isso mesmo, dizer o contrrio do que se tem dito e acei-

    to, sempre que nos pareceu a isso ser convidados pelos mesmos textos

    que lamos, como exigncia de sua inteligibilidade.

    Uma objeo mais sria poderia ser-nos feita: a de termos limita-

    do o nosso estudo aos textos aristotlicos sobre a doutrina da cincia,

    sem que tenhamos tentado estudar como o filsofo pe em prtica

    essa doutrina, nos seus tratados cientficos. Ora, , por certo, nossa

    convico a de que tal estudo se impe como condio absolutamente

    imprescindvel para que se atinja uma compreenso plena e fecunda dos

    prprios textos doutrinrios. Mas julgamos justificada a nossa empre-

    sa por uma tripla razo: primeiramente, porque o prprio filsofo con-

    sagrou todo um tratado, razoavelmente ordenado e acabado, defini-

    o e explicitao de sua concepo da cincia, autorizando-nos ipso facto

    a consider-la, num primeiro momento, em si mesma, como objeto

    privilegiado de uma parte de sua obra. Em segundo lugar, porque no

    nos parece possvel proceder a um estudo sobre a prtica cientfica,

    relacionando-a com os textos da teoria, se o mesmo sentido mais ime-

    diato destes se nos oculta, sob a facilidade aparente das frmulas dog-

    mticas banalizadas pela sua repetio, cuja significao profunda,

    porm, se busca reviver no emaranhado das controvrsias da interpre-

    tao historiogrfica. Finalmente, teremos a oportunidade de mostrar,

    neste trabalho, como a oposio que o filsofo decididamente estabe-

    lece entre a cincia e a investigao e pesquisa dever obrigar-nos a um

    mnimo de cuidadosas precaues, no estudo dos tratados cientficos,

    para que uma interpretao incorreta do mtodo de exposio no nos

    venha, precisamente, induzir em erro quanto concepo aristotlica

    da cientificidade. De qualquer modo, evidente que nosso estudo no

  • 32

    Introduo

    tem maior pretenso que a de contribuir para esclarecer um aspecto

    determinado do pensamento aristotlico, ainda que no se lhe possa

    negar, noo de cincia, um papel fundamental na economia inter-

    na do sistema.

    Resta-nos ainda fazer algumas observaes de carter geral. No

    que respeita ao plano de nossa exposio, foi-nos ele imposto pelo pr-

    prio desenvolvimento da pesquisa, isto , pelo nosso esforo de

    explicitao da mesma doutrina do filsofo, sem que tenhamos recor-

    rido a uma idia preliminar. A simples leitura deixar manifesto como

    as questes se vo engendrando espontaneamente, a partir dos textos

    estudados, de maneira a progressivamente desenhar o esquema em que

    vm inserir-se as respostas que exigem e mediante o qual se h de arti-

    cular, por conseguinte, tambm o mesmo discurso que as estuda.

    Por outro lado, no que concerne bibliografia utilizada, ver-se-

    que, se so numerosas as citaes e referncias aos autores e s obras

    mais importantes da historiografia aristotlica contempornea, muitos

    ttulos deixaram de ser mencionados, sobretudo de artigos publicados

    em revistas especializadas, por ter-nos sido impossvel o acesso a tais

    escritos. De qualquer modo, na medida em que pudemos informar-nos

    sobre o seu contedo, nossa crena a de que sua leitura no viria afe-

    tar os resultados a que chegamos.

    Mas ativemo-nos sempre e preferencialmente, como se impunha,

    ao estudo e anlise dos prprios textos do filsofo. Para tanto, servimo-

    nos da recente reedio do Corpus empreendida por Gigon17 e, sobre-

    tudo, das edies crticas de Ross18 e das que se fizeram na Collection

    des Universits de France. E no precisaramos dizer quanto nos foi til

    o excelente Index Aristotelicus, de Bonitz.19

    17 Aristotelis Opera ex recensione Immanuelis Bekkeri edidit Academia Regia Borussica, editioaltera quam curavit Olof Gigon, Berolini apud W. de Gruyter et Socios, MCMLX.

    18 Seja na coleo da Scriptorum Classicorum Bibliotheca Oxoniensis (Tpicos, Poltica e Retrica), sejanas excelentes edies acompanhadas de textos e comentrios, igualmente da ClarendonPress de Oxford (Analticos, Fsica, Da Alma, Parva Naturalia e Metafsica). Para todas essasobras, nossas referncias remetem a essas edies, salvo indicaes em contrrio.

    19 Bonitz, Index Aristotelicus, 19552.

  • 33

    Cincia e Dialtica em Aristteles

    Se consultamos as melhores tradues estrangeiras que estavam a

    nosso dispor e com as quais nem sempre concordamos, como se ver

    nas inmeras notas em que as discutimos , preferimos, no entanto,

    sempre que nos foi preciso citar os textos, propor a nossa prpria tra-

    duo, na ausncia de boas tradues em portugus para a grande

    maioria das obras de Aristteles. O que exigiu de ns um no peque-

    no esforo, dada a inexistncia de uma linguagem filosfica tcnica em

    nossa lngua. Procuramos dar s nossas tradues o mximo possvel

    de literalidade, temendo a infidelidade ao pensamento do filsofo,

    vcio de que no nos parecem livrar se muitas das tradues estran-

    geiras, dentre as mais reputadas, na medida em que se permitem a

    introduo de noes e significaes totalmente estranhas ao universo

    espiritual da Grcia antiga e do aristotelismo, em particular. Nesse

    sentido, no nos inibiu o temor de inovar e decididamente inovamos,

    quando nos pareceu poder, assim, salvaguardar melhor o sentido ori-

    ginrio do texto grego. No que se refere s citaes de autores estran-

    geiros, adotamos a norma de traduzi-los, sempre que os citvamos no

    corpo de nosso texto, e de manter a lngua original, ao cit-los nas

    notas. E somente nestas, tambm, seus nomes compareceram.

    Receamos que se nos censure o elevado nmero de notas, freqen-

    tes e extensas. Mas no cremos pudssemos proceder de outra manei-

    ra e confessamos ter dado s nossas notas importncia no menor que

    ao prprio texto. So elas de vria natureza, contendo desde as inevi-

    tveis citaes e referncias, questes filolgicas e pequenas explica-

    es complementares, at longas explanaes e discusses polmicas,

    em que se expe o detalhe das argumentaes que justificam certas

    posies que assumimos e cuja presena, no corpo do texto, poderia

    tornar enfadonha e pesada a sua leitura. Defeitos, alis, que nem sem-

    pre teremos conseguido evitar.

  • IO saber cientfico

    1 A noo de cincia

    1.1 A cincia, a causa e o necessrio

    Julgamos conhecer cientificamente (cada coisa, de

    modo absoluto e no, maneira sofstica, por acidente, quando julga-

    mos conhecer a causa pela qual a coisa , que ela a sua causa e que

    no pode essa coisa ser de outra maneira (.1

    Tal a noo famosa de conhecimento cientfico que os Segundos Ana-

    lticos formulam, quase em seu mesmo incio,2 e a cuja elucidao e

    explicitao pode, de certo modo, dizer-se que a totalidade do trata-

    do se consagra. Noo que comentadores e autores incansavelmentecitaram, repetiram e discutiram atravs dos sculos, tentando, com

    maior ou menor sucesso, compreend-la e explic-la em todo seu al-

    1 Seg. Anal. I, 2, 71b9-12.2 Precede-a, com efeito, apenas um captulo introdutrio, que, como logo veremos, trata da

    existncia de conhecimentos prvios a todo e qualquer aprendizado ou ensinamentodianotico.

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    Oswaldo Porchat Pereira

    cance e significado. Por ela entendemos, ento, que, em sentido ab-soluto, s h conhecimento cientfico de uma coisa quando a conhe-cemos atravs do nexo que a une a sua causa, ao mesmo tempo queapreendemos sua impossibilidade de ser de outra maneira, isto , suanecessidade. Com efeito, uma vez que impossvel ser de outra ma-

    neira aquilo de que h cincia, em sentido absoluto, ser necessrioo que conhecido segundo a cincia demonstrativa.3

    Causalidade e necessidade, eis a, por conseguinte, os dois tra-os fundamentais que caracterizam a cincia, tal como os Segundos

    Analticos a concebem. Porque, se no se d a presena conjunta deambos, que o que permite qualificar um conhecimento como cien-

    tfico,4 ser apenas acidental, diz-nos o nosso texto, a pretensa cin-cia que se tiver proposto, acidental maneira sofstica; no que a

    ausncia do conhecimento da causa ou o carter no-necessrio doobjeto tornem sofstico o conhecimento que dele se proponha: o

    procedimento que se denuncia como sofstico seria, to-somente, a pre-tenso de ser ou de fazer-se passar por cincia, por parte de conhecimento

    que no possua aquelas qualidades que a definem.5

    Entretanto, preciso, desde j, acrescentar que no se estudam

    nos Segundos Analticos as noes de causa ou de necessidade. No queconcerne primeira delas, somente a Fsica e a Metafsica nos oferece-

    ro uma doutrina da causalidade;6 vrios textos, entretanto, nos pr-

    3 Seg. Anal. I, 4, 73a21-23. Cf., tambm, 33, 88b31-2: ... a cincia universal e procede porconexes necessrias, e o necessrio no pode ser de outra maneira.

    4 No tendo razo, portanto, Le Blond, ao fazer da verdade a caracterstica primeira e maisgeral do saber cientfico, em Aristteles (cf. Le Blond, Logique et mthode..., 1939, p.57). Sea cincia aristotlica , como veremos, sempre verdadeira, ocorre, entretanto, que, pelo mes-mo fato de partilhar da verdade com outras disposies cognitivas da alma humana, nopode definir-se nem caracterizar-se primordialmente por ela.

    5 A sofstica, de fato, no seno um saber aparente (cf. Ref. Sof. 1, 165a21), cujos argumen-tos se constroem, sobretudo, em torno do acidente (cf. Met. E, 2, 1026b15 seg.), isto , dono-necessrio nem freqente (cf. ibidem, 27-33). , antes de tudo, alis, pela inteno(), pelo no buscar o saber real, mas apenas a aparncia de conhecer, que difereo sofista do filsofo (cf. Met. , 2, 1004b22 seg.).

    6 Os dois textos fundamentais de Aristteles sobre a causalidade so o livro II da Fsica e olivro A da Metafsica, a que se acrescentaro as importantes indicaes do cap. 1 do livro Ido tratado Das partes dos animais.

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    Cincia e Dialtica em Aristteles

    prios Analticos ou em outras obras do filsofo, vm sempre confirmar-

    nos aquela identificao do verdadeiro conhecimento cientfico com

    a apreenso da determinao causal.7 A ausncia de uma fundamen-

    tao fsica ou metafsica da noo de causa utilizada pelos Segundos

    Analticos no nos estorvar, entretanto, como poderemos observar em

    acompanhando a marcha do tratado, a compreenso formal de como

    a cincia aristotlica se constitui em conhecimento da causalidade, in-dependentemente da significao ltima que o filsofo lhe atribua. E,

    medida que o tratado progride e que a definio de cincia se apro-

    funda, muito se explicita, aqui e ali, como veremos, sobre aquela no-

    o, conforme o impem as circunstncias e as necessidades do mo-mento. Lembrar-se-nos-, por exemplo, que h sempre uma causa, que

    idntica prpria coisa que se investiga ou distinta dela, e que o

    mesmo conhecer o que uma coisa e conhecer a causa de ela ser;8

    esclarecer-se-nos- que, se h vrias maneiras de nos interrogarmos

    sobre as coisas (sobre o fato de que , sobre o porqu, sobre se a coi-

    sa , sobre o que ela),9 a verdade que, em todas as pesquisas ou in-

    dagaes que fazemos, o que sempre buscamos se h um termo m-

    dio () ou causa, ou, ento, qual ele: pois a causa o termo mdio

    e, em todas as pesquisas, o que se investiga.10 Sabemos, por outro

    lado, pela doutrina do livro II da Fsica,11 que a Metafsica relembra e re-

    toma,12 que as causas se dizem em quatro sentidos, como matria,

    7 Cf. Seg. Anal. II, 11, 94a20; I, 13, 78a25-6; Fs. I, 1, com., 184a10 seg.; Met. E, 1, 1025b6-7; K,7, 1063b36-7; A, 1, 981a24 seg. Se no fazem esses textos meno expressa da necessida-de, mas to-somente da causalidade, na caracterizao do conhecimento cientfico, queas duas problemticas so, de fato, inseparveis. Assim, em Fs. II, 9, esclarece-se o problemada necessidade nos objetos fsicos, em relao com os problemas prprios causalidadefsica.

    8 Cf. Seg. Anal. II, 8, 93a4-6. Atente-se, porm, em que a universalidade da determinao cau-sal, que esta passagem pe em relevo, no implica, no aristotelismo, como poderia pare-cer, um determinismo absoluto, nem confere inteligibilidade plena a todo ser, isso graas concepo aristotlica de acidente e do acaso (cf. Met. E, cap. 2-3, e Fs. II, cap. 4-6).

    9 Cf. Seg. Anal. II, 1, com., 89b23 seg.10 Seg. Anal. II, 2, 90a6-7.11 Cf. Fs. II, 3, 194b23 seg.12 Cf. Met. A, 3, 983a26 seg.; cf., tambm, Seg. Anal. II, 11, 94a21-3.

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    Oswaldo Porchat Pereira

    como qididade, como princpio do movimento e como fim; natu-

    ral, ento, que nos ocorra perguntar a qual ou quais desses sentidos

    respeita a causalidade cientfica. Os Segundos Analticos ignoraro a per-

    gunta at um de seus ltimos (e mais difceis) captulos, para final-

    mente responderem que por todas aquelas espcies de causas que

    provamos nossas concluses.13 Mas certo que no abordam o fun-

    do do problema e tal omisso se justifica, na mesma medida em que a

    complexa questo das significaes mltiplas da causa ultrapassa, de

    muito, o domnio da teoria estrita da cincia, a que se atm o tratado.

    Tambm a necessidade de que o objeto cientfico, em Aristteles,

    se reveste, apenas ser elucidada, nos Analticos, de modo suficiente-

    mente aprofundado e adequado ao reconhecimento de sua presena

    e funo na constituio de um conhecimento que merea o nome de

    cientfico, sem que, entretanto, se perscrutem todas as suas implica-

    es e sem que se abordem sua significao ltima e sua problemti-

    ca fsica e metafsica. Porque a necessidade do objeto cientfico, nega-

    tivamente determinada como um , por

    certo, uma necessidade de ordem ontolgica: nenhuma dvida pode

    subsistir a esse respeito, em face do importante texto epistemolgico

    em que a tica Nicomaquia explicitamente retoma a noo que os Se-

    gundos Analticos propem de cincia e melhor a esclarece: Com efei-

    to, todos entendemos que o que conhecemos cientificamente no pode

    ser de outra maneira ... O cientificamente conhecvel, portanto, neces-sariamente .14 Donde a caracterstica de eternidade, que se nodissocia da necessidade ontolgica: eterno, portanto, pois as coi-sas que so necessariamente, em sentido absoluto, so, todas, eternas;ora, as coisas eternas so no-geradas e imperecveis.15 Porque nopode ser de outra maneira, o necessrio, ento, sempre e, porque

    13 Cf. Seg. Anal. II, 11, 94a24-5 e todo o captulo. A Fsica repete explicitamente tal doutrina(cf. II, 7, 198a22 seg.), a propsito do conhecimento fsico.

    14 t. Nic. VI, 3, 1139b19-23. Nunca demais salientar a extraordinria importncia do livroVI da tica para o conhecimento da epistemologia aristotlica.

    15 Ibidem, l. 23-4. Reconhecendo, embora, o aspecto inslito da expresso, preferimos traduzir por no-gerado, ao invs de servir-nos de uma perfrase.

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    Cincia e Dialtica em Aristteles

    sempre , nem vem a ser nem parece. E no outra a constante dou-

    trina das obras que o filsofo consagrou cincia das coisas fsicas.No nos diz, com efeito, o tratado da Gerao e do Perecimento que o quenecessariamente , tambm, ao mesmo tempo, sempre , pois no possvel que no seja o que tem necessariamente de ser, de modo que,se necessariamente, eterno e, se eterno, necessariamente?16

    Do mesmo modo, o tratado do Cu empenha-se longamente em pro-var que tudo que sempre absolutamente imperecvel. De modosemelhante, no-gerado,17 para mostrar que nem se gerou o Cuinteiro nem lhe possvel perecer, como alguns dele dizem, mas ume eterno, no tendo princpio e fim de sua durao toda, mas conten-do e compreendendo em si o tempo infinito.18

    No era preciso, entretanto, recorrer aos outros escritos deAristteles: so os mesmos Segundos Analticos que assim interpretam,isto , como uma necessidade ontolgica, aquela necessidade prpriaao objeto da cincia por que esta, como vimos, neles se define. Pois,mostrando o carter eterno das concluses que a cincia estabelece,ainda acrescentam: No h, portanto, demonstrao nem cincia, emsentido absoluto, das coisas perecveis.19 E mostram, igualmente,que, das coisas perecveis, tambm no h definio.20 Alis, dizer queo objeto da cincia o , o que no pode ser de outramaneira, assim determinando-o negativamente, em vez de dizer sim-plesmente que o eterno, o que sempre , em inaltervel identidadeconsigo mesmo, op-lo a uma outra esfera do real, que se exclui ipsofacto da cincia, ou seja, quelas coisas todas que, verdadeiras embo-ra e reais (!), so contingentes, isto , podem, precisamente, ser

    16 Ger. e Per. II, 11, 337b35-338b2.17 Cu, I, 12, 281b 25-6. Aps ter definido, em I, 11, os termos gerado e no-gerado, pe-

    recvel e no-perecvel, o tratado do Cu demonstra, no captulo seguinte, utilizandoaquelas definies, a eternidade do Cu.

    18 Cu, II, 1, com., 283b26-9.19 Seg. Anal. I, 8, 75b24-25; v. todo o captulo. No , entretanto, diretamente a partir da no-

    o de necessidade que Aristteles demonstra, aqui, a eternidade do objeto cientfico, masa partir de sua universalidade, que adiante estudaremos.

    20 Cf., ibidem, l. 30 seg.

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    Oswaldo Porchat Pereira

    de outra maneira, "#$ E evidente que no podehaver cincia a respeito dessas coisas, insistem os Analticos: pois se-ria faz-las incapazes de ser de outra maneira, quando elas podem serde outra maneira.22 Torna-se-nos, pois, fcil compreender como podea Metafsica declarar que no pode haver definio nem demonstrao(no pode haver, portanto, cincia) das essncias ou substncias(%) sensveis individuais,23 porque tm matria, cuja natureza tal que ela pode tanto ser como no ser; eis por que so perecveissuas determinaes individuais.24

    Parece, ento, consumar-se a ruptura entre duas diferentes esferasdo real, a da contingncia e a da eternidade necessria, cuja oposio ofilsofo freqentemente nos relembra: uns dentre os seres, com efeito,so divinos e eternos, outros podem tanto ser como no ser (&'&';25 e, explicitando a relao entre a matria e a con-tingncia: Como matria, ento, causa para os seres que se geram o que capaz de ser e de no ser; umas coisas, com efeito, necessariamente so,como as eternas, outras necessariamente no so ... . Mas algumas socapazes de ser e de no ser, o que, precisamente, o que se pode gerar eperecer; pois isso ora , ora no . Donde, necessariamente, haver gera-o e perecimento para o que pode ser e no ser.

    26

    21 Cf. Seg. Anal. I, 33, 88b32-3. Sobre as vrias acepes de em Aristteles, cf. Prim.Anal. I, 13 e consultem-se as preciosas referncias de Bonitz (Index, p. 239a30 seg.).

    22 Cf. Seg. Anal. I, 33, 88b33-5.23 Aceitamos integralmente as razes de Aubenque para preferir o termo essncia a substn-

    cia, na traduo de %: Nous viterons ce dernier vocable [subent.: substance] pourdeux raisons: 1) Historiquement, le latin substantia est la transcription du grec (

    et na t utilis que tardivement et incorrectement pour traduire % (Cicron emploieencore en ce sens essentia); 2) Philosophiquement, lide que suggre ltymologie de sub-stance convient seulement ce quAristote dclare ntre quun des sens du mot %,celui o ce mot dsigne, sur le plan linguistique, le sujet de lattribution et, sur le planphysique, le substrat du changement, mais non celui o % dsigne la forme et laconfiguration de chaque tre (, 8, 1017b23) (Aubenque, Le problme de ltre...,1962, p.136, n.2).

    24 Met. Z, 15, 1039b29-31.25 Ger. Anim. II, 1, 731b24-5.26 Ger. e Per. II, 9, 335a32-b5. Mas recorde-se que Aristteles concebe, para os seres eternos que

    se movem, uma matria tpica ()), matria, no para a gerao e o perecimento, masto-somente para a translao de um lugar a outro, cf. Met. H, 1, 1042b5-6; 4, 1044b7-8;*,2, 1069b24-6.

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    Cincia e Dialtica em Aristteles

    Mas que razes impedem o no-necessrio de ser cientificamen-

    te conhecido? que as coisas contingentes, responde-nos Aristteles,

    as que podem ser de outra maneira, uma vez fora de nosso campo de

    percepo, oculta-se-nos, tambm, se ainda so ou no.27 Pois a per-

    manente possibilidade de perecimento das coisas perecveis faz que,

    quando se subtraem nossa percepo atual, se convertam, para os

    que dela teriam cincia, em objetos despidos de qualquer evidncia,

    porque no mais se sabe se algo de real ainda corresponde aos discur-sos que na alma se preservam.28 Ora, no pode ... a cincia ora ser

    cincia, ora ignorncia.29 Mas, pelo contrrio, tal , precisamente, o

    carter da opinio (+), qual cabe conhecer o contingente,30 cuja

    mutabilidade acarreta que venham a ser ora verdadeiros, ora falsos, a

    mesma opinio e o mesmo raciocnio que lhe concernem; precariedade

    esta que, por certo, no acompanha quantos juzos, porque concernem

    ao que no pode ser de outra maneira, por isso mesmo so eternamen-

    te verdadeiros ou falsos.31 E, se tambm os Segundos Analticos opem

    cincia a opinio, em salientando o seu carter infirme (,,),32

    tambm eles a fazem tal em conseqncia da natureza do objeto que,

    embora verdadeiro e real, pode, entretanto, ser de outra maneira.33

    Distino que o prprio sentir comum sem dificuldade confirma, pois

    ningum julga opinar (+-.), mas ter cincia, quando julga impos-

    svel ser de outra maneira; mas, quando julga que a coisa assim, sem

    que nada, entretanto, impea que, tambm, de outro modo seja, jul-

    ga ento opinar, estimando que a um objeto tal respeita a opinio, ao

    necessrio, a cincia.34 certo que a tica Nicomaquia pareceria,

    primeira vista, contradizer uma tal doutrina, ao dizer-nos que a opi-

    27 Cf. t. Nic. VI, 3, 1139b21-2.28 Cf. Met. Z, 15, 1040a2-4.29 Ibidem, 1039b32-3.30 Cf. ibidem, 1039b33-1040a1; t. Nic. V, 5, 1140b27 etc.31 Cf. Met. /0 10, 1051b13-7.32 Cf. Seg. Anal., I, 33, 89a5-6.33 Cf. ibidem, 88b32 seg.34 Ibidem, 89a6-10.

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    Oswaldo Porchat Pereira

    nio, que se divide segundo o falso e o verdadeiro parece dizer res-

    peito a todas as coisas e no menos s eternas e s impossveis que s

    que de ns dependem.35 Mas os Segundos Analticos esclarecem ple-

    namente a aparente dificuldade: que se podem apreender objetos

    que, em si mesmos, so necessrios e se podem conhecer eles como

    verdadeiros, seja apreendendo-os em sua mesma necessidade deles,

    ento, haver cincia seja, sem que como necessrios se apreendam

    e haver deles, to-somente, opinio.36 No h problema, pois, em

    pr-se que possvel opinar sobre tudo que se sabe,37 se se tem bem

    presente ao pensamento que no podem ser totalmente idnticos os

    objetos da opinio e da cincia, ainda que possam dizer-se os mesmos

    num sentido semelhante ao em que assim se dizem os objetos da opi-

    nio falsa e da opinio verdadeira, quando, dizendo respeito ambas a

    uma mesma coisa, no se confundem eles, entretanto, quanto sua

    qididade, que o discurso exprime.38 Poder haver, ento, de uma mes-

    ma coisa, em homens diferentes, cincia num, opinio noutro; mas

    absolutamente impossvel que se dem ambas simultaneamente num

    mesmo homem, j que este teria de apreender, ao mesmo tempo, a

    mesma coisa, como incapaz e como capaz de ser de outra maneira.39

    No se esquecer de que o no-contingente no a nica signifi-

    cao do necessrio no vocabulrio filosfico de Aristteles. De fato,

    o livro da Metafsica, ao estudar o verbete necessrio,40 mostra-nos

    que a necessidade ora diz respeito s condies sem as quais um bem

    no se realiza (necessidade, por exemplo, da respirao para a vida),41

    35 t. Nic. III, 4, 1111b31-3.36 Cf. Seg. Anal., I, 33, 89a16 seg.37 Cf. ibidem, l. 12-3.38 Cf. ibidem, l. 23 seg.39 Cf. ibidem, l. 38 seg.40 Cf. Met. , 5. Os trs sentidos bsicos do termo, a indicados, so retomados em *, 7,

    1072b11-3. Aceitamos totalmente a interpretao proposta por Ross, em seu comentrioa , 5, no tendo razo Le Blond, ao distinguir, nesse captulo, cinco diferentes sentidos denecessrio (cf. Le Blond, Logique et mthode..., 1939, p.84 e n.4).

    41 Cf. Met. , 5, com., 1015a20-6. a necessidade que a Fsica chama de hipottica (+(),necessidade representada pela causa material dos seres naturais, sem a qual no se d a for-ma, cf. Fs. II, 9 (todo o captulo); cf., tambm, Part. Anim. I, 1, 639b24-5; 642a1 seg.

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    Cincia e Dialtica em Aristteles

    ora ao que compulsrio e compulso (por exemplo, o que pe obs-

    tculo e estorva o impulso natural e a inteno deliberada),42 ora ao

    , ao que no pode ser de outra maneira.43

    Mas esta a noo de necessidade, observa o filsofo, da qual, de al-

    gum modo, derivam as duas primeiras:44 uma coisa faz ou sofre o ne-

    cessrio, enquanto compulsrio, quando no lhe possvel (

    ) agir segundo o impulso prprio, isto , quando no pode agir

    diferentemente do que age, em virtude da atuao do agente que a

    compele; e quando vida ou bem, tambm, no so possveis sem cer-

    tas condies (1), estas dir-se-o necessrias e tal causa, uma

    forma de necessidade. Ora, diretamente ao terceiro e principal sen-

    tido, ao que no pode ser de outra maneira, que esse texto da Metafsica

    explicitamente refere a necessidade da demonstrao cientfica.45 E

    mostra o filsofo como se dividem as coisas quanto causa de sua neces-

    sidade: certas coisas, com efeito, devem sua necessidade a uma causa

    outra que no elas prprias, enquanto outras h que, no possuindo

    uma causa tal, so, ao contrrio, elas prprias, a causa da necessidade

    de outras coisas.46 E conclui que o necessrio, em seu sentido primeiro

    e fundamental (1), o simples (23), ao qual no , com

    efeito, possvel ser de muitas maneiras nem, portanto, sofrer muta-

    o alguma; se h seres eternos e imveis, tal h de ser, ento, a sua

    natureza.47 E no nos mostra, com efeito, a anlise do devir levada a

    cabo pelo livro I da Fsica ser evidente que tudo que devm sempre

    composto (1)?48 Eis, assim, o absolutamente necessrio, o que

    no contingente, bem definido, agora, em sua mesma positividade. Eis

    tambm, esclarecida a natureza do objeto a que a cincia, em ltima

    anlise, se refere.

    42 Cf. Met. , 5, 1015a26-33.43 Cf. ibidem, l. 33 seg.44 Cf. ibidem, 1015a35-b6.45 Cf. ibidem, 1015b6 seg.46 Cf. ibidem, l. 9-11.47 Cf. ibidem, 1015b11-5.48 Fs. I, 7, 190b11.

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    Oswaldo Porchat Pereira

    1.2 A cincia e a categoria da relao

    Vimos, assim, de modo adequado a nosso estudo, como a doutrina

    aristotlica da cincia a define, nos Segundos Analticos e na tica

    Nicomaquia sobretudo, como o conhecimento de um objeto que

    ontologicamente se descreve como necessrio: a cincia do ser, e do

    ser necessrio, eterno. No nos estranhar, pois, que Aristteles co-

    loque a cincia entre os relativos (), isto , que a diga pertencente

    categoria da relao.49 Pois se dizem relativas, com efeito, aquelas

    coisas que, aquilo, precisamente, que so, se dizem ser de outras coi-

    sas ou, de algum modo, em relao a outra coisa (45).50 As-

    sim, o ser do relativo se no dissocia de sua relao a algo de outro, o

    qual ser, por isso mesmo, um elemento necessrio na definio da-

    quele.51 Doutrina que, aplicada cincia, significa, como as Categori-

    as expressamente o dizem, que a cincia diz-se cincia do cientifica-

    mente conhecvel,52 que a cincia diz-se aquilo mesmo, precisamente,

    que , do cientificamente conhecvel.53 E que o ser da cincia impli-

    ca, como elemento indispensvel que integra sua mesma definio e

    essncia, a referncia ao , ao cientificamente conhecvel: nem

    foi outra coisa o que, desde a definio inicial de cincia proposta nos

    Segundos Analticos, que vimos comentando, estivemos a mostrar.

    Um esclarecimento, contudo, impe-se: com efeito, dentre as pro-

    priedades que os caracterizam, distinguem-se, tambm, os relativos

    pela reciprocidade de sua relao aos seus correlativos (tambm estes

    dizem-se relativos queles: o dobro relativo metade e a metade, ao

    dobro, o dobro dobro da metade e a metade, metade do dobro)54 e pela

    49 Cf. Tp. IV, 4, 124b19; VI, 6, 145a13-8; Met. , 15, 1021b6 etc.50 Cat. 7, 6a36-7. O captulo 7 das Categorias inteiramente dedicado, como se sabe, catego-

    ria da relao. Cf., tambm, Met. , 15.51 Cf. Tp. VI, 4, 142a28-31.52 Cat. 7, 6b34. Do mesmo modo, dir-se- o cientificamente conhecvel cientificamente

    conhecvel para a cincia (cf. ibidem, l. 34-5).53 Cat. 10, 11b28-9.54 Cf. Cat. 7, 6b28 seg.

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    Cincia e Dialtica em Aristteles

    sua simultaneidade com seus correlativos, que daquela primeira pro-

    priedade decorre (porque h uma mtua correlao e o ser dos relati-

    vos no se dissocia da relao, a inexistncia ou supresso de um dos

    termos da relao implica a inexistncia ou a supresso do outro: no

    havendo dobro, no h metade e vice-versa55 ). Ora, conquanto seja um

    relativo, no possui tais propriedades a cincia, no caracterizando-

    se, de fato, pela reciprocidade e pela simultaneidade as relaes entre

    a cincia e o cientificamente conhecvel, ou entre o pensamento e o

    pensvel, entre a medida e o mensurvel: o mensurvel, e cientifica-

    mente conhecvel e o pensvel dizem-se relativos pelo fato de uma

    outra coisa dizer-se em relao a eles; de fato, o pensvel significa que

    dele h pensamento, mas no o pensamento relativo quilo de que

    pensamento (pois se teria dito duas vezes a mesma coisa); de modo

    semelhante, tambm a vista vista de algo, no daquilo de que vis-

    ta (ainda que seja, por certo, verdade dizer isto), mas relativa cor

    ou a alguma outra coisa dessa natureza.56 primeira vista, confuso

    e, mesmo, contraditrio, esse texto da Metafsica merece um exame

    mais atento. Indica-nos ele, em primeiro lugar, que a relao existen-te entre a cincia e seu objeto (o mesmo vlido dizer do pensamen-

    to, da percepo etc., mas o caso particular da cincia que, aqui, nosinteressa), se ela constitutiva da cincia, no o do cientificamente

    conhecido. -o da cincia: com efeito, se, de um modo geral, o ser dorelativo consiste no estar numa certa relao com alguma coisa,57

    certo que plenamente essa a natureza da cincia, que e se definepelo objeto necessrio que conhece. Mas, enquanto, para os relativos,

    em geral, ocorre que a relao que os determina simultaneamenteconstitutiva de ambos os seus termos, cujo ser por ela prpria se de-

    limita e estabelece, quer o filsofo frisar que o mesmo no ocorre comas formas vrias de conhecimento, entre as quais a cincia. Aqui, a

    relao unilateral, de um certo modo, na medida em que o objeto

    55 Cf. Cat. 7, 7b15 seg.56 Cf. Met. , 15, 1021a29-b2.57 Tp. VI, 4, 142a29.

  • 46

    Oswaldo Porchat Pereira

    conhecido se pe como independente da mesma relao de conheci-

    mento, de que termo; sendo, ento, de um ser que lhe no conferi-

    do por uma cincia eventual que lhe diga respeito, -lhe acidental, ao

    cientificamente conhecvel, ser conhecido pela cincia. No se definin-

    do por ela, o objeto da cincia no se lhe dir, portanto, relativo; ou

    melhor, se assim se diz, apenas para significar-se que a cincia lhe

    relativa, sem que com isso se exprima a sua natureza dele.58 Mas, por

    isso mesmo, no se determinar a cincia, dizendo-a relativa ao cien-

    tificamente conhecvel, isto , no se definir ela pela sua relao ao

    conhecvel como tal; com efeito, raciocina Aristteles, se o

    indica que dele h cincia, definir a cincia por sua relao a ele, en-

    quanto tal, seria incorrer na tautologia de diz-la relativa quilo de que

    h cincia. Por certo, nenhuma inverdade se profere, se assim se fala,

    mas porque a natureza prpria do objeto se escamoteia, a mesma

    natureza da cincia que se obscurece. E, sobretudo, assim exprimir-se indevidamente tomar como reciprocveis e simultneos, seme-lhana dos relativos em geral, a cincia e seu objeto. Dissramos, aci-ma, que a definio de cincia teria necessariamente de incluir arelao ao 659 compreende-se, agora, que no a meno abs-trata de que h um cientificamente conhecvel que nela deve figurarmas, sim, sua caracterizao adequada, isto , a sua explicao comoo , o que no pode ser de outra maneira.

    Manifesta-se-nos, ento, que o que nos traz diante dos olhos a lin-guagem difcil e inslita da categoria aristotlica da relao nada me-nos que o problema magno do primado da coisa conhecida, por queum realismo epistemolgico, entre outras coisas, se define. Se pudessepairar dvida sobre a correo da interpretao proposta para aqueletexto da Metafsica dirimi-la-ia o compar-lo com a passagem bem mais

    58 Quando o filsofo diz, ento, que o cientificamente conhecvel aquilo mesmo, precisa-mente, que , relativamente ao oposto, cincia; pois o cientificamente conhecvel se dizcientificamente conhecvel para algo, para a cincia (Cat. 10, 11b29-31), h que entender-se que se trata do conhecvel unicamente enquanto lhe diz respeito a cincia, interpretao, ali-s, que o prprio texto sugere.

    59 Cf., acima, n.52 e 53 deste captulo.

  • 47

    Cincia e Dialtica em Aristteles

    explcita em que as Categorias tambm aludem ao carter sui generis da

    relao entre e : No parece verdadeiro haver de

    todos os relativos uma simultaneidade de natureza; parecer-nos-,

    com efeito, que o cientificamente conhecvel anterior cincia, pois,

    na maior parte das vezes, em havendo previamente as coisas que

    adquirimos as cincias: de fato, em poucos casos, ou em nenhum, ver-

    se- surgir uma cincia simultnea ao conhecvel. Alm disso, o

    conhecvel, uma vez destrudo, suprime consigo a cincia, mas a cin-

    cia no suprime consigo o conhecvel, pois, em no havendo conhecvel,

    no h cincia de nada mais, com efeito, seria cincia mas nada im-

    pede que, no havendo cincia, haja conhecvel ... . Alm disso,

    destrudo o animal, no h cincia, mas possvel haver muitos den-

    tre os conhecveis.60 No se poderia dizer de modo mais manifesto

    que o conhecvel , para alm e antes de qualquer cincia que possa

    conhec-lo. Trata-se, obviamente, no texto em questo, de um uso

    extremamente lato da noo de cincia, abrangendo o conhecimento

    do que devm e pode destruir-se, e que no se diria excepcional na lin-

    guagem do filsofo;61 mas o que, aqui, nos importa que, com toda a

    clareza desejvel, se exprime a absoluta e incondicional primazia do

    objeto cientfico sobre a cincia, transposta em termos de anteriori-

    dade temporal: preexiste cincia o seu objeto.

    1.3 A cincia e a alma

    Uma outra lio, porm, traz-nos, tambm, o texto em questo,que de convenincia vivamente realar. Com efeito, como um argu-mento a mais em favor da anterioridade do conhecido, supe umaimaginria destruio do reino animal, que acarretaria a supresso detoda cincia, sem que nada viesse afetar boa parte do conhecvel, isto, todos os seres celestes e, no mundo sublunar, por exemplo, o rei-no todo das coisas inanimadas. Ora, assim colocar o problema , como

    60 Cat. 7, 7b22-35.61 Cf., adiante, IV, 1.4 (isto : cap. IV, 1, seo 4).

  • 48

    Oswaldo Porchat Pereira

    bem se compreende, no apenas insistir no primado do conhecvel

    mas, ainda mais, descrever literalmente a cincia como um atributo

    do ser animado: vive a cincia da vida do ser vivo e desaparece com ela.

    E parece-nos, com efeito, que no poderia ser de outra maneira, pois,

    a partir do momento em que se reconhece a absoluta anterioridade e

    primazia do objeto, como o faz Aristteles, era necessrio entender a

    cincia como um atributo do animal humano. E o filsofo extrema-

    mente claro a esse respeito: a cincia est na alma, como em seu su-

    jeito,62 a cincia um estado ou hbito (5+),63 portanto, uma qua-

    lidade da alma humana, hbito e no simples disposio (-),

    em virtude de seu carter duradouro e estvel, que se no perde se

    grande mudana no ocorre, provocada por doena ou fato semelhan-

    te.64 E, ainda segundo as Categorias, no so as diferentes cincias par-

    ticulares seno qualidades, cuja posse nos faz tais ou quais.65 , tam-

    bm, como uma 5+que a tica Nicomaquia caracteriza a cincia, como

    um estado ou hbito capaz de demonstrar;66 e como uma concep-

    o ou juzo (( 7) que diz respeito aos universais e s coisas que

    so, necessariamente.67 de fato a cincia uma espcie de (( 7)68

    e sob esse prisma de suas relaes com as outras funes do pensa-

    mento, em geral, que a estudar o livro III do tratado Da Alma: o pen-

    sar (8), com efeito, consiste, de um lado, na representao ou ima-

    62 Cf. Cat. 2, 1b1-2.63 Cf. Cat. 8, 8b29. Os dois sentidos principais do termo 5+, em Aristteles (um certo ato do

    que tem e do que tido ou uma disposio (-), segundo a qual o que est dispos-to est bem ou mal disposto, cf. Met. , 20, 1022b4-14 (o captulo inteiro)), prendem-se, como nota Bonitz (cf. Index, p. 260b31 seg.), respectivamente, aos sentidos transitivo eintransitivo de 5. No primeiro sentido, a 5+ diz-se segundo a categoria do ter (5)(cf. Cat. 4, 2a23); no segundo, que o termo latino habitus traduz bem, a 5+ uma espcieda qualidade (cf. Cat. 8, 8b26-7), um estado ou hbito.

    64 Cf. Cat. 8, 8b27-32. Aristteles que freqentemente usa 5+ e - como sinnimos, daqui uma maior preciso aos dois termos, entendendo por 5+ uma disposio mais dura-doura e estvel.

    65 Cf. ibidem, 11a32 seg.66 Cf. t. Nic. VI, 3, 1139b31-2.67 Cf. ibidem, 6, 1140b31-2.68 Cf. Fs. V, 4, 227b13-4.

  • 49

    Cincia e Dialtica em Aristteles

    ginao (9), de outro, na concepo (( 7) e esta diferen-

    cia-se em cincia, opinio, prudncia e seus contrrios.69 Descreven-

    do a cincia como um hbito, mostra-nos, tambm a tica como a

    cincia, juntamente com a inteligncia (3), integra a sabedoria

    (9),70 que a virtude ()) da parte cientfica (4 ),

    a qual constitui, por sua vez, uma subdiviso da parte racional da alma

    humana.71 Ora, dizer que a sabedoria (que inclui a cincia) a virtu-

    de da parte cientfica da alma significar que ela o melhor estado ou

    hbito dessa parte da alma, dizendo respeito funo () que

    lhe prpria.72 verdade que a prpria noo da parte cientfica da alma

    est calcada sobre a natureza do objeto de que ela se ocupa; com efei-

    to, se as duas partes da alma racional, a cientfica e a calculadora (4

    ) assim se chamam, porque por elas contemplamos, de um

    lado, aqueles seres que so tais que no podem os seus princpios ser

    de outra maneira (), de outro, as coisas con-

    tingentes (), por isso mesmo suscetveis de ser objeto de

    deliberao ou clculo;73 como explica Aristteles, a diviso entre as

    partes da alma acompanha e univocamente corresponde s diferenas

    genricas entre as coisas, j que se deve o conhecimento que possuem

    a uma certa semelhana e parentesco com aquilo que conhecem.74

    69 Cf. Da Alma III, 4, 427b24-6.70 Cf. t. Nic. VI, 7, 1141a18-9;b2-3. Poderia estranhar-se que a tica contivesse textos

    epistemolgicos to importantes sobre a noo de cincia e a de sabedoria terica; mas nose esquea de que no somente o livro VI estuda tais noes, tendo em vista precisar as re-laes entre o saber terico (9) e o saber prtico ou prudncia (9 ) mas, tambm,a prpria noo de felicidade, supremo Bem do homem, tal como a tica a define (ato da almasegundo a melhor e mais completa virtude (I, 7, 1098a16-7)), implica, finalmente, a consi-derao da vida contemplativa ou terica (cf. X, 7-9), vida de inteligncia e de cincia.

    71 Cf. t. Nic. VI, 11, 1143b14-7, onde Aristteles, resumindo toda a discusso precedente, opesabedoria e prudncia como virtudes, respectivamente, de cada uma das subdivises da parteracional da alma humana. Sobre a diviso da alma numa parte racional e numa parte irra-cional, cf. t. Nic. I, 13, 1102a26 seg.; sobre as divises da alma racional, cf. VI, 1, 1139a5seg. O estudo acurado dessas diferentes partes e de suas funes faz-se, obviamente, notratado Da Alma (livros II e III).

    72 Cf. t. Nic. VI, 1, 1139a16-7. Sobre a noo de virtude (), cf. II, 5-6.73 Cf. t. Nic. VI, 1, 1139a6 seg.74 Cf. ibidem, l. 8-11.

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    Oswaldo Porchat Pereira

    Mas, por outro lado, enquanto estado ou hbito, a cincia o de al-

    guma coisa,75 isto , precisamente, da alma humana:76 qualidade da

    alma, a cincia modo de ser do homem, por cujo intermdio se rela-

    ciona este de um certo modo com seres de uma certa natureza, os que

    no podem ser de outra maneira, graas a uma certa familiaridade que

    lhe natural e que torna, assim, o conhecimento possvel. Donde a

    ambigidade de uma expresso como aquilo por cujo intermdio

    conhecemos, que pode significar, seja a cincia, seja a prpria alma.77

    Nem podia ser outra, de fato, a doutrina aristotlica da cincia, a

    partir do momento em que uma perspectiva decididamente realista

    instaurara o primado absoluto do objeto, reconhecendo como anterior

    e indiferente a todo conhecimento eventual que dele se ocupa, um

    mundo-real-que-est-a e de que os homens fazemos parte. Ser, en-

    to, sobre esse pano de fundo das coisas que se apreender e descre-

    ver a mesma natureza do conhecimento, necessariamente secund-

    ria do ponto de vista ontolgico que, de incio, se privilegia. Mero

    comportamento dos homens em face das coisas, em que pesa sua

    excelsa dignidade, a cincia, como todas as formas de conhecimento,

    pressupe necessariamente as coisas e os homens. Viso ingnua do

    mundo? , em todo o caso, a doutrina aristotlica da cincia. Ser en-

    tre os seres do mundo, a cincia que Aristteles conhece no

    constitutiva da coisa conhecida, mas, tambm ela, uma coisa, que

    se oferece, igualmente, reflexo do filsofo. Fundadas razes teve

    Cassirer de excluir de seu estudo sobre o problema do conhecimen-

    to, juntamente com Aristteles, todo o pensamento grego, cuja uni-

    dade, desse ponto de vista, parece-nos indiscutvel.78 E com toda

    75 Cf. Cat. 7, 6b5.76 Cf. Tp. IV, 4, 124b33-4: a cincia diz-se do cientificamente conhecvel, mas o estado e a

    disposio, no do cientificamente conhecvel, mas da alma.77 Cf. Da Alma II, 2, 414a5-6.78 Com exceo, por certo, do movimento ctico, em que se poderia ser tentado a pressentir

    um precursor da modernidade. Por outro lado, numa filosofia como a de Plato, depois dosmodernos estudos que se lhe tm consagrado, a interpretao realista parece irrecusvel:o platonismo um realismo das Formas ou essncias.

  • 51

    Cincia e Dialtica em Aristteles

    razo que observa que em Aristteles, a teoria do conhecimento no

    mais que uma parte de sua psicologia:79 ter-lhe-ia o filsofo dado

    integralmente razo, pois ele mesmo quem nos remete, nos Segun-

    dos Analticos, para o estudo das relaes entre o pensamento, a intui-

    o, a cincia, a sabedoria etc., Fsica (isto , ao tratado da Alma) e

    tica.80 Torna-se bem fcil compreender, sem dvida, por que recusa

    Aristteles chamar cincia medida das coisas.81 Ns assim chama-

    mos, cincia e percepo, para significar que por elas conhecemos

    as coisas (assim como chamamos medida, em sentido estrito, quilo

    por cujo intermdio conhecemos a quantidade).82 Na realidade, cin-

    cia e percepo so, antes, coisas medidas do que medidas das coisas;

    com elas ocorre algo de semelhante ao que nos acontece quando vem

    algum medir-nos, em aplicando sobre ns a medida de um cvado:

    detendo sobre o conhecimento a primazia que sabemos, so as coisas

    que medem e que delas conhecemos, so os prprios seres a medida

    da cincia dos homens.

    Torna-se, ento, plenamente manifesto como, dos dois plos a que

    vimos ter a cincia referncia necessria, que com algum inegvel ana-

    cronismo, agora mais do que nunca evidente, denominamos sujeito

    e objeto, entender-se- pelo primeiro to-somente o homem real, essa

    essncia ou substncia privilegiada, de cuja alma a cincia proprie-

    dade; por razes bvias, compete seu estudo psicologia, isto , f-

    sica aristotlica. Quanto ao que vimos ser o objeto da cincia, o neces-

    srio e a causa, seu mesmo carter fsico e ontolgico converte-os em

    tema da mesma cincia fsica e da cincia do ser. Resta-lhe, cincia,

    79 Cf. Cassirer, El problema del conocimiento en la filosofa y en la ciencia modernas, I, p.56. Sobre asrazes pelas quais o autor no inclui, em sua obra, um estudo da filosofia antiga, v. p.26seg., em sua Introduo.

    80 Cf. Seg. Anal. I, 33, 89b7-9. Sobre as razes pelas quais ao fsico que cabe o estudo da alma,cf. Da Alma, I, 1, 402a4 seg.; 403a3-19. Por outro lado, quanto s razes de ocupar-se a ticada cincia, v., acima, n.70 deste captulo.

    81 Cf. Met. I, 1, 1053a31 seg.; 1057a7-12.82 Cf. Met. I, 1, 1052b20.

  • 52

    Oswaldo Porchat Pereira

    uma ltima dimenso e dela que se ocupam, propriamente, os Se-

    gundos Analticos , a de sua organizao e estruturao internas como

    saber constitudo. Tambm ser esse, ento, o objeto privilegiado de

    nossa reflexo. Mas, acompanhando, naquele tratado, os passos da

    doutrina, veremos que, se a referncia ao sujeito, isto , ao homem

    como suporte do conhecimento e cincia como um seu modo de ser,

    est praticamente ausente, consideraes de ordem metafsica,

    concernentes ao ser do conhecvel, revelar-se-o imprescindveis e o

    filsofo ter freqentemente de delas lanar mo para informar dife-

    rentes momentos de seu estudo sobre o saber cientfico.

    1.4 Os outros usos do termo cincia

    Entendemos, pois, que ter cincia conhecer como se determinacausalmente o ser necessrio. Antes de passarmos a