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Portfólio Cláudia Lopes Lembro-me de ter lido um poema lindo que falava de uma mesa e dos seus lugares vazios. Não eram lugares por preencher, eram lugares vazios. Lembro-me que quem o lia – apetece-me rir hoje – pensava que lugares vazios eram o silêncio, mas não há nada mais duro que a ausência e essa não é o silêncio.

Portfólio cláudia lopes 2013

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Portfólio Cláudia Lopes

Lembro-me de ter lido um poema lindo que falava de uma mesa e dos seus lugares vazios. Não eram lugares por preencher, eram lugares vazios.Lembro-me que quem o lia – apetece-me rir hoje – pensava que lugares vazios eram o silêncio, mas não há nada mais duro que a ausência e essa não é o silêncio.

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Esta apresentação fala de momentos, momentos esses que definem um tempo que não é só o tempo de um indivíduo em particular mas sim esse lugar que se estende e pertence à memória colectiva. Importa pensar o significado de um espaço político, histórico e social que se apresenta através de narrativas pessoais, muitas vezes autobiográficas, que utilizam a fotografia como registo de um desaparecimento evidente. A memória é um registo contínuo daquilo que é o esquecimento.A utilização do arquivo como forma de testemunho, de presença e representação do silêncio é um dos pontos fundamentais das obras que se apresentam, encarando sempre o gesto de criação como um acontecimento não sóestético, mas fundamentalmente ético e político.Toda a narração/acontecimento é um corte na realidade, é um enquadramento em que fragmentos nos revelam pistas sobre uma ideia de um Todo que funciona precisamente por ser descontínuo. Nunca o efémero foi tão importante para falar do Tempo como na contemporaneidade.

A construção da memória é uma ficção sobre a acção.

Importa pensar a representação da memória, em que o ficcional e o não ficcional se fundem para criar uma narrativa possível que expõe, por oposição ao tempo acelerado que caracteriza o contemporâneo, um tempo suspenso que procura reequacionar a relação do indivíduo com o seu espaço-tempo. Estas visões singulares do indivíduo, ao falarem da dimensão simbólica desse espaço-tempo, confluem para a enunciação de uma memória colectiva.As situações apresentadas problematizam os conceitos de arquivo, de documento e de testemunho que pela criação de narrativas individuais, pessoais ou anónimas, onde ficção e realidade coabitam um mesmo espaço de significação, concorrem para criar uma possível memória colectiva, relativizando os conceitos de história e verdade.Aquilo que nos faz acreditar num futuro é a certeza de pertencermos a um determinado tempo e lugar histórico, geográfico, social, político e emocional. Contudo, numa era em que o futuro está sempre a acontecer, essa não possibilidade de realização do presente traz-nos a evidente ruptura com a ideia de uma Memória, de um tempo em devir que se realiza em cada um dos indivíduos.

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Desaparição: arquivo I, 2012

Instalação – (Museu FBAUP, Porto)

Recortes da Necrologia do jornal, “apagados” e aplicados na parede

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Desaparição: arquivo II, 2012Instalação – (Museu FBAUP, Porto)

Texto dactilografado (folhas A4)

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Vista da instalação Desaparição: arquivo I e de Desaparição: arquivo II

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O tempo da ideia (ou a ideia do tempo), 2012Insatalação (Sputenik, the window)Texto policopiado consecutivamente, 585 folhas A4

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a ideia do tempo

A uma distância percorrida não corresponde uma medida exacta de tempo, pois o tempo é medido numa outra unidade que não a do espaço percorrido. O que me interessa neste exercício é o tempo preciso que o olhar demora a percorrer a ideia. O tempo da ideia. Esse tempo não poderia, em absoluto, ser uma linha contínua que se agasta na exacta medida em que a linha é percorrida, reduzindo-se o infinito à progressão sem fim de instantes.Esse tempo seria de uma outra natureza, onde a impossibilidade de terminar o pensamento do infinito produz a infinitude da própria ideia de instante. Cada instante seria em si o tempo, e o tempo seria essa novidade sempre criada.Mas existe uma impossibilidade de concretização da ideia do tempo porque não pode a existência do tempo ser medida ainda antes desse mesmo tempo ter sido acontecido. Porque o tempo se constrói de memória; memória essa que já é em si uma outra construção, alicerçada na experiência, no sonho, no desejo, na vontade, nos sentidos e no entendimento. Este tempo tem a duração de cada instante vivido e cada instante se derrama no infinito desse tempo. E se por vezes sentimos que o tempo se nos escapa por completo por entre os dedos, vezes há em que este se arrasta como se não pudesse nunca ser acabado. Reside porventura nesta oposição a maior questão sobre a mensuração do tempo.Acresce a impossibilidade última de construir o tempo da ideia através da ideia do tempo. Porque para que o tempo da ideia se meça é necessário que a ideia do tempo esteja já em si concretizada em totalidade. Mas ao construir-se a ideia do tempo haveria um espaço-tempo percorrido que não poderia ser percorrido de novo, pois esse novo percurso seria já uma outra ideia. E o tempo da ideia seria já a simulação desse tempo, não o momento exacto em que a ideia, se formando no entendimento, se pudesse mostrar.

O tempo da ideia (ou a ideia do tempo) - texto

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Intervalo, 2012Instalação (Sputenik, the window, Porto)

Recortes da Necrologia do Jornal

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Cronologia, 2012

Instalação (Museu FBAUP)

Fotografias, desenho na parede, 4 textos impressos em papel

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o tempo

Aquilo que sou hoje nunca poderá ser o que seráamanhã; posso desejar e criar para este presente e para o seu porvir, mas vivo na certeza absoluta que não há nada que possa fazer para que o passado tivesse sido diferente. Posso sim, pensar esse passado para o futuro, transformar essa angústia de ter sido na fome de ainda ser e desse espaço- tempo já vivido poderá brotar uma nova história ficcionada. Não importa meramente o que já foi mas o que desse foi ainda poderá vir a ser.

Existe um espaço de tensão entre o tempo ser o Tempo e as horas serem contadas em minutos, os dias serem contados em horas, os anos contados em dias e os séculos em anos; e entre esse outro tempo, que continua a ser o Tempo, mas em que as horas já não duram minutos e um segundo poder ter a duração do infinito, em que os anos poderiam ser quase impressões sobre o vidro da janela e com o bafo poder desenhar neles como se não houvesse somente um antes e um depois.

E que essa experiência do momento oportuno fosse o exacto momento em que percebesse que o ser tempo não se limita a ser contar o tempo e que a contá-lo o possa fazer como se não existisse uma linha óbvia que transporta as coisas sempre em diante.

a memória

A memória interessa, não como coisa morta, mas como algo que continua em devir. Considero em devir um algo que está em trânsito permanente entre planos diferenciados, mas que nunca pode ser o antes e o depois, pois aquilo que está em permanente movimento éum nómada, é o que acontece agora. Mas a questão reside em o agora não se referenciar apenas ao ponto exacto em que se encontra, pois as coisas existem porque foram criadas e para isso teve de existir um antes e as coisas existem na potência de poderem ou não poderem continuar a realizar-se e isso indica-nos sempre algo que está no adiante.

A memória (enquanto Tempo) é uma impossibilidade fenomenológica.

Quando brincava com a minha avó e imaginava que na sua cara existiam montes e vales à semelhança do sítio onde ela cresceu, não havia como não sentir uma perda profunda quando me ela me dizia que quem andou não tem mais para onde andar. E eu dizia-lhe que não enquanto lhe apertava os dedos das mãos, mas na verdade eu sempre conheci a minha avó já velha e roída pelo tempo. Durante anos remoí essas palavras como se fossem grãos de onde se pudesse fazer farinha e dessa farinha pudesse sair algo parecidocom um pão ou um bolo. Mas dos grãos apenas nasciam mais grãos enão havia forma de os poder moer e com eles moer essa perda constante.Esse grande absoluto de ter um caminho que se vai esgotando àmedida que andamos é cruel e sempre me pareceu em criança que não deveria ser só dessa maneira. Um dia disse à minha avó que tal não poderia ser verdade porque a Terra é redonda e por isso podíamos andar de forma infinita. Mas da mesma forma que ela não concebiaque o Homem tivesse ido à Lua, estavam esgotados os meus infrutíferos esforços de lhe explicar o imenso poder da gravidade.E mesmo que ela pudesse imaginar as pessoas de pernas para o ar,havia sempre um inultrapassável limite. Nenhum ser humano podería aspirar a ser eterno como Deus pois seria um enorme pecado. E enquanto a minha avó rezava para ter uma morte santa e os olhos se lhe fechassem devagar eu cismava com um mundo ao contrário e que as pessoas pudessem ser de forma infinita.

Cronologia (textos)

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o desejo

(à potência de ser corresponde em exacta medida a potência de não ser)

a palavra

Existe um óbvio limite para o que pode ou não poder ser explicado por palavras. E, por um momento, permito-me admitir que nada podería, em última instância, ser explicado por palavras. Tudo o que possamos conhecer advém da possibilidade de o experienciarmos e a sensação de se estar vivo ultrapassa qualquer forma de linguagem.Contudo, isto causa uma grande perturbação na compreensão da criação do mundo. Não no sentido literal da formação do plano material mas sim na definição imaterial das coisas. Até que ponto poderá uma cadeira ser uma cadeira se não existir a palavra cadeira? E como poderá existir a cadeira se não houver o pensamento da cadeira? E poderáo pensamento acontecer sem nome?

E da mesma forma que não nos sentimos a crescer, embora de forma óbvia isso aconteça ao longo da nossa vida com maior ou menor notoriedade, também não conseguimos precisar o momento em que pensamos. Porque realizarmos que pensamos é já um outro acto que não aquele de termos pensado.

Cronologia (textos)

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O olhar impossível, 2011Instalação (Casa da Galeria, Danto Tirso)

Texto em vinil sobre parede e projecção de 1 diapositivo a cores

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(O OLHAR IMPOSSÍVEL)

Qual a distância concreta entre o primeiro e o último olhar? Entre ver pela primeira vez, entre gritos e choro, as mãos suadas que seguram e a primeira palmada… e ver, num último bafo, a vida gasta, entre choro contido e as mãos frias que seguram e são seguradas?Qual a distância exacta entre tudo ver como se nada houvera antes e tudo ver sabendo que já se o viu e que essas coisas vistas não são de fora, são a memória sempre a acontecer?

Há um tempo infinito entre ver tornar a ver.

Porque a cadeira onde me sento não é só uma cadeira, são todas as cadeiras e são todas as mesas e todas as conversas e todos as palavras e todas as lembranças e todas as coisas juntas que se colam umas às outras e não se desfazem com um meneio de cabeça e não se partem com o vento e mesmo quando durmo acontecem e também isso é essa cadeira e nada nunca mais vai ser dessa forma profunda que é ver desse tamanho pequeno, quando conseguíamos ver, do mesmo sítio e ao mesmo tempo, o que acontecia por cima e por baixo das mesas.Mas no fim da vida é como se fora pequeno em grande, o corpo comido pelo tempo e foi o tempo que levou essas memórias que agora não são peso, são os olhos mais abertos a ver o que está por dentro e não importa mais o que pode acontecer que este já é outro lugar. Um tempo que agora pertence a outro sopro; o bafo pesado e último traz o gosto desse momento em que se tocando o primeiro e o último olhar pudéssemos ver com um espanto renovado a vida inteira e as coisas sempre novas, tudo o que vivi como se o sentisse pela primeira vez, não sabendo que quem andou não tem mais para onde andar.

O olhar impossível (texto)

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Deve e Haver, 2011 Instalação (Casa da Galeria, Santo Tirso)

Desenho na parede a lápis Viarco Olímpico e 20 fotografias 15x20 p/b

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Deve e haver (pormenor)

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Arquivo (não) morto, 2011

Instalação (Casa da Galeria, Santo Tirso)

Cartas, 4 fotografias, texto dactilografado, objectos

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Portugal, 2011, 2011Instalação (Galeria da Biblioteca de Santa Maria da Feira

Impressão digital a cores e a p/b (imagens digitalizadas de manuais escolares antigos)

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Portugal, 2011, 2011(Pormenor)

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No time, 2011Caderno escolar Infante, fotografia, texto dactilografado

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A avó mal comportada e a avó bem comportada, 2009Calcogravura (ponta-seca sobre papel) e texto dactilografado

A avó mal comportada e avó bem comportada

Naquele dia podias ter dito e eu teria, sem as dúvidas que hoje tenho, aceite queexiste algo para além do nosso corpo.

Mas tu eras calada e permanecias por teimosia.Ao teu lado caminhavam os teus passos, zangados.

Tu ias pelo caminho como quem parte a lenhapara uma fogueira. Sem cuidado, quebrando osgalhos, consumidos em fogo e longos serões. Os teus passos ainda vão zangados. Sem palavras.

Não há palavras que cheguem para explicaraquilo que está vazio onde antes tanto havia.

Lembro com uma perfeição tal que receio serantes lembrança sonhada que a verdade do querealmente foi… Tu sempre foste a avó malcomportada; e de noite tu não rezavas como outra avó.Corroías a tua memória em vinho como quemtempera as lembranças gastas e procuradar-lhes sabor.Quando morresses eras para ser sepultadacom um pipo para que não te faltasse alegriano outro mundo.Foi assim que descobri que não é precisorezar a deus para se acreditar na vida eterna.

A avó mal comportada e a avó bem comportada (texto)

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A avó mal comportada e a avó bem comportada, 2009texto dactilografado

A avó mal comportada e a avó bem comportada

Não te conheço e tudo o que recordo são ficções imaginadas para que fosses mais que um vulto pesado na minha memória consumida.Imagino que estejas em tua casa e que o cheiro das coisas te consuma por jánão poderes nomeá-las com clareza. Como tu, tudo à tua volta envelheceu e a doença foi tolhendo a forma das coisas até que agora é o vazio que toma o lugar do que antes existia. E o vazio dói. Mas não o vazio de coisas que não existem mas sim daquelas que não permaneceram. Imagino que tenhas umas mãos velhas e usadas, e da mesma forma que os meus pés são sozinhos um com o outro na minha cama, as tuas mãos são sozinhas uma com a outra na tua solidão.Sempre conheci a avó mal comportada, que insistia em calçar meias de lã grossa nos chinelos e tinha cabelo como quem tem uma tempestade na cabeça. Como quem não sabe o lugar próprio daquilo que sente e isso transbordasse para fora de si. Tu eras como o túmulo das pessoas à tua volta porque sempre te conheci pelas palavras fétidas de vinho que andavam lado a lado com a tua presença. E o teu silêncio era teimoso contigo e insistia em ir calado para onde fosses. E sei que não gostavas. Tudo o que entre nós existe é esta forma de falar em que eu escrevo, sem tu saberes, uma memória ressequida de ti. E lamento não saber mais e tudo ser esta mentira.Quando te amaciavam o cabelo e te compunham e te tiravam o penico de louça que, com tanta devoção, te acompanhou toda a vida nas viagens que fizeste, tu ficavas triste. E não era triste como quem chora, era triste como quem lamenta ter tido asas uma vida inteira.

Quando era pequena desejava ser como a avó que dormia e falava sozinha como quem falava com Deus.Jesus, pensa em mim quando vou dormir e guarda a minha alma nas tuas mãos para que, quando acorde, ela já não me pese. Rezo a ti a alma de todas as pessoas que conheço, mortas e vivas, não sei se por esta ordem, e encomendo os seus pecados para que sejam lavados. Na manhã seguinte tenho os pecados limpos, mas não deixam de ser pecados.Tinha medo daquela lista enorme de nomes que desfilava e escorria da sua boca para a minha almofada. E eu tentava lembrar-me das Ave-marias que me pudessem salvar daquela inundação de almas que se contorciam para caber no meu lado da cama. E ela continuava imune ao medo imenso que eu tinha de um dia ser apenas nome nessa lista e houvesse alguém que todas as noites rezasse para que eu vivesse em paz, comida por vermes e pó, debaixo da terra.

A memória de um lugar é o espaço que sobra entre a existência do que lembramos e aquilo que desejávamos ser verdade.Entre as duas avós da mesma pessoa e a outra avó que rezava como quem falava sozinha existia um fosso profundo que só existe quando não há nada que possa preencher o lugar que ambas não ocuparam para chegar uma à outra.

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Preciso falar dos silêncios, 2011 (lnstalação, Galeria do IPSAR, Roma)caderno escolar, texto dactilografado, recortes da Necrologia do Jornal de Notícias, fita-cola, mesa, cadeira, candeeiro, lista de nomes recortados

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Preciso falar dos silêncios

Todas as histórias são feitas de silêncios que guardam fundo as palavras. Guardam duro a memória de um algo que persiste quase ancestralmente. Penso que fomos guardando por dentro ao longo da vida os silêncios que nos definem…o silêncio da dor, o silêncio da ausência, o silêncio do medo, o silêncio da vergonha. E o silêncio da morte. Quando penso nas pessoas não me consigo furtar a estes silêncios, quase como se fossem mitos imortalizados na nossa natureza.Há pessoas que têm medo do silêncio dos que amam, as que receiam o silêncio dos que odeiam. Eu tenho medo dos silêncios dos que ignoram, dos que não se compadecem, dos que estão ausentes.Os que nos amam têm silêncios doces, os que nos odeiam não conseguem ter silêncios porque estão sempre pesados, mas os que estão ausentes têm sempre um silêncio duro que caminha a par do nosso.Faz-me pensar muito nas palavras que não dizemos e esperamos ter sempre um tempo eterno para as dizer. Mas as pessoas partem, e deixamos de saber se nos ouvem. Porque a vida eterna que nos prometem não parece ter palavras.

Texto presente no caderno da obra anterior

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jjj

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A sobrinha da Tia BeatrizQuarenta e sete anos. Esta é a distância entre a infância da sobrinha da Tia Beatriz e a minha própria infância. A minha casa, a casa dos meus olhos, a casa das paredes por mim riscadas vezes e vezes sem conta, a casa onde os sonhos foram meus e de meus irmãos, os três sentados, as roupas inúmeras vezes cosidas e as palavras, também assim, remendadas pelas mesmas mãos.Antes de mim, a sobrinha da Tia Beatriz. Não conheci a Tia Beatriz mas ouvi, da boca gasta da sua sobrinha, que existiu uma Tia Beatriz. A senhora viveu na minha casa e a sobrinha brincou nos mesmos canteiros de terra que eu, regou plantas iguais às plantas que eu reguei, carregou pintos ao colo e também ela lhes deu nomes incompatíveis com a sua condição – as galinhas são para se comer, tantas vezes ouvi enquanto as lágrimas me engulhavam na garganta.

Tempo emprestadoQuando penso na mesa à qual me sentava aos seis anos para jantar ainda conto cinco pratos pousados; vejo a caneca de plástico azul que partilhava com os meus irmãos, a toalha castanha com renda banca, roída, a debruá-la, e as mãos grandes, multiplicadas, imensas, de minha mãe.Sou capaz de recuperar este momento milhares de vezes, de olhos abertos ou fechados, mesmo que as palavras não me cheguem para sustentar o seu peso.Esta presença da Pessoa sobre as coisas acontece para devolvê-las a uma outra existência, um tempo emprestado à memória e àruína daquilo que foi vivo. Ver é resgatar desse silêncio, ver é olhar de dentro para fora e falar de fora para dentro.

Não há nada que seja tão diverso como a natureza humana; todos somos de tamanhos e feitios diferentes,tanto na parte de fora como na parte de dentro.Passei muito do meu tempo a tentar perceber o que é ver. Ver realmente, para lá das camadas de pele e músculo das coisas. Passando as veias, artérias e órgãos. Até chegar a algo parecido com uma alma. Durante esse longo processo, que há-de durar mais que a minha vida inteira, permito-me desejar que esse ver não seja só científico ou técnico ou intelectual. E que não seja apenas com os olhos, mas que possa usar os ouvidos, e as mãos, e a boca. E possa cheirar as coisas para as ver, e sentir-lhes o sabor em toda a pele. Que ver seja um acto sensual, que seja para além do cérebro e da razão, mas que estes o reconheçam.As demais palavras fomentam essa necessidade de perceber que as coisas, na sua integridade, têm de ser vistas e sentidas de todas as formas possíveis, e até impossíveis. (Porque sonhar as coisas e para elas desejar é também vê-las.)

Textos presentes no caderno da obra anterior

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Sem título, 2011texto dactilografado, 1 fotografia e fita-cola

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Tempo emprestado, 2011 (instalação, Galeria do IPSAR, Roma)30 fotografias e letras de vinil

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O tempo desagrega tudo, 2008 -2011(instalação, Galeria do IPSAR, Roma)5 textos dactilografados, 6 fotografias, fita-cola e fotocópias das obras expostas

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O tempo desagrega tudo

D. Alice

O tempo desagrega tudo.

O tempo manda a poeira cobrir as coisase parte os cântaros nas casas.A água deixa de secar a sede, a água éde barro e o barro é pó.Os pés deixam de andar e os caminhosde ser caminhados. E vem o tractor e semeia nos carreiros e a memória esqueceo que lá existiu.As fontes são monumentos e não dão de beber.O tempo parte tudo e a memória esquece o que viu.

A Dona Alice agora é uma vinha, já foi erva daninhaAlice já foi pó, antes e depois foi carne.

O tempo desagrega tudo.

O tempo desagrega tudo

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D. Alice

As crianças eram como meninos Jesuscom um ranho contínuo a correr pelosbibes. Sentavam-se nas pedras junto ao riodesmanchando, sem malícia, os sapos e rãs que encontravam.Quando era o tempo das festas tinhamberlindes dos meninos que vinham da cidade.Os dias passavam, sempre uns atrás dos outros,porque o tempo não anda ao contrário.Quando fossem grandes iam aprender a serhomens. As meninas continuariammulheres, não tinham de ir aprender.

O tempo desagrega tudo

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O tempo desagrega tudo

D. Alice

“Apagaste essa candeiaQue estava no veladorApagaste essa candeia Que estava no velador

Agora vai-te deitarÀs escuras, meu amorAgora vai-te deitarÀs escuras, meu amor.”

O tempo desagrega tudo

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D. Alice

Quando findou o tempo, D. Aliceque já era velha, prestou as suase disse de sua vida.Era nova naquele tempo e gostava decantar. Era moça.

“Anabela era linda e formosuraEra a moça mais bonita em todo o monteCerta noite muito fria muito escuraPegou na cantarinha e foi à fonte

Ao regressar a casa essa belaNa fonte junto à azenha do moinhoApareceu um lobo junto delaTapando-lhe a passagem do caminho

E os lobos nem sequer se incomodaramParece que eles até murmuraramQue bela rapariga aqui passou

Se os lobos fossem homens, eu sei láTalvez se não pudesse arrependerQue a tentação da carne é muito máE há homens que são loucos por prazer.”

O tempo desagrega tudo

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O tempo desagrega tudo

os dias de antes de ontem

Naquele tempo não nos podíamos atrasar para jantar, seis e meia em minhacasa. Meu pai chegava do seu ofício, como lhe chamava, e vinha sujo e suado.Antigamente chamavam-lhe arte ao acto de produzir estes objectos de uso diário.A água era fresca no barro, não havia frigorífico.As coisas tinham outro sabor.

O tempo comeu a memória das coisas. Não há quem possa lembrar a presença quetinha o trabalho na vida das pessoas. O tempo existia para ser permanentementeocupado por tarefas, obrigações e havia o prédio para cuidar.Ao Domingo havia romaria, depois de todos os pecados perdoados nas orações damanhã.

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Comunhão, 2010Ponta-seca e Água-tinta sobre papel

Rosa Maria, 2010Ponta-seca e Água-tinta sobre papel

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Caderno a dois retratos, 2009Instalação – Sala das máquinas da Garagem MaiautoDesenho a giz, ponta-seca e água-tinta sobre papel

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Desde pequena… ensinaram a orar por um anjo da guardaque nos está destinado desde o primeiro ao último dia devida.O anjo será tradicionalmente loiro carnudo, ocidental, criançairrequieta brincando aos índios com Jesus, amigos desde ainfância do mundo.A oração fala sempre da voz profunda mão funda que embalao sono e o medo de não acordar.Protegei-me anjo da guarda…Deus fez-nos assim, barro dos barros, lama das lamas.Vertebrados. Cientes da morte e tão cheios de esperança.Cobardes.À sua imagem e semelhança.Odiamos porque Deus odiou e Deus é o nosso ódio dirigido. É termos de ser perdoados a toda a hora por um Deus quenos quis demasiado. Filhos pródigos.Que nos prometeu a vida eterna sob o signo do Pai casmurroe silencioso, do Filho escavado na cruz e do branco e burropombo que é o Espírito Santo.E assim, Deus fez-nos ávidos de sangue, do seu filho emsangue… do amor impossível, da redenção da carne, do seufilho em sangue.Corpo de Cristo, este é o sangue do meu filho.Tomai e bebei-o!Deus pariu a discórdia entre os homens porque os fez iguais aseus olhos.Se Jesus não tivesse morrido e se transformado em imagemcravada na cruz, lenho pendurado no prego por cima daporta, Jesus estaria no céu.

Herança, 2006Instalação, Calçada de Monchique

MDF, papel autocolante, frascos de vidro, sangue animal, tecido, elásticoTexto do catálogo da exposição 10 artistas licenciados à procura de emprego,Calçada de Monchique, Porto

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Arquivo, 2005Instalação – Centro Comercial Alexandre Herculano

Fotografias, cadernos, álbuns, textos, mesas e outros objectos

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Cadernos, 2005Cadernos escolares, fotografias, fita-cola e outros objectos

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O lugar da memória é o lugar onde as pessoas se ocupam daquilo que as faz viver.Há um lugar que é constantemente redefinido pelas acções de quem o ocupa. Resistência perante a passagem do tempo. As obras apresentadas de seguida questionam o espaço enquanto construção colectiva, que se faz pela operacionalização das memórias e dos actos quotidianos. Espaço público é aquele que pertence à nossa esfera de referências, do qual partilhamos uma história e no qual somos história e memória desses lugares. O espaço onde nos é permitido acontecer.Importa, mais uma vez, a génese ética e política do gesto de criação, na definição de um espaço de acção que põe em evidência as fracturas do contemporâneo – que nos fala do resíduo, do fragmento, da periferia por oposição a um centro, que nos narra o inexprimível, o silêncio e seus ruídos.

A efemeridade e o precário como condição do contemporâneo.(nada permanece mais do que o tempo exacto da sua existência. Importa reflectir que presença é essa, que se materializa e desmaterializa por evocação da memória)

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Oferece-se, 2003Intervenção no espaço público, Porto

Tinta, stencil, cola, cartazes

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Lembras-te de mim?, 2003Intervenção no espaço público, Porto (Rua Duque de Loulé)

Papel autocolante, tinta em spray

Sussurrei-te… perto e sem palavras, 2004Intervenção no espaço público, Porto

Papel autocolante, tinta em spray

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El carpio, 2004Instalação no espaço público, El C

arpio, EspanhaC

artazes da Semana Santa, papel dourado, letras decalcáveis, papel m

anuscrito, cola

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Cidade de Boas Festas, 2004Intervenção no espaço público, Porto (Campo 24 de Agosto)

Impressão digital 3mx4m, cola

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Cidade de Boas Festas, 2004Intervenção no espaço público, Porto (Campo 24 de Agosto)Impressão digital 3mx4m, cola

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Sopa dos Pobres, 2005Intervenção no espaço público, Porto

Cartazes, cola

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Vivenda Silva, 2005Intervenção no espaço público, Porto

Azulejo, tinta de vidro azul e amarela, cola

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A arte é uma ferramenta para mudar o mundo, 2007Intervenção no espaço público, Porto

Caderno de textos, stencil, tinta em spray

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A arte é uma ferramenta para mudar o mundo, 2007Intervenção no espaço público, Porto

Caderno de textos, stencil, tinta em spray

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Nós portugueses, 2009Intervenção no espaço público, Maia

Impressão digital

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