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    Filosofia, histria e sociologia das cincias I:abordagens contemporneas

    Vera Portocarrero

    org.

    SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros

    PORTOCARRERO, V., org. Filosofia, histria e sociologia das cincias I: abordagens

    contemporneas [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 1994. 272 p. ISBN: 85-85676-02-7.

    Available from SciELO Books .

    All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution-NonCommercial-ShareAlike 3.0 Unported.

    Todo o contedo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, publicado sob a licena Creative Commons Atribuio -Uso No Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 No adaptada.

    Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, est bajo licencia de la licencia Creative Commons

    Reconocimento-NoComercial-CompartirIgual 3.0 Unported.

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    F I L O S O F I AH I S T R I A E S O C I O L O G I AD A S C I N C I A S I :bo rdagensCon temporneas

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    F U N D O O S W L D O C R U ZPresidente

    PauloMarchiori BussVice-Presidente de Desenvolvimento Institucional,Informao e ComunicaoPauloGadelha

    EDITOR F I O C R U ZCoordenador

    PauloGadelhaConselho Editorial

    Carlos E .A. CoimbraJr.Carolina M. BoriCharles PessanhaJaime L BenchimolJosda Rocha CarvalheiroJosRodrigues CouraLuisDavid CastielLuizFernando FerreiraMariaCeclia deSouzaMinayoMiriamStruchinerPaulo AmaranteVanizeMacdo

    Coordenador ExecutivoJoo CarlosCanossa P.Mendes

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    F I L O S O F I A ,H I S T R I A E S O C I O L O G I AD A S C I N C I A S I :b o r d a g e n s C o n t e m p o r n e a s

    V E R A P O R T O C A R R E R O(Organizadora)

    Segunda reimpresso

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    Copyright 1994 dos autoresTodososdireitosdesta edio reservados F U N D A O O S W A L D O C R U Z / E D I T O R A

    I S B N :85-85676-02-7

    1 a Ed io :19941 a Reimpresso:19982 a Reimpresso:2002

    ProjetoGrfico eC a p a :Ruben FernandesIlustrao daC a p a : ChicoGomes CarneiroReviso:MarcionlioCavalcante dePaivaSupervisoEditorial:WalterDuarteReviso1 a Reimpresso:Fernanda VeneuEditorao Eletrnica 1 a Reimpresso:Guilherme Ashton

    Catalogao-na-fonteCentro de Informao Cientfica e TecnolgicaBiblioteca Lincoln de Freitas FilhoP8535 Portocarrero, Vera (Org.)Fi losof ia,histriae sociologia das cincias I: abordagens contemporneas/Organizado porV eraPortocarrero. Rio deJaneiro:EditoraF I O C R U Z , 1994.272p.

    1. Cincia - Histria. 2. Filosofia. 3. Sociologia. 4. Pe s q u i s a dores. 5. Conhecimento. I. Ttulo.

    C D D - 20.ed. - 5002002EDITORA F IOCRUZA v.Brasil, 4036 - 1 andar - sala112 - Manguinhos21040-361 - Rio de Janeiro - R JTels: (21) 3882-9039 e 3882-9041Telefax: (21)3882-9007http://www.fiocruz.bre-mail: [email protected]

    mailto:[email protected]://www.fiocruz.br/
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    AGRADECIMENTOSAgradecemos atodos aqueles que de diferentes maneiras contriburam

    para a realizao destetrabalho. Em especial : Tania Fernandes C hefe do Departamento de Pesquisa da Casa de Oswaldo Cruz/FIOCRUZ; Maria Rachel Fres eMarcos ChorMaio pesquisadores da COC/FIOCRUZ; Elaine Kabarite estagiria;Chico G omes Carnei ro artista plstico. Agrad ecem os sob retudo atodos os co-autores sem cuja participao esta obra seria impossvel.

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    PREFCIOdinmica e aspossveisinteraes dasc incias,da filosofia em geral, da epis

    temologia em particular e da histria das cincias consistem num dos maisimportantes temas do debate intelectual contemporneo. A imagem de um tetraedroproposta recentemente pelo filsofo francs Michel Paty uma das possibilidades de express-las,acentuando que cadauma daquelas reas de conhecimento, representada pelos vrtices dotetraedro,se relaciona e se enriquece nocontato com as outras, mas sempre de maneira peculiar e assimtrica. O tetraedro, ecltico, preserva os espaosde cadadisciplina e ressalta a riqueza de suacombinatria.

    indiscutvel a vitalidade dessas interaes, mesmo quando prevalece aradicalidade de alguns autores e suas intenes de hegemonia. Podemos citar,como exemplo, a crtica ao neopositivismo e filosofia analtica, j expressivano s anos 20. Entre outras polmicas presentes naquele contexto, destaca-seaquelaque, ao opor "internalistas" e "externalistas", possibilitou umfrutferoencontro de filsofos, cientistas, socilogos e antroplogos com desdobramentosat nossos dias.

    A representao de uma ao sinrgica e relativamente harmnica em umcampo de diversidades traduz, por sua vez,a complexidade dos fenmenos estudadose remete disputaentredisciplinas e abordagens que resultam em sucessivosdeslocamentos na filosofia do conhecimento, na epistemologia, na sociologia e na etnocincia.

    Nossos tempos demonstram, ainda, expressiva contribuio das cinciassociaisapartirda dcada de 60, quando, com destaque para a obra de ThomasK u h n ,se evidenciou a rupturacom a viso da cincia como sistema autnomode produo de verdades. Entre outras contribuies que sucederam a de Kuhn,destacam-seas postulaes do Programa Forte, a anlise de controvrsias, o desenvolvimento das abordagens antropolgicas e os estudos que propem apreender em uma mesma dinmica o universo dos artefatos e dos homens. Autorescomo David Bloor, Harry Col l ins,Steve Woolgar, Cal lon,Bruno Latour, Shapin eSchafferso destaquesdesseprocesso, a maioria deles de introduo recente emnossoscursos de ps-graduao e pouco conhecidos pela academia.

    Este ofrutodo trabalho de filsofos, historiadores e cientistas sociais que sedebruaram sobre a obra de autores clssicos,assim como a de representantes deabordagensrecentes e inovadoras sobre o tema. Estaescolhapermiteuma rara visodeconjunto em que otetraedroidealizado por Paty parece materializar-se.N o se pretende uma apresentao exaustiva das diferentes abordagens,nem uma resenha sistemtica do conjunto da obra dos autores selecionados,

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    mas sim um exerccio instigante de leituras originais e tematizao de questesque certamente suscitaro novos debates. Os autores realizam uma dupla tarefade divulgao e produo de conhecimento, sem dvida, a melhor demonstraoda vitalidade que se anuncia para esta rea.O lanamento deFilosofia, Histria Sociologia das Cincias I: abordagenscontemporneas traz, portanto, mltiplos significados. Representa, entre outrosindicadores, o crescimento e a profissionalizao da rea de histria das cinciasem nosso pas,que acompanha, ainda distncia, seu impressionante desenvolvimentoemmbito internacional.

    A o comentar os resultados do Congresso Internacional de Histria daCinc ia , realizado em 1968, em Paris,Mirko Grmek destacava duas diferenasmarcantes em relao ao primeiro encontro desse gnero, tambm na capitalfrancesa, em 1929: a exploso demogrfica - de 40 pessoas e 10 pases para800 pessoas e 40 pases - e, maisimportante,a grande diversidade do temrio,abertoa todas as cincias e abordagens. No ano passado (1993), em Zaragoza,oX IX Congresso Internacional de Histria da Cinciarefletiua consolidao dessatendncia, chegando a inquietar pelo seu gigantismo: inmeros participantes detodos os cantos do mundo envolvidos em uma estonteante diversidade de temas.

    Em nossopas,os sinaisfinalmentecomeam a ser animadores. H um crescente interesse que serefletena maior participao nos seminrio da SociedadeBrasileira de Histria daCincia, no aumento de publicaes, inclusive de novos peridicos,a exemplo do lanamento recente deHistria,Cincias, Sade- Manguinhos,ena incluso de temas de histria das cincias em cursos de ps-graduao.

    Filosofia, Histria e Sociologia das Cincias I: abordagens contemporneas fruto, tambm, de diretrizes institucionais. significativo que este livro tenhasido escolhido para integrar o lanamento da Editora da Fundao OswaldoCruz.A FlOCRUZ elegeu a reflexo abrangente sobre as cincias como umaprioridade que se tem traduzido em diversas iniciativas de suasunidades tcnico-cientficas. H uma clara conscincia na intuio sobre a necessidade dessa reflexono apenas para as atividades acadmicas, mas para a prpria compreenso dosentido de seuprojetoe insero social.

    P or meio da Casa de Oswaldo Cruz, esseesforo tem se concentrado nocampo da histria das cincias em todas as dimenses indispensveis para a consolidao de uma rea de estudos: a pesquisa, o ensino e a circulao de idiaspor seminrios e publicaes que nos permitem, hoje, reunir pesquisadores dediferentes instituies do Brasil e do exterior para a concluso de uma obra detal porte. Esto aqui concretizadas experincias adquiridas e cursos de ps-graduao do Instituto Universitrio de Pesquisasdo Rio de Janeiro, em cooperaocom os Institutos de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Federal doR io de Janeiro e de Cincias Humanas da Universidade Federal do Rio Grandedo Sul, em trocas acadmicasduranteos seminrios da Sociedade Brasileira de

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    Histria da Cincia e da Tecnologia e no convvio com os pesquisadores da Unidade 158 - Savoir et Pratiques dans le Champ Mdicale: Histoire, Sociologie,Psychanalise- do InstitutNationale de Recherche Mdicale ( I N S E R M ) , que mantm um acordo de cooperao com a Casa de Oswaldo Cruz. Ao refletir sobreestasexperincias, estamos certos de queFilosofia, Histria eSociologia das CinciasI: abordagens contemporneas uma obra madura e equilibrada, que setornar referncia obrigatria para cursos de graduao e ps-graduao, alm dese destinar a um pblico qualificado, cada vez mais interessado em entender asgrandeslinhas queorientamo debate acadmico sobre a histria das cincias.C o m oottuloindica, esteprojeto prev o lanamento de um novo nmero, dedicado apresentao de estudos de casos.O futurodirecionamento paratemas da rea biomdica, que refletea insero institucionalda Casade Oswaldo Cr u z , levar em conta a necessidade de pensar o campo da histria das cincias como um todo. Basta lembrarmos a relevncia dos trabalhos de F leck,Can-guilhem, Foucault, Kuhn ou a riqueza de produes recentes de FrancoisDelaporte, liana Lwy, Anne Maria Moulin e Bruno Latour,entre outros. Ao focalizarem temas da rea de sade,contribuem terica e metodologicamente para osestudos sobre as cincias em geral. A reflexo sobre a cincia biomdica e a sade pblica, por fora de seuobjeto, tradicionalmentepolarizado entreo ideal dacincia pura e as demandas de uma prtica social, tem sido um constante estmulopara questionar asabordagens reducionistas.

    Finalmente, gostaramos de destacar que, se o projeto incorpora tantasmarcas institucionais, , sobretudo, a traduo da competncia acadmica, dadedicao e daartede congregar esforos de Vera Portocarrero, a quem expressamostodoo nosso reconhecimento.

    PauloGadelhaDiretordaCasade OswaldoCruz

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    COLABORADORESF R A N O I S D E L A P O R T EProfessor de F ilosofia daUniversidadede P icardie.V E R A P O R T O C A R R E R OProfessoradeFilosofia daUniversidadedo E stado do R io de Janeiro.

    N A R A B R IT T OPesquisadora daCasade Oswaldo Cruz/Fundao O swaldo Cruz.M A N U E L P A L C I O SProfessor de S ociologiadaUniversidadeFederaldeJuizdeFora.Pesquisador doInstitutoUniversitriodeP esquisado R io de Janeiro.G I L B E R T O H O C H M A NPesquisadorda Casade Oswaldo Cruz/Fundao O swaldoCruz.A L B E R T O O L I V AProfessor de F ilosofia daUniversidadeFederal do R io de Janeiro. Pesquisador do ConselhoNacional deDesenvolvimento Cientficoe Tecnolgico.A N N A C A R O L IN A K R E B S P E R E I R A R E G N E RProfessora de Filoso fia daUniversidadeFederal do R io G rande do S ul.L U I Z O T V IO F E R R E I R APesquisador da Casade Oswaldo Cruz/Fundao O swaldo Cruz.P rofessor de S ociologia daUniversidadedo E stado do R io de Janeiro.N S I A T R I N D A D E L I M APesquisadora da Casade Oswaldo Cruz/Fundao O swaldo Cruz.P rofessora de Sociologia daUniversidadedo E stado do R io de Janeiro.I L A N A L W YPesquisadora eProfessora deHistriadaCincia doInstitutNacional de la Santetde laR echercheMdicale.

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    SUMRIOP R E F C I O 7Paulo GadelhaI N T R O D U O 17VeraP ortocarreroC A P T U L O I 23A H I S T R I A D A S C I N C I A S S E G U N D O G .G A N G U I L HE MFranois D elaporteC A P T U L O 2 43F O U C A U L T : A H I S T R I A DO S S A B E R E SE D A S P R T I C A SVeraPortocarrero1. Uma H istria de Verdade1.1. A histriaarqueolgica1.2. A histriagenealgica2.U ma P olticadaVerdade2.1. Verdadeepoder2.2. O poderdisciplinar eobiopoderC A P T U L O 3 67K U H N : O N O R M A L E O R E V O L U C IO N R IO N A R E P R O D U O D A R A C I O N A L I D A D E C I E N T F I C AAlberto Oliva1. Kuhn eo D iscurso E pistemolgico T radicional2.Cincia:apesquisasobabatutade um paradigma3.A CinciaNormaleaReproduo doConsenso4.A R ota paraaCrise5.A Natureza do Discurso Cientfico: airrupodo dissensoC A P T U L O 4 103F E Y E R A B E N D / L A K A T O S : " A D E U S R A Z O " O U C O N S T R U O D E UM A N O V AR A C I O N A L I D A D EAnna Carolina Krebs Pereira Regner1. Alcance Epistemolgico daHistriadasC incias:oquestionamentoda "racionalidade"2.A Proposta "R acionalista" de Lakatos3.A CrticadeFeyerabend ao "Nacionalismo"4. "Adeus Razo"ou "PrincpiosdeRacionalidaderadicalmenteDiferentes"?

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    C A P T U L O 5 133O S I N T E L E C T U A I SNO MUNDO E O MUNDOD O S I N T E L E C T U A I S :UMA L E I T U R A CO M P A R A D A D E K A R LMANNHEIM EP I E R R E B O U R D I E ULuiz Otvio Ferreira e Nara Britto1.P ossvelumaSociologiado Conhecimento?

    2.Educao Escolar:desenraizamento ou autarquizao dointelectualC A P T U L O 6 151V A L O R E S S O C IA I SEA T I V I D A D E S C I E N T F I C A S :UMR E T O R N O A G E N D A DER O B E R T M E R T O NNsia Trindade Lima1. NotasobreaproduointelectualdeRobertMertonesuainfluncianasociologiadacincia2.IntelligentsiaeValidade do Conhecimento: acrticaaMannheim3.As Contribuies deRobertMerton SociologiadaCincia4.Merton eo Debate Atual emSociologiadaCinciaC A P T U L O 7 175O P R O G R A M A F O R T EDAS O C IO L O G I A DOC O N H E C I M E N T O E OP R I N C P I O DAC A U S A L I D A D EManuel Palcios1.O Programa FortedaSociologiado Conhecimento eo PrincpiodaCausalidade2.ModeloCausal eModeloTeleolgico2.1.Princpios universaisderacionalidade

    2.2.A falciadacausalidade2.3.A indeterminao dasvariveis sociais3.OProgramaForteeaT eoriados Jogos deL inguagem deWittgenstein3.1. Ateoriadosjogosde linguagem deWittgenstein3.2.Uso esignificado3.3. Jogosde linguagemepadres de atividade3.4. Finitismo3.5.Aplicao conceituai: rotinizao einovao4.InteresseseConhecimento4.1.Finitismo einstrumentalismo4.2.Formas de vidaejogosde linguagem

    C A P T U L O 8 199A C I N C I A E N T R E AC O M U N I D A D E EO M E R C A D O : L E I T U R A S D E K U H N , B O U R D I E U , L A T O U R EK N O R R - CE T I N AGilberto Hochman1. Kuhne aComunidade Cientfica como Unidade Analtica2.Bourdieu ProcuraaComunidade CientficaeDescobreo Mercado

    3.Latour VaiaoLaboratrio eEncontra o Ciclo de Credibilidade4.Knorr-Cetina VaiaoLaboratrio eEncontraaArena Transepistmica5.ConsideraesFinais

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    C A P I T U L O 9 233F L E C KE A H IS T O R I O G R A F IA R E C E N T EDAP E S Q U I SA B I O M D I CAIlana Lowy1. Historiadores,SocilogoseLaboratrios Biomdicos2.Flecke aHistoriografia do Laboratrio BiomdiconosAnos 303.Historiografia do Laboratrio BiomdicoHoje:gnese,estabilizaoedifuso doconhecimento biomdico3.1.Instrumentos,reagentesepadronizaodo conhecimento local aos"fatos cientficos"3.2.Laboratrios biomdicos,clnicaseindstria: formaomtuademtodosefatos4."Objetos Fronteirios","Conotao","Tradues"e"Z onasdeN egociao": instrumentosdeaferioparaahistoriografiadapesquisabiomdica

    B I B L I O G R A F I A G E R A L 251 N D I C E R E M I S S IV O 263

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    I N T R O D U O

    Panorama do DebateacercadasCinciasVeraPortocarrero (org.)

    Temosassistido, nos ltimos anos,a um debate sobre os diversos aspectos queconstituem o que se compreende por c incia.Toma-se como pontode partida a necessidade de repensar o otimismo ientificista, acirrado no sculo XX,com o positivismo, pelo ideal de unidade, objetividade, progresso e, sobretudo, pelanoo de verdade cientfica como bem social. Supe-se clara a meta de compreender a cincia, entender su aevoluo, sondarsuasorigens, abordar suascrises,denunciar seu carter de violncia e de dominao da natureza e dos homens.Seu maior desafio agora no dominar, mas salvaguardar o mundo.A cincia hoje uma questo que preocupa cientistas e intelectuais, apresentando-se-nos, talvez pela primeira vez, desde Galileu, no mais apenas comoadjuvante do trabalho, da sade e dasluzes,mas como risco.Jno se discutemas revolues cientficas restringindo-as a seu carter metodolgico, como se oscientistas fossem os trabalhadores da provastricto sensu, os trabalhadores meticulososda boa conscincia.Considera-se a cincia uma das maiores fontes de patologia e mortalidadedo mundo contemporneo, sobretudo depois da Grande Guerra. Enfatiza-se suaconstituio tica e social, sejapara desmitificar sua pretenso neutralidade, sejaparaapontar o perigo que representa e a responsabilidade poltica de que deve estarinvestida. A cincia apresentada como umaimportanteforma de poder, sobretudoemsu arelao com a alta tecnologia que hoje conhecemos.Reiv ind ica - s e, c adavez mais, a superao de todas as dicotomias sobreas quais se funda o cientificismo, tais como conhecimento e poltica, cinciaesociedade, teoria e prtica, razo e poder, sujeito e objeto. A epistemologiaj no o espao exclusivo da anlise da racionalidade e da linguagem, masest inteiramente imiscuda com as questes cientficas.A noo de ato epistemolgico no correponde maisnecessriaou exclusivamente aocogitocartesiano, pois a cincia compreendida como produo

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    tcnicade objetos cientficos construdos. Ela , destepontode vista, construode umobjeto depurado cientificamente por um sujeito que social,estabelecido atravs da comunicao e do controle.

    Afastado da mstica cientificista, tal enfoque tenta mostrar que, ao tomar a descrio do fenmeno como o prprio fenmeno, podemos determinar, ou melhor, alcanar pontos estveis - "cientficos" - a partir da transform a o de fatos em artefatos, que funcionam na prtica; rejeita-se, ento, aoposioentre ofatoobjetivo e sua descrio cientfica.

    Contra a perpetuao irrefletida de tais binmios, busca-se recuperar acriatividade num esforo inter, intraou trans-disciplinar, rejeitando os procedimentos da repetio, cpia ou representao, uma vez que estes,fragmentrios,perderam a possibilidade da totalidade ativa do saber.

    Contratododogmatismo, impe-se a pesquisa histrica das cincias.T o m a -secomopontode partida anecessidadede analisarsuastrajetrias, noselimitandomaisao plano das idias. Um nmero significativo de historiadores, filsofos e socilogosdesenvolveu, nos ltimos vinte anos,um interesse crescente pela cincia nos como teoria, mas como prtica social,econmica e poltica e como fenmenocultural, ultrapassandosuacondio de sistema terico-cognitivo.

    Novasabordagens analisam ainda, para alm destas, as prticas de laboratrio,constituindo umcorpusde observaes sobre estas atividades a fim de integrar todos os aspectos do fazer cincia, com o objetivo de compreender suacomplexidade, atravs da presena do trabalho emprico na revoluo cientfica,considerada,nolimite,revoluo das mos mais do que das idias.Este interesse deve-se observao das prticas experimentais, que, nacincia moderna, localizam-se no laboratrio. A nova histria estuda as prticaslocaise sua insero social, relacionando-as com os instrumentos, os materiais,os conceitos e o saber, para afirmar su a multifuncionalidade.Desdesua fundao no sculo X V I ,a cincia moderna vem sendoobjetode investigao. Primeiramente, atravs das "teorias do conhecimento", em seguida, pela "filosofia da cincia", mais tarde pelas "epistemiologias lgicas" e "histricas", ou, mais contemporaneamente, pela "histria da cincia", que reneabordagenshistricas, filosficas e sociolgicas.A s "teorias do conhecimento" pesquisam os processos de produo deconhecimento pelo sujeito cogonoscente, na tentativa de explicar a relaoentre o sujeito que faz cincia, o objetode conhecimento e o "desvelamento", a "representao" ou a "produo" da verdade cientfica; como o fez D e s cartes, por exemplo, numa perspectiva idealista e racionalista, na F r a n a ; ouHume e L o c k e , numa perspectiva realista e empirista, na Inglaterra; ou, maistarde, Kant, ao buscar as condies de possibilidade do verdadeiro conhecimento, atribuindo-as s categorias apriori do sujeito transcendental.

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    Nestes casos,discute-se a cincia questionando-a do pontode vista destasoposies (racionalismo x empirismo ou idealismo x realismo), com oobjetivo dedeterminar as faculdades do sujeito e sua capacidade de produzir representaessuscetveisde objetividade. Afirma-se que o conhecimento cientfico produzidopreviamente naepela razo,mesmo que tenha de recorrer experincia emprica;ou que produzido apartirdo dado emprico, mesmo que, num segundo momento sejaelaborada pela razo. De umextremoaooutro,gradientesforamestabelecidos,como por exemplo a noo de "racionalismo aplicado" de Bachelard.

    O interesse por tais questes desenvolveu-se, por um lado, at nossosdias, numa perspectiva lgica, principalmente apartirda filosofia da linguagem,deWittgensteina Quine; elavisaao estudo e construo da linguagem cientfica, assim como investigao sobre as regras lgicas necessrias ao enunciadocientfico correto.

    P or outro lado, desde Comte, no sculo X I X ,a questo cincia no maisse limitas anlises dos processos cognitivos. H um deslocamento para uma filosofia fundada na histria da cincia e sua relao intrnseca com o progresso dasociedade e da humanidade. Em Curso de Filosofia Positiva, a cincia compreendida como umateoriaque progride no sentido de uma unidade geral, parauma verdadefinalmentepositiva, sendo sua gnese racional e psicossociolgica.A s anlises das epistemologias lgicas fundadas na filosofia da linguagemforam retomadas pela sociologia do conhecimento, inspirando, nos anos 70, ochamado "Programa Forte de Sociologia".Com base na noo de construo lingstica como construo convencional, indissocivel dos processos de interaosocialentreos indivduos e de suasnecessidades prticas, Bloor, Barnes eoutrosderivam a concepo de cincia desta noo de construo.

    A perspectiva construtivista, que inclui no somente a noo de linguag e m , mtodo e objeto construdos, mas tambm a idia de que a legitimaodosconhecimentos cientficos se constri social e historicamente, parece impor-secada vez mais no decorrer de nosso sculo.A reflexo sobre a cincia dirigiu-se tambm para avertentehistrica, desenvolvida at hoje, atravs das epistemologias, surgidas na dcada de 30, e de

    outras formas de histria da cincia propostas nosltimos vinteanos.Avessas ao dogmatismo unitrio, metodolgico e teleolgico da anlisecomtiana, posicionam-se as epistemologias de carter deliberadamente no-positivista, histrias crticas da cincia. Internalistas ou francesas, representadas porBachelard, Koyr, e Canguilhem, atm-se anlise da racionalidade cientfica;externalistas ou inglesas, representadas por Popper e Kuhn, restringem os estudosdacincia a explicaessociais,pressupondo que o carter real da cincia situa-separa alm de seu campo de investigao, isto , o contedo. Entre um extremo eoutro,encontraremos gradientes, cujo desafio sintetizar os dois aspectos.

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    Estasduas formas de pensar a cincia - internalista e externalista - implicam uma inviabilidade de dilogo, hoje consideradainfrutfera. Po is , paraa primeira, no serpossvel fazer histria da cincia, sem se considerarem oselementos propriamente cientficos; ao passoque para a externalista, o maisimportante a explicitao da produo cientfica em seus componentes sociais,sem o que o trabalho do historiador parecer absurdo.Deste modo, tanto em um caso como no outro,a cincia analisada apartirde umarupturaentrea comunidade e os contedos do conhecimento, deumareduo do social ao exterior das atividades cognitivas.

    Paraa "nova histria dascincias",a distino internalismo e externalismo - etodas as tentativas de sua sntese - so consideradas pouco produtivas e devem sersubstitudas por uma reflexo sobre as condies histricas da formao destas duascategorias- su agenealogia- com oobjetivode ultrapassar tal dicotomia.

    Justamentea concepo e o valor de cincia so surpreendentemente plurais.Vo desde sua compreenso como um sistema de conhecimento puramentetericoeneutroat a idia de cincia como prtica poltica. A cincia atribui-se ovalor de verdade objetiva, isenta de subjetividade e de interesses polticos - expressomxima da razo positiva situada do lado do bem, dastcnicas e dos remdios,continuamente salvadora- conforme ocorre tradicionalmente.A s tendncias mais recentes desenvolvem a noo de cincia contextual,contingencial, circunstancial, resultante da combinao de fatoressociaise econmicos.As vertentes contemporneas mais raciais conferem cinciaestatutosemelhante a outras manifestaes culturais como a religio e a arte, considerando-a umaprtica mais humana e mais catica do queseacreditava anteriormente. cincia pode-se, portanto, atribuir um valor de comprometimentopoltico, enquanto considerada uma rede de relaes de foras que no tmexistnciaem si, a no ser como sries de fatores externos sua constituiolgica,no implicando uma questo de racionalidade cientfica.

    Entre estes extremos, encontramos as mais diversas formas de anlise,dentre as quais devemos incluir aquelas que se pretendem no judicativas -que se negam a discutir o valor de legitimidade ou veracidade dos juzoscientficos, ou, ainda, seu valor tico ou social .E m sentido mais corrente, podemos afirmar que se entende por cincia oconjunto das aquisies intelectuais das matemticas e das disciplinas da investigaodo dado natural e emprico (que podem ou no fazer uso das matemticas, mastendendo sempre matematizao). Freqentemente este sentido controvertidoerejeitado ou mesmo considerado irrelevante para a histria da cincia.

    Nestecaso,ela consiste em conhecimento constitudo por conceitos, juzos eraciocnios,obedecendo a regras lgicas de um conjunto ordenado de proposies,paraalcanar objetivamente a verdade dos fatos, atravs da verificao experimental da adaptao das idias aos mesmos.

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    Deste ponto de vista, os enunciados fticos confirmados chamam-se dadosempricos e so obtidos em uma relao com a teoria, constituindo matria-prima da elaborao terica. O conhecimento cientfico, ento, transcende osfatos para produzir novos fatos eexplic-los.A investigao cientfica no se limita , portanto,aos fatos observados, mas os seleciona, controla e reproduz. A experincia racionalizada atravs de teorias, hipteses e conceitos.

    Outra perspectiva de anlise do conhecimento cientfico parte do pressuposto platnico que opeepisteme doxa,cincia ou conhecimento verdadeiroe opinio ou conhecimento de senso comum. Tradicionalmente, a cincia consideradao lugar da verdade por se fundar nologos,na razo, especif icada,apartir da cincia moderna, pela exigncia de objetividade e experimentao.Nestesentido, estuda-se o modo como o conhecimento cientfico alcanado -pelo abandono total do conhecimento da opinio, conforme afirma Bachelard,ou por um processo de purificao, como explica Popper.

    Contudo,a concepo mais corrente e tradicionalmente aceita nem s e mpre considerada a melhor ou a mais correta. Ao contrrio, ela parece um dospontos mais afastados do atual debate sobre a cincia.

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    C A P T U L O 1

    A Histria das Cinciassegundo G. CanguilhemFranois Delaporte

    TraduodeGilda GomesCarneiroRevisotcnicadeVeraPortocarrerouando se evoca acorrenteda epistemologia francesa, associam-se os nomesde Bachelard e de Canguilhem e recorda-se, quanto ao segundo, a filiaobachelardiana. A razo que funda tal aproximao e tal genealogia a seguinte:Georges Canguilhem aplicou as categorias da epistemologia bachelardiana ao

    campo da histria das cincias da vida. Alis,sabe-se que Canguilhem no deixajamais de lembrar a "lio" de Gaston Bachelard. umfato: a histria tal como aentende Canguilhem no nem um pleonasmo da cincia, nem filha da memria, mas filha do juzo, isto , histria normativa. Eis o que basta para dar contadasemelhana dos doisprojetosem suasgrandes linhas.Mas esta comunho de pontos de vista no deveria atenuar a divergncia dosmtodos, nem mascarar airredutveldiferena dos objetos de estudo. Ofatode queCanguilhem tenhatomadode Bachelard alguns axiomas metodolgicos no nos desobriga de examinar o sentido, a extenso e oslimitesdestas apropriaes. Descreveremos, aqui, a maneira pela qual Canguilhem fez valer, no sem modificaes, estes princpios metodolgicos no campo da histria das cincias biolgicas. Alm disso, estas modificaes eram inevitveis: aplicando as categorias bachelardianas aodomnio da histria das cincias da vida, eleteriasido conduzido a nivelar a epistemologia da biologia com a das cincias fsico-qumicas. Oautorno parou de enfatiza ra especificidade do vivo: seu "vitalismo" testemunho suficiente disso.Canguilhem apresentaA Teoria Celular (1945) como uma "contribuio psicanlise do conhecimento objetivo":o psicologismo atravessa, ento, seu his

    trico. Porm, ao valorizar mitos, imagens, pressentimentos, antecipaes e intuies, Canguilhem faz uma inverso em relao a Bachelard. Ass im, dele seafasta, retomando o tema da continuidade em histria. Este fracasso , certa

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    mente, o indcio de um problema importante:como pensar, ao mesmo tempo, oentrelaamento e a separao daquilo.que Bachelard distinguia como histriadascincias superada e histria das cincias sancionada?

    C o n h e c e m o s a alternativa: ou bem uma histria do tipodescontinustatraando os cortes ou bem uma histria do tipo continusta traando as l igaes.Mas como entrelaar e separar o passado e o presente de uma cincia?Parasatisfazer a esta dupla exigncia, necessriomultiplicar os pontos devista, isto , explicitar os diferentes estratos do terrenotericofazendo nascerum conceito cientfico. E mAFormao do Reflexo(1955), Canguilhem desfaze alimenta a trama do imaginrio e do conceituai. Ele tambm ajusta contascom a antecipao cartesiana e estabelece,tendoem vista o desenvolvimentoulteriordo conceito de reflexo, de que modo a teoria de Descartes foi ativadapor um outro v is.Ele remonta, enfim, at o passado atual de um conceito eassinala a funo positiva das teorias vitalistas: funo que da ordem dacompreenso da vida como dado original.

    determinando o estatutoepistemolgico dos conceitos de "supervalorizao",de "ideologia cientfica" e de "normalidade" que Canguilhem funda a conjuno dos temas da continuidade e da descontinuidade em histria da biologia.A maior parte dos artigos, onde sistematiza omtodohistrico que estava sendotrabalhado no estudo da formao do conceito de reflexo, foi reunida em Ideologia e Racionalidade na Histria das Cincias da Vida (1977). Entre o projeto de1945e sua realizao, por volta dos anos 1970, o estudo da formao do conceito de reflexo marca uma etapa decisiva.

    Evidentemente, a escolha destes trabalhos de histria comandada porum problema: a elaborao progressiva de uma histria tcnica prpria histriadas cincias da vida. Donde a formao de filiaes de acontecimentosmetodolgicos marcados por afastamentos significativos. Canguilhem parte dahistria de uma teoria para chegar histria dos objetos biolgicos, passandopelahistria de um conceito.

    Contudo, O Normal e o Patolgico (1943) , sem dvida, o livro maisimportantede Canguilhem. S uma leituradistorcida desta obra poderia conduzir convico segundo a qual ele ilustraria, diferentemente de seusestudos ulteriores, uma concepo "biologista" da histria. Ao contrrio, so asimplicaes filosficas de sua tese de medicina, acrescidas deNovasReflexes( 1 9 6 3 - 1 9 6 6 ) , que conferem uma secreta unidade e uma slida coerncia atoda a obra histrico-epistemolgica.

    1. E mA Teoria Celular,Canguilhem aplica um princpio de inverso: ondeaepistemologia bachelardiana traaria descontinuidades, seria preciso, antes, vera continuidade histrica do saber. A aplicao deste princpio comporta certas

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    exigncias de mtodo: descobrir condies de possibilidade e no obstculos;registrar filiaes e no rupturas; inscrever em uma histria do sancionado aquiloq u e , primeira vista, pertenceria histria do superado. Sem dvida, Cangu i lhem reativa um tema com o qual Bachelard havia rompido: a continuidade.Masno se pode esquecer que seuobjetivo exatamente outro: restituir umadignidade terica ao pr-cientfico (sabemos asressonnciasque ele desperta) e,parafazer isso,valoriz-lo. Valorizao contra desvalorizao.Essa inverso ocorrelativo de uma tripla deciso: reabilitar mitos e imagens de maneira a lhesconferir uma funo heurstica, ressaltar a significao histrico-epistemolgicadas construes discursivas e reavaliar as teorias biolgicas, enfatizando aquiloque elasvisam mais do que aquilo o que elasdizem.

    U m areabilitao dos mitos e das imagens ope-se suadepreciao. preciso,ento, libertar-se da idia segundo a qual o saber se forma por rejeio doscontedos imaginrios, cuja nica funo seria a de obstculo. Da algumas operaes ricas de implicaes. Ressaltar a sobredeterminao dos objetos biolgicosmostrando, por exemplo, que os vocbulos tecido e clula so sobrecarregados designificaes extratericas. Interrogar-se, tambm, sobre o sentido e o alcance dasimagensda continuidade e da descontinuidade. Reconhecer nelas temas de imaginaofamiliares, estabelecerseuparentesco com as maneiras de pensar e, finalmente, reencontrar sua matriz mitolgica. As palavras clula e tecido evocam representaesda estrutura viva queseopem, como os tipos de imaginao queelasexprimem, s exigncias mecanicista e vitalista que traduzem e os mtodos analtico esinttico que essasexigncias ilustram. Descrevendo este movimento de oscilaodo pensamento humanoentreestes princpios antagnicos, Canguilhem reencontrasuaantiga provenincia: o plasma inicial, substncia fundamental e contnua queno se parou de invocar contra uma explicao corpuscular, "seriaesseplasma inicialoutra coisaseno um avatar lgico dofluidomitolgico gerador de toda vida, daondaespumante de onde emergiu Vnus?"(Canguilhem,1967:78).

    U m arevalorizao das significaes de uma construo discursiva se ope sua desvalorizao. necessrio, ento, romper com a idia segundo a qual osaberdeve ser purificado ou, antes, isolado de seu carter de irracionalidade. Emlugar de considerar a negatividade de uma construo discursiva para suprimi-lado conhecimento cientfico, preciso estar atento a seu ncleo positivo demodo a mostrar que ela pertence histria da formao do saber. Por exemplo,no se deve situar a obra de Buffon em um "museu de horrores", nem o pensamento de Schelling aqum ou alm do pensamento cientfico. Deve-se,antes,ver, na primeira, um "tema de sonho terico" e, na segunda, a razo pela qualO k e n pode ser considerado um precursor: "Entre Oken e os primeiros bilogosconscientesde achar nos fatos de observao os primeiros assentos da teoria celular, a filiao se estabelece sem descontinuidade" (Canguilhem, 1967:59). Buf

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    fon traduziu Newton, e Oken pertence escola romntica dos filsofos da naturezafundada por Schell ing.Da mesma maneira que uma concepo corpuscularda matria e da luz origina uma concepo corpuscular da matria v iva,o conceito de totalidade, importadoda filosofia para o domnio da biologia, vem enriquecer e complicar a questo da composio dos organismos. As teorias de Buffon e de Oken exercem,assim,uma funo de conhecimento: discursosfronteirios e discursos com pretenso de cientificidade, uma vez que basta insistir sobre sua positividade para situ-los no campo do saber. E a operao irreversvel: a teoria das "molculas orgnicas" como "pressentimento" e a teoria deO k e n como "antecipao" testemunham a integrao das pesquisas passadas noprocessoininterruptoda formao do discurso cientfico.

    A reavaliao de uma teoria passadase ope sua depreciao dopontodevistanico da epistemologia. Trata-se de banir a idia segundo a qual o presente dabiologia no poderia confirmar, aposteriori, uma teoria cujo sentido unicamentemetafrico. Ao invs de inscrever uma teoria passadaem um passado no atual, necessrio estabelecer sua atualidade, considerando, porm, a recorrncia em umplanodiferentedaquele em que se opera habitualmente a divisoentreo verdadeiro e o falso. Nele, podemos ver oafrontamentodas tendncias do pensamento embiologia. Opem-se, aqui, os pontos de vista de um esprito cientfico dividido: vitalismo contra mecanicismo, totalidade contra atomicidade. Tomemos o exemplo docarter reticentedo pensamento de Auguste Comte a respeito da teoria celular fundadapelos naturalistas alemes. Esta teoria traduziria a preponderncia da orientaomecanicista e analtica em biologia. Bastalembrar o vitalismo de Auguste Comtee suasconcepes sociolgicas para compreender a natureza de sua omisso. Emsociologia,o indivduo uma abstrao; da mesma maneira, as "mnadas orgnicas",como diz Auguste Comte referindo-se s clulas, so abstraes. Ele no v emque poderia consistir nem a organizao, nem a vida de uma simples mnada. luzdo presente que Canguilhem avalia esta omisso. Recentemente, pde-se mostrarque abaixo de uma quantidade mnima de clulas a multiplicao celular impossvel: pde-se mostrar que um fibroblasto isolado em uma gota de plasma sobrevive mas no se multiplica. Eis alguns fatos que, retrospectivamente, justificam asomisses de Comte: "De que Comte culpado ao ter pressentido estas questes ano ser de ter antecipado estesfatos?" (Canguilhem, 1967:66).

    V e m o sbem por que este princpio de inverso se revela ao mesmotempofecundo e intricado. Ele fecundo porque sua aplicao produz algumas inovaesde ordem metodolgica. Valorizar em bloco o pr-cientfico conferir umadignidade terica aos mitos, s imagens, s construes discursivas e, por fim, intuio biolgica que a teoria comtiana exprime. intricado na medida em quea inverso do conjunto das categorias bachelardianas conduz inelutavelmente aum evolucionismo em histria. Primeiramente, a teoria celular parece inserir-se

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    em antigas representaes: verifica-se um discurso linear que acolhe imagensmuitovelhas.Em seguida, o projetode estabelecer filiaes se traduz pela localizao depressentimentos e de antecipaes. Donde uma histria contnua que pressupe adelimitao de umterrenotericosem ruptura: nenhuma linha de clivagem, mas ligaese encadeamentos. Enfim, o tema vitalista da vida como dado irredutvelauma soma de partes, que uma "orientao permanente" da pesquisa em biologia,autoriza a superposio de uma omisso passadae de uma reserva presente. Da,uma histria teleolgica que funciona como um telescpio, em nome da idia datotalidade do todo,voltado para uma incompletude fundada em valores extraterico se uma reserva apoiada sobre uma experimentao autenticamente cientfica.

    Contudo, seria incorreto deduzir deste estudo que Canguilhem abraasem reserva uma histria dotipocontinusta. Sem o parecer, o tema da descontinuidade persegue, contudo, a histria da teoria celular. Canguilhem compreendeque uma mitologia e uma teoria cientfica no podem ser colocadas no mesmoplano, e que, querendo derivar a segunda da primeira, corremos o risco de estabelecer uma genealogia fantasiosa. Compreende, tambm, que as teorias de Buf-fon e de Oken no esto altura das ambies s quais devem seu aparecimento e que elasdeveriam ser, antes, excludas do saber. Compreende, enfim, queuma oposio validade irrestritada teoria celular no tem a mesma significaoquando se exprime em nome de valores filosficos e sociolgicos ou quando sefunda sobre os resultados de uma experimentao bem conduzida.

    Desteestudo, podemos concluir que o pensamento de Canguilhem oscilaentreduas posies em histria. E que esta hesitao o indicador de umadificuldade por ele avaliada: como satisfazer a esta dupla exigncia da continuidade e da descontinuidade em histria? Tratar-se-ia, em resumo, de fazer duasoperaesaparentemente contraditrias. Emprimeirolugar, descrever os vnculosque unem antigas representaes e uma teoria cientfica, porm sem renunciar avaliao da distncia que separa uma da outra. Em seguida, estabelecera ligaoentreuma construo discursiva e uma teoria cientfica, mas sem deixarde assinalar um corte, j que a primeira, longe de ocupar uma regio cientf ica,apenas a bordeja. Mostrar, enfim, que uma teoria biolgica pode ser, porretrospeco, justificada por aquilo que ela visa, mesmo que esteja depreciadapor aquilo que diz.Paraoperar a conjuno dos temas da continuidade e da descontinuidadeem histria, preciso afastar-se do psicologismo e de uma epistemologia unipolar. Do psicologismo, na medida em que a alternativa estentrea valorizao dopr-cientfico e sua desvalorizao: aqui no se pode estabelecer as continuidadesuma vez que registram-se obstculos e rupturas; l, ao contrrio, no se podem marcar as descontinuidades, j que descobrem-se condies de possibilidade e encadeamentos. De uma epistemologia unipolar, pois necessrio escolher

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    entreduasformas de recorrncia. A primeira funciona no nvel das orientaesdasteorias,enfatizando a atualidade de um tema; porm, ao descrever a permanncia deuma orientao do pensamento em biologia, faltam-lhe asdescontinuidades. Asegundafunciona no nvel do contedo dasteorias,assinalandoasuperaodasconceitualizaes;mas marcando atos epistemolgicossuperados,faltam-lhe ascontinuidades.Esteduplo afastamento foi possvel devido passagemda histria da formaode uma teoria histria da formao do conceito. Comefeito, fazendo a histriado conceito que podemos afirmar que uma mitologia e uma metfora podemcontribuirpara a formao da cincia e, ao mesmo tempo, dela serem excludas.ainda no plano da histria do conceito que podemos ser levados a perguntar o queuma construo discursiva deve conter para que o conceito possater um sentido deverdade;daadistinoentreuma teoria que autoriza a formao de um conceito eaquela que o encobre. Nestecaso,h a possibilidade de desempenhar, algumas vezes,um papel positivo no desenvolvimento ulteriordo saber.,finalmente, no planodahistria do conceito que podemos fazer aparecer a inatualidade do contedo deuma teoria; , contudo, trabalhando nesta regio mediadora, situada a meio caminho da teoria e do objeto, que podemos reorientara teoria em direo aoobjetoemostrar a atualidade deseupontode vista.

    2 . EmA Formao do Reflexo,Canguilhem aplica um princpio de conjuno,do qual resulta a reativao das categorias bachelardianas que se acham agoraassociadasssuasopositoras. Em outras palavras, trata-se de utilizar concomitantemente ascategorias de obstculo e de condio de possibilidade, de corte e de ligao,de superado e de atual.T rsdecises decorrem destas trs dicotomias. De umlado,estabelecer que mitos e imagens tm funo primordialna elaborao de umconceito cientfico, mas, tambm, mostrar que a fisiologia nascente revela, porretrospeco,a natureza do obstculotantode uma mitologia "dachama" quanto deumametfora tica. Deoutrolado,assinalarat quepontouma construo discursiva,como a teoria cartesiana do movimento involuntrio, deve ser ao mesmotempoexcluda do espao do saber e includa na histria do reflexo. Enfim, ordenar umadupla recorrncia de maneira a situar uma teoria biolgica nopontode cruzamentoentreum passadoatual e um passadosuperado.

    Paraevidenciar a duplicidade dos contedos imaginrios, no necessrio que acreditemos que o saber no passa de uma metamorfose do mitoo u , inversamente, que as premissas fantsticas constituem entraves ao conhecimento. preciso, antes, ver como a sobredeterminao de umobjeto biolgico pode ser, ao mesmo tempo, a possibilidade de um movimento e de umbloqueio do pensamento. A produo de um conceito a partir de analogiasque valem como condies de possibilidade implica um desempenho que assitua no campo dos obstculos ultrapassados.

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    A analogia tem o estatuto de condio de possibilidade, tendo em vista o usocientfico que Willis dela faz em fisiologia neuromuscular. Com efeito, Willis serefere teoria da alma gneae reconcilia-se assim com a imagem primordial do esprito fogo,uma mitologia da"chama".Sabemoscomo seopera aassimilaoda alma pelo fogo epelaluz: na extremidade dachama,uma vibraoapenas visvelsubstitui a incandescnciae, como diria Bachelard,o fogo se desmaterializa, ele se torna esprito. O fogocomo antagnico ao peso,assimcomo a ao como violncia impressa no organismoinduzem idia de oposio entre poder e resistncia.A conjuno destes dois temasdconta dofatode que o fogo e a luz deviam ser considerados como a matria daalmae o rgo da animao do corpo. Vemos que a palavra "esprito animal" evoca aimagem de uma substncia inflamvel; o esprito animal luz, fogo, iluminao e, nomsculo semelhante cmara do canho, deflagrao. Willis inventa, ento, a palavraeo conceito de movimento reflexo no contexto de uma teoria do influxo nervoso maisimaginria do que experimental: "Elechegaa um conceito de devir apartirde analogiashoje tomadas como metforas "(Canguilhem,1955:157).

    Mas descrever como um conceito cientfico nascedos fascnios do imaginrio tambm estabelecer que seu aparecimento supe algo como um rasgono tecido dascrenas.Donde a ruptura de problemas e de objetos com relaoaos temas mitolgicos. No limiar da idade clssica, o destino desta mitologia da"chama"d suficiente testemunho disto: "Na teoria da alma gneade Willis comonateoria do fogo cardaco, 'fogo sem luz', de Descartes,morre, aps sua divisonaaurora da fisiologia moderna, a mitologia da chama" (Canguilhem, 1955:88)."Estacrena, que remonta noitedos tempos, no est fora do tempo. No a vemos nascer; em compensao, a vemos desaparecer, uma vez que uma cinciavem ocupar seu lugar. Podemos pensar, se quisermos, que esta mitologia morree renasce em cada um de ns. Para o historiador, ela se transforma em c inzaparasempre, isto , em obstculo superado.

    Para fazer aparecer a dupla funo de uma construo discursiva, necessr io deixar de considerar que ela tem o estatuto de uma antecipa oou, ao contrrio, que ela se ope inteira ao advento do saber. preciso, antes, dissociar seus componentes, de modo a atribuir-lhe um papelnegativo ou um papel positivo.

    porque Canguilhem se esfora para compor uma histria do reflexo sem"discriminao ideolgica apriori que ele encontra, na histria, elementos parafazer uma discriminao ideolgica a posteriori. Ao estabelecer que Willisquem inventa o conceito de reflexo, ele conduzido a mostrar que as concepes anatomo-fisiolgicas de Descartes constituem obstculos, proibindo-o deforjar este conceito. Donde a possibilidade de julgar o valor da teoria cartesiana:afastada do espao do saber, ela desqualificada nassuaspretenses cientficas.A teoria cartesiana usurpava um ttuloao qual ela no tinha direito.E quando o

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    conceito de reflexo aparece,no onde eraesperado,mas em um contextovitalista .Com a formao do conceito de reflexo por Willis, assistimos a um processo de"deposio"de uma teoria pseudocientfica.T o d a v i a ,a teoria cartesiana no deve sertotalmenteexcluda da histriado movimento reflexo. A histria da fisiologia no deve a esta teoria aformaodo conceito de reflexo, mas deve outra coisa. o que Canguilhem es

    tabelece quando afirma que Galeno eWhytt concebiam o movimento involuntrio como movimento voluntrio ou refletido, mas tornado inconscienteou automatizado pelo hbito. Elesenunciavam, com preciso, a teoria de quea noo de reflexo deve ultrapassar, antes de se constituir, na medida em querepresenta um obstculo interno sua constituio: " por ter ultrapassadoesteobstculo que Descartes tem sua parte que no pequena , mas diferente daquela que, em geral, lhe atribuda na histria do reflexo" (Canguilhem,1 9 5 5 : 1 4 9 ) . A teoria cartesiana, levando em conta seus efeitos destruidores,deveento ser inscrita na histria do reflexo.

    Paraexplicitar os dois pontos de vista segundo os quais podemos avaliar, lu zdo presente, o valor das teorias biolgicas, no preciso crer nem que a recorrnciase aplica apenas s orientaes do pensamento sobre o biolgico nem,inversamente,que deve conduzir a abandonar aquilo que no pertence ao passadoatual. necessrio, ainda, distinguir a funo e o contedo de uma teoriabiolgica, de modo a estabelecer, por retrospeco, a atualidade da funo e asuperao do contedo.

    A atualidade das teorias vitalistas deve-se aofatode que em seu contextoqueum conceito cientfico encontraascondies deseuaparecimento e desuaelaboraoprogressiva. Willis inventa o conceito de reflexo, que s definitivamenteformado por volta de 1800;portanto,s depois queWhytt,Unzer e Prochaskadesenvolveramseu carter lgico e experimental. Ora, as teorias como contexto, emqueo conceito sucessivamente elaborado, no remetem a nada mais que suafuno.O valor das teorias vitalistas relativas ao funcionamento do sistema nervosoresidenesta conscincia aguda da especificidade dos fenmenos biolgicos: "Numorganismoqualquer, uma relao autntica e no simulada, natural e no artificial,de retroao exige uma individualidade irredutvel a um composto. Unzer e Prochaska,assimcomoWhytt,no afirmavam, suamaneira, outra coisa"(Canguilhem,1955:157).O que conduz o pensamento vitalista to depressa a seu fim , ento,estaintuio quanto ao sentido dos fenmenos biolgicos.Eisporque estasintuiesdevemfigurar em uma histria iluminada pela finalidade do presente.

    Mas estasteorias vitalistas so tambm inatuais. De uma parte, enquantofundo terico onde se delineia o conceito de reflexo e, de outra, porque, comelas, os vitalistas exprimem, sua maneira, esta conscincia da especificidadedosfenmenos vivos. O emprego dos termos "princpio vital", "fora vital" e "fora

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    nervosa" , com efeito, o indicativo de uma impossibilidade de conceitualizarestas intuies biolgicas. porque elas pretendem atingir a vida em termosmetafsicos que as teorias inspiradas no animismo e no vitalismo devem serabandonadas.Com a histria do reflexo, desdobra-se a recorrncia concernenteaoconhecimento da vida como ordem original de fenmenos. Surgeuma histria das crispaes ou, antes, das impacincias do pensamento biolgico; umahistria de seuspontos de vista ao mesmotempo penetrantes e superficiais. Penetrantes, j que a reflexo recorrente justifica estas teorias naquilo que elasapontam; superficiais na medida em que apagaas entidades metafsicas.N oh indeciso nesta histria das cincias quando setratade exignciasda continuidade e da descontinuidade. Primeiro, no momento mesmo em queCangui lhem mostra o que a descoberta de Willis deve a uma mitologia e a umametfora, elas so relegadas ao esquecimento. O questionamento da noo desobredeterminao revela aqui sua polivalncia. Emseguida,ele distingue as funes negativa e positiva da teoria cartesiana do movimento animal: de um lado,esta teoria no autoriza a formao do conceito de reflexo, deoutro,ela contribui com a sua purificao ulterior.Em conseqncia, o estudo desta formaodiscursivafaz ressaltar sua ambivalncia. Por fim, a relaoentreas teorias vita-listase os fenmenos vivosassinalaa emergncia de uma nova relao,pontodeapl icao de uma recorrncia bipolar. Comefeito, uma justifica o sucessodasteorias biolgicas pela exigncia vitalista, ao passoque a outra a critica, afirmando que esta exigncia se traduz em termos pseudocientficos.

    C o m a histria da formao do conceito de reflexo, Canguilhem enfatizaexplicitamente o entrelaamento e a disjuno do superado e do sancionado. fazendoa histria de um conceito que um problema de metodologia histrica encontra sua soluo. Porm, a complexidade da problemtica da histria das cincias deixava em aberto uma questo. A refutao dos resultados vitalistas emnome do mecanicismo o indica: "Se,como G. Canguilhem afirma, foram os vitalistase no os mecanicistas que descobriram o reflexo, isto, na verdade, umahomenagem que os primeiros renderam, seno ao mecanicismo de Descartes, aomenos s intuies causaisdas quais procedem" (Piaget, 1987:897). Notemos queadita homenagem supe a subordinao do vivo ao determinismo fsico-qumico,isto , a um reducionismo. Como ento se opor possvel confuso de duas problemticas histricas? Paramarcar a especificidade da epistemologia da biologia,Cangui lhem estabelece oestatutoepistemolgico de uma srie de conceitos quesoestranhos epistemologia das cincias da matria.P or volta dos anos 70, Canguilhem elabora uma nova teoria da histriadascincias. Ele transpe um princpio de utilidade (uma idiadiretriz da biologia)para a interrogao sobre o sentidovitalda constituio do saber na histria.Isto o leva a registrar uma exigncia permanente da vida no vivo expressaem trs

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    modalidades: uma mitologia que traduz uma necessidade de acesso totalidade,umaconstruo discursiva que responde s necessidades de ordem prtica, eas conceitualizaes vitalistas que exprimem subordinao ao fato da vida.P o r m , ao introduzir um fator instintivo, quer dizer, os interesses vitais dovivo humano, Canguilhem subordina a histria a uma epistemologia aprimorada: uma necessidade de acesso totalidade se manifesta por uma"supervalor izao" da vida; necessidadesde ordem prtica ocasionam a construo demodelos de uma medicina operatria designados pelo conceito de "ideologiacientfica"; a especificidade dos objetos biolgicos qual se submete o pensamento da vida designada pelo conceito de "normalidade". As questes dasupervalorizao da vida, de sua preservao e de sua definio assinalam oaparecimento de uma histria dos objetos biolgicos.N osomente o nvel das anlises se desloca do conceito para os objetos,como tambm o campo de aplicao diferente. Comefeito,Canguilhempassade uma escalamicroscpica a uma escalamacroscpica da histria das cincias.E moutras palavras, seu interesse centrado nos comeos lentos, mas, tambm,nasbruscas mutaes que caracterizam o passado prximo da biologia. De umlado, esta histria descrio do desmoronamento de uma mitologia, das construes discursivas e das conceitualizaes pr-cientficas. Deoutro,esta histriatraz luz o que elascontm de fora propulsora. Seramostentados a dizer que,paraCanguilhem, a oposioentreas duas linhas um fracasso:a uma se deve apositividade doerrocomo presuno de verdade, outra se deve a negatividadeenquanto destruio pela verdade. A clivagementreas categorias de obstculo,rupturae abandono, por uma parte, e as de condio de possibilidade, ligao eprolongamento por outra, sepassano interiorda iluso. A iluso que no tem futuro,mas est sempre por vir, uma vez que a histria continua.

    3.Ao aplicar o conceito de supervalorizao a uma mitologia, Canguilhemfunda sua polivalncia: ela ao mesmotempocondio de possibilidade do conhecimento da vida e seu obstculo. Ao ser abandonado comoerrovital, omito revelador de uma necessidade de acesso totalidade. Ora, a prova da realidadeconfirma o fracasso de uma mitologia. Eis porque, ao proporcionar cinciaseus objetos, que so seus problemas, uma mitologia pode ser tomada comocondio de possibilidade do saber. Canguilhem nunca deixa de lembrar que amedicina comeou sendo umaartee que a filosofia deve suasquestes clnica,ou melhor, a uma velha heranafeitade mitologias e de rituais. Seo conceito dedoena se confunde com estas mitologias e estes rituais, osofrimentoconsecutivoao fracasso das prticas que dissipa a segurana ilusria que elas proporciona m .O interesse pelo conhecimento da vida deriva, ento, de um interesse maisoriginrio suscitado pelos projetos de cura fadados ao insucesso.

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    P o r m , mostrar que uma mitologia desaparece como errovital afirmarque ela est destinada a se esvanecer como iluso, exprimindo uma vontade depotncia que negao dos limites que a prpria vida impe aos vivos. Ora, adeterminao destes limites o objeto mesmo do saber. Uma mitologia, ao seopor ao conhecimento da vida,constituitambm um obstculo. Por exemplo, asdiferentes verses pseudocientficas do tema da gerao espontnea manifestam apersistncia de um mitorelativo origem da vida. Canguilhem, no artigo "Vida"lembra que omitodo nascimento do heri um argumento complementar dateoria que Otto Rank desenvolve em O Traumatismo do Nascimento. Os mitosde negao parecem confirmar a idia de que a separao da criana do meioplacentrio a origem e o modelo de toda angstia. preciso ento perceber naaversoao nascimento e gnese, que no passam de sucessoe descendncia,um efeito do prestgio do original. Certamente, Canguilhem no pretende quetodos os partidrios do que se chamou a gerao equvoca ou a heterogenia nofazemmais do que colocar em forma de discurso o fantasma originrio de seuinconsciente traumatizado, mas "permanece a idia de que a teoria da geraoespontnea uma supervalorizao da vida,portanto,um obstculo inteligncia doobjetobiolgico" (Canguilhem, s/d:766b-c).

    O conceito de ideologia cientfica designa estes modelos da medicinacirrgica e funda sua ambivalncia: eles devem ser separados e ligados aopresente da cincia. Uma ideologia cientfica deve ser ligada ao presente damedicina, porque ela pode constituir uma etapa epistemologicamente necessria para que surja uma medicina c a pa z de executar seuprojeto. Da "medic ina fisiolgica" de Broussais no resta nada. Entretanto, este sistema teveefeitos subversivos: graas a ele assiste-se ao desaparecimento da ontologiamdica e de uma nosologia essencialista. Magendie, por sua vez, impe umanovaorientao em medicina, na medida em que estaltima lhe deve um triplo deslocamento: de lugar (do hospital ao laboratrio), de objeto (do homem ao animal) e de modo (da preparao galnica ao princpio ativo isolado pela qumica). Enfim, a leitura de Claude Bernard, que identificava doen a e envenenamento, pde contribuir para facilitar a compreenso do mecanismo da infeco. O princpio de identidade entreo normal e o patolgico,que tem suafontena obra de Brown, foi admitido por Broussais, Magendie eC l a u d eBernard. Esteprincpio, que justifica um ativismo mdico, se ope ento antiga medicina expectante: "Este princpio fundou uma ideologia,aq u e la do poder ilimitado da medicina, uma ideologia mdica liberada detodo compromisso com o hipocratismo" (Canguilhem, 1977:53-54). Umaideologia mdica que talvez tambm tenha contribudo paratornar acolhedorao esprito dos mdicos, qumicos e bilogos a idia tecnicista de violar a natureza com fins teraputicos.

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    Mas uma ideologia cientfica tambm deve ser separada do verdadeiroconhecimento. Mostrarque ela desaparece como "pseudo-saber" descrever ose u desaparecimento como iluso, exprimindo uma vontade de fundar teoricamente a teraputica. Ora, esta iluso um desconhecimento das exigncias metodolgicas e das possibilidades operacionais da cincia que vir ocupar seu lugar. fcil evidenciar a defasagem da teraputica em relao aos modelos deuma medicina cirrgica. Afastamento, portanto, das teraputicas de Broussais,Magendie e Claude Bernard com relao ao "fisiologismo" doprimeiroe "medicina experimental" dos dois ltimos. A atitudeface s doenas infecciosas, queno entravam no quadro definido pelo princpio da identidade dos fenmenosorgnicos normais e patolgicos, testemunha claramente a impotncia destas"teorias mdicas". Canguilhem faz aluso ao fracasso dos tratamentos fisiolgicosanti-estimulantes de Broussais, posio anticontagionista de Magendie a propsito do clera e, para finalizar, idia de Claude Bernard segundo a qual doenascomo a varola, o sarampo e a escarlatina respondem a funes da pele queainda so ignoradas. Era preciso, como mostra Canguilhem, uma revoluo naqumicae na tcnica mas, sobretudo, o desvio pastoriano por meio da cristalografia,para que a quimioterapia sustentassea promessa da ideologia.

    O conceito de normalidade, que designa a originalidade distintiva dos organismos vivos, funda uma dupla recorrncia. Tal recorrncia legitima e enfraquece,ao mesmo tempo, as conceitualizaes pr-cientficas da vida. De sorte que estasconceitualizaesdevem ser prolongadas, por um lado, eabandonadas,poroutro.E m A Questo da Normalidade, Canguilhemdefiniuoobjetivo que atribui sua histria da biologia: a descrio das etapas que marcam a constituiodaquilo que uma disciplina considera como seuobjeto prprio, isto , objetosespecf icos sem equivalentes mecnicos ou, ainda, "estruturas da ordem da confiabilidade e, ao mesmo tempo, da falibilidade". Estesconceitos axiolgicos soniveladosao final, que provisrio, de suatrajetriana histria. Mas suficientenos remeter ao captulo inicial da histria da biologia para constatar que pesquisae ao j eram indissociveis da referncia a valores vitais. Aristteles, naturalista,ordena a srie animal segundo a hierarquia, do perfeitoao imperfeito,enquanto Hipcrates, mdico, orienta sua teraputica em funo de uma reflexosobre o normal e o anormal. Tanto no casoda histria natural (Aristteles, Maupertuis, Buffon, Darwin) como no da histria da fisiologia (Aristteles, Descartes,Stahl,Claude Bernard) as filiaes so justificadas, levando-se em conta a refernciaa conceitos normativos. Da, a idia de que o sucessodas definies dovivo est subentendido em uma espcie de "princpio de conservao temtica".Em suma,as imagens easmetforas da normalidade testemunham o esforo permanente de uma definio da vida que no deixa escapar sua originalidade. Estas antecipaes inbeis, masadequadas,devem ser estendidas.

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    Aparentemente, esta histria da biologiadesconheciaa descontinuidade, j queo corte parece coincidir com a origem. Mas, considerando que os objetos biolgicosso correlates de um pensamento que nocessade os objetivar diretamente, desde aAntigidade at nossos dias,Canguilhem prope uma histria da vida que est longede excluir uma histriadasvariaesdestatemtica. Da, uma ateno centradanasdiversas"manifestaes" do princpio de conservao.Donde resulta uma histria, queprogride por etapas,registrando o deslocamento da superfcie do plano da inteligibilidade- em que se legitimam os aspectos normal e anormal dos modos de existnciadosorganismos vivos - para a profundidade do vivo. Estaateno sucessohistricadestesdiferentes nveis de apreenso dos fenmenos da normalidade crtica:determina a natureza "pseudo-terica" das conceitualizaes pr-cientficas. Eisporque estasltimas devem serabandonadas,mas abandonadas como iluses que traduzem umavontade de afirmar a originalidade da vida tal como ela percebida ou pressentida,isto , prxima deseu objetodado e no distante deseuobjetoconstrudo.

    C an gu i lh e m concorda com a idia nietzscheana segundo a qual a importncia de um "progresso" se mede pela grandeza dos sacrifcios que lhedevem ser feitos. Paraele, os mritos daqueles que a histria abandonou, pelos caminhos por ela mesma rejeitados, "so medidos por sua relao indiretacom a obra coletiva elaborada semeles" (Canguilhem, 1977:77). O progressoou o avano de uma cincia no resulta do acmulo de conhecimento. P r o cederamos mal ao tomar a ambio de uma mitologia, o projeto de umaideologia cientfica e o princpio de conservao temtica, como indicativosde uma histria orientada, quer dizer, progredindo em direo a uma finalid a d e . Estahistria , antes, aquela das diferentes tentativas de assujeitamentodos objetos em campos tericos e prticos heterogneos, independentes e,algumas v e z e s , sobrepondo-se uns aos outros. Ao mesmo tempo, podemosperceber como Canguilhem joga com a antinomia das categorias epistemolgicas.Se uma mitologia condio de possibilidade do saber, somente enquanto permite apreender os fracassos como dificuldades no campo da prticacientfica em seu devir. Se a promessa da ideologia mantida, "deoutromodo e num outro terreno".Se as conceitualizaes pr-cientficas dos fenmenos da normalidade so conservadas, "somente enquanto deslocamento,cu ja funo de indicador de uma originalidade objetiva". Este triplo movimentoocasiona, sem contradio, a inverso das categorias: uma mitologia tambm um obstculo, uma ideologia cientfica aparece em um ponto derupturae, enfim, as conceitualizaes pr-cientficas devem ser abandonadas.

    a colocao prova dos conceitos de supervalorizao, de ideologiacientfica e de normalidade que assegurao funcionamento regulado dos trs pares de categoriasanteriormente formadas por ocasio da histria do conceito dereflexo. Mas, com estes conceitos epistemolgicos, aparece, tambm, o tema da

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    representao dos significados da formao de uma cincia em seu devir. Destepontode vista, esses conceitos epistemolgicos exprimem uma vontade de vidacujo efeito, invariavelmente, superao. No assinalam eles tambm a emergncia, no domnio da histria das cincias, de uma srie de questes que estavam no mago da reflexo de Canguilhem desde 1943? Da, o interesse em retomar o ensaio sobreO Normal e o Patolgico.

    4. necessrio trazer de novo estes conceitos epistemolgicos ao seu contexto mdico, cientfico e filosfico, quetornou possvel,hmuitotempo,seu aparecimento. Uma mitologia, indcio de uma supervalorizao da vida, manifesta umavontade de dominao; uma ideologia cientfica exprime uma vontade de ao; oconceito de normalidade designa, enfim, aquilo que o vitalismo sempre tentoualcanar. Estestemas se enrazam em uma reflexo sobreasquestes do conhecimento, da ao e da vida. Quem tentasse aqui encontrar os problemas tradicionais doconhecimento, da moral e da existncia desconheceria a novidade de um pensamentovoltadopara a questo do valor e da norma. Comefeito, o pensamento deCanguilhem gira emtornoda medicina precisamente situada nopontode verificabilidade do saber, da ao e da vida. Do saber, emprimeiro lugar: o conceito de supervalorizao est ligado questo da relaoentreo conhecimento e seuobjeto.D o acaso,emseguida:o conceito de ideologia cientfica se prende questo das relaesentrecincia e tcnica. Da vida, enfim: o conceito de normalidade relaciona-se questo das normas e do normal.

    A o procurar o sentido originrio de todo ato de conhecimento no vivo,Canguilhem renova a questo da relao entre o conhecimento e a vida. Paraele,o conhecimento e a vida so objetos de uma valorizao, mas de uma valorizaounificada: pensamento e conhecimento se estabelecem, dopontode vista do homem, na vida, paraorient-lo. Canguilhem compreende a cincia, quepode setransformar em ato, como uma atividade do vivo humano, cujo valor,alis, no maior nem menor do que o da atividade dos vivos no humanos. Eleinclui, ento, a cincia na vida, e considera a atividade do homem que conhececomo pertencente a um captulo da histria da vida: "Estesvivos vivem sua vidatendo como referncia espontnea certas exigncias decomportamentoou normas de adaptabilidade. A interrogao sobre o sentido vital destes comportamentos ou destas normas, ainda que no se origine diretamente da fsica ou daqumica, faz, tambm, parte da biologia" (Canguilhem, 1977:138) 1. A este pro1 EmLa Connaissance de la Vie,Canguilhem j escrevia: Uma teoria geral do meio, do ponto de vistaautenticamente biolgico ainda est para ser feita pelo homem tcnico e sbio, no sentido do que foitentado por von Uexkll para o animal e Goldstein para o doente (Canguilhem, 1967:96).

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    jetode uma teoria geral do meio, talvez se faam duas objees. Emprimeirolugar,poderemos dizer que o animal, aocontrriodo homem, no seengana,poisele informado hereditariamente para memorizar etransmitirapenas certas informaes. Em segundo lugar, diremos que o pensamento faz do homem um servivo bem particular. Mas no devemos esquecer, por um lado, que a formaode conceitos uma modalidade da informao e, poroutro lado, que a funodo conhecimento uma funo de decifrao fundada no erro. Nietzsche diziaque o conhecimento o signo da perda da "razo animal s".Canguilhem diriamais,que ele o indcio da perda de um sentido, isto , da ausncia de decodificaoou de mutao, pelas quais a vida teria alcanado este ser vivo capazdeerro. Em lugar de acreditar que Canguilhem reativa, assim,um empirismo, devemos,antes, ver como esta idia se origina de uma reflexo sobre a questo da relaodo conhecimento com seu objeto.

    E mONormal eo Patolgico,Canguilhem mostra que a concepo positivistada doena a expresso de uma supervalorizao do saber.S eo vivo humano conhece as relaes do mal com o estado normal, ento a medicina comportaum poder de dominao. que a eficcia da ao est fundada na cincia. Eis oprograma de um positivismo desptico e to seguro do seu poder que assimila afuno de conhecimento a uma funo de comando. Reconhecemos, de passage m,uma das figuras de um sonho demirgico: o tema de uma potncia ilimitadado homem que se exerceria sobre a natureza e a vida. Ora, este sonho lembra aconcepocartesiana da relaoentreo conhecimento e a vida. A supervalorizaodo saber aponta a separao do pensamento com relao vida, e, tambm,odirecionamento do pensamento contra a vida. Se bem que o pensamento nopode reencontrar aquilo que ele imobiliza, substituindo oquantitativopelo qualitativo. Ope-se Canguilhem a esta substituio que implica o esquecimento deumfatoepistemolgico: ao reduzir a relao qualitativa de valores vitais negativo-positivo a uma relao quantitativa, desloca-seesta diferena sem paratantoanul-la. Paradesarmar a armadilha do Mesmo e do Outro, preciso antes pensarque toda atividade humana,sejaprtica (como a teraputica), seja terica (comoacincia), um desdobramento histrico de significaes normativas permanentementeem transformao, mas originariamente restritas vida.

    C o m efeito,erroe doena acabam por convergir na direo daquilo queos funda, e que nada mais do que a falibilidade da vida. Com a introduo doconceito deerroem patologia, questionam-se as perturbaes bioqumicas hereditrias e as anomalias de natureza gentica. Se bem que, de acordo com umatal concepo de doena, o mal radical: "Ele est nas prprias razesda organizao (...) no ponto onde comea no o reino mas a ordem do vivo" (Canguilhem, 1966:210). E, da mesma maneira que existe materialidade doerrodo metabolismo, portantodo mal, existe uma consistncia do erro. Em outras palavras,

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    oerro do pensamento se enraza no erro da vida e este a chave daquele. Retornoa Nietzsche? Com ele, tambm se compreendia melhor a criao da cincia,uma vez que ele enraizava o saber no erro; porm, quem quer a verdade oua cincia "afirma, por esta vontade mesma, umoutromundo que no o da vida"(Nietzsche,1955:289). Portanto, uma mentira. Se o vivo s pode viver cometendo este erro com relao vida - o erro quer dizer a buscada verdade - ele permanecedeste lado da vida que a inveno e o poder. Estetema da supervalorizaoda vida fundada na aparncia conduz depreciao do saber pela vida:figura invertida do sonho positivista, uma vez que a supervalorizao do saber levaria negao da vida. Temos a, talvez, duas verses espetaculares de umamesmaconcepo clssicada verdade e do sujeito. O fundamento do conhecimento na vida, que confere um novo estatuto relao do saber com seu objeto, remete a uma filosofia da ao.

    C o m efeito, o conluio do sentido dos termos "erro" e "errncia", queparece estar na origem desta idia de formao de conceitos como uma dasmodalidades da informao, entre outras. O homem se engana quando eleno sabe onde se posicionar para decifrar; engana-se porque destinado aerrar. Ns acreditamos notrairo pensamento de Canguilhem ao afirmar queo erro e a errncia sototalmente semelhantes ao acaso.Trata-se, aqui, deum empirismo inteiramente assumido e mesmo reivindicado. Ficaramos tentados a acrescentar que ele constitui uma invariante do seu pensamento, oncleo do seu mtodo histrico. Fazera histria de uma cincia descreversuatrajetria, seusdesvios,seusobjetivos e a distncia que separa um projetode sua realizao. Em uma palavra, apreend-la no seu imprevisvel devir.D a ,dois temas complementares: o tema da retificao da iluso que opera aincessante dicotomia do verdadeiro e do falso, e o tema de uma incessantesuperao do conhecimento confirmado. A diviso origina-se no saber e nasuperao da iluso. Esta ltima, no mesmo instante em que antecipa aquiloque sabe, ignora os obstculos que esto por vir assim como aquilo que seuprojeto deveria conter em termos de conhecimento para ser bem-sucedido.Quanto superao, Canguilhemretira do espao do conhecimento a mitologia,a ideologia cientfica ou, ainda, para empregar uma palavra que retomade Fontenelle, a ignorncia, "a filha mais velha da cincia a qual a cincia encontra sempre em seu poder" (Canguilhem, 1971:174). O surgimento do conceito de ideologia cientfica, por volta dos anos 70, , portanto, o signo deuma convergncia com a questo das relaes entre as cincias e as tcnicas.

    E mO Normal e o Patolgico, Canguilhem mostra que o princpio de Claude Bernard da identidade do normal e do patolgico traduz a convico de que acinciafisiolgica, pelo vis da patologia, seria fundada para determinar a atividadeteraputica. Porm, subordinar a medicina fisiologia confundir a atividade tera

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    putica com a cincia; , portanto,recusar tcnicatodo valor e toda autonomia.A esta convico humanista, que subordina a ao ao saber, Canguilhem opeumaconvico anti-humanista ou, antes, uma convico realista. Uma ateno voltada para as prticasassinalaa inverso dopontode vista da convico humanista ea emergncia das relaesentreas cincias e as tcnicas. Aoadmitirum interessepelapatologia, pela clnica e pela teraputica, Canguilhem reconhece sua funoheurstica. Paraele, uma atividade tcnica, no terica, pode ser acausade renovaese de reformulaes de questes cientficas. Alm disso,ope ao racionalismodogmtico um empirismo, que uma "filosofia do acasointelectual". bem verdadequeas tcnicas, diferena das ideologias cientficas, no admitem este desviotericoque faz com que Canguilhem localizeasltimas nav izinhanado conhecimento.Em contrapartida, ambas devem seu aparecimento s exigncias de ordem prtica;ambasse fundam nasnecessidadesda vida e por isto nos parece legtimo aproxim-las. Poderamos, ento, afirmar que, em relao racionalidade, as tcnicas e asideologias cientficasasseguram uma funoestruturalmenteanloga,j queelaspodem ter svezesum papel positivo na constituio do saber. E ainda,a idia de queateraputicaconstituia origem dos interesses da fisiologia leva Canguilhem a aplicara tcnica humana, como atividade normativa, na prpria vida. exatamente destelado da prtica mdica que podemos descobrir a atividade de uma tcnica vital, nosilncio ou nosofrimentoda vida, quepermitecompreender que ela uma atividadefinalizada. necessrio negar a dependncia da tcnica para com a cincia, ramificando-a na vida: a tcnica deriva da vida, prolonga atos naturais e instintivos. E justamente porque a vida "atividade de informao" que ela afontede toda atividadetcnica, mas tambm de toda atividade terica,portantodas ideologias cientficasque esto a meio caminho desta e daquela. Vemos, ento, aparecer um traocomum a todas estas atividades humanas: a eventualidade do fracasso ou doerroestinscrita nasu ahistria e por esta razo que esta histria deve ser escrita comoum "acasoe no como uma decorrncia". Ora, a tendncia fundamental da vida no tambm o afrontamentodos riscos, quer dizer expanso,superao e no maisconservao? O acasorepresenta para a histria aquilo que o risco representa para avida,e a histria que no nem deduzida da vida nem projetada na vida a seinscreve. Estafilosofia da ao parte do pressuposto da idia de vida como prefernciae excluso,o inverso de uma relao de indiferena com o meio.

    Esta idia de vida como ordem original dos fenmenos, ou como atividade normativa, devida ao fundador da biologia e no aos inventores do termo,Lamarke Trviranus. EmNascimento da Clnica, Michel Foucault confirma "comBichat,o conhecimento da vida encontra sua origem na destruio da vida, e nose uextremo oposto; namorteque a doena e a vida falam sua verdade" (Foucault, 1963:248). Canguilhem mostrou que o nascimento conceituai da biologiaocorreu de modo inverso ao do nascimento da fsica: esta constituiu-se por su

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    pressode conceitos axiolgicos, aquela pela sua adio. Com Galileu e Descartes,a mecnica funda-se no princpio de inrcia, apesar de o movimento da matria deixar de ser atribudo ao poder da vida: a distino aristotlica dos movimentos naturais e violentos, que resultou de uma mecnica qualitativa, foi invalidada.Com Bichat, a biologia funda-se na oposioentreo natural - que no oefeito de um determinismo mas o termo de uma finalidade - e o patolgico: avida como poder no pode ser explicada por leis forjadas apartir de hiptesesque lhe negam esta qualidade. Por ser "longo etortuoso",o caminho que vai daentelquia de Aristteles enzima do bioqumico o mesmo. Parachegar definio doobjetobiolgico, Canguilhem distingue duascoisas:de um lado, aquilo que ela tem de relativamente estvel, opontode vista, a funo de ndice; deoutro lado, o elemento mutvel, todas ascoisas relacionadas s conceitualizaesdeste ponto de vista. Ora, a vida no conservadora e inovadora? Denunciarumaconcepo biolgica da histria seria uma grande tentao. preciso, antes,registrar uma convergncia da relao,tanto do mtodo, quanto do contedo,com a questo das normas e do normal.

    EmO Normale oPatolgico,Canguilhem nota que o princpio de identidadedo normal e do patolgico de Claude Bernard traduz a "convico do otimismo racionalista de que no h realidade do mal" (Canguilhem, 1966:61). Estaconvico seope a toda concepo ontolgica dadoena.Ao contrrio,se seestabelece uma diferenaqualitativa entreo normal e o patolgico, o conceito de mal tem um sentido.Or a ,esta idia comporta a convico do pessimismo empirista.Cangu ilhem faz,ento,uma inverso dopontode vista daconvico,assinalandoa emergncia da questo danormatividade biolgica. Uma referncia histrica refora a dissonncia dasteses.ABroussais, inimigo de toda ontologia, se ope uma tradio mdica dualista representadapor Paracelso,Van Helmont eS tahl. Estamedicina, sem dvida, est errada aopensarque o mal umser,masela tem razo quando confere um sentido ao conceitodedoena. Se bem que o vitalismo importamenos pelo seu contedo do que peloque indica: ao verificar a realidade da normatividade davida,o vitalismo, longe de deixarescapar o problema dos valores, designa o cerne da questo. Certamente, ostermos"princpio vital", "idia" e "arch" so menos precisos e menos explcitos que asimagensde "desenho", "plano", "idia diretriz" ou "ordem". Mas entidades metafsicas,imagense metforas so suscitadaspela mesma exigncia vitalista e devem seu aparecimento ao "reconhecimento do fatoda organizao": a decodificao do programagentico legitima,aposteriori,todosestespontos de vista.

    Contudo, Canguilhem no esperou esta descoberta para avaliar o vitalismo no qual ele v uma biologia de mdico: vitalismo e naturismo so indissociveis. necessrio, ainda, voltar medicina para criticar a idia de que ela tomaemprestada da fisiologia a noo de norma. Sem dvida, a medicina retoma dafisiologia aquilo que ela lhe forneceu e o que ela mesma recebeu da vida. Poisa

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    medicina,como tcnica de restaurao da sa de ,encontra seu solo originriona vida, que j "atividade mdica natural". A prpria doena traduz o fatofundamental de que a "vida no indiferente s condies nas quais ela possvel , que a vida polaridade e por issomesmo posio inconsciente devalor, em s u m a ,que a vida , de fato, uma atividade normativa" (Canguilhem,1 9 6 6 : 7 7 ) . Pode acontecer que um erro de leitura da mensagemseja a causadas mutaes patolgicas,assimcomo dos desvios de estruturas. Ento, se asmutaesesto na raiz das diferenas que se introduzem na vida, que c o n servao de uma informao, por que razo a histria das cincias da vidano poderia distinguir, na definio da vida, o que ela tem de permanente,por um lado, e o que ela comporta de ruptura, por outro? Porm, quanto metfora segundo a qual o modelo tem pouca importncia, Canguilhemafirm a que se trata, antes de tudo, de mostrar "em que e como esta histria foireal izada". EmA Lgica da Vida, FranoisJacob assinalavaas rupturas, isto ,os diferentes nveis de abordagem do objeto biolgico. com as imagens e asmetforas da normalidade que Canguilhem refaz as ligaes destes diferentesnveis. Da, uma histria das cincias bem ajustada ao seu objeto, uma vezqueela esposaa irredutvel originalidade dos discursos em sua histria.

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    Foucault a histria dos saberesedas prticas

    VeraPortocarrero

    porque a filosofia hoje inteiramentepoltica, e inteiramente histrica. a poltica imanente histria e a histria indispensvelspolticas.Foucault,1983em pretender uma abordagem de carter prescritivo nem solues para as dificuldades que as pesquisas histricas de Foucault apresentam, tentamos aquiapenasexpor a novidade de sua contribuio para os estudos filosficos e histricosda produo cientfica.

    A delimitao dos objetos tratados por Foucault, que podemos compreender como uma insurreio contra os poderes da 'normalizao', corresponde auma seleo de temas intencionalmente relacionados a pontos muitodensos derelaes de poder e de produo de saber, como a doena, a criminalidade, asexual idade,a loucura, o internamento.S euobjetivo saber por meio de que jogos de verdade o homem seconstitui historicamente como experincia, quando se pensa a si mesmo, ao se percebercomo louco, ao se olhar como doente, ao serefletircomo ser vivo que falaeque trabalha, ao sejulgar criminoso.Apesarde essencialmente histrica, sua abordagem , conforme ele mesmo frisa, filosfica e no deve ser confundida com a de um historiador.

    Soestudos de "histria" pelos campos quetratame pelasreferncias queassumem;mas no so trabalhos de "historiador" (...) so- sequisermos encar-los dopontode vistade sua "pragmtica" - o protocolo de um exerccio que foilongo, hesitante, e que freqentemente precisou se retomarese corrigir. Um exerccio filosfico: sua articulao foi adesaber em que medida o trabalho de pensar sua prpria

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    histria pode liberar o pensamento daquilo que ele pensasilenciosamente, epermitir-lhepensardiferentemente(Foucault, 1984:13).Suaspesquisas so exerccios de uma filosofia comprometida com a mudan a,que devem ser mantidas na perspectiva do ensaio, isto , de uma produo sempre provisria e inacabada. Pois, para Foucault, a filosofia questiona

    aquilo que em seuprprio pensamento pode ser mudado por meio do exerccio com outros saberes,do ensaio.

    O ensaio consiste uma "prova modificadora de si",fazendo com que a filosofia nosejauma apresentao simplificadora e unificadora, nem comentrio.

    Nestaatividade de comentrio, que procura transformarum discurso condensado, antigo e como que silencioso asimesmo, em um outromais loquaz, ao mesmotempomaisarcaico e mais contemporneo, oculta-se uma estranhaatitudea respeito da linguagem: comentar , por definio, admitir um excessodo significado (...) No seriapossvel fazer uma anlise do discurso que escapassefatalidade do comentrio, sem supor resto ou excessonoque foi dito,mas apenas ofatode seu aparecimento histrico?(...) Apareceria, ento, a histria sistemtica dosdiscursos(Foucault, 1977b:XV).

    Neste sentido, a filosofia no deve consistir em legitimar aquilo queaprendemos por intermdioda cincia, nem emditar,do exterior,leis aos saberes produzidos, como fazem diversas vertentes da histria e da filosofia da cincia,que se baseiam em princpios racionais considerados superiores.

    A filosofia consiste em questionar os saberes, articulando-os com as prticas,para compreender as condies de possibilidade de sua existncia, sem nenhuma inteno prescritiva.

    O Nascimento da Clnica (Foucault, 1977b), por exemplo, obedece a umprojeto deliberado de determinar as condies de possibilidade da experinciamdica,analisando-as sem colocar uma medicina contra a outra, nem consideraruma ausncia de medicina. A inteno extrair do discurso mdico as condiesde sua histria e no estabelecer uma axiologia, isto , mostrar a verdade traduzidapelo carter normativoque deve possuir.

    Esta forma de trabalhar com a histria da cincia funda-se no seguinte preceito: o que conta nas co isas ditas pelos homens no tanto oque teriampensado aqum ou alm, mas aquilo que, desde o princpio, ass is te mat iza , tornando-as indefinidamente acessveis a novos discursos eabertas tarefa de transform-los.

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    difcil e, sobretudo, infecundo sistematizar um pensamento que se formulacom o cuidado de, em toda suatrajetria,no sepermitirgeneralizaesdefinitivas.P oresta razo, consideramos mais esclarecedor apenas estabelecer uma certa ordem nos vrios deslocamentos conceituais e metodolgicos operados por Foucault.O s primeiros deslocamentos a serem considerados so: da cincia paraasprticas discursivas, ou seja, para o saber, realizado em suas pesquisas sobre as "cincias empricas"; e o deslocamento, realizado por meio do estudodas prticas punitivas, do poder concebido como ideologia para as relaesmltiplas de poder, compreendidas como estratgias abertas e tcnicas racionaisque articulam o seu exerccio.

    T al organizao parte de um questionamento fundado na relao dafilosofiacom a histria por um lado - histria da produo de saberes,cujoobjetivofinal no dizer o que pode haver de verdadeiro no conhecimento, mas saberat onde e como possvel pensar deoutromodo, que chamaremos Histria daVerdade - e, poroutro lado, na relao da produo de saberes com as relaesde poder, que chamaremos Poltica da Verdade.

    1. UMA H I S T R I A DA V E R D A D EA oconsiderar a questo da histria e da filosofia da cincia do pontode

    vistade Foucault, preciso, primeiramente, levar em considerao que seu interesseno diz respeito cincia propriamente, mas ao saber; no sua racionalidade imanente, mas s condies externas de possibilidade de sua existncia.

    importante notar que, quando nos referimos a saber, estamos compreendendo que setratade uma categoria metodolgica, um recurso instrumental, que significa o nvel do discurso e das formulaes tericas, prprios do sabercientfico ou com pretenso cientificidade. Mesmo quando no legitimadocomo cincia, o saber possui uma positividade e obedece a regras de aparecimento, organizao e transformao que podemos descrever.

    A spesquisas de Foucault se inserem em uma linha da histria da verdadedeterminada pelo espao terico, poltico e institucional dos campos onde se situam ossaberes,sem se restringir cincia.

    No a histria das cincias, mas a destes conhecimentosimperfeitos, mal fundados, que nunca puderam atingir, aolongo de uma longa vida obstinada, a forma da cientificidade (Foucault, 1969:179).

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    A noo de saber implica poder e histria. Cada uma requer, para sercompreendida, que sejaremetida outra. S explicamos o saber em sua relaode imanncia com o poder, evice-versa.Alm disso,s possvel analis-los atravsdahistria, no sentido da especificidade e singularidade do acontecimento.S emdvida, um dos aspectos mais importantes desta histria da verdade a relao por ele estabelecidaentrea produo de verdades e as relaes de poder: "a produo de verdade inteiramente infiltradapelas relaesde poder" (Foucault, 1977a:60).N osetratade uma histria factual, linear e neutra, que obedeceria aosideais de descrever os fatos com objetividade total, seguindo uma seqnciacausale cronolgica, mas uma histria arqueolgica e genealgica. Tal histriano obedece noo de uma sucessoprogressiva, linear e gradual, mas a continuidades e descontinuidades.Estasso estabelecidas sem recorrer idia de que uma teoria substituda por uma outra por ser esta ltimasuperior, elidindo a questo do progresso, caracterstica da anlise histrica que se situa no nvel da cientificidade e questiona a maneira pela qual este nvel pode ser alcanado a partir dediversas figuras epistemolgicas. A proposta de Foucault se afasta do tipo dehistria da cincia que busca saber como foi possvelconstituir um domniocientfico contra um nvel pr-cientfico.

    PoisFoucault considera um maumtodocolocar a questo "por que progredimos?"O que importa, para ele, "como issosepassa?"e "(...)o que sepassaagorano forosamente mais elaborado ou melhor elucidado do que se passouantes" (Foucault