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"Todos os bons espíritos repetem, desde Bacon, que somente são reais os conhecimentos que repousam sobre fatos observados." "Ciência, logo previsão, logo ação." (Comte) A Revolução Industrial no século XVIII, expressão do potier da bur- guesia em expansão, demonstrou a eficácia do novo saber inaugurado pela ciência moderna no século anterior. Ciência e técnica tornam-se aliadas, provocando modificações no ambiente humano jamais suspeitadas. De fato, basta lembrar que antes do advento da máquina a vapor, usava-se a energia natural (força humana, das águas, dos ventos, dos animais) e, por mais que houvesse diferenças de técnicas adotadas pelos diversos povos através dos tempos, nunca houve alterações tão cruciais como as que decorreram da Revolução Industrial. A exaltação diante desse novo saber e novo poder leva à concepção do cientificismo, segundo o qual a ciência é considerada o único conhecimento possível e o método das ciências da natureza o único válido, devendo, por- tanto, ser estendido a todos os campos da indagação e atividade humanas. Nesse clima, desenvolve-se no século XIX o pensamento positivista, que tem Augusto Comte (1798-1857) como principal representante. Comte e a lei dos três estados Para um rápido esboço do pensamento de Comte, vamos utilizar suas próprias palavras, como constam da primeira lição do Curso de filosofia positiva. "Estudando, assim, o desenvolvimento total da inteligência humana em suas diversas esferas de atividade, desde seu primeiro voo mais simples até nossos dias, creio ter descoberto uma grande lei fundamental, a que se sujeita por uma necessidade invariável, e que me parece poder ser solida- mente estabelecida, quer na base de provas racionais fornecidas pelo conhe- cimento de nossa organização, quer na base de verificações históricas resul- tantes do exame atento do passado. Essa lei consiste em que cada uma de nossas concepções principais, cada ramo de nossos conhecimentos, passa sucessivamente por três estadqs^históricos diferentes: (. ..) "No estado teológico, o espírito humano, dirigindo essencialmente suas investigações para a natureza íntima dos seres, as causas primeiras e finais de todos os efeitos que o tocam, numa palavra, para os conhecimentos abso- 180 -r- ., Jr is pr -er> r ff írr ic cr -p -o-' -z; 'is ?!' iç~ l<1' ff } ri*' U' de agentes sobrenaturais mais ou menos numerosos, cuja intervenção arbitrá- ria explica todas as anomalias aparentes do universo. "No estado metafísico, que no fundo nada mais é do que simples modi- ficação geral do primeiro, os agentes sobrenaturais são substituídos por forças abstratas, verdadeiras entidades (abstrações personificadas) ineren- tes aos diversos seres do mundo, e concebidas como capazes de engendrar por elas próprias todos os fenómenos observados, cuja explicação consiste, então, em determinar para cada um uma entidade correspondente. "Enfim, no estado positivo, o espírito humano, reconhecendo a impossi- bilidade de obter noções absolutas, renuncia a procurar a origem e o destino do universo, a conhecer as causas íntimas dos fenómenos, para preocupar-se unicamente em descobrir, graças ao uso bem combinado do raciocínio e da observação, suas leis efetivas, a saber, suas relações invariáveis de sucessão e de similitude. A explicação dos fatos, reduzida então a seus termos reais, se resume de agora em diante na ligação estabelecida entre os diversos fenó- menos particulares e alguns fatos gerais, cujo número o progresso da ciência tende cada vez mais a diminuir. "(...) Essa revolução geral do espírito humano pode ser facilmente constatada hoje, duma maneira sensível embora indireta, considerando o desenvolvimento da inteligência individual. ( . . . ) Ora, cada um de nós, contemplando sua própria história, não se lembra de que foi sucessivamente, no que concerne às noções mais importantes, teólogo em sua infância, meta- físico em sua juventude e físico em sua virilidade?" 9 Desse texto podemos constatar que, para Comte, o estado positivo cor- responde à maturidade do espírito humano. O termo positivo designa o real em oposição ao quimérico; a certeza em oposição à indecisão; o preciso em oposição ao vago. É o que se opõe a formas teológicas ou metafísicas de explicação do mundo. Assim, enquanto o primitivo poderia explicar, por exemplo, a queda dos corpos pela ação dos deuses, o metafísico Aristóteles a explicaria pela essência dos corpos pesados, cuja natureza os faz tender para baixo, onde seria o seu "lugar natural". Galileu, espírito positivo, não indagaria o porquê, não procuraria as causas primeiras e últimas, mas se contentaria em descrever como o fenómeno ocorre. Segundo Comte, "todos os bons espíritos repetem, desde Bacon, que somente são reais os conhecimentos que repousam sobre fatos observados". O positivismo retoma, portanto, a linha desenvolvida pelo empirismo do século XVII. Segue a esteira daqueles que aproveitaram a crítica feita por Kant à metafísica, no século XVIII. Leva às últimas consequências o 9. Augusto Comte,- Curso de - filosofia positiva, in Col. Os 'Pensadores, -São Paulo, Abril_Cultural, 1973, p. 9-11. ._ . / x _ :>,;,„;_ : 181

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"Todos os bons espíritos repetem, desde Bacon, que somente sãoreais os conhecimentos que repousam sobre fatos observados."

"Ciência, logo previsão, logo ação."

(Comte)

A Revolução Industrial no século XVIII, expressão do potier da bur-guesia em expansão, demonstrou a eficácia do novo saber inaugurado pelaciência moderna no século anterior. Ciência e técnica tornam-se aliadas,provocando modificações no ambiente humano jamais suspeitadas. De fato,basta lembrar que antes do advento da máquina a vapor, usava-se a energianatural (força humana, das águas, dos ventos, dos animais) e, por mais quehouvesse diferenças de técnicas adotadas pelos diversos povos através dostempos, nunca houve alterações tão cruciais como as que decorreram daRevolução Industrial.

A exaltação diante desse novo saber e novo poder leva à concepção docientificismo, segundo o qual a ciência é considerada o único conhecimentopossível e o método das ciências da natureza o único válido, devendo, por-tanto, ser estendido a todos os campos da indagação e atividade humanas.

Nesse clima, desenvolve-se no século XIX o pensamento positivista,que tem Augusto Comte (1798-1857) como principal representante.

Comte e a lei dos três estados

Para um rápido esboço do pensamento de Comte, vamos utilizar suaspróprias palavras, como constam da primeira lição do Curso de filosofiapositiva.

"Estudando, assim, o desenvolvimento total da inteligência humana emsuas diversas esferas de atividade, desde seu primeiro voo mais simples aténossos dias, creio ter descoberto uma grande lei fundamental, a que sesujeita por uma necessidade invariável, e que me parece poder ser solida-mente estabelecida, quer na base de provas racionais fornecidas pelo conhe-cimento de nossa organização, quer na base de verificações históricas resul-tantes do exame atento do passado. Essa lei consiste em que cada uma denossas concepções principais, cada ramo de nossos conhecimentos, passasucessivamente por três estadqs^históricos diferentes: (. . . )

"No estado teológico, o espírito humano, dirigindo essencialmente suasinvestigações para a natureza íntima dos seres, as causas primeiras e finaisde todos os efeitos que o tocam, numa palavra, para os conhecimentos abso-

180 -r- .,

Jr is pr -er> r ff írr ic cr -p -o-' -z; 'is ?!' iç~ l<1' ff } ri*' U'de agentes sobrenaturais mais ou menos numerosos, cuja intervenção arbitrá-ria explica todas as anomalias aparentes do universo.

"No estado metafísico, que no fundo nada mais é do que simples modi-ficação geral do primeiro, os agentes sobrenaturais são substituídos porforças abstratas, verdadeiras entidades (abstrações personificadas) ineren-tes aos diversos seres do mundo, e concebidas como capazes de engendrarpor elas próprias todos os fenómenos observados, cuja explicação consiste,então, em determinar para cada um uma entidade correspondente.

"Enfim, no estado positivo, o espírito humano, reconhecendo a impossi-bilidade de obter noções absolutas, renuncia a procurar a origem e o destinodo universo, a conhecer as causas íntimas dos fenómenos, para preocupar-seunicamente em descobrir, graças ao uso bem combinado do raciocínio e daobservação, suas leis efetivas, a saber, suas relações invariáveis de sucessãoe de similitude. A explicação dos fatos, reduzida então a seus termos reais,se resume de agora em diante na ligação estabelecida entre os diversos fenó-menos particulares e alguns fatos gerais, cujo número o progresso da ciênciatende cada vez mais a diminuir.

"( . . . ) Essa revolução geral do espírito humano pode ser facilmenteconstatada hoje, duma maneira sensível embora indireta, considerando odesenvolvimento da inteligência individual. ( . . . ) Ora, cada um de nós,contemplando sua própria história, não se lembra de que foi sucessivamente,no que concerne às noções mais importantes, teólogo em sua infância, meta-físico em sua juventude e físico em sua virilidade?" 9

Desse texto podemos constatar que, para Comte, o estado positivo cor-responde à maturidade do espírito humano. O termo positivo designa o realem oposição ao quimérico; a certeza em oposição à indecisão; o preciso emoposição ao vago. É o que se opõe a formas teológicas ou metafísicas deexplicação do mundo.

Assim, enquanto o primitivo poderia explicar, por exemplo, a quedados corpos pela ação dos deuses, o metafísico Aristóteles a explicaria pelaessência dos corpos pesados, cuja natureza os faz tender para baixo, ondeseria o seu "lugar natural". Galileu, espírito positivo, não indagaria oporquê, não procuraria as causas primeiras e últimas, mas se contentaria emdescrever como o fenómeno ocorre.

Segundo Comte, "todos os bons espíritos repetem, desde Bacon, quesomente são reais os conhecimentos que repousam sobre fatos observados".

O positivismo retoma, portanto, a linha desenvolvida pelo empirismodo século XVII. Segue a esteira daqueles que aproveitaram a crítica feitapor Kant à metafísica, no século XVIII. Leva às últimas consequências o

9. Augusto Comte,- Curso de - filosofia positiva, in Col. Os 'Pensadores, -São Paulo,Abril_Cultural, 1973, p. 9-11. ._ . / x_ : > , ; , „ ; _ ;í:

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) )p Jbl fes Vi. i )rú )o K es^ A>K ' a. Jrt.^t-/ c^AstJitcJe Âe^lsh^íaí,entre os fenómenos, ou seja, as leis invariáveis que os regem. Deriva daí odeterminismo, pelo qual o reino da ciência é o reino da necessidade. Aquio conceito de necessidade significa o que tem de ser e não pode deixar deser; nesse sentido, necessário opõe-se a contingente. No mundo da necessi-dade, não há lugar para a liberdade.

Expulsos os mitos, a religião, as crenças em geral e a metafísica, quepapel é reservado a filosofia? Cabe a ela a mera sistematização das ciências:a generalização dos mais importantes resultados da física, da química, dahistória natural. Segundo Morente, o positivismo é o suicídio da filosofia. . .

A classificação das ciências e a sociologia

Comte fez uma classificação das ciências: matemática, astronomia, físi-ca, química, biologia e sociologia. O critério da classificação vai da maissimples e abstraía, que é a matemática, até a mais complexa e concreta, queé a sociologia. Essa ordem não é apenas lógica, mas cronológica, pois foinessa sequência que elas apareceram no tempo.

A sociologia foi considerada ciência por Comte, que se diz seu funda-dor. Define-a como uma física social, mas na verdade toma os modelos dabiologia e explica a sociedade como um organismo coletivo.

O indivíduo encontra-se submetido à consciência coletiva; por isso tempouca possibilidade de intervenção nos fatos sociais. A ordem da sociedadeé permanente, à imagem da invariável ordem natural.

A sociologia de Comte gira em torno de núcleos permanentes, como apropriedade, a família, o trabalho, a pátria, a religião. Exclui a preocupaçãocom uma teoria do Estado e com a economia política.

O interesse de Comte pela ordem revela, segundo os estudiosos, a suavisão conservadora, pois a ideia de ordem está ligada à ideia de hierarquia.(Observe que a palavra ordem significa ao mesmo tempo "arranjo" e "man-do".) É ele mesmo que afirma: "Nenhum grande progresso pode efetiva-mente se realizar se não tende finalmente para a evidente consolidação daordem". Abrindo um parêntese: não estranhe a familiaridade que provocaa menção dos termos "Ordem e 'Progresso", pois o dístico da nossa bandeiraé de inspiração positivista*-',

Em toda a construção teórica comtiana há essa intenção de imobilizaras ideias- em quadros, classificações, que leva à concepção de um saberacabado.

A história não é mais pçnsada como um vir-a-ser, mas como uma se-qíiência congelada de estados definitivos, e a evolução nada mais é do quea' realização,-no tempo,- daquilo que já existia em forma embrionária e quese desenvolve até alcançar xxseu ponto final.

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)Essa rígida construção teórica culmina com a concepção da religião

positiva. Comíe considera a humanidade o "Grande Ser", constituído deantepassados como Moisés, Buda, Confúcio, Maomé, que são venerados emritos sociais.

Não deixa de ser estranho constatar a criação de uma religião positivis-ta, se considerarmos que o contexto comtiano privilegia o positivo comoúltima fase de uma evolução iniciada pelo estado teológico, considerado omais arcaico e infantil da humanidade. Nesse sentido, o professor Verdenalse pergunta: "O exame da religião positiva põe-nos, mais uma vez, diantedas ambiguidades comtianas: trata-se de uma racionalização do sagrado oude uma sacralização do racional?" 10.

Seguidores do positivismo

Dentre os diversos seguidores do positivismo, destacam-se os da escolafrancesa (Littré e Taine) e os ingleses Spencer e Stuart Mill. No Brasil apa-recem representantes como Benjamin Constant, que aliam os novos conceitosao ideal republicano. Além dele, Luís Pereira Barreto, Miguel Lemos eTeixeira Mendes.

Taine (1828-1893) é conhecido sobretudo pelas suas leis da sociologia,segundo as quais toda vida humana social se explica por três fatores:

• a raça, que é a grande força biológica dos caracteres hereditários determi-nantes do comportamento do indivíduo.

• o meio, pelo qual o indivíduo se acha submetido aos fatores geográficos(como o clima, por exemplo), bem como ao ambiente social e às ocupa-ções cotidianas da vida.

• o momento, pelo qual o indivíduo é fruto da época em que vive, estandosubordinado a uma determinada maneira de pensar característica do seutempo.

O pressuposto do pensamento de Taine é o determinismo, pois o atohumano não é livre, já que é causado por esses fatores e deles não podeescapar.

Vamos encontrar o reflexo dessa visão na clássica teoria de Lombroso,jurista que pretendia, pela análise das características físicas dos indivíduos,identificar o criminoso "nato".

Também a literatura foi influenciada pelo positivismo: a corrente natu-ralista possui inúmeros exemplos dessa preocupação em explicar o compor-tamento humano como decorrente daqueles fatores determinantes, sem ne-nhuma possibilidade de transcendência. Émile Zola, romancista francês, afir-

10. Verdenal, apud Châtelet, História da filosofia — Ideias, doutrinas, v. 5, p. 229.

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'n. i:^ O J>n. ,lc ex4 ir, jei. Jl _ tu. i c ns,. ̂ ú^ck da oVG.dçtJ c^ntiucado século; cabe-lhe continuar e completar a fisiologia...; ele substitui oestudo do homem abstrato, do homem metafísico, pelo estudo do homemnatural, submetido às leis físico-químicas e determinado pelas influênciasdo meio".

No Brasil, enquadram-se nessa linha os romances de Aluísio Azevedo:O mulato, O cortiço e Casa de pensão.

A propósito de uma visão crítica do positivismo, consulte o Capítulo 17.

Questionário

1. O que é cientificismo?

2. O que são os três estados para Comte? Quais são as características principais decada estado?

3. O que significa positivo para Comte?4. O que é determinismo?5. Que papei o positivismo reserva à filosofia?

6. Qual é a classificação das ciências proposta por Comte? Qual é o critério usado?7. Qual é a importância da ordem e do progresso para Comte?8. O que é a religião da humanidade?

9. Quais são os três fatores que explicam a vida humana social segundo a sociologiade Taine?

10. Qual a influência do positivismo na literatura?

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O nascimento das ciênciashumanas

"Com Copérnico, o homem deixou de estar no centro do universo.Com Darwin, o homem deixou de ser o centro do reino animal. ComMarx, o homem deixou de ser o centro da história (que aliás, não possuium centro). Com Freud, o homem deixou de ser o centro de si mesmo."(Eduardo Prado Coelho)

1. Introdução

As ciências humanas começam a surgir a partir do final do século XIX,mas ainda hoje se acham dilaceradas na tentativa de estabelecer o métodoadequado à compreensão dos fenómenos do comportamento humano. Sim-plificando as diversas tendências, podemos dizer que há uma corrente natu-ralista, derivada da tentativa de adequar o método das ciências da naturezaàs ciências humanas, e uma corrente humanista, preocupada com a especifi-cidade dos fenómenos humanos e que busca um método diferente daquelesusados até então.

As ciências humanas encontram-se também diante de um novo con-ceito de homem, ferido em seu narcisismo. A epígrafe do capítulo refere-seao tema clássico das "feridas narcísicas" levantado pela primeira vez porFreud e objeto de reflexão do filósofo francês Michel Foucault. Se lem-brarmos que o Iluminismo exalta a razão humana como capaz de entendere dominar a natureza, compreende-se o profundo mal-estar expresso na afir-mação inicial.

O que se discute não é apenas o método das ciências humanas, mas é opróprio conceito de ciência, que será questionado no nosso século. Vejamosos antecedentes desses problemas, desde o século XVII.

Quando estudamos Descartes no capítulo anterior, vimos que o seupensamento desemboca num dualismo psicofísico. Se você se lembra bem,para Descartes, o homem é constituído por duas substâncias: uma de natu-reza espiritual (a rés cogitans) e outra de natureza material (a rés extensa).Esta última pode ser objeto das ciências da natureza, que mecanicamenteexplicam o funcionamento da "máquina" do corpo. Mas a rés cogitans, lugarda liberdade, só pode ser objeto da reflexão filosófica.

• 'Vimos também que a corrente empirista, derivada do pensamento deDescartes mas se opondo ao seu racionalismo, preocupa-se com os processos

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