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1. Critérios políticos; 2. Critérios econômicos; 3. Mercadoria ou sistema; 4. Um critério objetivo; 5. Conclusão. Luiz Carlos Bresser Pereira" • Professor do Departamento de Planejamento e Análise Econômica Aplicados à Administração da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas. R. Adm. Emp •• Poucos temas são mais carregados de conotações ideológicas do que o do controle da população ou do planejamento familiar. Já a distinção entre essas duas expressões possui óbvias implicações políticas. Con- trole da população implicaria uma intervenção imposi- tiva do Estado, enquanto planejamento familiar seria apenas um sistema de orientação e apoio para as famílias, às quais seria deixada plena liberdade para decidir o número de filhos. Se o problema é ideologi- camente conturbado, isto significa que é preciso.pro- curar por trás das posições publicamente assumidas os interesses dos Estados nacionais e das classes sociais. Só assim poderemos ter uma visão um pouco mais cla- ra da questão real que se esconde sob o véu dos interes- ses de classe. Entretanto, a partir das pesquisas sobre índices de natalidade, é possível chegar a conclusões mais objeti- vas. É possível inferir, sobretudo, que as famílias ur- banas muito pobres e as famílias rurais apenas pobres auferem vantagens em ter muitos filhos. Em contra- partida, para as famílias apenas remediadas já começa a ser interessante controlar sua taxa de natalidade. Nestes termos, desde que a renda das famílias esteja crescendo, e que exista um hiato entre o momento em que se torna objetivamente interessante para as famílias realizar o controle e o momento em que elas percebem o fato e/ou se instrumentalizam para reali- zar esse controle, torna-se viável auxiliá-Ias a controlar a própria fertilidade por meio de um programa de pla- nejamento familiar patrocinado pelo Estado que teria a finalidade de preencher esse hiato. E, obviamente, caberia a esse programa um papel estritamente se- cundário em relação ao objetivo maior - do qual a ta- xa de natalidade depende - de promover um padrão de desenvolvimento e de distribuição de renda que ga- ranta rápido crescimento do .padrão de vida das famílias mais pobres. A questão ideológica envolvida é a mais ampla possível. Nela estão contidos aspectos religiosos, se- xuais, econômicos, ecológicos e de poder, de uma for- ma quase inextricável. Verificaremos que as posições em relação ao controle da população são tomadas a partir dos interesses dos Estados nacionais, da burgue- sia, da tecnoburocracia, da esquerda, dos economis- tas, dos ecólogos, dos homens bem-pensantes em ge- raI. E os critérios levam em consideração a revolução ou a conservação do status 'quo, o desenvolvimento. econômico, a independência nacional, a defesa da na- tureza. Em todo o processo, os trabalhadores cuja ta- xa de natalidade se pretende ou não se pretende con- trolar são tratados como objetos e não coino sujeitos. É possível, entretanto, encontrar a respeito do proble- ma critérios objetivos que nos indiquem quais são os reais interesses dos trabalhadores, a partir da análise de seu próprio comportamento em relação ao controle da natalidade. Não pretendemos com isto excluir nos- sos próprios condicionamentos ideológicos, mas even- tualmente lançar um pouco de luz sobre o problema a partir da adoção de um método critico de pensamento .. A discussão começa ao nível da moral religiosa fa- miliar com a questão: é legítimo ou não planejar o ta- manho da família? Ou então, quais os métodos out.ldez. 1978 Rio de Janeiro. 18(4):45-50. Controle da população e ideologia

Poucos temas são mais carregados de conotações · favor: nos países subdesenvolvidos a população cresce explosivamente e, principalmente na Ásia, há muitos ... Mas, examinando

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1. Critérios políticos;2. Critérios econômicos;

3. Mercadoria ou sistema;4. Um critério objetivo;

5. Conclusão.

Luiz Carlos Bresser Pereira"

• Professor do Departamento dePlanejamento e Análise Econômica

Aplicados à Administração da Escola deAdministração de Empresas de SãoPaulo da Fundação Getulio Vargas.

R. Adm. Emp ••

Poucos temas são mais carregados de conotaçõesideológicas do que o do controle da população ou doplanejamento familiar. Já a distinção entre essas duasexpressões possui óbvias implicações políticas. Con-trole da população implicaria uma intervenção imposi-tiva do Estado, enquanto planejamento familiar seriaapenas um sistema de orientação e apoio para asfamílias, às quais seria deixada plena liberdade paradecidir o número de filhos. Se o problema é ideologi-camente conturbado, isto significa que é preciso.pro-curar por trás das posições publicamente assumidas osinteresses dos Estados nacionais e das classes sociais.Só assim poderemos ter uma visão um pouco mais cla-ra da questão real que se esconde sob o véu dos interes-ses de classe.

Entretanto, a partir das pesquisas sobre índices denatalidade, é possível chegar a conclusões mais objeti-vas. É possível inferir, sobretudo, que as famílias ur-banas muito pobres e as famílias rurais apenas pobresauferem vantagens em ter muitos filhos. Em contra-partida, para as famílias apenas remediadas já começaa ser interessante controlar sua taxa de natalidade.Nestes termos, desde que a renda das famílias estejacrescendo, e que exista um hiato entre o momento emque se torna objetivamente interessante para asfamílias realizar o controle e o momento em que elaspercebem o fato e/ou se instrumentalizam para reali-zar esse controle, torna-se viável auxiliá-Ias a controlara própria fertilidade por meio de um programa de pla-nejamento familiar patrocinado pelo Estado que teriaa finalidade de preencher esse hiato. E, obviamente,caberia a esse programa um papel estritamente se-cundário em relação ao objetivo maior - do qual a ta-xa de natalidade depende - de promover um padrãode desenvolvimento e de distribuição de renda que ga-ranta rápido crescimento do .padrão de vida dasfamílias mais pobres.

A questão ideológica envolvida é a mais amplapossível. Nela estão contidos aspectos religiosos, se-xuais, econômicos, ecológicos e de poder, de uma for-ma quase inextricável. Verificaremos que as posiçõesem relação ao controle da população são tomadas apartir dos interesses dos Estados nacionais, da burgue-sia, da tecnoburocracia, da esquerda, dos economis-tas, dos ecólogos, dos homens bem-pensantes em ge-raI. E os critérios levam em consideração a revoluçãoou a conservação do status 'quo, o desenvolvimento.econômico, a independência nacional, a defesa da na-tureza. Em todo o processo, os trabalhadores cuja ta-xa de natalidade se pretende ou não se pretende con-trolar são tratados como objetos e não coino sujeitos.É possível, entretanto, encontrar a respeito do proble-ma critérios objetivos que nos indiquem quais são osreais interesses dos trabalhadores, a partir da análisede seu próprio comportamento em relação ao controleda natalidade. Não pretendemos com isto excluir nos-sos próprios condicionamentos ideológicos, mas even-tualmente lançar um pouco de luz sobre o problema apartir da adoção de um método critico de pensamento ..

A discussão começa ao nível da moral religiosa fa-miliar com a questão: é legítimo ou não planejar o ta-manho da família? Ou então, quais os métodos

out.ldez. 1978Rio de Janeiro. 18(4):45-50.

Controle da população e ideologia

legítimos e quais os ilegítimos de que dispõe o casal pa-ra controlar o número de filhos? Não vou discutir oproblema nesse plano. Cabe entretanto lembrar que amoral católica, que condena a utilização de métodosartificiais, inclusive o uso de pílulas anticoncepcionais,é provavelmente vítima de uma defasagem histórica. Acondenação do controle da natalidade era socialmentenecessária na Idade Média, quando, dadas as altas ta-xas de mortalidade, a não-limitação da taxa da natali-dade era muitas vezes uma condição de sobrevivênciada sociedade.

1. CRITÉRIOS POLÍTICOS

O plano político, entretanto, será estudado um poucomais detidamente. Após a 11Guerra Mundial o contro-le familiar transformou-se definitivamente em um pro-blema político fundamental. Antes o problema já exis-tia, mas foi só a partir de então que os governos, prin-cipalmente nos países asiáticos, tanto pertencentes àesfera capitalista quanto à comunista, passaram a de-senvolver programas de controle populacional. Nospaíses periféricos capitalistas, suas políticas foram de-senvolvidas com o mais decidido apoio dos países cen-trais.' Colocou-se então a questão: deve o Estado par-ticipar ativamente de campanhas de controle da popu-lação ou de planejamento familiar? Em caso afirmati-vo: é legítimo um controle populacional coercitivo ouapenas um planejamento familiar indicativo?

46 Os países capitalistas centrais favorecem decidida-mente o controle populacional nos países subdesenvol-vidos, mas isto não os impede de, em vários casos, esti-mular o crescimento populacional em suas própriasfronteiras. A ambivalência sugere o imperialismo, em-bora esses Estados tenham um bom argumento a seufavor: nos países subdesenvolvidos a população cresceexplosivamente e, principalmente na Ásia, há muitospaíses superpovoados. Já os países capitalistas pe-riféricos dividem-se: os claramente superpovoados,principalmente na Ásia, tendem a adotar o controle,enquanto aqueles com grandes quantidades de terrasvirgens, como acontece em geral na América Latina,tendem a recusar mesmo o planejamento familiar.Adotam essa posição em nome do poder nacional e dadefinição de desenvolvimento econômico como umprocesso de crescimento da renda total, não aceitandouma medida um pouco melhor, ainda que falha, comoé a da taxa de crescimento da renda por habitante.

Os países comunistas periféricos, como a China eCuba, adotam fórmulas de planejamento ou controlefamiliar. .

Ao substituirmos o critério de Estado nacional pelode classe, as posições ideológicas são também contra-ditórias. A burguesia dos países centrais tenderia a fa-vorecer a expansão populacional na medida em que is-to aumenta a oferta da força de trabalho. Entretanto,este é um efeito a longo prazo, e a burguesia está inte-ressada em efeitos a curto prazo. Nesse plano, confor-me observou Cândido Procópio Ferreira de Camargo,convém à burguesia manter limitado o tamanho da

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família, a fim de não ter aumentado o custo de repro-dução da força de trabalho (4, p. 6).

A posição mais comum da esquerda condena o con-trole da natalidade, acusando-o de estratégia burguesapara abafar a luta de classes. Esta posição correspondeà tese de que, para a revolução socialista, quanto piormelhor. Uma posição um pouco mais sofisticada afir-ma que a prioridade está em mudar o padrão de acu-mulação, ou, mais radicalmente, em substituir o modode produção capitalista pelo socialista. Desta posiçãoplenamente coerente e aceitável, entretanto, deduz-seque controlar a população constitui uma alternativadesviacionista da direita, não podendo, portanto, seradmitida. Trata-se, é óbvio, de uma meia-verdade se-guida por uma conclusão ilógica: um típico non sequi-tur,

Outros setores da esquerda, porém, começam a cri-ticar essas posições. Observam que o fato de que a di-reita tenda a apoiar programas de controle populacio-nal não significa automaticamente que esta seja umatese reacionária. Não há dúvida de que há outros pro-blemas com prioridade maior. Mudar estruturalmenteo padrão de acumulação, caminhar em direção ao so-cialismo são tarefas mais importantes do que controlara população. Mas uma ação não prejudica a outra.

A tese de que a pauperização dos trabalhadores -da qual a inexistência de planejamento familiar não é acausa mas um fator obviamente agravante - facilita asua tomada de consciência política é historicamente in-correta. Não é nos países mais subdesenvolvidos ouentre os trabalhadores mais pobres que a conscienti-zação política é mais desenvolvida. Um padrão de vidarazoável não é condição suficiente, mas é condição ne-cessária para uma participação política efetiva. Traba-lhadores subnutridos, miseráveis, preocupados com amera sobrevivência de uma família numerosa não têmcondições de conscientização e organização política. Atese do quanto pior melhor cai, assim, por terra e umnúmero crescente de representantes da esquerda co-meça a aceitar a necessidade ou a conveniência do pla-nejamento familiar.

Neste debate, os critérios para as tomadas de po-sição são os mais diversos e estão entrelaçados. Pode-mos, entretanto, distingui-los. Há o critério político,que já examinamos. Para a direita ou para os paísescentrais a explosão populacional nos países subdesen-volvidos é ameaçadora, convém segurá-la. Para os go-vernantes de Estados com terras ainda não-exploradas, como na América Latina, ou com taxas decrescimento populacional extremamente baixas, comoem certos países da Europa, o aumento da populaçãotorna-se politicamente desejável. Dentro do projeto de"Brasil potência" , definido pelos militares neste país apartir de 1964, por exemplo, está incluído um cresci-mento populacional sem freios.ê Para a esquerda, ocritério é a revolução, que, à luz de uma primeiraanálise, seria ajudada pela explosão populacional.Mas, examinando o problema mais em profundidade,verificamos que a revolução socialista seria prejudica-da por essa mesma explosão populacional. Em todasessas posições, o trabalhador e o bem-estar mínimo da

família estão em segundo plano. Serão alcançados pormeio da política, jamais antes ou concomitantemente·comela.

2. CRITÉRIOS ECONÔMICOS

Mas há outros critérios que rivalizam com o critériopolítico. Os tecnoburocratas, os economistas e, sobsua influência, a burguesia estão preocupados com odesenvolvimento econômico e perguntam-se: o cresci-mento da população prejudica ou facilita o aumentoda renda per capita? Imaginam que respondendo a es-ta questão terão resolvido o problema de controlar ounão a população. A ideologia capitalista, que subordi-na todos os demais valores aos econômicos, é assim ex-plicitada pelo desenvolvimentismo tecnoburocrático,segundo o qual a eficiência é o critério último do bem edomaI.

A resposta, em termos de desenvolvimento econô-mico, entretanto, não é simples. Se adotarmos comofórmula operacional aproximada de definir desenvol-vimento econômico o crescimento da renda por habi-tante, D, podemos escrever que:

.6.YD=-""':"'--

Y6.N---,N

em que Y e N são respectivamente o produto nacionale a população. Por esta fórmula, uma primeira conclu-são é que, dada a taxa de crescimento da renda, quan-to maior for o crescimento da população menor será odesenvolvimento.

Esta conclusão é apressada, na medida em que pres-supõe um dado crescimento da renda. Ora, o cresci-mento do produto depende da população, a não serque o país esteja superpovoado. Por mais que a tecno-logia moderna seja capital-intensiva, a força de traba-lho está longe de ter-se tornado supérflua. Os períodosde grande desenvolvimento econômico, desde a Revo-lução Industrial, são geralmente acompanhados degrande crescimento populacional. O desenvolvimentoé o resultado da acumulação de capital, e esta determi-na o volume de emprego necessário. Quando a popu-lação não cresce para satisfazer suas necessidades, há orecurso aos imigrantes, como aconteceu nos EstadosUnidos no século passado e na Europa no após-guerra.Caso isto não ocorra, os salários crescerão, os lucrosserão reduzidos e a acumulação de capital voltará a di-minuir. Paulo Singer (8) salienta o papel importantedo crescimento populacional como condição para amanutenção de elevadas taxas de acumulação.

Mas o crescimento da população só será essencial aodesenvolvimento quando estivermos, a longo prazo edescontadas as variações conjunturais da economia,em condições de pleno emprego. Ora, nos países sub-desenvolvidos o desemprego disfarçado, o subempre-go são a regra. Mesmo que seus recursos naturais ain-da estejam subutilizados, há excesso de população, hádesemprego.

A razão para isto é simples. O nível de emprego, L,depende do estoque de capital, K, de um país. O

acréscimo no emprego depende da acumulação de ca-pital, .6.K.

L =f(K)

.6.L = f (.6. K)

Como os países subdesenvolvidos são subcapitaliza-dos, são também marcados pelo desemprego. E são,portanto, superpovoados, justificando-se assim, sob oponto de vista econômico, o planejamento populacio-nal.

É nosso pressuposto que nas condições capitalistasde produção, em que a rentabilidade privada de cadaempreendimento deve ser maximizada, os coeficientestécnicos implícitos nas duas funções acima são forte-mente rígidos. A margem para substituição de mão-de-obra por capital em condições econômicas ótimas émuito pequena. As propostas de tecnologia interme-diária, como as realizadas por Schumacher (9), sãomuito atrativas e generosas, mas infelizmente suaspossibilidades práticas no mundo capitalista são limi-tadas.

Já nas economias planejadas, em que os critérios derentabilidade individual podem ser abandonados, epodem continuar a coexistir lado a lado sistemas mo-derníssimos, altamente capital-intensivos, com siste-mas artesanais, para produzir os mesmos produtos -nessas economias os coeficientes técnicos tornam-semais flexíveis. É o caso típico da China. Com este tipode política o desemprego é eliminado. Toda a popu-lação é utilizada na produção. Entretanto, como ostrabalhadores marginais estão sendo utilizados inefi-cientemente, e como há uma crescente pressão sobre oslimitados recursos naturais do país, o controle popula-cional está firmemente implantado na China, apesarda maior flexibilidade dos coeficientes técnicos de pro-dução.

Esta observação sugere um outro critério, que vemsendo cada vez mais empregado para discutir os pro-blemas populacionais: o critério ecológico. A humani-dade, nos últimos 10anos, tomou, definitiva e drama-ticamente, consciência da limitação dos recursos natu-rais do planeta Terra. Contribuições como as d••Georgescu-Roegen (5) ou do Clube de Roma, no estu-do sobre os Limites do crescimento, foram decisivaspara alertar o homem não apenas contra os abusos doconsumismo e dos gastos militares desenfreados, mastambém contra o perigo da explosão populacional, emnome da sobrevivência da humanidade. Seus argumen-tos são irrespondíveis.

3. MERCADORIA OU SISTEMA

Os critérios políticos, econômicos e ecológicos são res-peitáveis, mas em última análise são todos ideológicos,são todos direta ou indiretamente políticos. E nessestermos só são aceitáveis para cada um dos participan-tes do debate - economistas, sociólogos, demógrafos,políticos, capitalistas, religiosos, médicos, assistentessociais - na medida em que estão de acordo com osseus interesses de classe. Ora, no mundo contemporâ-

Controle da população

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neo os ilustres estamentos profissionais que acabei decitar pertencem a uma das duas classes dominantes: ouà burguesia ou à classe tecnoburocrática. Os trabalha-dores são o objeto dessa discussão. Não são sujeitosdo debate nem sua própria condição de vida é o princi-pal critério das tomadas de posições. Os defensores decritérios políticos, econômicos ou ecológicos e, natu-ralmente, também os defensores de critérios religiosospodem pretender que seu objetivo final éo bem-estardo povo, mas é fácil perceber que esse objetivo é muitoindireto, pairando antes e sempre sob o crivo dos inte-resses da própria classe dos debatedores.

Para o capitalismo puro, o trabalhador é uma mer-cadoria como qualquer outra que deve ser produzida econsumida. Quando a mão-de-obra é abundante, nasfases iniciais do capitalismo, "o consumo da força detrabalho pelo capital tende a ser extremamente pre-datório", conforme observa Francisco de Oliveira (7,p. 17). Mais tarde, quando nos países centrais começaa escassear mão-de-obra, seu "consumo" por parte docapital começa a ser mais cuidadoso, inclusive porquenesse momento os trabalhadores já se acham organiza-dos sindicalmente.

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Para o estatismo ou o tecnoburocratismo puro,3 otrabalhador não é uma mercadoria, mas um sistema deprodução como qualquer outro: um sistema de pro-dução que recebe inputs e produz outputs nos termosem que foiplanejado. É preciso dosar cuidadosamenteos inputsem termos de alimentação e treinamento, afim sobretudo de maximizar a eficiência operativa dotrabalhador.

..

Para o capitalismo puro, quanto mais crescer a po-pulação, mais assegurada estará a acumulação de capi-tal. Já para ° tecnoburocratismo ou ° estatismo, a po-pulação, como todos os demais subsistemas do sistemageral de produção, deve ser cuidadosamente controla-da. Em certos momentos, será indicado estimular ocrescimento da população; em outros,· procurarreduzi-lo. Mas, sempre, controlá-lo em nome do Esta-do planejador de todo o sistema social.

I•IlO

er:111lO.

4. UM CRITÉRIO OBJETIVO

Diante dessas posições ideologicamente condicionadasdas classes dominantes, pergunta-se: seria possível en-contrar um critério objetivo que legitime ou condene oplanejamento familiar? Por critério objetivo entende-mos um critério que parta dos trabalhadores que vãorealizar o planejamento, e que atenda aos seuspróprios interesses.

Não creio que uma pesquisa de campo, em que seprocurasse determinar a opinião dos trabalhadores,fosse resolver o problema. Se as famílias pobres têmmuitos filhos, de duas uma: ou esta prática atende àssuas necessidades, ou é um erro que essas famílias es-tão cometendo por falta de informações e orientaçãoadequadas. Uma pesquisa à base de entrevista poderáfornecer alguns elementos a respeito. mas dificilmenteserá conclusiva, dada a hipótese de que pode haver fal-ta de informação por parte das famílias trabalhadoras.

Revista de Administração de Empresas

Mais significativas são as pesquisas que relacionamnível de renda com fecundidade das mulheres. ElzaBerquó, por exemplo, verificou que existe uma fortecorrelação negativa entre a rendaper capita e a fecun-didade das mulheres brasileiras (2, p. 109). Esta pes-quisa veio confirmar um grande número de outras ob-servações e pesquisas no mesmo sentido.

Quando as famílias são muito pobres, os índices denatalidade são muito altos. Para essas famílias, ás cus-tos adicionais de educação, saúde e vestuário sãomínimos, já que elas nada gastam com esses objetivos.E os próprios custos de alimentação são baixos, espe-cialmente na zona rural. Em contrapartida, "filho ho-mem é seguro de velho". Os filhos podemtransformar-se muito cedo em um ativo importante,como mão-de-Obra produtiva, e para a velhice dos paispodem representar um papel decisivo. Mas assim que asociedade se urbaniza, e que o padrão de vida dasfamílias cresce um pouco, as condições começam amudar rapidamente. Os custos de alimentação são osprimeiros a se tornarem inescapáveis e, portanto, a su-bir vertiginosamente. A conseqüência é a dramáticasubalimentação das crianças. Os demais custos sobemem seguida, à medida que a família vai procurandoincorporar-se aos padrões de consumo mínimos da vi-da urbana.

A necessidade das famílias de planejar seu númerode filhos pode ser diretamente deduzida da correlaçãonegativa entre renda por habitante e fecundidade dasmulheres. A natalidade decresce à proporção que asfamílias aumentam seu nível de vida e se urbanizam.Embora ambos os fatores sejam correlacionados, a ur-banização é uma dependente também muito importan-te. Considerado um mesmo nível de vida, famílias ur-banas têm menos filhos do que famílias rurais. Na vidaurbana, a partir do momento em que o padrão de vidadas famílias cresce um pouco, torna-se cada vez menosinteressante um grande número de filhos. Este é umdado objetivo ao qual devemos, entretanto, acrescen-tar uma hipótese: existiria um hiato entre o momentoem que objetivamente deixa de ser interessante para asfamílias dos trabalhadores maximizar o seu número defilhos e o momento em que elas tomam consciência doproblema e se instrumentalizam técnica e economica-mente (porque, é bom lembrar, alguns métodos, comoas pílulas, são caros) para realizar o controle.

.. O papel do planejamento familiar como política doEStado é preencher esse hiato. É colocar à disposiçãodas mulheres, que são as maiores sacrificadas no pro-cesso, e das famílias em geral as informações ne-cessárias para um efetivo controle da própria fertilida-de. Além da orientação, formas de subsídio às famíliasmais necessitadas são também perfeitamente reco-mendáveis. Nestes termos, o Estado não desenvolveuma política populacional. A fertilidade é um proble-ma que diz respeito à liberdade de cada família. Apolítica populacional é alguma coisa que se define apartir da própria elevação do padrão de vida dos tra-balhadores e da sua tomada de consciência de que asvantagens em limitar os filhos são muito grandes nassociedades industriais e urbanizadas.

5. CONCLUSÃO

Em conclusão, critérios externos aos trabalhadores po-dem inclusive legitimar formas autoritárias de controlepopulacional. No momento em que procuramos en-contrar um critério objetivo para o problema a partirdos interesses das próprias famílias trabalhadoras, enão nos basear em critérios oriundos dos interesses eideologias de capitalistas e tecnoburocratas, podemoslegitimar formas de planejamento familiar de-mocráticas, que garantam a autonomia dos trabalha-dores em relação à dimensão de sua própria família.

É óbvio, entretanto, que tanto uma política de pla-nejamento familiar democrática quanto formas auto-ritárias de controle populacional serão fadadas ao in-sucesso caso não sejam acompanhadas de uma ele-vação real do padrão de vida da população. A corre-lação negativa entre renda familiar e fertilidade, dadastaxas de mortalidade decrescentes, é, também aqui,um critério objetivo a condicionar a redução da taxade crescimento da população à elevação do padrão devida dos trabalhadores. Não apenas o planejamentofamiliar não é prioritário em relação a modificaçõesestruturais no padrão de desenvolvimento, mastambém, se não se encontram formas de desenvolvi-mento menos concentradoras de renda, os programasde planejamento familiar ou de controle populacionaltenderão a apresentar parcos resultados.

O planejamento familiar implica custos não apenaspara o Estado ou as instituições privadas que os admi-nistram mas também para as famílias que se dispo-nham a colocá-lo em prática. Para as famílias extre-mamente pobres, o custo de ter filhos é relativamentepequeno, enquanto os beneficios, em termos de mão-de-obra infantil e de seguro para a velhice, são muitoelevados. Qualquer programa de planejamento fami-liar nesse estágio será provavelmente fadado ao insu-cesso. No momento, entretanto, em que começa a seelevar o padrão de vida das famílias, em que a mulheré alfabetizada e passa a trabalhar como assalariada, astaxas de natalidade começam a cair imediatamente.

A redução da taxa de natalidade é, portanto, funçãodo desenvolvimento econômico, ou melhor, da ele-vação do padrão de vida das populações mais pobres,onde se encontram as altas taxas de natalidade. Acele-radas taxas de crescimento econômico acompanhadaspor um forte processo de concentração de renda, do ti-po que ocorreu no Brasil em anos recentes, terão pro-vavelmente pequena influência na redução da natali-dade. Em contrapartida, conforme observa AntonioCarlos Kfoury Aidar, "a níveis econômicos agregadossimilares, quanto mais igual for a distribuição econô-mica e social, menor será o nível geral de fertilidade emais rápido o declínio da fertilidade, de forma a per-mitir uma taxa menor de crescimento da população"(1, p. 15). Este fato foi verificado empiricamente.Países em que a distribuição de renda é relativamenteigual, como a Malásia Ocidental e a China, apresenta-ram um enorme declínio da taxa de natalidade, en-quanto em outros países, como México, Colômbia ou

Índia, caracterizados por uma alta concentração derenda, os resultados foram muito mais modestos.f

O problema do planejamento familiar, portanto,está diretamente relacionado com a capacidade dospaíses subdesenvolvidos de se desenvolver e principal-mente de fazê-lo distribuindo a renda de forma muitomais igualitária. Na medida em que isto ocorrer, pro-gramas de planejamento familiar poderão ser bem su-cedidos, desde que, acompanhando a tendência jáexistente no sentido do controle da natalidade, orien-tem e acelerem essa tendência. A última coisa que po-deríamos imaginar, porém, é a idéia, tão cara aosideólogos conservadores de direita, de que o planeja-mento familiar vá ser a causa da elevação do padrão devida das populações pobres. O processo, sem dúvida, édialético, um fator reforçando o outro, mas a linhacausal determinante é muito mais forte e significativano sentido inverso. Só a implantação de sistemas eco-nômicos e sociais mais justos e igualitários permitirá aredução da natalidade e o êxito de programas de plane-jamento familiar. O

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Controle da população

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I A explosão populacional em todo o mundo e principalmente nospaíses subdesenvolvidos pode ser expressa pela evolução das taxasde crescimento'da população. Entre 1750 e 1850 os países desenvol-vidos cresciam a uma taxa de 0,51170ao ano, enquanto os subdesen-volvidos o faziam a 0,41170.Estas taxas já podiam ser consideradaselevadas em relação ás anteriores, inferiores a 31170ao ano. Refletiama revolução agrícola e em seguida a industrial. No século seguinte es-sas taxas crescem para respectivamente 0,6 e 0,91170.Finalmente, en-tre 1950 e 1975 há um dramático crescimento da população nospaíses subdesenvolvidos, cuja taxa de crescimento sobe para 2,31170,ao passo que nos desenvolvidos a taxa tende a estabilizar-se em tor-no de 1,11170.

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2 Devido à influência da tecnoburocracia civil, ao nível dos mi-nistérios e aos níveis sociais, a política brasileira em relação ao con-trole da natalidade está mudando. Em maio de 1977 o Ministério daSaúde se preparava para apresentar ao Conselho de Desenvolvimen-to Social um programa de distribuição de pílulas anticoncepcionaispara prevenção da gravidez de alto risco. O conceito de gravidez dealto risco, entretanto, estava sendo definido de forma bastante am-pla, incluindo os casos de subnutrição da mãe, de forma a abrangerentre 20 e 251170dos casos de gravidez no Nordeste. Em 27 de julho de1977o Conselho de Desenvolvimento aprovou oficialmente um pro-grama de planejamento familiar com uma doação de 54 milhões de

Os mais belos quadros dosgrandes mestres estão agoraao seu alcance.Reproduções sobre tela,importadas da Itália, que nãodevem nada aos originais, (anão ser no preço) paravalorizar o seu ambiente.A escolha é sua.

cruzeiros para um periodo de 4 anos. Quase metade da verba seráutilizada na compra de pílulas anticoncepcionais. O DIU não seráutilizado. Cada família terá a autoridade de controlar ou não seunúmero de filhos. A vitória da linha a favor do planejamento fami-liar dentro do governo brasileiro provavelmente indica .que, depoisda crise que se abateu sobre o país a partir de 1974, os sonhos do"Brasil potência" estavam mais moderados.3 Sobre o conceito de estatismo ou modo tecnoburocrático de pro-dução ver Bresser Pereira (3), primeira parte.4 A Malásia Ocidental, cuja taxa de crescimento da população erade 3,11170ao ano no período 1958-1964, baixou-a para 1,71170noperíodo 1970-73. A China, cuja taxa de aumento populacional já erade 1,51170ao ano no período 1958-1964, reduziu-a para 1,41170em1963-1967. A Colômbia, que no primeiro período apresentava umataxa de 3,21170,mantinha a mesma taxa em 1970-1973, e o México au-mentou sua taxa de crescimento populacional de 3,21170para 3,51170nos mesmos períodos. No Brasil, onde não houve política de contro-le familiar, a taxa de crescimento da população baixou de 3, I 0J0 para2,91170.Este fato deve-se provavelmente ao forte processo de urbani-zação e à redução de fertilidade nas famílias das camadas médias.Na Índia, nos mesmos períodos, as respectivas taxas foram de 2,31170e 2,11170.(Fonte: Anuários Demográficos da Organização das NaçõesUnidas, 1965, 1967, 1973.)

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