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40 R E V I S T A U S P , S Ã O P A U L O ( 2 8 ) : 4 0 - 5 5, D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 9 5 / 9 6 P O V O Negro ACIMA, HOMENS NEGROS DE MOÇAMBIQUE, POR RUGENDAS; AO LADO, FOTO DE NEGRO CABINDA, POR JOSÉ CHRISTIANO DE FREITAS HENRIQUES JR. Fotos do livro O Olhar Europeu, de Boris Kossoy e Maria Luiza T. Carneiro

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F L Á V I O D O S S A N T O S G O M E S

Em torno dosbumerangues:outras históriasde mocambosna Amazôniacolonial

Os negros escravizados procuraram sempre que puderam resis-

tir à opressão a eles imposta no interior dos complexos mundos da

escravidão. Buscavam nas diversas formas de enfrentamento - nas

quais incluíam agenciamentos e percepções políticas com signifi-

cados próprios - conquistar aquilo que concebiam como liberdade.

Fazendo referências à mitologia grega, quando Hércules defrontrou-

se com a indestrutível Hidra de Lerna - monstro de várias cabeças,

que mesmo depois de cortadas renasciam -, as autoridades coloni-

ais de diversas regiões escravistas das Américas tentaram destruir

as comunidades formadas por fugitivos escravos. Diziam que os

quilombos, palenques, cumbes, mocambos, mambises, maroons

Revista USP
Stamp
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ou ladeiras eram como verdadeiras hidras.Igualmente, eram invencíveis. Quando pare-ciam estar destruídos, ressurgiam mais fortese assustadoras. Em 1751, como assinalouPrice, um antigo governador do Suriname, aovoltar à Holanda, comentou que era necessá-rio um “trabalho” como o de Hércules paradar fim às comunidades de maroons — prin-cipalmente os saramakas — que estavam portoda a parte daquela colônia (1).

Em trabalho recente, neste caso para oano de 1878, igualmente destacamos comoas autoridades da província do Rio de Janeirotambém referiam-se aos quilombos locaiscomo hidras. Esses quilombos, situados naregião fluminense de Iguaçu, já preocupavamaquelas autoridades desde o início do séculoXIX. O ministro da Justiça, na ocasião, co-brava das autoridades policiais “imediatasmedidas” para pôr fim a esses redutos de fu-gitivos, impedindo assim — segundo ele —que se reproduzissem da “semelhança da fá-bula da Hidra de Lerna”(2).

Mas se a mitologia da hidra ajuda-nos aentender os quilombos — não só no Brasilcomo também em outras regiões das Améri-cas escravistas — o que tem ela a ver combumerangues?

É possível seguir aqui algumas pistas dePeter Linebaugh. Este, em artigo sugestivo,aponta para a existência de uma circulação deidéias e trocas de experiências (que denomi-na de tradição antinômica) de trabalhadoresatravés da navegação comercial atlântica. Suaargumentação instigante é de que havia um“bumerangue africano”, no sentido de que asexperiências históricas das rebeliões e insur-reições escravas nas Américas influenciarama “formação da classe operária inglesa” nummovimento de “ida e volta”. Ou seja, escra-vos negros podiam não só ter conhecimentodos levantes que aconteciam em outras colô-nias mas também interagir nos motins ocor-ridos na Inglaterra (3).

Linebaugh retomou recentemente esteargumento com mais evidências e outras su-gestões. Em co-autoria com Rediker anali-sou, inclusive, a utilização da fábula da hidra— fala das várias “cabeças da hidra” — porparte das autoridades coloniais nas Américase na Europa para descrever os contatos e co-operação entre taberneiros, escravos, traba-lhadores assalariados, marinheiros, africanos,europeus, indígenas e outros setores das soci-

edades que formavam o que chama de “classeoperária atlântica”(4).

II

No Brasil, em vários momentos, existemigualmente exemplos que demonstram deforma inequívoca de que modo escravos elibertos, entre outros, estavam atentos à con-juntura internacional a sua volta. O própriomedo permanente das autoridades em varia-dos locais e circunstâncias é a maior provadisso.

Em meados da década de 30 do séculoXIX — devido a repercussões do levante dosmalês na Bahia — em várias regiões brasilei-ras temeu-se uma insurreicão geral da massaescrava. Na ocasião, em meio a tantos rumo-res, denúncias e boatos, as imagens do medose ampliavam (5). Autoridades e populaçãoem geral, cada vez mais aterrorizadas com apossibilidade real de eclodir um levante afri-cano, não mencionavam somente, a título dereferência, os episódios ocorridos em Salva-dor em 1835. Renascia igualmente o fantas-ma haitiano. Em janeiro de 1836, uma denún-cia anônima é enviada ao governo imperial,lembrando-lhe o “exemplo da Ilha de SãoDomingos”. O denunciante, na ocasião, ba-seava-se em informações relativas ao acha-do, junto a um escravo, de “hum papel queservia de plano para ensinar como os pretossaberão juntar no dia 24 e 25 para começar amatança dos brancos e pardos”. Num tomalarmante pedia providências mais efetivaspor parte das autoridades do Império, umavez que acreditava que logo a sociedade, emparticular a Corte, seria vítima de uma “nu-vem negra”, representada por uma revolta deafricanos. O medo ganhava mais significa-dos simbólicos. Alguns possivelmente ima-ginavam uma grande tempestade que se aba-teria sobre todos os “brancos”, uma vez quea “nuvem negra” se preparava para escurecertodo o céu.

O fantasma do haitianismo atacava emoutros lugares. Algumas denúncias diziamexistir um “cafre” haitiano, chamado Moiro,que estava convidando os escravos das vilasdo Bananal, Areias, Barra Mansa e São JoãoMarcos no Rio de Janeiro para se insurgireme que já havia mesmo cerca de sete mil cati-vos envolvidos nesse plano. Fato interessan-te é que o dito haitiano foi preso e “não ne-

1 Ver: Richard Price, To Slaythe Hidra: Dutch ColonialPerspectives on theSaramaka Wars, An Arbor,Karoma, 1983.

2 Cf. Flávio dos Santos Go-mes, “O ‘Campo Negro’ deIguaçu: Escravos, Campo-neses e Mocambos no Riode Janeiro (1812-1883)”, inEstudos Afro-Asiáticos, n°25, Rio de Janeiro, dezem-bro de 1993, pp. 43-72.

3 Ver o artigo instigante dePeter Linebaugh: “Todas asMontanhas Atlânticas Estre-meceram”, in Revista Bra-sileira de História, n° 6, SãoPaulo, setembro de l983.Posteriormente, ao replicaras crít icas de RobertSweeny, Linebaugh apre-senta mais pistas interes-santes para reforçar seusargumentos, ver: RobertSweeny. “Outras Cançõesde Liberdade: uma Críticade ‘Todas as MontanhasAtlânticas Estremeceram’”,e Linebaugh, “Réplica”, inRevista Brasileira de Histó-ria, volume 8, número 16,São Paulo, mar./88-ago./88,pp. 205-19 e 221 respecti-vamente.

4 Cf. Peter Linebaugh & MarcusRediker, “The Many-Headed Hydra: Sailors,Slaves, and the AtlanticWorking Class in TheEighteenth Century”, inJournal of HistoricalSociology, vol. 3, n° 3, se-tembro/l990, pp. 225-52.

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independência do Haiti em 1804, “o ouvidordo Crime mandara arrancar dos peitos de al-guns cabras e crioulos forros, o retrato deDessalines, Imperador dos negros da Ilha deSão Domingos” (7). Em 1831, a polícia pro-curava investigar as ações de dois haitianosque, desembarcados na corte, foram avista-dos em conversas com “muitos pretos” na ruados Latoeiros. Em 1841, o Ministério da Jus-tiça recebia de Londres mais notícias assus-tadoras relativas a um “Clube ou Sociedadedos Abolicionistas da Escravidão” que haviaenviado dezenas de pretos forros jamaicanospara Cuba, visando propagar idéias de rebe-lião junto aos escravos (8). Já em 1848, exis-tiam rumores de insurreições escravas emvárias províncias, entre as quais Rio Grandedo Sul, Bahia e Rio de Janeiro. Dizia-se, in-clusive, da “idéia da possibilidade de combi-nação, ou existência de hum plano mais oumenos ramificado entre a escravatura dedifferentes lugares”. Na ocasião, alertava opresidente da província do Rio de Janeiro,que “huma tão criminosa combinação, casoexista, pode ser filha ou de inspirações pró-prias, ou de sugestões tramadas por algumaSociedade Gregoriana ou agentes dos princí-pios abolicionistas da escravidão, outra qual-quer influência estrangeira”.

Na década de 50, os rumores de insurrei-ções escravas voltam a aumentar na corte eno interior de algumas províncias. Em fins denovembro de 1850, havia boatos de revoltasde cativos em São João da Barra, no Rio deJaneiro. Na ocasião, as autoridades andavamàs voltas com a repressão ao tráfico negreiroilegal. Segundo investigações posteriores, obrigue “Escuna-Astro” tentava fazer um de-sembarque clandestino de africanos no lito-ral fluminense e “logo que o vapôr deo fundoem São João da Barra, alguns escravos seevadirão das cazas de seos senhores, decla-rando que vinhão para bordo do mesmo vapôr,por estarem livres, sendo-lhes dada a liberda-de pelos ingleses”.

Outro episódio interessante aconteceu naprovíncia do Espírito Santo. No final do anode 1851, as autoridades desta província esta-vam atentas diante da possibilidade da eclosãode uma insurreição escrava na comarca deSão Mateus. Advertiam na oportunidade quetal tentativa de revolta tinha se originado “daidéia propalada [entre os escravos] de que anovíssima Lei de repressão ao Tráfico os há

gou” as acusações contra ele existentes deque estaria convidando vários cativos paraparticipar de uma insurreição, “porém disse,que estava brincando”. Brincadeiras ou não,o certo é que as autoridades provinciais pedi-ram a expulsão deste haitiano do Brasil.

O medo parecia cruzar fronteiras e mares.Os temores relativos aos malês baianos e aosrebeldes haitianos misturavam-se agora parasignificar um movimento internacionalista desublevações escravas. Isso mesmo! Diversasautoridades temiam a existência de planos derevoltas articuladas entre escravos de váriaspartes da América com a participação deabolicionistas ingleses e emissários interna-cionais. Em setembro de 1835, o ministro daJustiça recebe um ofício reservado do agentediplomático do Brasil em Londres, que dizia:

“Sabemos por noticias recentes do Sul dosEstados Unidos, que ali aparecerão mui-tos indivíduos mandados por várias Soci-edades de Philantropia e emancipaçãodeste Paiz que com o fim de promoverema liberdade dos escravos ião excitando alevantes, espalhando entre elles ideas deinsubordinação. Vários delles forão apa-nhados e enforcados immediatamente,outros ameaçados e muitos negros, oumortos ou rigorosamente castigados. Pa-rece-me bastante provavel que iguaesemissários sejão d’aqui mandados para oImperio, e que muito nos conviria aintrodusir em huma ou mais das Socieda-des Philantropicas da Inglaterra, pessoade confiança que podesse dar conta de qualquer tentativa contra o socego do Brasilque nellas se originasse. Como porém talpasso demande despezas extrordináriaspara que não estou authorizado, só me restasubmeter a consideração de Vossa Exce-lência e pedir-lhe suas ordens a respeitodelle”.

Temores se espalhavam recebendo e/ouemitindo outros medos que podiam atraves-sar até mesmo fronteiras atlânticas (6). As-sim como os medos cruzavam os mares, tam-bém idéias de liberdade podiam circular. Umfato interessante nessa direção, por exemplo,ocorrido na Corte, ainda com relação ao medoprovocado pela revolução haitiana no Brasil,é que um ano após Jean Jacques Dessalines,ex-escravo natural da Guiné, proclamar a

5 A documentação utilizadaneste artigo é fruto de pes-quisas nossas em váriosarquivos, como: ArquivoNacional, Arquivo Públicodo Rio de Janeiro, Biblio-teca Nacional, Arquivo doItamaraty, Arquivo Públicodo Espírito Santo, InstitutoHistórico e Geográfico Bra-sileiro e Arquivo Público doMaranhão. Quanto à docu-mentação sobre a Amazô-nia colonial, foi pesquisadano Arquivo Público doPará. Um bom repertóriodessas fontes transcritasencontra-se em: AnaízaVergolino-Henry & ArthurNapoleão Figueredo, APresença Africana naAmazônia Colonial: umaNotícia Histórica, Belém,Arquivo Público do Pará,1990. A investigação his-tórica sobre mocambos naAmazônia colonial consti-tui parte de um projeto depesquisa desenvolvido naUFPA, que conta tambémcom apoio do CNPq. Agra-decemos aos alunosSilvandro de NascimentoOliveira e Shirley Maria No-gueira — bolsistas de Ini-ciação Científica — pelamotivação e interesse dedescobrir mais “bume–rangues quilombolas” naAmazônia.

6 Em 11 de dezembro de1835, o ministro da Justiçaoficiava ao chefe de polí-cia da corte, recomendan-do a este que procurasse“com todo zelo e cuidadodescobrir se algumas So-ciedades ou IndivíduosNacionaes ou Estrangei-ros, protegem, e promo-vem o abominável plano deinsurreição” dos escravosno Brasil.

7 Cf. Luiz R. B. Mott, “A Re-volução dos Negros doHaiti e o Brasil”, in Histó-ria: Questões & Debates,3(4), Curitiba, 1982, p.57.

8 Cf. Sidney Chalhoub, “MedoBranco de Almas Negras:Escravos, Libertos e Repu-blicanos na Cidade do Rio”,in Revista Brasileira deHistória, volume 8, núme-ro l6, São Paulo, mar./88-ago./88, pp. 83-105.

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libertado da escravidão que elles, supondolhes ser ocultada pelos senhores, procuraramobter por meios violentos e criminosos”.

Tais evidências demonstram de que modonas províncias do Rio de Janeiro e do Espí-rito Santo — e provavelmente em outras pro-víncias e regiões — os escravos estavam nãosó percebendo as discussões e movimentosem torno do final do tráfico negreiro (debatesparlamentares, pressões da Inglaterra e re-pressão ao tráfico clandestino), mas tambémtentando tirar proveito daquela situação apartir de suas próprias lógicas. Aliás, comrelação ao episódio ocorrido na comarca deSão Mateus, as autoridades locais destaca-vam que o “boato” da insurreição escrava ti-nha sido provocado pela negligência dos pró-prios fazendeiros escravistas da região, pois“sabendo da repressão do tráfico e, inverten-do os fatos por falta de percepção, davamcomo consequência a emancipação da escra-vatura...”.

Por outro lado, se escravos podiam terconhecimento de fatos que ocorriam em ou-tros países, também faziam deles uma avali-ação política própria. Idéias e experiências,além de compartilhadas, ganhavam novosconteúdos políticos. A esse respeito, no Bra-sil, na segunda metade do século XIX, apóstoda a discussão sobre o fim do tráfico deescravos e as pressões da Inglaterra com aQuestão Christie no início da década de 60, ochefe de polícia, percorrendo toda a provín-cia fluminense, informou ao ministro da Jus-tiça que não encontrara nenhum indício demanifestação “sediciosa” por parte dos es-cravos, porém, que na freguesia do Carmo“fez correcionalmente castigar a 3 escravospor terem dito públicamente em conversaçãocom outros parceiros, que os ingleses tratavãode libertar a escravatura do Brasil, e que estaos devia ajudar em terra”.

As autoridades temiam igualmente que asidéias de insurreição escrava chegassem atéos quilombos, o que aumentaria as propor-ções de um grande levante. Isso aconteceu,por exemplo, na província do Maranhão. Em1861, o Ministério do Império era informadosobre os rumores de constituição de “clubs delibertos” e que os escravos na vila Anajatubahaviam declarado que eram livres, pois exis-tia naquele porto um “vapor de guerra” queos libertaria. Indagando a respeito dessesacontecimentos, o presidente daquela provín-

cia chama a atenção para o fato de que a ori-gem daquelas “idéias” era a entrada no portode São Luís de “dous vapores de guerra, umdos Estados Unidos da América do Norte eoutro dos Estados que se querem constituirem confederação separada”. Os temores dasautoridades na ocasião aumentaram, já quenos municípios próximos de Viana e Turiaçusabia-se da movimentação de quilombolas.O fantasma haitiano aqui era substituído poraquele da guerra civil americana.

Podemos também pensar os“bumerangues africanos” transatlânticosapontados por Linebaugh a partir de umaperspectiva interna. A propósito de rumoresde uma insurreição escrava no interior do Riode Janeiro, segundo investigações e interro-gatórios feitos junto aos cativos, descobriu-se que o líder do plano de revolta era um es-cravo crioulo alfabetizado que ia à cidade,que ficava próxima daquela fazenda, com-prar o “monitor e outras folhas incendiárias”,as quais lia e transmitia aos outros escravosas notícias relacionadas às discussõespublicadas em torno da emancipação do ele-mento servil. Constava, ainda, que os referi-dos escravos alertados pelo crioulo Manoeldo Sacramento estavam inquietos, “despeita-dos pelo facto das liberdades pelo fundo deemancipação, e não confiando no sorteio,resolverão praticar aquelle acto de insurrei-ção”. Impacientes com o que consideravamengodo e negação por parte do dito fazendei-ro daquilo que acreditavam ser seus “legíti-mos direitos”, esses cativos planejavam in-vadir a sede da fazenda do “Queimado”, quan-do o senhor estivesse “tomando chá”, e exigirque este lhes “desse cartas de liberdade, poisse consideravão livres desde Novembro doanno passado e porque se julgavão credoresde salários desde aquela data”.

Havia inclusive rumores de que cativosde uma fazenda vizinha, denominada “Sacco”,“aguardavam o resultado da tentativa da Fa-zenda do Queimado, para então tambémsahirem a campo”. Ou seja, aqueles escravosdo município de Campos em 1877 poderiamestar bem informados, através de jornais quealguns poucos cativos crioulos alfabetizadosliam, das principais discussões políticas daocasião que lhes poderiam interessar quantoà conquista da liberdade, no caso, o fundo deemancipação. É bom lembrar que foi nestemesmo ano de 1877 que os cativos da fazenda

NEGRA MINA,

EM FOTO DE JOSÉ

CHRISTIANO DE

FREITAS

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da Loanda, também em Campos, aqui-lombaram-se, reivindicando o “direito” deserem libertos e donos de suas roças. Infeliz-mente os escravos da fazenda do Queimadotiveram como resposta às suas pretensões umaimediata repressão, sendo os principais acu-sados do plano de insurreição presos e colo-cados à venda (9).

Fato interessante ainda neste episódio dafazenda do Queimado, em 1877, é que maisde cinco anos antes, ou seja, no início do anode 1872, existiam vários cativosaquilombados nas próprias matas desta fa-zenda. Em janeiro do referido ano foi enviadauma expedição para capturar os quilombolas.Porém foram encontrados apenas “ranchos”abandonados. O aquilombamento provisóriopoderia também fazer parte das estratégias deenfrentamento daqueles escravos.

Esses fatos evidenciam que a massaescrava não ficou impassível diante dos acon-tecimentos a sua volta e nem suas estratégiase decisões de enfrentamento precisaraminexoravelmente da lógica dos abolicionistaspara adquirir uma dimensão políticaabrangente (10). Pelo contrário, os cativosreinterpretaram diversos momentos de crisee turbulência entre senhores, políticos e auto-ridades coloniais, procurando tirar proveitodas várias situações, segundo seus interesses.A propósito, em setembro de 1865, o presi-dente da província do Maranhão, LafaieteRõiz, informava ao ministro da Justiça,Nabuco de Araújo, que naquela província“existem pretos livres, que sabem lêrsoffrivelmente, e à quem não são estranhas asidéias que nestes últimos tempos se tem ma-nifestado em favor da emancipação dos es-cravos”. Segundo ele, a dita província tinhaum contingente populacional de escravos bemsuperior ao da população livre, o que consti-tuía, por si só, “um perigo permanente”. Alémdo mais, alertava que as notícias chegadas,referentes à Guerra do Paraguai, estavam pro-vocando insubordinação entre os escravos devárias regiões, havendo, inclusive, acontecidocasos de deserções escravas para os mocambose temores de insurreições. Destacava finalmen-te que “semelhantes idéias vão se propagandode uma maneira confusa e vaga pela escrava-tura da Capital e do interior, e segundo souinformado, esta pobre gente parece acreditarque a actual guerra tem alguma affinidade coma causa de sua libertação”.

9 Cf. Flávio dos Santos Gomes,Histórias de Quilombolas:Mocambos e Comunidadesde Senzalas no Rio de Ja-neiro - Século XIX, Rio deJaneiro, Imprensa Nacio-nal, 1995, no prelo.

10 Um estudo no qual se apre-senta este argumento“evolucionista” da dimen-são das lutas dos escravosrelacionada com o movi-mento abolicionista emCampos encontra-se em:Lana Lage da Gama Lima,Rebeldia Negra eAbolicionismo, Rio de Ja-neiro, Achiamé, 1981, es-pecialmente pp. 84-14l. Emtrabalho anterior a este,Donald Jr. critica a visão deque a resistência dos es-cravos nos últimos anos daescravidão esteve condici-onada à ação dosabolicionistas. Analisandotambém a região de Cam-pos, ele demonstra a impor-tância e a lógica própria daluta dos quilombos locais,que eram consideradosuma verdadeira ameaçapelos fazendeiros no inícioda década de 80. Ver:Cleveland Donald Jr.,“Slave Resistance andAbolitionism in Brazil: theCampista Case, 1879-1888”, in Luso-BrazilianReview, volume 13, núme-ro 2, inverno de 1976, pp.182-93. Para um trabalhorecente que analisa de for-ma original a interação daslutas dos escravos e osabolicionistas em São Pau-lo na última década da es-cravidão, ver: Maria Hele-na P. T. Machado, Escra-vos e Cometas. Movimen-tos Sociais na Década daAbolição, Rio de Janeiro,UFRJ, 1994.

11 Ver: Vergolino-Henry &Figueredo, op. cit.; ArthurCezar Ferreira Reis, “A In-corporação da Amazôniaao Império. A FormaçãoEspiritual da Amazônia”, inRevista do Instituto Históri-co e Geográfico Brasileiro,Rio de Janeiro, 1946, pp.110-27; e Vicente Salles, ONegro no Pará sob o Regi-me da Escravidão, Belém,FGV, 1971, pp. 221-2.

12 Cf. Vergolino-Henry &Figueredo, op. cit.

Enfim, os temores que invadiram a cortee outras províncias não só em meados dadécada de 30, como em outros períodos, porcerto, não eram tão-somente fruto de umaepidemia de pânico. O primeiro quartel doséculo XIX foi marcado por lutas políticasintestinas em todo o Império, envolvendo aIndependência, a abdicação do imperador,além de diversas revoltas separatistas emvárias províncias. A partir de 1850 aparece-riam questões relacionadas à cessação do trá-fico, guerras internacionais, discussões polí-ticas sobre a legislação escravista, a propa-ganda abolicionista, etc. Tais momentos decrise, entre outros, podem ter sido avaliadospor parte dos escravos de determinadas regiõescomo favoráveis ou não para a realização deinsurreições e/ou fugas coletivas para forma-rem quilombos.

III

Vamos pensar aqui os “bumerangues afri-canos” e as “cabeças das hidras”, sugeridospor Linebaugh e Rediker, entrecruzando —via quilombolas e fugitivos escravos — oslimites territoriais da Amazônia colonial.Devido as suas situacões geopolíticas, as ca-pitanias do Grão-Pará e do Rio Negro naAmazônia divisavam com territórios coloni-ais sob domínios espanhol, inglês, holandês efrancês. O cenário principal para esses“bumerangues” era a região de Macapá nacapitania do Grão-Pará que limitava-se coma Guiana Francesa. Havia ali uma constantemovimentação de fugas de escravos e forma-ção de quilombos desde o primeiro quartel dosetecentos (11).

Era nessa época, principalmente na cha-mada “era pombalina”, entre 1751 e 1759,que começava a se avolumar a entrada deescravos africanos nesta região. Este comér-cio foi, inclusive, facilitado pelas atuações daCompanhia Geral de Comércio e da Compa-nhia do Grão-Pará e Maranhão. Só na área deMacapá dizia-se existir cerca de 750 escra-vos africanos em 1788 (12).

Com a ajuda de comerciantes e gruposindígenas, negros escravos tanto do lado por-tuguês como do francês migravam à procurada liberdade. Desde 1732 existia, porém, umtratado internacional assinado pelas duasCoroas acordando sobre a devolução de ne-gros fugidos. As questões diplomáticas e as

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inteiras, por exemplo, cruzavam os territóri-os espanhóis (16).

A fuga de escravos e os estabelecimentosde mocambos eram já nessa época considera-dos problemas crônicos. Grande parte dosescravos que fugiam nesta região era forma-da por aqueles que trabalhavam nas fortifica-ções militares em Macapá. Houve ocasiõesde fugas em massa. Algumas expediçõesreescravizadoras capturaram de uma só vezmais de 40 cativos. Em 1767, devido a tantasdeserções, um comandante local chegou apreocupar-se com o “tratamento” destinadoaos escravos desses estabelecimentos. Já, em1788, o mocambo de Macari foi atacado porforças militares de Macapá (17).

Em várias ocasiões, embarcações estran-geiras — destacadamente francesas —adentravam o território português, visandoperseguir e recuperar fugitivos. Autoridadese fazendeiros brasileiros denunciavam, igual-mente, que seus escravos fugiam para Caienae encontravam proteção de comerciantes eautoridades francesas. Em 1798, a chegadaao Pará de duas canoas provenientes de Caienacom o objetivo de “recrutar os pretos, quetinham fugido, e se achavam ahi refugiados”foi acompanhada de grande tensão.

As constantes fugas escravas permitirama constituição de mocambos grandes (forma-dos por centenas de fugitivos), estáveis eduradouros na região. Proprietários de escra-vos reclamavam e autoridades coloniais sen-tiam-se impotentes: não havia força militarna região suficiente para recapturar os fugiti-vos existentes e impedir novas deserções. Em1791, o governador da capitania a respeito detal questão chegou a declarar:

“Hua das primitivas cauzas, parece ser opequeno prezídio que elles prezentementeaqui observão Digno Snr., quando destapraça se guarnecia de maior computo desoldados, lhes era sem dúvida mais temí-vel, elles menos se dezaforavão, porquevião se fugissem havia potência para os irarrancar donde elles se achassem, nãoassim agora que a tropa existe apenas bastaa encher os postos da praça”.

Havia, de fato, na capitania do Grão-Pará,quilombos por todas as partes, de norte a sul.As principais áreas de foco eram — além deMacapá — as regiões de Santarém (Trombe-

13 Ver: Arthur Cezar FerreiraReis, “A Ocupação deCaiena”, in Sergio Buarquede Holanda (org.), HistóriaGeral da Civilização Bra-sileira. O BrasilMonárquico, tomo III, Difel,1979, p. 271; e RosaAcevedo Marin, “A Influên-cia da Revolução France-sa no Grão-Pará”, in JoséCarlos C. da Cunha (org.),Ecologia, Desenvolvimen-to e Cooperação na Ama-zônia, Belém, Unamaz,UFPa, 1992, pp. 34-59.

14 Cf. Vicente Salles , op. cit.,pp. 221-2.

15 Cf. Rosa Acevedo Marin,op. cit., pp. 35-40.

16 Na Jamaica, por exemplo,no final do século XVIII,mais propriamente quan-do ocorreu a segundaguerra maroon emTrelawny (1797), aIngraterra estava em guer-ra com a França. As auto-ridades coloniais britâni-cas temiam que agentesfranceses entrassem emcontato direto com osmaroons, inoculando “dou-trinas revolucionárias”,principalmente aquelas re-lacionadas aos fatos ocor-ridos no Haiti anos antes.Cf. Richard B. Sheridan.“The Maroon of Jamaica,1730-1830: Livelihood,Demography and Health”,in Slavery & Abolition, vol.6, n° 3, dezembro de 1985,pp. 152-72.

17 Cf. Vergolino-Henry &Figueredo, op. cit., pp. 56-63.

disputas territoriais tornavam, entretanto, ocontrole e o policiamento desta área cada vezmais difíceis. Havia desconfianças mútuas deque um dos dois países tentasse invadir edominar a região de Caiena (13).

Mesmo assim, cumprindo na medida dopossível o acordo, autoridades francesas eportuguesas realizavam em várias ocasiõestrocas recíprocas de escravos fugidos. Sabe-se que em 1732, 12 negros de propriedade deum francês, Dit Limozin, tinham fugido dopresídio de Caiena. No ano de 1752 chegavaa Belém, vindo de Caiena, uma escolta fran-cesa para buscar 19 negros refugiados dosdomínios franceses. Grandes quilombos tam-bém começavam a se formar. Em 1749, expe-dições destinadas ao “resgate de índios” des-cobriram um “importante mocambo” no rioAnauerapucu (14).

Nas últimas décadas do século XVIII, asautoridades coloniais ficaram sobressaltadas.Temiam que os cativos — principalmenteaqueles sob o domínio português — entras-sem em contato com as “idéias perigosas” arespeito de revolução que chegavam da Eu-ropa e do Caribe através de Caiena. Os prin-cipais exemplos de contágio de tais “idéias”seriam a Revolução Francesa (1789), a Revo-lução do Haiti (1792) e as revoltas escravas(guerras maroons) da Jamaica e das Guianas(1795-97). A preocupação maior das autori-dades coloniais das capitanias do Grão-Paráe do Rio Negro eram as regiões fronteiriçasda Guiana, devido ao temor do impacto quepoderiam causar aos escravos brasileiros asnotícias da Abolição nas colônias francesas emais tarde com a Venezuela, em função daslutas de independência (15).

Em fins de 1794, o comandante militar deMazagão, no Macapá, destacava apreensivoquanto ao que os “franceses tem praticadonas suas Ilhas, a respeito dos escravos” e mais:na região era “sabido, pelas gazetas quechegão da Europa, e athé os mesmos escra-vos o não ignorão”. Já em 1798, em meio àsdisputas coloniais entre Inglaterra e Holandapelas Guianas, dizia-se que os índios “encon-travam-se influenciados por mulatos deDemerara” e que “parecem estarem satisfei-tos da obediência ao actual governo inglez nacolônia”. Os contatos e as idéias de liberdadeque circulavam naquela conjuntura eram com-partilhados tanto por negros como por índios.Dizia-se mesmo que povoações indígenas

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tas, Alenquer e Óbidos) que divisavam comDemerara e Suriname, as fronteiras com oMaranhão, os campos de Marajó (Ilha deJoannes) e as freguesias limítrofes a Belém.

Em 1793 as autoridades assustadas comas repetidas fugas alertavam para“provindenciar de remédio este contagiozomal”. Em setembro desse mesmo ano prepa-rou-se uma expedição com soldados, arma-mentos e munição para prender os “pretosamocambados” em Macapá. Os temores naregião só faziam aumentar ainda mais, devi-do aos contatos que os quilombolas locaistinham não só com outros escravos mas tam-bém com índios e comerciantes vizinhos. Em1764, da Ilha Grande de Joannes chegavamnotícias de comércio de carne e aguardente,envolvendo quilombolas com “índios,cafuzes, mulatos, pretos, e alguns vaqueiroseuropeos e americanos”. Ainda em Macapáreclamava-se, em 1794, que cativos deMazagão, não respeitando a proibição de seussenhores, vendiam nas feiras locais os produ-tos de suas roças. Garantiam assim, além dastrocas mercantis, solidariedade e proteção.

Fugitivos escravos atravessavam matas,cachoeiras, florestas, rios, morros e igarapés.Buscavam a liberdade passando para outrascolônias ou estabeleciam seus mocambos nasregiões de fronteira. Contavam com a ajudade cativos nas plantações, vendeiros, índios,vaqueiros, comerciantes, camponeses, solda-dos negros, etc. A floresta era também suaaliada. Em 1791, alguns quilombolas captu-rados que tinham passado para a fronteira daGuiana Francesa revelaram a proteção dadapelos franceses:

“[...] passavam muito bem logo que daquifugiram como iam amofinados e cansadosda viagem, os sangravam e purgavam eque foram tratados a galinha, e que [...][fa-ziam] roças grandes e que os seus averes osvendiam aos francezes porque com ellestinham comércio e que elles mesmos lhetinham dado hum padre da Companhia masque hesse já tinha morrido e que lhe tinhammandado outro, e que o mesmo Padre herao que os governava” (18).

Esses quilombolas andavam armados,produziam roupas tingidas com vegetais dafloresta, caçavam, “salgavam” carne paracomercializar e faziam “tijolos para os

francezes fazerem huma fortaleza”. Nessecontexto, naquelas regiões da Amazônia co-lonial, negros — fossem escravos ou livres,fugidos — criaram um espaço para contatose cooperação. Com expectativas diferencia-das e sonhando com a liberdade, promoviamnão só comércio clandestino, mas fundamen-talmente um campo de circulação de experi-ências. Estavam o tempo todo atentos aosacontecimentos a sua volta. Transformaram-se, assim, em “bumerangues quilombolas”.Continuavam hidras porque era quase impos-sível serem destruídos e através deles as idéi-as de liberdade podiam também circular naregião.

Estabelecidos em mocambos, osquilombolas do Macapá atravessam os limi-tes dos territórios coloniais, indo em busca denovos contatos. Misturavam-se com fugiti-vos, cativos nas plantações e soldadosdesertores da Guiana Francesa. Traziam (oumesmo levavam) idéias de liberdade. Nãoficaram impassíveis ou boquiabertos com asdecisões políticas que lhes poderiam ser be-néficas e nem permaneceram isolados naimensidão da floresta amazônica. Com essamigração constante conseguiram fundamen-talmente proteção. Tornavam-se algumasvezes até anônimos aos olhos das autoridadescoloniais.

Essas, certamente, subestimaram as per-cepções que os escravos podiam ter destesacontecimentos. Subestimaram em parte. Aomesmo tempo que diziam que os cativos po-diam ser “contagiados” pelas “idéias de li-berdade” advindas da Europa via comunica-ções com as colônias estrangeiras, temiamque os mesmos — a exemplo do Haiti —articulassem uma grande revolta. Assim serefereria em 1794 o comandante militar deAraguari:

“Pelo que respeita a alforria dos escravosem Caiena, já eu tinha espalhado ser en-gano que os francezes, fazem aos mes-mos pretos, para que lhes não fujão e ostenhão por esta forma mais seguros parao serviço de suas lavouras, ou outros quaesquer a que os queirão aplicar, e por estaforma, ou por esta ironia os concervoduvidas da dita liberdade [...]”.

Eis aqui um bom exemplo de como asautoridades não só percebiam os contatos de18 Idem, ibidem, pp. 112-3.

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idéias entre escravos de países diferentescomo também o uso político de tais idéias,mesmo aquelas invertidas. Seria possívelpensar aqui — tal como fez o comandantemilitar acima — de que modo os escravos equilombolas ao mesmo tempo perceberam asidéias, fizeram-nas circular e igualmenteagenciaram politicamente os medos que se-nhores e autoridades tinham destes fatos nes-te contexto. Ou seja, escravos nas Américasnão precisaram necessariamente do “ideáriorevolucionário” advindo da Europa e/ou dobrado de abolicionistas estrangeiros paraimplementarem suas estratégias de resistên-cia e rebeldia. Pelo contrário, perceberamestes momentos com avaliação política, do-tando-os com significados próprios que po-deriam mudar ou não o rumo de suas vidas.

Em Macapá, coincidência ou não, maisdo que em qualquer outra região brasileira noperíodo colonial, as fugas de escravos e amovimentação de quilombolas aumentaramenormemente nas últimas décadas do séculoXVIII. É claro que além dos escravos haviaoutros problemas graves na região, entre osquais a militarização da área e o temor de umaintervenção armada (19). Em 1798, numacarta endereçada ao rei, uma autoridade localressaltaria, dentre os principais problemas:“aprehensão dos escravos fugidos e destrui-ção dos seos mocambos e a dos intruzos esta-belecimentos francezes nessas fronteiras”.

As fugas de cativos no Pará, nesta oca-sião, não tinham apenas a direção de Caiena.Há notícias de “pretos fugidos amocambados”nas regiões de Santarém, Marajó, Bragança eparte do Maranhão. Além de fugas para aVenezuela e outros domínios espanhóis,muitos escravos do Pará procuraram fugirpara outras capitanias vizinhas. Em 1776 fa-lava-se de fugitivos passando para o lado doMato Grosso. Já em 1798 chegavam notíciasda capitania de Goiás a respeito dos “pretosescravos dos moradores de Macapáaprehendidos nos mocambos da fronteiradesta Capitania”.

Assim como os cativos do lado portuguêsfugiam e atravessavam os limites territoriaisinternacionais, negros — não só escravos —sob os domínios espanhol e inglês tambémdesciam. Em 1781, um “preto hespanhol” foraencontrado vagando pela região de Tabatinga,que fazia fronteira com as áreas sob o domí-nio da Coroa da Espanha. Dois anos depois,

na vila de Olivença, na mesma região, temi-am-se as ações do “preto hespanhol FernandoRojas” e seus contatos com os quilombolaslocais, visto ser ele “morador da parte supe-rior do rio Júa, donde habitou fugitivo algunsannos [...] e por essa causa tem muitaascendencia o dito preto entre elles”. Em 1789,denunciavam-se “escravos do governo doPará arrojando se a empreza com effeito ex-traordinário e também novo de fugirem paraos domínios espanhóis da Província de Mojas,navegando tantos centos de leguas pelos Riosdas Amazonas”.

Não só escravos negros como tambémíndios percebiam as relações conflituosasentre espanhóis e portugueses. Deserções emmassa de índios eram comuns na região. Nosanos de 1760 aparecem várias denúncias deíndios “amocambados” e mesmo fugindo paraformarem “mocambos”. Do mesmo modo quetemiam as comunicações, as autoridades co-loniais tentavam se valer do conhecimento denegros e índios para adentrar territórios nafronteira. Ainda em Olivença, em 1784, por-tugueses preocupados com o controle dosíndios e a movimentação dos espanhóis espe-ravam contar com a ajuda de “dois pardos emulatos” que não só conheciam bem a regiãocomo sabiam “várias línguas do gentio”. Doisanos antes, foi usado um “preto” como guiano reconhecimento e comunicação de povo-ações e territórios limítrofes com a colôniaholandesa do Suriname (20).

Em várias regiões das Américas negrastemos conhecimento que comunidades deescravos fugidos miscigenaram-se com aspopulações indígenas locais, como, por exem-plo, os blacks caribs de São Vicente eHonduras, os caribs de São Domingos, osíndios moskitos também de Honduras e osseminoles na Flórida. Alguns conflitos entreos indígenas e quilombolas podem ter sidopromovidos, inclusive, pelas próprias autori-dades coloniais, como sugere Craton para oCaribe. Em contrapartida, este autor explicade que modo os europeus em diferentes con-textos procuraram estabelecer alianças comindígenas e maroons. Se algumas vezes con-flitos entre indígenas e maroons foram pro-vocados e estimulados pelos europeus, emoutras ocasiões, ingleses, franceses, holan-deses e espanhóis forjaram com estes alian-ças circunstanciais, visando impedir invasõese/ou garantir possessões nas ilhas caribenhas.

19 Cf. Rosa Acevedo Marin,op. cit.

20 Linebaugh faz tambémuma interessante análisesobre a linguagem (pidgin)para entender a circulaçãode idéias, da experiência ea ação dos “bumeranguesafricanos”. Num estudo re-cente, Thornton, analisan-do a rebelião escrava deStono (Carolina do Sul) nosEstados Unidos em 1739,chama a atenção para obackground africano deseus participantes. Segun-do este autor a maior partedos cativos africanos en-volvidos tinha vindo da re-gião do Congo, área decolonização portuguesa naÁfrica Central. Estes afri-canos conheciam o cristia-nismo e a língua portugue-sa, o que possibilitou oapelo à agitação da propa-ganda dos espanhóis queestavam envolvidos emlutas com os ingleses naCarolina do Sul naquelaocasião. Ver: John K.Thornton, “AfricanDimensions of StonoRebell ion”, in TheAmerican HistoricalReview, vol. 96, n° 4, outu-bro de 1991, pp. 1101-13.

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Craton cita o exemplo dos cimarrones doPanamá que se aliaram com os ingleses con-tra os espanhóis em 1570 (21).

IV

Além da movimentação dos quilombos,notícias sobre revoltas escravas e motins desoldados deixavam as autoridades coloniaisna fronteira amazônica ainda mais sobressal-tadas. Da região do Marajó — área que seligava a Macapá — vinham informações deuma possível insurreição escrava em 1775.Esta seria comandada por um “preto”, acusa-do também de manter contatos e comérciocom índios e fugitivos negros na região. Em1791, denunciava-se uma rebelião de negrosque ocorreria durante a festa do Rosário (22).Três anos depois, em Macapá organizou-seuma tropa militar “para apreender algumaspessoas brancas, pretas, e mulatas, ausentespor culpados e rebeldes a seos senhores”.

Fato interessante aconteceu um ano an-tes na área fronteiriça do Oiapoque, tambémem Macapá. Um militar, ao viajar na região,deparou-se

“com mais de 80 negros todos armados deflecha, traçados, e alguns com armas defogo, me perguntou pela lingoa espanho-la muito serrrado [sic], o que vinha fazera aquela terra, o que lhe respondi, traziade baixo de toda a pás, e amizade cartas aocomandante de Oyapock, do meu coman-dante que se achou na boca deste rio, efazendo-me sentar fizerão assembléiapois, j’á vivem por eela, e hé verdade es-tarem os negros libertos, e são quase osmaiores senhores da terra pois sãoinnumeraveis, e os brancos são poucos, eestes também pois temem delles segundoo que os mesmos brancos me comunicãofora da vista delles [...]”.

Uma denúncia de levante escravo de gran-des proporções ocorre em Cametá — regiãodo Tocantins — em 1774. Dezenas de escra-vos pertencentes a Antonio de Medeiros aban-donaram as senzalas e desceram de canoaspelo rio Tocantins, dando salvas de tiros poronde passavam. Os motins de tropas milita-res e deserções de soldados nesta região eramoutro problema crônico. A utilização de ne-gros — livres, libertos e até escravos — nos

exércitos coloniais estrangeiros preocupavaigualmente as autoridades portuguesas. Talprática já era muito difundida nos domíniosfranceses.

No Brasil Colonial — desde o século XVII— também era comum o uso de homens livresde cor e ex-escravos em unidades de combate,formando milícias coloniais e mesmo exérci-tos voluntários. Os primeiros recenseamentosmilitares no final dos setecentos já destaca-vam o elevado número de mulatos e negros emtropas coloniais. Na capitania de Pernambuco,em 1759, estes totalizavam cerca de 15%. Sóno Terço dos Henriques — nome das tropasformadas por mulatos, mestiços e negros li-vres e libertos — existiam 1.323 homens alis-tados em 15 companhias, sendo que havia umregimento de 1.400 milicianos constituídoapenas por mulatos. Houve até mesmo o casode africanos libertos participarem dessas tro-pas, como na região de Jaguaripe, interior dacapitania da Bahia, em 1792. Em momentosde ameaças de invasões estrangeiras, muitascolônias utilizaram mesmo o recurso de armarseus escravos. Em áreas de fronteira, tal práti-ca poderia ganhar outros contornos(23).

Escravos brasileiros podiam ver neste ex-pediente uma possibilidade de alforria. Em1798, período de muita tensão na fronteiraamazônica com a Guiana Francesa, lembra-vam as autoridades do Grão-Pará:

“que armem os seos escravos e defendãoa entrada do inimigo nas suas fazendas, eainda nos rios incorporando-se á Forçaarmada que nelles existir para o mesmofim persuadindo-se de que os mesmosescravos hão de concorrer para a defezadas suas propriedades e do Estado comefficacia, zelo, e valor assim como con-correrão em outros tempos nos outrosportos do Brazil para expulsar os holan-deses e francezes, e assim como estãoconcorrendo nas colonias inglesas não sópara defeza dellas mas para ataque dasmesmas dos francezes por conheceremque as máximas de que estes tem usado sólhes tem servido para desunir as forças,fazerem as conquistas facilmente e rou-barem tudo á sua vontade, pois até os seusmesmos escravos que enganarão com aidéia de liberdade esses mesmos hoje temnas fazendas debaixo das bayonetas, e dehum regime tirano [...]”.

21 Ver: Michael Craton, “FromCaribs to Blacks Caribs:The Amerindian Roots ofServile Resistance”, inStudies in African,Caribbean, and Afro-American History, Univer-sity of Massachusetts,1986, pp. 98-115; KathrynE. Holland Braund, “TheCreeks Indians, Blacks, andSlavery”, in Journal ofSouthern History, vol. LVII,n° 4, novembro de 1991, pp.601-36; Susan MigdenSocolow, “Spanish Captivein Indian Societies: Cultu-ral Contact along theArgentine Frontier, 1600-1835”, in HispanicAmerican HistoricalReview, vol. 72, n° 11,1992, pp. 73-99; e RichardPrice, “Resistance toSlavery in the Américas:Maroons and theirCommunities”, in IndianHistorical Review, 15, 1-2(1988-89), pp. 71-95. Parao Brasil as análises maissugestivas sobre os conta-tos e confl i tos entrequilombolas e índios en-contram-se em: RogerBastide, “The OtherQuilombos”, in RichardPrice (org.), MaroonsSocieties. Rebel SlaveCommunities in theAmericas, 2ª ed., The JonhsHopkins University Press,1979, pp. 191-201; e StuartB. Schwartz, “Mocambos,Quilombos e Palmares. AResistência Escrava noBrasil Colonial”, in EstudosEconômicos, vol. 17, SãoPaulo, IPE-USP, 1987, pp.61-88.

22 Cf. Vergolino-Henry &Figueredo, op. cit., e RosaE. Acevedo Marin,op. cit.

23 Cf. Herbert S. Klein, “OsHomens Livres de Cor naSociedade Escravista”, inDados, n° 17, Rio de Janei-ro, Iuperj, 1978, pp. 3-27.

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As autoridades amedrontadas, temendouma invasão estrangeira, procuravam aliadosnos seus próprios escravos. Era necessáriotransformar em amigos os “inimigos inter-nos” para lutar contra os “inimigos externos”.Entretanto, desconheciam ou então poucoconsideravam os significados políticos comque escravos podiam dotar suas ações nessemomento. Para autoridades, a participação e/ou colaboração dos negros escravos com for-ças invasoras estrangeiras era apenas fruto de“seducção” e inoculação de “idéias perigo-sas”. Para os escravos, por exemplo, podiaser diferente. Podiam optar por lutar ao ladode seus senhores, barganhando algumas com-pensações devido a tais lealdades e continuarescravos. Uma outra opção seria fugir e cer-rar fileira nas forças inimigas. Lutariam aolado ou contra seus ex-senhores. Porém con-tinuariam cativos, apesar de algumas falsaspromessas. A fuga coletiva, formandoquilombos, poderia ser uma melhor garantiade autonomia — pelo menos temporária —para alguns escravos. Exércitos coloniaisenfraquecidos com as sucessivas guerraspouco poderiam fazer contra mocambosencravados na floresta.

Escravos nas colônias poderiam ter outrasopções. Acompanhavam com expectativa osdetalhes dos desfechos de conflitos, discus-sões, debates, etc., ocorridos nas metrópolesque poderiam ou não lhes ser benéficos. Emregiões de fronteiras internacionais estas ex-pectativas se ampliavam. Fugindo aqui ouacolá, incorporando-se ou não a exércitos co-loniais, poderiam — quem sabe — abreviar ocaminho para conseguir a liberdade.

Ademais, o que as autoridades viam como“seducção” podia ser nada mais do que agestação de uma identidade, envolvendo osnegros, fossem escravos ou livres. Em váriasregiões escravistas — mesmo no Brasil dofinal do século XVIII — a população de corjá era substantiva (24).

Mesmo considerando o volume do tráfico— com quase 16.000 africanos chegando porano — o número de homens livres de cor noBrasil no final do período colonial só faziaaumentar. Enquanto em 1786 estima-se quejá totalizava 35%, nos primeiros anos dosoitocentos passaria dos 40%. Embora nãodispondo de números a esse respeito para acapitania do Grão-Pará, os recenceamentoscoloniais para as capitanias vizinhas são

indicativos. No Mato Grosso, em 1797, 47%do total da população de homens de cor apa-recia registrada como livre. Esta parcelapopulacional, por sua vez, representava 67%do total da população livre. Já no Maranhão,nos derradeiros anos dos setecentos, os ho-mens livres de cor totalizavam 27% da popu-lação de cor e 36% do total daquela livre (25).

Cruzando, enfim, as fronteiras, transfor-mando-se em “bumerangues”, escravos nasplantações, quilombolas, fugitivos, libertos,regatões e soldados desertores podiam aca-bar tornando-se invisíveis. Eram todos negros.É possível pensar de que modo, nesses perí-odos, a população de cor, fosse livre ou escra-va, procurava se articular — mantidas suasdiferenças sociais — na busca por mais auto-nomia. A propósito, destacavam ainda as au-toridades do Grão-Pará:

“os nossos escravos sabem, e se lhes devedar a saber que muito antes que osfrancezes uzassem desta e outras seme-lhantes máximas já entre nós havia pretosocupados em portos e empregos, já tinhasido determinado que a cor era accidenteque nada influia no caracter do individuo,nem o inhabilitava para os empregos, econsequentemente devem estar e ser cons-tituídos na certeza que ou sejão pretos, oumulatos, ou mestiços, logo que as suasacçõens, e a sua conducta os fassão dig-nos da liberdade de que os mais vassalosgozamos”.

Ver do outro lado da fronteira, algunspoucos quilômetros de distância, mulatos epardos comandando tropas ou como colo-nos livres podia significar uma motivaçãopara cativos brasileiros que procuravam es-capar da escravidão. Outrossim, poderiambuscar para além das solidariedades raciaisa proteção nas próprias leis de determinadascolônias.

Pelo menos no Brasil — desde o períodocolonial — a legislação específica com rela-ção ao status social dos homens livres de corse não discriminatória era silenciosa. Os di-reitos civis desta parcela da populaçãoinexistiam. Pode-se mesmo dizer, comoRussel-Wood, que a condição de negro oumulato livre no Brasil constituía uma “ano-malia legal”. Nas primeiras décadas do sécu-lo XIX — destacadamente a partir do período

24 Em termos comparativospodemos citar os índicesda população livre de corde algumas outras socie-dades escravistas ameri-canas: em Cuba, em 1840,a população livre de cor re-presentava 26% do total dapopulação livre. Já nas áre-as escravistas do sul dosEstados Unidos, em mea-dos do séc. XIX, o índicede livres de cor em relaçãoà população era de apenas4,4%. Na Jamaica este ín-dice, em 1800, era de 25%e no Haiti, em 1789, era de45%. Ver: RobertPaquette, Sugar is Madewith Blood. The Conspiracyof la Escalera and theConflict betwen Empiresover Slavery in Cuba,University Press, Middle-tow, Connecticut, 1989, p.106.

25 Cf. Herbert S. Klein, op. cit.,pp. 4-5. Ver também: A. J.R. Russel-Wood, “Coloni-al Brazil”, in David Cohen& Jack P. Greene (orgs.),Neither Slave nor Free. TheFreedman of AfricanDescent in Slave Societiesof the New World, TheJohns Hopkins UniversityPress, 1972, pp. 84-133.

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da independência — os legisladores e as au-toridades brasileiras passam a se preocuparmais ainda com o controle social da populacãonegra livre. A movimentação de homens li-vres de cor, soldados desertores e principal-mente de quilombolas aumentavam aindamais os temores a respeito de insurreições.Era um verdadeiro “medo branco” (26).

De outro modo, tais exemplos podem in-dicar também como algumas experiências deinsurreições e aquilombamentos talvez nãofossem tão excludentes. Por certo, as autori-dades deviam temer a possibilidade de haverconspirações e ações articuladas envolvendoescravos das cidades e das zonas rurais comapoio dos quilombolas e/ou de negros livres.Além disso, idéias e planos de insurreiçõespodiam chegar até os quilombos, o que, cer-tamente, fazia aumentar o medo de fazendei-ros e autoridades. A propósito, outros exem-plos podem vir então do Caribe. Na Jamaica,durante a segunda guerra maroon, em 1795-96, havia evidências de que a propaganda daRevolução Haitiana estava chegando até osquilombolas da Vila de Trewlany (27).

Por outro lado, outras análises apontampara o fato de se perceber como as insurrei-ções escravas podem ter-se nutrido das tradi-ções, em constante transformação, das per-manentes lutas e guerrilhas levadas a cabopelos quilombolas para conquistar a liberda-de. Manigat, por exemplo, discute as possí-veis relações entre a tradição da marronage ea rebelião dos escravos do Haiti em 1791.Sua argumentação é que, durante o séculoXVIII, houve uma “mutação” nas experiên-cias da marronage que se relacionava direta-mente com a eclosão da dita rebelião entre1789 e 1791. Segundo ele, vários fatores con-tribuíram para o desenvolvimento do focodaquela singular insurreição, entre os quais:a existência de uma rede forte de comunica-ção entre os escravos de diferentes planta-ções e origens étnicas em conseqüência da“crioulização” e mobilidade física mais fácil;a criação paulatina de uma “consciência re-volucionária” dos escravos, seja através dapropaganda política (inclusive européia), sejaatravés dos aspectos religiosos da culturaafricana readaptada (importância do cultoreligioso africano do vodum) e, não menosimportante, o caráter “contagioso” das ativi-dades de guerrilha dos quilombolas locais.Para Manigat, existia uma tradição maroon

de luta pela liberdade e pela posse da terrapermeada, inclusive, por um caráter racial,que foi constantemente reelaborada ao longodo século XVIII, permanecendo profunda-mente no imaginário coletivo dos cativoshaitianos. Ele aponta, ainda, que as idéiasrevolucionárias advindas da Europa, queigualmente chegaram àqueles escravos, po-diam vir também através dos maroons, poisvários soldados negros e desertores que ti-nham servido no exército francês se haviamse refugiado na floresta e se misturado comeles. Em 1791, meses antes de eclodirem asrevoltas escravas, apareceram algumas notí-cias que davam conta de haver maroonshaitianos que sabiam ler e escrever, e que atémesmo tinham permanecido na França comocativos por algum tempo (28).

V

Não seria a questão de somente ver ouprocurar “idéias fora do lugar”. Vários auto-res têm destacado de que modo a movimen-tação dos escravos nas Américas no final doséculo XVIII estava ligada à propaganda re-volucionária proveniente da Europa. Não sórumores e temores, mas diversas insurreiçõesescravas, de fato, eclodiram nesta conjuntura(29). Além da Revolução do Haiti (1789-1804), ocorreram rebeliões em Guadalupe(1794), Santa Lúcia (1794), Cuba (1795) eVenezuela (1795). O medo das autoridadescoloniais acompanhou de perto essas eclosões,tentativas e mesmo só as denúncias e rumo-res. Baralt, por exemplo, destaca como osfazendeiros, em Porto Rico, temiam que atentativa de insurreição dos escravos deAguadilla, em 1795, estivesse vinculada aosacontecimentos do Haiti (30).

Porém, enquanto alguns autores enfatizamapenas o “contágio” das idéias por parte dosescravos ou, então, a incorporacão delas poralgumas lideranças políticas, outros têm pro-curado ressaltar a perspectiva de se analisar aprópria lógica e percepção que a comunidadedas senzalas, os libertos, fugitivos,quilombolas e negros livres podiam estar ten-do dessas conjunturas. Viajando por outroscaminhos podemos pensar que as idéias etensões tanto na Europa como nas Américastinham desdobramentos e repercussões vari-adas nas colônias e nas metrópoles. O movi-mento de “ida e volta” dos “bumerangues” é,

26 Cf. A. J. R. Russel-Wood,op. cit., pp. 84, 109-10, 130;e Thomas Flory, “Race andSocial Control Indepen-dent Brazil”, in Journal ofLatin American Studies,vol. 9, n° 2, novembro de1977, p. 201.

27 Cf. Clare Taylor, “PlanterComent upon SlaveRevolts in 18th CenturyJamaica”, in Salvery &Abolition, vol. 3, n° 3, de-zembro de 1982, p. 249.

28 Cf. Leslie F. Manigat, “TheRelationship betwenMaronage and SlaveRevolts and Revolution inSt. Domingue-Haiti”, inVera Rubin & ArthurTuden(eds.), ComparativePerspectives on Slavery inNew World PlantationSocieties, volume 292,Nova York, 1977, pp. 420-38. Em trabalho mais re-cente Carolyn Fick retomaeste argumento. Ver: TheMaking of Haiti. The SaintDomingue Revolution fromBelow, Knoxville, Univer–sity of Tennesse Press,1990, especialmente par-te 1: “Background toRevolution”, pp. 15-90.

29 Ainda que trilhando outroscaminhos metodológicosde análise, Frederic Maurofaz uma reflexão interes-sante sobre o impacto dastensões entre a Europa eas Américas dos séculosXVI a XIX. Ver: “Tensionsand the Trasmission ofTensions in the EuropeanExpansion to America(1500-1900)”,in PlantationSociety, vol. 1, n° 2, junhode 1979, pp. 149-59.

30 Ver: Guilhermo A. Baralt,Esclavos Rebeldes.Conspiraciones y Suble–vaciones de Esclavos enPuerto Rico (1795-1873),Porto Rico, EdiçõesHurucan, 1981, pp. 13-20;e Clare Taylor, op. cit., p.249.

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de fato, bem sugestivo. Ou seja, as análises de“contágio de idéias” paralisa a reflexão parase perceber como estas poderiam estar sendopercebidas (31). A questão seria muito me-nos de “origem” e/ou de “influência” de idéi-as, mas sim da circulação, da interpretação edos significados em torno delas. Para a Bahiae Pernambuco existem análises com pistassugestivas nesta direção ( 32).

No Grão-Pará — segundo um estudo deAcevedo Marin — temeu-se igualmente o“contágio revolucionário” vindo da França.Tais temores promoveram, inclusive, umamilitarização acelerada em áreas de frontei-ra, visto haver litígios territoriais com a GuianaFrancesa (33). Tais “idéias de liberdade”podiam não ter apenas uma leitura. Escravos,fossem crioulos ou africanos, homens livres,soldados, oficiais metropolitanos, europeus,marinheiros, mestiços, índios e outros tantospodiam reinterpretá-las diferentemente. Tam-bém os roteiros da sua circulação podiam serdiversos. Na Amazônia colonial, talvez te-nham sido os quilombolas e fugitivos os res-ponsáveis por sua difusão. Os “bumerangues”talvez estivessem mesmo nas mãos deles.

Pensando nesses “bumerangues quilom-

bolas” podemos ainda trilhar outras pistas deanálise. Genovese, em estudo comparativoclássico, argumenta, por exemplo, que, nofinal do século XVIII, as revoltas escravasnas Américas — influenciadas principalmentepela “onda revolucionária burguesa-democrá-tica” da Europa — adquiriam novos conteú-dos políticos, distanciando-se, assim, do “ca-ráter puramente restauracionista” das socie-dades africanas (34).

Criticando as análises de Genovese, comotambém algumas conclusões de Craton a res-peito do caráter “africano” e/ou “crioulo” daresistência escrava no Caribe e seus conteú-dos ideológicos, Seymor Drescher procuradestacar a possibilidade de se perceber asmudanças nas estratégias de enfrentamentodos cativos não só a partir dos impactos eco-nômicos internos e das influências ideológi-cas externas, mas também fundamentalmen-te através do exame dos significados políti-cos que eles conferiam às suas ações. Dessemodo, Drescher relaciona a resistência doscativos com a micropolítica das comunida-des escravas, os fatores externos (conjuntu-ras econômicas e políticas), as avaliações epercepções pontuais e a conseqüente interação

31 Partindo do exemplo dasrebeliões escravasjamaicanas nos últimosanos do século XVIII, DavidGeggus faz uma análisesugestiva, destacando asperspectivas internas, acorrelação de forças, a con-juntura político-econômica,o impacto demográfico e apercepção da massa escra-va nas Américas no enten-dimento das causas dasrebeliões. Suas análisessobre as articulações dosmaroons jamaicanos e ainfiltração da propagandafrancesa são muito suges-tivas. Ver: “The Enigma ofJamaica in the 1790s: NewLigth on the causes of SlaveRebell ion”, Wil l ian andMary Quartely 44, 2, 1987,pp. 274-99.

32 Na década de 30, as revol-tas separatistas que ecoa-vam em várias partes doImpério ajudaram a aumen-tar os boatos a respeito dasinsurreições escravas. Ali-ás, Perdigão Malheiro jáhavia destacado no séculoXIX que “os escravos, des-cendentes da raça africa-na, que ainda conserva-mos, hão por vezes tenta-do, e ainda tentam, já pordeliberação própria, já porinstigações de estranhos,quer em crises de conflitosinternacionais, quer intes-tinas, é o vulcão que ame-aça constantemente a so-ciedade, é a mina pronta afazer explosão à menorcentelha”. Ver: PerdigãoMalheiro, A Escravidão noBrasil. Ensaio Histórico,Jurídico, Social, Petropólis,Vozes/INL, 1976, volume II,pp. 87-102. De fato, noMaranhão, com a movi-mento da Balaiada (1838-41), as fugas de escravosse multiplicaram e váriosquilombos foram formados.Ver: Maria Januária VillelaSantos, A Balaiada e a In-surreição de Escravos noMaranhão, São Paulo,Ática, 1983, pp. 67, 87-102.Um exemplo de revolta se-paratista na década de 30que fez aumentar os rumo-res relativos a eclosões delevantes escravos foi aSabinada, na Bahia, em1837. Ver: Paulo CesarSouza, A Sabinada: a Re-volta Separatista na Bahia(1837), São Paulo,Brasiliense, 1987. Ver tam-bém as análises sobre aagitação dos escravos emPernambuco na década de20 e 30, quando ocorreramvários conflitos envolvendomovimentos separatistasnessa província. Cf. MarcusY. M. Carvalho, Hegemonyand Rebell ion inPernambuco (Brazil), 1821-1835, tese de doutoradoinédita, University of Illinois,1989, especialmente capí-tulo III: “Slave Resistancein Pernambuco — 1825-1835”, pp. 105-47. Para aBahia entre o final do sécu-lo XVIII e o período da inde-pendência, ver algumasanálises que sugerem aspercepções escravas e acirculação de idéias da con-

NEGRO CONGO E NEGRA MONJOLO, PELO ARTISTA ALEMÃO JOHANN MORITZ RUGENDAS

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desses múltiplos aspectos. Ou seja, ele de-monstra de que modo os escravos no Caribe,no final do século XVIII e início do XIX,sabiam o que se passava na política inglesa(debates parlamentares na Inglaterra, etc.) etentavam, na medida do possível, tirar pro-veito de tal situação a partir de suas própriaslógicas (35).

Quanto aos quilombolas, não estavamalheios a todos esses interesses e igualmenteàs suas possibilidades de sobrevivência nasregiões que escolhiam para se estabelecer.Reconstituindo o processo histórico em tor-no de alguns aspectos dos sentidos políticospróprios das ações dos quilombolas e anali-sando as formas de repressão, osagenciamentos, os conflitos e as atitudes deenfrentamento em volta de algumas comuni-dades de escravos fugidos, é possível esqua-drinhar a política cotidiana das experiênciashistóricas por elas forjadas. Quanto a estaquestão, vale a pena mencionar as experiên-cias históricas vividas por outras comunida-des de fugitivos. As comunidades de maroonsde Le Maniel, na Ilha de São Domingos, noséculo XVII, que travaram, por quase cemanos, lutas com os colonizadores espanhóis efranceses, foram beneficiadas, por váriosmotivos, pela sua localização geográfica. Emdiversas ocasiões, as autoridades espanholaseram negligentes com os movimentos dosfugitivos, que eram constituídos, na sua mai-or parte, dos escravos do lado francês da ilha.Em conseqüência disso, a perseguição a es-sas comunidades maroons envolveu inúme-ros interesses entre colonos e autoridadesespanholas e francesas naquela regiãofronteiriça. Os lavradores e fazendeiros dolado espanhol comerciavam com os maroonse os mantinham informados sobre qualquermovimentação de tropas enviadas para per-segui-los (36).

De forma alguma importa dizer que emtais circunstâncias os quilombos podiam fun-cionar apenas como meros instrumentos demanipulação ou que a continuidade de suaexistência se devesse tão-somente a de outrosinteresses. Em tais contatos entre as comuni-dades de fugitivos e os mundos da escravi-dão, estas primeiras não podem ser vistas sim-plesmente como ferramentas, utilizáveis ounão, nas mãos de determinadas autoridades efazendeiros com interesse em negócios. Pelocontrário, de várias partes da América

escravista temos diversos exemplos que evi-denciam de que modo algumas comunidadesde fugitivos, ampliando as suas estratégias deluta, constituíram “alianças de conveniênci-as” que envolveram tanto escravos nas plan-tações como piratas, índios, mercadores, la-vradores brancos e até mesmo tréguas e tra-tados de paz com fazendeiros e autoridadescoloniais.

Pollack-Eltz, por exemplo, ao abordar ascomplexas relações dos quilombolasvenezuelanos envolvidas com interesses decomerciantes locais (inclusive traficantes deescravos) e proprietários de terras que luta-vam contra o monopólio comercial daEspanha, argumenta que as estratégias de lutadessas comunidades de fugitivos nessa oca-sião não possuíam um sentido político pró-prio. Criticando essas análises, Price sugereque os quilombolas em toda a América,ampliando os significados políticos de suaslutas, forjaram em determinados momentos“alianças de conveniência” (alliances ofconvenience) com escravos nas plantações,indígenas, colonos brancos, etc. (ele cita ain-da o exemplo das alianças entre os maroonsespanhóis, piratas e soldados ingleses noCaribe, no século XVIII) que podiam incluiraté mesmo — como no caso da Venezuela noséculo XVIII — comerciantes e fazendeiros“criollos” (37).

A propósito, não só no Brasil, mas tam-bém em outras partes da América escravista,temos vários exemplos de episódios nos quaisos cativos perceberam a conjuntura política eeconômica como lhes sendo favorável paraplanejarem insurreições e fugas coletivas.Beckles, a esse respeito, analisando a rebe-lião escrava em Barbados no Caribe inglêsem 1816, concluiu que alguns escravos, prin-cipalmente os líderes da revolta, tinham in-formações sobre os acontecimentos que vi-nham ocorrendo no Parlamento da Inglaterrae acreditavam que Wilberfoce e seus compa-nheiros abolicionistas seriam solidários coma sua causa (38). Craton, por sua vez, aoanalisar as mudanças de atitudes dos cativosque lideraram as revoltas escravas no Caribeinglês entre 1816 e 1832 (Barbados, 1816;Demerara, 1823 e Jamaica, 1831-32), desta-ca que, ao contrário dos líderes das rebeliõesescravas do século XVII e XVIII — a maiorparte dos quais constituídos de africanos re-cém-chegados —, os cativos que planejaram

35 Cf. Seymor Drescher,Capitalism and Antislavery.Brit ish Mobil ization inComparative Perspective,Nova York, 1987.

36 Cf. Yvan Debbash, “LeManiel: Further Notes”, inRichard Price (org.),Maroon Societies, op. cit.,pp. 144-5.

37 Cf. Angelina Pollack-Eltz,“Slave Revolts inVenezuela”, in Rubin &Tuden, op. cit., pp. 439-45.Ver os comentários críticosde Price sobre este artigona mesma obra, pp. 495-500.

38 Cf. Hilary Beckles,“Emancipation by Law orWar? Wilberfoce and the1816 Barbados SlaveRebelion”, in David Richar-dson (org.), Abolition and itsAftermath the HistoricalContext, 1790-1916,University of Hull, FrankCass, 1985, pp. 94-8.

juntura internacional. Cf.João José Reis, “O JogoDuro do Dois de Julho: o‘Partido Negro’ na Indepen-dência da Bahia”, in JoãoJosé Reis & Eduardo Silva(eds.), Negociação e Con-flito: a Resistência Negra noBrasil Escravista, São Pau-lo, Companhia das Letras,1989, pp. 99-122; e LuizHenrique Dias Tavares, “Es-cravos no 1798”, in Revistado Instituto de Estudos Bra-sileiros, n° 34, São Paulo,1992, pp. 101-20.

33 Cf. Rosa E. Acevedo Marin,op. cit.

34 Cf. Eugene Genovese, DaRebelião à Revolução: asRevoltas de Escravos Ne-gros nas Américas, SãoPaulo, Global, 1983. Algunsdos seus argumentos foramdefendidos mais recente-mente em Robert L.Paquette, “Social HistoryUpdate: Slave Resistanceand Social History”, inJournal of Social History,1991, pp. 681-5.

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essas revoltas eram na maioria crioulos, mui-tos deles cristãos e até alfabetizados. Alémdisso, tendo eles posição privilegiada no quediz respeito às ocupações especializadas,possuíam maior mobilidade e mesmo acessoaos periódicos locais (39).

Desse modo, tensões e conflitos entremetrópole e colônia, enfraquecimento dopoder colonial em virtude de lutas internas eexternas, discussões parlamentares sobre aemancipação e outras tantas circunstânciaspontuais, mesmo no âmbito das fazendas,eram percebidos pelos escravos como mo-mentos favoráveis para realizarem revoltasabertas ou forçarem seus senhores a lhesfazerem concessões de espaços de autono-mia dentro da escravidão. Ou mesmo escra-vos fugidos, constituídos em comunidades,tentavam fazer os exércitos coloniais ofere-cerem tratados de paz (40). É claro que numacorrelação de forças, na maioria das vezesdesigual, autoridades e senhores não raramen-te respondiam a essas tentativas dos escravoscom violenta repressão.

VI

Nas fronteiras da Amazônia colonial,quilombolas — apoiados por outros persona-gens dos mundos da escravidão —, que jáeram hidras, transformaram-se embumerangues. Entraram em contato não sócom idéias mas fundamentalmente com ou-tras experiências históricas.

A historiografia mais recente sobre a his-tória social da escravidão no Brasil — maisdestacadamente aquela dedicada a anali-sar o protesto escravo — tem apontadonovos caminhos de reflexões. O quilombonão era necessariamente um mundo isola-do completamente da sociedade escravista,onde habitavam invariavelmente guerrei-ros mitificados, quase-heróis “sem cons-ciência”. Algumas abordagenshistoriográficas que enfatizaram o caráterde “marginalização” social, política e eco-nômica dos quilombolas acabaram pordesconsiderar os aspectos complexos e oscontextos específicos das suas formas deprotesto. O mocambo, em determinadasanálises, aparecia apenas eleito como umlocal idealizado da resistência escrava —esta considerada uniforme, repetitória, semobjet ivos e lógicas próprias — em

contraposição com as senzalas, onde ha-bitavam a maior parte dos escravos“coisificados”, uma vez marcados social-mente pela violência e opressão do cati-veiro (41).

O quilombo, enfim, aparecia como umaluta “impotente” ou sem sentido políticopróprio. Ou seja, para escapar da domina-ção, escravos evadiam-se, internavam-senas matas e aí permaneciam escondidoscomo seres totalmente “marginalizados”,ora defendendo-se das expediçõesreescravizadoras, ora saqueando fazendaspróximas, desenvolvendo, via de regra, umaeconomia predatória (“parasitária” paraalguns historiadores), combinada com aagricultura de subsistência e trocas mercan-tis esporádicas.

Em determinadas análises, a imagem doquilombola era associada à do escravo “qua-se-consciente”, que, procurando escapar dascrueldades da escravidão — onde não pos-suía nenhuma cultura própria e/ou qualquertraço de organização social —, fugia para oúnico mundo da liberdade possível: omocambo. Em outras, os cativos que procu-ravam se refugiar nos quilombos eram na suamaioria africanos que, para além do desejo dedar fim ao cotidiano de castigos e maus-tratosvividos, iam em busca de um abrigo seguroonde pudessem principalmente restaurar suasexperiências sociais e culturais originárias daÁfrica. Se para alguns a luta dos quilombolasnão tinha um significado político próprio, paraoutros o seu conteúdo tinha apenas o carátercontra-aculturativo (42).

Pensarmos os quilombolas e suasinterações com o restante da sociedadeescravista — hidras e bumerangues — podenos levar a outras direções. É possível desco-brir, entre outras coisas, que o mundo dosquilombos talvez não fosse tão distante assimdas senzalas. Ou seja, não existiam assim ex-periências sociais tão excludentes como aque-las que indicam haver, nas senzalas, apenascativos anômicos e passivos em contraposiçãoaos mocambos, onde havia escravos rebeldes,guardiães — sempre e somente — de umacultura africana a-histórica e de um supostosímbolo exclusivo do protesto escravo. Aocontrário disso, pode-se revelar como os vari-ados mundos criados pelos quilombolas aca-baram por transformar, entre outras coisas, osmundos daqueles que permaneciam escravos.

39 Cf. Michael Craton, “Proto-Peasant Revolts? The LateSlave Rebellions in theBritish West Indies, 1816-1832”, in Past & Present,vol. 85, novembro de 1979,pp. 99-125.

40 No Brasil colonial as auto-ridades ofereceram váriostratados de paz aosquilombolas de Palmares.Ver: Edison Carneiro, OQuilombo dos Palmares,3ª ed., Rio de Janeiro, Ci-vilização Brasileira, 1966;e Décio Freitas, Palmares:a Guerra dos Escravos, 3ªed., Rio de Janeiro, Graal,1981. Para tratados de pazpropostos aos maroons daJamaica e Suriname, versíntese em: Silvia W. deGroot, “A Comparisonbetwen the History ofMaroon Communities inSurinam and Jaimaca”, inSlavery & Abolition, vol. 6,n° 3, dezembro de 1985,pp. 173-84.

41 Para os trabalhos clássi-cos sobre protesto escra-vo e quilombos no Brasil,ver: Clóvis Moura, Rebeli-ões da Senzala. Quilom-bos, Insurreições e Guer-rilhas, Rio de Janeiro, Con-quista, 1972; e DécioFreitas, op. cit. Análisesmais recentes — e comoutras abordagens — en-contram-se em: Célia Ma-ria Marinho Azevedo,Onda Negra. Medo Bran-co. O Negro no Imagináriodas Elites — século XIX,Rio de Janeiro, Paz e Ter-ra, 1987; SidneyChalhoub, Visões de Liber-dade. Uma História dasúltimas Décadas da Escra-vidão na Corte, São Pau-lo, Companhia das Letras,1990; Sílvia Hunold Lara,Campos da Violência: Es-cravos e Senhores na Ca-pitania do Rio de Janeiro,1750-1808, Rio de Janei-ro, Paz e Terra, 1988; eJoão José Reis, RebeliãoEscrava no Brasil. A His-tória do Levante dos Malês(1835), São Paulo,Brasiliense, 1986.

42 Uma análise crítica sobrea historiografia a respeitode quilombos e o protestoescravo no Brasil encon-tra-se em: Flávio dos San-tos Gomes, História dosQuilombolas, op. cit.