Prática da Mediação na Agência Nacional de Telecomunicações - ANATEL

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Esta dissertação tem por objetivos (i) entender como se estabeleceu a prática de mediação, como espécie do gênero métodos alternativos de resolução de conflitos, no cotidiano da ANATEL, consoante atribuição legal na forma da Lei Geral das Telecomunicações e (ii) investigar a forma como são realizadas as ações para resoluções dos conflitos via mediação, quando de grande impacto econômico e da existência da busca de ambiência e estratégias para viabilizar o consenso necessário para a resolução do conflito. Demonstra, através de um estudo de caso, a importância de se realizar estudos técnico-metodológicos para compor conflitos numa abordagem referenciada, regulamentada e normativa. O objeto de estudo foi o processo disponibilizado pela ANATEL e, por meio deste, identificou-se a prática de mediação nesta Agência reguladora de telecomunicações. A pesquisa permite apresentar a figura do mediador não como um terceiro neutro, mas sim como um representante do órgão normatizador, regulador e fiscalizador. Aponta para a existência, no âmbito da Agência, de atores com posturas mediadoras, carecendo, entretanto, clarificar o papel do mediador, dos processos e fluxos de atividades a serem desenvolvidas pelo mediador, no exercício de suas funções, para uma atuação conforme os procedimentos e técnicas que vêm sendo consolidadas para viabilizar a atuação dos profissionais que atuam nesta qualidade.

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS/CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS E APLICADOS PROGRAMA DE PS-GRADUAO SOCIOLOGIA E DIREITO EM

CELIA MARIA OLIVEIRA PASSOS

Prtica da Mediao na Agencia Nacional de Telecomunicaes - ANATEL

NITERI 2008

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SOCIOLOGIA E DIREITO - PPGSD

CLIA MARIA OLIVEIRA PASSOS

PRTICA DA MEDIAO NA AGNCIA NACIONAL DE TELECOMUNICAES - ANATEL

Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado em Direito e Sociologia do Programa de PsGraduao em Direito e Sociologia PPGSD da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obteno do Grau de Mestre em Direito e Sociologia. Orientador: Professora Doutora Carmen Lucia Tavares Felgueiras.

Niteri, 2008

II

Passos, Celia Maria Oliveira Prtica da Mediao na Agncia Nacional de Telecomunicaes - ANATEL / Celia Maria Oliveira Passos, UFF/ Programa de Ps-Graduao em Sociologia e Direito. Niteri, 2008. 207 f. Dissertao (Mestrado em Cincias Jurdicas e Sociais) Universidade Federal Fluminense, 2008. 1. Acesso a Justia. Agncias reguladoras. 2. ANATEL. 3. Mediao. 4. Um estudo de caso. I. Dissertao (Mestrado). II. Ttulo

III

CLIA MARIA OLIVEIRA PASSOS

PRTICA DA MEDIAO NA AGNCIA NACIONAL DE TELECOMUNICAES - ANATEL.

Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado em Direito e Sociologia do Programa de Ps-Graduao em Direito e Sociologia PPGSD da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obteno do Grau de Mestre em Direito e Sociologia.

Aprovada em

de

de 2008.

BANCA EXAMINADORA:

_____________________________________________________________________ Prof. Doutora Carmen Lucia Tavares Felgueiras, Orientadora Universidade Federal Fluminense UFF

________________________________________________________________ Prof. Doutor Marcelo Gustavo Andrade de Souza Pontifcia Universidade Catlica PUC-RJ

_____________________________________________________________________ Prof. Doutora Cleusa Santos Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ

Niteri, 2008

IV

Dedicatria

Ao Leonardo, Nelson Luiz, Pedro e Gabriela, por quem meu corao bate forte.

todos os que, em meio a bilhes de pessoas nesse vasto mundo, Passaram a fazer parte de minha vida e a compor a minha histria.

V

Agradecimentos

Carmen Felgueiras, minha orientadora, pelo saber compartilhado, o comprometimento, a disponibilidade, o respeito inspirado e pela amizade construda. Tambm pelos debates e pelos risos que, como estratgia ou acaso, suavizaram em muito os momentos mais crticos desta trajetria. Aos professores dedicados ao PPGSD, pelo conhecimento partilhado e pelos momentos vivenciados. Aos meus irmos e irms por nosso afeto e unio, especialmente Sumahi, pelo amor incondicional, presena constante, ateno permanente e eterno cuidado; ao Alexandre, pela solidariedade de sempre e Olga, pela capacidade de sonhar junto. todos os que crem na tica, na justia e na solidariedade como valores humanos, que inspiram minhas reflexes e nutrem minhas crenas no respeito a vida, dignidade humana, a busca do consenso e de um convvio mais harmonioso.

VI

RESUMOEsta dissertao tem por objetivos (i) entender como se estabeleceu a prtica de mediao, como espcie do gnero mtodos alternativos de resoluo de conflitos, no cotidiano da ANATEL, consoante atribuio legal na forma da Lei Geral das Telecomunicaes e (ii) investigar a forma como so realizadas as aes para resolues dos conflitos via mediao, quando de grande impacto econmico e da existncia da busca de ambincia e estratgias para viabilizar o consenso necessrio para a resoluo do conflito. Demonstra, atravs de um estudo de caso, a importncia de se realizar estudos tcnico-metodolgicos para compor conflitos numa abordagem referenciada, regulamentada e normativa. O objeto de estudo foi o processo disponibilizado pela ANATEL e, por meio deste, identificou-se a prtica de mediao nesta Agncia reguladora de telecomunicaes. A pesquisa permite apresentar a figura do mediador no como um terceiro neutro, mas sim como um representante do rgo normatizador, regulador e fiscalizador. Aponta para a existncia, no mbito da Agncia, de atores com posturas mediadoras, carecendo, entretanto, clarificar o papel do mediador, dos processos e fluxos de atividades a serem desenvolvidas pelo mediador, no exerccio de suas funes, para uma atuao conforme os procedimentos e tcnicas que vm sendo consolidadas para viabilizar a atuao dos profissionais que atuam nesta qualidade. Palavras-Chave: Acesso a Justia. ANATEL. Mediao. Composio de Conflitos.

VII

SUMMARYThis dissertation has two objectives: (i) to analyze how the practice of mediation was established as an alternative method of conflict resolution on the quotidian of the Brazilian national regulatory agency ANATEL, according to the legal attribution inserted in the Law 9.472/1997 - LGT and (ii) to investigate the performance of mediation actions towards conflict resolution when due to great economic impact, and to search the adequate strategies in order to reach the necessary consensus to solve the conflict. Through the study of a case, demonstrates the importance of developing technical and methodological studies to a conflict composition in a referenced, regulated and normative approach. The object of the study is the practice of mediation in the Brazilian national regulatory agency, through the analysis of an administrative procedure published by the services area of ANATEL. The research intends to present the mediator not only as a neutral third person, but as a representative of the regulator agency, comprising the normatization, regulation and inspection roles. The research points out the existence of actors with mediator behavior; they need, however, to clear up the role of the mediator, the processes and the activities to be developed by the mediator in his function, according to the procedures and techniques that have been consolidated to support the performance of these professionals. Key Words: Access to Justice. ANATEL. Mediation. Conflict composition.

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SUMRIO

INTRODUO 001 1. REFORMA ADMINISTRATIVA/REFORMA DO ESTADO: O NOVO PAPEL DO ESTADO COMO MEDIADOR SOCIAL 005 1.1. A REFORMA DO ESTADO 005 1.1.1. A Mudana do papel do Estado 006 1.1.2. Mudanas Constitucionais 009 1.1.3. O Estado interventor 011 1.2. A REFORMA ADMINISTRATIVA 011 1.2.1 Administrao Pblica Gerencial 013 1.3. O PAPEL DO ESTADO COMO MEDIADOR 014 2. AGNCIAS REGULADORAS: ORIGENS E ATRIBUIES LEGAIS 020 2.1. A ORIGEM DAS AGNCIAS REGULADORAS 021 2.2. CARACTERSTICAS PRPRIAS DAS AGENCIAS REGULADORAS 024 3. O SETOR DAS TELECOMUNICAES NO BRASIL 041 3.1. A ESTRUTURA DO SETOR DAS TELECOMUNICAES E A FORMAO DOS CONFLITOS 041 3.2. A AGNCIA NACIONAL DE TELECOMUNICAES ANATEL 045 3.3. CONFLITOS NO SETOR DAS TELECOMUNICAES 051 4. A CRISE DO JUDICIRIO E OS MTODOS ALTERNATIVOS DE RESOLUO DE CONFLITO 4.1. OS MTODOS ALTERNATIVOS DE SOLUO DE CONFLITOS 4.2. CRISE NO PODER JUDICIRIO: A CONTRIBUIO DO SETOR DE TELECOMUNICAES 4.3. BREVES CONSIDERAES SOBRE O CONFLITO EM UMA PERSPECTIVA SOCIOLGICA 4.4. A MEDIAO E OS MTODOS ALTERNATIVOS DE SOLUO DE CONFLITOS NO MUNDO CONTEMPORNEO 4.5. PRESSUPOSTOS E MODELOS DA MEDIAO 4.6. OS MASCS NO BRASIL: ASPECTOS LEGAIS, DOUTRINRIOS E PERCEPO DE ALGUNS ATORES SOCIAIS 4.7. O USO DOS MTODOS ALTERNATIVOS DE SOLUO DE SOLUO DE CONFLITOS NO MBITO DA ANATEL

055 055 063 069 077 089 092 101

5. CONFLITOS NO SETOR REGULADO: AS PRTICAS PROCEDIMENTAIS, A MEDIAO E O PAPEL MEDIADOR DA ANATEL 104 5.I. CONFLITOS NO SETOR DE TELECOMUNICAES 104

IX

5.2. PRINCPIOS NORTEADORES E PRTICAS PROCEDIMENTAIS NO SETOR REGULADO 106 5. MEDIAO NO MBITO DA ANATEL 111 6. ESTUDO DE CASO 6.1. MEDIAO NO MBITO DA ANATEL 6.2. O CASO EMBRATEL X TCS 6.2.1. Reclamao administrativa com pedido de Mediao cumulado com Pedido Liminar Processo n. 53500.006389/1999 6.2.2. Processos Administrativo e de Mediao 6.2.3. Etapas do Processo de Mediao 6.2.4. A Linguagem, a comunicao e os processos 6.3. NORMAS DE REGNCIA DA MEDIAO NO MBITO DA ANATEL 6.4. A CUMULAO DE PEDIDOS E OS EFEITOS SOBRE O CONFLITO 6.5. A REUNIO DE MEDIAO CONCLUSO REFERNCIAS ANEXOS 121 121 124 124 128 132 136 148 151 158 164 170 178

X

ABREVIATURAS UTILIZADAS ADRS - Alternative Dispute Resolution Systems ANATEL - Agncia Nacional de Telecomunicaes ANEEL - Agncia Nacional de Energia Eltrica ANP - Agncia Nacional do Petrleo ANS - Agncia Nacional de Sade ANTAQ - Agncia Nacional de Transportes Aquavirios ANTT - Agncia Nacional de Transportes Terrestres Arce - Agncia Reguladora de Servios Pblicos Delegados do Estado do Cear ARD - Alternative Resolution Dispute ASEP-RJ - Agncia Reguladora de Servios Pblicos Concedidos do Estado do Rio de Janeiro B2B - Business to Business BNDES - Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico Social Cade - Conselho Administrativo de Defesa Econmica CADE - Conselho Administrativo de Defesa Econmica CAI - Comisso de Arbitragem em Interconexo CCEE - Cmara de Comercializao de Energia Eltrica CCI - Cmara de Comrcio Internacional CLT - Consolidao das Leis de Trabalho CONAR - Conselho de Auto-Regulamentao Publicitria Contel - Conselho Nacional de Telecomunicaes D.O.U. - Dirio Oficial da Unio DECONs - Delegacias do Consumidor EMBRATEL - Empresa Brasileira de Telecomunicaes S/A EUA - Estados Unidos da Amrica FMCS - Federal Mediation and Conciliation Service GBDe - Global Business Dialogue on Electronic Commerce IAA - Instituto Nacional do Acar e do lcool IBC - Instituto Brasileiro do Caf IOF - Imposto sobre Operao Financeira IPI - Imposto sobre Importao ISA-ADRS - Instituto de Solues Avanadas LGT - Lei Geral de Telecomunicaes MASCs - Mtodos Alternativos de Soluo de Conflitos MEDIARE - Centro de Administrao de Conflitos ODC's - Organizaes de Defesa do Consumidor OMC - Organizao Mundial de Comrcio ONGs - Organizaes no governamentais ONU - Organizao das Naes Unidas POLICIES - Polticas Pblicas Formuladas PPGSD - Programa de Ps-Graduao em Direito e Sociologia PROCONs - Programas de Orientao e Proteo ao Consumidor RAD - Resoluo Alternativa de Disputas RI - Regimento Interno RI - Regimento Interno da Agncia

XI

SBP - Superintendncia de Servios Pblicos SCM - Servio de Comunicao Multimdia SMA - Superintendncia de Mediao Administrativa Setorial SMP - Servio Mvel Pessoal STFC - Servio Telefnico Fixo Comutado TABD - Trans Atlantic Business Dialogue Group TACD - Trans Atlantic Consumer Dialogue TCS - Tele Centro Sul Participaes S.A. TELEACRE - Telecomunicaes do Acre S/A TELEBRS - Telecomunicaes Brasileiras S.A. TELEBRASLIA - Telecomunicaes de Braslia TELERJ - Telecomunicaes do Estado do Rio de Janeiro TURL - Tarifa de Uso de Rede Local UE - Unio Europia UFF - Universidade Federal Fluminense UST - Universidade de St. Thomas

XII

LISTA DE ILUSTRAESAs cinco foras competitivas Fonte: PORTER (1997) Organograma da Anatel Fonte: www.anatel.gov.br (acesso em 12.12.2006)

PG.43 47

Diferenciao entre Mediao e Conciliao. Fonte: Apostila do Curso de Mediao e Resoluo Pacfica de Conflitos em Segurana Cidad, por ALMEIDA, Tnia. Produo: MEDIARE ISA-ADRS. 61 Cpia da Capa do Processo de n 53500.006389/1999. Fonte: Anatel 145

ANEXOSMediao EMBRATEL e TELE CENTRO SUL (realizada em 21.01.2000)

PG.178

XIII

EPGRAFE

... a paz no precede a justia. Por isso, a melhor maneira de falar de paz fazer justia. (Xsus R. Jares, Educar para a paz em tempos difceis)

XIV

INTRODUO O presente estudo pretende desvelar a prtica de MEDIAO na Agncia Nacional de Telecomunicaes - Anatel no perodo de 1998 a 2006, atravs da anlise qualitativa de processo de MEDIAO tratado como estudo de caso. Desde a sada da graduao, j me inquietava, nos diversos momentos de minha vida profissional e acadmica, diante da prtica do contencioso na advocacia. Uma questo se apresentava como a dvida quanto possibilidade de generalizao de acesso justia, sem a existncia de confronto e, conseqentemente, a necessidade do recurso via judicial. O acesso justia pela cooperao entre as partes me era atrativo por parecer mais razovel, racional e produtivo que as partes buscassem, atravs do entendimento, uma soluo para resolver suas controvrsias, ao invs de esperar, por anos a fio, uma deciso judicial sobre a qual nenhuma previso seja quanto ao tempo de tramitao, seja quanto a deciso final (sentena) poderia ser vislumbrada. Trabalhar em cargos de gesto na rea jurdica de empresas, como ocorreu em relao TELERJ, e ter atuado no Ministrio das Comunicaes, quando do processo de privatizao das telecomunicaes, aos poucos me abriu caminhos para que, no perodo de 1998 a 2000, eu viesse a atuar na Procuradoria da Anatel, compondo o quadro de profissionais cedidos quela Agncia para o exerccio das atividades jurdicas inerentes a sua implantao e ao seu desenvolvimento. Essa experincia ampliou a minha percepo sobre o setor de telecomunicaes. Posteriormente, atuando em cargos de gesto no jurdico de algumas empresas prestadoras de servios de telecomunicaes, sendo que duas eram empresas novas no setor e uma delas encontrava-se na fase ps-privatizao, e j aluna do Programa de Ps Graduao em Direito e Sociologia - PPGSD da Universidade Federal Fluminense UFF, despertou-me a curiosidade em conhecer a dialgica reguladora e a postura das prestadoras frente s demandas, impasses e conflitos resultantes da abertura do mercado no setor das telecomunicaes. Na tentativa de acompanhar a cronologia da aplicao da Lei 9.742/97 que prope no artigo 19, inc.XII a composio administrativa dos conflitos entre prestadoras, interessada neste universo de estudo, solicitei material para uma pesquisa documental sobre a normatizao da MEDIAO no mbito da Anatel, enquanto agncia, mediadores e partes, e sobre as orientaes s prestadoras entre si, Business to Business (B2B). Com surpresa

percebi que minha inteno inicial de avaliar o primeiro e ltimo processo de MEDIAO no perodo de 1998 a 2006 no pode ser totalmente atendida uma vez que somente me foi disponibilizado um nico processo de nmero 53500006389 iniciado em 1999, cujo assunto, conforme consta referido na capa, trata de Reclamao Administrativa, cumulada com pedido de MEDIAO e com Pedido de Deciso Liminar. Os procedimentos da Reclamao, MEDIAO e Deciso Liminar encontram previso no Regimento Interno da Anatel, sendo a Reclamao (ou Denncia) o expediente utilizado quando da violao de um direito ou da ordem jurdica, a MEDIAO o instrumento atravs do qual se coloca a Agncia junto as partes para resolver um litgio e, a Medida Liminar o instrumento adequado para circunstncias urgentes (e de cunho coercitivo) a serem decididas, pela Anatel, no curso de um processo administrativo. Mergulhando sobre este nico processo, num criterioso estudo sobre a transcrio de 2 fitas, onde os dilogos entre as partes (constituda de aproximadamente 20 de suas 163 pginas) foram reproduzidos , encontrei uma fonte bastante rica para a observao dos atores, para a anlise das aes mediadoras naquele mbito e as inferncias a serem feitas diante do cenrio avistado. Assim, pude alcanar os objetivos da pesquisa: desvelar a prtica da MEDIAO no mbito da Anatel; conhecer os procedimentos previstos para nortear o processo de MEDIAO e perceber o papel da Anatel (na qualidade de mediador) como terceiro neutro e facilitador do dilogo entre as partes. Sendo assim, no intuito de abordar o estudo de forma clara e didtica, a presente dissertao encontra-se estruturada em seis captulos. No primeiro captulo, Reforma Administrativa/Reforma do Estado: O Novo Papel do Estado como Mediador Social, apresento as modificaes no papel do Estado ao longo dos anos, papel que vem sendo gradativamente reduzido no que tange a sua atuao como produtor de bens e servios e acrescido em sua interao como regulador e/ou mediador. Este papel de regulador e/ou mediador do Estado tem estreita ligao com os chamados rgos reguladores de atividade econmica especfica, tratados no segundo captulo, As Agncias Reguladoras. Neste captulo, pretendo entender o lugar destes rgos no direito administrativo, estudando a sua criao, suas principais caractersticas e atribuies, com o objetivo, portanto, de revelar a sua verdadeira razo de ser, os objetivos a que se impe e a busca por independncia normativa. Dando continuidade ao trabalho, vislumbra-se o cenrio das telecomunicaes no Brasil, profundamente alterado com o processo de privatizao e a conseqente explorao

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do servio por meio de competio, em oposio s prticas monopolistas de explorao pr1995. Com a necessidade de regulao, j no terceiro captulo, O setor das Telecomunicaes no Brasil v-se a importncia do surgimento da Lei Geral de Telecomunicaes e da Anatel. Neste novo contexto, as concessionrias j existentes tiveram de lidar com novas empresas prestadoras do mesmo servio no mercado. V-se a existncia (e ampliao) dos conflitos no setor de telecomunicaes no pas. Compreende-se que os conflitos no dizem respeito apenas diversidade de empresas no mercado, mas, principalmente, administrao dos riscos, ao impacto de novas tecnologias e interpretao de normas que por vezes no acompanham a velocidade da insero das novas tecnologias no mercado. Prosseguindo no estudo, j o captulo quarto, A Crise do Judicirio e os Mtodos Alternativos de Resoluo de Conflito, volta-se para a atual crise do judicirio e a alternativa advinda dos mtodos de resoluo de conflito. Analiso o conflito sob uma tica sociolgica, estudo a tcnica da MEDIAO (stricto senso) e, por fim, seu papel no mundo contemporneo e no Brasil, com a instituio do papel do Estado mediador no Brasil. No captulo quinto, O conflito e a MEDIAO no Setor Regulado. O papel da Anatel na soluo de conflitos, mostro, ento, as normas incidentes e como estas vem sendo aplicadas no setor regulado, analisando os procedimentos existentes na Agncia Nacional de Energia Eltrica (ANEEL), na Agncia Nacional do Petrleo (ANP), referente a realizao de aes com ndole a dirimir conflitos, bem como e em especial, o importante papel legalmente reservado Agncia Nacional das Telecomunicaes (ANATEL) nesta jornada. Por fim, no captulo sexto, denominado Estudo de Caso, analiso o contencioso em processo administrativo, especificamente na Anatel, em cotejo com os procedimentos da MEDIAO. Consta deste estudo de caso um nico processo, vez que o nico que faz referncia MEDIAO, protocolado na Agncia e j concludo (conforme Ofcio da Superintendncia de Servios Pblicos). Examino seus autos e os cotejo com o que realmente se entende (no Brasil e no mundo) por mediar conflitos. Nesta etapa crucial, v-se dentre outros assuntos, as normas que possibilitam o processo da MEDIAO na Anatel, a importncia da comunicao das partes e o papel do mediador, concluindo no captulo uma anlise dos episdios ocorridos durante a reunio de MEDIAO.

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Finalizo a presente dissertao com algumas reflexes acerca do papel efetivo da MEDIAO, enquanto mtodo alternativo de resoluo de conflitos nas agncias reguladoras, contrastando-o com o que se espera que seja realmente desenvolvido no futuro, e, em especial, com o convite reflexo sobre o verdadeiro papel que pode a MEDIAO ocupar enquanto prtica de resgate da cidadania, devolvendo ao cidado a capacidade de decidir sobre as questes objeto de conflitos.

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I. REFORMA ADMINISTRATIVA/REFORMA DO ESTADO: O NOVO PAPEL DO ESTADO COMO MEDIADOR SOCIAL I.1. A Reforma do Estado Preliminarmente, uma vez que trataremos de um rgo regulador situado no mbito do Estado, qual seja, a Agncia Nacional de Telecomunicaes, faz-se necessrio abord-lo historicamente, retomando assim a chamada Reforma do Estado que, como sabido, insere-se em um contexto maior de transformaes ocorridas na sociedade e na economia brasileira e mundial. Tal transformao no significou apenas uma reduo do papel do Estado na economia e na sociedade, mas, sobretudo, uma modificao do mesmo em seu papel de mediador. De fato, no mbito da Reforma do Estado e da Reforma Administrativa que a acompanha, o que ocorreu, no fundo, foi uma mudana no papel do Estado como mediador ou regulador, o que se comprova com a competitividade entre empresas privadas na prestao de servios pblicos. Desde a crise do capitalismo de 1968/1974, combinada com a crise do petrleo de 1973, o papel do Estado na economia passou a ser questionado em quase todos os pases do mundo. A partir de ento, apesar de uma grande parte dos Estados (inclusive os Estados Unidos) ainda praticarem uma poltica keynesiana para alavancar uma economia em crise, o paradigma keynesiano e a idia de um Estado interventor/produtor passou, cada vez mais, a ser colocado em questo. O reflexo das crises dos EUA e de sua prpria poltica econmica aparece no Brasil, momento em que a base de apoio ao governo ditatorial (o trip formado pelo Estado, o capital privado e o capital multinacional) comeou a se deteriorar, com a burguesia nacional retirando, aos poucos, o apoio que dava at ento ao regime, dando incio a uma poltica de democratizao e de desestatizao (ALVES, 1984: 203). No entanto, fora apenas na dcada de 1980 que a poltica keynesiana foi totalmente derrotada pela realidade. Nos Estados Unidos e no resto do mundo desenvolvido (sobretudo na Inglaterra de Margareth Thatcher), isto se deu por uma poltica de privatizao e de desregulamentao financeira, de resto fruto de um declnio do capital produtivo que, devido a isso, estava se deslocando para o setor financeiro, e, atravs de seus respectivos lobbies, exigindo uma maior mobilidade para o capital financeiro por parte dos governos (BRENNER, 2000). Nos pases ditos em desenvolvimento ou emergentes, e, sobretudo, na Amrica Latina, o paradigma keynesiano entrou em declnio em funo de uma dvida

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contrada na dcada de setenta, justamente com vistas a prolongar um crescimento que se tornara invivel em face de um ciclo descendente da economia (PEREIRA, 1983: 145). A partir de ento, e cada vez mais, os Estados Nacionais passaram a no ter mais capitais para investir, de modo que o investimento na economia passou a se originar, sobretudo, do setor privado. A insolvncia do Estado fora tamanha que o prprio Estado do Bem Estar Social, mais forte nos pases desenvolvidos e mais fraco nos pases em desenvolvimento, tornou-se insustentvel. E, mais particularmente, passara a sofrer uma srie de crticas por parte dos lobbies das empresas privadas (BRENNER, op cit: 232). Isso porque a maior parte do dinheiro pblico, sobretudo nos pases em desenvolvimento, mas tambm nos Estados Unidos, aps o ajuste fiscal da administrao Clinton (1994), teve que ser direcionado para o pagamento da dvida pblica. Em meio a um significativo endividamento pblico, interno e externo, decorrente das obrigaes derivadas com a dvida pblica e com a solvncia de uma balana comercial deficitria, a grande maioria dos Estados passou a enfrentar uma verdadeira crise fiscal. A gesto desta crise pelo Estado, por sua vez, acabou por se transformar numa crise fiscal permanente do Estado (O CONNOR, 1977). I.1.1. A Mudana do papel do Estado Foi, justamente, com vista resoluo desta crise permanente do Estado que a maior parte dos governos tendeu a realizar uma Reforma do Estado. A idia subjacente a esta reforma era a de que o Estado interventor e, sobretudo, o Estado produtor deveria deixar de existir enquanto tal, transformando-se num Estado mnimo. Em alguns casos, chegou-se a pensar na possibilidade de uma extino do chamado Estado-nao, em funo da emergncia de uma economia regional (OHMAE, 1996), ou mesmo de uma incapacidade do Estado de utilizar-se dos instrumentos tradicionais de uma poltica macroeconmica. No entanto, na realidade, mesmo nos Estados mais liberais, contrrios ao do Estado e adeptos de uma regulao pura e simples atravs do mercado, a idia do Estado mnimo nunca vigorou como tal. Na maioria dos casos, o que se sucedeu foi uma reformulao do papel do Estado como mediador, sendo que em alguns casos, como um mediador parcial, em prol da classe dominante, ou pelo menos grupos hegemnicos dentro do bloco histrico do poder (GRUPPI, 1980). Ademais, conforme observou Bresser Pereira,

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Apesar do predomnio ideolgico alcanado pelo credo neoconservador, em pas algum desenvolvido ou em desenvolvimento esse Estado mnimo tem legitimidade poltica. No sequer apoio poltico para um Estado que apenas acrescente s suas funes as de prover a educao, dar ateno sade e s polticas sociais compensatrias: os cidados continuam a exigir mais Estado. (...) rapidamente se percebeu que a idia de que as falhas do Estado eram necessariamente piores que as falhas do mercado no passava de dogmatismo. As limitaes da interveno estatal so evidentes, mas o papel estratgico que as polticas pblicas desempenham no capitalismo contemporneo to importante que se torna irrealista propor que sejam substitudas pela coordenao do mercado, nos termos sugeridos pelo pensamento neoliberal (PEREIRA, 2006: 22-23).

Independentemente do fato de ter beneficiado, sobretudo os grupos hegemonicamente dominantes, o que nem sempre foi o caso, regra geral, a Reforma do Estado tendeu a se constituir numa reduo do Estado em suas funes de produtor de bens e servios, e, em menor extenso, como regulador, tendo como contrapartida uma ampliao do mesmo no papel de financiador de atividades que envolvam externalidades ou direitos humanos bsicos e na promoo da competitividade internacional das indstrias locais (PEREIRA, op cit: 23). Devido a esta reduo do Estado em suas funes de produtor de bens e servios, muitos dos servios pblicos (energia eltrica, telecomunicaes, sade, entre outros) que passaram a ser oferecidos por empresas privadas tiveram que ser fiscalizados, direta ou indiretamente, pelo Estado. No entanto, nem sempre a atividade reguladora surgiu em funo de uma substituio de uma interveno direta do Estado por uma empresa privada na produo e/ou prestao de bens e servios. Em alguns casos, como, por exemplo, na produo de petrleo, apesar do surgimento de uma Agncia Reguladora (no caso, a ANP, Agncia Nacional de Petrleo), uma empresa estatal (a Petrobrs) continuou a fazer do Estado o maior produtor do setor. Nesse sentido, conforme observou Floriano de Azevedo Marques Neto,o que relevante para o advento da atividade regulatria estatal no , pois, a supresso da interveno estatal direta na ordem econmica, mas basicamente i) a separao entre o operador estatal ente encarregado da regulao do respectivo setor e ii) a admisso do setor regulado da existncia de operadores privados competindo com o operador pblico (introduo do conceito de competio em setores sujeitos interveno estatal direta) (2005: 30-31).

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A esta observao de Marques Neto, acrescentaramos que, mais importante do que a competio, que o Estado em questo (e tambm as Agncias Reguladoras), se no constitudo de setores das classes subalternas e contra-hegemnicas, seja pelo menos permevel participao pblica. Isto , que haja condies reais de participao pblica dos diferentes grupos de interesse que se formam na sociedade civil. Somente desta forma que podemos considerar que a nova regulao pode se constituir em uma mudana significativa no sentido da atuao do Estado em direo aos interesses da sociedade, antes dos (interesses) do prprio Estado-nao, conforme diz Marques Neto (op cit: 32). Tampouco consideramos que a iniciativa privada, ou a iniciativa estatal, em si mesmas, possam ser coincidentes ou no com o interesse pblico. De fato, tanto uma economia estatizada quanto uma economia privatizada podem ser contrrias ao interesse pblico ou favorveis ao interesse pblico. Tudo depende de o Estado ser constitudo por elementos de toda sociedade, seja agindo diretamente na economia, conforme era comum se fazer at recentemente, ou regulando a iniciativa privada que, desse modo, tambm poder agir em prol do interesse pblico. Por fim, ainda em relao interveno estatal na economia, devemos atentar para o fato de que a atividade de regulao tambm se constitui numa forma de interveno estatal. Depende do modo como as foras sociais movimento social, ONGs, etc., se envolvem no processo. No entanto, conforme observou Marques Neto, uma forma de interveno que nos seus pressupostos, objetivos e instrumentos difere substancialmente da interveno direta no domnio econmico (op cit: 31). Segundo este autor, a interveno regulatria muito mais pautada pelo carter de mediao do que pela imposio de objetivos e comportamentos ditada pela autoridade (ibid), sendoprprio dessa concepo de regulao a permeabilidade do ente regulador aos interesses dos regulados, sejam operadores econmicos, sejam usurios, sejam mesmo os prprios interesses estatais enredados no ente regulado (ibid).

Compactuamo-nos assim com a idia de Marques Neto ao justificar a interveno regulatria quando concebida de modo a se vislumbrar os aspectos de cada interessado, objetivando o prprio fundamento da mediao neste novo papel do Estado.

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I.1.2. Mudanas Constitucionais As reformas econmicas inseridas no bojo da Reforma do Estado envolveram trs transformaes estruturais que se complementam, mas no se confundem, a saber: a extino de determinadas restries ao capital estrangeiro, a flexibilizao dos monoplios estatais e a privatizao de estatais. As duas primeiras destas mudanas foram realizadas a partir de emendas constitucionais, enquanto a terceira foi realizada mediante a prtica de atos administrativos. Considerando que a Reforma do Estado necessita da privatizao de algumas empresas estatais e que esta ltima necessita de capitais externos para se realizar (dado o baixo nvel de acumulao de capital existente no Brasil), pode-se dizer que a extino de maiores restries ao ingresso de capital estrangeiro constitui-se num verdadeiro ponto de partida para a Reforma do Estado. Foi assim que a Emenda Constitucional n 6, de 15 de agosto de 1995, viria a suprimir o artigo 171 da Constituio Federal, que trazia a conceituao de empresa brasileira de capital nacional, admitindo a outorga a ela de proteo, benefcios especiais e preferenciais. Esta mesma emenda modificou a redao do artigo 176, caput, para permitir que a pesquisa e lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais de energia eltrica sejam concedidos ou autorizados empresas constitudas sob as leis brasileiras, dispensada a exigncia do controle do capital nacional. Dentro dessa mesma perspectiva, a Emenda Constitucional n 7, de 15 de agosto de 1995, modificou o artigo 178, no exigindo que a navegao de cabotagem e interior seja privativa de embarcaes nacionais e a nacionalidade brasileira dos armadores, proprietrios e comandantes, e pelo menos dois teros dos tripulantes. A segunda modificao estrutural que deu ensejo Reforma do Estado no Brasil foi a flexibilizao dos monoplios estatais. Esta foi realizada a partir da Emenda Constitucional n 5, de 15 de agosto de 1995, que alterou a redao do pargrafo 2 do artigo 25, abrindo possibilidade aos governos estaduais concederem s empresas privadas a explorao de servios pblicos locais de distribuio de gs canalizado, que, anteriormente, s podiam ser delegados a empresa sob controle acionrio estatal. O mesmo ocorreu com relao aos servios de telecomunicaes e de radiodifuso sonora e de sons e imagens, a partir da Emenda Constitucional n 8, de 15 de agosto de 1995, que modificou o texto dos incisos XI e XII, que s admitiam a concesso empresa estatal, como ser verificado, com maior profundidade quando tratarmos da Agncia Nacional das Telecomunicaes - Anatel.

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Particularmente na rea da explorao do petrleo, a Emenda Constitucional n 9, de 9 de outubro de 1995, extinguiu o monoplio estatal, facultando Unio Federal a contratao com empresas privadas de atividades relativas pesquisa e lavra de jazidas de petrleo, gs natural e outros hidrocarbonetos fluidos, a refinao de petrleo nacional ou estrangeiro, a importao, exportao e transporte dos produtos e derivados bsicos de petrleo que outrora estavam vedados pela Constituio Federal pelo artigo 177 e pargrafo 1 e pela Lei n 2.004/51. A terceira modificao que dera ensejo Reforma do Estado foi realizada a partir da Lei n 8.031, de 12 de abril de 1990, que instituiu o Programa Nacional de Privatizao, que fora substituda pela Lei n 9.491, de 9 de setembro de 1997. Conforme observou Lus Roberto Barroso, os objetivos fundamentais deste programa, nos termos do artigo 1, incisos I e IV foram: (i) reordenar a posio estratgica do Estado na economia, transferindo iniciativa privada atividades indevidamente exploradas pelo setor pblico; (ii) contribuir para a modernizao do parque industrial do pas, ampliando sua competitividade e reforando a capacidade empresarial nos diversos setores da economia (BARROSO, 2002: 112). O programa de privatizao ou de desestatizao foi levado a cabo, sobretudo pelos seguintes mecanismos: 1) alienao, em leilo na bolsa de valores, do controle de entidades estatais, seja de empresas que exploram atividades econmicas ou de empresas que prestam servios pblicos; 2) a concesso de servios pblicos a empresas privadas. No plano federal, foram privatizadas empresas dos setores petroqumico, siderrgico, metalrgico e de fertilizantes, seguindo-se a privatizao da infra-estrutura, envolvendo a venda da empresa com a concomitante outorga do servio pblico, como tem ocorrido com empresas de energia e de telecomunicaes e com rodovias e ferrovias. s modificaes constitucionais e legislativas mencionadas anteriormente deve-se acrescentar que os ltimos quinze anos foram marcados por uma fecunda produo legislativa em termos econmicos, incluindo diferentes setores, tais como: energia (Lei n 9.247, de 26 de dezembro de 1996); telecomunicaes (Lei n 9.472, de 16 de julho de 1997) e petrleo (Lei n 9.478, de 6 de agosto de 1997), com a criao das respectivas agncias reguladoras; modernizao dos portos (Lei n 8.630, de 25 de fevereiro de 1993) e defesa da concorrncia (Lei n 8.884, de 11 de junho de 1994); concesses e permisses (Leis n 8.987, de 13 de fevereiro de 1995 e n 9.074, de 7 de julho de 1995), entre outras.

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I.1.3. O Estado interventor interessante notar que mesmo aps a Reforma do Estado, iniciada na segunda metade da dcada de 1990, o Estado brasileiro continuou a intervir na economia, particularmente sob trs formas: 1) a disciplina; 2) o fomento; e a 3) atuao direta (BARROSO, op cit: 114 -116). Quanto disciplina, o Estado brasileiro intervm mediante leis e regulamentos, pelo exerccio do poder de polcia. Entre essas, pode-se mencionar, por exemplo, o Cdigo de Defesa do Consumidor (artigo 5, inc. XXXII), a lei de remessa de lucros (artigo 172), a lei de represso ao abuso de poder econmico (artigo 173, pargrafo 4), todos da Constituio Federal de 1988. Alm disso, o Estado tambm exerce o poder de polcia, quando restringe e condiciona direitos, regulando o exerccio de atividades em favor do interesse coletivo (e.g., polcia ambiental, sanitria, fiscalizao, et alli). O Estado ainda pode intervir na economia a partir de uma poltica de fomento, apoiando a iniciativa privada por meio de incentivos fiscais, promovendo a instalao de indstrias ou outros ramos de atividade em determinada regio. O mesmo ocorre com a prtica de elevao ou reduo da alquota de impostos notadamente, os que possuem regime excepcional no que tange aos princpios da legalidade e da anterioridade (art. 150, pargrafo 1 e artigo 153, pargrafo 1, ambos da CF), como o IPI (Imposto sobre Importao), IOF (Imposto sobre Operao Financeira), entre outros. Por fim, o Estado ainda intervm sob a forma de fomento atividade econmica quando oferece financiamento pblico a determinadas empresas ou setores do mercado, entre outros mecanismos, mediante, por exemplo, o crdito do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico Social). J no que tange atuao direta, o Estado ainda intervm a partir da prestao de servios (mesmo aps a privatizao das empresas de energia eltrica e de telecomunicaes), o que realizado por meio de autarquias e fundaes pblicas, bem como por meio da delegao a empresas da iniciativa privada, atravs de contratos temporrios, para a realizao de determinados servios (educao, gua, eletricidade, entre outros). I.2. A Reforma Administrativa verdade que o surgimento de uma administrao pblica burocrtica e racionalista nos moldes weberianos, surgida no sculo XIX e solidificada no sculo XX, representou um

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grande avano em relao administrao ou ao poder patrimonialista exercido pelo menos at o sculo XVIII. Tal patrimonialismo significa uma certa impermeabilidade dos patrimnios pblico e privado, com a incapacidade ou a relutncia de o prncipe distinguir o patrimnio pblico de seus bens privados (PEREIRA, op cit: 26). No entanto, esse processo de burocratizao e racionalizao que, de resto acaba por envolver toda a sociedade moderna, traz como contrapartida certa rotinizao, podendo tornar-se ineficaz para a administrao do Estado. Devido a isso, que paralelo Reforma do Estado, ou no bojo desta, tornou-se necessria a realizao de uma Reforma Administrativa, com vistas a tornar o servio pblico mais coerente com o capitalismo contemporneo, que permita aos governos corrigir falhas de mercado sem incorrer em falhas maiores (PEREIRA, op cit: 23-24). Os motivos de tal Reforma Administrativa devem-se ao fato de queOs cidados esto-se tornando cada vez mais conscientes de que a administrao pblica burocrtica no corresponde s demandas que a sociedade civil apresenta aos governos no capitalismo contemporneo (...) Nesse caso, a funo de uma administrao pblica eficiente passa a ter valor estratgico, ao reduzir a lacuna que separa a demanda social e a satisfao dessa demanda (PEREIRA, op cit: 24).

No entanto, o principal motivo para a realizao de uma Reforma Administrativa foi uma necessidade de se proteger o patrimnio pblico contra as ameaas de uma privatizao, bem como a promoo de direitos bsicos. Nesse sentido, conforme observou Bresser Pereira,O Estado deve ser pblico, as organizaes no-estatais e sem fins lucrativos (ou organizaes no-governamentais) devem ser pblicas. Bens estritamente pblicos, como um meio ambiente protegido, devem ser pblicos. Direitos pblicos so os direitos que nos asseguram que o patrimnio pblico - a res publica -, entendido em sentido amplo, seja pblico: que seja de todos e para todos, e no objeto de rebt-seeking, algo privatizado por grupos de interesse (PEREIRA, op cit: 25).

Corrobora-se, assim, com o pensamento de Bresser em deixar cristalino o entendimento de que a res pblica deva permanecer longe de grupos de interesse, ou seja,

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longe do processo de privatizao, razo pela qual urgia uma verdadeira Reforma Administrativa.1 I. 2.1. A Administrao Pblica Gerencial A administrao pblica gerencial pode ser considerada como uma administraoorientada para o cidado e para a obteno de resultados; pressupe que os polticos e os funcionrios pblicos so merecedores de grau limitado de confiana; como estratgia, serve-se da descentralizao e do incentivo criatividade e inovao; e utiliza o contrato de gesto como instrumento de controle dos gestores pblicos (PEREIRA, op cit: 28).

Enquanto a administrao burocrtica se orienta no processo, definindo procedimentos para a contratao de pessoal e para a compra de bens e servios, a administrao gerencial se orienta pelos resultados advindos da mesma. Segue que enquanto a administrao burocrtica auto-referente, a administrao pblica gerencial orientada para os indivduos tanto enquanto cidados quanto consumidores.As burocracias capitalistas modernas so uma evoluo da burocracia patrimonialista e se autodiferenciaram por fazerem clara distino entre patrimnio pblico e patrimnio privado. Mas ainda se mantiveram bem prximas da matriz inicial em tudo o que diz respeito afirmao do Estado. Por isso as burocracias tendem a ser auto-referentes. Alm de promoverem seus prprios interesses, interessam-se, primariamente, em afirmar o poder do Estado - o poder extrovertido sobre o cidados (PEREIRA, op cit: 29).

Desse modo, uma Reforma Administrativa necessita transformar o Estado e sua burocracia, no sentido de torn-los descentralizados, menos auto-referentes, com funcionrios burocratas que possuam no uma confiana absoluta na administrao pblica, conforme a administrao tradicional, mas uma confiana limitada.Para que se proceda ao controle dos resultados, descentralizadamente, em uma administrao pblica, preciso que polticos e funcionrios pblicos meream pelo menos certo grau de confiana. Confiana limitada,A observao de Luiz Carlos Bresser Pereira deve, entretanto, ser matizada, em razo do fato de o mesmo ter pertencido administrao do Governo Fernando Henrique Cardoso, como Ministro da Administrao, tendo interesse direto na realizao de uma Reforma Administrativa.1

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permanentemente controlada por resultados, mas ainda assim suficiente para permitir a delegao, para o gestor pblico possa ter liberdade de escolher os meios mais apropriados ao cumprimento das metas prefixadas (...) Sem algum grau de confiana (...) impossvel obter cooperao e, embora administrao seja um modo de controle, tambm um modo de cooperao (PEREIRA, op cit: 30).

Bresser categrico em afirmar que a administrao se faz por cooperao, logo, a necessidade de liberdade para polticos e funcionrios pblicos, ainda que limitada, essencial para a sua boa gerencia, o que se observar no controle de resultados. Somente desta forma que o Estado pode tornar-se de fato um regulador das relaes entre grupos e indivduos, quer como pessoa fsica ou como pessoa jurdica, no mbito da sociedade. I.3. O papel do Estado como mediador Independente do fato da apropriao do Estado e de suas benesses pelos grupos dominantes ou hegemnicos da sociedade, consideramos o Estado como um mediador entre indivduos ou entre os diferentes grupos e classes da sociedade, conforme a teoria clssica do Estado (HOBBES. LOCKE, MONTESQUIEU, ROUSSEAU). Tanto que, historicamente, sempre que os grupos dominados ou no hegemnicos querem modificar uma determinada situao em que se encontram particularmente prejudicados, eles acabam por recorrer ao prprio Estado que, supostamente, segundo a sua crtica antiliberal, representa sempre os interesses da classe dominante, seja atravs de peties ao governo (onde o movimento cartista ingls um dos exemplos mais clssicos), de protestos diversos ou formas similares para o alcance de seus direitos. No limite, procuram realizar uma tomada do Estado, com vistas a mediar os respectivos conflitos entre as partes constituintes da sociedade, e conforme o caso, tratando de forma desigual os desiguais, justamente, de acordo com uma suposta distribuio eqitativa dos bens, digamos, em termos aristotlicos (ARISTTELES, 2001). Nesse sentido, a Reforma do Estado pode ser considerada como uma modificao deste papel do Estado como mediador.O Estado poderia e deveria ainda constituir um terceiro termo, a cristalizao do interesse geral. neste terceiro nvel que se encontram as questes essenciais sobre o papel que o Estado poderia ter (ou que se poderia atribuir a ele). Teramos aqui todos os elementos para uma discusso sobre a relao entre democracia e Estado (COCCO, 2001: 48).

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Desse modo, quando se discute a Reforma do Estado, no fundo, no se est discutindo apenas e nem sobretudo, se necessrio "mais ou menos Estado", e, desse modo, em outros termos, mais ou menos mediao, mas qual Estado, qual mediao. Afinal, no h como retirarmos do Estado o papel de mediador/regulador, e, nesse sentido, o papel de interventor (direto ou por delegao, a partir de organizaes no governamentais ou de agncias reguladoras), a menos que desejemos voltar, literalmente ou no, a um estado de natureza hobbesiano de luta de todos contra todos, com a vitria certa dos mais fortes, ou a derrota de todos. Nesse sentido, no podermos deixar de nos remeter novamente a Gramsci, para quem o Estado no era apenas um representante de uma classe social dominante, de resto uma classe dominante que nunca de fato monoltica, mas sempre composta de diferentes classes e grupos em disputa. Bem como ao fato de que este Estado sempre exerce sua hegemonia sob uma perspectiva tanto ideolgica como de um exerccio de violncia e de coero. Neste caso, o Estado sempre representa o resultado da ao de diferentes grupos hegemnicos e contra-hegemnicos. O conceito de hegemonia aqui entendido como a capacidade de um bloco histrico dominante, constitudo de diferentes classes e grupos sociais, de exercer funes de liderana e governo sobre uma sociedade, como se realizasse (e at certo ponto exercendo) o interesse geral. Nesse sentido, o poder e a liderana exercidos pelos grupos hegemnicos nunca se apresentara como uma dominao pura e simples, mas sempre como uma liderana intelectual e moral. Nas palavras de Gramsci,A supremacia de um grupo social manifesta-se de duas maneiras, como dominao e como liderana intelectual e moral. Um grupo social domina os grupos antagnicos, que ele tende a liquidar ou subjugar, talvez at pela fora das armas, e lidera os grupos afins ou aliados. Um grupo social pode, e, a rigor, j deve exercer a liderana antes de conquistar o poder governamental (essa , de fato, uma das principais condies) para conquistar tal poder; posteriormente, ele se torna dominante ao exercer o poder, mas, ainda que o detenha firmemente nas mos, tambm tem que continuar a liderar (GRAMSCI, 1978: 57-58).

Devido a essa necessidade de os grupos dominantes no apenas, nem principalmente, dominarem pura e simplesmente, decorre que o carter de mediador de conflitos de classe e grupos por parte do Estado torna-se ainda mais evidente. Tambm devido a isso, decorre que o Estado nunca pode representar apenas os interesses da classe dominante 15

(repetimos, de resto, nunca unitria ou monoltica), mas tambm e, muitas vezes com maior intensidade, os interesses das classes dominadas, ou lideradas. Dominao e liderana esta que, de resto, aceita por estas ltimas. Pelo menos at que um conflito impossvel de se mediar exija uma alterao do papel do Estado como mediador. verdade que o Estado visto como o instrumento de um grupo particular, destinado a criar condies favorveis para a mxima expanso deste. Mas o desenvolvimento e a expanso do grupo especfico so concebidos e apresentados como sendo a fora motriz de uma expanso universal, de um desenvolvimento de todas as energias nacionais (GRAMSCI, op cit: 181182).

Percebendo este relevante papel de mediador que o Estado adquire ao exercer sua supremacia, conciliando interesses diversos e muitas vezes antagnicos no mbito nacional, nitidamente possvel visualizar que, as pocas de transformaes, como a que vivemos na atualidade, pelo menos desde o fim da era de ouro e do incio da globalizao, constituem-se em momentos em que, justamente, torna-se necessria uma transformao do Estado em seu papel de mediador de conflitos, tambm no mbito mundial. Neste ltimo caso, a transformao d-se no sentido da relao dos Estados entre si (pelo menos daqueles que importam), bem como das organizaes mundiais multilaterais (ONU, OMC, Banco Mundial, entre outras). Considerando que a Reforma do Estado no extingue por completo a participao ou a interveno do Estado na economia e, muito menos o papel do mesmo como mediador, cabe indagar acerca da forma como o Estado realiza esta participao ou interveno. Nesse sentido, pode-se considerar, conforme observou Adam Przeworski, que o objetivo de toda Reforma de Estado construir instituies que dem poder ao aparelho do Estado para fazer o que deve fazer e o impeam de fazer o que no deve fazer (2006: 39). Alm disso, deve-se considerar tambm que o modelo de Estado advindo de uma reforma do mesmo depende, sobretudo, do modelo econmico que se tem em vista (PRZEWORSKI, ibid). Nesse sentido, novamente nas palavras de Adam Przeworski,a tarefa de reformar o Estado consiste, por um lado, em equip-lo com instrumentos para uma interveno efetiva e, por outro, em criar incentivos para que os funcionrios pblicos atuem de modo a satisfazer o interesse pblico. Alguns desses incentivos podem ser gerados pela organizao interna do governo, mas no bastam. Para que o governo tenha um desempenho satisfatrio, a burocracia precisa ser efetivamente supervisionada pelos polticos eleitos, que, por sua vez, devem prestar contas aos cidados. Mais especificamente, os polticos devem usar a

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informao privada que os cidados tm sobre o funcionamento da burocracia para monitorar os burocratas, e os cidados devem ser capazes de saber quem responsvel pelo que e de aplicar em cada caso, a sano apropriada, para que os governos com bom desempenho continuem no poder e para que os demais sejam alijados. Se esses mecanismos de responsabilizao (accoutability) so bem concebidos, a economia de um Estado intervencionista pode obter melhores resultados do que a economia de mercados livres (PRZEWORSKI, op cit: 40).

Ainda dentro desta perspectiva, Adam Przeworski observa que a dicotomia Estado versus Mercado enganadora. Na realidade, o problema consiste em identificar como as instituies podem induzir os atores individuais agentes econmicos, polticos e burocratas a se comportar de maneira benfica coletividade (op cit: 44). Neste caso, um dos problemas que surgem, tanto para o caso da relao indivduo/empresa privada quanto da relao indivduo/Estado que, regra geral, existe uma relao assimtrica entre os termos, particularmente no que diz respeito ao poder poltico e econmico, bem como no acesso informao. Devido a isso, tais relaes podem ser consideradas como relaes do tipo agent X principal (PRZEWORSKI, op cit: 45). Em uma relao do tipo agent X principal os agents dispem de certas informaes que os principals no podem obter diretamente. Conforme observou Adam Przeworski,Os agents sabem o que os motiva, tm conhecimento privilegiado sobre suas capacidades e podem ter a chance de observar coisas que os principals no podem ver. Executam inclusive algumas aes que, pelo menos em parte so feitas sem o conhecimento do principal (ibid).

Dentro desta viso dos atores econmico-sociais como uma rede de relaes entre agents e principals, a sociedade pode ser vista como composta de gerentes e empregados; proprietrios e administradores; investidores e empresrios etc., mas, tambm, cidados e polticos, polticos e burocratas. E o desempenho da economia como um todo depende do desenho das instituies que regulam essas relaes. No caso do papel do Estado como regulador, o problema do Estado, como principal consiste em como fazer com que o agent (empresas privadas) possa ser induzido a agir em seu interesse que, pelo menos teoricamente, deve coincidir com o interesse coletivo, permitindo, ao mesmo tempo, que o agent possa agir em prol de seus prprios interesses.

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Em termos genricos, o problema o seguinte: a empresa regulada dispe de informaes sobre algumas condies, como seus custos de produo ou da demanda por seus produtos, que so superiores s informaes de que o dispe o Estado (o agente regulador entendido em sentido amplo, como polticos eleitos ou burocratas nomeados). Mais do isso, a empresa regulada empreende certas aes que o regulador no pode observar diretamente, mas apenas inferir com base nos resultados ou monitorar a um custo. Definida a regulao, a empresa decide o que produzir e em que quantidade. O problema do regulador passa a ser estabelecer o melhor trade-off entre vantagens (rents) auferidas pela empresa e o excedente dos consumidores (PRZEWORSKI, op cit: 47).

Para poder intervir de modo eficaz, o governo necessita de um mnimo de informao acerca dos custos das empresas bem como de uma forma legal de poder fixar os preos da empresa sob regulao. Alm disso, a empresa necessita de um mnimo de garantia de que o governo no ir confiscar integral ou parcialmente seus lucros, via uma fixao subtima de preos, um aumento de impostos ou outra medida. Neste caso, trata-se de um risco moral que os governos possuem para com os agentes privados. Esse um caso muito comum em todas as relaes do tipo agent X principal. Trata-se de um risco porque por mais que sejam estabelecidos determinados compromissos, regras, etc., bem como uma diferena entre poltica de Estado e poltica de governo, na prtica, nenhum governo pode se comprometer, antecipadamente, por todos os governos futuros. Isso significa que nem mesmo uma clusula to ptrea para o capitalismo, quanto, por exemplo, o direito de propriedade, pode estar garantido de forma absoluta. Conforme observou Adam Pzerworski, verdade que os direitos de propriedade podem, em diferentes graus, ser protegidos pela Constituio. Mas as Constituies no podem especificar tudo e tm que deixar espao para o arbtrio do Legislativo e para a interpretao do Judicirio. Alm disso, ainda que o processo seja difcil, nada impede que as Constituies sejam modificadas, vide a nacionalizao da indstria chilena do cobre, feita por emenda constitucional em 1970. Logo, os direitos de propriedade so inerentemente inseguros (op cit: 49).

Num ambiente em que, na prtica, em termos histricos, o que existe uma insegurana jurdica, face s transformaes que podem ocorrer no mbito da sociedade, dependendo da correlao de foras no mbito do bloco-histrico-hegemnico (GRAMSCI, op cit), o Estado desempenha um papel de significativa importncia.O Estado desempenha um papel exclusivo, uma vez que define a estrutura dos incentivos para os agentes privados, exercendo o poder de coero legitimado pela lei: obriga por lei a prtica de algumas aes ou as probe,

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e pode alterar os preos relativos atravs do sistema fiscal (PRZEWORSKI, op cit: 47).

Assim que o Estado, quando define a estrutura dos incentivos para agentes privados ou as proibies, exerce, pelo poder de coero, este papel de significativa relevncia. Em suma, visualiza-se que a hegemonia do Estado no foi ameaada pela Reforma, no entanto houve a preocupao em se delimitar a forma pela qual o Estado passa a intervir na sociedade. Viu-se que a interveno est intimamente ligada a dois fatores, o ideolgico e o coercitivo. Para poder intervir de modo a obter melhores resultados preciso que o aparato estatal detenha informaes claras, precisas. Evitando, com isso que o Estado se torne um refm do mercado e do clculo financeiro e nem to pouco um ente desconectado da sociedade ou externo a ela, como observa Marco Aurlio Nogueira. (NOGUEIRA, 1999: 01) No entanto, nem os funcionrios pblicos e nem os polticos detm as informaes. justamente neste ponto que as agncias reguladoras entram, prestando as informaes necessrias sobre seus respectivos e especficos ramos de atuao, bem como mediando conflitos entre os prprios regulados, entre os regulados e o Estado e entre os regulados e a sociedade.

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II. AGNCIAS REGULADORAS: ORIGENS E ATRIBUIES LEGAIS Uma das componentes mais importantes da Reforma do Estado foi o processo de privatizao de empresas estatais, iniciado com o Plano Nacional de Desestatizao (Lei n 8.031/90). A partir desse plano houve uma reduo do papel do Estado como produtor de bens e servios na economia mantendo, entretanto, o Estado, seu papel de interventor. Afinal o papel do Estado de regulador e/ou mediador, apesar de ter passado a ser exercido de forma indireta, por meio de agncias reguladoras, no deixa de se constituir numa interveno do Estado na economia. Dessa forma, conforme foi observado anteriormente, ao invs de se constituir numa reduo do papel do Estado na economia, a chamada Reforma do Estado constitui-se numa modificao do papel do Estado como em sua funo interventora. O que se observou no Brasil com as privatizaes foi a manuteno do antigo instituto da concesso de servios pblicos at ento existente, sem que o Estado permanecesse na condio de acionista majoritrio e controlador, bem como o surgimento de agncias reguladoras (LEHFELD, 2003). Assim, ao lado de instrumentos originrios do direito administrativo francs, como a concesso e a permisso de servio pblico, que se poderiam denominar de regulao contratual, surgem agncias de regulao, s quais podem ser denominadas de agncias de regulao setorial, de acordo com o direito norte-americano (ibid). Desse modo, as funes de prestao de servio e de regulao do servio que at ento se concentravam numa nica entidade que era a empresa estatal passou a ser dividido entre empresas privadas s quais foram concedidas e autorizadas a explorao/prestao de servios e as agncias reguladoras que ficaram com as atribuies legais de exercer o papel de rgo regulador. As agncias reguladoras integram a administrao indireta. So criadas por lei especfica, na qualidade de autarquias especiais, ou na expresso de alguns autores (MARQUES NETO, op cit), autarquia de regime especial, sendo, portanto, integrantes da administrao pblica indireta. Neste aspecto, cabe a observao no sentido de que as agncias, ainda que integrando a administrao indireta, so incumbidas de realizar as atribuies tradicionais da Administrao Direta, vez que atuam na qualidade de Poder Pblico concedente, outorgando concesses, permisses ou autorizaes, para a explorao dos servios do setor que lhe afeto. Tais agncias, constitudas como autarquias especiais, so apenas vinculadas aos Ministrios competentes para as atividades dos setores aos quais pertencem, o que as caracterizam como administrativamente independentes, com a

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estabilidade de seus dirigentes, autonomia financeira bem como ausncia de subordinao hierrquica. A propsito, o carter independente, a legalidade ou no desta independncia e o carter pblico ou o grau de participao pblica no mbito das decises das agncias reguladoras constituem-se em algumas das questes polemizadas, analisadas pelos juristas e que ainda encontram controvrsias dentre os autores estudiosos do tema, no mbito da literatura especializada. (MARQUES NETO, LEHFELD et alli, 2005, 2002) II.1. A Origem das agncias reguladoras As agncias reguladoras tm origem inglesa, quando, em 1834, o Parlamento da Inglaterra criou diversos entes autnomos, que tinham por finalidade e atribuio concretizar as medidas legalmente previstas, bem como dirimir as controvrsias resultantes da aplicao dos textos legais. Somente no ano de 1887, os Estados Unidos, por influncia da Inglaterra, criaram uma srie de agncias, nem todas reguladoras, com vistas a concretizar objetivos semelhantes queles que motivaram o Parlamento ingls na criao dos entes autnomos, alguns anos antes. Devido ao grande nmero de agncias existentes nos Estados Unidos, em 1946, o governo norte-americano editou o chamado Administrative Procedure Act, estabelecendo determinados procedimentos uniformes para as agncias. Segundo Tojal (2002), nos Estados Unidos, o movimento regulatrio pode ser descrito em trs ondas, a primeira ocorrida no final do sculo XIX para o sculo XX, com a concentrao da ao das agncias na defesa da concorrncia e controle dos monoplios naturais (TOJAL, 2002 p.156); a segunda, ocorrida na dcada de 1930, sendo caracterizada pelo New Deal, com a criao de diversas agncias independentes, com funes legislativas (grande autonomia para emitir normas), adjudicantes (arbitragem de conflito entre as partes) e executivas (implementao de decises administrativas) (TOJAL, ibid); e uma terceira, conhecida como onda desregulatria, ocorrida nos anos 80 do sculo XX, onde o padro de atuao das agncias mudou de forma expressiva em virtude do surgimento de um ambiente hostil intensa atividade regulatria. (TOJAL, ibid). A criao das agncias reguladoras no Brasil decorreu da influncia do direito anglo-saxo, guardando algumas peculiaridades do modelo americano. No entanto, o Direito Administrativo brasileiro, foi influenciado, de forma mais incisiva pelo modelo francs.

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Justamente, em funo da influncia francesa sobre o Direito brasileiro em geral e o Direito Administrativo em particular, o modelo brasileiro de administrao em geral e de regulao em particular acabou por se caracterizar como mais centralizado do que o modelo norte-americano. Considerada esta maior centralizao do Direito brasileiro, uma das diferenas mais significativas existentes entre o modelo norte-americano e o modelo brasileiro de regulao reside no fato de que, regra geral, no primeiro, as agncias reguladoras esto sob o controle do Congresso enquanto no segundo esto sob o controle do Poder Executivo. Tal diferena adquire importncia, uma vez que influenciam na definio de normas de controle do poder normativo das agncias bem como na redefinio e separao dos poderes. Nesse sentido, conforme observou Tojal, as diferenas entre os modelos americano e brasileiro de regulao refletem, sobretudo, o problema central a ser enfrentado nesse controle, que relao problemtica entre o insulamento burocrtico e o controle democrtico (ibid). A atividade regulatria, se analisada ao longo do tempo, no se constitui novidade recente no Brasil. Desde a dcada de 1930, possvel identificar uma srie de entes com atribuies reguladoras. Este o caso de entidades como o IAA Instituto Nacional do Acar e do lcool, o IBC Instituto Brasileiro do Caf, o Conselho Nacional de Telecomunicaes (Contel), do Conselho Administrativo de Defesa Econmica (Cade), entre outros. No entanto, todas as instituies criadas na dcada de 1930 estavam diretamente subordinadas ao Poder Executivo, seja diretamente Presidncia da Repblica ou a algum dos seus Ministrios. Nesse sentido, conforme observou Lus Roberto Barroso,Esses rgos resistiram ao longo do tempo, mas viram frustrada sua efetiva atuao reguladora porque, exceo do Cade, nasceram subordinados, decisria e financeiramente, ao Poder Executivo, fosse Presidncia da Repblica, ou mesmo algum Ministrio (BARROSO, op cit: 116).

Desse modo, apesar de tais entidades se assemelharem s agncias reguladoras, na acepo atual, particularmente no que diz respeito funo reguladora e ao desempenho de atribuies administrativas, normativas e decisrias, segundo a maior parte dos doutrinadores, as agncias reguladoras possuem determinadas caractersticas prprias (PAIVA et alli, 2006). Portanto, a doutrina cuidou de diferenciar as agncias reguladoras de outras entidades com funes regulatrias. Mais particularmente, o elemento de diferenciao o fato de as primeiras possurem a autonomia e a independncia que as segundas no possuem. 22

A Constituio de 1988 j previa, em seu artigo 174, a funo reguladora por parte do Estado brasileiro. No entanto, somente a partir de determinadas modificaes realizadas por Emendas Constitucionais, como vimos no captulo anterior, que foi introduzida na Constituio de 1988 a previso expressa de rgos reguladores para regular os setores de telecomunicaes (artigo 21, inciso XI, da CF, com redao dada pela EC n. 8/95), que ser objeto de estudo mais aprofundado no captulo que se segue, e de petrleo (conforme o pargrafo 2 do inciso III, do artigo 177 da CF, com a nova redao atribuda pela EC n 9/95). Outras agncias reguladoras, tais como as afetas aos setores de sade, vigilncia sanitria, dentre outras, foram criadas por Leis Complementares. Tambm foram criadas agncias reguladoras de mbito estadual, tais como a ASEP-RJ (Agncia Reguladora de Servios Pblicos Concedidos do Estado do Rio de Janeiro), criada na forma da Lei estadual n 2.686, de 13 de dezembro de 1997; a Arce (Agncia Reguladora de Servios Pblicos Delegados do Estado do Cear), criada pela Lei estadual n 12.786/97, assim como outras tantas. 2 Em decorrncia do fato de terem sido criadas sob a forma jurdica de autarquia, as agncias reguladoras devem ser criadas por lei, em obedincia ao disposto no artigo 137, inciso XIX, da Constituio Federal. No entanto, como autarquias especiais, as agncias reguladoras so detentoras de determinados privilgios especficos que a lei lhes outorgou, os quais no so conferidos a outras autarquias. Devido a isso, tais agncias possuem uma relativa independncia em relao ao Poder Pblico. Dado o prprio carter das agncias

Diante das normas de sua criao, torna-se prudente fazer esclarecimentos com relao ao termo agncia. Este termo foi absorvido do direito norte-americano, o que, conforme observou Marques Neto, teve como conseqncia duas inconvenincias. A primeira delas decorreria de uma indefinio terminolgica, em funo do fato de que no direito americano o termo agencies utilizado para designar o gnero dos rgos pblicos, envolvendo tanto as independent regultory como outros rgos que no se caracterizam como reguladores, que nos Estados Unidos so denominados de executive agencies (MARQUES NETO, 2005, p. 53). A outra inconvenincia apontada derivaria do fato de que o termo agncia j havia sido utilizado anteriormente para designar outros entes com objetos tais como as agncias de desenvolvimento regional e agncias de fomento, ou mesmo as agncias como sinnimo de estabelecimentos. Acrescente-se ao que foi observado acima, que a origem norte-americana do termo provocou certa averso por parte da doutrina brasileira no sentido de se considerar que se tratava de instituto que no poderia ser aplicvel ao direito ptrio (MARQUES NETO, ibid). Como se no bastasse, a Constituio Federal (CF, artigo 21, XI e artigo 177, pargrafo 2, inciso III) faz referncia expressa a entes reguladores utilizando o termo rgo regulador, e no agncia, o que tm provocado, segundo o autor, certa inadequao no que diz respeito s alteraes indicadas na Constituio e em sua concretizao na legislao ordinria. De qualquer modo, o fato que o direito positivo introduziu definitivamente o termo agncia para a grande maioria dos rgos reguladores, no obstante a existncia de alguns destes ltimos com outro nome que no Agncia Reguladora, como o caso, por exemplo, da Comisso de Servio Pblico de Energia do Estado de So Paulo. Devido a isso, de nada adianta, em razo da no concordncia com a forma usual com a qual os rgos reguladores so denominados, utilizar-se de um outro termo que no Agncia Reguladora, como fizera Marques Neto, ao design-los como Autoridades Reguladoras Independentes (op cit: 55).

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reguladoras, no poderia ser de outra maneira. De fato, conforme observou Lus Roberto Barroso,No desempenho de suas atribuies, as agncias precisam ver preservado seu espao de legtima discricionariedade, imune a injunes de qualquer natureza, sob pena de falharem em sua misso e arruinarem o ambicioso projeto nacional de melhoria da qualidade dos servios pblicos (op cit: 121).

Segundo Barroso, portanto, atravs do espao de discricionariedade e da autonomia administrativa que as agncias podero exercer suas atribuies legais e garantir seus objetivos de promover a melhoria dos servios pblicos. No que diz respeito a essa autonomia administrativa, a legislao que instituiu as agncias reguladoras previu um conjunto de cautelas e garantias, entre as quais: 1) a nomeao dos diretores com poder poltico em mbito federal, cuja nomeao feita pelo Presidente da Repblica, com a devida aprovao do Senado Federal; 2) um mandato fixo de trs ou quatro anos; e 3) a impossibilidade de demisso dos diretores, salvo na hiptese de cometimento de falta grave, o que impe, para que venha a ocorrer a demisso, a instaurao do competente processo administrativo e a deciso final quanto ao mrito da questo. Alm disso, os dirigentes das agncias reguladoras, que esto submetidos a estatuto jurdico prprio, esto impedidos de prestar, direta ou indiretamente, qualquer tipo de servio s empresas sob sua regulamentao ou fiscalizao, inclusive, coligadas ou subsidirias, ao longo de 12 meses subseqentes ao trmino de seus mandatos. Assim como as agncias reguladoras devem ser dotadas de independncia administrativa em relao ao Poder Pblico, estas tambm devem possuir uma independncia ou autonomia econmico-financeira, consoante estabelecido pela Lei n. 9.986, de 18.07.2000. Por meio desta, dispem as agncias reguladoras de uma dotao oramentria geral, alm de uma arrecadao de receitas de outras fontes, tais como aquelas decorrentes de taxas de fiscalizao e de regulao e participao em contratos e convnios, como ocorre nos setores de petrleo e energia eltrica. II.2. Caractersticas prprias das agncias reguladoras Considerada a independncia e autonomia das agncias reguladoras, uma das questes que se apresenta aquela que diz respeito ao controle, regulao ou fiscalizao das

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prprias agncias reguladoras, cujas atribuies englobam, dentre outras, a fiscalizao. Em resumo a questo que se coloca : quem regula a agncia reguladora. Devido prpria autonomia poltico administrativa das agncias reguladoras, estas poderiam aparentar no estar sujeitas a nenhum tipo de controle, por no estarem sujeitas a subordinao hierrquica em relao a outro rgo do Poder Executivo. Desse modo, entende-se no ser possvel que qualquer deciso das agncias reguladoras possa ser revista ou modificada por qualquer rgo ou instncia do Poder Executivo, no sendo cabvel, em decorrncia da autonomia das agncias, recurso hierrquico a outros rgos do Poder Executivo. Tal controle, sobre as agncias, encontra limite na escolha dos dirigentes destas, correndo o risco, nesta hiptese de ferir o preceito legal que lhes garante a autonomia polticoadministrativa. No entanto, cabe observar que a nomeao do dirigente de uma Agncia Reguladora por parte do Poder Executivo poder, de fato, dar a este ltimo, certa ascenso sobre quela. Isto, em virtude de que, mesmo considerando que o Poder Executivo no possa demitir o dirigente, regra geral, este ltimo sempre possuir um determinado comprometimento poltico para com o governo que o nomeia. Neste caso, mesmo que aps a nomeao do dirigente a Agncia Reguladora no sofra mais nenhuma ingerncia do Poder Executivo, o fato que, em razo da prpria vinculao poltica do dirigente ao governo que o nomeia, seria pouco provvel que este viesse a realizar qualquer ao ou ato administrativo que se contrapusesse, em linhas gerais, a poltica do governo para o respectivo setor. No que tange ao controle pelo Poder Judicirio, h garantia em sede constitucional de que inafastvel o acesso de qualquer pessoa, seja fsica ou jurdica, ao Poder Judicirio. Ou seja, todos podem questionar as decises das agncias reguladoras, sujeitando-as apreciao daquele poder. Assim, no que diz respeito particularmente matria de controle dos atos administrativos pelo Poder Judicirio, costuma-se distinguir duas modalidades, a saber: o controle do mrito e o controle de legalidade. Em regra, o Poder Judicirio somente pode exercer controle sobre a legalidade dos atos administrativos em geral, no cabendo ao mesmo o julgamento de seu mrito, sob pena de restar configurada a usurpao de poderes (o Executivo sendo substitudo em suas atribuies e competncias pelo Poder Judicirio). No entanto, quanto a este ltimo aspecto, atualmente so admitidas algumas excees motivadas por princpios jurdicos tais como o da razoabilidade, da moralidade e o recente princpio da eficincia, afastando o entendimento clssico no sentido de que o mrito administrativo no passvel de sofrer controle externo (BARROSO, op cit: 127).

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Cabe observar que tais princpios excepcionam a doutrina convencional quanto ao exame do mrito do ato administrativo. Isso decorre da observao acerca da razoabilidade do ato ou seja, sua adequao quanto aos meios e aos fins, necessidade e proporcionalidade, etc., - o que , evidentemente, um exame de mrito. O mesmo ocorre em relao moralidade e, em menor grau, em relao eficincia. De acordo com os ditames constitucionais, atribuio do Tribunal de Contas a fiscalizao das contas tanto do Poder Executivo quanto das entidades da administrao direta e indireta, sob o ngulo da legalidade, legitimidade e economicidade (BARROSO, op cit: 129), estando autorizado a exercer controle to somente sobre a gesto do dinheiro pblico pelas agncias Reguladoras, no caracterizando ofensa autonomia das agncias o exerccio da fiscalizao, pelo Tribunal de Contas. Mas inegavelmente h que se admitir que escapa s atribuies do Tribunal de Contas o exame das atividades autrquicas que no implique em dispndio de recurso pblico, vez que o controle externo minuciosamente regulado pela Carta Magna, delimitando, portanto, a atuao das cortes de contas. O texto constitucional no autoriza o Tribunal de Contas de investigar o mrito das decises administrativas de uma autarquia ou qualquer outro ente, e, por conseguinte, inadmissvel a ingerncia sobre uma autarquia especial, como caso das agncias reguladoras, em outras matrias que no aquelas elencadas na Constituio Federal. Desse modo, o Tribunal de Contas no pode pretender questionar decises poltico-administrativas das agncias reguladoras, e nem tampouco requisitar planilhas, relatrios expedidos pela agncia ou ainda por concessionrio, permissionrio ou autorizado prestao de servios. Para a maior parte dos juristas pesquisados3, as agncias reguladoras se caracterizam basicamente por 1) exercerem a funo de rgo regulador do setor de atividade econmica especfico, nos termos do que dispe a lei que as constitui; 2) possurem instrumentos formais expressos em lei que asseguram a independncia delas perante o Poder Executivo; 3) possurem poder normativo, com efeitos gerais e abstratos, sem contudo inovar primariamente na ordem jurdica; 4) submeterem-se como os demais rgos ou entes da Administrao Pblica, aos controles judicial e parlamentar; 4) possurem dirigentes nomeados pelo chefe do Poder Executivo, com a aprovao do Poder Legislativo (mediante sabatina), os quais tem mandatos fixos e estabilidade, no podendo, por tanto, serem demitidos ad nutum; por serem seus dirigentes submetidos a quarentena ou regime deEntendem neste sentido PAIVA et alli, op cit: 171; MARQUES NETO, op cit: 55-80, ARAGO, 2003, passim; DI PIETRO, 1999, passim; BARROSO, op cit: 120).3

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incompatibilidade, ficando impedidos de exercerem atividades profissionais relacionadas com o setor regulado e fiscalizado pela agncia, aps o trmino de seus vnculos; 5) possurem recursos prprios; 6) possurem poder decisrio no subordinado a nenhum poder hierrquico, estando a ltima instncia decisria no mbito da prpria agncia. Quanto s atribuies das agncias reguladoras, a doutrina costuma apontar: 1) a regulao de um determinado setor da economia, a qual poder ocorrer de forma imediata, quando da edio de regras ou expedio de normas, ou de forma mediata, quando da aplicao de normas j existentes; 2) o controle de tarifas, com o objetivo de garantir o cumprimento das condies da outorga (mediante contrato de concesso, permisso ou nos termos do instrumento de autorizao) garantindo de igual forma o devido equilbrio econmico e financeiro na forma outorgada; 3) a devida universalizao do servio, de forma a garantir o acesso progressivo do nmero de usurios aos servios; 4) o fomento competitividade, em reas em que no haja um monoplio natural; 5) a fiscalizao de contratos e da execuo dos servios prestados; 6) a resoluo amigvel ou por meio da arbitragem de eventuais conflitos porventura estabelecidos tanto entre o poder concedente e os prestadores, quanto entre os usurios de servio pblico e as empresas prestadoras dos servios, sem desconsiderar os conflitos entre as prestadoras, entre si; 7) a realizao de licitao para a escolha de prestadores, qualquer que seja a modalidade da prestao (seja ela decorrente de concesso, permisso ou mesmo autorizao); e, por fim, 8) a celebrao do respectivo contrato de concesso ou permisso, ou a prtica de ato unilateral de outorga da autorizao (PAIVA, et alli, ibid). Diogo de Figueiredo Moreira Neto lista quatro aspectos que seriam, segundo seu entendimento, os mais importantes acerca das agncias reguladoras, a saber: 1) independncia poltica; 2) independncia tcnico-decisional; 3) independncia financeira e oramentria; e 4) independncia normativa. Procuraremos apresentar cada um destes aspectos, em funo de o referido autor ser considerado um dos nomes destacados como representativos de entendimento mais tradicional acerca das agncias reguladoras. Para a realizao de uma anlise que contemple cada um dos aspectos acima suscitados, utilizamonos da anlise realizada por Maria Arair Pinto Paiva, em funo de sua abordagem tanto crtica quanto didtica acerca do tema (PAIVA, op cit: 172). Acrescentaremos aos aspectos mencionados o tema da participao pblica, em funo de os considerarmos de grande relevncia para a anlise em questo. Em seguida procuraremos realizar uma anlise crtica da abordagem tradicional. No primeiro caso, a

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anlise crtica , sobretudo, interna (isto , leva em conta os princpios norteadores da abordagem tradicional). J no segundo caso, a anlise externa (isto , colocando-se em questo os prprios princpios que norteiam a abordagem tradicional). Segundo a abordagem tradicional, as agncias reguladoras so caracterizadas por possurem uma independncia poltica determinada, no-subordinao das mesmas ao Poder Executivo (federal, estadual ou municipal) ou a qualquer outro Poder. Tal nosubordinao deriva-se do fato dos dirigentes das agncias reguladoras possurem uma estabilidade, com um mandato fixo vedado exonerao ad nutum pelo chefe do Poder Executivo. Ademais, a ocupao do cargo de dirigente das agncias reguladoras tambm deve preencher determinados requisitos previstos em lei instituda pelas mesmas. Quanto durao do mandato dos dirigentes, discute-se se esta poderia no coincidir com o trmino do mandato do chefe do Poder Executivo (federal, estadual ou municipal) que os nomeou. Segundo alguns autores (PAIVA, et alli, op cit: 174), a garantia de uma estabilidade para o mandato do dirigente de uma agncia reguladora para alm do mandato do chefe do Poder Executivo afrontaria o princpio democrtico, uma vez que, desse modo, haveria uma extenso da atuao da estratgia governamental do governo que nomeou o respectivo dirigente, para o prximo governo que o receber j em franca atuao. Numa anlise crtica, pode-se argumentar que a referida independncia poltica das agncias reguladoras e de seus respectivos dirigentes somente poderia existir se este ltimo no fosse nomeado pelo chefe do Poder Executivo e seu mandato no estiver atrelado ao mandato de Chefe do Poder Executivo. No entanto, segundo os doutrinadores, a nomeao do dirigente bem como a alterao de seu mandato em funo da troca da chefia do Poder Executivo no violaria a independncia das agncias, uma vez que esta no deriva do ato de nomeao de seu dirigente, mas das garantias quanto ao exerccio das prerrogativas que so atribudas entidade (PAIVA, et alli, ibid). assim que alguns autores defendem que tal independncia somente seria plena se sua investidura no estivesse sujeita a prazo certo e sua nomeao houvesse sido realizada por livre escolha do chefe do Executivo, com o fito de resguardar a continuidade administrativa e a inexistncia de ingerncias polticas na direo da agncia (apud PAIVA, et alli, ibid). Ora, como no se pode conceber a existncia de um chefe de um Poder Executivo livre de ingerncias polticas, o argumento da relatividade da independncia das agncias reguladoras v-se ainda mais reforado.

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Neste aspecto, cabe observar o Projeto de Lei n 3.337/2004, proposio atualmente sujeita a apreciao do Plenrio, e que visa alterar profundamente a legislao que norteia os atos da Anatel. Quanto a nomeao do dirigente da Agencia, o projeto pretende estabelecer um mandato de 4 anos, admitindo uma reconduo. Tal possibilidade de novo mandato pode influir na atuao do dirigente, que ser avaliado pelo executivo, tornando-se ainda mais complacente com as demandas do governo. O Projeto ainda procura sujeitar a Anatel ao Ministrio das Comunicaes, que passaria a expedir normas de outorga dos servios, podendo editar atos de outorga e extino de direito de explorao e celebrao de contrato de concesso de servios, bem como estabelecer diretrizes de cunho disciplinar, ditando procedimentos operacionais da licitao. No h como dissociar a administrao da poltica, e, portanto, a administrao da Agncia Reguladora ou do Poder Executivo da Poltica, a no ser que consideremos esta poltica como sendo todo um conjunto de interesses pessoais e corporativistas, e no ingerncias por interesses polticos (interesses do governo) e de escolhas polticas (escolhas orientadas por interesses do poder executivo). Desta forma, apesar de podermos considerar separadamente o que comumente se denomina como deciso exclusivamente tcnica, bem o sabemos que, sobretudo no mbito do interesse pblico, nunca as decises tcnicas podem ser totalmente isoladas das respectivas decises polticas. As decises polticas sempre interferem, em algum grau ou modo, nas escolhas e decises de cunho tcnico, deixando de existir uma total independncia tcnicodecisional4. Dado a existncia de uma ntima relao entre tcnica e poltica, no mbito do interesse pblico, particularmente no sentido de que toda escolha relativa ao interesse pblico diz respeito a uma escolha poltica, segue que o que se pode denominar de independncia tcnico-decisonal decorre da existncia de independncia com relao a poltica. A independncia de decidir priorizando aspectos tcnicos. De qualquer modo, pode-se considerar a independncia tcnico-decisional como a exigncia de que os dirigentes das agncias reguladoras possuam uma formao tcnica mnima. De fato, conforme exposto por lei, (artigo 5. Da Lei no. 9.986/2000), exige-se para a atuao como dirigente de uma

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No que tange a independncia para proferir deciso tcnica, Paiva menciona que, segundo Diogo de Figueiredo Moreira Neto, este aspecto concorre com a independncia poltica, no sentido de assegurar uma atuao apoltica das agncias, em que deve predominar o emprego da discricionariedade tcnica e da negociao, sobre a discricionariedade poltico-administrativa. (PAIVA, op cit p: 176)

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Agncia Reguladora uma formao universitria bem como um elevado conceito no campo da especializao dos respectivos cargos. Ademais, no mbito da atuao das agncias, para impedir que as mesmas sejam influenciadas por interesses polticos menores, exclui-se a possibilidade de reviso pelo Poder Executivo. Igualmente s demais entidades integrantes da Administrao Pblica, as agncias reguladoras esto vinculadas a um Ministrio. No obstante, inexiste uma hierarquia entre tal Ministrio e a Agncia Reguladora em questo. Mesmo assim, conforme possvel observar a partir do Decreto-Lei 200/1967, existe uma espcie de recurso ao Poder Executivo contra atos praticados pelas autarquias, denominado de recurso hierrquico imprprio. Neste aspecto, como a admissibilidade de tais recursos depende de lei expressa, no se pode concluir na existncia de uma subordinao hierrquica, mas apenas de uma vinculao nohierrquica (CARVALHO FILHO, 2001: 721). Para que as agncias reguladoras possuam uma independncia poltica, bem como tcnico-decisional, torna-se necessrio que as mesmas possuam uma independncia financeira e oramentria. Destarte, est expresso em lei (artigo 47 e seguintes da Lei n 9.472/97, da Anatel; artigo 11, da Lei n. 9.427/96 (ANEEL); e artigo 15, da Lei n 9.478/97 da ANP) que as agncias reguladoras devem possuir uma verba oramentria prpria. No entanto, cabe observar tambm que esta independncia oramentria possui determinadas limitaes. Isso porque, apesar de aparecer em diversos documentos em separado, o fato que o oramento da Unio nico, o que possibilita ao Poder Executivo cortar algumas das propostas apresentadas pelas respectivas agncias. Uma das principais fontes de recursos que propicia s agncias reguladoras, sua independncia financeira e oramentria a chamada taxa de regulao. Nesse sentido, uma das questes que se apresenta a discusso acerca do carter tributrio ou no da mesma. Segundo alguns autores, tal taxa constitui-se num tributo pelo fato de a mesma ter sido criada por uma lei com a finalidade especfica de prover recursos para fazer frente prestao de um servio administrativo. Nestas circunstncias esta taxa pode ser enquadrada no conceito de tributo, conforme previsto no Cdigo Tributrio Nacional, em seu artigo 3, constituindo-se numa prestao pecuniria compulsria, cobrada mediante servio administrativo vinculado (PAIVA, et alli, op cit: 178). De acordo com a prpria definio e as caractersticas das agncias reguladoras, pode-se considerar a independncia normativa como a sua prpria razo de ser.

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em funo disso que a independncia normativa est expressamente prevista em lei (Lei n. 9.472/97, artigo 19, incisos, IV e X, para a Anatel; artigo 4 da Lei n. 9.961/00, para a ANS; artigo 24, inciso IV e XIV; e incisos IV, XIV e XIX da Lei n. 10.233/01, para a ANTT e a ANTAQ). verdade que as agncias reguladoras no podem editar atos primrios, ou seja, no podem criar normas independentes de lei anterior, inovando a ordem jurdica pela criao de direitos e obrigaes originrias (Paiva, et alli, op cit: 180). O exerccio do poder normativo das agncias deve ser precedido de uma autorizao, uma delegao legal. Ao mesmo tempo, a lei deve prever em que matrias a agncia poder exercer o seu respectivo poder normativo bem como quais os parmetros, diretrizes e limites em que as agncias podem atuar. A maioria dos doutrinadores tradicionais tem considerado como inconstitucional qualquer iniciativa por parte das agncias reguladoras no sentido de legislar. No entanto, com exceo dos tradicionalistas, a maioria considera que, dado a complexidade das relaes sociais na vida contempornea, torna-se necessria a existncia de novas normas, o que nem sempre pode ser realizado pelo Poder Legislativo. Destarte, tm-se delegado a determinados rgos especializados, como o caso das agncias reguladoras, formular normas a fim de regular determinadas situaes em que isso se faz necessrio. Exemplos disso so as normas que fixam as regras para a prestao de servios como o servio telefnico fixo comutado (STFC), o servio mvel pessoal (SMP), o servio de comunicao multimdia (SCM), assim como as normas para homologao e certificao de equipamentos e produtos, para garantir a qualidade e segurana dos equipamentos e produtos colocados no mercado, antes da instituio do uso destes. H a necessidade, portanto, da edio constante de novas normas para regular as novas situaes. O poder normativo das agncias reguladoras, no entanto, no pode se estender s matrias para as quais a Constituio estabeleceu a reserva de leis. Ademais, todos os atos normativos editados pelas agncias devem estar sujeitos a um controle pelo Poder Legislativo, particularmente na forma do art. 49, incisos V e X, da Constituio Federal. Ante todo o exposto, percebe-se que o surgimento das agncias reguladoras na sociedade brasileira deu origem a uma srie de novos discursos sobre o papel do Estado em interveno na economia. Tais discursos podem ser considerados a partir de discursos tcnicos formulados no campo do Direito, da Economia, bem como da Cincia Poltica.

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Particularmente, no que diz respeito aos discursos produzidos no mbito do Direito, a maioria tm procurado enquadrar novo modelo institucional no quadro normativo do Direito Brasileiro. Nesse sentido, parte destes discursos tem procurado realizar uma interpretao com vistas a refutar o modelo adotado, apontando determinadas ilegalidades e/ou inconstitucionalidades (MELLO, 2001; DI PIETRO, op cit; GRAU, 2002); parte vem procurando resolver problemas jurdicos decorrentes da exigncia de adaptao do modelo adotado (FERRAZ, 2000; ARAGO, op cit; MARQUES NETO, op cit). Segundo Eros Roberto Grau, as agncias reguladoras so entidades situadas no cerne do Poder Executivo, desempenhando funes administrativas e normativas, estas ltimas no exerccio de capacidade regulamentar (op cit: 26-27). Ainda segundo Grau, devido a esta participao das agncias reguladoras no aparelho do Estado, segue que estas consistem apenas em entidades autrquicas. Sendo assim, as agncias reguladoras encontram-se inseridas na estrutura do Estado, especialmente no mbito do Poder Executivo, dirigido pelo Presidente da Repblica, no mbito federal, pelo Governador, no Estadual e pelo Prefeito, no Municipal. (op cit: 27) Para Grau, as chamadas caractersticas especiais que possuem as agncias reguladoras so prprias e peculiares s autarquias, salvo as de mandato fixo e de estabilidade de seus dirigentes (ibid). Ocorre que, ainda segundo Grau, as inovaes que fazem das agncias reguladoras autarquias especiais, so franca e irremediavelmente inconstitucionais (ibid). Isso porque a suposio de que auxiliares menores do chefe do Poder Executivo, dirigentes de autarquias, no possam ser livremente nomeados e exonerados por ele , mesmo em tese, incompatvel com o regime presidencialista (Grau, ibid). Apesar de o STF (Supremo Tribunal Federal) ter restringido a demissibilidade de dirigente de agncia por Governador de Estado sem justo motivo , para Grau, algo que evidentemente no guarda adequao ao texto da Constituio (ibid). Prosseguindo em sua anlise, Grau afirma queO artigo 84 da Constituio do Brasil afirma ser da competncia privativa do Presidente da Repblica o exerccio da direo superior da administrao federal. Da ser absurda a idia de que os dirigentes das autarquias seriam titulares de direito a serem mantidos em seus cargos alm de um mesmo perodo governamental (op cit: 27-28).

Mesma opinio expressa o professor Celso Antnio Bandeira de Mello, para quem a manuteno do cargo de dirigente de uma Agncia Reguladora para alm de um

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mesmo perodo governamental consubstanciaria uma fraude contra o prprio povo (2001:132). Dada a suposio de as agncias reguladoras serem meras autarquias pertencentes ao aparelho do Estado que Grau conclui serem as agncias reguladoras, meras autarquias, (...) na verdade (...) reparties da Administrao, no sentido literal do termo (op cit: 28). Desse modo, prossegue Grau: a Administrao repartida, de modo a obviar-se a sua descentralizao. As autarquias so produto dessa repartio, por isso mesmo tendo sido designadas, no passado, de reparties pblicas (ibid). Para Marques Neto