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1 PRÁTICAS DE LETRAMENTO MULTISSEMIÓTICO NA REDE SOCIAL FACEBOOK Dáfnie Paulino da SILVA Marylin Lima Guimarães FIRMINO Universidade Estadual de Campinas – Unicamp [email protected] [email protected] Resumo: No presente trabalho realizamos um estudo de caso das práticas de letramento multissemióticas acionadas na rede social Facebook. Em nosso estudo, selecionamos um sujeito com letramento digital avançado, pois utiliza amplamente as diversas propiciações que o site Facebook proporciona. Verificamos que os artefatos utilizados por redes sociais como Facebook, Orkut e afins constituem práticas de letramento contemporâneas, múltiplas, intersemióticas e que exigem de seus usuários cada vez mais competências para leitura e produção de significados, acionando mídias combinadas. Há uma evolução notável nos espaços virtuais que tende ao hibridismo midiático, solicitando dos sujeitos um letramento de integração de mídias bastante elevado. Dentro de tais plataformas percebemos um processo de construção identitária por multissemiose: na criação do perfil, são oferecidas múltiplas propiciações pelo artefato, como inserções de links, imagens, vídeos, e uma infinidade de aplicativos. Não obstante estes fatores, os sites de redes sociais apontam a capacidade dos indivíduos em desenvolver um letramento bastante sofisticado de autoapresentação e gerenciamento da própria imagem por meio de articulações sociais, uso de aplicativos e seleção de gostos (BOYD e ELLISON, 2007). Em nossa análise, percebemos que o sujeito faz do seu perfil on-line um reflexo de uma coleção de bens simbólicos, e mesmo que esteja em desacordo com as coleções do sistema cultural, essa mistura e ruptura são parte do processo de hibridação cultural que vivenciamos (GARCÍA-CANCLINI, 2008). Por meio de uma breve comparação das interfaces do Orkut e do Facebook também será possível refletir sobre as tendências multimodais presentes no desenvolvimento dessas redes sociais. Concluímos que as propiciações do meio digital impelem o usuário para as práticas hipertextuais e hipermidiáticas, mesclando linguagens e textos, criando apropriações, usos e convergências comuns aos multiletramentos e letramentos multiculturais. Palavras-chave: redes sociais; interação; práticas letramento multissemióticas. 1. Introdução Os artefatos digitais utilizados por redes sociais como Facebook, Orkut, Linkedin e afins constituem práticas de letramento contemporâneas, múltiplas, intersemióticas e que exigem de seus usuários cada vez mais competências-capacidades para leitura e produção de significados acionando mídias combinadas. Essas novas práticas exigem dos usuários novos letramentos para que possam acionar plenamente seus recursos e realizar leituras apropriadas das interfaces com recursos Anais do SIELP. Volume 2, Número 1. Uberlândia: EDUFU, 2012. ISSN 2237-8758

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PRÁTICAS DE LETRAMENTO MULTISSEMIÓTICO

NA REDE SOCIAL FACEBOOK

Dáfnie Paulino da SILVA

Marylin Lima Guimarães FIRMINO

Universidade Estadual de Campinas – Unicamp

[email protected] [email protected]

Resumo: No presente trabalho realizamos um estudo de caso das práticas de letramento multissemióticas acionadas na rede social Facebook. Em nosso estudo, selecionamos um sujeito com letramento digital avançado, pois utiliza amplamente as diversas propiciações que o site Facebook proporciona. Verificamos que os artefatos utilizados por redes sociais como Facebook, Orkut e afins constituem práticas de letramento contemporâneas, múltiplas, intersemióticas e que exigem de seus usuários cada vez mais competências para leitura e produção de significados, acionando mídias combinadas. Há uma evolução notável nos espaços virtuais que tende ao hibridismo midiático, solicitando dos sujeitos um letramento de integração de mídias bastante elevado. Dentro de tais plataformas percebemos um processo de construção identitária por multissemiose: na criação do perfil, são oferecidas múltiplas propiciações pelo artefato, como inserções de links, imagens, vídeos, e uma infinidade de aplicativos. Não obstante estes fatores, os sites de redes sociais apontam a capacidade dos indivíduos em desenvolver um letramento bastante sofisticado de autoapresentação e gerenciamento da própria imagem por meio de articulações sociais, uso de aplicativos e seleção de gostos (BOYD e ELLISON, 2007). Em nossa análise, percebemos que o sujeito faz do seu perfil on-line um reflexo de uma coleção de bens simbólicos, e mesmo que esteja em desacordo com as coleções do sistema cultural, essa mistura e ruptura são parte do processo de hibridação cultural que vivenciamos (GARCÍA-CANCLINI, 2008). Por meio de uma breve comparação das interfaces do Orkut e do Facebook também será possível refletir sobre as tendências multimodais presentes no desenvolvimento dessas redes sociais. Concluímos que as propiciações do meio digital impelem o usuário para as práticas hipertextuais e hipermidiáticas, mesclando linguagens e textos, criando apropriações, usos e convergências comuns aos multiletramentos e letramentos multiculturais.

Palavras-chave: redes sociais; interação; práticas letramento multissemióticas.

1. Introdução Os artefatos digitais utilizados por redes sociais como Facebook, Orkut, Linkedin e

afins constituem práticas de letramento contemporâneas, múltiplas, intersemióticas e que exigem de seus usuários cada vez mais competências-capacidades para leitura e produção de significados acionando mídias combinadas.

Essas novas práticas exigem dos usuários novos letramentos para que possam acionar plenamente seus recursos e realizar leituras apropriadas das interfaces com recursos

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multimodais1 de áudio, vídeo, texto verbal e demais modalidades, além do domínio de certos sistemas semióticos. Quando aplicamos o termo letramentos, fazemo-lo a partir do conceito apresentado por Colin Lankshear e Michele Knobel, haja vista tal conceituação engloba as práticas sociais para gerar e negociar significado, mas salienta que processo ocorre por meio de textos codificados.

In the new edition of New Literacies (Lankshear and Knobel 2006), Michele and I define literacies as “socially recognized ways of generating, communicating and negotiating meaningful content through the médium of encoded texts within contexts of participation in Discourses (or, as members of Discourses).”

(LANKSHEAR & KNOBEL, 2007, p. 2)

É possível perceber uma evolução notável nos espaços virtuais que tende ao hibridismo midiático, solicitando dos sujeitos um letramento de integração de mídias bastante elevado. Não obstante estes fatores, os sites de redes sociais demonstram a capacidade dos indivíduos em desenvolver um letramento bastante sofisticado de autoapresentação e gerenciamento da própria imagem por meio de articulações sociais, uso de aplicativos e seleção de gostos.

Neste trabalho buscamos realizar um sucinto estudo de caso sobre como são acionados tais letramentos por um usuário da rede social Facebook, examinando como são conjugadas simultaneamente diferentes competências. Nota-se que as propiciações2 do meio digital impelem o usuário para as práticas hipertextuais e hipermidiáticas, mesclando linguagens e textos, criando usos e convergências comuns aos multiletramentos e letramentos multiculturais. Posteriormente a esta primeira análise, será feita uma comparação com o letramento de usuário da rede social Orkut, avaliando como ambas, Facebook e Orkut, acionam letramentos multissemióticos, todavia em graus diferentes, haja vista que na primeira rede prevalece uma combinação maior de modalidades, ao passo que na segunda há ainda um predomínio da linguagem verbal escrita.

Ambas as redes sociais foram concebidas em 2004, com diferença de menos de um mês, entre janeiro e fevereiro. O Orkut foi o primeiro site e tem no Brasil e na Índia a maior parte de seus usuários, enquanto o Facebook, atualmente, está bastante difundido ao redor do mundo. O perfil de cada uma dessas redes, na análise seguinte, é bastante distinto, em particular pelo fato de que aplicamos neste trabalho a versão antiga da rede Orkut.

Na versão mais recente, a distinção entre as redes é um pouco menor, posto que a versão nova do Orkut se adapta mais à tendência multimodal, e adiciona implementações que a tornam semelhante ao Facebook, reforçando a concepção de que os letramentos serão cada vez mais multissemióticos e que o usuário deve se adequar a tal onda de atualizações. De acordo com Roxane Rojo,

por força da linguagem e das mídias (digitais) que as constituem, essas tecnologias puderam muito rapidamente misturar a linguagem escrita com outras formas de linguagem (semioses), tais como a imagem estática (desenhos, grafismos, fotografias), os sons (da linguagem falada, da música),

1 Segundo Lemke (2005, p. 3) a multimodalidade consiste combinação ou integração dos diferentes sistemas de signos ou sistemas de recursos por meio da qual os sinais dos sistema são realizados ou instanciados. 2 Sobre o termo, apreciamos a definição de OLIVEIRA e RODRIGUES (2006, p. 2) na qual ‘de acordo com Gibson (1979/1986), o verbo to afford é encontrado no dicionário (proporcionar, propiciar, fornecer), mas o substantivo affordance não’. Gibson deu significado próprio ao termo. São exatamente as possibilidades oferecidas pelo ambiente a um agente particular, que o autor denominou affordances.’.

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a imagem em movimento (os vídeos). E o fez de maneira hipertextual e hipermídiatica. Por força dessa possibilidade e desta forma de misturar linguagens, também muito rapidamente os textos – mesmo os textos impressos – que circulam em nossa sociedade se transformaram: passaram também a combinar linguagens de maneira hipertextual [...]

(ROJO, 2010, Disponível em: http://independent.academia.edu/RoxaneRojo/Papers)

A mistura de linguagens é uma característica marcante do Facebook, conferindo dinamicidade às informações (textuais e visuais) trocadas pelos usuários; recordamos que segundo por Jay L. Lemke (2010, p.1) essa é uma característica dos gêneros multimodais, pois ‘os meios de comunicação multimodal produzem sentido cruzando os recursos semióticos da linguagem, apresentação visual, som e música, movimento cinematográfico, artefatos materiais e animação abstrata.

2. Letramentos acionados no uso do Facebook A popularização da rede social Facebook entre brasileiros, que constituem o maior

público presente na rede Orkut e que já possuíam intimidade com sua interface e recursos, ressalta aos nossos olhos as diferenças entre os dois artefatos. O Facebook apresenta uma interface e propiações claramente mais híbridas, seguindo uma tendência multissemiótica, combinando mídias em uma escala menos tipológica (sem classificar e separar os elementos por um tipo).

Numa mesma página do Facebook pode-se conciliar vídeos, imagens e postagens; no mesmo perfil são conjugados aplicativos que permitem a integração com outros sites como Twitter, rádios, jornais, blogs, dentre outros. As propiciações que tal rede oferta são inúmeras, e a receptividade para ampliação dessas propiciações é uma porta aberta à curiosidade e capacidade do sujeito: é possível criar e ofertar aplicativos, é possível buscar e fazer uso de tais aplicativos.

Em contrapartida, todas essas possibilidades e riquezas de uso exigem do usuário um letramento diferenciado, um letramento intensamente multimodal e mais ágil para o ritmo acelerado do espaço digital; os facebookers, como são chamados, necessitam acionar mais letramentos ao usarem seu perfil ou para lerem e interagirem com os demais indivíduos.

O letramento de usuário da rede social Facebook apresenta constituição multissemiótica, o que é percebido a partir de breve análise do perfil e suas propiciações. A construção do perfil de cada usuário não é predominantemente em linguagem verbal escrita, mas produzida em combinação multissemiótica: são oferecidas múltiplas propiciações pelo artefato, inserções de links, imagens, vídeos, e uma infinidade de aplicativos (alguns criados por “produsuários”) que possibilitam a integração entre o Facebook e outros artefatos da World Wide Web.

Cabe ressaltar essa característica colaborativa presente no meio digital: o usuário pode interferir e produzir, deixando de ser um leitor espectador, por isso a junção de ‘produtor’ com ‘usuário’, que torna o distanciamento entre essas atividades menos significativo, chamando a atenção para novas formas de produzir conteúdo (BRUNS, 2008). Além disso, a linguagem verbal escrita não está em destaque, o centro é outro...

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2.1. Construção Identitária por Multissemiose Para nossa análise comparativa, selecionamos um sujeito com uso avançado de

Facebook, e que consiste assim em um caso satisfatório por utilizar as diversas propiciações multissemióticas que o site proporciona; consideramos seu letramento como avançado a partir dos recursos explorados: ele compartilha material em texto, vídeo, áudio e vai além, explorando possibilidades de integração com aplicativos pouco utilizados e realizando na rede social certos usos diferentes de sua utilidade primeira. Em nosso estudo, denominaremos tal sujeito de F1 de agora em diante, para preservar sua identidade.

No Facebook, o perfil do usuário oferece destaque, no centro da página, às últimas movimentações virtuais do sujeito, são destacados os miniposts do minoblog Twitter, conteúdos apreciados como links, fotos, vídeos e notícias, além de outras diversas possibilidades. A ordenação é vertical, e como no Twitter e outros sites da rede, existe uma seqüência de leitura na qual posts mais recentes surgem no topo, ao passo que os antigos aparecem na parte inferior até saírem do destaque para a arquivação. Nessa interface, as informações pessoais jazem expostas em uma subpágina, o que indica um aspecto importante de como funciona a autoapresentação na rede de relacionamentos: tal posição é um indício de que as informações fornecidas (e em texto) não são muito relevantes na apresentação da identidade do sujeito, do contrário, seriam expostas na página principal.

Essas informações pessoais focam dados acadêmicos, profissionais, gostos musicais, cinematográficos, filosóficos, interesses, opção sexual, porém, o sistema da rede faz com que estas informações sejam automaticamente mescladas a ícones visuais, à revelia do usuário, formando sintagmas multimodais e forçando novamente a leitura multissemiótica.

Nessa captura da subpágina de informações, temos um recorte de como o software funciona: F1 preencheu o campo religião como ‘agnosticismos’ e o campo preferência política como ‘liberalismo’. Automaticamente, o Facebook insere um ícone com link em ambos, em primeira escala para uma página interna do Facebook.

Essa página interna exige um letramento hipertextual pois é repleta de hyperlinks para

a enciclopédia on-line Wikipedia, não obstante este aspecto, são associadas imagens de Thomas Henry Huxley e uma famosa pintura, com uma representação romantizada da independência norte-americana repletas de significados imagéticos.

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Como observado, essas informações não têm destaque no perfil, a identidade é

estruturada a partir dos últimos elementos compartilhados, ou seja, o elemento identitário é construído a partir de questões como: “Quais integrações o usuário faz? e “Quais apropriações são realizadas?” . Afinal, quando um indivíduo compartilha um conteúdo (de vídeo ou imagem) e reproduz algo em seu perfil, este conteúdo de certa forma lhe pertence, é um constituinte de seus gostos e identidade, ele integrou e se apropriou dele. O que define um facebooker é o que ele é capacitado a fazer com as propiciações do artefato, e não o que ele escreve em texto escrito sobre si.

Abaixo, exibimos uma captura de tela do perfil de F1 que é exibido às articulações sociais de F1 na rede social:

A partir do momento em que o sujeito F1 integra vídeos, links e imagens ao seu perfil, é criado um novo objeto que deve ser avaliado como um todo, um texto multissemiótico que não permite uma análise isolada de seus componentes. Deste modo, não é possível realizar uma análise tipológica, separando estes componentes, e faz-se necessário efetuar uma análise topológica, pois todas essas mídias agem produzindo significados em conjunto, por graus (LEMKE, 2010).

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● Letramento com vídeos-músicas-imagens F1 preenche boa parte de seu perfil compartilhando músicas norte-americanas, animes

japoneses em formato de vídeo e imagem (mangás digitais), além de links brasileiros sobre política e economia.

A apropriação de vídeos e imagens forma uma coletânea que em seu todo define gostos e tem feitio identitário. F1 faz do seu perfil o espelho de sua coleção de bens simbólicos, uma organização particular e sua, e mesmo que esteja em desacordo com as coleções do sistema cultural, essa mistura e ruptura são parte do processo de hibridação cultural que vivenciamos (GARCÍ-ACANCLINI, 2008 [1989]), e que tão bem se percebe no hibridismo das redes sociais. Nessa perspectiva, portanto, podemos acreditar que cada perfil do Facebook reflete uma coleção de bens simbólicos que cada usuário cria por si, mostrando que “agora essas coleções renovam sua composição e sua hierarquia com as modas, entrecruzam-se o tempo todo, e, ainda por cima, cada usuário pode fazer sua própria coleção” (GARCÍA-CANCLINI, 2008 [1989]). Esse evento, ressaltado pela tecnologia, foi claramente sinalizado por Nestor García-Clanclini,

Uma dessas transformações de longa data, que a intervenção tecnológica torna mais patente, é a reorganização dos vínculos entre grupos e sistemas simbólicos; os descolecionamentos e as hibridações já não permitem vincular rigidamente as classes sociais com os estratos culturais. [...] Apenas afirmo que a reorganização dos cenários culturais e os cruzamentos constantes das identidades exigem investigar de outro modo as ordens que sistematizam as relações materiais e simbólicas entre os grupos.

(GARCÍA-CANCLINI, 2008 [1989], Disponível em: http://www.ufrgs.br/cdrom/garcia/garcia.pdf)

Dessa forma, o sujeito F1 expressa uma identidade pluricultural e multifacetada que é gerenciada por meio do que ele torna público sobre si, mesmo que esse perfil seja certamente manipulado. Por manipulação, entendemos aqui a autoapresentação que F1 realiza de si mesmo para seus amigos. As suas apreciações (o botão curtir) e compartilhamentos são expostos por gerenciamento de impressões: que impressões estes conteúdos podem causar? O que farão os amigos de F1 pensarem sobre ele? Que respostas (negativas e positivas) podem estimular?

Os sistemas de redes sociais exigem do usuário o letramento essencial do gerenciamento de impressões (embora tal competência não seja exclusiva deles, posto que em diversos ambientes a nossa habilidade de representar identidade é requisitada).

Quando questionado sobre seu compartilhamento, F1 é contundente em observar que existe uma seleção e que nem todo seu conteúdo é compartilhado, havendo uma manutenção no processo: “Certamente não compartilho os vídeos pornô que assisto. Quase todo o resto, havendo modo de compartilhar eu o faço. [...]Evito coisas muito banais (não posto cada mangá que leio por exemplo, estou o tempo todo lendo mangás), porque é chato ter que postar o tempo todo e quem for ler achará chato também.”

Boyd e Ellison observam que esse uso das redes sociais faz parte do processo de negociação entre usuários na apresentação de si, e não inclui apenas uma leitura de quais significações os vídeos e imagens podem transmitir, mas se estende a ligações sociais que F1 efetua na rede interna do Facebook:

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[...] SNSs constitute an important research context for scholars investigating processes of impression management, self-presentation, and friendship performance. In one of the earliest academic articles on SNSs, boyd (2004) examined Friendster as a locus of publicly articulated social networks that allowed users to negotiate presentations of self and connect with others. Donath and boyd (2004) extended this to suggest that “public displays of connection” serve as important identity signals that help people navigate the networked social world, in that an extended network may serve to validate identity information presented in profiles. (BOYD e ELLISON (2007).

Disponível em:

http://jcmc.indiana.edu/vol13/issue1/boyd.ellison.html

O que F1 efetua em seu perfil é a representação de uma identidade multicultural e multifacetada, uma competência que seria importante a escola estimular nos alunos. Apesar de sua idade (este trabalho acompanha um sujeito entre 25 e 27 anos), as habilidades de F1 são comuns em perfis de usuários bem mais jovens. É possível que as redes sociais híbridas sejam o campo de atuação de uma geração com habilidades digitais muito desenvolvidas e, por isso, seu estudo não pode ser ignorado. Segundo Roxane Rojo,

No âmbito da educação para a ética e a política, o pluralismo cívico seria, para os autores [New London Group], a escola buscar desenvolver nos alunos a habilidade de expressar e representar identidades multifacetadas apropriadas a diferentes modos de vida, espaços cívicos e contextos de trabalho em que cidadãos se encontram; a ampliação dos repertórios culturais apropriados ao conjunto de contextos onde a diferença tem de ser negociada; [...] a capacidade de se engajarem numa política colaborativa que combina diferenças em relações de complementaridade (ROJO, 2010, p. 79).

● Letramento com aplicativos-integrações O sujeito F1 demonstra conhecimento de que utilizando ferramentas de busca e

explorando o artefato, pode encontrar aplicativos que facilitem seus usos mais complexos e tornem seu perfil mais atraente para ser acompanhado por amigos. Utilizando a ferramenta de busca interna no Facebook, F1 encontrou aplicativos em acordo com suas necessidades de integração, deste modo, consegue fazer com que o seu perfil acompanhe grande parte de suas atividades virtuais. No contexto digital, as capacidades para categorizar e localizar exigidas por buscadores são essenciais para qualquer usuário.

Quando questionado a respeito desses procedimentos, F1 trata os procedimentos de busca com naturalidade, limitando-se a explicar que “tem um lugar no fb que vc ve e pesquisa os apps que ele tem / eu fui lá e procurei app pra integrar o twitter e o last.fm”. F1 também compartilha sua visão acerca da integração de recursos: “nao tivesse integração tudo seria bem menos interessante / é util e interessante compartilhar gostos com as pessoas, mas se tiver que repetir o processo em incontaveis sites diferentes nao rola”.

É relevante mencionar, que todas estas atividades pressupõem também um letramento prévio do site miniblog Twitter (para o qual F1 também ativa outros aplicativos), e demais espaços integrados como Youtube e Last FM, de modo que um letramento único não alcançaria o objetivo desejado.

Um aspecto interessante dessa integração é sua repercussão. Por exemplo, uma mensagem postada no Twitter (por via da extensão Chrome Add-nos), é reproduzida

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imediatamente no perfil do Facebook e logo após integrada, gera comentários e respostas. O Twitter tem continuidade na forma de dois chats assíncronos que não eram seu objetivo inicial no site Twitter (eis a habilidade para transitar e desvirtuar a utilidade dos objetos, o que exige um certo nível de letramento digital).

Embora sem reflexão, F1 está realizando um letramento de convergência entre mídias, e de integração. Na era de cultura de convergência, a verdadeira convergência ocorre na mente do usuário, são as conexões que ele é capaz de fazer (JEMKIS, 2009). O sujeito F1 está letrado para uma mentalidade digital em que os diferentes artefatos podem ser sempre unificados e postos em diálogo. O hyperlink é o começo de ligações mais amplas, a conexão é sempre possível entre todas as pessoas, assuntos e sujeitos.

● Outros usos e apropriações Além dos letramentos mencionados, o sujeito F1 combina ainda outras habilidades,

colocando em ação outros conhecimentos e letramentos, como quando utiliza o artefato como ferramenta de busca. Nesse episódio, ele faz uma apropriação que desvirtua a utilidade original do Facebook como artefato de articulação social, e nos recorda a ideia, segundo Castells (2003, p.160) de que “o que a tecnologia tem de maravilhoso é que as pessoas acabam fazendo com ela algo diferente daquilo para que foram criadas. [...] Como vimos, a internet é o resultado da apropriação social de sua tecnologia por seus usuários/ produtores”.

Ao buscar o auxílio de outros indivíduos na internet, o indivíduo demonstra:

(a) Letramento sobre a natureza da rede que torna as informações mais acessíveis, mesmo em ferramentas não específicas;

(b) uma cultura colaborativa na qual os usuários mais letrados estão engajados.

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Além dos letramentos acionados pela propiciações do artefato mencionados, existem

diversos outros que não serão avaliados neste breve estudo, diferentes letramentos que são combinados em diversas escalas, criando um texto multissemiótico e mesmo intersemiótico, que sinalizam práticas de letramento múltiplas: letramento de leitura e busca de vídeos e possíveis significações, de imagens, da linguagem verbal e de emoticons num contexto do Facebook, em suma, todo um conjunto de significados sociais reconhecidos dentro da tecnologia de redes sociais estão em voga.

Entretanto, tais práticas contemporâneas são distintas entre si e requerem em maior ou menor grau múltiplos letramentos, como é possível acompanhar em uma breve comparação entre a rede Facebook e a rede Orkut, em que nos deteremos a seguir.

3. Práticas de letramento na Rede Social Orkut Observando uma versão mais antiga da rede social Orkut, percebe-se que os

multiletramentos são igualmente solicitados, mas o apelo híbrido é menor. É importante apresentar as características da interface do Orkut que revelam sua linearidade (em oposição à estrutura de links do Facebook). Abaixo, temos uma captura de tela do mesmo sujeito, F1, com seu perfil utilizado no Orkut. Percebem-se similitudes, mas há um visível predomínio de linguagem verbal escrita e menos integrações:

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Após a análise, listamos abaixo os tópicos mais relevantes que definem as características principais da interface do Orkut e que mais salientam suas distinções em relação aos letramentos do Facebook:

● O foco do perfil é produzido em linguagem verbal textual escrita pelo próprio usuário, todo o texto;

● Vídeos, fotos e jogos compõem o perfil em diferentes seções, conferindo menor integração entre esses conteúdos: a pessoa lê essas informações separadamente;

● A apresentação e reforço da identidade do sujeito são efetuados por testemunhos textuais, e não por suas habilidades e material compartilhado;

● A identidade é parcialmente construída pelas articulações sociais (os ‘amigos’ estão no canto superior direito, em destaque) e compõe a identidade do sujeito, mas não há mais informações;

● A integração de aplicativos é mais frágil: vídeos e fotos em separado, gifs (animações), cartões fotos anexas. O nível de letramento de integração e aplicativos é menos relevante na autoapresentação da identidade (estão em subpáginas);

● Não existe integração com Twitter, tampouco conhecimento de aplicativos.

No Orkut a interação maior entre os usuários se dá pela troca de mensagens, que pode ser privada ou não (a configuração é feita pelo usuário) e principalmente, no caso de interações entre mais pessoas, as comunidades são os espaços mais utilizados, pois a estrutura de fórum das comunidades favorece discussões mais longas.

As comunidades, de certa forma, são recursos que contribuem para a formação identitária da pessoa nessa rede social, dado que é possível ter alguma noção de seu perfil por meio da verificação dessas comunidades que abarcam gostos, preferências (políticas, musicais, literárias, dentre diversas outras) muitas vezes sob o título de “gosto de”, “não gosto de”, “amo”, “odeio”. No Facebook começaram a surgir mais recentemente, como grupos, configurando-se também como espaços de discussão de assuntos com os quais seus membros se identificam e consideram pertinentes.

Observamos que o perfil de F1 no Orkut mostra-se mais estático por voltar-se às informações pessoais, preenchidas em diferentes abas: “social”, “profissional” e “pessoal”. Nessas abas há diferentes itens que podem ou não ser respondidos pelo usuário. Logo abaixo desse perfil encontram-se os vídeos, no entanto, eles não podem ser compartilhados com os demais usuários, é preciso acessar a página de F1 para vê-los, assim como suas fotos. O Orkut funciona como um espaço mais fechado, em termos de recursos para a construção identitária, no sentido de não permitir que essa construção se faça por meio de uma maior interação e compartilhamento de conteúdo entre os usuários, como faz o Facebook.

Os aplicativos estão localizados na lateral esquerda, na parte inferior da aba que revela as informações do perfil, assim como as propiciações oferecidas aos usuários (scraps, fotos, depoimentos etc). Tais aplicativos podem ser facilmente acessados, porém são limitados (Biscoito do Azar, BoddyPoke, Ortist – Gráfica Recados, Sokobox – Jogo de Raciocínio, e Joga Craque). Não é propiciada ao usuário a possibilidade de criar novos aplicativos e integrações. Embora no Facebook a opção esteja em uma subpágina, e seja necessário que o sujeito ative letramentos de busca para conseguir aplicativos, as possibilidades e habilidades exigidas estimulam o usuário a ir mais longe.

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Em suma, percebe-se que o Orkut funciona como um espaço específico para cada usuário, em que este pode compartilhar fotos, vídeos e aplicativos, mas, em geral, para acessá-los, é necessário visitar sua página, que simula ser praticamente um curriculum vitae (um resumo da vida profissional, acadêmica e social). O Facebook funciona em rede e as principais formas de articular amigos são pela integração e por uma cultura colaborativa de trocar conteúdos. Os limites da interação são mais tênues, os usuários conectados podem publicar nas páginas principais uns dos outros e compartilhar diferentes links, além de curtir as publicações feitas por amigos, que são atualizadas constantemente.

4. Considerações Finais

Facebook: no que você está pensando? Twitter: o que está acontecendo?

Orkut: aonde foi todo mundo?

O texto humorístico3 acima expressa bem a tendência atual das redes sociais em questão: o esvaziamento do Orkut (embora sua versão mais atualizada seja similar a do Facebook), e os motes do Facebook e Twitter, que também são indicativos de seus objetivos: enquanto o segundo é mais imediatista e exige que o usuário seja sucinto sobre o que está acontecendo, o primeiro dá espaço para muito mais: o que você está pensando pode variar muito e nada tem de linear...

Todavia, apesar das distinções, acreditamos que todos, em alguma escala, buscam engajar seus usuários em uma cultura digital. Nos três artefatos, a produção de significado é realizada por múltiplos letramentos, requisitando seja do orkuteiro, twitteiro ou facebooker um letramento multissemiótico, além de letramentos para uma cultura de convergência, deveras participativa, e colaborativa entre sujeitos.

A rápida evolução das propiciações desses artefatos destaca a necessidade de dar atenção a tais letramentos múltiplos, já em uso e muito populares entre os alunos de hoje. Portanto, quando propomos uma análise de como Facebook e Orkut acionam múltiplos letramentos, acreditamos que compreender o uso e o funcionamento no interior das duas redes nos permitirá abordar questões de forma mais apropriada junto aos que mais as usam.

3 A piada veiculada no twitter por um usuário foi publicada no recém-lançado Piadas Nerds, livro que reúne as melhores piadas do Twitter, organizado por Ivan Baroni, Paulo Pourrat, e Luiz Fernando Giolo, alunos da Unicamp.

Anais do SIELP. Volume 2, Número 1. Uberlândia: EDUFU, 2012. ISSN 2237-8758

Page 12: PRÁTICAS DE LETRAMENTO MULTISSEMIÓTICO NA REDE … · por força da linguagem e das mídias (digitais) que as constituem, essas tecnologias puderam muito rapidamente misturar a

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