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1 PRÁTICAS EDUCATIVAS NO UNIVERSO FEMININO: A FUNÇÃO MATERNA NA FORMAÇÃO DO CLERO Kelly Lislie JULIO UFMA/UFMG [email protected] Palavras-chave: família; mãe-educadora; moral. A presente comunicação tem como interesse analisar a participação feminina na educação dos filhos durante o século XIX. Para isto, foi escolhido como pano de fundo, a Comarca do Rio das Mortes na Capitania de Minas Gerais. Delimitou-se como elemento de estudo, os processos educativos em que estavam presentes os princípios religiosos que, como será apresentado mais a frente, cabiam principalmente às mulheres. A intenção, mais especificamente, é entender a importância da mãe na orientação religiosa dos filhos, em especial, dos futuros padres. A Comarca do Rio das Mortes, no período em questão, era marcada pela diversidade. Essa diversificação esteve presente em diferentes aspectos sejam eles econômicos; culturais e também em relação à conformação populacional. Fortemente ligada ao Rio de Janeiro, principalmente com a vinda da Corte Portuguesa para o Brasil, a Comarca do Rio das Mortes, encabeçada pela Vila de São João del-Rei, buscou realizar alterações nos mais diferentes aspectos do viver de seus habitantes. Para isto, tentou conformar os gostos e costumes da população de acordo com as influências sociais e culturais europeias que circulavam na capital do país. Essa tentativa engendrada pela elite política e cultural tinha como interesse tornar a população mais “civilizada” de acordo com os moldes europeus. Assim, mecanismos distintos foram pensados para tornar real esse intento. Dentre os diferentes mecanismos, merece destaque à importância dada à família. Vista como espaço de ordenamento social, era na vivência familiar que se imaginava possível ordenar os costumes e incutir valores. Isso porque se acreditava que no ambiente doméstico, gerenciado pelos pais, os filhos poderiam ser educados e, consequentemente, a população se tornaria mais “civilizada”.

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PRÁTICAS EDUCATIVAS NO UNIVERSO FEMININO: A FUNÇÃO MATERNA NA

FORMAÇÃO DO CLERO

Kelly Lislie JULIO – UFMA/UFMG

[email protected]

Palavras-chave: família; mãe-educadora; moral.

A presente comunicação tem como interesse analisar a participação feminina na

educação dos filhos durante o século XIX. Para isto, foi escolhido como pano de fundo, a

Comarca do Rio das Mortes na Capitania de Minas Gerais. Delimitou-se como elemento de

estudo, os processos educativos em que estavam presentes os princípios religiosos que, como

será apresentado mais a frente, cabiam principalmente às mulheres. A intenção, mais

especificamente, é entender a importância da mãe na orientação religiosa dos filhos, em

especial, dos futuros padres.

A Comarca do Rio das Mortes, no período em questão, era marcada pela diversidade.

Essa diversificação esteve presente em diferentes aspectos sejam eles econômicos; culturais e

também em relação à conformação populacional. Fortemente ligada ao Rio de Janeiro,

principalmente com a vinda da Corte Portuguesa para o Brasil, a Comarca do Rio das Mortes,

encabeçada pela Vila de São João del-Rei, buscou realizar alterações nos mais diferentes

aspectos do viver de seus habitantes. Para isto, tentou conformar os gostos e costumes da

população de acordo com as influências sociais e culturais europeias que circulavam na

capital do país.

Essa tentativa engendrada pela elite política e cultural tinha como interesse tornar a

população mais “civilizada” de acordo com os moldes europeus. Assim, mecanismos distintos

foram pensados para tornar real esse intento. Dentre os diferentes mecanismos, merece

destaque à importância dada à família.

Vista como espaço de ordenamento social, era na vivência familiar que se imaginava

possível ordenar os costumes e incutir valores. Isso porque se acreditava que no ambiente

doméstico, gerenciado pelos pais, os filhos poderiam ser educados e, consequentemente, a

população se tornaria mais “civilizada”.

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A família: o santuário da ordem social

“A família, átomo da sociedade civil, é a responsável pelo gerenciamento

dos ‘interesses privados’, cujo andamento é fundamental para o vigor dos

Estados e o progresso da humanidade. Cabe-lhe um sem-número de funções.

Elemento essencial da produção, ela assegura o funcionamento econômico e

a transmissão dos patrimônios. Como célula reprodutora, ela produz as

crianças e proporciona-lhes uma primeira forma de socialização. Garantia da

espécie, ela zela por sua pureza e saúde. Cadinho da consciência nacional,

ela transmite os valores simbólicos e a memória fundadora. É a criadora da

cidadania e da civilidade.” (PERROT, 2009, p. 91)

Michelle Perrot, ao apresentar as concepções e funções da família europeia, destaca a

importância outorgada às mesmas. Sendo percebida por todas as doutrinas e discursos do

período como “a célula da ordem viva” (PERROT, 2009, p. 78), a família, gradativamente,

passa a ser valorizada como espaço, dentre outros, de transmissão de valores e formação da

cidadania e civilidade.

Essas mesmas concepções e funções são conferidas às famílias brasileiras do século

XIX. No intuito de se aproximar das culturas europeias, então vistas como modelo de

civilidade, o Brasil passa a construir mecanismos para difundir as ideias, valores e costumes

europeus. Nesse contexto, a família surge como um espaço propício. É ela a responsável pela

educação dos filhos, futuros cidadãos. É o “local por excelência, em que os princípios da educação

moral [e religiosa] deveriam ser ministrados”. (VIANA e VEIGA, 2003, p. 04)

Mas essa família não seria qualquer conformação. Na verdade, defendida pelas elites

políticas, intelectuais e religiosa, a família ideal imaginada seria aquela afirmada pelo sagrado

matrimônio, adotando as regras do casamento monogâmico. Era essa família com seus

costumes, ideias e valores entendidos como civilizados que deveria ser a responsável pela

difusão de um padrão de vida mais adequado.

Em Minas Gerais não foi diferente. Já no período colonial, Igreja e Estado traçaram

como objetivo a difusão de uma política familiar, na qual o casamento e, consequentemente, a

formação de famílias legítimas eram defendidas como a “peça vital da paz social”.

(FIGUEIREDO, 2008, p. 167) Ainda que em muitos casos não tenha sido possível o alcance

de tal intento, pois concomitante existiam outras conformações familiares, Igreja e Estado

adentraram o oitocentos unidas nessa parceria e, a partir da família legitimada pelo “santo

matrimônio”, imaginavam tornar real a civilidade desejada.

3

Dito de outro modo, como destaca Viana e Veiga (2003, p. 04), analisando as

considerações de Muaze, a família no século XIX é vista como “o local por excelência, em

que os princípios da educação moral deveriam ser ministrados e os pais eram assim

responsabilizados pela educação de seus filhos”. Ainda de acordo com as mesmas autoras, às

mulheres, nesse contexto, são determinados papeis importantes: mãe-educadora dos filhos e

zelosa pelo marido.

A mãe educadora...

De acordo com Perrot (2009, p. 110), com a valorização da família como espaço

consagrado para a educação dos filhos, o poder da mulher vai sendo, aos poucos, dilatado. À

sombra do marido ela tem a oportunidade de exercer “os mais importantes papeis que uma

mulher poderia desejar”: ser boa esposa e mãe.

Entretanto, para o exercício desses papeis, era necessário inicialmente ser preparada.

Nesse contexto, amparadas pelo discurso do período, diferentes instituições1 tomaram para si

o intento de construir essa mulher ideal. Assim, como aponta alguns pesquisadores2,

especialmente no que se refere àquelas pertencentes à elite, a educação feminina se resumia

nessa construção.

Em outras palavras, o processo educativo para as mulheres deveria “melhorar o

desempenho de sua função na sociedade, enquanto esposa e mãe”. Conforme Lima (2007, p.

30), na primeira metade do século XIX o processo educativo feminino “esteve mais voltado

para a formação do caráter e da moral”. O “acesso aos conhecimentos referentes à instrução

como saber ler, escrever e contar” seria um aperfeiçoamento para a regência do lar e cuidado

dos filhos e marido.

Especificamente no que se refere à função de cuidar dos filhos – ser mãe, o discurso

então presente tentava convencer as mulheres e todos à sua volta de que elas realmente eram

“predestinadas” à desempenhar tal papel. Para isto, havia um esforço no intuito de difundir a

ideia de que, mais do que necessária, ela era ‘nobre’ e, além disto, homem nenhum poderia

realizar3. No decorrer do século XIX, essa ideia foi propalada inclusive por algumas

mulheres4.

Das contribuições então imaginadas que fossem prestadas pela mulher para a

construção de uma sociedade “civilizada” nos moldes europeus, destaca-se principalmente

4

aquela relacionada à concepção de educação moral5. Acreditava-se que estando a mulher

exercendo sua função de mãe, ela poderia difundir os bons costumes, a religião e,

consequentemente, a ordem social. No seio da família estaria a mulher dispensando os

primeiros ensinamentos aos filhos, entregando-se totalmente à tarefa de ser a boa mãe, a mãe-

educadora.

No que se refere à educação moral enquanto tarefa feminina interessa aqui aquela

voltada para a dimensão religiosa. Como destaca Eduardo Hoorneart (2008, p. 370), a

dilatação da fé foi de responsabilidade da família. Era no ambiente doméstico que se aprendia

e ensinava as primeiras orações e demais rituais da expressão católica. Nesse processo, a

mulher assumia posição de destaque. Nas palavras do autor a educação religiosa era tarefa da

“mulher branca, a ‘dona da casa’, que passou a ser considerada guardiã e transmissora da

religião”.

A mulher, que deveria receber a educação religiosa desde a tenra idade6, seria a

evangelizadora da sociedade. Como ressalta Martins (2010, p.188) “a religiosidade feminina,

no século XIX, confundia-se com as práticas familiares.” Conforme o discurso do período, a

oração era uma das formas de persuasão feminina no seio familiar, na vivência doméstica.

Persuasão esta que se configuraria em poder feminino no ambiente doméstico, que seria

exercido não apenas sobre os criados, mas também sobre os filhos (p.189).

Nesse contexto, buscava-se difundir não somente a importância de dar à luz, como

prerrogativa da mulher, mas, ao mesmo tempo, o valor de ser mãe no compromisso de

“educar e modelar os seus filhos(as) em um ato sagrado, religioso” (MARTINS, 2010, p.

190). Para isto, diferentes símbolos foram incorporados como forma de identificação dos

compromissos femininos. Dentre eles é possível citar a imagem de Sant’Ana, que num ato

“nobre” de mãe-educadora ensinava sua filha Maria, por sua vez, mãe de Jesus Cristo, o

catecismo (HOORNEART, 2008, p. 370).

O ensinamento da doutrina cristã, especialmente a Religião Católica Romana era visto

como um dos grandes pilares que fundamentavam a formação moral das crianças. Por causa

disto, os pais, especialmente as mães, deveriam utilizar de seus princípios para educarem com

sucesso os filhos. (LIMA, 2007, p.44). Dentre os diferentes elementos muito utilizados para

tentar incutir nos filhos a doutrina da Religião Católica Romana estava presente no interior

das casas oitocentistas imagens de santos e oratórios. Diante desses artefatos era possível a

reunião das famílias, seja para uma oração durante a noite ou para a reza do terço. (HAUCK

apud RUSSO, 2011, p. 12).

5

Ocupando lugar privilegiado (RUSSO, 2011, p. 14), esses objetos, muitas vezes,

serviam para demonstrar a religiosidade. Em outras palavras, para ostentar a suposta fé de

quem os possuíam. Assim, não apenas merecendo destaque no interior das casas, eles fizeram

parte também das últimas vontades de seus donos. A partir de uma doação para uma

irmandade religiosa ou como um legado para outra pessoa, estava ali confirmada a fé do

doador. Ao mesmo tempo, é possível supor que, estava ali presente uma tentativa de propagar,

através daquele gesto, a crença nos preceitos da Religião Católica Romana.

A utilização de imagens e oratórios como elementos para doutrinar nos princípios

católicos não fora apenas um artifício das mães “legítimas”7. Na verdade, essa forma de

educação religiosa é muito comum em inventários e testamentos do período, inclusive de

mulheres que tiveram em sua companhia “filhos emprestados”, sejam como expostos,

agregados, etc. Apenas como exemplo, é possível destacar as disposições testamentárias da

viúva Felícia Barbosa da Silveira, moradora na Vila de São João del-Rei, Comarca do Rio das

Mortes. Casada com Antônio Dias Chaves, Felícia teve três filhos, falecidos antes da feitura

do seu testamento. Entretanto, vivia em sua companhia uma menina enjeitada de nome Maria

Bárbara. Para essa exposta Felícia deixou seu oratório e imagens, além da cômoda onde se

encontravam esses objetos8. Apesar de não mencionar seu intuito ao determinar esse legado,

Felícia indiretamente explicita seu desejo de manter ou, pelo menos, direcionar a religiosidade

de Maria Bárbara o que, de certo modo, pode representar um ensinamento de uma doutrina.

Esmênia Joaquina de Mendonça9, por sua vez, mãe de sete filhos, dentre eles o Padre

Pedro Ribeiro de Resende, tivera seus bens inventariados no ano de 1855. Dos objetos

arrolados perfazendo um monte-mor total de 83:603$945, consta, por exemplo, “todos os

ornamentos da ermida”. Apesar de não descrever detalhadamente os ornamentos, é possível

pensar nos paramentos que compunham uma capela, sendo espaço para as orações diárias não

apenas da mãe, mas também da participação religiosa da família.

Conforme o discurso do período, as orações deveriam ser parte das funções cotidiana.

Nesse contexto, cabia às mulheres fazer suas preces no ambiente doméstico diariamente

(LIMA & TEIXEIRA, 2008, p.10), como parte de suas obrigações, inclusive instigando a

presença dos filhos. Seja utilizando um oratório, como supostamente pretendia Felícia

Barbosa da Silveira ao doar esse objeto à Maria Bárbara, ou criando um espaço específico

consagrado às preces, como permite conjeturar os bens de Esmenia Joaquina de Mendonça, a

oração diária era pedida à mulher, como parte do processo de conduzir e seduzir aqueles que

estivessem à sua volta.

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Dito de outro modo, considerando o aspecto educativo da prece cotidiana, é possível

pensar no quanto esse ato poderia ser utilizado pelas mães como forma de exemplo a ser

seguido pelos filhos. Proença (1734) mesmo, em seu livro Apontamentos para a educação de

hum menino nobre, ainda no século XVIII europeu, destacou o quanto o exemplo poderia ser

utilizado como importante elemento educativo, inclusive para os ensinamentos da doutrina

cristã.

Nesse sentido, utilizando-se de diferentes artifícios, como imagens, oratórios, preces

cotidianas, reuniões das famílias para orações, as mulheres zelavam por seus filhos e, ao

mesmo tempo, buscavam educá-los a partir de uma moral Católica Romana, sendo a guardiã

não apenas dos seus, mas também da doutrina cristã. Em outras palavras, cabia à mãe difundir

a doutrina e os valores católicos no espaço familiar. Essa prerrogativa era extensível à todas

as mulheres que assumissem a “nobre” tarefa de ser mãe. Nesse contexto, inclui-se também e,

talvez com maior peso, aquela responsável pela educação dos futuros padres.

A mãe do padre.

“E se meu filho Jose se ordenar de presbítero também entrará com suas irmãs na

terça, e se não se ordenar ficará excluído da mesma". Mariana Eufrásia de Paiva, viúva de

Manoel de Jesus Siqueira, era mãe de seis filhos, dentre eles José. Tivera suas últimas

disposições testamentárias escritas no ano de 1828, na Vila de São João del-Rei, local onde

morava. Aproveitando aquele momento em que expunha suas últimas vontades e que talvez

pudesse convencer a todos a sua volta, Mariana revelou seu desejo de que o filho José

seguisse a vida sacerdotal. Com o processo registrado em 1831, ele ainda não tinha se

ordenado, o que revela que José, até aquela data presente, preferiu ser excluído da terça a

atender o desejo da mãe10

.

Apesar do insucesso da tentativa da mãe apresentada acima, é possível conjeturar o

quão frequente era essa prática nos oitocentos. A preocupação em tornar real o desejo de ter

um filho padre “não parecia estar ligada apenas a uma questão de sucesso ou crescimento

pessoal, mas a um projeto que deveria atender aos interesses familiares” (BRÜGGER, 2007,

p.157). Sendo assim, mesmo que a carreira eclesiástica não fosse a vontade do filho, era

importante a obediência aos pais, com riscos de perda de partes das disposições da herança,

como o caso mencionado acima, ou até mesmo a deserdação (BRÜGGER, 2007, p. 158).

7

Na Comarca do Rio das Mortes oitocentista, a entrega para Deus de um filho

representava não apenas uma demonstração de fé, mas também a possibilidade de admiração

e o respeito das outras pessoas. Pensando nisso, muitas famílias tentavam garantir que ao

menos um filho seguisse a carreira eclesiástica, sendo essa prática comum já no período

colonial como forma de garantir prestígio. (LEWKOWICZ, 2007, p. 531)

Diante do exposto, é possível imaginar a importância dada ao papel da mãe. Como já

mencionado, a educação do filho nos princípios religiosos era obrigação inicial da mesma.

Era ela a responsável pela primeira orientação religiosa dos filhos, assumindo papel

fundamental na sua formação.

Em frente a uma imagem, um oratório ou com um gesto ou postura, elas exprimiam

sua devoção, realizando as orações diárias. Nesse processo buscavam estimular, seduzir seus

filhos e, também, os convencer da estima e autoridade que a carreira eclesiástica poderia

representar. Preparar um filho para seguir a vida sacerdotal poderia ser uma tarefa árdua, mas

ao mesmo tempo, ser bastante recompensadora para a mãe, pois representava a materialização

do seu esforço. À ela estava determinada a função de ensinar desde cedo ao filho, futuro

padre, não apenas os princípios religiosos como fazia com os demais, mas, ao mesmo tempo,

as distinções e as benesses de uma vida entregue totalmente à Deus.

Era no seio da família, na vivência íntima que os preceitos católicos deveriam ser

ensinados, como já dito. Para a mãe do futuro padre cabia à função de transmitir e conservar a

tradição católica. Isso significa dizer que mais do que nunca ela deveria ser um exemplo a ser

seguido pelo filho; um modelo que influenciaria na sua formação, no seu comportamento e na

sua maneira de pensar e agir (OLIVEIRA, 2008, p.40).

Essas parecem ser as expectativas do período em relação à mãe do futuro padre.

Atividades como ir à missa nos dias santos e domingos, jejuar, assistir as festas e procissões

religiosas, além das orações diárias, deveriam ser parte da vida cotidiana dessa mãe, sendo

ainda sua obrigação fazer com que o filho a acompanhasse.

Assim parece ter sido o caso de Cândida Vieira do Amor Divino. Mãe de Aurélio

Procópio Lopes, futuro padre, Cândida foi exposta e, por isso, conforme as considerações

presentes no processo De Genere vitae et moribus11

do filho, não conhecia seus pais. Apesar

disto, recebera uma boa educação tanto religiosa quanto civil, pois vivera em casa de mulher

religiosa, fazendo-a frequentar as atividades da Igreja.

Essa mesma preocupação foi percebida também em Cândida quando mãe. Filho

natural, Aurélio frequentava os atos divinos, recebendo, conforme o exposto na apresentação

8

do referido processo, a educação religiosa, sendo inclusive acostumado a assistir todos os

ofícios divinos com sua família.

Aurélio conseguiu se ordenar e em seu processo há inúmeros depoimentos atestando

sua capacidade. Ainda que pese uma excessiva preocupação em afirmar o bom caráter do

candidato ao sacerdócio, é necessário destacar aqui a importância dada ao cuidado da mãe em

relação ao filho. Ele foi um elemento de destaque na apresentação da boa procedência de

Aurélio. Estar sempre presente nas atividades religiosas, desde pequeno, era uma forma de

demonstrar a idoneidade e conduta moral. Sua mãe, ao garantir essa presença, foi ativa nos

primórdios da orientação religiosa do filho, assumindo assim papel fundamental.

O caso de Cândida é apenas um a ser mencionado. Participar das orações em família;

estar sempre presente nos atos da Igreja era apenas o início do processo para a carreira

eclesiástica. Entretanto, era nesse início, direcionado pela mãe, a boa-educadora, que se

acreditava estarem os pilares da religião e, consequentemente, a base dos preceitos religiosos

do futuro sacerdote.

Ana Maria do Nascimento12

, por sua vez, era mãe de dois padres - Jerônimo Pereira de

Carvalho e João Pereira de Carvalho. Além de Jerônimo e João, Ana Maria teve mais treze

filhos, sendo uma já falecida, conforme seu testamento. No testamento de seu segundo

marido, Manoel Pereira do Amaral, presente no processo de inventário13

, além de ser

nomeada a primeira testamenteira, foi designada também para tutora dos filhos menores.

Apesar de não assumir a tutoria expressada por Manoel, como demonstra alguns processos

existentes no inventário, Ana Maria provavelmente teria “as boas qualidades e capacidade”

para tal.

Ser indicada pelo marido para tutora dos filhos era sinal de estima e confiança na

capacidade na esposa. Ana Maria provavelmente foi merecedora de tais aspectos, sendo boa

mãe, zelosa e preocupada com a educação moral dos filhos. Fato é que, dos nove filhos do

primeiro casamento, dois foram ordenados padres, além dos outros filhos terem todos patentes

militares quando homens ou receberem a distinção do pronome “dona” para as mulheres.

Além disso, como consta da informação presente no inventário de Manoel, Ana Maria

teria sido administradora da Capela de Nossa Senhora da Conceição do Porto Real, Termo da

Vila de São João del-Rei. A administração de uma capela, além de representar uma

possibilidade de distinção social, poderia exercer bastante influência no cotidiano religioso da

família. Apesar de não constar na documentação quando teve início essa administração, é

possível pensar no peso dessa expressão religiosa, desse sinal exterior de uma religiosidade no

9

convívio familiar. Os padres João e Jerônimo, apesar de serem filhos do primeiro matrimônio,

conviveram com os preceitos católicos da mãe, podendo vivenciar com a mesma os diferentes

ritos da religião.

Através da análise dos testamentos, inventários e dos processos De Genere vitae et

moribus é possível perceber pequenos indícios que demonstram os cuidados e atitudes

dispensadas pela mãe na educação religiosa dos filhos. Sejam a partir de pequenos vestígios,

como os oratórios, breviários ou a participação com o filho nos atos religiosos, ou ainda

assumindo funções “nobres” como a administração de espaços contemplativos, esses sinais

permitem conjeturar a preocupação da mãe em tornar real a intenção da família em ter um

membro religioso. Nesse sentido, assumindo sua autoridade no seio familiar, é possível

perceber que a mulher, especialmente aquela pertencente à elite, à luz dos interesses da

família regidos pelo pai, buscou sim atender as determinações do seu período – ser mãe,

preocupada com a educação e direcionamento dos filhos.

FONTES:

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Inventário de Esmenia Joaquina de Mendonça. AHET2/SJDR/IPHAN, cx158, 1855.

Inventário de Manoel Pereira do Amaral. AHET2/SJDR/IPHAN, cx474, 1771.

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1734.

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Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana (AEAM). Armário 12. Pasta 224.

Testamento de Felícia Barbosa da Silveira. AHET2/SJDR/IPHAN, cx131, 1820.

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1 Dentre elas pode-se citar, por exemplo, a Igreja, a imprensa, a literatura, as escolas, etc.

2 LIMA (2007); JINZENJI (2008); OLIVEIRA (2008), GOUVÊA (2003); ALGRANTI (1993); DUARTE (1999); SILVA

(1977); ADÃO (1995), etc. 3 BADINTER Apud ABRANTES (2004).

4 Apenas como exemplo, é possível citar Nísia Floresta Brasileira Augusta (1810-1885). Autora de diferentes

títulos, professora e fundadora de colégios, Nísia, assim como outras mulheres, contribuíram para a difusão da concepção ideal de mulher, educadora e zelosa por seus filhos, conscientes de sua obrigação. Em sua obra Conselho à minha filha citada por Duarte (2005, p.156) Nísia destaca que “Se há no mundo um título que enobreça à cabeça, é sem dúvida o de ser mãe; é ele que lhe dá uma verdadeira importância na sociedade. Feliz aquela que o sabe dignamente preencher sentido toda a sua grandeza, todas as suas obrigações! Doces obrigações, cujo exercício tanto ameniza o fragoso caminho da vida e faz suportável o peso seu à triste, que a desgraça oprime!” 5 Por educação moral, já no século XVIII, entendia-se “duas dimensões: a civil e a religiosa, ambas como parte

da formação para a civilidade” (Fonseca, 2009, p. 34). 6 Assim é o que destaca o periódico são-joanense O Mentor das Brasileiras em seu número 18 de 19 de março

de 1830. Para os redatores “Um dos principais deveres de quem se incumbe da educação da tenra mocidade é a instrução religiosa; pois é a Religião que firma o coração humano nos nobres sentimentos (...). A educação religiosa, isto é, o conhecimento dos princípios fundamentais da Religião Católica Romana deve-se imbuir nos tenros anos das meninas; porque neste tempo ainda se não encontram muito obstáculo a vencer, e antes os ânimos se acham bem dispostos para receber a doutrina mais pura (...).” Apud Lima (2007, p.44). Grifos meus. 7 Termo utilizado para referenciar as mães biológicas.

8 Testamento de Felícia Barbosa da Silveira. AHET2/SJDR/IPHAN, cx131, 1820.

9 Inventário de Esmenia Joaquina de Mendonça. AHET2/SJDR/IPHAN, cx158, 1855.

10 Testamento de Mariana Eufrásia de Paiva. AHET2/SJDR/IPHAN, cx99, 1831.

11 Processo De Genere Vitae et Moribus do padre Aureliano Procópio Lopes, 1860. Arquivo Eclesiástico da

Arquidiocese de Mariana (AEAM). Armário 12. Pasta 224. 12

Inventário de Ana Maria do Nascimento. AHET2/SJDR/IPHAN, cx171, 1809. 13

Inventário de Manoel Pereira do Amaral. AHET2/SJDR/IPHAN, cx474, 1771.