Upload
xico-de-paula
View
1.304
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
UNIVERSIDADE DA REGIÃO DA CAMPANHA
CENTRO DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO, COMUNICAÇÃO E ARTES
CURSO DE LETRAS: PORTUGUÊS - ESPANHOL
ESTUDOS MONOGRÁFICOS
O PRECONCEITO LINGÜÍSTICO NO PROCESSO DE
APRENDIZAGEM DOS ALUNOS DO ENSINO FUNDAMENTAL
ISABEL CRISTINA PEREZ DUARTE
Bagé, RS2006
UNIVERSIDADE DA REGIÃO DA CAMPANHA
CENTRO DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO, COMUNICAÇÃO E ARTES
CURSO DE LETRAS: PORTUGUÊS - ESPANHOL
ESTUDOS MONOGRÁFICOS
O PRECONCEITO LINGÜÍSTICO NO PROCESSO DE
APRENDIZAGEM DOS ALUNOS DO ENSINO FUNDAMENTAL
ISABEL CRISTINA PEREZ DUARTE
Monografia apresentada ao Curso de Letras da Universidade da Região da Campanha, como requisito parcial para a conclusão de curso.
Orientadora: ProfªAda Maria M. Guimarães
Bagé, RS2006
1
Dedico este trabalho a Marcos, meu marido, e a Gustavo, meu filho.
2
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus pela vida, e por esta ter me proporcionado todas as alegrias e
satisfações que poderia desejar.
Agradeço à minha família, em especial a minha mãe, pelos sacrifício e empenho para que eu pudesse alcançar
meus objetivos.
A meu professor Otto Carvalho Filho, pelo carinho e dedicação.
De forma muito especial, agradeço à coordenadora do curso,
Professora Ada Maria M. Guimarães, pelo seu empenho, dedicação e compreensão.
3
Há que se educar o educando, educar o educador e educar os meios educativos.
Corina Dotti
4
RESUMO
Este trabalho é uma revisão bibliográfica que aborda o preconceito lingüístico e sua relação com a aprendizagem no ensino fundamental, a partir dos estudos realizados por vários pesquisadores e estudiosos do assunto, destacando a importância da valorização dos conhecimentos lingüísticos da sociedade em que o indivíduo se insere. Revela a importância do respeito às variações lingüísticas de fala do aprendiz e o papel da escola e do professor na busca de uma relação dessa linguagem com a linguagem pura ou culta, destacando que este última não pode ser tomada como norma padrão em detrimento do que o aluno apresenta, sob pena de estigmatização dos conhecimentos próprios de cada cultura. Finalmente, destaca que a norma culta, determinada pela Gramática Normativa, deve ser ponto de referência e não objetivo precípuo no ensino da Língua Portuguesa na escola.
Palavras-chave:
Preconceito lingüístico, norma culta, gramática normativa, linguagem, lingüística.
5
SUMÁRIO
RESUMO .............................................................................................................. 5
RESÚMEN ............................................................................................................ 6
INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 9
1 O PROBLEMA EDUCACIONAL BRASILEIRO ............................................... 12
1.1 Desafios atuais da educação ...................................................................... 12
1.2 Educação moderna e os PCNs ................................................................... 13
2 PRECONCEITO, DISCRIMINAÇÃO, CULTURA E COMUNICAÇÃO ............. 17
2.1 Preconceito ................................................................................................... 17
2.2 Uma visão de preconceito - povos indígenas ........................................... 18
2.3 Variação lingüística na comunicação ........................................................ 20
2.3.1 Comunicação .............................................................................................. 20
2.3.2 Variação lingüística ..................................................................................... 21
3 PRECONCEITO LINGÜÍSTICO: UMA ABORDAGEM ESCOLAR ................. 24
3.1 Linguagem na visão sociolingüística ........................................................ 24
3.2 O Preconceito Lingüístico .......................................................................... 25
3.3 Preconceito Lingüístico na Legislação ..................................................... 31
3.4 A escola, o livro didático e o preconceito ................................................. 34
3.5 Os PCN, o RCNE/Indígena e o preconceito .............................................. 35
6
3.6 Pluralidade Cultural .................................................................................... 36
3.7 O Tratamento dos livros à questão Indígena e ao Preconceito ............. 38
3.7.1 O preconceito aos povos indígenas ...................................................... 38
3.8 O preconceito lingüístico e o papel da escola ........................................ 39
3.8.1 Gramática Normativa e o ensino escolar da língua .................................. 39
3.8.2 Escola e livro didático – desmistificando o preconceito ............................ 43
3.8.3 Refletindo a Prática Escolar ...................................................................... 45
DISCUSSÃO E CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................... 47
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................. 54
7
INTRODUÇÃO
Este trabalho é baseado na convicção de que a escola e o livro didático são
referências muito fortes sobre o preconceito lingüístico e o não-lingüístico na
formação de um indivíduo. Propõem-se apresentar que a escola, na pessoa do
professor e do sistema de ensini, e o livro desempenham um papel fundamental no
questionamento de preconceitos que permeiam sociedade atual, mostrando a
importância e o alcance de um trabalho didático durante a vida escolar primária.
O preconceito não é algo “natural”, o que tornaria o seu combate inútil, mas
sim um comportamento aprendido. O preconceito é uma “tendência presente em
determinados agrupamentos humanos, mas não algo constitutivo da própria
natureza humana” (GRUPIONI, 1995:485). Percebe-se então, que o professor, o
livro didático, a escola podem ser capitais na cristalização ou na subversão do
preconceito.
É no período escolar que as crianças recebem informações sobre outros
povos e outras culturas, muitas vezes sendo o único momento em que tomam
contato com culturas diferentes. Além disso, diz o autor, o livro didático e a figura do
professor constituem uma autoridade para os alunos e as alunas. Daí a importância
8
de se ter clara a abordagem que se fará do tema em sala de aula, da escolha do
material didático e da preparação dos professores.
O livro didático, por ser importante meio de educação, e ainda hoje muito
utilizado, muitas vezes encerra uma ideologia que desenvolve o próprio preconceito,
seja ele lingüístico, seja ele ideológico, servindo para exaltar ou simplesmente tomar
como “medida padrão” um tipo de linguagem que prima pela forma e estética, sem
levar em consideração os padrões regionais e as particularidades de cada povo, de
cada cultura. Quando isto é levado em consideração, é para tornar claro que este
linguajar popular está “fora dos padrões normais” e assim deve ser tratado.
Por isso, esse trabalho procura responder ao seguinte questionamento:
“Como o preconceito lingüístico, determinado pela escola e pelo livro, pode
interferir no processo de aprendizagem dos alunos do Ensino Fundamental,
enquanto não considera a cultura e as particularidades de cada região e de cada
povo?”
Para isso, determinou-se como objetivo geral deste estudo analisar o
preconceito lingüístico e suas interferências no processo de aprendizagem dos
alunos do Ensino Fundamental.
São objetivos específicos deste estudo:
- Analisar o fracasso escolar nas escolas de ensino fundamental;
9
- Comparar os conceitos de preconceito lingüístico na escola;
- Verificar como se processa a ideologia nos livros didáticos comparando com
o preconceito lingüístico;
- Constatar as relações entre cultura, preconceito e discriminação.
- Analisar as interferências do preconceito lingüístico no processo de
aprendizagem.
10
1 O PROBLEMA EDUCACIONAL BRASILEIRO
1.1 Desafios atuais da educação
Os desafios da educação brasileira, na verdade, são diretamente
proporcionais às dimensões continentais do território do país. Se é um fato
auspicioso a verificação de que já foram atendidos mais de 5 milhões de brasileiros
pelo extinto Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral), e mais 10 milhões por
outros programas de alfabetização subseqüentes, não se pode dormir com
tranqüilidade quando se sabe que cerca de 5 milhões ainda permanecem
analfabetos, sem a igualdade de oportunidades educacionais que a Constituição
Federal de 1988 garante a todos os brasileiros.
Com tanta disparidade nos caminhos da educação, é normal que existam
também divergências quanto ao emprego da língua-mãe, até porque o Brasil é um
país continental e, nessa continentalidade os costumes, falas, culturas são
diferentes, diversificados e incrementam vocabulários e tendências de outros povos,
principalmente nos locais de fronteira. No entanto, a escola é responsável por
atribuir a essa diversidade cultura uma importância que deve ser passada ao aluno
como forma de conhecimento e entendimento das linguagens pátrias.
11
1.2 Educação moderna e os PCNs
Fontoura (1982, apud BRITO, 2002) aponta alguns princípios da escola
modernizada (escola renovada), segundo os quais a mesma deve se fundamentar:
a) a educação deve estar fortemente ligada à vida, segundo o que a finalidade
da escola não é dar o programa, não é dar instrução, mas a vida, devendo estar
conectada aos problemas do mundo, voltando-se às coisas que vão ajudar o
indivíduo a viver melhor após o período escolar;
b) a escola renovada dá educação integral, segundo o que a escola deve se
preocupar com uma educação que abranja as estruturas científicas, artística,
política, social, econômica e religiosa;
c) a escola deve ser uma sociedade em miniatura, segundo o que a escola
deve reproduzir em sei meio a vida social da comunidade, em que haja, inclusive,
um trabalho em equipe;
d) participação ativa do aluno na sua educação e na vida da escola, segundo
o que, continuando o aspecto anterior (escola-sociedade), o aluno passa de ser
impassível a atuante na escola como elemento participativo nas aulas e nas
atividades nela desenvolvidas;
e) entrelaçamento da técnica com o sentido afetivo e espiritual da escola,
segundo o que a escola não deve ser um lugar frio, rígido, mas um ambiente de
12
comunhão de idéias e, como diz o autor, um pouco escola, um pouco lar e um pouco
templo;
f) substituição da força pela compreensão e pelo amor, segundo o que é
necessário que o aluno, para participar, goste da escola, sinta-se bem e, para isso, é
preciso que tenha com professores, direção, funcionários, uma relação de carinho,
substituindo o castigo pela atenção, pelo amor.
De acordo com os PCN (1997), em Língua Portuguesa, os objetivos do
Ensino Fundamental podem ser resumidos da seguinte forma:
1. Expressar-se em diferentes situações;
2. Saber expressar-se de diferentes maneiras;
3. Conhecer e respeitar as variedades lingüísticas do português falado;
4. Saber distinguir e compreender o que dizem diferentes gêneros de
texto;
5. Entender que a leitura pode ser uma fonte de informação, de prazer e
de conhecimento;
6. Ser capaz de identificar os pontos mais relevantes de um texto,
organizar notas sobre esse texto, fazer roteiros, resumos, índices e
esquemas;
7. Expressar seus sentimentos, experiências, idéias e opções individuais;
13
8. Ser capaz de identificar e analisar criticamente os usos da língua
como instrumento de divulgação de valores e preconceitos de raça,
etnia, gênero, credo ou raça.
Em vez do ensino tradicional, que muitas vezes alimenta a falsa idéia de que
o português é uma língua difícil, Kramer (1999) salienta que o todo o professor deve
ter bem claro como seus alunos refletem variações lingüísticas que representam sua
origem regional, de gênero (variação segundo o sexo), etária (varia de acordo com a
idade) e sócio-econômica. Essa proposta dos PCN, que surgiu da Lingüística, traz
um respeito maior à diversidade social e regional dos estudantes, tentando, assim,
encontrar um caminho para a democratização do ensino.
Para Belinchón (1993), à medida que a criança avança na escolarização, as
exposições orais, principalmente na apresentação de trabalhos, tornam-se mais
comuns em sala de aula. Mas são poucas as escolas que costumam ensinar como
falar com fluência em situações públicas, e não deveria ser assim. A linguagem oral
apresenta dificuldades tanto para quem produz (clareza) quanto para quem a recebe
(compreensão). As escolas deveriam tratar da expressão oral desde as séries
iniciais, explorando mais as variações lingüística, justamente por ser o país dos
tamanho que é e portador de uma variação cultural muito grande, que recebe
influência de vários outros povos, culturas e linguagens.
Os alunos devem terminar a 4ª série do ensino fundamental dominando a
linguagem de maneira eficaz. Em outras palavras, conforme Frostig (1984), eles
devem ser capazes de produzir e interpretar textos, tanto para as necessidades do
14
dia-a-dia – escrever um recado, ler a instrução de uso de um eletrodoméstico –
como para ter acesso aos bens culturais e à participação plena no mundo letrado,
entender o que é dito num telejornal e ler um livro de poesias. Para isso, é preciso
conhecer e dominar determinadas variações que a própria língua, em sua evolução
e contemporaneidade, apresenta.
Segundo Garton (1994), a tradição ensina: alfabetizar é tratar da linguagem
escrita e lecionar a língua pátria; é treinar os alunos a representar graficamente a
fala pela combinação das letras do alfabeto. Na verdade, é muito mais do que isso.
Falar e escutar, além de ler e escrever, são ações que permitem produzir e
compreender textos, ainda que estes não subscrevam à língua pátria na sua
concepção maior, isto é, não obedeça à Lingüística Aplicada Pura. Cabe à escola
desenvolver também a linguagem oral de seus alunos. Aprende-se a falar fora dos
bancos da escola, mas na sala de aula é possível mostrar as falas mais adequadas
e eficientes nas diferentes situações cotidianas.
15
2 PRECONCEITO, DISCRIMINAÇÃO, CULTURA E COMUNICAÇÃO
2.1 Preconceito
Inicialmente é preciso definir preconceito e discriminação, através dos
conceitos da Antropologia. Segundo a Enciclopédia Internacional de Ciências
Sociais (apud GRUPIONI, 1995:484), o preconceito é uma “opinião não justificada,
de um indivíduo ou grupo, favorável ou desfavorável, e que leva a atuar de acordo
com esta definição”. Para o autor (p. 484), o preconceito gera a discriminação, que é
o “tratamento desfavorável dado arbitrariamente a certas categorias de pessoas ou
grupos, que pode ser exercido de forma individual ou coletiva, sobre um indivíduo ou
um grupo de pessoas”.
Uma das causas do preconceito é o fato de que o indivíduo percebe o mundo
através das grades de sua cultura, que pode ser assim definida: “conjunto de
símbolos compartilhado pelos integrantes de determinado grupo social e que lhes
permite atribuir sentido ao mundo em que vivem e às suas ações” (TASSINARI,
1995:34). Além disso, toda a cultura é dinâmica, pois a pessoa humana está sempre
interagindo com o mundo em que vive, criando e alterando seus símbolos. A cultura
16
está ligada à história particular de cada grupo social e, portanto, não existe uma
cultura “atrasada”, “primitiva”.
Também não se pode pensar que haja estágios determinados pelos quais as
culturas têm de passar, tal como as noções de cultura “primitiva” e “avançada”
(tomando-se por base cultura própria para parametrizar as outras, ou seja: são
criados preconceitos). As culturas estão em permanente transformação, buscando
novas interpretações das novas realidades que se apresentam e, “ao passarem por
transformações, continuam diferentes umas das outras” (TASSINARI, 1995:34).
Ora, esse conjunto simbólico específico, que permeia todas as ações
humanas, só faz sentido dentro do grupo social a que pertence. As explicações dos
fenômenos que ocorrem no mundo são particulares desse grupo, de sua cultura;
portanto, não podem ser generalizadas. Quando se toma os próprios pressupostos
para entender ou julgar outra cultura, outro grupo, é possível adotar uma atitude
etnocêntrica, preconceituosa. Como diz Luís Donisete B. Grupioni (1995:485):
Quase sempre, temos uma valorização positiva do nosso próprio grupo, aliado a um preconceito acrítico em favor do nosso grupo e uma visão distorcida e preconceituosa em relação aos demais. Precisamos, assim, perceber que somos uma cultura, um grupo, e mesmo uma nação, no meio de muitas outras.
2.2 Uma visão de preconceito - povos indígenas
Os povos indígenas têm sido, desde a chegada dos colonizadores europeus,
vítimas de preconceito. Da idéia de habitantes do paraíso, passando pelo purgatório
até chegar à idéia de condenados do demônio, os povos indígenas são vistos ora
17
como o “bom selvagem” ora como o “matuto traiçoeiro”. Suas especificidades são
ignoradas e eles são tratados genericamente por índio, como se todos os povos
falassem a mesma língua, partilhassem as mesmas experiências históricas, enfim,
como se houvesse uma única “cultura indígena”.
Segundo dados da FUNAI (RODRIGUES, 2003), há no Brasil, atualmente
cerca de 206 povos indígenas, falando 180 línguas diferentes, ocupando regiões
muito diversas (número que pode impressionar, à primeira vista, mas muito reduzido
se comparado às estimativas que se fazem quando da época da chegada dos
portugueses). Como estes povos indígenas representam cerca de 0,2% da
população total brasileira (portanto, uma minoria social), eles ficam à margem de
direitos fundamentais a todos os cidadãos e de seus direitos específicos, previstos
na constituição.
A imprensa só dá informações sobre os povos indígenas quando de datas
comemorativas ou quando há algum conflito por terras. Além disso, destaca o
mesmo autor, a grande maioria dos meios de comunicação ainda insiste em tratar os
povos indígenas pejorativamente de “tribos”, remetendo à concepção de povos
“primitivos”. Quando se fala em índio, a imagem que ainda se faz é de um indivíduo
nu, ornamentado com penas e desenhos pelo corpo e que fica dizendo “uga! uga!”.
Reconhecem-se as sociedades indígenas pela falta: falta de roupas, de instrumentos
tecnológicos, falta de “civilização”, de “cultura”.
Os índios são vistos como parte integrante da natureza e, como tal, devem
figurar como exposição nos museus de História Natural. Essa associação do “índio”
18
genérico à natureza é feita de modo a legitimar a dominação do não-índio, que
explora a natureza em nome do progresso (portanto, explora os povos indígenas em
nome desse mesmo progresso). Outra visão preconceituosa é a do “índio-criança”,
na verdade um outro modo de subestimar e de dominar esses povos, que querem
seu reconhecimento e a afirmação de suas diferenças.
O conhecimento que se possui desses povos são fragmentados e superficiais,
sequer sabemos seus nomes ou onde se localizam. Se houver necessidade de
conhecer mais sobre esses povos, deve-se recorrer a uma parca bibliografia,
confinada aos muros das universidades e a algumas ONG’s (organizações não
governamentais). Ainda assim, corre-se o risco de encontrar boa parte de
informações preconceituosas e/ou erradas.
Porém, mais que um espaço para essas informações, é necessário um
espaço para que os próprios povos indígenas falem de si mesmos. Como aponta
Ricardo (1995:29), “há pouco canais e espaços para a expressão diretamente
indígena no cenário cultural e político do país”. Portanto, não se tem acesso às
informações e às culturas desses povos que não sejam aquelas filtradas pela grade
cultural, em especial da mídia.
2.3 Variação lingüística na comunicação
2.3.1 Comunicação
A comunicação humana é um processo que envolve a troca de informações.
Pichón-Rivière (1995:35) ressalta:
19
Aquilo que o homem tem de mais primitivo e mais característico é a sua necessidade imperiosa de estar em permanente comunicação com as ouras pessoas, poderíamos dizer que até inventa os sonhos para poder se comunicar de noite e evitar, desse modo o sentimento de estar ‘incomunicado’. Sente necessidade de criar personagens para poder se comunicar e viver seus dramas durante a noite de um modo mais ou menos controlado e administrado por ele. [...] Quando perde a comunicação com o grupo aparece sentimento de solidão e desamparo [...].
A língua, segundo Brito (2003, apud VIANA, 2004:23), é um sistema de
símbolos pelo qual a linguagem se realiza. Não se confunde, portanto, com a
linguagem, sendo somente uma parte determinada e essencial dela,
indubitavelmente. É, ao mesmo tempo, um produto social da faculdade de
linguagem e um conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social
para permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos. A língua se caracteriza
como ato exterior ao indivíduo que não pode criá-la nem modificá-la individualmente,
por ela é parte social da linguagem, pertencente à comunidade lingüística como um
todo.
Por outro lado, reforça Viana (2004), a fala é a faculdade de utilizar recursos
expressivos oferecidos por uma língua e compreende os fatos lingüísticos de
qualquer tipo efetivamente realizados pelos falantes. O desenvolvimento dessa
faculdade pressupõe um vasto conjunto de sons, com significados próprios que, ao
serem combinados numa certa ordem, permitem ao falante comunicar-se com outros
indivíduos.
2.3.2 Variação lingüística
Assim como existem culturas diferentes no Brasil, a língua também não é
idêntica em todas as suas manifestações. De acordo com Marcuschi (1999),
20
nenhuma língua consegue manter-se rigorosamente a mesma numa grande
extensão territorial, evoluindo com o tempo, se transformando e adquirindo
peculiaridades próprias em função de seu uso por comunidades específicas. O autor
esclarece:
A língua é um fenômeno cultural e histórico fundado numa atividade social e cognitiva que varia a longo do tempo e de acordo com os falantes; a língua se manifesta no uso e é sensível ao uso. É variável, mutável, heterogênea e sempre situada em contextos de uso (MARCUSCHI, 1997:140).
Sendo assim, não existe uniformidade nas línguas, apresentando estas
variações de acordo com o ambiente, a cultura, a época e a classe social a que
pertencem os falantes. São as chamadas variações ou variedades lingüísticas.
Por isso, falantes de diferentes regiões do país mostram diferenças no uso da
língua (variação geográficas ou diatópicas), bem como falantes que ocupam
diferentes lugares na estrutura social (variação diastrática), ou que pertencem a
gerações diferentes, ou mesmo falantes que são de sexo diferente. Essa diversidade
observada de falante para falante, chamada dialetal (de dialeto), não é a única que
ocorre.
De acordo com Bagno (1999), a língua varia ainda em outro dimensão, no
interior de um dialeto, em função das circunstâncias específicas em que se realiza o
ato da fala: de acordo com o canal de comunicação, conforme o grau de intimidade
existente entre os interlocutores, conforme o assunto tratado, o local em que ocorre
a interação. Diferentes recursos da língua podem ser utilizados conforme o falante
esteja se comunicando oralmente ou por escrito, conforme a situação de fala permita
21
um estilo mais informal ou exija uma linguagem mais formal (variação estilística ou
diafásica).
Nem mesmo individualmente é possível afirmar que o uso da língua seja
uniforme, pois dependendo da situação, uma mesma pessoa pode empregar
diferentes variedades de uma só forma da língua. Cada falante atua de acordo com
certos comportamentos lingüísticos consoantes em sua comunidade e eleitos como
ideais para comunicar-se. É a formação discursiva que determina o emprego e a
significação das palavras (BORTONI-RICARDO, 1998).
22
3 PRECONCEITO LINGÜÍSTICO: UMA ABORDAGEM ESCOLAR
3.1 Linguagem na visão sociolingüística
Por muito tempo a diversidade lingüística foi pensada como um problema e
não como um recurso constitutivo da linguagem. Desse modo, diz Possenti (1998),
foram privilegiadas as noções do certo e do errado em termos dos usos lingüísticos
dos falantes. No entanto, com o surgimento de estudos na área da sociolingüística,
percebeu-se o caráter dinâmico e dialógico da língua, quando relacionada a fatores
extralingüísticos, tais como a idade, o sexo, origem étnica, padrão de escolaridade,
entre outros.
De acordo com Bortoni-Ricardo (1998), o objetivo primordial da
sociolingüística é o estudo da linguagem em relação à sociedade, a fim de
sistematizar a variação lingüística. Nesse sentido, considera-se que o sistema da
língua não é homogêneo, mas heterogêneo e dinâmico. Os indivíduos são
socialmente diversificados em função dos vários papéis sociais que a sociedade lhes
impõe e das expectativas de padrões de comportamento que são criadas para cada
um deles.
23
Para Bakhtin (2002), a linguagem como fenômeno dialógico por natureza
estabelece uma interação com o social e reflete aspectos extralingüísticos que
influenciam diretamente a diversidade lingüística. A variação é constitutiva das
línguas humanas, ocorrendo em todos os níveis, e esta variação sempre ocorre, e
sempre ocorrerá, independentemente de qualquer ação normativa. Dessa forma,
quando se fala em língua portuguesa, está se considerando uma unidade que se
constitui de muitas variedades.
Em decorrência de existirem variações de maior ou menor prestígio dentro da
sociedade, surge o preconceito lingüístico, ou seja, o julgamento que as pessoas
fazem em relação ao dialeto não-padrão.
3.2 O Preconceito Lingüístico
A idéia de Brasil como país monolingüe ainda é extremamente veiculada, seja
pela escola, seja pelas instituições sociais, políticas ou religiosas, seja pela mídia. A
aceitação de um Brasil monolingüe gera um grave problema, “pois na medida em
que não se reconhecem os problemas de comunicação entre falantes de diferentes
variedades da língua, nada se faz também para resolvê-los” (Bortoni-Ricardo, 1984:
9).
Paradoxalmente, com tantas referências aos povos indígenas na imprensa
devido à comemoração dos “500 anos de Brasil”, ainda houve esquecimento das
línguas indígenas. Também não são levadas em consideração as variantes do
português em contato com idiomas estrangeiros nas colônias de imigrantes e nas
24
fronteiras. Por fim, não são consideradas todas as variantes lingüísticas do
português, sejam regionais ou sociais. Ainda dá status falar “corretamente”, na idéia
ingênua de que a língua dita culta é uma ponte para a ascensão social. Quem não
domina a variante padrão é marginalizado/a e ridicularizado/a: na hora de preencher
uma vaga profissional, num concurso vestibular, numa situação de conferência, na
escola.
Essa variante padrão, no entanto, é reservada a uma ínfima parte da
população brasileira (a mesma que detém o poder econômico e político). Não é
difícil perceber que o modo de falar “correto” é aquele dessa elite e que o modo
“errado” é vinculado a grupos de desprestígio social. Conforme Bagno (1999), existe
no Brasil uma “mitologia” do preconceito lingüístico, que prejudica toda a nossa
educação e nossa formação enquanto cidadãos para além de um termo teórico. O
autor enumera oito mitos que, no conjunto, servem para solidificar e transmitir a
visão (essa sim, errada) de que o Brasil apresenta uma unidade lingüística e que
são os/as brasileiros/as que não sabem falar português corretamente (portanto, não
há dialetos, variantes, mas sim deformações do português).
De acordo com o mesmo autor, o preconceito lingüístico é o lado visível e
palpável da ideologia elitista, oligárquica e conservadora que impera na nossa
sociedade, que está muito longe de ser uma sociedade plenamente democrática,
bastando lembrar que o Brasil é o campeão mundial da desigualdade econômica,
com a pior distribuição de renda do planeta. A gramática tradicional é um dos
tesouros preciosamente guardados pelos defensores dessa ideologia. A língua
25
apresentada ali é a suposta língua de uma elite dominante, que detém o poder
político, a riqueza econômica e o prestígio social dentro da sociedade brasileira.
Quem não pertence a essa elite, ou seja, quem não domina o código
lingüístico dela, é imediatamente acusado de falar uma língua "feia", "corrompida",
"pobre", "estropiada". Toda ideologia, para se manter no poder, gera e alimenta uma
série de preconceitos. Todo preconceito se constitui de um conjunto de mitos, de
fantasias, de idéias prontas que são absorvidas pelo senso comum da sociedade.
Esses mitos se impregnam de tal maneira na cultura de um povo que derrubá-los se
torna uma tarefa quase impossível (BAGNO, 2000).
No que diz respeito ao preconceito lingüístico que existe no Brasil, é possível
detectar vários desses mitos. Aqui estão alguns deles (BAGNO, 2000:37)
- o português do Brasil apresenta uma unidade surpreendente;
- brasileiro não sabe português;
- só em Portugal se fala bem português;
- português é muito difícil;
- as pessoas sem instrução falam tudo errado;
- o lugar onde melhor se fala português no Brasil é o Maranhão;
- é preciso falar assim porque se escreve assim;
- a língua da juventude de hoje é pobre e cheia de erros;
- os estrangeirismos vão acabar com a língua portuguesa;
26
- a televisão está arruinando a língua de Camões;
- é preciso saber gramática para falar e escrever bem;
- o domínio da norma culta é um instrumento de ascensão social.
Do ponto de vista científico, tais afirmações chegam a ser ridículas e só
conseguimos defendê-las a partir de argumentos como: “é certo falar/escrever assim
porque assim ensina a Gramática”, “é correto isso porque em Portugal se faz dessa
maneira”, “essa forma é feia, não soa bem, não é de bom tom”. A eleição de uma
variedade “culta”, padrão tem a ver com causas políticas e históricas, não
lingüísticas strictu sensu. Ao estudar com seriedade e sem preconceitos a língua, o
que percebemos é que todas as variantes são “corretas”, que todos sabem
gramática e que há regularidades no que se convencionou chamar de “erro”
gramatical.
Outro equívoco que contribui para a disseminação do preconceito lingüístico é
restringir à gramática o ensino da língua. Cada vez mais se acredita que o domínio
da gramática normativa garante leitores/escritores críticos e ativos. Essa falsa noção
é, largamente, difundida, tanto na escola, como em inúmeros manuais “inovadores”,
colunas de jornais e programas de rádio e televisão.
Não é preciso muita investigação científica para desmistificar tal noção. Ao
descrever seu objeto de estudo, os gramáticos têm a falsa idéia de que o
compreenderam. Excluem-se, dessa forma, todas as variáveis que interpelam a
linguagem e a constituem (fatores biológicos, sociais, históricos, políticos, culturais,
afetivos etc.).
27
Possenti (1998: 78) esclarece:
A noção mais corrente de erro é a que decorre da gramática normativa: é erro tudo aquilo que foge à variedade que foi eleita como exemplo de boa linguagem. É importante frisar aqui que esses ideais de boa linguagem foram buscados num passado mais ou menos distante, em boa parte arcaizantes. Em matéria de língua, nada seja uniforme. Já os exemplos utilizados pelas gramáticas são mais arcaizantes que os jornais e textos de muitos escritores vivos de qualidade reconhecida.
A partir disso, deduz-se que a gramática normativa não pode corrigir a
oralidade se ela é, em outras palavras, ultrapassada. Não se pode expor que isso é
certo e aquilo é errado, mas é preciso parar, analisar e pesquisar levando em
consideração todas as formas e variedades lingüísticas.
De acordo com Brito (2003:22),
Do ponto de vista lingüístico, não há como fazer um julgamento sobre o maior ou menor valor de uma determinada variedade. Ao contrário, é preciso compreender a questão da variação numa perspectiva histórica e social; é preciso compreendê-la como o reflexo da experiência histórica e social de determinados grupos de falantes. Assim, as variedades lingüísticas são o próprio espelho da diversidade humana, reflexo da heterogeneidade de experiências de grupos sociais, não cabendo, nesta linha de raciocínio, fazer uso de conceitos do tipo certo e errado.
Sendo a fala o uso individual da língua, e sabendo-se que está intimamente
arraigada a todo um processo de ordem cultural, não se pode pensar em variação
lingüística “certa“ e “errada”, sendo apenas todas as variantes “diferentes”. Todas
são perfeitas e completas em si e o que as diferencia são os valores sociais que
seus membros têm na sociedade.
De acordo com Bagno (1999:97), o Brasil, pela sua pluralidade cultural
apresenta com naturalidade, como em toda a sociedade, uma cultura que se impõe
28
dominante e outras que erroneamente se enquadram em posição inferior. A relação
entre tantas culturas acaba resultando na produção de um sentimento de desprezo a
tudo o que não siga exatamente ao que se tem com norma e padrão, apesar de
muitas vezes existir a consciência de todo um processo de imposição de valores
culturais. É imprescindível afirmar que toda forma de rejeição à diferença é
considerado preconceito.
O preconceito lingüístico acaba sendo mais uma arma daqueles que mantêm
o poder em suas mãos. A marginalização lingüística restringe o acesso a
documentos vitais ao cidadão, como a constituição e os contratos. A cidadã ou o
cidadão que não domina a variedade padrão está privado de seus direitos. Dessa
forma, será que se pode, então, considerá-la/o como cidadã/o?
Para Cagliari (1991:82):
O “certo” e o “errado” são conceitos pouco honestos que a sociedade usa para marcar os indivíduos e classes sociais pelo modo de falar (...). Essa atitude da sociedade revela seus preconceitos, pois marca as diferenças lingüísticas com marcas de prestígio e estigma.
Dessa forma, o preconceito lingüístico consiste na relação de intransigência
entre a diversidade lingüística resultante das múltiplas culturas e dos valores sociais
que seus membros têm na sociedade. Talvez este, diz Possenti (1998), seja o mais
grave de todos os preconceitos, pois ao ser intolerante com a fala do próximo, o
agente desta estação estará rejeitando toda a cultura a que o falante está inserido,
assim como, menosprezando toda a sua história de vida.
29
O fato de não existir uma aceitação da diferença torna-se responsável pelo
desenvolvimento de diversos preconceitos sociais e, nessa dimensão, o preconceito
lingüístico apresenta um efeito praticamente impregnado de negatividade, que
poderá se refletir de forma extremamente negativa nas aprendizagens do indivíduo,
em especial em se tratando de crianças que estão em fase de desenvolvimento
cognitivo inicial.
3.3 Preconceito Lingüístico na Legislação
Os PCN de língua portuguesa, assim como os de pluralidade cultural,
reconhecem a existência de variantes lingüísticas, que devem ser respeitadas, pois
não há um modo certo ou um modo errado de falar. Há o reconhecimento da língua
como veículo de transmissão de cultura, de valores, de preconceitos. O problema,
tanto dos PCN1 quanto do RCNEI2, é que a linguagem é tratada com base na noção
de adequação, que sequer é explicada satisfatoriamente. Segundo os documentos
do MEC, saber falar ou escrever bem é falar ou escrever adequadamente, sabendo
qual variedade usar, empregando um determinado estilo, esperando determinadas
reações. Está nos PCN (1997a:31-32):
A questão não é falar certo ou errado, mas saber qual forma de fala utilizar, considerando as características do contexto de comunicação, ou seja, saber adequar o registro às diferentes situações comunicativas. (...) A questão não é de correção da forma, mas de sua adequação às circunstâncias de uso, ou seja, de utilização eficaz da linguagem: falar bem é falar adequadamente, é produzir o efeito pretendido.
O que, porém, não está explícito é que esse “falar adequado”, essa “utilização
eficaz” está ligada/o, na verdade, a um esquema coercitivo, imposto pelo uso 1 PCN - Padrão Referencial de Currículo.2 RCNEI - Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas.
30
burocrático da linguagem. Outro ponto: como ter certeza de que produziremos tal
efeito, se escrevemos ou falamos para pessoas diferentes (os documentos não
afirmam a diversidade cultural?). Como aponta Marcuschi (1997:44):
o principal não parece apenas dizer as coisas adequadamente, como se os sentidos estivessem prontos em algum lugar cabendo aos falantes identificá-los. (...) [a escola] deveria fazer o aluno exercitar o espírito crítico e a capacidade de raciocínio desenvolvendo sua habilidade de interagir criticamente com o meio e os indivíduos.
Para o RCNEI, a língua portuguesa deve ser um instrumento de defesa dos
povos indígenas, respeitando seu ensino de acordo com cada realidade
sociolingüística de cada povo. Numa posição lúcida e democrática, vemos que o
documento prega o ensino da variedade padrão do português como meio de acesso
aos documentos escritos nessa variedade, mas também prega o respeito ao modo
próprio de falar de cada povo, de cada indivíduo: “os povos indígenas têm, cada um
deles, o seu modo próprio de falar a língua portuguesa. (...) Esses modos de
expressão devem ser respeitados na escola e fora dela. Já que também dão
atestados de identidade indígena” (RCNEI, 1998:123).
Aliás, esse respeito deveria ser estendido a qualquer falante de português,
que tem sua origem sociocultural específica, portanto, carregando também uma
identidade própria (por que não respeitar o modo “caipira” de falar? E o modo do
sertanejo nordestino, por exemplo?). Assim, podemos ampliar o papel da escola
indígena que consta no RCNEI para todas as escolas, no que se refere ao ensino da
língua portuguesa: “o papel da escola (...) é possibilitar que o aluno continue a se
expressar na variedade local do português, garantindo, ao mesmo tempo, que ele
tenha acesso ao português padrão oral e escrito” (1998:123).
31
Mas, é com muito espanto que verificamos que o RCNEI é contraditório, pois
espera formar um “bom leitor” e um “bom escritor”, segundo aqueles conceitos de
adequação. Não estaria implícito nesse bom um preconceito? uma forma de coagir
os povos indígenas? como aplicar estes conceitos e usos burocráticos em situações
ditas formais aos povos indígenas? O referencial quer, então, preparar os índios
para, apenas, subir ao palanque, preencher formulários?
Para o MEC, a escola tem de formar um/a falante culto (MARCUSCHI, 1997).
Ele/a é ensinado/a a se expressar em seminários, discursos políticos etc.
Esqueçamos o uso cotidiano da linguagem, o uso em casa, na escola, na rua;
aprendamos a falar adequadamente em situações públicas “formais”. Marcuschi
(1997:45) diz: “trata-se de uma visão essencialmente burocrática da fala enquanto
uma forma de expressão para obter efeitos e resultados”.
Malgrado as posições equivocadas e/ou as posições coercitivas, Marcos
Bagno (2000:37) acredita que os documentos do MEC têm méritos, e declara
concordo com as críticas de Marcuschi aos PCN, sobretudo acerca do conceito de “adequação” que é muito vago no documento do MEC. Tenho enfatizado, porém, os pontos que considero positivos nos PCN porque acredito que, mesmo com falhas, o documento pode ajudar a criar uma postura nova em relação ao ensino da língua. Sobretudo gosto da parte em que o texto deixa clara a existência do preconceito e critica os fomentadores desse preconceito na mídia.
Mas, como o próprio Bagno (1999:19) afirma, “espero que essas boas novas
desçam das altas esferas governamentais e se propaguem pelas salas de aula de
todo o país!”.
32
3.4 A escola, o livro didático e o preconceito
A escola é o lugar das diferenças. Ela já difere aqueles que lá entraram dos
que não têm acesso a ela. Como uma instituição delimitadora, “ela afirma o que
cada um pode (ou não pode) fazer, ela separa e institui” (Louro, 1997:58). Mas, a
escola, assim como a sociedade e a mídia em geral, ainda não coloca à baila os
problemas do preconceito. Tudo se passa como se cada um fosse ausente de
preconceito e trata-se de forma igual indivíduos e grupos de indivíduos das mais
diversas origens sociais e culturais.
Para Cerqueira (2003), a escola insiste na manutenção de uma situação
vivida altamente tradicionalista e que em nada reflete a situação vivida atualmente.
Prova disto é o fato de tratar de forma preconceituosa e estigmatizada a variedade
lingüística utilizada pelo aluno. Tudo o que diz ou escreve, que não está de acordo
com as regras da Gramática Normativa, é visto como errado e na ânsia de a escola
fazer com que aquela adquira a variedade padrão, esquece-se de que se trata de
um ser humano, que fala freqüentemente sua língua, que possui uma experiência de
vida e é oriundo de um contexto social, político, econômico e cultural distinto
daquele vivido no espaço escolar.
Os professores, segundo Viana (2004), ainda não incorporaram em seus
trabalhos as discussões acadêmicas (se é que tomaram contato com elas) e servem
de instrumento à disseminação do preconceito. Todos os problemas e as soluções,
que no meio acadêmico parecem óbvias, não chegam à escola, lugar crucial da
33
expansão ou do combate ao preconceito. É no período escolar que a maioria de
nossas crianças tomam contato com outras culturas e outros grupos sociais. Nesse
rico ambiente de diferenças, o que se detecta é o tratamento preconceituoso, a
desinformação, a discriminação.
A escola se apresenta como uma oportunidade ímpar na discussão de
preconceitos e injustiças sociais. No entanto, é com pesar que se verifica que ela
não é palco de debates, mas sim um palco de marionetes. Essa escolar reproduz,
comandada pelos fios do preconceito e do poder, a noção estereotipada do “índio”
genérico, o mito da unidade lingüística, a exaltação da norma culta como
instrumento de ascensão social, o mito da “democracia racial”. Como instituição
delimitadora, ela pode “fabricar” indivíduos que serão peças dos jogos de poder.
Caberá ao professor a árdua tarefa de elucidar as regras desses jogos aos novos
indivíduos que se formam.
3.5 Os PCN, o RCNE/Indígena e o preconceito
Apesar de apresentarem inúmeros problemas e, por vezes, reiterar
subrepticiamente o preconceito, os PCN (1997b) e o RCNEI (1998) abordam o
problema do preconceito, reconhecendo a existência de uma diversidade cultural e
lingüística no Brasil. No entanto, o conteúdo desses referenciais ainda é
desconhecido da maioria dos professores, que não adotaram as sugestões neles
contidas em suas práticas escolares, ficando apenas confinadas às redomas do
governo.
34
3.6 Pluralidade Cultural
O MEC reconhece que o Brasil possui uma enorme diversidade cultural,
pregando que devemos conhecê-la e respeitá-la. Segundo os PCN (1997b:31) “as
discriminações praticadas com base em diferenças ficam ocultas sob o manto de
uma igualdade que não se efetiva”.
Nos objetivos gerais do volume Pluralidade cultural, orientação sexual (PCN,
1997b) consta que se deve repudiar toda discriminação e valorizar o convívio na
diferença, reconhecer que há sérias desigualdades sociais, mas que esta é uma
realidade passível de mudanças. As 206 etnias indígenas, os/as descendentes de
africanos e os grupos de imigrantes também lá constam, bem como a pessoa do
campo.
O problema que se encontra nos PCN é que as discussões ficam muito no
campo teórico, a despeito de haver uma parte dedicada à efetivação do tema
pluralidade cultural em sala de aula. Segundo o documento do MEC, o desafio que
se coloca é o de “a escola se constituir um espaço de resistência, isto é, de criação
de outras formas de relação social e interpessoal mediante a interação entre o
trabalho educativo escolar e as questões sociais, posicionando-se critica e
responsavelmente perante elas” (PCN, 1997b:52).
Mas ao questionar o “viver” e o “aprender” pluralidade cultural, circunda-se
essa questão sem respondê-la, finalizando com uma frase de efeito: “sem dúvida,
pluralidade vive-se, ensina-se e aprende-se” (PCN, 1997b:57). Os maiores
problemas que os documentos do MEC enfrentam são: apesar de conter inovações
35
e reflexões críticas, eles ainda são um instrumento do poder dominante; seu
conteúdo ainda é desconhecido da maioria de nossos educadores e educadoras.
Interessante notar que os PCN trazem uma crítica (ainda que curta) aos livros
didáticos. Nela, o documento reconhece que os materiais didáticos são,
freqüentemente, veículos de disseminação do preconceito e da desinformação,
citando como exemplo a divulgação da falsa idéia de uma organização e uma cultura
indígenas únicas a todos os povos.
O RCNEI (1998:22) diz que “o Brasil é uma nação constituída por grande
variedade de grupos étnicos, com histórias, saberes, culturas e, na maioria das
situações, línguas próprias”. Mas logo em seguida, o documento afirma que essa
diversidade sociocultural deve ser preservada. Ora, uma cultura, como já se viu, é
dinâmica. Ela não deve ser vista como fixa no tempo, passível de ser preservada.
Outro ponto problemático é a (não) aceitação de que existem nações
socioculturalmente diversas, pois isso comprometeria a noção de Brasil como uma
entidade nacional; tratam-se os povos indígenas por “grupos”. Ponto a favor desse
documento é o fato de (tentar) privilegiar os pontos-de-vista dos próprios índios, pois
é a voz deles que é preciso ouvir. Eles têm a real dimensão dos problemas por quais
passam.
3.7 O Tratamento dos livros à questão Indígena e ao Preconceito
Os livros didáticos trazem sempre uma ideologia que Marilena Chauí (apud
GRUPIONI, 1995), já salientava como sendo a forma determinante de domínio das
36
classes burguesas. Analisando-se algumas informações (não) contidas em alguns
livros didáticos e paradidáticos3, verifica-se como o preconceito é abordado por tais
fontes bibliográficas. Em pesquisa realizada por Fábio Della Paschoa Rodrigues
(2003), realizada na Unicamp, foi dada ênfase ao preconceito lingüístico e ao
preconceito contra os povos indígenas. Dessa forma, o autor especificou mais a
pesquisa, viabilizando-a devido ao curto tempo disponível e vinculando-a às
questões do curso.
De antemão, é interessante notar que em todos os livros didáticos não há
uma só referência bibliográfica explícita sobre o problema indígena, sobre a
educação (escolar) indígena ou ainda alguma literatura da sociolingüística.
3.7.1 O preconceito aos povos indígenas
A análise do corpus levantado da referida pesquisa atesta o que diversos
estudiosos vêm reclamando: os materiais didáticos e paradidáticos brasileiros
trazem informações etnocêntricas ou preconceituosas, mostrando os povos
indígenas como “figuras” do passado. Têm-se dessa forma, uma visão de que os
povos indígenas não têm história (e, portanto, sua cultura morreu, sufocada pela
cultura dita branca). Como aponta Grupioni: “ao jogar os índios no passado, os livros
didáticos não preparam os alunos e as alunas para entender a presença dos índios
no presente e no futuro” (1995:489). Há, além disso, uma simplificação e uma
redução dos fatos históricos, nos quais os índios raramente estão presentes.
3 O corpus analisado é utilizado numa escola particular de classe média/média alta que atua desde a Educação Infantil até o Ensino Médio no interior de São Paulo. As referências bibliográficas completas encontram-se no final do trabalho.
37
Geralmente, a figura indígena só aparece no “descobrimento” do Brasil, na
exploração do pau-brasil, no bandeirantismo e nas missões jesuíticas. Há um
enorme vazio após isso e os índios só reaparecem no nosso século “brigando” pelas
suas terras.
3.8 O preconceito lingüístico e o papel da escola
3.8.1 Gramática Normativa e o ensino escolar da língua
A importância de se trabalhar explicitamente com o preconceito lingüístico nos
manuais didáticos pode ser expressada pelo que diz Guacira Lopes Louro (1997:65):
Dentre os múltiplos espaços e as muitas instâncias onde se pode observar a instituição das distinções e das desigualdades, a linguagem é, seguramente, o campo mais eficaz e persistente - tanto porque ela atravessa e constitui a maioria de nossas práticas, como porque ela nos parece, quase sempre, muito ‘natural’. Seguindo regras definidas por gramáticas e dicionários (...) supomos que ela é, apenas, um eficiente veículo de comunicação. No entanto, a linguagem não apenas expressa relações, poderes, lugares, ela os institui; ela não apenas veicula, mas produz e pretende fixar diferenças.
O que se vê, no entanto, é a abordagem assistemática e até mesmo a
omissão da questão. Os manuais, quando se referem às variedades lingüísticas,
deixam transparecer que são peculiaridades da fala, que devem ser evitadas em
situações formais ou na escrita. Apesar da maioria dos livros didáticos não
apontarem mais a fala como o lugar do erro, Marcuschi (1997:45), destaca que ela
não é estudada sistematicamente, o que poderia ser uma atividade relevante para
“analisar em que sentido a língua é um mecanismo de controle social e reprodução
de esquemas de dominação e poder” (p. 43).
38
Percebe-se nos manuais a dicotomia linguagem formal (padrão/escrita) e
linguagem coloquial (variante/fala); há uma clara tendência à valorização da
linguagem formal, ressaltando seu uso em instâncias públicas e como instrumento
de poder. Como se vê, os manuais didáticos adotam o conceito de “adequação”
proposto pelos PCN, ensinando uma língua e uma linguagem desvinculadas da
realidade e preconceituosas.
Pelos manuais analisados por Rodrigues (2003) em sua pesquisa, e
baseando-nos no estudo que Marcuschi (1997) fez de mais de 50 livros didáticos,
pode-se afirmar que a escola ainda se esquece da diversidade cultural e lingüística
de seus alunos e alunas.
Por outro lado, salienta Cerqueira (2003), a escola representada pelo
professor de língua materna, dá mais destaque aos erros cometidos pelo aluno em
detrimento de seus acertos, de sua capacidade inventiva, criativa e de adaptação e
está mais voltada para o ensino-aprendizagem de uma nomenclatura que para o
desempenho lingüístico do aluno.
A Gramática Normativa classifica como agramaticais ou erradas a maioria das
expressões utilizadas na língua oral, já que não refletem as normas gramaticais que
foram estabelecidas a partir do uso da língua consagrado pelos bons escritores.
Câmara Jr. (1994) é categórico ao afirmar que muitos professores têm a ilusão de
que estão ensinando, a partir da técnica da língua escrita, uma fala satisfatória. O
referido autor argumenta que as manifestações da língua escrita são muito diversas
da língua oral; que a escrita não reproduz fielmente a fala.
39
A imposição das normas da língua escrita para a língua falada é uma tentativa
de equiparação das duas modalidades, equiparação esta que não funciona na
realidade, visto que as normas que regem a língua falada são bastante diversas das
que regem a língua escrita. Contudo, os gramáticos tradicionalistas prescindem tal
diferença e tentam impor uma linguagem artificial que em nada reflete a naturalidade
da língua oral, tentando fixar padrão social altamente formalizado como sendo o que
se deve dizer sempre, independente do contexto no qual o falante está inserido
(CERQUEIRA, 2003).
A autora destaca:
A modalidade falada também possui sua gramática e todos os falantes a conhecem, pois se assim não fosse, não se expressariam tão bem em sua língua materna e não teriam discernimento para separar o gramatical do agramatical, o que pode ser chamado de “erro” nessa concepção de gramática, com realizações dos tipos: “me jantar para convidou ele” por “Ele me convidou para jantar”; ou “Estou chovendo” por “Está chovendo” (salvo nas produções poéticas por questão estilística ou realizada por algum estrangeiro). Nenhum falante, em condições normais, produzirá construções desse tipo e não é necessário que nenhuma gramática diga-lhe que está errado (CERQUEIRA, 2003:88).
Os falantes, independente de terem ou não freqüentado uma escola, sabem
identificar se uma construção é bem ou mal construída, se é ou não aceita por
outros falantes. Perini (1997) sustenta a idéia de que as pessoas não se dão conta
de que falam, e falam muito bem a sua língua, utilizando-as para satisfazer suas
necessidades, sem que necessariamente haja explicitação do conhecimento das
normas que regem seu funcionamento.
40
Segundo Bagno (1999), uma das formas de superar o preconceito lingüístico
é reavaliar a noção de erro. Na realidade, ao errarem, as pessoas estão tentando
acertar se valendo de um processo mental chamado analogia, que é a dedução de
regras a partir da comparação de dados conhecidos. Saber usar a língua é encontrar
o ponto de equilíbrio entre dois eixos: o da adequabilidade e o da aceitabilidade.
Possenti (1998:90) afirma que:
O que o aluno produz reflete o que ele sabe (gramática internalizada). A comparação sem preconceito das formas é uma tarefa da gramática descritiva. E a explicação da aceitação ou rejeição social de tais formas é uma tarefa da gramática normativa. As três podem evidentemente conviver na escola.
A escola, no afã de respaldar sua clientela no domínio da norma padrão,
seguindo a tradição grega clássica, se nega a enxergar o potencial lingüístico trazido
pelo aluno, permanecendo no obscurantismo e refletindo o preconceito imposto pela
sociedade. Não é fazer apologia à variedade coloquial em detrimento da culta, em
nome de uma condescendência com aqueles de classe social menos favorecida,
pois seria também um tipo de discriminação ou preconceito lingüístico, além de
subestimar a capacidade do aluno, mas reafirmar a necessidade do respeito à
linguagem que o indivíduo traz ao ingressar na escola.
De acordo com Cerqueira (2003), não se questiona ser ou não papel da
escola promover os conhecimentos imprescindíveis à aquisição do padrão; isto já é
sabido por todos. O que vale ressaltar é que a ela cabe oferecer os subsídios
necessários para que o falante ultrapasse os limites de sua variedade e adquira
aquela tão valorizada socialmente ao mesmo tempo em que este mesmo falante
41
saiba adequar sua linguagem em contextos distintos, sem taxá-la de certa ou errada,
de feia ou bonita.
É de conhecimento geral que há uma variedade que possui maior
aceitabilidade que outras, por ser utilizada pelas classes dominantes, por ser
construída historicamente, adquirindo o status de dialeto “padrão” pelas elites sócio-
econômicas, enfim, por uma série de fatores que, juntos, a elegeram, estabeleceram
e a mantêm em tal posição.
O ensino da língua materna é tido, por parte de alunos e de alguns
professores como uma atividade muito difícil e complexa, fazendo com que haja uma
grande concentração de esforços para a memorização de uma metalinguagem que,
na prática, não capacita nenhum falante no domínio do desempenho lingüístico.
Dessa maneira, o ensino da língua materna está diretamente ligado ao ensino da
Gramática Normativa (PERINI, 1997).
3.8.2 Escola e livro didático – desmistificando o preconceito
A figura do professor ou da professora e do livro didático são verdadeiras
autoridades, que as crianças respeitam. A escola deve ser vista como um espaço de
debates, um pequeno esforço na desconstrução do preconceito. É fundamental,
então, que sejam bem claras as posições teóricas dos professores e da própria
escola, as práticas escolares e o alcance dos trabalhos por estes desenvolvidos.
42
Ao professor (e aos estudantes de Letras, futuros educadores), caberá a
tarefa de explicitar os mecanismos do preconceito e da discriminação, suas formas
praticadas na escola (como o mito da “democracia racial” e da unidade lingüística do
Brasil). É necessário que professores e professoras reconheçam a diversidade
cultural brasileira e a crise no ensino da língua e se dar conta que essa
diversidade/crise está presente na (sua) sala de aula, e não somente no contraste
Nordeste x Sudeste, por exemplo. É preciso “questionar não apenas o que se
ensina, mas o modo como se ensina e que sentidos os alunos dão ao que
aprendem” (LOURO, 1997:64). Para usar o termo de Bagno (1999), é preciso
sabotar o preconceito: “formando-nos e informando-nos”.
É claro que não se pode ser ingênuos, a ponto de pensar que a escola vai
acabar com o preconceito, mas, como diz Louro (1997:86):
Sem alimentar uma postura reducionista ou ingênua - que supõe ser possível transformar toda a sociedade a partir da escola ou supõe ser possível eliminar as relações de pode em qualquer instância - isso implica adotar uma atitude vigilante e contínua no sentido de procurar desestabilizar as divisões e problematizar a conformidade com o ‘natural’; isso implica disposição e capacidade para interferir nos jogos de poder.
Essa atitude vigilante requer, então: uma revisão das fontes bibliográficas e
históricas e, como aponta Louro (1997:64) “atrevidamente é preciso, também,
problematizar as teorias que orientam nosso trabalho (incluindo, aqui, até mesmo
aquelas teorias consideradas ‘críticas’)”; cobrar do Governo a supervisão dos livros e
o apoio à divulgação de informações reais; deixar de reduzir o ensino da língua à
gramática da língua “culta” - ensinar língua portuguesa não é apenas ensinar
gramática normativa; divulgar aos pais e às mães os conhecimentos, as posições
teóricas e explicitar a eles também os mecanismos do preconceito. Finalmente, é
43
necessário ouvir as vozes das minorias: legar aos índios a tarefa de divulgar sua
cultura, deixar o aluno se expressar e expor seus medos e preconceitos, discutindo-
os. Às vezes, o educador esquece de que são essas minorias que têm a real
dimensão do seu problema.
Mas tudo isso tem de realmente acontecer, na prática escolar diária, tem de
sair das rodas de discussões acadêmicas e penetrar na sala de aula.
3.8.3 Refletindo a Prática Escolar
É necessário que se rompam os muros do preconceito nas situações reais da
prática escolar. As problematizações feitas nas universidades e nas ONG’s
continuam confinadas a seus muros (apesar dessa discussão ser velha e óbvia).
Como se preocupa Carlos Franchi num debate com professoras de língua
portuguesa (HUBNER, 1989:157):
é sobre ela [a prática real] que poderemos começar a levantar algumas questões. Um dos lados do problema é a reflexão que podemos fazer a uma certa distância sobre temas (...). Outra coisa é como atuar numa dada circunstância com tais recursos para produzir certas coisas. Essa voz eu não ouvia. Preocupava-me que a voz do pesquisador da Universidade era por demais ouvida.
A partir da reflexão sobre sua própria prática, o professor poderá colocar uma
legenda em seu trabalho, sua base teórica. Há que se ter um movimento contínuo
mútuo entre prática e teoria. É somente com a “crítica ativa da nossa prática diária
em sala de aula” (Bagno, 1999:140) que poderemos concretizar esse (ainda) sonho
do convívio na diversidade.
44
É necessário ouvir os professores, pois apesar de todos os problemas, há
inúmeras experiências muito bem sucedidas, que podem “abalar os jogos de poder”
e que devem ser divulgadas, valorizando a prática escolar, colocando-a em contato
com nossa realidade cultural diversa. E, por fim, não podemos nos esquecer que,
como salienta Rodrigues (2003:17) “todos somos diferentes e, então, uma postura
vigilante contra o preconceito tem de ser contínua, pois estamos a toda hora em
contato com diferenças”.
45
DISCUSSÃO E CONSIDERAÇÕES FINAIS
A apreensão do conhecimento, qualquer que seja a sua modalidade, é
medida pela linguagem, isto é, o conhecimento é passado para o indivíduo através
da linguagem, seja ela falada, escrita, imagética, de sinais, etc. O contato com o
conhecimento é mediado pela linguagem e pelo outro. Portanto, a interação verbal, a
interlocução com o outro é essencial tanto para a constituição e desenvolvimento da
linguagem, quanto para a aquisição de novos conhecimentos.
Freire Costa (1993) destaca que a linguagem se realiza através da língua,
qualquer que seja sua natureza e, portanto, o domínio desta é essencial para a
aprendizagem de uma forma geral. Pesquisas realizadas por Fijalkow (1989, apud
FREIRE COSTA, 1993), mostraram que os alunos que mais fracassaram na escola
foram aqueles que, por um motivo ou outro, tiveram poucas oportunidades de
interagir verbalmente com seus pares e professores.
Dentro de uma mesma língua são importantes as variações, os dialetos. Entre
as variações, existem algumas que são prestigiadas e outras são estigmatizadas.
Acontece que a escola não sabe lidar com essas variações e acaba, como a
sociedade, estigmatizando as variações que se afastam do padrão, como a usada
pelas crianças pobres. Isso pode levar a se calar, prejudicando o seu processo de
comunicação e, como salienta Freire Costa (1993), o seu aprendizado. Sendo o
conhecimento um produto social e sendo a linguagem constituinte do conhecimento,
46
a interação verbal é fundamental nesse processo e as pesquisas já referidas
mostram a relação entre sucesso/fracasso escolar e oportunidades de interação
verbal.
O objetivo da escola é ensinar a variante padrão, cuja apropriação constitui
direito de todos. A apropriação da linguagem padrão não implica, porém, a
estigmatização ou anulação da variante ou dialeto da criança, dialeto este que é sua
língua materna ou primeira língua. Trabalhar com as diferenças significa permitir a
apropriação e uso de duas ou mais variações, a padrão e o dialeto da criança, por
exemplo, em situações específicas.
O professor tem uma importância fundamental nesse processo, pois que
poderá mostrar ao aluno a importância e se adquirir a variante padrão, pois ele vai
precisar dela em várias situações: falar com o diretor da escola, fazer reivindicações,
fazer narrações para determinada platéia, escrever cartas. Em outras situações,
usará seu próprio dialeto, como em conversas informais, diálogos com colegas,
amigos, parentes, brincadeiras, etc.
Como bem destaca Soares (1994:40), “embora um grupo de pessoas que
utiliza a mesma língua constitua uma comunidade lingüística, isto não significa que
essa língua seja homogênea e uniforme”. As diferenciações sociais, em função das
características do grupo a que pertence o falante, ou das circunstâncias em que se
dá a comunicação, leva a variedades dialetais, que podem ocorrer em grupos
caracterizados pela idade, sexo, níveis da fala ou ainda por registro formal ou
coloquial. Completa soares: “A diferença geográfica e social entre segmentos de
47
uma mesma comunidade lingüística, resulta em um correspondente processo de
diferenciação lingüística que pode dar-se nos níveis fonológicos, léxicos e
gramaticais”.
Cagliari (1991) destaca que a escola deve ter respeito aos dialetos dos
alunos, entendendo e ensinando o funcionamento dessas variações, comparando-os
entre si. Para o autor, “(...) A escola, desta forma, não só ensina português, como
desempenha um papel imprescindível de promover socialmente os menos
favorecidos pela sociedade”.
Já Ferreiro (1985:64) diz que “estamos tão acostumados a considerar a
aprendizagem da leitura e da escrita como um processo de aprendizagem escolar,
que se torna difícil reconhecermos que o desenvolvimento da leitura e da escrita
começa muito antes da escolarização”. Essas dificuldades precisam ser rompidas
pelos professores para que se consiga enxergar que é na oralidade e na leitura que
seu aluno trouxe para a escola que as primeiras palavras, as primeiras frases
ganham significado, por menores e mais fragmentadas que sejam.
O docente deve ter muito cuidado ao utilizar qualquer prática pedagógica,
principalmente com aquelas que são dadas de forma repetitiva, fora de um contexto,
ou até mesmo sem nenhuma associação, com uma significação. Quando os
conteúdos apresentados pela escola são seqüenciados e organizados de acordo
com o nível mental da criança e oriundos do meio em que vive, ou seja, das suas
experiências, criam maior interesse, por parte delas, não só em participar das
atividades, mas também em estar sempre aberta para aprender mais.
48
É muito importante que o professor tenha conhecimento das variações
lingüísticas, para saber como trabalhar em meio à grande variedade de dialetos de
seus alunos, promovendo-os assim social e culturalmente. Incentivando a oralidade
de seus alunos e criança neles o respeito pelos diferentes dialetos existentes em
uma língua, produz um ensino mais adequado à realidade de seus alfabetizandos,
promovendo uma melhor aprendizagem.
Para que haja respeito à diversidade na escola, é preciso que todos sejam
reconhecidos como iguais em dignidade e em direito. A escola, no entanto, só aceita
a língua padrão e estigmatiza a fala das classes desfavorecidas. A prática constante
dos professores é a de corrigir qualquer forma, escrita ou falada, que não seja
revista nas gramáticas. E não é apenas corrigir: é corrigir e zombar. E não é de hoje
que a escola age dessa maneira.
Para Possenti (1996), no entanto, o papel da escola é o de ensinar a língua
padrão, uma vez que as crianças adquirem e usam a língua de forma natural, sem
que precisem ser ensinadas, possuindo a sua gramática internalizada. “O objetivo da
escola é ensinar o português padrão, ou, talvez mais exatamente, o de criar
condições para que ele seja aprendido” (p. 18), sem deixar, no entanto, de discutir
os diferentes conceitos de gramática: normativa, descritiva e intenalizada. Considera
ainda que “o papel da escola não o de ensinar uma variedade no lugar da outra, mas
de criar condições para que os alunos aprendam também as variedades que não
conhecem, ou com as quais não têm familiaridade” (POSSENTI, 1996:83).
49
Brito (2003:20) observa que os objetivos gerais do ensino da Língua
Portuguesa para o Ensino Fundamental preconizam um verdadeiro sentido de
educar. “Epistemologicamente, educar significa ‘levar de um lugar para outro’, o que
pressupõe não mudança física, mas mudança de paradigmas, de pensamento.
Temos que sair de uma educação tradicional para podermos alcançar estes
objetivos”.
Para Cagliari (1990:82), a escola tem a necessidade e o dever de mostrar a
riqueza lingüística que existe. Essas variedades devem ser respeitadas e
analisadas, levando o aluno a conhecer todos os potenciais, orientando os pais e
professores quanto a essa evolução lingüística existente no país. Alves (2000:71) diz
que o professor pode ajudar a formar bons leitores como também causar grandes
traumas e que “a iniciação à leitura deve ser uma coisa prazerosa para a criança,
deixando que ela escolha o que ler”.
Pedro Celso Luft (1995, apud BRITO, 2003), ressalta que o aluno de
português é massacrado com muita regra e pouco texto, muita “decoreba” e pouca
compreensão, muito susto e pouco prazer, e que todo esse ensino precisa ser
mudado urgente. Freire Costa (1993) salienta que faz-se necessário o
desenvolvimento da auto-estima do aluno e que essa é uma condição para a
aprendizagem; ele tem que fazer parte do grupo, se sentir útil e valorizado para que
aprenda, organize melhor suas idéias e refaça erros. A complexidade do ler e
escrever só se desenvolve se houver estímulo, autonomia frente à construção do
conhecimento.
50
Bagno (2000) diz que é preciso que a escola viabilize o acesso do aluno à
diversidade de textos, atendendo a uma demanda social. Ensinar a produzir e
interpretar textos inclui, também, ouras disciplinas que não só a Língua Portuguesa,
pois o aluno se defronta com textos em todas as disciplinas. Possenti (1996:84) diz
que “é no momento em que o aluno começa a reconhecer sua variedade lingüística
como uma variedade entre outras, que ele ganha consciência de sua identidade
lingüística e se dispõe à observação das variedades que não domina”.
Assim, pode-se concluir que o preconceito lingüístico determinado pelo ensino
da língua padrão se reflete de maneira determinante na aprendizagem do aluno
como fonte de exclusão, uma vez que ele, ao não dominar formas e regras da
referida língua, determinadas pela Gramática Normativa, sente-se incapaz de
exercer adequadamente o processo de comunicação e, assim, alienado no
desenvolvimento de sua aprendizagem, acabando por ser e sentir-se estigmatizado.
Considerando-se que a maior parte dos alunos que freqüentam a escola vêm
de comunidades que usam tão somente variedades populares da língua, cabe à
escola fazer com que as crianças tenham acesso à norma culta, mas para isso,
precisam dispor de docentes que seja usuários dessa norma, desde que o domínio
da mesma é condição mínima e necessária para criar, na escola, um ambiente
lingüístico adequado a essa aquisição. No entanto, o quadro delineado sobre a
educação no Brasil indica que ao menos 94% das funções docentes são exercidas
por professores que não devem, ser usuários da norma culta. Sem ter em conta as
características sócio-lingüísticas destes docentes e destes novos estudantes, os
programas das escolas, respaldados nas gramáticas normativas e nos livros
51
didáticos adotados, privilegiam o ensino da norma culta desde seu início, nas
primeiras séries.
Vê-se, então, que existe um grande abismo entre o que a escola, por seu
programa e adoção de material didático se propõe e o que realmente tem condições
de oferecer ao aluno. À escola cabe o dever e a tarefa de proporcionar ao educando
o conhecimento das variedades lingüísticas, em especial da norma culta, mas
respeitando as peculiaridades sócio-lingüísticas do mesmo, de forma que ele
desenvolva sua aprendizagem a partir de seu conhecimento prévio, elevando-se, de
forma gradual e progressiva aos padrões que a escola quer que ele atinja.
52
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAGNO, M. Pesquisa na escola. 2. ed. São Paulo: Loyola, 1999.
______. Preconceito lingüístico: o que é, como se faz. São Paulo: Loyola, 1999.
______. Mitos e preconceitos. O Estado de Minas. Belo Horizonte. 18/03/2000. p. 37.
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do Método Sociológico na Ciência da Linguagem. 10. ed. São Paulo: Hucitec, 2002.
BELINCHÓN, M. Alteraciones pragmáticas del lenguaje. Rasgo autista o rasgo psicótico? Madrid, Trotta, 1993.
BORTONI-RICARDO, S. M. Problemas de comunicação interdialetal. Revista Tempo Brasileiro. (78/79):9-32, jan. 1998.
BRITO, L. P. L. À sombra do caos: o ensino da língua x tradição gramatical. 2. ed. Campinas: ALB/Mercado das Letras, 2003.
CAGLIARI, L. C. Alfabetização e lingüística. São Paulo: Scipione, 1991.
CÂMARA Jr., J. M. Estrutura da línguas portuguesa. Petrópolis: Vozes, 1994.
CERQUEIRA, J. S. Erro: incapacidade ou tentativa de acerto? Revista Sitientibus. Feria de Santana, (29):85-94, jul./dez., 2003.
FERREIRO, E. Reflexões sobre alfabetização. 23. ed. São Paulo: Cortez, 1985.
FREIRE COSTA, D. A. Fracasso escolar: diferença ou deficiência. Porto Alegre: Kuarup, 1993.
FROSTIG, M. Problemas de aprendizaje en el aula. Prevención y terapéutica. Madrid, Editorial Médica Panamericana, 1984.
GARTON, A. F. Interacción social y desarrollo del lenguage y la congnición. Barcelona, Paidós, 1994.
GRUPIONI, L. D. B. Livros didáticos e fontes de informações sobre as sociedades indígenas no Brasil In: LOPES DA SILVA, A. e GRUPIONI, L.D.B. (orgs.). A temática indígena na escola: novos subsídios para professores de 1º e 2º graus. Brasília: MEC/MARI/UNESCO, 1995. p. 481-493.
HUBNER, R. M. (org.). Quando o professor resolve: experiências no ensino de português. São Paulo: Loyola, 1989.
53
KRAMER, S. Propostas pedagógicas ou curriculares. Uma leitura crítica. In: MOREIRA, A. F. B. (org.). Currículo: políticas e práticas. Campinas, Papirus, 1999.
LOURO. G. L. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis: Vozes, 1997.
MARCHUSCI, L. A. Concepção de língua falada nos manuais de português de 1º e 2º graus: uma visão crítica. In: Trabalhos de Lingüística Aplicada nº 30. Campinas: Unicamp, 1997.
PCN. Parâmetros curriculares nacionais: língua portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1997.
PERINI, M. A. Sofrendo a gramática. São Paulo: Ática, 1997.
PICHÓN-RIVIÈRE, E. O processo grupal. 4. ed., São Paulo, Martins fontes, 1995.
POSSENTI, S. Por que (não) ensinar gramática na escola. Campinas: ABL, Mercado de Letras, 1996.
RCNEI. Referencial curricular para as escolas indígenas. Brasília: MEC/SEF, 1998.
RICARDO, C. A. Os ‘índios’ e a sociodiversidade nativa contemporânea no Brasil In: LOPES DA SILVA, A. e GRUPIONI, L. D. B. (orgs.). A temática indígena na escola: novos subsídios para professores de 1º e 2º graus. Brasília: MEC/MARI/UNESCO, 1995.
RODRIGUES, F. D. P. Preconceito lingüístico e não-lingüístico na escola/livro didático. São Paulo: Unicamp: 2003.
SOARES, M. Linguagem e escola – uma perspectiva social. 14. ed. São Paulo: Ática, 1996.
TASSINARI, A. M. I. Sociedades indígenas: introdução ao tema da diversidade cultural In: LOPES DA SILVA, A. e GRUPIONI, L.D.B. (orgs.). A temática indígena na escola: novos subsídios para professores de 1º e 2º graus. Brasília: MEC/MARI/UNESCO, 1995.
VIANA, N. Educação, Linguagem e Preconceito Lingüístico. Plurais. vol. 01, n. (01):21-27, jul./dez., 2004.
54