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5 Prefácio Cada vez que a história se acelera multiplicam-se as tentativas de classificação sintética das mudanças, do seu sentido e dos seus resultados. Vivemos num desses momentos. Não admira portanto que se multi- pliquem as designações genéricas pelas quais se pretende que a sociedade passe a ser qualificada. Muitas dessas designações são, pelo menos, precipitadas e por isso rapidamente abandonadas, por inuti- lidade. É o caso, por exemplo, das ainda há pouco tempo populares expressões “pós-industrialismo” ou “pós-modernidade”. Outras porém, porventura mais modestas na ambição, mas mais certeiras na visão, centrando-se em aspectos parcelares do vasto conjunto de mudanças que ocorrem sob o nosso testemu- nho, chamam a atenção para domínios relevantes das nossas vidas colectivas, que temos de abordar de modo diferente do que estávamos habituados, porque as mudanças que se produzem a cada momento a isso nos obrigam. Alguns enfatizam o facto de zonas institucionais em que prevalecia uma ordem segura e fiável passarem a ser marcadas pelo risco; outros sublinham que onde prevaleciam organizações estáveis com base nos seus edifícios hierárquicos piramidais predominam agora as organizações em rede; outros ainda notam que ao trabalho industrial na fábrica, que ocupava os sectores de ponta das economias, se sucedem as novas formas de organização do trabalho típicas da economia do conhecimento e da sociedade da infor- mação; afirma-se também que a questão social das classes e o pacto social baseado nas relações indus- triais que deu origem aos direitos sociais viram juntar-se-lhes, por um lado, a quarta geração de direitos, ditos “imateriais” e, por outro, a emergência de um novo impulso dado aos direitos cívicos e políticos originado pelas questões da paz, do ambiente, da democracia cultural e da igualdade entre homens e mulheres. Poderíamos multiplicar os exemplos, mas vamos fixar-nos no que interessa ao leitor que tem nas mãos esta revista: os temas da sociedade da informação e da igualdade de género. Velhas tecnologias e formas de comunicação como a fala ou a escrita em papel viram, há apenas algu- mas décadas atrás, o seu espaço comunicativo alargado com a rádio e a televisão. Os computadores e as tecnologias de informação e comunicação (TIC) trouxeram, por sua vez, um potencial de acumular, tratar e transmitir informação em quantidade e a níveis até há pouco tempo inimagináveis. A mudança tem o alcance do mundo global e atravessa todas as esferas da vida moderna, da produção, distribui- ção e consumo de mercadorias até ao lazer, à acção cívica e política e aos modos de usar o tempo e o espaço da esfera privada. As competências no domínio das TIC tornaram-se indispensáveis para a participação na sociedade e na economia dos nossos dias. Uma participação que é, em democracia, um direito para homens e mulheres, em pé de igualdade e sem qualquer espécie de discriminação de género. O desenvolvimento de competências para a participação na sociedade da informação por parte de jovens e adultos de ambos os sexos é, inequivocamente, uma tarefa que compete à escola e que esta não rejeita. Para o fazer tem à sua disposição vários recursos. Nomeadamente recursos tecnológicos. A utilização das TIC na escola, quer enquanto instrumentos didáctico-pedagógicos, quer como matéria substantiva, é hoje uma realidade incontornável e crescente. Mas será que estão a servir objectivos mais vastos de promoção de valores básicos de cidadania, incluindo a tolerância e a promoção da igualdade de género? No âmbito do projecto SACAUSEF esteve muito presente este tipo de preocupações. Com este projecto pretende-se dar uma resposta no domínio da certificação de software e dos locais virtuais de conteúdo

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Prefácio

Cada vez que a história se acelera multiplicam-se as tentativas de classificação sintética das mudanças,do seu sentido e dos seus resultados. Vivemos num desses momentos. Não admira portanto que se multi-pliquem as designações genéricas pelas quais se pretende que a sociedade passe a ser qualificada.

Muitas dessas designações são, pelo menos, precipitadas e por isso rapidamente abandonadas, por inuti-lidade. É o caso, por exemplo, das ainda há pouco tempo populares expressões “pós-industrialismo” ou“pós-modernidade”. Outras porém, porventura mais modestas na ambição, mas mais certeiras na visão,centrando-se em aspectos parcelares do vasto conjunto de mudanças que ocorrem sob o nosso testemu-nho, chamam a atenção para domínios relevantes das nossas vidas colectivas, que temos de abordar demodo diferente do que estávamos habituados, porque as mudanças que se produzem a cada momento aisso nos obrigam.

Alguns enfatizam o facto de zonas institucionais em que prevalecia uma ordem segura e fiável passarema ser marcadas pelo risco; outros sublinham que onde prevaleciam organizações estáveis com base nosseus edifícios hierárquicos piramidais predominam agora as organizações em rede; outros ainda notamque ao trabalho industrial na fábrica, que ocupava os sectores de ponta das economias, se sucedem asnovas formas de organização do trabalho típicas da economia do conhecimento e da sociedade da infor-mação; afirma-se também que a questão social das classes e o pacto social baseado nas relações indus-triais que deu origem aos direitos sociais viram juntar-se-lhes, por um lado, a quarta geração de direitos,ditos “imateriais” e, por outro, a emergência de um novo impulso dado aos direitos cívicos e políticos originado pelas questões da paz, do ambiente, da democracia cultural e da igualdade entre homens emulheres.

Poderíamos multiplicar os exemplos, mas vamos fixar-nos no que interessa ao leitor que tem nas mãosesta revista: os temas da sociedade da informação e da igualdade de género.

Velhas tecnologias e formas de comunicação como a fala ou a escrita em papel viram, há apenas algu-mas décadas atrás, o seu espaço comunicativo alargado com a rádio e a televisão. Os computadores eas tecnologias de informação e comunicação (TIC) trouxeram, por sua vez, um potencial de acumular,tratar e transmitir informação em quantidade e a níveis até há pouco tempo inimagináveis. A mudançatem o alcance do mundo global e atravessa todas as esferas da vida moderna, da produção, distribui-ção e consumo de mercadorias até ao lazer, à acção cívica e política e aos modos de usar o tempo e o espaço da esfera privada. As competências no domínio das TIC tornaram-se indispensáveis para a participação na sociedade e na economia dos nossos dias. Uma participação que é, em democracia, um direito para homens e mulheres, em pé de igualdade e sem qualquer espécie de discriminação degénero.

O desenvolvimento de competências para a participação na sociedade da informação por parte dejovens e adultos de ambos os sexos é, inequivocamente, uma tarefa que compete à escola e que estanão rejeita. Para o fazer tem à sua disposição vários recursos. Nomeadamente recursos tecnológicos.

A utilização das TIC na escola, quer enquanto instrumentos didáctico-pedagógicos, quer como matériasubstantiva, é hoje uma realidade incontornável e crescente. Mas será que estão a servir objectivos maisvastos de promoção de valores básicos de cidadania, incluindo a tolerância e a promoção da igualdadede género?

No âmbito do projecto SACAUSEF esteve muito presente este tipo de preocupações. Com este projectopretende-se dar uma resposta no domínio da certificação de software e dos locais virtuais de conteúdo

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educativo. Procura-se garantir que esses novos e particularmente potentes instrumentos de ensino-apren-dizagem contribuam para ultrapassar preconceitos e promover a perspectiva da igualdade de género nosmateriais pedagógicos e nos processos educativos.

O conjunto de artigos que integram a presente publicação expressa a reflexão de especialistas e investi-gadores neste campo. São um contributo que agradecemos à Comissão para a Cidadania e Igualdadedo Género (CIG) e que muito contribuiu para que os objectivos do SACAUSEF sejam cumpridos comsucesso.

Luís Capucha

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Editorial

A promoção da igualdade entre mulheres e homens é actualmente assumida como um vector fundamen-tal na formação das crianças e jovens em valores como a democracia, a tolerância, o respeito pela diver-sidade e a luta contra as desigualdades, numa dimensão de educação para a cidadania. Nesta perspec-tiva, os sistemas educativos ocupam um lugar central pelo papel que desempenham no desenvolvimentopessoal e social de cada indivíduo.

Os valores de cidadania são um dos alicerces da educação para a paridade e são incompatíveis comuma educação que veicule concepções estereotipadas de feminidade e de masculinidade e que confiraum tratamento desequilibrado à participação de mulheres e de homens nas diferentes áreas sociais.

Hoje em dia, garantida que está, no nosso país à semelhança de outros países da Comunidade Euro-peia, a igualdade de oportunidades de acesso, a questão centra-se ao nível da igualdade de resultados,ou seja, da aquisição de saberes e de competências que traduzam uma correspondência efectiva entre o sucesso escolar e o sucesso educativo e entre este e o sucesso social. Estas preocupações ganham vultoface a uma evidência perturbadora constatada, quer em Portugal, quer em muitos outros países euro-peus: os materiais pedagógicos, nos seus diferentes suportes, incluindo os produtos multimédia sobre os quais incide o presente projecto, continuam a perpetuar concepções estereotipadas de feminidade ede masculinidade que conduzem à construção e apropriação, por parte de raparigas e de rapazes, demodelos identitários que:

reforçam papéis sociais tradicionalmente considerados masculinos ou femininos;

implicam expectativas sociais diferentes para uns e para outras e condicionam as suas escolhasem termos escolares, profissionais, de projectos de vida e de realização pessoal.

Esta desigualdade tem repercussões na construção da identidade de crianças e de jovens e condicionaopções e projectos de vida, quer de raparigas, quer de rapazes. Os efeitos desta desigualdade revelam--se na manutenção de desequilíbrios entre mulheres e homens em áreas como a participação política, a tomada de decisão, a conciliação entre a vida familiar e a profissional, o mercado de trabalho e o usodo tempo.

Em matéria de igualdade entre mulheres e homens em educação, vários documentos têm vindo a seradoptados a nível internacional, quer na ONU, quer no Conselho da Europa e na União Europeia,encontrando-se Portugal vinculado às orientações internacionais que têm vindo a ser produzidas e queapresentam linhas de acção a implementar nos diversos países, continuando as organizações internacio-nais a insistir nesta problemática, como o comprova a recente adopção1 pelo Conselho da Europa deuma nova Recomendação sobre a integração da igualdade entre mulheres e homens na educação.

Neste sentido, desde os anos 70 que as preocupações relativas à educação têm orientado a actividadeda CIG (ex-CIDM), conduzindo, por um lado, à divulgação e publicação de estudos sobre a prática edu-cativa na perspectiva de género e, por outro lado, à implementação e desenvolvimento de projectos deintervenção nesta área, em especial na formação de profissionais de educação.

Ao longo deste percurso, as parcerias com o Ministério da Educação foram-se traduzindo na concretiza-ção de algumas iniciativas no quadro, quer das Direcções Regionais de Educação, quer dos Organismos

1 Recomendação CM/Rec (2007) 13 do Comité de Ministros dos Estados-Membros, adoptada a 10 de Outubro de 2007.

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Centrais como aqueles que deram origem à actual DGIDC (como foi o caso do Departamento de Educa-ção Básica e do Departamento do Ensino Secundário).

As tecnologias da informação e da comunicação são hoje entendidas como uma área estratégica para o desenvolvimento económico e social. Elas têm vindo lentamente a revelar-se um elemento essencial nacultura organizacional e nas práticas desenvolvidas no quadro do sistema educativo. Compreende-se,pois, a necessidade de criar condições para que o conjunto de profissionais de educação e formaçãopossam ter acesso a informação rigorosa sobre as potencialidades e os conteúdos do software disponívelno mercado para poderem, com conhecimento de causa, fazer as escolhas mais adequadas aos seusobjectivos e aos respectivos contextos de prática educativa. Sendo este um dos principais objectivos doprojecto SACAUSEF, este assume uma particular importância para a CIG, por corresponder a uma das formas de viabilizar a integração da dimensão de género no sistema educativo, como é sublinhado naRecomendação do Conselho da Europa referida anteriormente2.

O projecto SACAUSEF constitui, assim, um passo importante no sentido de dar resposta às orientaçõesinternacionais em matéria de Igualdade de Género em Educação, mas também pode vir a traduzir-senum contributo essencial para a execução do III Plano Nacional para Igualdade, aprovado pelo Governoem 2007 e em curso até 2010, nomeadamente no que diz respeito à adopção da dimensão da igual-dade de género como um dos critérios de qualidade que devem presidir à elaboração de produtos multi-média educativos.

As etapas que ainda temos pela frente implicarão o reforço de sinergias e a continuação da mobilizaçãode vontades, no quadro da parceria entre a CIG e o Ministério da Educação e da incontornável colabo-ração da rede nacional de especialistas em género e educação, com vista à mobilização dos recursoshumanos indispensáveis à prossecução dos objectivos do projecto SACAUSEF.

Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género

2 Esta Recomendação evidencia, entre outros aspectos, a necessidade de elaboração e de difusão de indicadores que permitam avaliar, numa perspectiva de género,manuais escolares e produtos multimédia educativos.

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Estereótipos de Género.Conhecer para os transformar

Introdução

1. O que são estereótipos sociais e de género?

2. Qual o conteúdo dos estereótipos de género?

A importância da pesquisa sobre a diferenciação sexual

2.1. Estudos clássicos das diferenças entre os sexos

2.2. Pesquisas orientadas para a desmistificação da diferença

2.3. A androginia

2.4. A teoria do papel social

2.5. A assimetria simbólica como alternativa crítica

3. Impacto dos estereótipos na educação

3.1. Na escola

4. Para que servem os estereótipos de género? O sexismo

Conclusão

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Estereótipos de Género.Conhecer para os transformar

Conceição Nogueira – Universidade do Minho1

Luísa Saavedra – Universidade do Minho2

Introdução

Assistimos em Portugal ao discurso corrente de que as jovens do sexo feminino estão em maiornúmero (do que os jovens do sexo masculino) nas escolas e nas universidades, sugerindo que o seunúmero e o seu sucesso indicam uma “tomada de poder” das mulheres num futuro próximo. Estediscurso simplista e vazio de conteúdo não tem em conta a realidade social, onde a desigualdadede classe e/ou de etnia (entre outras categorias de pertença), intersectando a categoria sexual,mostra dados divergentes, nem mesmo explica porque estando as mulheres há tantos anos a sermais bem-sucedidas a nível escolar, a sua presença ainda não se faz sentir claramente no empregoe nas altas esferas onde o poder (económico/político) se exerce. Parece haver em Portugal, pelocontrário, um conservadorismo enraizado no que às questões de género diz respeito, apesar do dis-curso que perpassa pelos meios de comunicação social e pelo senso comum quotidiano. Os dadosapresentados no trabalho de Maria do Céu Rego (2006) mostram bem o panorama de desigual-dade na sociedade portuguesa, onde os índices de desigualdade no emprego/desemprego e naocupação do tempo, por exemplo, são por demais evidentes.

Para esta desigualdade persistente muito têm contribuído os designados estereótipos de género, istoé, as crenças associadas à pertença sexual e à diferenciação sexual (Barberá, 2005).

Todas as sociedades parecem reconhecer a existência de sexos diferentes e por isso agrupam aspessoas pelo seu sexo devido a diferentes motivos (Reskin & Padavic, 1994), sendo que cada serhumano quando nasce, na cultura ocidental, pertence imediatamente a uma categoria sexual espe-cífica (Denzin, 1995).

O sexo de uma criança é sem dúvida um factor importante para o seu desenvolvimento. Não é poracaso que uma das primeiras perguntas que se faz aos pais quando uma criança acaba de nasceré se é menina ou menino. O próprio nome que se escolhe para o bebé reflecte o seu sexo (Shaffer,1994) e a presença de um bebé ou de uma criança cujo sexo é biologicamente ambíguo suscitasentimentos de desconforto e mal-estar nas pessoas (Maccoby, 1980). E se é certo que o sexo é,sem dúvida, um factor biológico, ele é também um factor social e cultural, sendo que as reacçõesdas pessoas são diferentes perante uma criança do sexo masculino ou do sexo feminino (Maccoby,1980).

Por isso, existe o conceito de género, distinto de sexo, uma vez que este último pertence ao domí-nio da biologia, enquanto que o primeiro se inscreve na cultura. O carácter cultural do género foi acentuado na definição que surgiu na sociologia no ano de 1972 por Ann Oakley (citada emAmâncio, 2001) e que vai servir de referência para as ciências sociais. De facto, para além dasdiferenças genéticas entre os sexos espera-se, na maior parte das sociedades, que os homens e asmulheres se comportem de uma maneira diferente e assumam diferentes papéis. Para se conformar

1 Docente do Departamento de Psicologia, Instituto de Educação e Psicologia, Universidade do Minho. Email: [email protected] Docente do Departamento de Psicologia, Instituto de Educação e Psicologia, Universidade do Minho. Email: [email protected]

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com estas expectativas, a criança deve incorporar estas informações no seu autoconceito. O processoatravés do qual a criança adquire uma identidade do género e também motivações, valores e comporta-mentos considerados apropriados na sua cultura para os membros do seu sexo biológico chama-se tipifi-cação ou estereotipificação de género (Shaffer, 1994), tema central deste trabalho.

Apesar da existência de numerosos trabalhos que afirmam a inexistência de diferenças sexuais, grandenúmero de pessoas continua a acreditar em distintos posicionamentos de homens e mulheres face à vida,atitudes relacionadas com o trabalho ou com a família, motivações, comportamentos e traços de perso-nalidade. Os traços como a independência, agressividade e dominância continuam a ser associados ahomens, e a sensibilidade, emocionalidade e gentileza às mulheres (Powell, 1993).

As pessoas acreditam nas diferenças sexuais (Crawford, 1995), tendo para isso contribuído os/as cientis-tas sociais que ajudaram a criar e a confirmar a crença, seja através da pesquisa, seja pelo desenvolvi-mento de teorias que se baseiam nas diferenças, escamoteando as semelhanças (West & Zimmerman,1991). Nessa perspectiva, as diferenças são concebidas como “situando-se” dentro dos indivíduos. A ciência e os meios de comunicação social construíram uma narrativa poderosa: que o género é dife-rença e que a diferença é estática, bipolar e categorial (Nogueira, 2001b). Ao absorver estas mensa-gens, os sexos “tornam-se” opostos para o nosso entendimento (Crawford,1995). Como Crawford (idem)refere, muito do que se nos apresenta como sendo diferenças naturais são apenas construções da inte-racção social, mas às quais é conferida “realidade” pela pesquisa nas ciências sociais.

Sandra Bem, no seu livro The Lenses of Gender (1993), refere que se podem encontrar três crenças fun-damentais relativas a homens e mulheres, ao longo da análise da cultura ocidental. São elas: (1) quehomens e mulheres têm naturezas psicológicas e sexuais distintas; (2) que os homens são inerentementesuperiores ou dominantes; e finalmente que (3) quer a natureza quer a superioridade masculina são natu-rais. A autora associa estas crenças ao que designa pelas lentes do género, que apesar de todos os desa-fios trazidos pelas reivindicações das primeira e segunda vaga do feminismo, persistem até aos dias dehoje, essencialmente na sociedade americana. Estas lentes de género funcionam como suposições “ocul-tas” enraizadas nos discursos culturais, nas instituições sociais, na psicologia individual, que invisivelmentee de forma sistemática reproduzem o poder masculino ao longo dos tempos.

Também West e Zimmerman (1991) sugerem que as sociedades produzem e mantêm diferenças degénero, tornando-as saliente através de vários processos: a socialização, a acção das instituições sociaise a interacção entre as pessoas. Pode-se dizer que o género é um sistema de relações sociais que estáimbuído na forma como as grandes instituições estão organizadas, incluindo o mercado de trabalho.Enquanto a diferenciação sexual – classificação das pessoas em categorias baseadas no sexo de per-tença – começa no nascimento (Denzin, 1995), a feminilidade e a masculinidade são termos socialmentedefinidos que são associados a essas categorias biologicamente determinadas de indivíduos. A própriaexpressão “sexo oposto” revela a preocupação de uma sociedade com as diferenças entre homens emulheres (Reskin & Padavic, 1994).

Neste trabalho, procuramos explicar o que se entende por estereótipos sociais e de género e seguida-mente como se foi “construindo” o seu conteúdo. Isto é, pretendemos mostrar como determinados pro-gramas de pesquisa e de teorias (na psicologia, em particular) foram encontrando dados que servempara construir as crenças partilhadas sobre homens e mulheres, seja em termos das suas características,seja em termos dos papéis que executam. Por fim, pretendemos evidenciar alguns dados relativos aoimpacto dos estereótipos de género mais especificamente na educação e, ainda, abordar alguns dos seusefeitos perversos, especificamente o sexismo.

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1. O que são estereótipos sociais e de género?

Desde que Lippmann (um jornalista), em 1922, introduz o conceito de estereótipo para explicar a forma-ção da opinião pública, a psicologia social começa a interessar-se pelo assunto, absorve o conceito parasi e começa um amplo campo teórico e de pesquisa com diferentes orientações e teorias.

Resumidamente, poder-se-ia dizer que os estereótipos sociais são generalizações acerca dos membros decertos grupos e que derivam predominantemente, ou são uma instância do processo cognitivo da catego-rização. Para que os estereótipos possam ser considerados sociais devem ser partilhados por um elevadonúmero de indivíduos e implicam, portanto, uma difusão efectiva (Tajfel, 1983). Os estereótipos servem,de uma forma geral, para fazer ilações acerca de grupos baseados na idade, nacionalidade, etnicidade,raça, género, classe social, profissão, estatura física, orientação sexual, entre outras. O primeiro objectivodos estereótipos é o de simplificar e organizar um meio social complexo, tornando-o menos ambíguo.Mas eles servem também para justificar a discriminação de grupos e gerar preconceitos.

Sendo os estereótipos uma consequência do processo de categorização social importa definir esta últimacomo “o processo através do qual se reúnem os objectos ou acontecimentos sociais em grupos, que sãoequivalentes no que diz respeito às acções, intenções e sistemas de crenças do indivíduo” (Tajfel, 1983, p. 290). Simultaneamente, a categorização social serve ainda uma outra função que é a de criar dis-tinções entre o grupo de pertença e os outros grupos, por comparação ou por contraste (Tajfel, 1983).Neste sentido, pode-se considerar que os estereótipos, para além do processo de organização e simpli-ficação do mundo social, “constituem, acima de tudo, construções sobre as relações intergrupos, sendoideologizações de comportamentos e acções de grupos de pessoas, estratificadas segundo critérios social-mente valorizados (Tajfel, 1981/83; Tajfel & Forgas, 1981), traduzindo, portanto, a representação sub-jectiva e socialmente partilhada de uma ordem de relações intergrupo (Tajfel, 1982b)” (Amâncio, 1994,p. 48)3.

Esta é, obviamente, uma apresentação simplificada do complexo e intrincado campo teórico que, desdeos anos 40, se produziu na psicologia social4.

Se um estereótipo se define como o conjunto de atributos que se acredita que definiram os membros deum determinado grupo social (Ashmore, 1990; Oakes, Haslam & Turner, 1994), então os estereótipos dogénero podem implicar quer os atributos que as pessoas acreditam serem mais características de um ououtro sexo, mas também podem envolver a associação a papéis diferenciados. Existe uma certa consen-sualidade entre os autores de que os estereótipos têm simultaneamente uma componente descritiva eprescritiva. A primeira é constituída pelos atributos, ou traços de personalidade, que as pessoas geral-mente acreditam como caracterizando os membros de um determinado grupo; a componente prescri-tiva seria composta pelos comportamentos considerados adequados para esse grupo, isto é, papéis dogénero (Fiske & Stevens, 1993), baseados nos papéis sexuais que se “referem às expectativas normati-vas sobre a divisão do trabalho entre os sexos e às regras relacionadas com o sexo sobre as interacçõessociais, que existem dentro de um determinado contexto histórico-cultural” (Spence, Deaux & Helmreich,1985, p. 150).

Os estereótipos do género caracterizam-se, segundo Fiske e Stevens (1993), pelo seu carácter altamenteprescritivo em comparação com outros estereótipos. Isto aconteceria, não só, porque são das primeirascategorias a formarem-se nas crianças, mas também porque o elevado número de contactos entre as

3 Para uma análise mais aprofundada desta temática, ver Tajfel (1982, 1983).4 Para quem se interessar por esta temática de estereótipos sociais, ver Bourhis e Leyens (1996).

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duas categorias sexuais os torna mais complexos, podendo ser caracterizados por mais subtipos queoutros estereótipos.

Concluindo, os estereótipos de género são um conjunto de crenças largamente partilhadas e organizadasacerca das características dos homens e das mulheres (Golombok & Fivush, 1994, citado por Matlin,2000; Williams & Best, 1990), pensamentos que podem não corresponder à realidade.

2. Qual o conteúdo dos estereótipos de género? A importância da pesquisa sobre a diferenciação sexual

Para a formação do conteúdo dos estereótipos muito contribuiu todo um conjunto de investigações quedesde o início do século investiram na pesquisa sobre as diferenças sexuais.

A pesquisa acerca das diferenças sexuais está historicamente associada ao desejo masculino de com-preensão da natureza das mulheres (Hare-Mustin & Marecek, 1994) e está imbuída de conflito e misti-ficação desde os seus tempos mais remotos (Hare-Mustin & Marecek, 1990d). Desde Aristóteles até àactualidade, afirmava-se a distinção entre os sexos, a superioridade masculina e o seu posicionamentocomo grupo de referência e comparação (Bem, 1993).

2.1. Estudos clássicos das diferenças entre os sexos

Desde os tempos de Helen Thompson Wooley (1910) que se assiste à afirmação das diferenças sexuaispara sustentar a inferioridade feminina, limitando a sua esfera de acção, restringindo a sua autonomia e liberdade de movimentos. Estas diferenças foram atribuídas a factores de ordem biológica, assumidascomo naturais e moralmente correctas. O determinismo biológico surgiu nos primeiros tempos como uma justificação para as desigualdades sociais (Bem, 1993). A biologia evolucionista de Darwin, queassumia ser a mulher uma espécie de homem cuja evolução teria estagnado em determinado momento,ainda persiste nos dias de hoje, principalmente na crença de que a biologia é “destino” para as mulhe-res, tendo os homens conseguido atingir a racionalidade e a livre vontade. As diferenças biológicas ser-viram para colocar as mulheres “nos seus devidos lugares”, isto é, na esfera familiar e nas relações desuporte afectivo.

No início do século, Terman e Miles, baseando-se na premissa de que a ausência de diferenças namedida de inteligência devia indicar que estas (diferenças) se situavam a outros níveis, como sentimen-tos, interesses, atitudes e comportamentos, acabam por oferecer uma descrição da imagem de umamulher típica através de uma série de oposições ao homem típico (Lorenzi-Cioldi, 1994). A partir destestrabalhos ficaram criadas as condições não só para o aparecimento imediato dos temperamentos mas-culinos e femininos, como também para o início de um vasto programa de pesquisa sobre as diferençassexuais.

A imagem de uma mulher que difere do homem pela sua emocionalidade mais rica e variada, que con-diciona o seu comportamento quotidiano, sendo igualmente tímida, dócil, vaidosa e sem espírito deaventura, torna-se uma espécie de protótipo de temperamento que vem assim a constituir-se como normapara um grupo. Os temperamentos, para além de se tornarem o centro de gravidade dos grupos, o quepermite o entendimento da variação individual, estão organizados em função da oposição entre esferaprivada e esfera pública, família-trabalho. Estruturam a organização da divisão entre a esfera produtiva e a doméstica (Giddens, 1994).

O facto de Terman e Miles pretenderem explorar uma multiplicidade de domínios, acabou por refrear aelaboração de uma teoria coerente e convincente dessas diferenças. A colaboração de Parsons e Bales

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(1955), ao integrarem as noções de instrumental e expressivo, viria a possibilitar uma teoria da personali-dade. Segundo refere Amâncio (1994), a teoria de Parsons incide sobre a estrutura da família e a sociali-zação dos papéis sexuais, sendo a divisão das tarefas na família a componente sociológica desta teoria.Para estes autores, as esferas, privada e pública, traçam a linha divisória dos papéis sexuais, resultando daí os temperamentos masculinos e femininos, produtos da interiorização desses papéis (Lorenzi-Cioldi,1994). O bom desempenho dos papéis (de expressividade para as mulheres e de instrumentalidade paraos homens) orienta a personalidade individual, sendo deste modo encarada como um protótipo (Lorenzi--Cioldi, 1994). É através do processo de socialização dos papéis sexuais (socialização feita essencial-mente no seio da família) que determinados papéis sociais são associadas a cada um dos sexos, defi-nindo-se deste modo as diferenças no perfil de personalidade de homens e mulheres (Amâncio, 1994).Depois de Parsons ter assumido os conteúdos dos temperamentos como sendo traços de personalidade e de ter feito depender da socialização na família nuclear a aquisição de papéis de homem e mulher, a proliferação de questionários e inventários de medidas de personalidade não se fizeram esperar. Apesarde muitos resultados não se revelarem concordantes com a teoria, os investigadores parecem ter “for-çado” as respostas observadas a uma ligação do género (cultural, social e psicológico), ao sexo bioló-gico (Hare-Mustin & Marecek, 1990a).

Estas incongruências observadas e salientadas pelas críticas feministas vão estar na origem de diversosdesenvolvimentos teóricos e empíricos. No plano empírico destaca-se as pesquisas que procuram desmis-tificar toda a ideia da acentuação das diferenças, enquanto num plano predominantemente teórico sedestacam as teorias da androginia, formulada inicialmente por Sandra Bem, e a teoria do papel social, de Alice Eagly.

2.2. Pesquisas orientadas para a desmistificação da diferença

Numa revisão de cerca de 1400 estudos que comparavam homens e mulheres, Maccoby e Jacklin(1974) concluíram que poucos estereótipos do género tinham fundamentação empírica e que apenasquatro diferenças tinham apoio na investigação. Essas diferenças são as seguintes: (1) as raparigasdesenvolvem competências verbais ao nível da compreensão, vocabulário e fluência mais precocementeque os rapazes; (2) os rapazes superam, embora não muito acentuadamente, as raparigas nas capaci-dades visuais e espaciais; (3) a partir da adolescência, os rapazes demonstram uma pequena vantagemrelativamente ao raciocínio numérico e (4) a partir dos 2 anos de idade os rapazes são mais agressivos,quer verbal, quer fisicamente, do que as raparigas.

Os resultados apresentados por Maccoby e Jacklin vieram a ser criticados, pois diversos autores verifi-caram existir outras diferenças não contempladas pelas autoras. Shaffer (1994) expõe outras diferençasque nova investigação e literatura apresentam como significativas e podem ser sintetizadas nos seguintesaspectos: (1) os rapazes parecem ser fisicamente mais activos que as raparigas; (2) as raparigas são maiscuidadosas e correm menos riscos que os rapazes em situações incertas ou perigosas; (3) os rapazes sãomais susceptíveis a acidentes peri e pós-natais e a perturbações da leitura, fala, perturbações emocionaise atrasos mentais; (4) a partir dos 4/5 anos e ao longo do ciclo vital, as mulheres interessam-se maispelas crianças; (5) a partir dos 11/12 anos, as raparigas sentem-se mais à vontade, do que os rapazes, a exprimir sentimentos; (6) as raparigas aceitam melhor, do que os rapazes, as ordens dos pais, professo-res e outras figuras de autoridade e diferem dos rapazes nos métodos que usam para persuadir ou induzirobediência, preferindo sugestões delicadas, cooperação e negociação verbal.

Mais recentemente, Cristina Vieira (2006), apoiando-se em estudos de Maccoby (2000), salienta algumasdiferenças entre rapazes e raparigas no que concerne às brincadeiras, nomeadamente o facto destasraparigas construírem fantasias e brincadeiras “em torno de guiões domésticos ou românticos, que inte-gram personagens empenhadas em fomentar as relações sociais e em manter, ou restaurar, a ordem e a

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segurança das pessoas” (p. 37). Os rapazes, por sua vez, escolhem actividades que envolvam perigo5,conflito, demonstração de força física e destruição. Em termos de interacções sociais, as raparigas têmmaior tendência para respeitar o outro, evitar dar ordens e manter a harmonia do grupo e, nas amizades,a partilhar mais detalhes privados enquanto as amizades entre os rapazes se constituem sobretudo pelapartilha de actividades (Vieira, 2006).

O que se pode concluir da investigação é que os elementos do sexo feminino e masculino têm maissemelhanças psicológicas do que diferenças, ou seja, muitos aspectos do comportamento social dossexos é parecido e quando se encontram discrepâncias elas são geralmente pequenas e baseadas nocomportamento médio do grupo. De facto, quando se examina o comportamento individual, e não ogrupo, verifica-se que muitas raparigas se divertem com jogos de rapazes e muitos rapazes preferem acti-vidades calmas; muitas raparigas são rebeldes e difíceis de controlar e muitos rapazes são dóceis (Shaffer,1994). Nesta ordem de ideias, diversas autoras defendem que quando se encontram diferenças entre ossexos estas não passam de médias, o que significa que existe uma grande variabilidade dentro de cadasexo e que, em termos psicológicos, os conteúdos das categorias do género são mais parecidos do quediferentes (Jacklin, 1981; Jacklin & Baker, 1993; Maccoby, 1980). Outra questão diz respeito ao facto de que muitos dos estudos que não encontram diferenças entre os sexos não chegam a ser publicados.Assim, conhecem-se apenas aqueles que registam diferenças, tornando-se difícil saber o que exactamenteexiste quanto às diferenças e semelhanças entre os sexos (Maccoby, 1980). Finalmente, quando se esta-belece uma diferença, muitas pessoas assumem que ela é “natural”, ou seja, biológica, mas uma coisa é provar uma diferença e outra é estabelecer a causa dessa diferença (Maccoby, 1980).

“Por isso, mesmo se se encontram diferenças sexuais entre os grupos em determinados domínios compor-tamentais – físico, cognitivo, emocional ou social –, o comportamento individual dos membros dos doissexos é, frequentemente, muito semelhante. Homens e mulheres, rapazes e raparigas são mais parecidosque diferentes” (Maccoby, 1980, p. 223).

Centenas de estudos posteriores a 1974 procuraram verificar, modificar ou aumentar o trabalho de Maccoby e Jacklin. Devido às críticas surgidas relativamente ao método por elas utilizado para orga-nizar os dados, surgiu um novo método – a meta-análise6 –, sendo apresentado como superior para arealização de trabalhos semelhantes. Foram conduzidas muitas meta-análises sobre as diferenças sexuaisem muitas áreas, desde as competências cognitivas até às diferenças no comportamento social (Eagly & Crowley, 1986; Eagly & Steffan, 1986; Hyde & Linn,1988; Hyde, Fennema & Lamon, 1990). Noentanto, conforme a análise de todos estes trabalhos demonstra, as conclusões mostram-se confusas eambivalentes (Nogueira, 2001).

2.3. A androginia

O paradigma da diferença dos sexos, ao reduzir o género a uma dicotomia “natural” sugere imutabili-dade e essencialismo. No final dos anos 60, durante a segunda vaga do feminismo, as críticas à bipola-ridade sexual tornaram-se muito consistentes, associadas à crítica ao essencialismo e à “biologia comodestino” (Nogueira, 2001).

A noção de androginia, que surge no início dos anos 70, pretende desafiar esta perspectiva acerca dossexos (Morawski, 1990).

5 Não deixa de ser preocupante pensar a possível ligação entre o estereótipo masculino de alguém aventureiro, que assume riscos, e a cada vez maior taxa de mor-talidade rodoviária, essencialmente nos homens e nos jovens do sexo masculino em particular.

6 A meta-análise usa métodos quantitativos sofisticados para combinar os resultados estatísticos de diferentes estudos, permitindo observar os resultados de um modomais controlado que o método anteriormente usado.

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A androginia sugere a combinação de atributos femininos e masculinos, eliminando a suposição do dua-lismo de género. Não assume nenhuma ligação entre sexo biológico e género psicológico (Morawski,1990) e pretende essencialmente que as mulheres se libertem das orientações comportamentais conside-radas adequadas ao seu sexo (Amâncio, 1994).

O conceito de androginia psicológica implica que é possível para um indivíduo ser ora compassivo ora assertivo, ser expressivo e instrumental, ser masculino e feminino dependendo das circunstânciasapropriadas a estas várias modalidades (Bem, 1981). Implica, ainda, que um indivíduo pode combinarestas modalidades complementares num único acto, como, por exemplo, a capacidade para despedir um empregado, se as circunstâncias o exigem, mas tendo em atenção as emoções que tal acto inevita-velmente produz. Deste modo, pode-se dizer que “um indivíduo andrógino dispõe, pois, de um maiorleque de comportamentos que lhe permitem ser autónomo, flexível e adaptado aos diversos contextos”(Saavedra, 1995, p. 46). Segundo Bem (1981), o conceito de androginia baseia-se na concepção de que as pessoas sexualmente estereotipadas estão altamente vinculadas à definição cultural de comporta-mento adequado ao seu sexo e usam essa definição como um ideal estandardizado através do qual oseu comportamento deve ser avaliado. Nesta perspectiva, uma pessoa sexualmente estereotipada sente--se motivada a manter o seu comportamento consistente com a imagem idealizada de masculinidade oufeminilidade, objectivo que o indivíduo realiza seleccionando comportamentos e atributos que realcemesta imagem e evitando aqueles que a violam. Em contrapartida, os indivíduos andróginos estão menosvinculados a estas definições culturais de feminilidade e masculinidade e menos motivados a regularem o seu comportamento por esses padrões.

Para além das possibilidades apresentadas, a noção de androginia sugeria igualmente um modelo parauma política social (Morawski, 1990), já que o conceito tinha objectivos emancipatórios. Enquanto o conceito original de atributos de género supunha normas de comportamento masculino e feminino, este modelo via os indivíduos como agentes humanos flexíveis e bem-sucedidos, que funcionavam nummundo social complexo, mas não estruturado em termos de género. Estas ideias tinham grande poderemancipatório no que diz respeito à noção de comportamentos apropriados e de bem-estar mental.

Um dos maiores contributos da abordagem da androginia terá sido o facto de, questionando que as dife-renças entre homens e mulheres assentam em dados biológicos, ter aberto um novo campo aos estudosda identidade sexual (Lorenzi-Cioldi, 1988). “As diferenças e as variações de identidades entre os indiví-duos do mesmo sexo tornam-se tão importantes, senão mais importantes, que as diferenças entre os indi-víduos de sexos diferentes“ (idem, p. 128).

No entanto, as teorias da androginia psicológica, ao encararem a identidade pessoal (encarada comouma síntese das identidades sociais) de uma forma positiva que leva à liberdade do indivíduo e a iden-tidade social como uma entidade negativa que leva ao empobrecimento da identidade pessoal, acabam por cair numa oposição, não entre o masculino e o feminino, mas sim entre o pessoal e o social. Assim,nesta ordem de ideias, a teoria da androginia é uma nova versão da dicotomia entre o pessoal e osocial, entre a liberdade e a coacção (Lorenzi-Cioldi, 1988).

Parece, portanto, que o principal problema da androginia psicológica reside no postulado da simetriaentre as duas categorias sexuais e na dicotomia entre identidade pessoal e social, sem ter em conta osefeitos das relações entre os grupos (Nogueira, 2001; 2001a). Se a teoria da androginia psicológica tem o mérito de ter chamado atenção para a questão das variações de identidade, mostrou-se, contudo,incapaz de explicitar os parâmetros responsáveis por essa variabilidade (Lorenzi-Cioldi, 1988).

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2.4. A teoria do papel social

Apesar de, a partir de meados dos anos 70, não se encontrar consenso entre os psicólogos quanto àexistência de diferenças sexuais, a pesquisa relativa aos estereótipos de género (Ashmore, & DelBoca,1981) revelava a existência de crenças populares e bem disseminadas quanto às diferenças sexuais.

A tese central da teoria dos papéis sexuais é a de que as diferenças sexuais são um produto dos papéissociais que regulam o comportamento na vida adulta (em oposição a muitas teorias das diferençassexuais baseadas quer em factores biológicos, quer na socialização infantil precoce). Considerando queas explicações baseadas nos papéis sociais que controlam a vida adulta não tinham sido ainda alvo dequalquer tentativa unificadora, no sentido da organização de uma teoria distintiva do comportamentosexual tipificado, Alice Eagly decidiu interpretar as diferenças sexuais no comportamento social em termosde uma única perspectiva social-normativa.

A própria autora admite que esta teoria poderá simplificar demasiado a realidade complexa das diferen-ças sexuais, mas considera que se justifica pela possibilidade de explicação de muitos resultados e pelasua contribuição para uma representação conceptual coerente.

Os papéis de género são definidos como aquelas expectativas partilhadas acerca das qualidades e com-portamentos apropriados dos indivíduos, em função do seu género socialmente definido. Estes papéis de género induzem, quer directa quer indirectamente, as diferenças sexuais estereotipadas. Directamente,porque tendem a ser confirmados comportamentalmente, já que as observações dos comportamentos dasmulheres e homens afectam as crenças acerca dos comportamentos apropriados a cada género (papéisde género) e são esses papéis que (juntamente com outros factores) são responsáveis pelas diferençassexuais no comportamento. Indirectamente, porque essa distinta distribuição em função dos géneros éuma parte importante das expectativas das pessoas acerca das características femininas e masculinas. A distribuição de papéis em função dos contextos (privado/público) torna-se relevante para as diferençassexuais, já que a experiência em tais papéis sugere as competências e as crenças relevantes para os com-portamentos sociais.

Na medida em que homens e mulheres não estão proporcionalmente representados em papéis sociaisespecíficos, acabam por adquirir diferentes competências e crenças que, por sua vez, afectam o seu com-portamento social. Homens e mulheres estão sujeitos a diferentes expectativas às quais se conformam (emcerta medida) e por isso desenvolvem diferentes competências, assim como atitudes e crenças, sendo quea causa para o comportamento socialmente tipificado parece ser a divisão do trabalho entre os sexos7.

Apenas uma mudança na divisão do trabalho poderá conduzir a uma mudança substancial no conteúdodos papéis de género, na tipificação das competências e crenças e, posteriormente, na extensão das dife-renças sexuais. Finalmente, considera que a disparidade entre a mudança de atitude face a aspectos daigualdade de papéis e o conteúdo dos estereótipos de género se explica pela (ainda) reduzida participa-ção de mulheres no mundo do trabalho.

Algumas críticas a esta teoria incidem quer na concepção de papel de género, como uma causa e nãoum efeito (Amâncio, 1994), quer sobre algumas questões que deixa por colocar (Hare-Mustin & Marecek,1990c; 1990d). Estas autoras referem que essas questões são: quais as origens dos papéis de género?Como se explica a dominância do homem e a subordinação da mulher? Será a dominância masculina o resultado de uma fraca aprendizagem de competências por parte das mulheres?

7 A autora assume que apenas se preocupa com a análise das consequências da divisão do trabalho e não com as suas origens, que considera serem mais pertinen-tes para a análise sociológica e antropológica.

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Apesar da ênfase na socialização, defendida por Eagly, ter implicado uma desfocagem do aspecto bioló-gico, a favor de uma ênfase no condicionamento cultural (Amâncio, 1992), o sistema social das relaçõesde género continua a não ser questionado. Esta ênfase na socialização defendida por Eagly e outrosautores de origem americana, embora tenha uma vertente positiva que é a de ter deslocado a atençãodos aspectos biológicos das diferenças entre os sexos para o condicionamento cultural e a estereotipa-ção, deixa por explicar algumas questões cruciais. Estas conceptualizações não dão resposta a questõescomo: qual a origem dos papéis de género? Como se explica a dominância do homem e a subordi-nação da mulher? Será que esta dominância é meramente devida a uma falta de competências que amulher não teve oportunidade de aprender? (Hare-Mustin & Marecek, 1990)

2.5 A assimetria simbólica como alternativa crítica

A maior parte dos estudos sobre as diferenças sexuais, embora façam emergir as duas componentes daidentidade social (pessoal e colectiva), raramente abordam as relações entre homens e mulheres em ter-mos de relações assimétricas (Amâncio, 1992; Lorenzi-Cioldi, 1988).

O que se verifica em todas estas perspectivas é que as crenças associadas ao género aparecem comoum dado explicativo em si mesmo, ao nível individual, mas não explicam o sistema social que influenciaos indivíduos e que orienta o processo de socialização ficando, assim, por “esclarecer os processos dediferenciação intersexos num plano simbólico, assim como a sua relação com as posições objectivas quehomens e mulheres ocupam na sociedade” (Amâncio, 1992, p. 10).

A assimetria de representações entre os sexos, ao nível dos estereótipos, foi demonstrada num estudo realizado por Amâncio (1989; 1992), em que colaboraram 188 sujeitos entre os 20 e os 45 anos, estu-dantes universitários e trabalhadores e aos quais foi pedido que se descrevessem a si próprios, a umapessoa do mesmo sexo e uma pessoa do sexo oposto. A partir daqui foram seleccionados 94 adjectivos,que foram apresentados a 182 sujeitos com as mesmas características do grupo anterior. Metade dossujeitos classificaram os traços em masculinos e femininos, de acordo com o seu conhecimento da socie-dade portuguesa e outra metade classificou os traços em positivos e negativos. Os resultados revelarammenos características tipicamente femininas que masculinas e mais traços favoráveis associados ao mas-culino. Quanto ao conteúdo, o estereótipo feminino inclui o próprio traço a que se refere “feminino” o que vem confirmar que os grupos dominados são definidos pela sua categoria (Deschamps, 1982).Enquanto o estereótipo feminino engloba traços físicos e afectivos, o masculino não inclui traços físicos e não aponta para nenhum papel específico (o estereótipo feminino refere o traço “maternal”), mas écomposto por uma diversidade de competências do adulto (Amâncio, 1992). “Estes resultados eviden-ciam o facto de que homens e mulheres partilham uma representação de pessoa feminina que a situanuma posição específica do sistema social, ao contrário da pessoa masculina, que é representada comouniversal“ (Amâncio, 1992, p. 19).

Num estudo subsequente, sobre uma tomada de decisão num contexto organizacional, a autora demons-trou ainda como os estereótipos contribuem para imprimir um significado masculino ou feminino aoscomportamentos e como os conteúdos simbólicos dos estereótipos são normativos para as mulheres, masnão para os homens. Neste estudo, os traços mais negativos do estereótipo masculino eram atribuídos às mulheres, quando esta se encontrava num papel considerado não adequado ao seu sexo biológico.Estes resultados indicam que, no caso das mulheres, os juízos são orientados por expectativas de adequa-ção e não adequação, o que não acontece no caso dos homens (Amâncio, 1992).

Também num estudo de Gonen e Lansky (1969, referido por Lorenzi-Cioldi, 1988), os autores mostraram,pedindo a rapazes e raparigas que julgassem o grau de masculinidade e feminilidade de certos compor-tamentos, que a imagem da mulher é, essencialmente, bipolar (a percepção de uma forte masculinidade

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está associada a uma fraca feminilidade), enquanto a imagem do homem é, fundamentalmente unipolar,pois os homens são facilmente descritos como simultaneamente femininos e masculinos, sem que, porisso, sejam considerados menos masculinos. Para os autores, a percepção de unipolaridade está asso-ciada a uma visão menos estereotipada dos comportamentos sexuais e reflecte, portanto, uma maior fle-xibilidade das imagens clássicas de masculino e feminino. Além disso, estes resultados implicam que umaredução do papel adequado a um sexo não conduza, necessariamente, a um aumento do papel conside-rado inapropriado. Existe, portanto, uma assimetria nas relações que ligam os dois grupos, sendo prová-vel que as raparigas valorizem os traços típicos do outro sexo e desvalorizem os traços menos positivos do seu grupo de pertença.

Também uma revisão da literatura sobre comportamentos de dominância e competição (Bartol & Martin,1986) aponta para uma assimetria destes comportamentos, caracterizados por uma maior conotaçãomasculina dos mesmos. A maior parte dos trabalhos indica que, em contextos intragrupo, os comporta-mentos de dominância seriam adoptados tanto por homens como por mulheres, mas em contextos inter-grupo os homens comprometem-se, sobretudo, em comportamentos de dominância e as mulheres emcomportamentos expressivos.

Através de um estudo que pretendia analisar o modo como as concepções de masculinidade e feminili-dade permitem organizar teorias implícitas sobre a situação da mulher no mundo do trabalho, Amâncio(1994) chegou à conclusão que, entre as mulheres, o único consenso reside na recusa das explicaçõesque se baseiam na dimensão negativa dos estereótipos. A autora conclui que as mulheres, como grupodominado, não possuem uma ideologia de grupo consistente e consensual, o que é, de facto, um indica-dor da sua condição de grupo dominado. Tal como já anteriormente vimos, os grupos dominados carac-terizam-se pela sua indiferenciação e dependência relativamente ao grupo dominante (Deschamps, 1982;Lorenzi-Cioldi, 1988).

Este estudo permitiu à autora retirar importantes conclusões sobre o funcionamento diferencial da cate-gorização e das funções dos estereótipos para homens e mulheres. Assim, os estereótipos, como orga-nizadores e simplificadores da informação complexa, são evidentes para as mulheres mas não para oshomens, o que vai no mesmo sentido das conclusões de Gonen e Lansky (1969, referido por Lorenzi--Cioldi, 1988) com adolescentes. Além disso, as funções de diferenciação, causalidade e justificação dos estereótipos sociais são mais evidentes para os homens do que para as mulheres, “o que quer dizerque os estereótipos sociais são mais funcionais para certos grupos do que para outros” (Amâncio, 1994, p. 136).

Em síntese, todos os resultados destas pesquisas sobre papéis sexuais, assim como sobre os conteúdosdos estereótipos, apontam para uma assimetria no plano normativo, tanto no que diz respeito aos papéiscomo aos conteúdos dos estereótipos, e essencialmente uma assimetria na representação entre os sexos a nível dos estereótipos (Amâncio, 1989; 1990; 1992; 1994); isto é, “evidenciam o facto de que oshomens e mulheres partilham uma representação de pessoa feminina que a situa numa posição especí-fica do sistema social, ao contrário da pessoa masculina, que é representada como ‘universal’“ (Amâncio,1992, p. 19).

3. Impacto dos estereótipos na educação

É importante ter presente que os debates acerca do género e da diferença sexual não são meros exercí-cios académicos: eles têm consequências evidentes e importantes. O que “fizermos” do género e a formacomo se definir homem e mulher tem influência no modo como as pessoas se percepcionam a si própriase ao mundo (Hare-Mustin & Marecek, 1990a). Mas o significado do género tem também influência nocomportamento, nas instituições sociais e sua organização, tais como o trabalho, a reprodução, os cuida-dos com as crianças, a família e a educação.

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No que diz respeito às questões da educação, é importante fazer referência ao trabalho recente de Cristina Vieira que, para a realização do seu doutoramento, pretendeu estudar a influência de algumasdimensões da identidade de género face a opiniões emitidas pelos sujeitos relativas à educação em fun-ção do género. Em termos gerais e nas suas palavras, “pretendíamos verificar, numa amostra representa-tiva de pais e de filhos portugueses, da região de Coimbra, quais eram as dimensões de género (…) quemais directamente se encontraram correlacionadas com as opiniões expressas pelos sujeitos a respeito da educação considerada adequada para o homem e a mulher” (Vieira, 2006a, p. 220). Em síntese, a autora mostra que os homens (pais) se mostram menos liberais do que as mães relativamente à educa-ção para os papéis de género de filhos e de filhas, que os adolescentes rapazes são mais conservadoresque as adolescentes raparigas e até mais do que as próprias mães, e que ambos (rapazes e raparigas)ainda se autopercepcionam como diferentes em termos de género. Do mesmo modo, as atitudes relativa-mente às mulheres continuam a mostrar resultados de uma atitude mais conservadora de pais e filhoshomens, por contraponto com as adolescente do sexo feminino, que surgem como sendo o grupo maisliberal.

Se pensarmos que estes adolescentes do sexo masculino serão os adultos do Portugal do século XXI, é assustador observar os seus índices de conservadorismo (mais elevados que os dos próprios pais,homens!). A autora pensa que a idade em que esta avaliação foi realizada (início da adolescência) podeter influência nesses índices de conservadorismo. No entanto, mesmo que isso realmente possa ter tidoinfluência, não deixa de ser claro que os estereótipos de género existem, constituem-se como modelospara a feminilidade e masculinidade (pensamos que, no momento, se estabelecem como mais poderosose normativos para a percepção de identidade masculina que feminina), constituem-se como alicercespara a educação familiar e estão disseminados na sociedade na sua totalidade, e isso não deixa de ser,por isso, preocupante.

3.1. Na escola

Um dos principais efeitos dos estereótipos de género ocorre na escola, em termos curriculares. Mais concretamente, este reflexo dos estereótipos no curriculum faz com que a perspectiva masculina sejaencarada como normal e a feminina e de outros grupos não-dominantes como marginais. Desta forma, o conhecimento curricular encontra-se organizado, seleccionado e valorizado em função do género, ouseja, os rapazes orientam-se para o campo das ciências (sobretudo física), matemática e tecnologias (tal como arquitectura e engenharias) e as raparigas para o campo das línguas e humanidades (Clark & Page, 1995b). O problema desta bipolarização é que o conhecimento se encontra socialmente hie-rarquizado, sendo o conhecimento relativo à matemática e às ciências em geral muito mais valorizadoque o conhecimento associado às humanidades e ao feminino. Esta dicotomização dos conhecimentosreflecte o dualismo do género – profundamente enraizado na linguagem e cultura. Assim, supostamente,existiria uma associação entre a emocionalidade, subjectividade, expressividade, sensibilidade e as lín-guas, as humanidades e as artes, por um lado, e a racionalidade, objectividade, frieza e impessoalidadee as ciências e matemática, por outro lado (Saavedra, 2005).

Constituindo este modo de conceber o curriculum uma forma de desigualdade para as raparigas, este foi um dos campos privilegiados dos estudos feministas. Sendo a matemática uma das disciplinas maisproblemáticas, foi um primeiros domínios escolares a chamar a atenção das feministas nas duas últimasdécadas, tanto ao nível da política educativa, como da investigação e prática (Willis, 1996).

Contudo, e apesar de uma considerável melhoria da situação das raparigas face à matemática, é difícilnegar que continua a existir um enviesamento do género nesta disciplina e que muitas das profissões quesão orientadas para a matemática continuam a ser predominantemente masculinas.

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Quando ocorrem diferenças significativas na realização na matemática, estas tendem a ser favoráveis ao sexo masculino (Leder, 1996). Um pouco no mesmo sentido, Gilbert e Gilbert (1998) indicam que asraparigas, após a escolaridade obrigatória, tendem a escolher opções de matemática cujo grau de exi-gência está abaixo do seu nível de rendimento. Para os rapazes, a matemática é uma de entre as váriasformas de afirmar a sua masculinidade (Gilbert & Gilbert, idem).

Estudos realizados em Portugal colocam-nos perante um quadro ligeiramente mais complexo, onde nemsempre os rapazes ultrapassam as raparigas, o que não impede, contudo, que ao nível do ensino supe-rior se mantenha a realidade verificada noutros países: menor número de alunas nos cursos superioresonde a matemática se apresenta como tónica dominante (Saavedra, Almeida, Gonçalves & Soares,2004). Embora no ensino básico não se encontrem diferenças estatisticamente significativas entre ossexos, ao nível do 9.o ano de escolaridade (Saavedra, 2001, 2001a) e no ensino secundário, as rapari-gas superam os rapazes tanto na matemática como nos métodos quantitativos (Pinto, 2002). Contudo, noensino superior8, os cursos onde a matemática (e também a física) é dominante, como nas engenharias,são ocupados por mais de 70% de rapazes. O panorama excede consideravelmente estes valores noscasos da Engenharia Mecânica (96%), Engenharia Electrónica Industrial (93%) e Engenharia de Sistemase Informática (93%). O facto de a licenciatura em Ensino de Matemática ser ocupada por cerca de 80%de alunas parece evidenciar que o problema, em Portugal, não reside tanto nas dificuldades sentidas nadisciplina de matemática e que o afastamento das raparigas de alguns cursos se fica a dever a certasrepresentações de masculinidade associadas a eles (Saavedra, Almeida, Gonçalves & Soares, 2004).

Contudo, nos países onde a disciplina de Matemática continua a ser uma fonte de insucesso para asraparigas, têm sido adiantadas diversas explicações para estes resultados (Betz e Hackett, 1983; Willis,1996): umas centram-se nas percepções das raparigas e na sua motivação interna (Fontaine, 1995);outras na importância do papel dos professores (Leder, 1996; Walkerdine, 1998). Observando as interac-ções entre alunos e professores de Matemática, Leder (1996) concluiu que: (1) os rapazes interagem, emmédia, mais frequentemente com o professor do que as raparigas (as diferenças variam ligeiramente como ano de escolaridade); (2) os professores tendem a fazer mais perguntas aos rapazes, estabelecendomais interacções relacionadas com o seu comportamento na sala de aula e com o trabalho escolar e (3) até ao 3.o ano de escolaridade os professores concediam mais tempo aos rapazes para concluíremtarefas cognitivamente complexas e mais tempo às raparigas para realizarem tarefas de rotina.

As ciências têm sido um outro domínio de conhecimento avaliado como predominantemente masculino,tanto na percepção de alunos como na de professores (Harding, 1996; Kahle, 1996; McLaren & Gaskell,1995). Entre os vários ramos das ciências, os alunos classificam a física como a mais masculina e a bio-logia como a menos masculina, situando-se a química numa posição intermédia (McLaren & Gaskell,1995).

Relativamente à percentagem de professores, verifica-se, nos EUA e na Austrália, que embora as profes-soras estejam bem representadas na disciplina de Biologia, no que diz respeito à Física a preponderânciaé essencialmente masculina (Kahle, 1996). Numerosos dados estatísticos destes países demonstram queas ciências são um domínio preferencialmente escolhido pelos rapazes em termos de disciplinas e domí-nio de actividade. Por exemplo, nos EUA, em 1994, dos bacharéis em engenharia apenas 18% erammulheres e 14,6% tinham feito doutoramento; apenas 16% dos cientistas eram mulheres, embora 25%trabalhassem em “campos” relacionados com as ciências. Segundo outro estudo, das pessoas que tra-balham em engenharia, só 6% são mulheres e dos cientistas em informática um número muito reduzido(4%) é constituído pelo sexo feminino (Saavedra, 2005).

8 Os dados relativos a este estudo dizem respeito à Universidade do Minho, embora seja de inferir a possibilidade de serem idênticos noutras universidades portu-guesas.

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Esta realidade não se verifica integralmente em Portugal, onde a percentagem de futuras professorasatinge os 91%, tanto no caso da Biologia (mais concretamente, ensino de Biologia e Geologia), como no ensino da Física e da Química (Saavedra, Almeida, Gonçalves & Soares, 2005).

Contudo, apesar de em Portugal existirem cerca de sete mulheres por cada quatro homens na frequênciado ensino superior, suplantando consideravelmente a média dos restantes países da Europa (Eurydice,2003), dados do Observatório da Ciência e do Ensino Superior, do Ministério da Educação, mostram queembora se verifique uma representação feminina digna de nota em cursos de elevado prestígio social,como medicina (61%), e em outros domínios considerados menos tipicamente femininos, como agricul-tura, silvicultura e pescas (63,5%), a representação feminina continua a ser muito reduzida ao nível daconstrução civil (30,1%), da electrónica (16,3%), da energia e electricidade (11,2%) e dos serviços desegurança (16,9%).

O desporto tem sido das áreas onde se tem revelado uma maior diferenciação entre os géneros, quer aonível da frequência de determinadas práticas desportivas, quer ao nível das crenças que estão associadasaos dois sexos nessa mesma prática desportiva (Louveau, 2001).

Também Portugal não tem fugido a esta realidade, indicando um estudo realizado com cerca de 600jovens do Ensino Básico que a disciplina de Educação Física poderia ser considerada o paradigma damasculinidade, pois é a única em que os rapazes dos mais diversos níveis socioeconómicos conseguemsuperar as raparigas de todos os níveis socioeconómicos (Pinto, 2002; Saavedra, 2001a).

Na tese de doutoramento de Paula Silva (2005), que pretendia conhecer o que pensam os/as professo-res/as e os/as alunos/as acerca da actividade física e desportiva e o género, e como percepcionavam asrelações de género no âmbito das aulas de Educação Física, também se podem ler bastantes situaçõesde desigualdade relativas ao género. Como principais conclusões da sua tese, a autora refere que as/osdocentes continuam a expressar claras crenças (estereótipos) que condicionam as práticas de actividadesfísicas e desportivas e uma adequação ao género, já que continuam a condicionar práticas desportivasem função do que entendem ser socialmente mais adequado a rapazes e raparigas9. Por seu lado os/asdiscentes percepcionavam diferentes oportunidades de práticas desportivas entre rapazes e raparigas, claramente em desfavor destas e das mulheres. Pode-se dizer que o “desporto apresenta-se como ummundo não só sexuado como genderizado, porque é constituído por pessoas de ambos os sexos que pra-ticam desporto, genderizado porque é também nesse mundo que se constroem e se expressam identida-des masculinas e femininas. E, no desporto como noutras dimensões culturais, o masculino e o femininoassumem valores distintos. (…) Mostrar ou exercer a sua força, entregar-se a um combate, dar ou levargolpes e assumir riscos corporais são atributos que as mulheres parecem não poder fazer seus e que, portanto, pertenceriam em exclusivo à masculinidade” (Silva, 2005, pp. 85/90).

Esta maneira de vivenciar o desporto e a educação física reflecte-se, no nosso país, numa fraca represen-tação das mulheres na actividade desportiva: 14% contra 34% dos homens, valores que se aproximamdos níveis do Sul da Europa (Marivoet, 2001).

Ao contrário das disciplinas que até agora analisámos – domínios preferencialmente masculinos –, as línguas e literaturas têm sido tradicionalmente associadas ao feminino, sendo aquelas onde os rapazesparecem apresentar maiores dificuldades de sucesso académico (Saavedra, 2005). As estatísticas indicamque, na Austrália, 75% dos alunos em programas intensivos de língua e leitura são rapazes (Zuel, 1994)e que, no Reino Unido, desde que a língua estrangeira se tornou uma disciplina de opção, a frequência

9 Por esta razão, a autora aponta por isso a necessidade de integrar os conteúdos associados ao género nos currículos dos cursos de formação inicial de professores.

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de rapazes nesta disciplina diminuiu consideravelmente, sendo o seu rendimento, também, muito inferiorao das raparigas (Clark, 1998).

Um estudo realizado em Portugal (Saavedra, 2001a) aponta para uma superioridade estatisticamente sig-nificativa de raparigas com maior sucesso nas disciplinas de Português e Língua Estrangeira, sendo que os rapazes obtêm maior percentagem de níveis 110 na disciplina de Português (73,1% contra 26,9% dasraparigas), o mesmo acontecendo com as classificações de nível 2 (67% contra 33% das raparigas). Nocaso da Língua Estrangeira, a grande diferença entre o sexo feminino e o masculino situa-se no nível 1(84,8% de rapazes).

Abranches & Carvalho (1999) referem que, em termos de interacção verbal na sala de aula, os rapazesoptam frequentemente pelo silêncio nas disciplinas de línguas, em que se sentem academicamente maisfracos, classificando esta sua atitude de masculina e orgulhosa para escamotear as suas limitações. Emgrande parte, as dificuldades dos rapazes nas disciplinas de línguas parecem estar relacionadas com uma atitude negativa generalizada face à escrita e à leitura que os professores detectam desde a escolaprimária (Gilbert & Gilbert, 1998). A maior parte dos autores concorda que a principal razão destes com-portamentos reside no facto de os rapazes considerarem as actividades de leitura como femininas. A mas-culinidade é uma “actuação” que assenta no controlo físico, na autonomia e na independência e serbem-sucedido nas línguas implica, pelo contrário, estar inactivo, ser limpo e organizado, estar atento eser disciplinado, ou seja, tudo aquilo que contraria a imagem de uma masculinidade hegemónica (Gilbert& Gilbert, 1998).

Como vimos ao longo desta secção, apesar das muitas contribuições feministas em diferentes países em contexto educativo, continua a subsistir uma clara desigualdade ao nível da escola que tem reflexosno mercado de trabalho, em grande parte porque as opções escolares e profissionais das adolescentesdeterminam profissões menos remuneradas e mais frágeis do ponto de vista social (Pinto, 2004).

4. Para que servem os estereótipos de género? O sexismo

Um dos maiores problemas dos estereótipos é que eles permitem que se formem preconceitos (Bourhis,Gagnon & Moise, 1996). Estes preconceitos são atitudes problemáticas, na medida em que se traduzemem generalizações, frequentemente abusivas e desfavoráveis face a um ou mais elementos que perten-cem a um determinado grupo, sem ter em conta a grande diversidade que existe dentro dessa mesmacategoria.

No caso dos estereótipos de género, estes podem dar origem a preconceitos relativamente às mulheres(consideradas como um grupo homogéneo e com características estáveis), o que se traduz claramente no sexismo. Estes preconceitos situam-se no domínio da apreciação cognitiva, mas também a nível dasreacções afectivas. Para além deste fenómeno em si já preocupante, temos o problema agravado da pas-sagem ao acto. Nesse caso, estamos perante o flagelo da discriminação, que se traduz em actos, com-portamentos que prejudicam ou desfavorecem o indivíduo exclusivamente pela sua pertença a um gruporelativamente ao qual se nutrem sentimentos negativos. A discriminação emana frequentemente de pre-conceitos e por isso se torna tão importante mostrar o efeito dos estereótipos.

Segundo Magalhães et al. (no prelo), a difusão das ideias estereotipadas de género conduz a posições eatitudes sexistas, que parecem ser mais frequentes do que se imagina, e incluem estereótipos de papéis

10 No actual sistema de ensino, em que avaliação no Ensino Básico se situa numa escala de 1 a 5, os níveis 1 e 2 são considerados classificações negativas.

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de género tradicionais, comentários e comportamentos depreciativos e objectificação sexual. Assim, o sexismo pode ser encarado como um conjunto de atitudes e crenças negativas, discriminatórias e pejo-rativas (com poder social) que se podem presenciar no quotidiano, nomeadamente, ao nível pessoal(e.g., violência conjugal), profissional (e.g., criação de obstáculos na ascensão na carreira), ou, ainda,interpessoal, por exemplo, através de “piropos” ou piadas de cariz sexual (Pharr, 1988, citado por Adamset al., 2000).

Mesmo no contexto educativo, compreender o assédio sexual, por exemplo, como uma expressão damasculinidade dominante e seu consequente comportamento sexista torna-se um passo fundamental, frequentemente subvalorizado e, por isso, negligenciado.

O assédio sexual sobre as raparigas deve ser encarado como parte de um problema mais vasto que é a desigualdade de poder nas relações de género, na escola, em casa e no local de trabalho, tendo um impacto negativo na qualidade das relações entre rapazes e raparigas e no rendimento académico de ambos (Kenway & Willis, 1998). No caso da escola, estes comportamentos exprimem-se através decomentários sobre o corpo das raparigas, de comportamentos ostensivamente rudes e ofensivos. Fre-quentemente, os elementos do sexo feminino reagem com o silêncio a estas provocações, não porque se sintam agradados, mas porque é a única forma de não piorar a situação. Por vezes, algumas rapari-gas resistem a estes comportamentos masculinos através da ridicularização, mas é uma posição difícil de manter por ser rejeitada pelos outros elementos da escola, nomeadamente pelos professores (Ollis,1995).

De facto, o problema do assédio sexual na escola é muito mais grave do que é considerado pelos pro-fessores, pois muitos dos incidentes não são identificados como sendo de assédio. São encarados porgrande parte dos estudantes como normais e inevitáveis, apesar de terem efeitos prejudiciais. E nunca éde mais salientar que estes comportamentos começam logo nos primeiros anos da escola primária (Ollis,1995).

Conclusão

A ênfase nas diferenças sexuais teve importantes consequências dentro da comunidade científica e naprática profissional dos psicólogos. O discurso da diferença suporta as instituições e reproduz as relaçõesde poder existentes, já que esta pesquisa não é, geralmente, apolítica e as ideias acerca da diferença nãoentram no discurso público de forma neutra.

Um dos grandes problemas da pesquisa das diferenças sexuais trata as mulheres como uma categoriaglobal, isto é, frequentemente os pesquisadores das diferenças sexuais não consideram a diversidade dasmulheres (Crawford, 1995). É um erro assumir que todas as mulheres têm necessariamente muito maisem comum umas com as outras do que com os homens, simplesmente porque são mulheres. A etnici-dade, a classe social, a idade, a sexualidade são, igualmente, dimensões importantes e socialmentesalientes (Hare-Mustin & Marecek, 1990b). Encarar o sexo biológico como a única e mais importantediferença subvaloriza as outras dimensões e contribui para uma simplificação das diferenças observadas.Uma mulher saudável da classe alta terá, provavelmente, muito mais em comum com um homem da suaclasse do que com uma mulher da classe trabalhadora ou pobre; as mulheres negras partilham com oshomens negros a experiência vivida do racismo; as posições sociais das mulheres idosas são distintas dasmulheres mais novas (Crawford, 1995).

Enquanto o comportamento do homem for considerado o padrão na cultura, as diferenças das mulheresem relação ao homem serão sempre encaradas como deficiências (Hare-Mustin & Marecek, 1990c). Paraser considerada igual ao homem, a mulher deve ser “igual a” ou “tão boa como”, o que promoveu um

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grande conjunto de trabalhos da própria psicologia feminista, que reflectia esta afirmação cultural. A dife-rença, mesmo que originalmente conceptualizada como neutra do ponto de vista avaliativo, é quase sempre transformada em “deficiência”, já que a cultura ocidental sempre avaliou a masculinidade comoinerentemente superior à feminilidade (Nogueira, Neves & Barbosa, 2005).

Frequentemente, as conclusões de muitos estudos sugerem que a posição das mulheres na hierarquiasocial provém da sua psicologia, por exemplo, a sua falta de assertividade pode explicar a promoçãolenta das mulheres nas organizações, o que acaba por retirar a atenção do sexismo das próprias insti-tuições (Hare-Mustin & Marecek, 1994). Este tipo de conceitos explicativos tem o efeito de esmorecer acrítica social e encoraja as mulheres a encontrar soluções pessoais através da psicoterapia ou de progra-mas de promoção pessoal e de auto-ajuda (Crawford, 1995). Nesta perspectiva, a responsabilidade damudança é colocada no indivíduo, não no colectivo, sendo encorajada a vitimização e a culpa.

Em jeito de síntese, podemos dizer que nem o reconhecimento da variabilidade interindividual e intra-grupal relativas ao género, nem o crescente interesse pela diversidade, nem a comprovação empírica desemelhanças entre homens e mulheres conseguem superar a crença nas diferenças. Nada parece con-seguir modificar a crença popular partilhada de que os homens por um lado e as mulheres por outrorepresentam pólos de uma única dimensão.

A força dos estereótipos mantém-se e continua a servir a ideologia masculina dominante. Os estereótiposparecem resistir a orientações políticas, a evidências provenientes quer de experiências pessoais quer deestudos de investigação. Apesar de a investigação deixar de estar centrada na questão de saber se há ou não diferenças e de ter passado a orientar-se para outras questões, não tem alterado o grande peso e consequência das pesquisas sobre os estereótipos. Estes mantêm-se. E, por isso, é importante percebercomo estes ganharam força, perceber para que servem, de forma a compreender como devemos actuarpara os desconstruir.

Toda a sociedade está de tal forma organizada à sua volta que é difícil a sua transformação. Mas é esseo nosso papel. Não adianta continuar a mostrar que os estereótipos existem. Interessa mostrar como elesactuam, os seus efeitos e, assim, fazer passar a mensagem da necessidade da sua transformação.

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Mulheres, Educação e Relações Sociaisde Género: uma perspectiva histórica

Teresa Pinto – CEMRI – Universidade Aberta

1. A problemática

Em 2003, o relatório de Educação para Todos da UNESCO, intitulado Gender and Education forAll. The Leap to Equality, alertava para o facto de, nos países mais desenvolvidos, onde se garantiua igualdade de acesso ao ensino para raparigas e rapazes e onde se verifica um maior sucessoescolar das raparigas, se continuar a presenciar uma clara assimetria ao nível do mercado de tra-balho e dos níveis remuneratórios e persistir uma representação das mulheres que as associa aoseu papel no seio da família em actividades não remuneradas1. Sublinhava o mesmo relatório que,apesar de haver actualmente mais mulheres habilitadas com diplomas de ensino superior do quehomens, as oportunidades sociais e profissionais não reflectem aquela superioridade.

Em Portugal, esta realidade também existe e é conhecida. Um sucesso escolar das raparigas supe-rior ao dos rapazes é uma primeira dimensão dessa realidade.

As estatísticas mostram-nos que as raparigasalcançam um sucesso escolar superior aos rapa-zes na conclusão, quer do ensino básico, querdo ensino secundário. Verifica-se, porém, que astaxas de conclusão do ensino secundário sãobaixas para ambos os sexos, o que significa quenem raparigas, nem rapazes logram obter ele-vado sucesso.

Apesar dos progressos registados entre 2002 e 2004 nos níveis de habilitação da populaçãojovem (20-24 anos), a percentagem de conclu-são do ensino secundário naquele último ano (49,0%) situa-se abaixo da média da União Europeia(UE25), que era de 76,7% em 2004. As diferenças entre os sexos são acentuadas, dado que 39,4%dos rapazes e 58,8% das raparigas não finali-zam com êxito o ensino secundário. Em com-paração com a taxa de abandono escolar pre-coce de 15,9%, registada em 2004 na UE25, astaxas nacionais no mesmo ano, de 47,9% parao sexo masculino e de 30,6% para o sexo femi-nino, permanecem muito elevadas2.

O investimento na educação e na formação dos recursos humanos, ou, por outras palavras, o investimento no capital humano, é conside-rado, actualmente, um factor crucial no desen-volvimento dos países. Os estudos realizados no

1 Cf. EFA Global Monotoring Report 2003/04, Gender and Education for All. The Leap to Equality, Paris, UNESCO, 2003.2 Cf. Plano Nacional de Emprego 2005.

O que nos mostram as estatísticas

Taxas de sucesso2004/05

Raparigas

Ensino Básico 83,6%

Ensino Secundário 55,8%

Rapazes

75,2%

49,4%

GIASE, Estatísticas da Educação, 2004/05, Ministério da Educação, 2006.

Relatórios propõem

Estudos Temáticos para Preparação do Próximo Ciclode Intervenções Estruturais QREN 2007-2013 (inclusão social),

Edição do Observatório do QCA III, 2006.

O segundo domínio dos objectivosestratégicos remete para aquele quepode ser o mais importante dos factoresde modernização do país, o “capitalhumano” ou, por outras palavras, asqualificações das pessoas.

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âmbito da preparação do QREN 2007-2013 (Quadro Referencial Estratégico Nacional) referem, precisa-mente, que a qualificação das pessoas pode ser o principal factor de modernização do país. Nos dias de hoje apontam-se metas ambiciosas nesse sentido. Propõe -se que o abandono precoce da escola, ouseja, saídas sem o 12.o ano de escolaridade ou qualificação equivalente, seja reduzido para 20% até2013.

Procura-se ultrapassar o atraso evidenciado por Portugal, designadamente no que respeita aos problemasqualitativos do sistema de educação e formação, de modo a aproximá-lo da tendência europeia. Note-seque o Programa de Trabalho Educação e Formação 2010 da União Europeia, no âmbito da Estratégia deLisboa, preconiza que até 2010 deve ser alcançada uma média europeia não superior a 10% de casosde abandono escolar precoce3.

O aumento do sucesso escolar não se pode abordarindependentemente de uma outra dimensão, a do quese entende por sucesso escolar. Apesar das raparigasapresentarem um sucesso escolar superior aos rapazese as mulheres diplomadas serem em maior número,continua a existir uma maior concentração de homensem sectores e profissões com salários mais altos e averificar-se alguns fenómenos de discriminação indi-recta em termos salariais4.

A constatação de que nas camadas mais jovens dapopulação activa, nas quais é mais notória a supe-rioridade de qualificações escolares das mulheres, o desemprego penaliza mais o sexo feminino, nãopode deixar de provocar perplexidade. Qual a rela-

ção, então, entre a certificação conferida pela escola e a integração com sucesso na vida profissional?Como compreender o desfasamento evidenciado pelas estatísticas?

Para além dos mecanismos de discriminação no mer-cado de trabalho, estas questões conduzem-nos a umaanálise da realidade escolar, nomeadamente no querespeita ao modo como raparigas e rapazes se posi-cionam face às alternativas de prosseguimento deestudos oferecidas pelo sistema educativo.

Os estudos têm revelado que as opções curricularesde alunas e de alunos determinam vias profissionaisdistintas e que as escolhas das mulheres conduzem aprofissões menos remuneradas, mais precárias e maisfrágeis5. O relatório introdutório ao Quadro Comuni-tário de Apoio (QCA III) diagnosticava que as rapari-gas se orientavam menos para cursos profissionais e

3 Cf. Programa de trabalho pormenorizado sobre o seguimento dos objectivos dos sistemas de educação e de formação na Europa (2002/C 142/01), Jornal Oficialdas Comunidades Europeias, 14.6.2002, disponível em http://www.gaeri.min-edu.pt/biblioteca.asp?pub=2.

4 Consultar os dados estatísticos presentes no texto de Maria do Céu da Cunha Rego.5 FONSECA, Laura e MAGALHÃES, M.a José, “Reflectindo sobre dicotomias na orientação escolar profissional”, in AAVV, Reconstruir os nossos olhares. O papel da

orientação escolar e profissional na promoção da igualdade de oportunidades, Coimbra, ME/DREC, 2001, pp. 53-63.

Estatísticas Educação 2004/05

GIASE, Estatísticas da Educação, 2004/05, Ministério da Educação, 2006.

ENSINO BÁSICOMATRÍCULAS

FEM. MASC.

3.o ciclo – global 49,4% 50,6%

3.o ciclo – Regular 50,0% 50,0%

3.o ciclo – Artístico Esp. 59,7% 40,3%

3.o ciclo – Profissional 35,6% 64,4%

3.o ciclo – Qualificante 30,4% 69,6%

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qualificantes e preconizava o desenvolvimento demedidas que invertessem essa tendência6. A realidadecontinua, porém, a revelar a persistência daqueleenviesamento nas escolhas escolares. As estatísticas daeducação revelam que, no 3.o ciclo do ensino básico,apenas o ensino regular apresenta uma frequênciaequilibrada de raparigas e de rapazes; em contrapar-tida, no ensino artístico especializado, as raparigaspredominam e os ensinos profissional e qualificantesão mais escolhidos pelos rapazes.

Estas assimetrias estão também patentes no ensinosecundário. As raparigas representam mais de metadedos matriculados, em resultado dos índices superiores de sucesso obtidos na conclusão do 3.o ciclo doensino básico. O diferencial entre os dois sexos, todavia, aumenta quando se analisa cada uma dasopções efectuadas a nível de cursos. O ensino regular e o artístico especializado são mais procuradospelas raparigas e o profissional e o qualificante são preferidos pelos rapazes.

Uma análise mais fina dos cursos revela, por exemplo,que é fraca a participação feminina em cursos dasescolas profissionais orientados para profissões tradi-cionalmente masculinas7. Observa-se que elas esco-lhem pouco os cursos de informática e quase nãoestão presentes nos cursos de electricidade e de elec-trónica. As suas escolhas elegem os cursos ligados àintervenção pessoal e social e aos sectores do têxtil,vestuário e calçado, os quais registam, por sua vez,valores muito baixos de matrículas do sexo masculino.

As diferenças atrás assinaladas têm repercussões nofuturo profissional das e dos jovens. O tipo de estudos escolhidos pelas mulheres dificulta a transição daescola para a vida activa e contribui para uma situação mais desfavorável para as mulheres no sistemade emprego, mesmo quando são detentoras de qualificações elevadas8.

O investimento em educação e formação é considerado prioritário a nível europeu e um dos objectivos éo aumento de pessoas formadas e diplomadas em cursos das áreas científicas e tecnológicas e concomi-tante redução dos desequilíbrios entre sexos.9

As questões analisadas – sucesso escolar das raparigas, escolhas escolares diferenciadas em função dosexo, situação desfavorável das mulheres no sistema de emprego – são atravessadas por uma outra ques-tão, a persistência de concepções estereotipadas de género10. Esta situação é desfavorável, não só àconcretização da igualdade entre mulheres e homens, como também ao desenvolvimento do país noquadro das actuais tendências europeias.

06 Cf. Quadro Comunitário de Apoio (QCA III), Portugal 2000-2006.07 Cf. Ibidem.08 Cf. Ibidem.09 Programa de trabalho pormenorizado sobre o seguimento dos objectivos dos sistemas de educação e de formação na Europa, op. cit.10 Sobre estereótipos e género, ver texto de Conceição Nogueira.

Estatísticas Educação 2004/05

GIASE, Estatísticas da Educação, 2004/05, Ministério da Educação, 2006.

ENSINO SECUNDÁRIOMATRÍCULAS

FEM. MASC.

Ensino Secundário (global) 52,6% 47,4%

Secundário regular 54,6% 45,4%

Secundário Artístico Espec. 59,0% 41,0%

Secundário Profissional 44,6% 55,4%

Secundário Qualificante 32,7% 67,3%

Cursos Profissionais

Ano lectivo de 1999/2000

A Igualdade de Género em Portugal.2003, Lisboa, CIDM, 2004.

Cursos Profissionais FEM. MASC.

Intervenção Pessoal e Social 80,4% 19,6%

Electricidade e electrónica 07,1% 92,9%

Têxtil, Vestuário e Calçado 79,6% 20,4%

Informática 28,7% 71,3%

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A análise da sociedade portuguesa revela que, nointerior das famílias, os cônjuges do sexo masculinorealizam muito poucas tarefas domésticas e que ossinais de mudança nas gerações mais novas não sãocongruentes11. Isto significa que as gerações maisnovas não exibem comportamentos claros de mudançano sentido da alteração dos estereótipos que asso-ciam os homens às actividades da esfera pública e asmulheres às tarefas domésticas. As análises inter gera-cionais revelam, ainda, que os elementos mais conser-vadores não se encontram necessariamente no grupodos progenitores, ou seja, não são os elementos dasgerações mais velhas aqueles que se mostram, deforma inequívoca, mais resistentes à mudança12. Expli-citando, o grupo dos rapazes – quando comparadocom os outros grupos familiares, raparigas, mães e,mesmo, pais – é o que apresenta indicadores maisconservadores no que respeita à realização de activi-dades na esfera doméstica.

A mudança não é, pois, algo que se produz de modoautomático e natural à medida que as novas geraçõesvão crescendo e substituindo as anteriores. As concep-ções estereotipadas que associam as profissões pró-

prias para os homens à sua função de “ganha -pão”, isto é, de sustento da família, e as profissões ade-quadas às mulheres à sua função “maternal” persistem na sociedade portuguesa e atravessam todas asgerações13.

Estas ideias e preconceitos encontram-se bem enraizadas na população portuguesa14. Quando e como éque se desenvolveram estas concepções estereotipadas?

2. Elementos históricos estruturantes

Ao longo do século XIX desenvolveu-se uma representação das mulheres associada à vida na esfera pri-vada, no interior do lar. Este paradigma estava profundamente enraizado no pensamento rousseaunianoque, ao enfatizar a “natureza” reprodutora da mulher, conferiu como atributos constitutivos do feminino asubordinação e a domesticidade15. Assim, através da fidelidade conjugal e das virtudes da maternidade,exercidas no quadro do casamento, esperava-se que as mulheres desempenhassem um papel moraliza-dor das famílias e, através destas, da ordem social. A existência social das mulheres era definida pelassuas funções de esposa, de dona de casa, de mãe e de educadora. Esta concepção foi sendo validada

11 Cf. Estudos Temáticos para a Preparação do Próximo Ciclo de Intervenções Estruturais QREN 2007-2013 (inclusão social), Edição do Observatório do QCA III,2006; VIEIRA, Cristina Coimbra, Educação e desenvolvimento do género. Os trilhos percorridos na família, dissertação de Doutoramento, Coimbra, Universidadede Coimbra, 2003 (texto policopiado).

12 Cf. Ibidem.13 HENRIQUES, Fernanda, Projectos de Vida, Projectos de Aprendizagem, Lisboa, CIDM, 1994; TORRES, Anália Cardoso (coord.), Homens e Mulheres entre Família

e Trabalho, Lisboa, DEEP-CID, 2004.14 Sobre preconceitos e género, consultar o texto de Conceição Nogueira.15 Cf. POPE, Barbara Corrado, “The Influence of Rousseau’s Ideology of Domesticity”, in BOXER, Marilyn J., QUATAERT, Jean H. (eds.), Connecting Spheres. Women

in the Western World, 1500 to the Present, New York, Oxford University Press, 1987. pp. 136-145.

Estudos revelam

HENRIQUES, Fernanda, Projectos de Vida, Projectosde Aprendizagem, Lisboa, CIDM, 1994.

TORRES, Anália Cardoso (coord.), Homens e Mulheresentre Família e Trabalho, Lisboa, DEEP-CID, 2004.

Na sociedade portuguesa persistemassociações estereotipadas entre

• profissões masculinas/função “ganha-pão”

• profissões femininas/função maternal

Relatórios diagnosticam

Estudos Temáticos para Preparação do Próximo Ciclode Intervenções Estruturais QREN 2007-2013 (inclusão

social), Edição do Observatório do QCA III, 2006.

Note-se ainda que nas famíliasportuguesas os cônjuges do sexomasculino realizam muito poucastarefas domésticas.

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pelos discursos oitocentistas da biologia, da medicinae da economia política e consolidou-se. Configurou--se, então, uma relação específica das mulheres como trabalho e com a educação.

Ao longo do século XIX, o processo de industrializaçãofavoreceu alguma prosperidade económica para asfamílias burguesas, o que permitiu que um rendimento,exclusivamente masculino, provesse ao conjunto dasdespesas familiares. A fixação das mulheres à casa e a sua dissociação das actividades consideradas produ-tivas tornaram-se, assim, possíveis para uma camadaminoritária da população. Como alega Ana Nunes deAlmeida, “no que constitui uma verdadeira excepçãohistórica, esta família burguesa inaugura portanto, nointerior do grupo doméstico, a clivagem ideológicaentre membros produtivos e não produtivos, activos enão activos, ao mesmo tempo que constitui a naturezae a virtude femininas como sinónimos exclusivos dedomesticidade.”16 Estabeleceu-se, nesta base, umadivisão sexual do trabalho assente na dissociaçãoentre o espaço privado, considerado um lugar dereprodução, e o espaço público associado à pro-dução. As actividades realizadas pelas mulheres no interior da casa não eram reconhecidas como pro-dutivas17.

O efeito da dissociação entre espaço privado e acti-vidades produtivas favoreceu, do ponto de vista dodesenvolvimento económico capitalista, o incrementodo trabalho domiciliário. Este era desvalorizado pelofacto de ser realizado em casa, o que garantia a uti-lização permanente de uma mão-de-obra barata, a feminina.

O desígnio da domesticidade teve de ser adaptado em função da classe social, dado que nas classes tra-balhadoras as mulheres continuaram a trabalhar e acontribuir para o sustento das famílias18. Definiram-se,assim, as circunstâncias em que era lícito o trabalho feminino (necessidade económica, no caso demulheres das classes mais desfavorecidas, de mulheres solteiras ou viúvas) e definiram-se os trabalhospróprios e impróprios para as mulheres. A categoria de “trabalho feminino” foi construída, à partida,numa base de valor inferior em comparação com os trabalhos realizados pelos homens. Estes passarama ser responsabilizados pelo sustento da família e os salários auferidos pelas mulheres, independente-mente do seu peso no rendimento familiar, eram considerados como um mero complemento. A imagem

16 ALMEIDA, Ana Nunes de, “Mulheres e Famílias Operárias: a «esposa doméstica»”, Análise Social, vol. XXVIII (120), 1993 (1.o), p. 106.17 Cf. HALL, Catherine, “Lar, doce lar”, in ARIÈS, Philippe, DUBY, Georges (dir.), História da Vida Privada, vol. 4, PERROT, Michelle (dir.), Da Revolução à Grande

Guerra, Porto, Afrontamento, 1990, pp. 53-87.18 SCOTT, Joan Wallach, “A mulher trabalhadora”, in DUBY, Georges, PERROT, Michelle (dir.), História das Mulheres no Ocidente, vol. 4, FRAISSE, Geneviève,

PERROT, Michelle (dir.), O Século XIX, Porto, Ed. Afrontamento, 1994, pp. 443-475.

SÉCULO XIX

assimilou validou consolidou

concepçãode feminidade associada

à domesticidade(Rousseau – séc. XVIII)

MULHERES E TRABALHO

DISCURSODOMINANTESÉCULO XIX

Sublinhae naturaliza

a divisãosexual

do trabalho

criou-se a categoria de“trabalho feminino”assente na assimetriado valor entre ostrabalhos realizadospor homens e ostrabalhos realizadospor mulheres

MULHERES E TRABALHO

DISCURSODOMINANTESÉCULO XIX

Sublinhae naturaliza

a divisãosexual

do trabalho

criando asexpressões

anjo-do-larganha-pão

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da família burguesa, em que o homem era o ganha--pão da família e a mulher, libertada das tarefasmanuais, geria, como boa “dona de casa”, as activi-dades domésticas realizadas pela criadagem, tornou--se uma marca de estatuto social e um modelo dese-jado pelas restantes classes sociais.19

A construção do paradigma da domesticidade foiacompanhada pela valorização da família, queganhou um novo significado com a consolidação doideal de “família-santuário”, na qual a mulher, ideali-zada como anjo-do-lar, consumava os seus deveresconjugais e maternais. A reorganização da famíliaassentou, também, em novas atitudes face às crian-ças. Com a redução malthusiana dos nascimentos, o desenvolvimento de novos laços de afectividade e oprolongamento da infância, a função da maternidade,inerente à mulher, prolonga-se na tarefa educativa20.

O processo de alargamento social deste modelo de família assumiu ritmos diferenciados e graus desucesso distintos em função das especificidades nacio-nais. Em Portugal, a lentidão das transformações eco-nómicas e sociais reflectiu-se numa persistência, até às primeiras décadas do século XX, de modos de orga-nização do trabalho e da família característicos dasociedade pré-industrial, que permaneciam preponde-rantes, a par dos novos modelos emergentes. No iní-cio de novecentos, a realidade portuguesa encaixava--se com dificuldade no paradigma da domesticidadefeminina.

As mulheres trabalhavam fora de casa em contextosdiversificados e realizavam actividades que exigiamdestreza, força e resistência21. António Arroio, em1908, comentava que “além de comover o espectá-culo de a vermos nos campos, não comove menos o encontrarmo-la pelas estradas, duplicando a suaactividade e o seu ganho, pois que sendo já um tra-balho a condução dos carros [de bois], a transporta-ção de instrumentos agrários, a carregação à cabeçade fardos pesadíssimos, vai conjuntamente fiando oucosendo para não perder o tempo…”22.

19 Cf. PERROT, Michelle, “Funções da Família”, in ARIES, Philippe, DUBY, Georges (dir.), História da Vida Privada, vol. 4, PERROT, Michelle (dir.), Da Revolução àGrande Guerra, Porto, Afrontamento, 1990, pp. 105-119.

20 Cf. BADINTER, Elisabeth, L’amour en plus. Histoire de l’amour maternel (XVIIe-XXe siècle), Paris, Flammarion, 1980.21 Podem observar-se inúmeras fotografias de mulheres das várias classes sociais na viragem do século XIX para o século XX em MÓNICA, Maria Filomena, A Queda

da Monarquia. Portugal na viragem do século, Lisboa, D. Quixote, 2.a ed., 2000.22 ARROIO, António, “O povo português”, in Notas sobre Portugal, vol. 2, Lisboa, Imprensa Nacional, 1909, p. 83 (actualizou-se a grafia e respeitou-se a pontuação).

Cultivando a terra

Ilustração Portuguesa, 11/01/1909, in MÓNICA, Maria Filomena, A Queda da Monarquia.Portugal na Viragem do Século, Lisboa, D. Quixote, 2.a ed., 2000, p. 37.

Vindima – recebendo a féria

Manuel Monteiro, O Douro, Porto, E. Biel, 1911, in MÓNICA, Maria Filomena, A Quedada Monarquia. Portugal na Viragem do Século, Lisboa, D. Quixote, 2.a ed., 2000, p. 64.

Transportando água

E. Biel, A Arte e a Natureza em Portugal, Lisboa, 1902-1908, in MÓNICA, Maria Filomena,A Queda da Monarquia. Portugal na Viragem do Século, Lisboa, D. Quixote, 2.a ed., 2000, p. 36.

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As descrições coevas sobre o trabalho das mulheres,apesar do pendor pitoresco e idílico, dão conta dadiversidade de tarefas por elas realizadas ao longo dodia e do ano. “É a mulher que «esmadeira» a vinha(…), é ela que faz os «capões» das vides podadas e os leva à cabeça para as «casas da lenha» onde noinverno alimentam as «braseiras» antigas quando o frioaperta e o vento sopra. Mais tarde, é a mulher queaplica contra o maldoso «oídio» o enxofre salvador e o sulfato de cobre contra o «míldio» que atormentaas uvas ao nascerem. Era a mulher que acarretava apedra para as paredes das plantações que talvez maisninguém fará. São as mulheres que levam à cabeça,em cestos, os estrumes fertilizantes para a velha terraempobrecida. São elas que decapitam as videiras, dei-tando nas cestas os cachos (…) tudo isto fazem, traba-lhando de sol a sol (…). A mulher do pequeno lavra-dor é que amassa, tende e coze o saboroso pão (…).É ela que cuida (…) dos «récuos» no «cortelho»,levando-lhes grandes baldes de «lavagem» e dei-tando-a na pia onde os cevados, ao chamamento de:«bicá», «bicá», «chuá», «chuá», afocinham grunhindoalegremente. (…) Ninguém trata melhor das galinhas(…). Às cabras vai ela também mungir o leite puro quedá aos filhos em grandes «malgas» com sopas. Asmulheres do Douro vão lavar aos ribeiros ou aos tan-ques as roupas que a barrela, feita à noite (…) bran-queia e desinfecta (…). As mulheres das «ranchadas» – as «montanheiras» colhem de dia, pelo sol de fogo,as uvas, favos de açúcar, e de noite, coristas no grandepalco do lagar, de saias arregaçadas, «sovam» o vinhoque lhes tinge as pernas nuas e roliças”23.

A definição de família utilizada pelo Censo da Popula-ção de 1890 utiliza o critério de residência comum,característico da sociedade pré-industrial, e não o daconsanguinidade, que foi introduzido com o modelofamiliar burguês24. Todos os elementos que viviamdebaixo do mesmo tecto e contribuindo para o funcio-namento da unidade familiar, incluindo os serviçais,eram incluídos na família. Os resultados do Censo de1890 reflectem a persistência de famílias diversifica-das, incluindo a “família alargada”.

De acordo com os resultados do Censo de 1890, a taxa de feminização da população activa era de36,4%. Sabendo que uma parte significativa das mulheres trabalhadoras, sobretudo no mundo rural, não

23 SOUSA, Amílcar de, “A mulher duriense”, Ilustração Portuguesa, II Série, 10/09/1906, pp. 171-174.24 Cf. Censo da População do Reino de Portugal no 1.o de Dezembro de 1890, Lisboa, Imprensa Nacional, 1896.

Carregadoras nos cais

Manuel Monteiro, O Douro, Porto, E. Biel, 1911, in MÓNICA, Maria Filomena, A Quedada Monarquia. Portugal na Viragem do Século, Lisboa, D. Quixote, 2.a ed., 2000, p. 153.

E. Biel, A Arte e a Natureza em Portugal, Lisboa, 1902-1908, in MÓNICA, Maria Filomena,A Queda da Monarquia. Portugal na Viragem do Século, Lisboa, D. Quixote, 2.a ed., 2000, p. 44.

Oficina de costura

Arquivo do Jornal O Século, in MÓNICA, Maria Filomena, A Queda da Monarquia.Portugal na Viragem do Século, Lisboa, D. Quixote, 2.a ed., 2000, p. 98.

Carregando lenha

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foi identificada pelo censo, aquele valor fica aquém da realidade, tanto mais que Portugal era, no final deoitocentos, um país fortemente rural25. Em 2005, maisde um século mais tarde, a taxa de feminização dapopulação activa era de 46,6%26. Em rigor, a noçãode “conquista feminina” não se aplica ao acesso dasmulheres ao trabalho.

A progressiva incorporação das competências domés-ticas na função de esposa e a valorização do papel de educadora inscrito na missão de mãe foram deter-minando, por um lado, a necessidade de uma maiorprofissionalização e racionalização técnica dos conhe-cimentos em torno do trabalho doméstico e, por outrolado, a construção de uma nova imagem cultural damulher, em função das exigências colocadas pela edu-cação dos futuros cidadãos27.

Criou-se uma nova representação de mulher, maisculta e mais competente. A educação das mulheresnão era, pois, encarada como um direito natural dapessoa, mas como uma necessidade social, ou seja,como um instrumento de modelação de cada indiví-duo ao seu lugar e respectivos papéis numa hierarquiadefinida pela classe social e pelo sexo.28 Nesta confor-midade, exigia-se que a instrução feminina se diferen-ciasse da masculina segundo dois princípios: o de quepara as mulheres era mais importante a educaçãomoral do que a instrução intelectual, pois esta emdemasia masculinizava-as, e o de que toda a educa-ção das raparigas, desde o seu nascimento, tinhacomo finalidade o exercício da maternidade29.

A instrução das raparigas devia, em suma, habilitá-laspara a missão de mãe e para a função de dona decasa. Neste sentido, no último quartel do século XIX

introduziu-se a economia doméstica na instrução dasraparigas e, por toda a Europa, foram sendo criadasas chamadas escolas ménagères, escolas com um

25 Cf. BAPTISTA, Virgínia do Rosário, As Mulheres no Mercado de Trabalho em Portugal: Representações e Quotidianos (1890-1940), Lisboa, ONG/CC da CIDM,1999.

26 INE, Portugal. Estatísticas do Emprego, 2006, em linha, disponível em http://www.ine.pt/PI/genero/Quadro.aspx, consultado em 20/11/2006.27 Cf. NASH, Mary, “Maternidad, maternología y Reforma Eugénica en España 1900-1939”, in DUBY, Georges, PERROT, Michelle (dir.), Historia de las Mujeres en

Occidente, tomo 5, Madrid, Taurus Ed., 1993, pp. 627-645; QUARTARARO, Anne T., Women Teachers and Popular Education in Nineteenth-Century France. SocialValues and Corporate Identity at the Normal School Institution, Newark, University of Delaware Press, 1995.

28 Cf. SCANLON, Geraldine, “Nuevos horizontes culturales: la evolución de la educación de la mujer en España. 1868-1900”, in AAVV, Mujer y Educación enEspaña. 1868-1975, VI Coloquio de Historia de la Educación, Santiago, Universidade de Santiago, 1990, pp. 721-740; VAQUINHAS, Irene Maria, “Senhoras e Mulheres” na Sociedade Portuguesa do século XIX, Lisboa, Colibri, 2000; MAYEUR, Françoise, L’Enseignement Secondaire des Jeunes Filles sous la Troisième République, Paris, Presses de la Fondation Nationale des Sciences Politiques, 1977.

29 Cf. VAQUINHAS, Irene, CASCÃO, Rui, “Evolução da sociedade em Portugal: a lenta e complexa afirmação de uma civilização burguesa”, in MATTOSO, José (dir.),História de Portugal, vol. 5, Lisboa, Ed. Estampa, 1993, pp. 441-457; BRICARD, Isabelle, Saintes ou Pouliches: L’éducation des jeunes filles au XIXè siècle, Paris,Albin Michel, 1985; MAYEUR, Françoise, L’Éducation des filles en France au XIXe siècle, Paris, Hachette, 1979.

CENSO DE 1890

“Família – é o grupo de pessoas,parentes ou não, que residemusualmente na mesma habitação,vivendo em comum, na dependência deum mesmo chefe. Os serviçais são, pois,considerados como fazendo parte daFamília. Uma pessoa vivendo só, emhabitação separada, é considerada comouma Família.”

CENSO DE 1890

Número de famílias e sua composiçãoem valores relativos

Total1 250 073

1 p.11,5%

5 p.13,0%

6 p.9,7%

7 p.14,3%

2 p.17,4%

3 p.17,9%

4 p.16,1%

Empalhamento de garrafões

J. Worm, colecção particular Maria Filomena Mónica, 1911, in MÓNICA, Maria Filomena,A Queda da Monarquia. Portugal na Viragem do Século, Lisboa, D. Quixote, 2.a ed., 2000, p. 92.

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currículo específico para as raparigas destinado à pre-paração para as actividades domésticas30. A “esco-larização do doméstico” reforçou a domesticidade através da diferenciação entre os ensinos masculino e feminino31. Em Portugal, este modelo esteve pre-sente quando se definiu o currículo do primeiro liceufeminino, o Liceu Maria Pia, instituído em 1906. Osconhecimentos de carácter humanístico e científicoforam aligeirados em função de um currículo que sepretendia específico para o sexo feminino.

A associação do homem ao sustento da família e da mulher ao lar foram-se reforçando ao longo doséculo XX. Este modelo familiar de origem burguesa só se alarga deforma mais significativa às outras camadas sociais durante o EstadoNovo, mas para a maior parte da população representa um desejoque a realidade não permite concretizar.

O trabalho das mulheres era tolerado quando as suas condições eco-nómicas assim o exigiam, dado que era considerado um mal menorface aos perigos da degradação moral e da marginalidade. Conso-lida-se, pois, a associação das mulheres a trabalhos consideradosadequados à sua missão de esposa e de mãe, que se considera umatributo da sua própria natureza. Nesta base definem-se as profissõesconsideradas femininas, em grande parte ligadas à esfera do cui-dado, como a educação, a saúde ou a protecção social.

Estas noções continuam hoje a influenciar as escolhasescolares e profissionais de raparigas e de rapazes e ainfluenciar o grau de investimento escolar de cada umdos sexos. As raparigas têm tendência a escolher ospercursos escolares que conduzem a profissões social-mente consideradas femininas, preparando-se paraintegrar em maioria os sectores do mercado de traba-lho pior remunerados. Os rapazes, por um lado, diri-gem-se para cursos que se associam tradicionalmenteàs profissões masculinas, mas, por outro lado, pro-curam uma inserção precoce no mercado de trabalhode modo a responderem à expectativa que sobre elesrecai de assumirem o sustento da família.

Estas noções continuam a ser reproduzidas pelos materiais pedagógicos e de formação. Os estudos maisrecentes continuam a evidenciar a forte reprodução dos estereótipos de género nos materiais pedagó-gicos utilizados em todos os graus de ensino, desde o pré-escolar ao final do ensino secundário, emtodas as disciplinas, desde a Matemática, passando pelo Português ou pela História, até à Educação

30 PURVIS, June, “Social class, education and ideals of femininity in the nineteenth century”, in ARNOT, Madeleine, WEINER, Gaby (eds.), Gender and the Politics ofSchooling, 2.a ed., London, Unwin Hyman/The Open University, 1989 (1.a ed. 1987), pp. 253-275.

31 LOURO, Guacira Lopes, MEYER, Dagmar, “A escolarização do doméstico. A construção de uma escola técnica feminina (1946-1970)”, Educação, Sociedade eCulturas, n.o 5, 1996, pp. 129-159.

MULHERES E TRABALHO

DISCURSODOMINANTESÉCULO XIX

Sublinha umanova imagem

de mulher,mais culta

e maiscompetente

a educação dasmulheres surgecomo umanecessidade sociale escolariza-se

1906Abre o 1.o liceu feminino

Liceu Maria Pia

o currículo incluía:Moral

Economia DomésticaHigiene

CulináriaPedagogiaCaligrafia

MúsicaTrabalhos Manuais

Ao longo do século XX

consolidam-se as noções

• homem ganha-pão• mulher ligada à domesticidade• profissões femininas

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Física, e em todos os suportes, como sendo os manuais, os jogoseducativos e o software educativo32.

As concepções estereotipadas sobre as mulheres e os homens sãointeriorizadas pelas crianças desde a mais tenra idade e influenciam omodo como se vêem, enquanto raparigas e rapazes, ou seja, influen-ciam o modo como projectam o seu futuro pessoal e profissional.

Pensar a diversidade implica ter em conta que crianças e jovens sãoseres humanos concretos, cuja identidade se construiu a partir decontextos de socialização diversificados. As raparigas, por exemplo,dedicam, em média, mais 1h 20min por dia às tarefas domésticas doque os rapazes33. Este facto não é irrelevante na construção das suasidentidades, nas suas experiências vivenciais, na organização da vidaquotidiana ou no desenvolvimento de determinadas competências emdetrimento de outras.

3. Efeito do sexo sobre o sucesso escolar

As investigações demonstram que o processo de construção das iden-tidades masculina e feminina se elabora na base de uma maior oumenor adesão aos estereótipos sexuais. Esta adesão influi sobre asconcepções, traduzidas em comportamentos, que rapazes e rapari-gas têm do sucesso escolar. Acresce que os estereótipos de génerotêm efeitos mais duráveis e profundos nos rapazes do que nas rapa-rigas34. Isto significa que, no processo de construção identitária,quanto maior é a adesão de um rapaz aos estereótipos associados aoseu sexo, menor é o seu investimento na escola e maior a probabili-dade de abandono escolar precoce. No caso da rapariga, a adesãoaos estereótipos ligados ao seu sexo é favorável ao empenhamento esucesso escolar. Em suma: o abandono e o insucesso escolares sãoproporcionais ao conformismo com os estereótipos sexuais associadosao próprio sexo.

As investigações mostram, também, que a origem social é determi-nante no sucesso escolar, mas que esse efeito é menos acentuado

32 Cf., entre outros estudos, FERREIRA, Ana Maria das Neves Valentim Monteiro, Desigualdades de género no actual sistema educativo português e sua influência nomercado de emprego, Dissertação de Mestrado, Lisboa, Universidade Aberta, 1998 (policopiado); MARTELO, Maria de Jesus, A Escola e a Construção da Identi-dade das Raparigas. O exemplo dos manuais escolares, Lisboa, CIDM, 1999; TELES, Guida Maria N., O género e a etnicidade nos manuais escolares: um estudosobre estereótipos na área da Língua Portuguesa, Dissertação de Mestrado, Lisboa, Universidade Aberta, 2000 (policopiado); CORREIA, Anabela Filipe, RAMOS,Maria Alda, Representações de género em manuais escolares. Língua Portuguesa e Matemática: 1.o ciclo, Lisboa, CIDM, 2002; PEREIRA, Paula Bento Soares Sacramento, Modelados pelo discurso. Uma análise crítica das representações de género em Manuais Escolares do 1.o ciclo, Dissertação de Mestrado, Lisboa,Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2003 (policopiado); NUNES, Maria Teresa Alvarez, Género e cidadania nas imagens de história: estudo explorató-rio de manuais escolares do 12.o ano e de software educativo, Dissertação de Mestrado, Lisboa, Univ. Aberta, 2004 (policopiado); QUEIRÓS, Telma, [Des] igual-dade de Oportunidades nos Manuais Escolares de Educação Física do 2.o Ciclo do Ensino Básico? Análise das ilustrações e das percepções de professores(as) estagiários(as). Dissertação de Mestrado, Porto, FCDEF – Universidade do Porto, 2004; CAETANO, Sílvia, Representações de Género e de Etnia: estudo realizadoem manuais escolares de Educação Física do 3.o ciclo do Ensino Básico, Porto, Dissertação de Mestrado, FCDEF – Universidade do Porto, 2005.

33 PERISTA, Heloísa (coord.), Os Usos do Tempo e o Valor do Trabalho – uma questão de género, Lisboa, DEPP-CIDES, 1999; cf. Inquérito à ocupação do tempo1999: principais resultados, Lisboa, Instituto Nacional de Estatística, 2001.

34 Pierrette BOUCHARD, Jean-Claude SAINT-AMANT, “La réussite scolaire des filles et l’abandon des garçons”, Recherches féministes, vol. 6, n.o 2, 1993, pp. 21-37.

No livro da 3.a classeno Estado Novo era assim

Num livro do 3.o anoem 2000 era assim

– Achas que háprofissões proibidaspara os homens?

– Sim, passar a ferro.– Porquê?– Porque as mulheres

é que devem fazerisso.

Resposta de uma aluna do 1.o ciclo,concelho de Guimarães, 2003.

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nas raparigas do que nos rapazes35. Quanto mais ele-vado é o nível sociocultural, maior é o sucesso esco-lar de raparigas e de rapazes. Verifica-se, todavia, queem meio social igual as raparigas têm melhores resul-tados que os rapazes e que as diferenças de género seacentuam nos meios socioeconómicos mais desfavore-cidos, ou seja, a variável sexo ganha peso em detri-mento da variável socio económica. Esta realidade temsido comprovada a nível nacional, observando -se quenos meios socioeconómicos desfavorecidos as rapari-gas logram alcançar um maior sucesso escolar e ummenor abandono em comparação com os rapazes36.

Uma outra questão fundamental a ter em conta nareflexão sobre o sucesso escolar de raparigas e derapazes é a importância do efeito do sucesso ao longodas trajectórias escolares. As investigações mostramque o sucesso em cada etapa da escolaridade influen-cia positivamente o sucesso das etapas seguintes37.Deste modo, o sucesso traduz-se em estímulo e o insu-cesso em desinvestimento, ou seja, em mais insucessoe em abandono.

Este factor cruza-se com o modo como as raparigas e os rapazes percepcionam a importância da escolari-zação para a sua inserção e progressão no mercadode trabalho. Os estudos evidenciam que as mulheres,para alcançarem uma trajectória profissional ascen-dente, têm de incorrer, mais do que os homens, emcustos acrescidos, nomeadamente sob a forma de ummaior investimento na escolaridade inicial38. Este dadoda realidade social vai determinar um investimentoacrescido das raparigas na sua formação e qualifica-ção iniciais, ou seja, na certificação escolar.

A maior facilidade na entrada no mercado de traba-lho, sentida pelos rapazes, minimiza os efeitos negati-vos do insucesso e do abandono escolar precoce. Osrapazes entram, pois, em média, mais cedo do que asraparigas no mercado de trabalho. Esta diferença, noentanto, tem consequências, pois as trajectórias profissionais não são apenas favorecidas por níveis maiselevados de qualificações escolares. A idade constitui uma variável crucial nos percursos profissionais,

35 BAUDELOT, Christian, ESTABLET, Roger, Allez les Filles!, Paris, Seuil, 1992.36 SAAVEDRA, Luísa, “Sucesso/insucesso escolar. A importância do nível socioeconómico e do género”, Psicologia, vol. XV (1), 2001, pp. 67-92.37 CHAGAS LOPES, Margarida, LEÃO FERNANDES, Graça (coord.), Escola, Trabalho e Família: Trajectórias de Género, Lisboa, ISEG/CISEP, 2004 (projecto finan-

ciado pela FCT, policopiado).38 LEÃO FERNANDES, Graça, CHAGAS LOPES, Margarida, “Gender, life cycle trajectories, and their determinants in the Portuguese labour market”, Kiel Seminar

2002. Gender – from Costs to Benefits, Kiel, 2002 (policopiado).

Estudos revelam que

Pierrette BOUCHARD, Jean-Claude SAINT-AMANT,“La réussite scolaire des filles et l’abandon des garçons”,

Recherches féministes, vol. 6, n.o 2, 1993, pp. 21-37.

os estereótipos têm efeitos maisduráveis e profundos nos rapazescriando resistências face àsexigências escolares e, portanto,maior abandono e menos sucessodo que nas raparigas.

Estudos revelam que

SAAVEDRA, Luísa, “Sucesso/insucesso escolar.A importância do nível socioeconómico e do género”,

Psicologia, vol. XV (1), 2001, pp. 67-92.

as raparigas conseguemultrapassar melhor que osrapazes as desvantagens do seunível socioeconómico.

Estudos revelam que

CASTRO, Alberto, Mobilidade Sectorial, Profissional e Regional:tendências recentes e perspectivas futuras, Lisboa,

Observatório do Emprego e Formação Profissional, 2000.

a idade e o nível formal deescolaridade, apesar decontribuírem significativamente paraa realização de uma trajectóriaascendente para ambos os sexos nomercado de trabalho, são maisdeterminantes para as mulheresdo que para os homens.

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verificando-se que, quanto menor a idade, melhoressão as probabilidades de uma carreira ascendente39.Como as raparigas investem mais no nível inicial dequalificação escolar e, por isso, ingressam no mercadode trabalho com idades mais avançadas, ficam emdesvantagem face aos seus colegas em termos de pro-moção e de mobilidade.

Considerando que as qualificações das pessoas, ou oque se designa por “capital humano”, pode ser o maisimportante dos factores de modernização do país,como se enuncia nos estudos preparatórios do QREN(1907-1913), e tendo em conta o modo como osestereótipos de género influem no investimento das e dos jovens na sua formação e qualificação iniciais,

o sistema educativo terá de investir na igualdade de género em educação como requisito de cidadania ede desenvolvimento do país40. Esta tarefa constitui um dos deveres do Estado consignado na Constituiçãoda República Portuguesa41. Este é também um dos compromissos internacionais, claramente expresso,por exemplo, no Regulamento de aplicação dos Fundos Europeus e nas diversas orientações internacio-nais que Portugal ratificou42.

Como é que se promove a igualdade entre homens e mulheres no sistema educativo?

4. Coeducação e igualdade de oportunidades

A coeducação, tal como está consignado na Lei de Bases do Sistema Educativo actualmente em vigor,pode constituir uma modalidade educativa favorável à promoção da igualdade entre mulheres e homens.

A coeducação é um modelo que visa o desenvolvi-mento da igualdade de género, não apenas a nível deacesso e de frequência, mas também a nível de pro-cessos e resultados das aprendizagens, ou seja, é ummodelo que visa a congruência entre os critérios quepresidem à certificação escolar e o valor que lhes éatribuído pela realidade social43. Nesta perspectiva,não se pode falar de sucesso quando os diplomasescolares não são reconhecidos a nível social, nomea-damente no mercado de trabalho. Não se pode, tão--pouco, falar de verdadeira coeducação se a certifica-ção escolar tem valores diferentes para raparigas epara rapazes.

39 CASTRO, Alberto, Mobilidade Sectorial, Profissional e Regional: tendências recentes e perspectivas futuras, Lisboa, Observatório do Emprego e Formação Profissio-nal, 2000.

40 Cf. Estudos Temáticos para Preparação do Próximo Ciclo de Intervenções Estruturais QREN 2007-2013 (inclusão social), Edição do Observatório do QCA III, 2006.41 Consultar a este respeito o artigo de Maria do Céu da Cunha Rego.42 Cf. Regulamento (CE) N.o 1083/2006 do Conselho, de 11 de Julho de 2006, Jornal Oficial da União Europeia, 31/07/2006, que estabelece disposições gerais

sobre o Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional, o Fundo Social Europeu e o Fundo de Coesão. Sobre orientações internacionais na área da igualdade entremulheres e homens, em geral, ver o artigo de Regina Tavares da Silva. Sobre orientações internacionais específicas sobre igualdade de género em educação, verartigo de Teresa Alvarez.

43 Cf. PINTO, Teresa, “Caminhos e encruzilhadas da Coeducação”, ex aequo, n.o 1, 1999.

REGULAMENTO (CE) N.o 1083/2006 DO CONSELHOde 11 de Julho de 2006

que estabelece disposições gerais sobre o Fundo Europeude Desenvolvimento Regional,

o Fundo Social Europeu e o Fundo de Coesão

Jornal Oficial da União Europeia, 31/07/2006.

Artigo 16.o

Igualdade entre homens e mulheres enão discriminaçãoOs Estados-Membros e a Comissão devemassegurar a promoção da igualdade entrehomens e mulheres e da integração daperspectiva do género durante as várias fasesde aplicação dos fundos.

Lei de Bases do Sistema Educativo

Lei n.o 46/86, de 14/10/1986, Art.o 3.o, alínea j).

“O sistema educativo organiza-se de forma aassegurar a Igualdade de Oportunidadespara ambos os sexos, nomeadamenteatravés da prática da coeducação e daorientação escolar e profissional esensibilizar, para o efeito, o conjunto dosintervenientes no processo educativo.”

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A coeducação não é, pois, uma modalidade simples e a realidade escolar actual está longe de asseguraras práticas coeducativas preconizadas na Lei de Bases.

A coeducação foi restabelecida em 197244. Este processo foi acompanhado de um amplo debate nacio-nal, o qual envolveu especialistas, docentes, discentes e a comunicação social, tendo sido publicado umconjunto significativo de obras sobre a matéria. Só a PORBASE regista 7 títulos dessa época, 3 deles edi-tados pelo Ministério de Educação Nacional. A reflexão então efectuada pode considerar-se singular nocontexto nacional e, até ao presente, não se repetiu.

No Parecer, emitido pela Câmara Corporativa ao Pro-jecto de Decreto-Lei que restabelecia a coeducação,afirmava-se que “A coeducação não se improvisa. (…)A complexidade da função coeducadora excede a quelhe corresponde em regime de separação de sexos,pelo que o corpo directivo e docente deve possuir com-provada formação psicopedagógica”45. Manifestava--se, assim, a consciência de que a coeducação erauma modalidade complexa para a implementação daqual era necessária formação adequada. O própriotexto do Decreto-Lei que instituiu a coeducação aler-tava para as diferenças entre a coeducação e o ensinomisto, sublinhando que aquela não se concretizavapela mera coexistência, nas escolas e turmas, dos doissexos. Uma verdadeira coeducação exigia, mesmo,uma nova concepção das instalações escolares.

O Ministério da Educação Nacional publicou duas brochuras sobre as implicações específicas da coeduca-ção a nível pedagógico. Nelas se procurava sensibilizar o corpo docente para o facto do regime coeduca-tivo implicar objectivos bem definidos e processos de ensino-aprendizagem adequados: “Não se confundaa presença simultânea dos dois sexos com coeducação. Aquela é um simples facto; esta uma modalidadebem definida, nas suas intenções e nos modos”46.

Com o 25 de Abril de 1974 consolidou-se a igual-dade de acesso, alargando-se a escolaridade aos gru-pos sociais mais desfavorecidos. Neste novo contexto,introduziu -se uma nova variável, o sucesso escolar, a qual se converteu na preocupação dominante. Emconcomitância, verificou-se que a representatividadefeminina nas matrículas aumentava na razão directado grau de ensino, ou seja, que o sucesso escolar dasraparigas era superior ao dos rapazes. Os debatesanteriores, sobre as especificidades da coeducação, foram ignorados. Confundiu-se a generalização do ensino misto com a coeducação e o sucesso escolar das raparigas foi tomado como sinónimo deigualdade.

44 Decreto-Lei n.o 482, de 28/11/1972. A coeducação fora instituída pela primeira vez em Portugal, durante a 1.a República, em 1919. Logo no início da ditaduramilitar foram decretadas as primeiras medidas no sentido da cessação do ensino coeducativo, tendo-se reinstituído o ensino separado, ao longo do Estado Novo,a todos os tipos e níveis de ensino. Cf. PINTO, Teresa, “Coeducação em Portugal”, in CASTRO, Zília Osório de, ESTEVES, João (dir.), Dicionário no Feminino (séculos XIX-XX), vol. 2, Lisboa, no prelo.

45 Parecer n.o 42/X ao Projecto de Decreto-Lei n.o 12/X, 1972. Actas da Câmara Corporativa, Lisboa, 1972.46 P. Gianola, cit. in Para uma Pedagogia da Coeducação 2, MEN, Lisboa, 1973, p. 26.

1972 – RESTABELECIMENTODA COEDUCAÇÃO

DL n.o 482, de 28/11/1972.

“É de salientar que não se trata apenas deconstituir turmas mistas, mas de realizar umaverdadeira coeducação. (…) A turma mista,só por si, limita-se a uma disposição material,enquanto a coeducação é um ambiente(…). Aliás, as futuras construções escolaresdeverão ter em conta este princípio.”

Após 25 de Abril de 1974

Os debates anteriores foram esquecidos.A generalização do ensino misto foiconfundida com a prática da coeducação.A igualdade foi tomada como um dadoautomaticamente adquirido.

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Afinal, o que é o ensino misto? Ao contrário do ensinoseparado, que atribuía a raparigas e a rapazes dife-rentes espaços e currículos, o ensino misto juntou-osnos mesmos espaços e atribuiu-lhes um mesmo currí-culo, o masculino. Os saberes escolares associados ao sexo feminino foram eliminados e, deste modo, o ensino masculino tornou-se paradigma universal esupostamente neutro. Esta ideia de neutralidade do

ensino, o “falso neutro”47 na expressão de Isabel Barreno, conduz a que os problemas das desigualdadese discriminações no seio do sistema educativo sejam escamoteados e remetidos para outras instâncias darealidade social. Contudo, o funcionamento desta é sistémico e o ensino constitui um dos seus subsiste-mas, pelo que interage de modo dinâmico e permanente com todos os outros subsistemas na configura-ção e reconfiguração daquela mesma realidade social.

Uma coeducação efectiva implica pensar todo o pro-cesso educativo em função da realidade diferenciadado seu público-alvo, ou seja, ter consciência que apopulação discente é sexuada e, por isso, o seu pro-cesso de socialização e de construção identitária émarcado pelo género48.

A coeducação deve configurar-se como um modelocultural e educativo que integre de forma equilibradaelementos de aprendizagem das esferas pública e pri-vada. Isto significa que o desenvolvimento de compe-tências relativas a cada uma das esferas deve ser pro-movido em ambos os sexos. Os modelos apresentadosdeverão ser diversificados, designadamente nos mate-riais pedagógicos. Rapazes, raparigas, mulheres e

homens deverão ser representados, por exemplo, quer a exercer funções de liderança, quer em activida-des associadas ao cuidar do outro, quer em profissões das áreas sociais, quer tecnológicas. É fundamen-tal que a escola coeducativa prepare os jovens de ambos os sexos para uma plena intervenção em todasas áreas da vida social, ou, por outras palavras, para um exercício pleno da cidadania em todas as suasdimensões.

A coeducação exige, pois, uma nova concepção da organização escolar, da definição de competências e de aprendizagens nucleares, dos currículos e programas, das interacções pedagógicas e da elaboraçãodos materiais pedagógicos.

Só com a concretização de uma efectiva coeducação entre os sexos se pode assegurar que a escola sejauma escola para todos e para todas e promova iguais oportunidades de sucesso para todos e para todasa nível da vida pessoal, profissional e familiar.

47 BARRENO, M.a Isabel, O Falso Neutro: um estudo sobre a discriminação sexual no ensino, Lisboa, IED, 1985.48 Sobre este assunto, consultar o texto de Conceição Nogueira.

A coeducação implica

uma forma de pensar o processo educativoem função da consciência de que apopulação discente é sexuada.

A coeducação implica

o desenvolvimento de competências quefavoreçam a intervenção de raparigas erapazes em todas as áreas da vida social.

O ensino tornou-sesupostamente neutro

A crença na neutralidade é a maiorbarreira à criação de uma atitude críticaface às desigualdades de género.

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Enquadramento Internacional das Políticaspara a Igualdade entre Mulheres e Homens

Maria Regina Tavares da Silva – Comité CEDAW – ONU

Ministério da Educação, 21.11.2006

O Relatório do Desenvolvimento Humano, uma publicação anual do PNUD – Programa dasNações Unidas para o Desenvolvimento – divulgado no passado dia 9 de Novembro em CapeTown, África do Sul, teve este ano como tema a água, incluindo questões como o acesso, a escas-sez de água potável, o saneamento e questões conexas.

O título é: “A água para além da escassez: o poder, a pobreza e a crise mundial da água.”

Eis uma pequena citação de um abstract retirado da Internet: “Ao longo da história a água temconfrontado a humanidade com alguns dos seus maiores desafios. … As perspectivas de desenvol-vimento humano neste início do século XXI estão ameaçadas por uma crise da água que é global eque se aprofunda. Desmontando o mito de que a crise resulta da escassez, o relatório argumentaque são questões de pobreza, poder e desigualdade que estão no centro do problema.”

E prossegue: “Num mundo de riqueza sem precedentes quase 2 milhões de crianças morrem porano por falta de água potável e saneamento adequado. Milhões de mulheres e de raparigas sãoobrigadas a gastar horas e horas a procurar e carregar água, restringindo assim as suas oportuni-dades e as suas opções.”

E continuando ainda a fazer o diagnóstico da situação, aponta consequências na área da saúde,da educação, relativamente à pobreza, etc. E de novo as consequências sobre as mulheres e rapa-rigas vêm ao de cima.

A Pobreza – que cresce no feminino; daí falar-se hoje em feminização da pobreza no mundo e nospaíses mais pobres.

A Educação – em que, não obstante progressos, a situação relativa das mulheres não se altera.Refere o relatório: “Desde 1990 as taxas de alfabetização de adultos subiram de 75% para 82%,mas em termos de género os progressos foram poucos. As mulheres continuam a constituir cercade 2/3 dos analfabetos adultos – exactamente o mesmo que acontecia na década de 1990.”

Poderão perguntar-me – mas porquê começar esta conversa com a referência a este relatório? Porque é um exemplo, como muitos outros que poderia apresentar, de como hoje a questão dogénero é reconhecida internacionalmente como importante, diria mesmo fundamental, em todas aspolíticas e áreas da governação e do desenvolvimento.

Esta dimensão está presente em todas as organizações internacionais e regionais, europeias eoutras, num processo de progressivo aprofundamento nas últimas três décadas.

Está presente na ONU – particularmente através das Comissões funcionais do ECOSOC – Comis-são do Estatuto da Mulher e Comissão dos Direitos Humanos (hoje Conselho dos Direitos Huma-nos), mas também nas suas Agências especializadas – a OIT com uma preocupação pela protec-ção das mulheres trabalhadoras, da igualdade no trabalho e a criação de condições para essaigualdade, designadamente no que se refere às responsabilidades familiares; a UNESCO na pers-pectiva da educação; a OMS na perspectiva da protecção da saúde, etc.

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O mesmo se passa em relação aos vários Programas e Fundos da Organização. Refiro, a título de exem-plo, a UNICEF, que apresentou em 2004 o seu estudo anual sobre a “Situação Mundial da Infância”sobre o tema “A Educação das Raparigas”, encarada como factor estrutural do desenvolvimento susten-tado; ou o PNUD/UNDP, com o já referido Relatório do Desenvolvimento Humano, que, desde o inícioda década de 90, inclui índices específicos de género: o GDI (gender related development index), comindicadores relativos a ambos os sexos, incluindo nomeadamente: a esperança de vida, a taxa de alfa-betização, a repartição de rendimento, etc. e o GEM (gender empowerment measure), com indicadoressobre a taxa de feminização de parlamentos e administração ou a taxa de feminização de profissões téc-nico-científicas, entre outros indicadores; ou o FNUAP (Fundo das Nações Unidas para as Actividades da População) nas questões relativas à população, que põe especial enfoque nas questões da saúdesexual e reprodutiva. Também, a título de exemplo, refiro a sua publicação anual “O Estado da PopulaçãoMundial”, que em 2006 se intitulou “A Passage to Hope – Women and Men in International Migration” e abordou a dimensão de género das migrações internacionais.

Também o Banco Mundial inclui a preocupação com a situação das mulheres nos projectos de desenvol-vimento que financia, como sendo uma dimensão essencial. Recordo que, em anúncio recente de novoplano para a promoção da igualdade – “A Igualdade dos Sexos – uma mais-valia para a economia” – o presidente acentuou que as populações dos países em desenvolvimento pagam um custo elevado aonão permitirem às mulheres o pleno desenvolvimento do seu potencial.

A mesma preocupação com as questões de género pode também ser encontrada em outras organiza-ções. Por exemplo, a OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico), que em1990 criou um grupo de trabalho que produziu um relatório inovador intitulado “Conduzir a mudançaestrutural”, que foi pioneiro no abordar da questão do género. Ou ainda a OSCE (Organização para aSegurança e Cooperação na Europa), particularmente virada para o processo de consolidação da demo-cracia nos países da Europa Central e de Leste, que considera a igualdade de género como elementoessencial para a democracia. Ou ainda a União Interparlamentar, que, na década de 90, adoptou umPlano de Acção para promover a participação das mulheres na vida política e na acção parlamentar.

Ou as grandes organizações europeias, como o Conselho da Europa ou a União Europeia, que veremosadiante com mais detalhe.

Estas foram referências muito breves para mostrar como esta dimensão está presente em todas as organi-zações internacionais que têm a ver com direitos humanos, democracia, desenvolvimento.

Em todas, a questão da igualdade e dos direitos das mulheres tem-se colocado, de forma mais ou menosexplícita, e segundo a óptica e a vocação de cada uma das organizações (paz, segurança, trabalho,emprego, saúde, cooperação, desenvolvimento, etc.).

Presente como, poderemos interrogar-nos. Primeiro, como preocupação vaga e diluída, mais formal doque real. Agora, e este é um dado do nosso tempo, como dimensão fundamental para o próprio pro-gresso da humanidade, como requisito da democracia e como exigência da protecção e promoção dosdireitos humanos. Uma exigência que implica a igualdade substancial, que vai para além dos princípios,para tocar na vida das pessoas.

Esta visão é particularmente relevante a partir da década de 90 e em ligação com as grandes conferên-cias então promovidas pelas Nações Unidas – as Conferências Mundiais dos anos 90 – sobre as ques-tões-chave do nosso mundo:

Do Rio em 92, sobre Ambiente e Desenvolvimento;

De Viena em 93, sobre Direitos Humanos;

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Do Cairo em 94, sobre População e Desenvolvimento;

De Copenhaga em 95, sobre Desenvolvimento Social;

De Pequim em 95, sobre as Mulheres;

De Istambul em 96, sobre o Habitat.

Foram momentos importantes de reflexão e delinear de estratégias, a nível da comunidade internacional,em que as questões relativas aos direitos e à situação das mulheres aparecem incluídas e estreitamenteassociadas aos problemas do mundo e à sua solução. Não é mais possível pensar a solução dos proble-mas do mundo em termos neutros. Há que pensá-las em termos do seu impacto de género, isto é, tendoem consideração a situação e o contributo das mulheres e dos homens, enquanto componentes daHumanidade, que não é neutra nem abstracta.

Daí a inclusão desta dimensão em planos de acção globais adoptados em cada uma destas conferências:

1992 – Agenda 21 (capítulo 24) adoptada na Conferência Mundial sobre Ambiente e Desen-volvimento (Rio de Janeiro);

1993 – Declaração e Plano de Acção (capítulos I-18 e II-36-44) adoptados na ConferênciaMundial sobre Direitos Humanos (Viena);

1994 – Programa de Acção (capítulos II, IV, V e VII) adoptado na Conferência Mundial sobrePopulação e Desenvolvimento (Cairo);

1995 – Declaração e Programa de Acção (Compromisso V) adoptado na Cimeira sobre Desen-volvimento Social (Copenhaga);

1995 – Plataforma de Acção – PFA – adoptada na Conferência Mundial sobre as Mulheres(Pequim) – programa de acção que foi confirmado e aprofundado em 2000 na Sessão Especialda Assembleia Geral habitualmente designada Pequim+5.

Também no ano 2000, outra iniciativa a nível global foi portadora de um novo impulso no assumir dadimensão de género pela comunidade internacional. Refiro-me à Cimeira do Milénio, que teve lugar emNew York, onde reuniu os mais altos responsáveis políticos dos países membros das Nações Unidas para,a partir de um olhar sobre os principais problemas do mundo, reflectir e procurar soluções para a melho-ria global da condição humana.

A Declaração do Milénio inclui os princípios fundamentais que devem reger a acção na busca dessassoluções, numa perspectiva de direitos humanos e de democracia, de paz e segurança, de desenvolvi-mento e erradicação da pobreza e de protecção do ambiente. Na esteira da Declaração foram tam-bém adoptados os Objectivos do Milénio para o Desenvolvimento (Millenium Development Goals), habi-tualmente designados como MDG, e é curioso verificar como, sendo documentos de carácter geral evisando objectivos globais, a dimensão de género sobressai neles como dimensão fundamental.

São oito os Objectivos do Milénio para o Desenvolvimento:

erradicar a pobreza extrema e a fome;

conseguir o ensino primário universal;

promover a igualdade de género e o empoderamento (empowerment) das mulheres;

reduzir a mortalidade infantil;

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combater o HIV/SIDA, malária e outras doenças;

assegurar um ambiente sustentável;

criar uma parceria global para o desenvolvimento.

Adoptados por consenso pelos 189 estados-membros das Nações Unidas reunidos em Assembleia Geral,estes objectivos permanecem como grandes prioridades do momento presente. E subjacente a todos elesencontra-se a perspectiva da protecção e promoção dos direitos humanos, sejam eles direitos civis e polí-ticos ou direitos económicos, sociais ou culturais. Nestes direitos humanos universais o direito à igualdadede género inscreve-se, naturalmente, como um princípio fundamental.

A Declaração reconhece, de forma muito clara, a importância de promover a igualdade de género e oempoderamento das mulheres, isto é, o seu acesso à auto-afirmação e à tomada de decisão, como umcaminho efectivo para combater a pobreza, a fome e a doença e para estimular um desenvolvimento ver-dadeiramente sustentado em todas as suas vertentes – educação, saúde, ambiente, etc. Por outro lado, o documento faz a ligação entre um estatuto de menoridade ainda atribuído às mulheres em muitaszonas do globo e a perpetuação da pobreza ou as dificuldades de progresso na educação ou a expan-são do HIV/SIDA, etc.

Por tudo isto, se considera hoje que o objectivo da promoção da igualdade de género e do empower-ment das mulheres, constituindo um objectivo a alcançar em si mesmo, está também subjacente a todosos outros, condicionando de forma decisiva o seu sucesso ou insucesso.

O Relatório do Desenvolvimento Humano de 2003 acentua particularmente este aspecto, dizendo que “a igualdade de género será determinante para se alcançarem os Objectivos do Milénio, sejam elesmelhorar a saúde e lutar contra a doença, reduzir a pobreza e mitigar a fome, expandir a educação e diminuir a mortalidade infantil, melhorar o acesso à água potável ou assegurar a sustentabilidadeambiental.”

Trata-se de uma perspectiva que coloca o estatuto das mulheres e a igualdade de género no centro dasquestões – e isto é que é novo e significativo.

Efectivamente, a preocupação com a igualdade entre homens e mulheres e com a não discriminação emfunção do sexo não é nova; ela está presente nas grandes instâncias internacionais desde o seu início,mesmo que de forma difusa, e tem reflexos a nível do pensamento comum da comunidade internacional,num movimento que ocorreu particularmente nos últimos 50-60 anos.

Logo a seguir à segunda guerra mundial e da tomada de consciência colectiva das violações inaceitáveisde direitos fundamentais que as guerras provocaram, registou-se a criação das Nações Unidas com oobjectivo de manutenção da paz e concertação a nível mundial e defesa dos direitos dos povos; e é signi-ficativo que, logo em 1945, o documento fundador, que é a Carta das Nações Unidas, aborde a questãoda não discriminação em função do sexo. É, aliás, o primeiro instrumento internacional com este relevoque considera esta dimensão. (art.o 55.o)

Logo a seguir, em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o grande documento de princí-pios dos direitos humanos, reforça esta visão. Não é só a não discriminação (art.o 2.o), mas igualdade detodos perante a lei (art.o 7.o) e especificamente a igualdade de direitos no casamento (art.o 16.o).

De modo particular na Europa, o continente que mais sofrera com as guerras mundiais, os esforços demanutenção da paz e da protecção dos direitos humanos concretizam-se, quer ao nível das instituições,quer dos instrumentos normativos. Cria-se o Conselho da Europa em 1949 e adopta-se a Convenção

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Europeia dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, que é o instrumento normativo funda-mental neste âmbito.

O seu artigo 14.o inclui uma disposição de carácter geral relativa à não discriminação em função devários factores, entre eles o sexo, na aplicação dos direitos da Convenção. Este princípio é reforçado porum Protocolo adicional à Convenção, o Protocolo n.o 12, adoptado em 2000, que estende o princípio danão discriminação para além de direitos específicos da Convenção.

Voltando ao nosso percurso histórico, em 1950 a questão da não discriminação começa a emergir emtermos institucionais, a nível internacional e vai aprofundar-se pela força da sociedade civil e dos movi-mentos sociais. Entre estes, os movimentos a favor dos direitos cívicos e também a favor dos direitos dasmulheres que, remontando ao virar do século e primeiras décadas do século XX, à margem das institui-ções políticas e da agenda política, renascem agora, particularmente, nos anos 60.

De facto, os anos 60 são anos de movimentações cívicas, políticas e sociais em vários países (a grandemarcha a favor direitos cívicos em Washington, em 1963; Maio de 68 em França), mas são também cha-mados os anos dos “novos feminismos”. Estas movimentações tiveram também ecos ao nível das normase das instituições.

Referi a Declaração sobre os Direitos Humanos das Nações Unidas de 1948, uma declaração de prin-cípios, fundamental sem dúvida, mas que houve que completar em 1966 por instrumentos de carácterjurídico mais explícitos: o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dosDireitos Económicos e Sociais, que conjuntamente com a Declaração constituem o enquadramento fun-damental dos Direitos Humanos.

Em ambos os Pactos encontramos disposições sobre igualdade entre homens e mulheres em relação aosdireitos neles consagrados. Direitos que se aplicam a todos, sem qualquer distinção de raça, cor, sexo,língua, religião, opinião política, etc. e que têm a ver com a participação cívica e política; e tambémdireitos económicos, sociais e culturais, designadamente o direito à educação, ao trabalho, à saúde, à habitação, à protecção social, aos bens culturais, etc. Relativamente a todos eles considera-se que aigualdade entre homens e mulheres deve ser uma realidade. Aliás, avança-se de uma formulação neutraque refere os indivíduos, para uma formulação que começa a reconhecer a existência de homens e demulheres.

A nível europeu é também importante referir alguns documentos fundamentais. Em 1961 é adoptada a Carta Social Europeia, a que se seguem vários protocolos, sendo a Carta revista em 1996. Nela seincluem disposições de âmbito mais específico: uma norma geral da não discriminação, bem comooutras específicas sobre igualdade de remuneração, protecção da maternidade, igualdade de oportuni-dades e tratamento no emprego, direito à dignidade no trabalho, direitos relativos a responsabilidadesfamiliares, possibilidade de adopção de acções positivas, etc.

No entanto, para além de disposições em documentos gerais, começa também a verificar-se a necessi-dade de instrumentos específicos para dar resposta a problemas, também específicos, que afectavam asituação das mulheres ou em que as discriminações, de modo particular, se faziam sentir.

Assim foram adoptados vários instrumentos internacionais sobre não discriminação e direitos das mulhe-res. Eis os principais:

1948 – Convenção sobre Trabalho Nocturno das Mulheres (OIT);

1949 – Convenção para a Supressão do Tráfico de Pessoas e da Exploração da Prostituição deOutrem;

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1951 – Convenção sobre Igualdade de Remuneração de Mulheres e Homens Trabalhadorespara Trabalho de Valor Igual (OIT);

1952 – Convenção sobre Direitos Políticos das Mulheres;

1952 – Convenção sobre Protecção da Maternidade (OIT);

1957 – Convenção sobre a Nacionalidade das Mulheres Casadas;

1958 – Convenção sobre a Discriminação em Matéria de Emprego e Ocupação (OIT);

1962 – Convenção sobre o Consentimento relativamente ao Casamento, Idade Mínima deCasamento e Registo de Casamento;

1960 – Convenção relativa à Luta contra a Discriminação no campo do Ensino (UNESCO),embora não especificamente de género.

Todos eles abordam aspectos especiais em que a discriminação ou a desigualdade relativamente àsmulheres era mais visível: a situação no trabalho, a igualdade salarial, a protecção da maternidade, osdireitos políticos, os direitos relativamente ao casamento, as questões do tráfico e exploração da prosti-tuição, etc.

São questões e problemas a que começa a ser dada maior visibilidade nos anos 60, mas que, aindahoje, se mantêm em muitas partes do mundo. Outras Convenções, mais recentes, retomam alguns destestemas, a demonstrar a permanência dos problemas e o seu progressivo aprofundamento. Mas todas estassão abordagens sectoriais das questões da situação das mulheres e da igualdade de género.

A pouco e pouco começa a haver a percepção do carácter global e estrutural da discriminação e danecessidade de uma abordagem integrada. O primeiro documento a testemunhá-lo é a Declaração sobreEliminação da Discriminação contra as Mulheres, adoptada em 1968. A partir dela começa a sentir-se a necessidade de uma Convenção específica que aborde a discriminação com base no sexo de formaglobal e abrangendo todos os sectores da vida social.

Assim, em 1979 a Assembleia Geral das Nações Unidas adopta a Convenção sobre a Eliminação deTodas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, a qual é complementada em 1999 por um Proto-colo Opcional à Convenção, que prevê dois procedimentos, de queixa e de inquérito, para dar respostaa alegados casos de violação de direitos consignados na Convenção. A Convenção, que Portugal foi umdos primeiros países no mundo a ratificar, é um instrumento fundamental e uma base essencial para aspolíticas nacionais para a igualdade.

Outros instrumentos importantes continuam, entretanto, a mostrar-se necessários, uns de carácter secto-rial, outros de carácter geral. Refiro a título de exemplo:

1981 – Convenção sobre Igualdade de Tratamento e de Oportunidades para os Trabalhadoresde ambos os Sexos com Responsabilidades Familiares;

1993 – Declaração sobre a Eliminação da Violência contra as Mulheres;

1998 – Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (que inclui, no âmbito de crimes deguerra e crimes contra a humanidade, os crimes de violação, escravatura sexual, prostituiçãoforçada, gravidez e esterilização forçadas em determinadas circunstâncias e, nomeadamente,quando cometidos de forma sistemática e generalizada contra populações civis);

2000 – Convenção contra o Crime Transnacional Organizado e Protocolo para Prevenir, Supri-mir e Punir o Tráfico de Pessoas, especialmente Mulheres e Crianças;

2000 – Convenção sobre Protecção da Maternidade (OIT).

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Como se pode ver, há questões que são retomadas e há questões novas.

Voltando à Convenção CEDAW, vale a pena acentuar alguns aspectos neste instrumento de carácter glo-bal e vinculativo, o qual deve estar reflectido nas nossas políticas nacionais. Verdadeira Carta dos DireitosHumanos das Mulheres, os seus artigos 1.o a 5.o são artigos generalistas, contemplando:

definição de discriminação;

artigo-chave sobre as obrigações do Estado e o âmbito das suas responsabilidades;

obrigação de adoptar políticas em todas as áreas;

medidas especiais temporárias para acelerar a construção da igualdade;

artigo inovador de imenso alcance, já que vai para além do normativo, da igualdade de jurepara a igualdade de facto, incluindo a necessidade de uma mudança cultural profunda.

A estes seguem-se artigos sectoriais, que, no conjunto, estabelecem um quadro de referência fundamen-tal. Em resumo, a Convenção caracteriza-se por:

Conter um conjunto de disposições muito amplo, abrangendo direitos civis e políticos e tam-bém direitos económicos, sociais e culturais e implicando, não apenas a adopção de princípioslegais, mas a efectiva adopção de políticas;

Incluir uma definição clara de discriminação contra as mulheres – artigo 1.o – descrita comodistinção, exclusão ou limitação, com base no sexo, que prejudique o reconhecimento ou exer-cício de direitos fundamentais;

Abranger todas as áreas – de estatuto legal, educação, saúde, emprego, nacionalidade, tráficoe prostituição, participação na vida pública e política, participação na vida económica e cultu-ral, protecção social, igualdade na família, etc.;

Incluir uma noção de acções positivas necessárias, consideradas estas como medidas especiaistemporárias para acelerar o processo de construção da igualdade.

Poderia dizer-se que se trata de um novo enfoque em instrumentos de direitos humanos, da consciênciade que não há apenas que eliminar discriminações, mas há, efectivamente, que construir a igualdade, o que implica medidas legais, medidas administrativas e de política e mudança cultural e de mentalida-des em todos os domínios.

Apenas um domínio fica ainda de fora, o da Violência, se bem que implícito na definição de discrimina-ção; só mais tarde, em 1993, a comunidade internacional o virá a reconhecer e assumir explicitamentecomo problema (Conferência de Viena, 93 e Resolução da Assembleia Geral do mesmo ano).

No seu conjunto, esta Convenção, conhecida pela sua sigla – CEDAW – constitui um avanço significativono final da década de 70 e início da de 80.

Para este avanço, há que reconhecer a importância decisiva do Ano Internacional da Mulher – 1975 –promovido pelas Nações Unidas, que inicia um processo de reconhecimento internacional da importânciadas questões da igualdade de género.

Em 1975, Ano Internacional da Mulher, realiza-se a I Conferência Mundial sobre as Mulheres (México) e aprova-se o Plano de Acção Mundial para a Década das N.U. para as Mulheres (1976-1985) com asideias-chave: Igualdade, Desenvolvimento e Paz.

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Em 1980 faz-se a avaliação da primeira metade da década na II Conferência Mundial sobre as Mulhe-res (Copenhaga) e adopta-se um novo programa de acção – Programa para a 2.a metade da década –com 3 objectivos prioritários: emprego, saúde, educação, o que parece indicar um efectivo descer aoconcreto, incluindo também a menção de determinados grupos específicos – mulheres jovens, mulheresrurais, etc.

Em 1985 procede-se à avaliação da Década na III Conferência Mundial (Nairobi). Há a noção de que,embora haja progressos, estes são muito mais lentos do que se havia imaginado e há também retroces-sos. Dez anos antes pensara-se que uma década seria suficiente para que todas as questões da igual-dade fossem resolvidas. Agora percebe-se que elas têm a ver com mudanças muito mais profundas,mudanças de carácter estrutural, ligadas à própria organização da sociedade.

Por outro lado, começa a emergir a noção de que não se trata só de um problema das mulheres, mas deum problema da sociedade no seu conjunto; confirma-se e aprofunda-se a natureza política desta ques-tão e reconhecem-se as suas consequências para a qualidade de vida de todos, homens e mulheres.

É esta a filosofia do novo programa de acção a nível mundial, as Estratégias para o Futuro para o Pro-gresso das Mulheres até ao ano 2000 (Nairobi). O enfoque é muito mais proactivo – não apenas elimi-nar discriminações, mas prosseguir um esforço positivo para construir a igualdade.

Um esforço que implica políticas activas em várias áreas; entre elas, o emprego, a protecção da mater-nidade, a conciliação da vida profissional e familiar, a participação na vida política e, em geral, a edu-cação e sensibilização relativamente aos papéis de mulheres e homens e à necessidade de mudanças culturais e sociais a todos os níveis.

Em 1995 realiza-se a IV Conferência Mundial sobre as Mulheres (Pequim) e nela se procede a uma ava-liação de progressos dez anos após Nairobi e vinte após o México; mais uma vez se toma consciência dalentidão de um processo que não é linear, mas tem avanços e recuos.

Adopta-se um novo programa de acção – a Plataforma para a Acção – que enuncia o que são hoje asáreas críticas relativamente à igualdade e aos direitos humanos das mulheres. Estas são 12, sendo umasáreas tradicionais de preocupação e outras mais inovadoras; todas elas com diferentes prioridades emdiferentes partes do mundo.

Entre as mais tradicionais podem referir-se: a educação, a saúde, a vida económica, ou o papel dosmedia, que já haviam sido referidas em programas anteriores. Entre as áreas de preocupação maisrecente, podem referir-se a violência, o acesso ao poder e à decisão, as situações de conflito, o ambiente,a pobreza e a sua feminização, os direitos humanos, embora esta seja mais um enquadramento do queuma área específica.

No entanto, mesmo nas áreas tradicionais há também perspectivas novas. Por exemplo, na Educação e Formação, em que se encara a educação como direito humano fundamental e instrumento para ace-der à igualdade de oportunidades e a formação como elemento que permite, não apenas o desenvol-vimento e crescimento económicos, mas o desenvolvimento global e sustentado. Ou a área da Saúde,em que se acentua a educação básica para a saúde e o bem-estar, bem como a saúde materno-infantil,a saúde sexual e reprodutiva, etc. Ou na Vida Económica, em que se inclui, não apenas o acesso igualao emprego, mas também o acesso a recursos, à informação, às tecnologias, aos mercados, etc. e aindaa valorização do trabalho informal e não reconhecido das mulheres ou a conciliação entre responsabili-dades profissionais e familiares para mulheres e homens. Do mesmo modo nos media, em que se inclui a participação das mulheres nos mesmos e nos seus órgãos de decisão, bem como a transmissão deimagens não estereotipadas ou negativas das mulheres, através da adopção de formas de auto-regula-ção, respeitadoras da liberdade de expressão e dos direitos humanos.

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Como áreas não-tradicionais, que assumem particular relevo no nosso tempo e para o nosso futurocomum, são referidas a Pobreza e vale a pena relembrar que o fenómeno de feminização da pobreza tem vindo a acentuar-se no mundo, requerendo medidas especiais e urgentes; a Violência, um fenó-meno que se acentua na esfera do público e do privado, a requerer acção do estado e da sociedade; o Ambiente, em que as mulheres, não obstante se encontrarem ausentes das decisões, como educadorase consumidoras preferenciais têm um papel fundamental e não reconhecido, sendo, por outro lado e par-ticularmente em países em desenvolvimento, as primeiras vítimas da degradação ambiental. E, finalmente,a área do Acesso e Partilha do Poder, encarados como requisito fundamental da democracia, bem comoda justiça social e necessários para uma melhor gestão da sociedade, que sairá enriquecida com a con-tribuição efectiva de ambos os sexos.

Em 2000 teve lugar uma nova avaliação, em Sessão Especial da Assembleia Geral das Nações Unidas,em que, face aos novos desafios de um mundo em mutação constante – a globalização, a inovação tec-nológica, situações de conflito, alterações demográficas, migrações, novos fenómenos à escala global edesignadamente a epidemia global do HIV/SIDA – se reconheceu ser necessário repensar a situação dasmulheres e da igualdade de género e o modo como tudo isto as influencia.

É um debate em curso, a que é hoje reconhecida legitimidade política, e que deu origem a novas pro-postas de acção – o documento “Iniciativas para o Futuro”, que põe um ênfase particular nos direitoshumanos, incluindo a sua relação com os fenómenos de tráfico de pessoas, com os movimentos demo-gráficos, os conflitos, a importância das Novas Tecnologias, etc.

Nesta evolução poderíamos dizer que os anos 50 e 60 são anos de denúncia de discriminações e pro-postas de soluções pontuais – o tráfico, a prostituição, o acesso a direitos políticos, os direitos no casa-mento, a discriminação no trabalho, etc.

Nos anos 70 começa a emergir a noção de que se trata de uma questão global e de uma questão polí-tica, que não se resolve com propostas pontuais; há uma mudança de perspectiva e as questões dasmulheres e da igualdade passam de questões sectoriais a questões globais; de questões exteriores aomundo da política a questões eminentemente políticas.

Nos anos 80 aprofunda-se o conceito de igualdade de direitos e oportunidades, reconhecendo que nãobasta reconhecer direitos na lei, é preciso efectivá-los na prática.

Finalmente, nos anos 90, desenvolve-se e aprofunda-se a noção de que, subjacente às questões daigualdade de género, estão questões de direitos fundamentais, de protecção e promoção dos direitoshumanos. E percebe-se, por outro lado, que a efectivação destes direitos é essencial para a construção e manutenção da democracia e para se conseguir um desenvolvimento sustentável.

Neste processo, deve dar-se particular relevo à importância do pensamento e contributo europeus e à ati-tude pioneira da maior organização europeia, o Conselho da Europa. Um pioneirismo que é expressodesignadamente na Declaração sobre a Igualdade de Mulheres e Homens adoptada em 1988.

Um documento em que se afirma que esta igualdade é um princípio que decorre dos direitos da pessoahumana e um sine qua non da democracia e que é preciso alcançar a igualdade efectiva, não mera-mente formal, mas substancial.

Uma perspectiva confirmada internacionalmente cinco anos mais tarde pela Conferência Mundial dasNações Unidas sobre Direitos Humanos (Viena, 1993), que, nos documentos aprovados faz uma afirma-ção simultaneamente óbvia e inovadora – “Os Direitos das Mulheres são direitos humanos.” E em quetambém, pela primeira vez, se encara a Violência, incluindo a violência doméstica, como violação dedireitos fundamentais e não como mera questão privada entre duas pessoas, agressor e vítima.

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A busca da igualdade de género é uma matéria que se vai tornando cada vez mais uma questão políticae em relação estreita com os problemas fundamentais da sociedade e, por outro lado, como questãodecisiva para o evoluir dessa mesma sociedade. Daí o abordar destas questões nas grandes ConferênciasMundiais dos anos 90 e na Cimeira do Milénio, que definiu as grandes linhas de orientação política anível mundial para os dias de hoje.

Seja-me permitida uma observação sobre a importância deste processo em Portugal. Os marcos que fuiapontando têm significado particular em relação ao nosso país, já que o início das grandes mudanças a nível internacional vai de par com as grandes mudanças a nível nacional. Efectivamente, a partir de1974, a mudança política e social ocorrida entre nós facilitou a abertura a estes temas e uma consciên-cia acrescida para este debate.

Uma consciência que se manifestou de forma clara em alguns momentos da nossa história recente, parti-cularmente ao nível das leis e das normas (nova Constituição, revisão do Direito de Família, Lei da Igual-dade no Trabalho e no Emprego…); menos claramente em outros aspectos, particularmente ao nível daprática e de um assumir efectivo das consequências da igualdade de género nos hábitos do quotidiano e em comportamentos individuais e sociais.

Fomos um país pioneiro em muitos aspectos, hoje já não o somos; outros têm andado mais depressa doque nós: na participação política mais equilibrada de homens e mulheres, na integração da perspectivade género nas várias políticas, na alteração de estereótipos, etc.

Quero concluir reforçando a ideia do contributo europeu e da nossa responsabilidade, enquanto paíseuropeu, relativamente a esta questão.

Neste debate, a Europa e as instituições europeias, especialmente o Conselho da Europa, mas também a União Europeia, têm posto ênfase particular nos direitos humanos como quadro em que todas as áreascríticas relativas à igualdade de género se inserem.

Uma óptica particularmente visível no enfoque do Conselho da Europa, traduzida, não apenas na Decla-ração sobre a Igualdade de Mulheres e Homens já referida, mas em todo um conjunto de recomenda-ções, planos de acção, guidelines, sobre uma variedade de temas: a democracia paritária e a participa-ção equilibrada de mulheres e homens na vida política e pública, a luta contra a violência, a prostituiçãoe o tráfico, a linguagem não sexista, a conciliação da vida privada e familiar com a vida profissional e pública, o mainstreaming de género, ou seja, a integração desta perspectiva nas várias políticas, etc.Recentemente, em 2005, uma Convenção Europeia contra o Tráfico de Pessoas foi aprovada, tendo emvista atacar de forma mais eficaz esse fenómeno dos nossos dias, ocorrendo à escala global, e que con-figura uma nova e inaceitável forma de escravatura.

Também na União Europeia, esta temática foi assumindo progressiva importância. De uma base inicialrestrita, o artigo 119 do Tratado de Roma sobre igualdade de salários, que esteve na origem das pri-meiras directivas dos anos 70, até anos mais recentes, com directivas específicas nas áreas do trabalho,emprego, segurança social, protecção da maternidade, igualdade de acesso a bens e serviços, etc.

Aliás, no Tratado de Amesterdão, a Igualdade é referida como missão da comunidade, havendo a obri-gação de a integrar em todos os programas e políticas (artigos 2.o e 3.o), a par de outras disposiçõessobre não discriminação, igualdade de tratamento e de remuneração, etc. Princípios que são completa-dos por disposições constantes da Carta Europeia de Direitos Fundamentais, embora esta sem força vin-culativa. O Tratado Constitucional europeu envolveu alguma discussão nesta área, não registando o pro-jecto grandes avanços (neste momento está parado). Deve, porém, registar-se a existência de um númeroconsiderável de Recomendações e Resoluções sobre temas específicos – acções positivas, protecção da

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dignidade no local de trabalho, conciliação trabalho-família, participação equilibrada de mulheres ehomens na vida pública e na vida privada, etc. Deve registar-se ainda a existência continuada de Progra-mas comunitários para a Igualdade de Oportunidades entre Mulheres e Homens (II – 86-90; III – 91-95;IV – 96-00; V – 01-05). E de outros em múltiplas áreas – Violência, Prostituição, Educação, etc.

Actualmente o documento de referência é o chamado Roteiro para a Igualdade, que inclui como áreasde intervenção prioritária as seguintes:

Igualdade em matéria de independência económica;

Conciliação da vida privada e profissional;

Representação igual na tomada de decisões;

Erradicação de qualquer forma de violência em razão do sexo;

Eliminação dos estereótipos de género;

Promoção da igualdade nas políticas externas e de desenvolvimento.

No seu conjunto, regista-se uma evolução no âmbito comunitário, de uma perspectiva inicial de ênfasena vida económica para um âmbito mais vasto da vida social e política, com aspectos relativos à igual-dade na educação, à participação equilibrada na vida política, etc. E também para uma progressiva inte-racção da vida profissional e familiar, acentuando a necessidade da sua conciliação e da partilha de res-ponsabilidades na vida profissional e familiar.

Resumidamente é este o quadro da evolução a nível europeu e internacional.

Gostaria de terminar realçando uma evolução qualitativa nestas matérias. Assim, regista-se:

Uma progressão da mera eliminação da discriminação para a igualdade de direitos, depoispara a igualdade de oportunidades e agora para a noção global de igualdade de género.

Uma progressiva clarificação de conceitos, incluindo a diferença entre sexo e género, sendosexo o que tem a ver com as diferenças biológicas entre homens e mulheres e género o quetem a ver com todas as condicionantes históricas e culturais que determinam os papéis sociaisde homens e mulheres. Clarificação também dos conceitos de diferença e desigualdade parahomens e mulheres, sendo a diferença natural, aceitável, positiva e enriquecedora e a desigual-dade inaceitável e injusta.

Uma progressiva clarificação de estratégias, que devem incluir simultaneamente 1) acções eprogramas específicos dirigidos às mulheres e 2) a integração da perspectiva de género emtodos os programas e políticas (gender mainstreaming), isto é, a avaliação, em termos deimpacto sobre cada um dos sexos, desses programas e políticas em todas as suas fases – pla-neamento, execução e avaliação.

Finalmente, foi-se afirmando a noção, cada vez mais clara, de que, para além de um objectivo de justiçasocial que a eliminação da discriminação comporta, a igualdade de género é matéria fundamental daresponsabilidade de Estado, que tem a ver com a qualidade da democracia e com a promoção e protec-ção dos direitos humanos.

Efectivamente, é de direitos humanos que se trata, quando se fala de todas estas matérias.

É de direitos humanos que se trata quando há uma feminização da pobreza – são direitos económicos e sociais não cumpridos.

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É de direitos humanos que se trata quando as raparigas e os rapazes não têm acesso às mesmas opçõesou quando estas são condicionadas por estereótipos de género.

É de direitos humanos que se trata quando se exclui do poder político a parte feminina da humanidade – são direitos civis e políticos não cumpridos.

É de direitos humanos que se trata quando se exerce a violência, seja ela física, psicológica ou sexual,efectuada nos domínios do público ou do privado, da família, da rua ou dos media – é o direito à inte-gridade e à dignidade pessoal.

Esta é uma noção hoje muito clara a nível das organizações internacionais, embora nem sempre se tiremtodas as suas consequências nas políticas e programas adoptados e prosseguidos.

É esta reflexão que importaria fazer entre nós. Estamos ou não a cumprir as nossas obrigações na áreada igualdade de género face aos compromissos internacionais?

É a pergunta que vos deixo.

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Promoção da igualdade de géneroem recursos educativos informatizados:reflexão sobre alguns exemplos

Introdução

1. Aplicações educativas informatizadas

2. Jogos Educativos na Web

3. Módulos de E-learning

4. Dois exemplos de estratégias significativas de promoção da igualdade de género

Conclusão

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Promoção da igualdade de géneroem recursos educativos informatizados:

reflexão sobre alguns exemplosMaria João Duarte Silva – Instituto Politécnico do Porto, Escola Superior de Educação

Eduarda Ferreira – Escola Secundária Sebastião da Gama, Setúbal

Introdução

A integração explícita das questões de género na avaliação dos recursos educativos informatizados,nomeadamente das aplicações (software) e dos sítios (ou locais) educativos na Web, está ainda emfase inicial em Portugal. A inclusão e a utilização de critérios de qualidade relativos às questões degénero são, por isso, novas tarefas dos processos de avaliação, exigindo novas competências aosavaliadores/as.

No entanto, em Portugal, tem sido desenvolvido trabalho relevante no âmbito da avaliação dadimensão de género em materiais pedagógicos não informatizados, nomeadamente manuais esco-lares. Para além dos artigos que abordam esta questão na presente publicação, a pesquisa no Serviço de Documentação Online da CIDM, sobre o assunto “Manuais Escolares”, é uma forma de acesso a um conjunto de referências de documentos relevantes.

A investigação internacional sobre as questões de género no mundo das Tecnologias da Informa-ção e da Comunicação (TIC) tem já um longo caminho percorrido, sendo importante referir, nestecontexto, que é fácil encontrar na Internet exemplos de itens de avaliação de recursos educativosinformatizados relacionados com as questões de género. É possível encontrar este tipo de itens emlistas de avaliação de software educativo (Haugen, K., 2001) ou em listas mais específicas, nomea-damente de avaliação da dimensão de género em software educativo (Cohoon & Wu, 20061) e emmateriais de ensino à distância (Bentley & Bentley, 2005).

Referindo-se à integração das questões de género nos processos de avaliação no domínio das TIC,Wood (1997) realça a importância do nível de consciência das questões de género na equipa deavaliação, a importância da existência de mulheres nessas equipas, assim como a importância dainclusão de critérios relativos ao género na documentação de projectos e programas no domíniodas TIC.

No contexto do projecto para um Sistema de Avaliação, Certificação e Apoio à Utilização de Software para a Educação e a Formação (SACAUSEF), foram desenvolvidos dois critérios para aintegração da dimensão de género na avaliação de recursos educativos informatizados, ou seja,desenvolveram-se dois critérios utilizáveis na avaliação de aplicações educativas informatizadas,mas também na avaliação de sítios Web:

Utilização de uma linguagem explicitamente inclusiva do feminino e do masculino;

Representação equilibrada do sexo feminino e masculino.

1 Apresenta uma lista de avaliação com a seguinte referência: Bhargava, A. (2002). Gender Bias in Computer Software Programs: A Checklist for Teachers.Information Technology in Childhood Education Annual, pp. 205-218.

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A especificação dos vários tópicos que é necessário ter em consideração em cada critério e de indicaçõesfacilitadoras da sua aplicação, foi uma das tarefas desenvolvidas no projecto SACAUSEF. Para além dacriação destes materiais de apoio à utilização dos itens de avaliação, a apresentação de exemplos con-cretos de aplicação dos referidos itens na avaliação de recursos educativos informatizados foi conside-rada importante, na formação das equipas de avaliação.

O presente texto pretende contribuir para a qualidade da avaliação de recursos educativos informatiza-dos, especificamente no que se refere às questões de género, apresentando uma reflexão sobre um con-junto de exemplos de recursos educativos informatizados com características relevantes para as referidasquestões. A análise dos exemplos de recursos educativos centra-se nas estratégias positivas utilizadas porcada um desses recursos. Neste artigo, a dimensão de género, como qualquer outra dimensão das TICem educação, é equacionada de uma forma integrada e situada, considerando nomeadamente os objec-tivos e características didácticas do produto em análise, bem como os seus contextos de utilização (Silva,2006).

1. Aplicações educativas informatizadas

Huang et al. (1998) referem como exemplos positivos, não só no que se refere às questões de género,como à qualidade didáctica e à usabilidade, alguns dos produtos Broderbund, como o jogo de geografia“Where in the World is Carmen Sandiego” e a ferramenta de criação de apresentações “KidPix”. Consi-dere-se este último exemplo, que continua a ter sucesso educativo (ver Kid Pix® Deluxe 4), hoje como hádez anos. Este programa oferece grande flexibilidade, baseada na usabilidade da sua interface, na diver-sidade de ferramentas que disponibiliza e na riqueza das suas bibliotecas de imagens e sons. Emboraalgumas das imagens ainda apresentem estereótipos (sobretudo à maneira dos contos de fadas), a diver-sidade e modularidade da oferta oferece às crianças liberdade de criação respeitando a diferença de esti-los e gostos.

Importa realçar a série da Edmark, com mais de dez anos, que inclui as aplicações “Casa de Matemáticada Millie” e “Casa do Tempo e da Geografia da Trudy” a par com “Casa da Ciência do Sammy” e coma colecção “Pense Brincando”2. Estas aplicações destinam-se à educação pré-escolar e alternam perso-nagens não humanas femininas e masculinas com papéis de igual relevância, promovendo o protago-nismo das raparigas em áreas em que tradicionalmente são consideradas mais fracas que os rapazes,como, por exemplo, a Matemática.

A linguagem verbal utilizada nestes programas é equilibrada no que se refere à visibilidade dos génerosgramaticais feminino e masculino, o que se deve não só à estratégia de integração de personagens femi-ninas e masculinas utilizada por estas aplicações, mas também a um cuidado sistemático com a utiliza-ção de uma linguagem inclusiva dos dois géneros tanto na versão em inglês, como na versão em portu-guês do Brasil. Mas existem algumas excepções a este cuidado sistemático, refira-se a título de exemplonas aplicações “Casa de Matemática da Millie” e “Casa do Tempo e da Geografia da Trudy”, o gené-rico utiliza uma forma não marcada pelo género de nomear as actividades, como “arte e animação” e “desenvolvimento do produto”, sendo tais actividades desempenhadas por mulheres e homens, noentanto, em lugar da esperada “produção executiva”, que aliás é desempenhada por uma mulher, podeler-se “produtor executivo”.

2 Referem-se, aqui, as versões em Português do Brasil, dado não existirem versões em Português de Portugal.

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2. Jogos Educativos na Web

O jogo “Ways of Knowing Trail” (2005), do Brookfield Zoo de Chicago, é um exemplo de utilização equi-librada de personagens femininas e masculinas. Apresenta igual número de personagens dos dois géne-ros (2 raparigas e 2 rapazes, conforme representado na figura 1); o aspecto físico das personagens não éestereotipado de acordo com o género (as raparigas estão vestidas de acordo com as exigências do con-texto – selva – e não de acordo com o estereótipo de género); os papéis desempenhados pelas persona-gens são semelhantes (tanto as raparigas como os rapazes propõem soluções criativas e desempenhampapéis de liderança). Também podemos observar uma utilização cuidada e equilibrada dos géneros gra-maticais feminino e masculino.

Neste jogo, em que o tema principal é a aventura na selva, a presença de raparigas em pé de igualdadecom os rapazes, permite que as crianças e jovens utilizem um ou mais das personagens representadas,como modelos positivos e não estereotipados de acordo com as características de cada género.

Figura 1 – Exemplo de um ecrã do jogo “Ways of Knowing Trail” e retratos das respectivas personagens<http://www.brookfieldzoo.org/pagegen/wok/index_f4.html>

O sítio Web “Maya e Miguel” tem actividades e jogos para crianças com várias personagens, sendo onúmero de rapazes e raparigas equilibrado. Como aspecto positivo a realçar temos o facto de apresen-tarem raparigas e rapazes a praticarem as mesmas actividades e com interesses semelhantes. Por exem-plo, é importante que uma rapariga apareça a jogar futebol ao lado do rapaz, mas também igualmenteimportante é a desconstrução do estereótipo de género realizada ao não colocar uma rapariga com apa-rência andrógina a jogar futebol.

Outro aspecto positivo do sítio Web “Maya e Miguel” é o facto de disponibilizar no painel de entradavárias personagens, femininas e masculinas, que as crianças podem escolher como protagonistas para as actividades propostas (ver figura 2). Este sítio Web permite a identificação de um conjunto diversificadode raparigas com diferentes personagens que, através dos seus interesses e comportamentos, contribuempara a desconstrução do estereótipo de género.

A androginia pode, à partida, parecer uma boa opção para a promoção da igualdade de género narepresentação dos personagens. No entanto, Huang et al. (1998) citam Bradshaw, Clegg, & Trayhurn(1995)3 para referir que as figuras andróginas são maioritariamente percepcionadas pelas crianças como

3 Bradshaw, Jackie, Clegg, Sue & Trayhurn, Deborah. “An investigation into gender bias in educational software used in English Primary Schools.” Gender & Education.June 1995.

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sendo masculinas, uma vez que o meio informático tem sido tradicionalmente associado ao género mas-culino. Ao retirar o género da personagem, ela assume o que culturalmente está associado a esse con-texto. Uma estratégia mais positiva é, sem dúvida, a existência de diversidade de representações, quepode incluir a androginia, que torne possível à criança ou jovem escolher qual o personagem que querutilizar durante o programa, ou simplesmente apresente um leque alargado de opções relativamente aoaspecto físico e características secundárias (como vestuário, postura física e outros apetrechos anexos).

Figura 2 – Exemplo de ecrã de um jogo do sítio “Maya e Miguel” e personagens disponíveis<http://pbskids.org/mayaandmiguel/english/games/sports/soccer/flash.html>

3. Módulos de E-learning

“E-learning for Kids” é um portal de e-learning para crianças, que tem cursos disponíveis com acesso gra-tuito. Os cursos são produzidos por equipas diversificadas e, por isso, são apresentados vários estilos eformatos. No entanto, em todos os cursos existe uma representação equilibrada dos dois géneros e, mui-tas vezes, em papéis não estereotipados (ver figura 3).

Realça-se, como sendo os que melhor evidenciam estratégias positivas de promoção da igualdade degénero, os módulos “Depressão” e “Emoções”, ambos da categoria “Sentimentos e preocupações” dasecção “Saúde e Vida”. Nestes módulos aparecem sempre duas personagens, uma feminina e outra mas-culina, a ilustrar os vários tipos de emoções. Por exemplo, aparece um rapaz deprimido assim como umarapariga, e os dois com estratégias semelhantes para lidar com a situação. As preocupações e dificulda-des sentidas pelas duas personagens são abordadas de forma equilibrada, rompendo com o estereótipoda rapariga mais frágil emocionalmente e do rapaz que é corajoso e audaz. Num outro exemplo, parailustrar a auto-estima apresentam uma rapariga e quando se fala do medo aparecem, lado a lado, rapa-riga e rapaz.

Esta abordagem facilita às crianças e aos jovens a identificação com os seus problemas reais, podendocontribuir de forma significativa para a promoção da igualdade de género.

Importa, ainda, referir alguns exemplos relativos a outros módulos, nomeadamente:

Nos módulos “Ciências”, a personagem que orienta é uma rapariga;

No módulo “Comunicação” é utilizada uma imagem feminina para representar a assertividade;

No módulo sobre “Comer saudável” aparece uma família na cozinha e é a figura masculinaque prepara a refeição.

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No entanto ainda surgem em muitos módulos situações menos positivas, como por exemplo:

quando se fala de preocupações de peso aparece uma mulher em cima da balança a falarcom um médico homem;

nos desportos aparece uma rapariga a correr e em cima da balança preocupada com o peso,e um rapaz a fazer musculação e a jogar futebol.

Figura 3 – Exemplos de ecrãs dos módulos “Depressão”, “Emoções” e “Comunicação” do portal “E-learning for Kids”<http://www.e-learningforkids.org/Courses/Liquid_Animation/Feelings_and_Worries/Depression/depression.html>;<http://www.e-learningforkids.org/Courses/Liquid_Animation/Feelings_and_Worries/Emotions/emotions_object.html>;<http://www.e-learningforkids.org/Courses/Liquid_Animation/Feelings_and_Worries/Communication/communication_object.html>.

4. Dois exemplos de estratégias significativas de promoção da igualdade de género

Para além dos exemplos atrás referidos, é importante destacar duas estratégias específicas de promoçãoda igualdade de género, utilizadas em dois sítios produzidos em Portugal. O primeiro exemplo a desta-car encontra-se no Portal da Juventude, da responsabilidade da Secretaria de Estado da Juventude e doDesporto. Na secção que fala de “Riscos e riscos”, na área de “Prevenção de riscos” do tema “Saúde esexualidade juvenil”, existe um bom exemplo de como utilizar de forma equilibrada o género gramaticalfeminino e masculino, na linguagem verbal. São utilizadas as formas feminina e masculina de forma alter-nada, não conotando o discurso só com um dos géneros:

“E pronto!! Estás apaixonado!! Foste apanhada nas garras do amor!! Então entras numa montanha russa...será que ela gosta de mim? O que quis ele dizer com aquilo? Como posso conquistá-lo? Como posso atraí--la? Se lhe digo corro o risco de ele me dizer que não, se lhe conto arrisco-me a ser gozado pelas amigasdela?”<http://juventude.gov.pt/Portal/OutrosTemas/SaudeSexualidadeJuvenil/SexualidadePrevencao/Riscos+e+riscos.htm>

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O segundo exemplo é um pequeno sítio Web, “MiniPaparoka.com”, que apresenta, numa área tradicio-nalmente feminina, um tratamento equilibrado das questões de género. São utilizadas duas personagens,um rapaz e uma rapariga (ver figura 4), com presença e protagonismo semelhante. No entanto, não éum recurso educativo que se avalie globalmente como positivo, nomeadamente porque apresenta rele-vantes aspectos negativos, como a não referência da autoria de alguns dos recursos que disponibiliza,assim como incorrecções na linguagem utilizada.

Figura 4 – Personagens do sítio “MiniPaparoka.com”<http://mini.paparoka.com/index.html>

Conclusão

Este artigo apresentou uma reflexão sobre um conjunto de exemplos de recursos educativos informatiza-dos, seleccionados por apresentarem características relevantes no que se refere à dimensão de género.Pretendeu-se, também desta forma, ilustrar os tópicos que é necessário considerar na utilização dos crité-rios de avaliação relacionados com as questões de género.

É importante realçar que só a utilização integrada de várias estratégias de promoção da igualdade degénero no software educativo, desde a concepção, passando pelo desenvolvimento até à comercializa-ção, utilização e apropriação dos produtos pelas crianças e jovens, poderá efectivamente contribuir paraa qualidade da dimensão de género nos recursos educativos informatizados.

Durante a pesquisa dos exemplos de recursos educativos informatizados analisados neste documento, tornou-se claro que ainda é difícil encontrar exemplos de aplicações educativas, jogos ou sítios educa-tivos na Web, que evidenciem, de forma sistemática, um conjunto alargado e consistente das referidascaracterísticas positivas no que se refere à dimensão de género. Esta dificuldade constitui um indicador da necessidade de investimento, por parte dos responsáveis por estes produtos, na promoção da igual-dade de género.

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Referências Bibliográficas

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Huang, A., Ring, Ashley, Toich, Shelley, & Torres, Teresa (1998). Beyond Equal Access, Special Issue: The Effect of Com-puters on the Gender Gap in Education, GREAT, a publication on Gender Relations in Educational Applications of Tech-nology, Volume 1, issue 1, 16 March, 1998. Consultado em Dezembro, 2006, em <http://cse.stanford.edu/class/cs201/Projects/gender-gap-in-education/index.htm>.

Silva, Maria João (2006). A Igualdade, a Não Discriminação e a Percepção da Dimensão de Género: Problemas e Perspectivas no Domínio das Tecnologias da Informação e da Comunicação na Educação. In Avaliação de Locais Virtuais de Conteúdo Educativo. Cadernos SACAUSEF (Sistema de Avaliação, Certificação e Apoio à Utilização de Software para a Educação e a Formação) n.o 2. Lisboa: CRIE, Ministério da Educação.

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Recursos educativos informatizados analisados neste texto:

Casa da Matemática da Millie (1995). Edmark, Corp. Riverdeep Interactive Learning Company.

Casa do Tempo e da Geografia da Trudy (1995). Edmark, Corp. Riverdeep Interactive Learning Company.

Casa da Ciência do Sammy (1995). Edmark, Corp. Riverdeep Interactive Learning Company.

Pense Brincando 1 (1995). Edmark, Corp. Riverdeep Interactive Learning Company.

E-learning for Kids (2004). Consultado em Dezembro, 2006, em <http://www.e-learningforkids.org/>.

Kid Pix® Deluxe 4™ (2005) Riverdeep Interactive Learning Limited, Broderbund.

Maya & Miguel (2005). Consultado em Dezembro, 2006, em <http://pbskids.org/mayaandmiguel/flash.html>.

Mini.Paparoka.com (2005). Consultado em Dezembro, 2006, em <http://mini.paparoka.com/index.html>.

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Ways of Knowing Trail (2005). Consultado em Dezembro, 2006, em <http://www.brookfieldzoo.org/pagegen/wok/index_f4.html>.

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Representações de Género num Softwaredestinado ao Pré-Escolar

Vera Moreno – RPJIOMH

Sabendo da importância dos anos pré-escolares na sedimentação de valores e atitudes, revela-seindispensável que a análise e avaliação de softwares para estas idades inclua critérios relativos àsquestões da igualdade entre mulheres e homens.

Procedemos à análise de um software de educação para a Saúde para crianças em idade pré--escolar e destacamos as seguintes características que parecem particularmente relevantes no quetoca à representação do sexo feminino e masculino, tanto ao nível da linguagem como ao nível da imagem e som:

Promoção da igualdade de género

Não existe promoção da igualdade de género. Pelo contrário, o software apresenta ossexos e a relação entre eles de forma estereotipada. Por exemplo são-nos apresenta-das diversas músicas, cujas letras conferem características tradicionalmente masculinasaos homens/rapazes e características tradicionalmente femininas às mulheres/raparigas; a apresentação visual das personagens femininas é mais cuidada que a das masculinas;as vozes femininas são mais “delicadas” e as masculinas mais “grosseiras”.

Linguagem e Formas de tratamento

Verifica-se um desequilíbrio nas formas de tratamento para as pessoas de ambos ossexos. Há uma invisibilidade do feminino no tratamento dos/as utilizadores/as, verifi-cando-se o uso do masculino como universal. Também, temos o tratamento da mulher(com maior frequência que o do homem) pelo seu laço familiar (“a namorada”) e/oupelas suas características afectivas (“a chata”, “a vaidosa”).

Características pessoais/Comportamentos

Não apresenta personagens com características/comportamentos diversificados e queultrapassem as tradicionalmente associadas ao respectivo sexo.

Temos a associação do homem à racionalidade, com a imagem de tutor e mestre e aapresentação de rapazes numa relação de auxílio para com as raparigas. Há tambémuma presença clara da valorização dos atributos físicos nas raparigas e a associação des-tas às emoções (alguns exemplos: dondocas, bonitas, apaixonadas, vaidosas, só se inte-ressam por dinheiro). Existe uma personagem do sexo feminino, inanimada, que está àmercê das do sexo masculino, repetindo desta forma a tradicional associação das mulhe-res à passividade e dos homens à figura de agressor.

Actividades/Profissões ou Papéis/Funções sociais

Ambos os sexos aparecem a desempenhar actividades profissionais. No entanto, aoshomens estão reservadas profissões com valor social superior (ex.: médico) e é-lhes dadoum maior destaque. As mulheres aparecem a desempenhar profissões tradicionalmentefemininas (ex.: enfermeira, educadora de infância), com características de “cuidadoras” e estabelecendo relações com base nos afectos. A referência à função na esfera familiar

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para as mulheres é mais frequente, sendo a referência à função na esfera pública com maiorrealce para o sexo masculino.

Como surgem as mulheres e os homens enquanto indivíduos e elementos sociais?

De uma forma geral, o software em causa apresenta uma divisão estereotipada do que é sermulher e do que é ser homem. A personagem central é do sexo masculino, a qual estabelecerelações estereotipadas, quer com os seus pares, quer com os/as seus/as cuidadores/as e edu-cadores/as. À mulher estão associadas as emoções, a necessidade relacional, a passividade e as actividades de cuidadora e com menor prestígio social. Os homens surgem como “deten-tores do conhecimento”, com traços de dinamismo e desempenham as actividades mais presti-giantes.

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A perspectiva do Género no softwarede iniciação à leitura

Madalena Melo – Universidade de Évora

A promoção da igualdade de género, em educação e noutros domínios da vida das sociedades,constitui uma necessidade de construção da cidadania e, consequentemente, da democracia. Estanecessidade é evidenciada em numerosas orientações internacionais que dão particular relevo aodesenvolvimento de planos (nacionais e internacionais) que promovam, de forma activa e intencio-nalizada, essa igualdade (Alvarez, 2005).

O contexto educativo afigura-se como um local privilegiado para a aprendizagem dos estereótiposde género. Com efeito, a escola e os seus “utensílios” (livros, manuais,…) têm sido veículos fun-damentais para a reprodução desses estereótipos, mesmo que de forma mais ou menos subtil oucamuflada, como é evidenciado pelos estudos dos manuais escolares (Houel, 1999; Pinto, 1999).Esses estudos mostram, como é referido por Alvarez (2005, p. 17), que os instrumentos escola-res têm um “peso particular na veiculação de modelos de pessoa, homem e mulher, e do grau dedesejabilidade que estes encerram, de acordo com o valor simbólico que lhes está intrinsecamenteassociado”.

A implementação das tecnologias de informação e comunicação, nomeadamente a comunica-ção electrónica, coloca novos desafios ao estudo, não apenas da forma como crianças e jovenscomunicam (e que linguagem utilizam), mas também de como veiculam os estereótipos de género(Swann, 2003). Neste contexto, os materiais multimédia assumem uma relevância particular para a análise da utilização da linguagem e imagens associadas ao género e da representação de femi-nino e masculino.

Anunciados muitas vezes como “auxiliares” ou “complemento” das aprendizagens formais vei-culadas pela escola, e apresentando os conteúdos curriculares de forma lúdica, os programas desoftware educativo aparecem como um instrumento que exerce uma forte atracção sobre as crian-ças em idade escolar, consolidando-se como ferramentas preciosas para a transmissão de um vastoconjunto de valores e normas sociais, entre as quais avultam, como é óbvio, as relacionadas comos estereótipos de género.

Os programas de software educativo relacionados com a aprendizagem da leitura e escrita desem-penham, a este nível, um importante papel, já que representam muitas vezes o primeiro contactoformal das crianças com a palavra escrita e as suas diferentes conotações. Nestas actividades ini-ciais de aprendizagem da leitura e escrita, as palavras e frases e sua associação a imagens con-substanciam-se como fortes elementos de modelação das representações de masculino e femininoe do valor simbólico dos papéis associados ao género.

E se a linguagem nunca é neutra, o seu valor simbólico adquire um peso particular quando surgeassociada às primeiras aprendizagens de leitura e escrita, podendo moldar de forma decisiva asrepresentações e interpretações que a criança faz do seu meio envolvente.

É neste contexto que se torna premente a análise e avaliação do software educativo relacionadocom a aprendizagem da leitura e escrita, mormente na dimensão da promoção da igualdade degénero.

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Foram analisados dois CD-ROM (seleccionados aleatoriamente) vocacionados para a promoção da lei-tura e escrita, dirigidos a um público-alvo situado entre os 7 e 10 anos de idade ou crianças e jovenscom necessidades específicas de educação. Em ambos os CD analisados, as diferentes actividades sãoapresentadas sob a forma de jogos/exercícios relacionados com a escrita de palavras: completar palavrascom letras, completar frases, ordenar frases, etc.

Considerando a dimensão “Género”, para a análise destes dois programas foi utilizada a Grelha deAvaliação de Software Educativo (2005)1, com as adaptações introduzidas no Guia do/a Avaliador/a(2006)2. Foram considerados os domínios Linguístico (“Utilização de uma linguagem explicitamenteinclusiva do feminino e do masculino”) e Valores e Atitudes (“Representação equilibrada do sexo femi-nino e masculino”). Foram ainda tidas em conta as indicações para análise propostas em ambos osdocumentos.

Passa-se agora à apresentação sumária de cada um dos programas e à sua análise em termos da pro-moção da igualdade de género.

CD-ROM 1

Breve Apresentação

O CD 1 (editado em 2000), refere-se a um software que, de acordo com o seu manual, segueas linhas programáticas do programa do 1.o ano de escolaridade, tendo sido elaborado paraque “de forma lúdica a aprendizagem se realize desafiando a natural curiosidade infantil”. O programa está estruturado em dois níveis de dificuldade, que se aplicam a cada um dos“Centros de Actividade” existentes: Máquina das Letras, Máquina das Sílabas, Máquina dasPalavras, Máquina das Frases e Grande Livro de Histórias.

As personagens centrais da história são um burro (Eduardo) e um robot (Valentim), representadosob a forma de uma criança do sexo masculino, que se desloca de carrinho pelos vários Cen-tros de Actividade, à medida que vai resolvendo os exercícios. A realização, com sucesso, dosexercícios propostos nas diferentes “máquinas”, possibilita a obtenção de envelopes com vinhe-tas, que dão acesso ao “Grande Livro das Histórias”. Aqui, aparece uma pequena história (tradicional) em banda desenhada, tendo o/a jogador/a que ordenar as vinhetas obtidas nas“máquinas” anteriores. Após completar todas as actividades, pode-se aceder a um jogo final de animação, que consiste em percorrer uma pista de corridas automóveis, tentando “agarrar”as letras que faltam às palavras apresentadas.

Em todas as actividades propostas neste programa, as letras, palavras e frases são acompanha-das da apresentação de imagens ilustrativas.

Análise e Avaliação

Tratando-se de um programa destinado à aprendizagem da escrita, muitas das palavras e ima-gens apresentadas referem-se a substantivos “neutros”, designativos de animais, utensílios, ali-mentos, elementos da Natureza, etc. As personagens centrais do jogo são do sexo masculino (o robot Valentim e o burro Eduardo3), bem como a generalidade das palavras/imagens, igual-

b)

a)

1 Cf. Cadernos SACAUSEF, n.o 1 (Utilização e Avaliação de Software Educativo).2 Cf. Guia do/a Avaliador/a. Documento de Trabalho. SACAUSEF, Junho de 2006.3 Refira-se, a propósito, que o Eduardo é apresentado como o burro mais esperto do Universo.

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mente apresentadas no masculino. É, por exemplo, o caso das palavras representativas de ani-mais (“o gato”, “o leão”), não aparecendo nunca o seu feminino. De uma forma geral, as fra-ses repetem este padrão (“O cãozinho do André é engraçado”). A frase “A Ana está sentada àsombra da árvore” aparece como excepção (a imagem que acompanha a frase representa umamenina, de calças, sentada à sombra de uma árvore). Este programa mostra-nos, assim, umuniverso quase exclusivamente masculino, com uma marcada ausência do género feminino.

Quanto a profissões e ocupações, a única profissão que aparece é representada por uma pes-soa do sexo masculino (acompanhada da frase “O padeiro faz muitos pães”), não existindonenhuma profissão exercida por alguém do sexo feminino. A única vez em que aparece umafigura de mulher adulta é acompanhada por uma frase que remete para as funções domésticase para o exercício da função maternal: “A mãe das crianças comprou laranjas”. A imagem ilus-trativa acompanha este padrão, apresentando uma mulher (a mãe) acompanhada por umamenina e por um menino; a criança do sexo feminino, mais pequena que o rapaz, apareceagarrada às saias da mãe, enquanto que a criança do sexo masculino surge caminhando(“solta” e livre) ao lado da mãe. As profissões e ocupações, embora raramente apresentadas,aparecem, pois, de uma forma estereotipada.

As brincadeiras das crianças são apresentadas em duas imagens. A primeira imagem mos-tra três crianças a saltar à corda. Num primeiro momento, esta imagem é acompanhada dafrase “Os meninos saltam à corda”, indiciando, portanto, uma tentativa de mostrar actividadesdesempenhadas por ambos os sexos e representação mais equilibrada do feminino e do mas-culino. Mas num momento seguinte esta mesma imagem é acompanhada da frase “As meninassaltam à corda”, o que, para além de contrariar a mensagem anterior, parece vir a reforçaruma representação estereotipada das actividades lúdicas das crianças – saltar à corda comouma brincadeira tradicionalmente feminina. A segunda imagem relacionada com actividadeslúdicas infantis é acompanhada da frase “Os meninos brincam” e apresenta dois rapazes ajogar berlinde, na rua. Mais uma vez, frase e imagem reforçam os estereótipos de género rela-cionados com brincadeiras infantis, mostrando actividades diferenciadas para meninos e meni-nas. As brincadeiras das crianças, embora de uma forma ligeiramente mais mitigada do que as profissões e actividades, repetem um modelo semelhante.

Como foi já referido anteriormente, após completar todas as actividades é possível aceder a um jogo final de animação – conduzindo um automóvel de corrida, a personagem principal do programa procura “agarrar” as letras que faltam às palavras apresentadas. Mais uma vez,este jogo mostra-nos um universo exclusivamente masculino, com a presença única do robotValentim, numa actividade (corrida de automóveis) carregada de um simbolismo de masculini-dade (Martinho, 2004).

Uma análise global deste programa permite constatar que ele nos retrata um universo exclusiva-mente masculino, que prima, não apenas pela quase ausência de figuras femininas, mas tam-bém pela apresentação estereotipada de personagens e situações. Para além de não evidenciarpreocupação com uma “intencionalidade na promoção da igualdade de género no conteúdoe/ou forma” ou tentativa de “ultrapassar estereótipos, nomeadamente as características, activi-dades, funções e profissões tradicionalmente associadas a cada sexo”4, este programa pareceantes procurar promover uma imagem estereotipada das funções de género. Assim, a avaliaçãodeste software na dimensão de género seria claramente negativa.

4 Cf. Grelha de Avaliação de Software Educativo e Guia do/a Avaliador/a.

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CD-ROM 2

Breve Apresentação

O CD 2 (datado de 2003) consiste num programa composto por 21 actividades, que, deacordo com o seu manual, foram “desenvolvidas para a linguagem e literacia” e “desenhadaspara o reconhecimento de letras e palavras”. O programa está organizado em torno de trêsgrupos de actividades (“Letras”, “Construir Palavras” e “Palavras Completas”). O programa temainda um Editor, que permite adicionar novas palavras e imagens às previamente existentes.

Tratando-se de um programa de reconhecimento de letras e palavras, é composto por diferen-tes actividades que procuram proporcionar essa tarefa, quer associando letras/palavras a ima-gens, quer construindo palavras a partir de conjuntos de letras ou sílabas apresentadas. O somdas letras e palavras pode ser ouvido através da voz de um narrador.

Em todas as actividades propostas, a apresentação de imagens joga um papel fundamental, namedida em que se verifica sempre a apresentação de uma imagem facilitadora do reconheci-mento da letra/palavra ou da construção das palavras.

Análise e Avaliação

As palavras e imagens apresentadas referem-se genericamente a objectos de uso quotidiano(bola, sala, mesa, mala, etc.), a animais (mocho, foca, leão,…) ou a alimentos (ananás, bis-coito, bolo).

Parece existir uma preocupação em não apresentar figuras ou situações ligadas a vivênciashumanas, com o recurso a palavras e imagens “neutras” em termos de género.

Numa perspectiva de género, poder-se-á dizer que este programa prima pela ausência quaseabsoluta de figuras humanas, femininas ou masculinas.

De uma forma geral, não se poderá dizer que este programa apresente visões estereotipadas de género ou uma linguagem não inclusiva. Mas também não se poderá afirmar que este programa promove a igualdade entre homens e mulheres. Utilizando a Grelha de Avaliação, a categoria “Não se aplica” seria, talvez, a mais adequada para a totalidade dos itens.

Mas, numa outra perspectiva, não será um pouco pobre um programa assim caracterizado?Que promoção da igualdade de género pode ser proporcionada por um programa em que o Humano prima pela ausência? Que visão do mundo é transmitida às crianças?

A análise destes dois programas parece indiciar que estamos ainda longe de uma verdadeiraintencionalização da promoção da igualdade de género. Tratando-se da análise de apenas dois programas de aprendizagem de leitura e escrita, não se poderá, obviamente, fazer quais-quer inferências sobre a situação deste tipo de software educativo. No entanto, parece evidenteque se torna premente a necessidade de uma avaliação cuidada deste tipo de materiais, deforma a possibilitar que a adopção de uma verdadeira política de promoção da igualdadeentre homens e mulheres, consagrada neste Ano Europeu de Igualdade para Tod@s, possatambém passar pelos materiais pedagógicos.

b)

a)

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Referências Bibliográficas

Alvarez, T., (2005). A Dimensão da Igualdade de Género no Projecto SACAUSEF. Cadernos SACAUSEF, 1 – Utilização e Avaliação de Software Educativo (pp. 16-19).

Houel, A. (1999). Contextes Scolaires et Problématique de Genre: Les Enjeux de la Mixité. In CIDM (Org.), Coeduca-ção: do Princípio ao Desenvolvimento de uma Prática. Actas do Seminário Internacional (pp. 75-82). Lisboa: Comissãopara a Igualdade e para os Direitos das Mulheres.

Martinho, T. (2004). Viver jovem, morrer depressa: masculinidade e condução de risco. In L. Amâncio (Org.), Aprendera Ser Homem. Construindo masculinidades (pp. 75-90). Lisboa: Livros Horizonte.

Pinto, T. (1999). A avaliação de manuais numa perspectiva de género. In Castro, R. V. et al. (Org.), Manuais Escolares.Estatuto, Funções, História. Actas do I Encontro Internacional sobre Manuais Escolares (pp. 387-398). Braga: Universi-dade do Minho.

SACAUSEF (2005). Grelha de Avaliação. Cadernos SACAUSEF, 1 – Utilização e Avaliação de Software Educativo.

SACAUSEF (2006). Guia do/a Avaliador/a. Documento de Trabalho. SACAUSEF.

Swann, J. (2003). Schooled Language: Language and Gender in Educational Settings. In J. Holmes & M. Meyerhoff(Eds.), The Handbook of Language and Gender (pp. 624-644). Oxford: Blackwell Pub.

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Ler a linguagem: breves notassobre desproporções e dissemelhanças,

pseudo-genéricos e a igualdadeentre os sexos

Graça Abranches – CES – Universidade de Coimbra

1.

“Marido e mulher ambos são bons homens”, enfim, posto que muitas desproporções ou dissemelhan-ças se cometem na nossa língua…

Fernão de Oliveira, Gramática da linguagem portuguesa, 1536 (Cap. XLIX)

Como notou o nosso primeiro gramático, o uso do masculino genérico pode gerar o cometimentode muitas desproporções ou dissemelhanças. No sistema gramatical de género, a oposição semân-tica de base entre masculino e feminino parece simétrica quando se refere aos humanos: masculinosignifica macho (sexo masculino), feminino significa fêmea (sexo feminino). Mas a este valor domasculino significando “sexo”, junta-se um outro, dito “genérico”, que permite, por extensão, que o género masculino possa referir, se possa aplicar, às fêmeas humanas (o Homem, o aluno, os professores…). Esta estruturação do sistema de género, em que o masculino tem uma dupla fun-ção de referência – específica e genérica – e o feminino apenas uma função específica (a Mulher, a aluna, as professoras…), conduz a que a noção de “sexo” tenha, para as noções de “homem” e de “mulher”, efeitos assimétricos sobre a noção de “humanidade”. Da dupla função dos termosque se referem aos homens, resulta que homem surja como medida do humano, como norma ouponto de referência. Subsumidas na referência linguística aos homens, as mulheres tornam-se prati-camente invisíveis na linguagem; e, quando visíveis, continuam marcadas por uma assimetria queas encerra numa especificidade natural (o sexo) – numa “humanidade” de um outro tipo. Quandoconsiderado a um nível sócio-cognitivo, este sistema de género é o modelo, inscrito na língua, deuma categorização que, com base em critérios biológicos, excluiu as fêmeas humanas da humani-dade, do humano geral (Michard 1991, 147-58; 2000, 11).

O requisito de “utilização de uma linguagem explicitamente inclusiva do feminino e do masculino”nos materiais pedagógicos é assim claramente violado pelo abuso de pseudo-genéricos – os mas-culinos genéricos, suma expressão do falso-neutro (como lhe chamou Maria Isabel Barreno, 1985).Mas o problema do uso recorrente dos pseudo-genéricos não é apenas um problema de “oculta-ção”, de invisibilidade das mulheres que esses masculinos, por extensão, pretensamente tambémreferem; é que a sobreposição do valor genérico e específico do masculino acarreta a noção deque o masculino específico é genérico. A sistemática referência pseudo-genérica a o aluno, o escri-tor, os cientistas, os filósofos, os trabalhadores, os gregos, etc. é, com enorme frequência, tradu-zida em imagens ou em nomeações de seres masculinos específicos. O masculino específico vaisendo assim sentido, percebido, como se fosse “neutro”, potencialmente “representativo” de colec-tivos de alunos e alunas, escritoras e escritores, homens e mulheres de ciência, filósofos e filósofas,trabalhadores e trabalhadoras, gregos e gregas…; uma figura feminina, por seu lado, estaria, talcomo o feminino gramatical, amarrada ao seu sexo, podendo apenas representar/referir um con-junto de fêmeas humanas. O sentido do feminino não permite, nesta estruturação do sistema degénero, o acesso ao “humano geral”. Em razão desta assimetria fundamental da estrutura cognitivae semântica do género gramatical, o uso de pseudo-genéricos é, assim, bastante mais grave doque uma simples sub-representação linguística das mulheres. Um uso tão generalizado, e tão auto-matizado, que constitui sem dúvida um dos mais fortes e persistentes mecanismos de discriminação

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simbólica e ideológica das mulheres – em face dos homens, seres humanos absolutos, elas não passamde seres humanos relativos, no duplo sentido de humanos dependentes e de humanos de um outro tipo(Michard, 1999, 63).

2.

Para verificação da aplicação à linguagem dos requisitos “ausência de preconceitos ou estereótipos” e “representação equilibrada do sexo feminino e masculino”, os parâmetros de análise são, em termosgerais, coincidentes com os propostos noutros lugares para a leitura de imagens e ilustrações.

Um bom ponto de partida pode ser a pergunta pelos mundos que o texto constrói, pelas “histórias” queconta, pelas personagens que as habitam, o que são, como são e o que fazem. O acesso à “grande nar-rativa”, que raramente nos surge directamente, pode processar-se pela leitura e decifração das pequenas“histórias exemplares”, tantas vezes escondidas nas frases-exemplo da Gramática ou nos silogismos daLógica, nos problemas de Aritmética, nos exemplos de uso dos dicionários e livros de texto, nos quadroshistóricos, nos casos ilustrativos, ou nas invectivas directas a leitoras e leitores. Estes exemplos soltos, des-contínuos, aparentemente casuais, embora disso nos não apercebamos logo, contam “histórias”, criam“personagens”, constroem cenários que, pela sua própria banalidade, vão sendo “automaticamente” arti-culados entre si, inscrevendo-se num universo muito mais coeso do que poderíamos imaginar.

O guião de análise que a seguir se propõe, contempla, num primeiro momento, a identificação e conta-gem das referências explícitas e das formas de tratamento e designação de personagens masculinas efemininas (incluindo explicitamente os pseudo-genéricos); na segunda parte, a identificação dos papéistemáticos por elas desempenhados e das escolhas lexicais que lhes estão associadas, ou seja, dos tiposde estados, actividades e atributos que nas frases lhes são predicados; finalmente a caracterização doscontextos sociais em que se movem e dos espaços físicos que habitam. Em todas estas secções são visí-veis correlações com os parâmetros geralmente propostos para análise de imagens. Trata-se de uma gre-lha já relativamente fina, cuja aplicação sistemática a um texto extenso seria demasiado morosa no con-texto a que aqui se destina. Mas a tentativa da sua aplicação a um ou dois segmentos de texto, ou auma unidade didáctica pode constituir um bom exercício de leitura e desfamiliarização, um guia do nossoolhar para as perguntas que nos permitem desconstruir e confrontar as formas de representação textualdos sexos nos materiais em análise e descobrir para que mundos nos transportam e que humanos oshabitam.

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Referências Bibliográficas

ABRANCHES, Graça & CARVALHO, Eduarda (1999), Linguagem, Poder, Educação: O Sexo dos B-A-BAs, Lisboa, CIDM,Cadernos Coeducação.

BARRENO, Maria Isabel (1985), O Falso Neutro, Lisboa, Instituto de Estudos para o Desenvolvimento.

FERNÁNDEZ, M.a Angeles Calero (1999), Sexismo linguistico: Análisis y propuestas ante la discriminación sexual en ellenguaje, Madrid, Narcea.

ILHARCO, Maria Dulce Urbano de Nogueira (2005), Por entre espelhos côncavos e convexos: As representações dasmulheres nos exemplos do Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa,Dissertação de Mestrado, Universidade Aberta, Lisboa.

MACAULAY, Monica & BRICE, Colleen (1997), “Don’t touch my projectile: Gender bias and stereotyping in syntacticexamples”, LANGUAGE, Journal of the Linguistic Society of America, vol. 73, 4: pp. 798-825.

MICHARD, Claire (1991) “Approche matérialiste de la sémantique du genre en français contemporain”, in Marie ClaudeHurtig et al. (orgs.), Sexe et genre. De la hiérarchie entre les sexes, Paris, CNRS, pp. 147-158.

MICHARD, Claire (2000), “Sexe et humanité en français contemporain – La production sémantique dominante”,L’HOMME: Revue française d’anthropologie, 153. 2000 (Observer Nommer Classer).

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Visibilidade, simetria e estereotipia nas representações textuais dos dois sexos

Guião de análise

número de referências explícitas

femininomasculinoespecífico

colectivos mistos(genéricos verdadeiros– nomes sobrecomuns

[as pessoas…],colectivos, etc.)

masculinogenérico

ind. colectivo ind. colectivo

crianças

jovens

pessoas adultas

animais

formas de tratamento ou designação

M

nome próprio

apelido/nome completo

títulos académicosou de função(Dr.a, Eng.o, Sr. professor…)

F

formas de intimidade,diminutivos

termos relacionais(marido, esposa, avó, filho,amiga…)

pronomes

distribuição das referências a participantes masculinos e femininos por papéis temáticos

MF

agente(realiza deliberadamentea acção)

o que faz?

paciente/tema(sofre a acçãoou é afectado/afectadapela acção [A Maria caiu])

que acção sofre?

sujeito de experiência(sensorial, emocionalou cognitiva)

experimenta emoções activamente (sujeito de amar, preferir, gostar [de]…)

experimenta emoções reactivamente (objecto de aborrecer, agradar…)

experimenta actividade intelectual ou perceptiva (ver, considerar, pensar…)

receptor/aou beneficiário/beneficiária

o que recebe?

– presentes

– prémios

– linguagem (oral/escrita)

– dinheiro ganho

– dinheiro oferecido

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distribuição por campos semânticos dos termos – atributos – associados às/aos participantes

MF

profissão/trabalho//ocupação

correlação com prestígio/poder; actividades definidas/indiferenciadas

espaço público/mundo doméstico;…

inteligência/razão

perspicaz, inteligente, esperta/esperto…

brilhante, genial…

incapaz, lento/lenta, revela dificuldades de entendimento

distraído/distraída

lê, escreve…

aparência/físico

forte

frágil

belo/bela, elegante…

doente

campo afectivoe psíquico/emocional

corajoso/corajosa

temeroso/temerosa

sensível

egoísta

atento/atenta aos outros

localização

MF

espaços físicosamplos, abertos vs. pequenos, fechados

rua, loja, casa, quarto; quintal, campo, praia, parlamento; escola, hospital…

contextos sociais

familiar

profissional

associativo

político

lazer

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Representações iconográficas de sujeitohistórico: o que (não) vemos

nas imagens de históriaTeresa Alvarez – Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género

Introdução

O presente texto tem como objectivo equacionar algumas propostas destinadas à disciplina de His-tória, visando, por um lado, a integração da dimensão de género na concepção e elaboração deprodutos educativos (em diferentes suportes) e, por outro lado, a aplicação do critério Representa-ção equilibrada do sexo feminino e masculino1 definido pelo SACAUSEF para a análise de produtosmultimédia.

A reflexão e a análise que se apresentam circunscrevem-se à representação iconográfica e alicer-çam-se na revisão da literatura sobre o estudo de materiais pedagógicos (de manuais escolares emais pontualmente de software educativo) na perspectiva de género.

O enfoque que se privilegiou foi o da representação de sujeito histórico e, nesta, a de uma con-cepção de protagonismo histórico representativa de homens e de mulheres, em consonância comas linhas de orientação historiográfica actuais.

1. Representações de sujeito histórico nos materiais educativos: alguns pressupostos

1.1. O Senso Comum e as Representações Sociais de Género

Dos estudos realizados nos últimos vinte anos sobre as representações sociais de género, recorde-mos algumas das conclusões que lhes são comuns:

A dicotomia que configura o feminino e o masculino: o primeiro centrado na dimensãoda expressividade associada à afectividade, à orientação para os outros e à dependên-cia; o segundo centrado na dimensão da instrumentalidade e da agenticidade associadasà racionalidade, ao domínio das situações e ao domínio sobre os outros, à independên-cia. A passividade, a submissão, a atenção ao outro e a instabilidade emocional emer-gem como atributos intrinsecamente femininos, enquanto o dinamismo, a assertividade, a auto-afirmação e a estabilidade emocional se afirmam como atributos eminentementemasculinos.

A desigual associação da natureza aos modos de ser mulher e de ser homem, a qualdecorre da ligação da primeira à função “natural” da maternidade e da ausência dequalquer ligação do segundo a uma função “natural” específica. Esta desigualdade desentido estrutura o pensamento social sobre a feminilidade e a masculinidade no que dizrespeito, quer ao conteúdo dos modos de ser pessoa, mulher ou homem, quer à suaconotação valorativa.

2

1

1 Cf. Grelha de Avaliação e Guião de Avaliação do SACAUSEF, domínio Valores e Atitudes.

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A assimetria simbólica subjacente aos conteúdos atribuídos pelo senso comum a cada um dosdois sexos em virtude de estes serem usualmente entendidos como “valorativamente desiguais”2.Os traços identificados com o masculino apresentam-se como positivos quando associados aosconceitos de pessoa, enquanto os traços femininos são considerados como positivos apenaspara o conceito de mulher. A assimetria simbólica entre masculino e feminino emerge pois dadesejabilidade social dos primeiros aos quais é conferido o valor de norma (e portanto de uni-versal neutro) e da rejeição social dos segundos, aos quais é conferido o valor da alteridade, do particular.

O consenso, do ponto de vista cultural e social, sobre esta assimetria descritiva e valorativa damasculinidade e da feminidade, dos conceitos de homem e de mulher e o facto de estes seremamplamente partilhados pelos dois sexos.3

A partir do estudo realizado por Lígia Amâncio4 sobre os traços consensualmente atribuídos por homense por mulheres a cada um dos sexos, retirámos aqueles que têm uma maior relação com a representaçãoiconográfica do protagonismo histórico.

Quadro 1 – Estereótipos de Género

Fonte: AMÂNCIO, Lígia, Masculino e Feminino. A construção social da diferença.Lisboa, Ed. Afrontamento, 1994, p. 63.

As concepções de género têm um efeito estruturante sobre o modo como vemos a realidade e nos vemosa nós e ao outro, condicionando expectativas e modos de relacionamento interpessoal e social, pelo que estão presentes nas práticas educativas. O estudo realizado por Teresa Pinto e Fernanda Henriques5

sobre as concepções que docentes dos ensinos básico e secundário têm de bom aluno e de boa alunaé bem exemplificativo das contradições entre o que acreditamos que pensamos e o que de facto é anossa forma de pensar o outro. Os resultados apontam para uma diferenciação, em função do sexo e de acordo com as representações de género partilhadas por docentes, mulheres e homens, quanto aoque se considera ser o perfil cognitivo, afectivo e social, de rapazes e de raparigas com elevado sucessoescolar. Os primeiros surgem associados a criatividade, curiosidade, espírito crítico, argumentação e pro-blematização, enquanto às segundas se atribui persistência, maturidade, método, aplicação no trabalho e ao cumprimento das regras.

Traços Femininos Traços Masculinos

AfectuosaBonitaCarinhosaDependenteEleganteEmotivaFrágilMaternalRomânticaSensívelSentimentalSubmissa

AmbiciosoAudaciosoAutoritárioAventureiroCorajosoDominadorEmpreendedorForteIndependentePaternalistaSuperiorViril

4

3

2 AMÂNCIO, Lígia, Masculino e Feminino. A construção social da diferença. Lisboa, Ed. Afrontamento, 1994, p. 27.3 Ibidem, p. 50.4 Cf. AMÂNCIO, Lígia, Masculino… op. cit.5 Cf. HENRIQUES, Fernanda, PINTO, Teresa, “Em busca de uma pedagogia da igualdade: o peso da variável sexo na representação de bom aluno”, in ALARIOA

TRIGUEROS, Teresa et al. (coord.), Hacia una pedagogia de la igualdad, Salamanca, Amarú Ediciones, 1998.

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1.2. A Representação Iconográfica

Os produtos educativos, enquanto instrumentos comunicacionais por excelência, estruturam-se, preferen-cialmente, a partir de dois códigos – o linguístico e o iconográfico.

Se nos centrarmos neste último, recordemos que a imagem não é neutra, processando-se a sua concep-ção/produção e a sua leitura/apreensão segundo um sistema conceptual e simbólico6, formado por umrepertório de concepções do mundo, de valores e de crenças que configuram a memória individual e a memória colectiva e que condicionam e orientam a percepção, a interpretação e a atribuição de sen-tido à imagem. A relação entre uma imagem (representação iconográfica) e aquilo a que ela se reporta(o referente – o que identificamos como sendo representado) é a da semelhança. A imagem parece-secom algo, real ou imaginário, ao evidenciar alguns atributos que se re-conhecem como propriedade doseu referente.7 Esses atributos, percepcionados, deduzidos ou imaginados, fazem parte de imagens men-tais, convencionais e socialmente partilhadas8.

Importa, ainda, lembrar que a leitura de uma representação iconográfica se processa alicerçada numaestreita relação entre a sua mensagem denotativa e a sua mensagem conotativa: a primeira configura-sea partir dos elementos gráficos que compõem a imagem e situa-se ao nível da sua descrição literal, ouseja, do re-conhecimento da “letra da imagem”9; a segunda diz respeito às associações que se estabe-lecem a partir desses mesmos elementos e traduz-se nos significados que são lhe conferidos, no quadrode uma memória, conceptual e simbólica, que orienta a atribuição de sentido à imagem10.

É precisamente ao nível da mensagem denotativa da imagem, o da familiarização com o seu conteúdoexplícito, dito e nomeado na sua descrição, que se processa a “naturalização” do seu conteúdo deno-tativo, o dos significados que lhe são atribuídos, do não dito, do inconsciente e que se afigura comoimplícito11.

Conteúdo

Denotativo

Conteúdo

Conotativo

Naturalização

06 Cf. GOMBRICH, Ernest, Arte e Ilusão, S. Paulo, Ed. Martins, 1995; Cf. BARDIN, Laurence, “Le texte et l’image”, Communications et langages, n.o 26, 1975, pp. 98-112.

07 Cf. ECO, Umberto, “Sémiologie des messages visuels”, Communications, n.o 15, pp. 11-46.08 Cf. ECO, Umberto, “Sémiologie…”, op. cit.09 BARTHES, Roland, “Rhétorique de l’image” in Communications et langages, n.o 4, 1964, p. 42.10 Cf. BARDIN, Laurence, “Le texte et l’image”, Communications et langages, n.o 26, 1975, pp. 98-112.11 Cf. BARTHES, Roland, A Aventura Semiológica, Lisboa, Edições 70, 1987.

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Vejamos um exemplo:

1.3. O Protagonismo Histórico

Quais os problemas que se colocam à representação iconográfica de sujeito histórico nos produtos cien-tífico-pedagógicos de História, tais como manuais escolares (livro) ou software (multimédia)?

O conceito predominante de sujeito histórico veiculado por estes materiais continua a ser de cariz andro-cêntrico, pois a representação de sujeito social, assumido pela ciência histórica desde a Escola dos Annales, ainda não integra, de forma plena e sistemática, o sujeito mulheres, nas suas dimensões indi-vidual e colectiva. O(s) discurso(s) destes produtos ainda não incorpora(m) a concepção relacional daHistória cujo objecto, enquanto ciência, e cujo sujeito, enquanto realidade, são homens e mulheres12.Verifica-se que este tipo de produtos está longe de integrar os dados da produção historiográfica dos últimos anos, realizada no quadro, quer da História das Mulheres, quer da História do Género13.

A transmissão e a construção do conhecimento histórico continuam a privilegiar determinadas áreas e,nestas, certo tipo de fenómenos que estão, por excelência, ligados aos acontecimentos cuja actuaçãomais visível é protagonizada pelo sexo masculino: as esferas política – do governo, da dinastia, da lei eda diplomacia – e militar – da guerra, do armamento e da estratégia – seguidas da esfera da economia– com destaque para a sua relação com as finanças e a tecnologia. Neste quadro, o protagonismo quese evidencia é o dos homens enquanto indivíduos e enquanto portadores de capacidades e competênciasinerentes ao exercício do poder e, consequentemente, da tomada de decisão.

É certo que nos últimos anos se assistiu à recuperação da narrativa e, nesta, da biografia, no ensino e na aprendizagem da História, em virtude da relação de proximidade, com o concreto, que ela propor-

Hitler dirigindo-se à multidão

Conteúdo explícito:

Homem

Militar

Num estrado

Discursa e Gesticula

De corpo direito

Enquadradopor um colectivo que o olha

(parecendo escutá-lo)

Conteúdo implícito:

Palavra

Força

Indivíduo

Liderança

Massas

Poder

Masculino

12 Cf. SCOTT, Joan Wallach, “Género: uma categoria útil de análise histórica”, Educação e Realidade, vol. 15, n.o 2, 1990, Universidade Federal Rio Grande do Sul,Porto Alegre, pp. 5-22; VAQUINHAS, Irene, “Breves palavras a propósito da invisibilidade das mulheres nos Programas de História dos ensinos básico e secundá-rio”, in “Senhoras e Mulheres” na Sociedade Portuguesa do Século XIX, Lisboa, Colibri, 2000, pp. 185-196.

13 São já significativas as editoras que têm publicado com uma frequência crescente obras do domínio da História do Género e da História das Mulheres, incluindo a tradução para português de algumas obras que constituem referências a nível internacional.

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ciona a crianças e a jovens. Mas também é certo que esta recuperação se processou no momento emque o retorno ao acontecimento e a reabilitação da História política e da História individual emergem noquadro de uma História conceptual e das perspectivas da nova História Cultural. A noção de protago-nismo histórico de cariz político viu reequacionado o papel das grandes personalidades e reforçadas asdimensões colectiva e plural do sujeito histórico. Como refere Antoine Prost, “quand ils sont pluriels, lesacteurs de l’histoire ont une responsabilité plus limitée dans le déroulement des événements: parfois celledu lampiste”14.

É neste âmbito que se impõe a necessidade de a História, incluindo a História política, explicar e com-preender os pontos de (des)encontro entre, por um lado, os percursos e trajectórias individuais e das elitesno seio dos quais tem lugar a tomada a decisão e, por outro lado, os contextos que tornaram possível a tomada de decisão e o exercício desse poder por parte de uma determinada minoria, de indivíduos ede grupos15.

A diversidade de factores presentes numa dada situação, as possibilidades que essa mesma situação oferece aos membros de uma sociedade e as intenções, os objectivos e o modo como os indivíduos e os grupos nelas se posicionam são elementos constitutivos de uma história política, cuja inteligibilidadeimplica atender ao cruzamento entre duas racionalidades, a objectiva e a subjectiva16. Compreender a tomada de decisão e quem teve capacidade e possibilidade de o fazer implica conhecer quem o per-mitiu (mulheres e homens) e como o permitiu – (in)conscientemente, (in)voluntariamente, activa ou pas-sivamente, “partiendo de la base de que el transcurrir social (o histórico) es tarea de todos y de todas,aunque la tomada de decisiones esté restringida, de momento, a una minoría”17.

A passividade, como refere Antonia Fernández, não significa sempre submissão, tal como a ideia de per-manência não corresponde necessariamente à imobilidade, antes pode ser entendida à luz da ideia desustentabilidade e de continuidade dinâmicas18. E nestes processos que lugar e que papel desempenhamas mulheres?

Simultaneamente, o conceito de sujeito histórico representado nos produtos educativos, em especial nosmanuais escolares, surge concretizado nos protagonismos masculinos, individuais e colectivos e alicerça--se, por sua vez, numa concepção de homem entendido como sujeito universal. É a partir dos dados relativos aos colectivos masculinos (as experiências e os pontos de vista dos homens) que se estruturam e se tornam operatórios os conceitos de mudança e de progresso, bem como o de evolução, não sendotomada em linha de conta a realidade das mulheres e o modo como essa realidade traduz, ou não, o mesmo sentido de mudança e de progresso e o modo como elas foram sujeitos de uma mesma evo-lução histórica.

A diversidade deste sujeito enquanto colectivo circunscreve-se, geralmente, ao destaque dado às diferen-ças que marcam a existência dos homens ao longo do tempo, silenciando-se as diferenças entre homense mulheres e, principalmente, as diferenças observadas entre as mulheres.

A recuperação do protagonismo histórico das mulheres (através da inclusão explícita, regular e diver-sificada de referências ao sexo feminino) traduz-se na apresentação de valores e de modelos de vida

14 PROST, Antoine, “Les acteurs dans l’histoire”, in RUANO-BORBALAN, Jean-Claude (coord.), L’histoire aujourd’hui, Auxerre, Sciences Humaines Éditions, 1999, pp. 415-416.

15 Cf. VOVELLE, Michel, “Histoire et représentations”, in RUANO-BORBALAN, Jean-Claude (coord.), L’histoire aujourd’hui, Auxerre, Sciences Humaines Éditions, 1999,pp. 45-50.

16 Cf. PROST, Antoine, “Les acteurs dans…” op. cit.17 FERNÁNDEZ VALENCIA, Antonia, “Enseñar Historia: algunas reflexiones”, Revista Aula, n.o 26, 1994, p. 68.18 FERNÁNDEZ VALENCIA, Antonia (coord.), Las mujeres en la enseñanza de las ciencias sociales, Madrid, Editorial Sintesis, 2001.

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alternativos aos dominantes, tanto para rapazes como para raparigas, ao mesmo tempo que possibilitaque estas se identifiquem e se apropriem de um conceito de sujeito histórico representativo de homens e de mulheres, adquirindo o sentido de pertença a esse mesmo sujeito social, passado e presente, semcontradições nem incoerências com o seu grupo de pertença sexual.

1.4. Os Estudos de Género sobre Manuais Escolares e Software Educativo de História

Os resultados de um estudo recente sobre imagens de três manuais escolares de História do 12.o anopermitem evidenciar algumas das conclusões sobre a iconografia utilizada para o período da segundametade do século XIX ao fim do século XX19.

Os homens estão presentes na quase totalidade das imagens (em cerca de 90%) dos manuais escolaresanalisados, enquanto que as mulheres são visíveis em menos de metade dessas mesmas imagens (41%).Concomitantemente, as imagens que só apresentam figuras de homens (masculinas) correspondem acerca de dois terços do total, contrastando com a irrelevância do peso das imagens em que só figurammulheres (femininas) (12%). Isto significa que as mulheres logram estar presentes através das imagensmistas, ou seja, quando surgem com o sexo masculino, enquanto que os homens são visíveis sobretudoem imagens onde está ausente o sexo feminino. A existência dos homens é independente da das mulhe-res, mas a existência destas não existe de modo independente da dos homens. Autonomia e dependênciaestão implicitamente associadas, respectivamente, ao sexo masculino e ao feminino.

Nos conteúdos de História de Portugal, o sujeito social concretiza-se, predominantemente, em colectivosmasculinos (37%) e, frequentemente, por colectivos mistos (31%), que integram os dois sexos, mas quasenunca por colectivos femininos (2%). A representação da dimensão social das mulheres (ou seja, a suarepresentação iconográfica em grupo) é excepcional, o que significa que, em termos visuais, elas nãoexistem enquanto colectivo.

As raras imagens colectivas de mulheres surgem integradas nos temas da arte, dos movimentos feministase da alteração dos costumes das primeiras décadas do século XX, com destaque para a moda e o lazer.

As imagens colectivas, que integram figuras de mulheres e de homens, são as que evidenciam a dimen-são social de sujeito histórico, apresentando-o como representativo de homens e de mulheres. É atravésdestas imagens que as mulheres não só estão presentes nos manuais escolares como adquirem dimensãosocial. Quais as esferas sociais a que se reportam estas imagens? A contextos familiares, onde estão pre-sentes dois elementos – a criança e/ou o par masculino – numa inequívoca associação das mulheres à relação preferencial com a criança e com o espaço doméstico e às funções de mãe e de cuidadora; a espaços e a actividades ligadas à diversão e ao espectáculo, com destaque para cartazes de filmescom as duas figuras que constituem o par principal (encontrando-se subjacente, quase sempre, a ideia da relação amorosa); a situações de dificuldades económicas e de pobreza, com ligação ao fenómenoda emigração familiar (onde estão patentes as ideias de vulnerabilidade e de sofrimento); à alteração dos espaços e dos hábitos de sociabilidade.

Em conclusão, as mulheres, quando presentes nestes materiais, surgem preferencialmente como quemdesfruta do progresso, em situação de ócio e de lazer, e frequentemente associadas à ideia de inactivi-dade, de dependência, da afectividade conjugal e maternal.

19 NUNES, Maria Teresa Alvarez, (2007), Género e Cidadania nas Imagens de História, Lisboa, CIG.

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As imagens de colectivos exclusivamente masculinos, que detêm um peso significativo no total das imagensdestes materiais, reportam-se: às esferas políticas e militares, numa intrínseca associação entre ambas, e organizam-se em torno de líderes militares, chefes de partidos políticos ou de governo, em situaçõesonde é explícita a tomada de decisão; à oposição e à luta contra sistemas políticos, com grande desta-que para as figuras de revolucionários e impulsionadores de movimentos de contestação social, cujaacção, ligada a fenómenos de insurreição ou de revolução, está mais claramente associada a mudançaspolíticas e sociais. Os colectivos masculinos surgem ainda associados ao progresso técnico (com desta-que para os fenómenos da descoberta/inovação e da eficácia), à actividade económica, ligada, por suavez, ao trabalho, à produção e à acumulação de riqueza e detenção do poder financeiro; e, por último,à criação literária e artística e à evolução científica.

Globalmente, as figuras masculinas são representadas numa relação directa e inequívoca com a acçãoconcreta, individual ou colectiva, e com a ideia de liderança.

Predominando nos temas políticos e económicos, os homens são representados como sujeitos históricos.Em contrapartida, predominando no tema da arte, as mulheres estão presentes como objecto e produtodessa mesma arte, isto é, “como modelo que se pinta ou se desenha e como ser que se consome peloolhar”20. A esta distinção deverá acrescentar-se uma outra: enquanto as imagens de mulheres são acom-panhadas, preferencialmente, pelo anonimato, as imagens de homens são em grande parte acompanha-das pela sua identificação nominal, ou seja, são geralmente representativas de personalidades históricasconcretas, nos seus atributos pessoais, nas suas acções e no impacto da sua actuação.

O modo como cada um dos sexos é apresentado nos espaços públicos é um exemplo das diferenças quereferimos atrás. Os homens visualizam-se repetidamente em situações de comunicação de massas e noâmbito da intervenção política (através da televisão e dos jornais, em grandes reuniões internacionais,comícios ou manifestações). As mulheres estão maioritariamente ligadas ao espectáculo, em especial aocinema, enquanto actrizes e modelos de beleza e/ou de sedução. Esta diferença no tipo de documentosiconográficos revela bem os traços tradicionalmente identificados com a feminilidade e a masculinidadee, portanto, certas concepções do que se entende por ser homem e ser mulher.

Um último aspecto prende-se com o tipo de enquadramento visual, constatando-se a frequência dos planos médios utilizados para o sexo masculino, de que é exemplo o retrato, onde a figura humana é a chave de leitura da imagem, e o predomínio dos enquadramentos gerais ou muito gerais no modo derepresentação feminina.

2. Analisar produtos educativos de História na perspectiva de género

2.1. Considerações gerais

Um produto que promove a igualdade entre mulheres e homens, entre raparigas e rapazes, cumpre trêsobjectivos:

equilibrar a representação dos dois sexos;

diversificar a representação de ambos os sexos;

contrariar a representação tradicionalmente associada a cada um dos sexos.

20 Cf. NUNES, Maria Teresa Alvarez, Género e Cidadania… op. cit.

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O resultado será a explicitação da existência feminina e da existência masculina, nos discursos linguísticose iconográficos, tornando-as igualmente visíveis.

Nos materiais de História, a aplicação destes princípios implicam atender à diversidade do sujeito socialquanto:

às esferas de intervenção;

} De mulheres e de homensàs formas de participação;

ao valor social dos contributos;

ao tipo de protagonismo.

No caso dos produtos educativos de História e de forma mais evidente nos que se reportam a períodosmais próximos da actualidade é igualmente importante o modo como se potenciam as imagens dispo-níveis. Analisar a iconografia numa perspectiva de género permite descortinar a concepção de sujeito histórico subjacente ao(s) protagonismo(s) histórico(s) que se nos apresentam.

Tomar o sujeito histórico na sua dimensão sexuada, representativo de mulheres e de homens, não se tra-duz, todavia, apenas em alterações de cariz quantitativo que evidenciem equilíbrio entre as referências amulheres e as referências a homens, mas pressupõe alterações profundas no modo como se tornam pre-sentes homens e mulheres. O problema da presença e da ausência é independente da estereotipia quesustenta, ou não, as referências a mulheres e a homens. Por outras palavras, o equilíbrio na representa-ção dos dois sexos nos produtos educativos pressupõe que as referências ao sexo feminino sejam histori-camente tão significativas como as se reportam ao sexo masculino, o que significa, também, reequacio-nar o valor atribuído aos diversos factores que estruturam a vida em sociedade e a selecção e tratamentoprivilegiado conferido a certos domínios de intervenção histórica (o político e o militar) e, nestes, a deter-minadas dimensões (de cariz individualizante). Importa conferir idêntico valor a outras esferas (e a outrasdimensões) da actividade humana, mais ligadas à acção oculta e/ou silenciada das mulheres, mas tam-bém dos homens.

Neste sentido, é importante, por exemplo, olhar para as mulheres enquanto elementos de minorias gover-nantes e enquanto elementos das maiorias governadas. Trata-se de, em relação às primeiras, saberquando e quem foram as mulheres que estiveram em lugares de tomada de decisão e compreendercomo o fizeram (reproduzindo e reforçando modelos dominantes de exercício do poder ou apresentandoalternativas e adoptando práticas e estratégias diferenciadas de exercício de poder), e, em relação àssegundas, conhecer e compreender qual o papel das mulheres no apoio, na participação e na aceitação,bem como na resistência, na oposição e na rejeição da tomada de decisão das minorias governantes.

A ausência das mulheres ou a sua posição secundária e/ou marginal deve ser questionada e explicada,como sublinha Antonia Fernández, nas obras de arte e em especial no caso da pintura. Os documentoshistóricos utilizados pelos materiais educativos de História são, com muita frequência (e em especial naépoca contemporânea), a reprodução de obras de arte, elas próprias produtos históricos, localizadas notempo e no espaço e condicionadas pelas circunstâncias que rodearam e explicaram a sua criação e asua exposição pública – o poder que as financiou, os objectivos de quem as encomendou e de quem asproduziu, a perícia técnica e a capacidade crítica de quem as criou e as concepções socialmente domi-nantes da época que qualquer obra de arte reflecte. Procurar compreender a ausência leva-nos, comorefere a mesma autora, a descortinar os limites impostos às mulheres quanto à sua participação e ao seu acesso às esferas consideradas como próprias do sexo masculino ou representadas como tal. Expli-car a invisibilidade do sexo feminino e a sua secundarização iconográfica conduz à desocultação das formas e dos mecanismos de discriminação que ao longo do tempo recaíram sobre as mulheres e per-mite evidenciar os meios de construção, de reforço e de manutenção das relações de dependência e de

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poder e a hierarquia como eixo estruturante das relações entre homens e mulheres. No passado e nopresente21.

2.2. A Representação de Sujeito Histórico: dimensões a ter em conta

Para a integração da dimensão de género na representação iconográfica de sujeito histórico veiculadapelos produtos multimédia e pelos manuais escolares em suporte livro, poderá atender-se às seguintesdimensões:

A. Dimensão pessoal – quem são, como se apresentam e o que fazem os indivíduos, mulheres e homens,tendo em conta:

O enquadramento visual das figuras femininas e masculinas (reprodução integral ou de umexcerto), incluindo o tipo de planos que melhor revelam os traços físicos e psicológicos indivi-duais e a acção de figuras concretas.

A função das legendas na condução do olhar e no condicionamento da interpretação do con-teúdo da imagem, de modo a não silenciar, pela palavra, o que a imagem nos diz sobre asmulheres.

A localização na superfície visual do ecrã, no caso do produto multimédia, e da dupla página,no caso do manual escolar, bem como a sua dimensão, de forma a não secundarizar o femi-nino face ao masculino.

O recurso equilibrado ao anonimato e à nomeação, individual e colectiva, das figuras femini-nas e masculinas.

A exploração dos objectos e de outros elementos que rodeiam as figuras masculinas e femininase que surgem como símbolos da sua identidade e actuação.

A identificação de ambos os sexos com as situações de domínio/dependência; intervenção(apoio, oposição)/passividade; criação/aplicação; mudança/manutenção; produção/consumo;norma/transgressão; riqueza/pobreza; liderança/seguidismo.

B. Dimensão relacional – quem surge com quem e quem interage com quem. Perceber como estãorepresentados os homens e as mulheres, enquanto parte de um mesmo colectivo, implica atender:

Ao predomínio das imagens mistas e ao equilíbrio das imagens colectivas de homens e dasimagens colectivas de mulheres.

À associação de homens e de mulheres, tanto ao anonimato, como à nomeação.

À localização das figuras femininas e masculinas em cada imagem – como elementos centrais e como elementos secundários, do ponto de vista visual.

À identificação de homens e de mulheres como figuras centrais e como figuras secundárias nascenas representadas pelas imagens.

À valorização, para ambos os sexos, dos fenómenos de mobilidade e de fixação, quer aosespaços físicos, quer aos lugares de pertença social.E também aqui, à identificação de ambos os sexos com as situações de domínio e de depen-dência; intervenção (apoio, oposição) e de passividade; de criação e de aplicação; de mudança

e)

d)

c)

b)

a)

f)

e)

d)

c)

b)

a)

21 Cf. FERNÁNDEZ VALENCIA, Antonia (coord.), Las mujeres… op. cit.

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e de manutenção; de produção e de consumo; de norma e de transgressão; de riqueza e depobreza; de diversas formas de liderança.

C. Dimensão circunstancial ou contextual – onde e quando surgem representados os homens e asmulheres:

Espaços fechados e abertos;

Contextos públicos e privados;

Esferas sociais.

2.3. Algumas propostas

Diversificar a presença das mulheres passa por lhes ser conferida uma visibilidade e diversidade quanto a22:

Modelos positivos e modelos negativos alternativos aos tradicionalmente apresentados.

Níveis a que se situa a sua actuação (juntamente com os homens, mas também sem estes),nomeadamente nos espaços públicos.

Actividades a que se dedicaram: trabalho, produção nos diferentes sectores da economia (agri-cultura, indústria, comercialização e circulação), no mundo rural e no mundo urbano.

Aprendizagens, educação e saberes femininos, evidenciados como o são os masculinos.

Relações amorosas, fora e dentro dos quadros institucionais, como o matrimónio, vividas pelasmulheres de forma livre, imposta, marginal ou legítima.

Exercício do poder político, mas também do poder económico e familiar.

A vivência pelas mulheres da violência legitimada, exercida ao longo do tempo, nos mais diversos contextos históricos, e o modo como este fenómeno é assumido como historicamente“normal”.

Produção de saber pelas mulheres nas mais diversas áreas (literatura, arte, mecenato, ciência).

Relação do saber das mulheres com a ameaça do saber instituído, com a marginalidade e coma exclusão.

Para uma análise mais detalhada dos produtos multimédia e dos manuais escolares, poderá, ainda, aten-der-se à associação do feminino e do masculino aos elementos gráficos presentes:

Nas capas dos manuais escolares e nas embalagens dos produtos multimédia.

Nos ecrãs iniciais do software e nas duplas páginas de abertura de temas/capítulos/unidadesdos manuais escolares.

Na informação iconográfica visível na consulta de cada módulo de um produto multimédia eao longo do desenvolvimento de cada unidade de um manual quanto a:

Documentos iconográficos;

Símbolos/ícones (hipertexto; funcionalidades);

3

2

1

9

8

7

6

5

4

3

2

1

c)

b)

a)

22 Cf. FERNÁNDEZ VALENCIA, Antonia (coord.), Las mujeres… op. cit.

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Símbolos identificativos de cada bloco do manual (cabeçalhos, ícones identificativos das fun-ções pedagógicas dos elementos que compõem o manual) e de cada módulo do produtomultimédia (barras de navegação);

Imagens de fundo (tipo marca de água) identificativas dos módulos do software.

Jogos no multimédia e actividades no manual escolar.

Iconografia patente nas barras cronológicas no multimédia e nas cronologias no manual escolar.

Animação sonora e visual no multimédia.

Uma proposta para a integração da dimensão de género nos produtos multimédia de História consiste naexploração das potencialidades do multimédia e na interpelação de docentes e discentes para a explora-ção da imagem quanto à estereotipia de género presente de modo explícito e, na maioria dos casos, demodo implícito e, portanto, oculto. Sugere-se enquadrar as imagens usualmente utilizadas e que excluemas mulheres e/ou as apresentam de forma estereotipada por propostas de exploração do seu conteúdo – organizar o desenvolvimento de conteúdos em torno da exploração das imagens, tornando-as ponto de partida e de retorno, de percursos de navegabilidade, com base nos elementos figurativos da própriaimagem: os corpos, os objectos, o vestuário, o espaço físico, os elementos arquitectónicos, os transpor-tes e também as acções, as reacções e os comportamentos de personagens centrais, secundárias e mar-ginais. O objectivo é o de desconstruir o discurso iconográfico – questionar, explicar e problematizar aausência do sexo feminino e/ou dos traços que lhe estão associados, de forma explícita e implícita – pro-curar fazer “falar” um documento iconográfico, através das funcionalidades do multimédia, recorrendo a outros documentos e integrando os resultados da investigação no âmbito da História do Género e daHistória das Mulheres.

Tendo em conta a actual sub-representação feminina nos produtos educativos e a recorrência da suacaracterização estereotipada do ponto de vista de género, a fim de facilitar a operacionalização do itemRepresentação equilibrada do sexo feminino e masculino e a classificação decorrente da avaliação decada produto, propõem-se os seguintes critérios para atribuição dos níveis 1, 2, 3 e 4 previstos na grelhade avaliação.

Nível 1:

Total desequilíbrio entre os dois sexos quanto à presença/ausência, patente na exclusividade deimagens masculinas (individuais e/ou colectivas).

Desigualdade representativa, observável pela sua constante estereotipia.

O produto exclui um dos sexos e promove a discriminação.

Nível 2:

Desequilíbrio relativo entre os dois sexos quanto à presença/ausência, patente no significativopredomínio de imagens masculinas (individuais e/ou colectivas) face ao carácter pontual eexcepcional das imagens femininas (individuais e/ou colectivas), e/ou das imagens mistas, e àsua irrelevância visual. Exemplos:

significativa desproporção numérica entre imagens masculinas e imagens femininas e/oumistas;

destaque visual conferido às imagens masculinas face às restantes (dimensão; clareza; locali-zação na superfície visual – centro óptico ou margem; no circuito do olhar ou fora dele).

Desigualdade representativa, observável na regularidade da estereotipia associada aos doissexos.

O produto promove a desigualdade e potencia a discriminação.

b)

a)

b)

a)

6

5

4

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Nível 3:

Equilíbrio relativo entre os dois sexos quanto à presença/ausência, resultante do predomíniorelativo das imagens masculinas (individuais e/ou colectivas) face:

à irregularidade das imagens femininas, individuais e/ou colectivas;

regularidade das imagens mistas.

Igualdade representativa ocasional, observável no carácter esporádico de figuras femininas (e masculinas) não estereotipadas.

O produto promove a visibilidade de ambos os sexos, mas veicula a estereotipia de género.

Nível 4:

Representação equilibrada entre os dois sexos quanto à presença/ausência, observável:

no predomínio de imagens mistas;

na frequência idêntica de imagens masculinas e femininas, individuais e colectivas.

Igualdade representativa patente:

na diversidade de representações associadas ao feminino e ao masculino;

na presença de figuras femininas e masculinas que contrariam os modelos tradicionalmenteassociados a cada um dos sexos.

O produto promove a visibilidade e a igualdade entre os sexos.

O aumento do número de referências às mulheres que tem pautado os manuais escolares de História dosúltimos anos revela um esforço para alterar a assimetria representativa de homens e de mulheres quecontinua a ser dominante nestes materiais. Revelando-se ainda manifestamente insuficiente, este processotem sido lento e sujeito a hesitações e oscilações. Todavia, é necessário que os produtos multimédia sesituem numa mesma linha de mudança, valorizando os conteúdos e não os subordinando à necessidadede tornar o produto educativo multimédia apelativo aos sentidos e de provocar a adesão imediata porparte do público a que se destina.

b)

a)

b)

a)

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Referências Bibliográficas

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GOMBRICH, Ernest, Arte e Ilusão, S. Paulo, Ed. Martins, 1995; Cf. BARDIN, Laurence, “Le texte et l’image”, Communi-cations et langages, n.o 26, 1975, pp. 98-112.

HENRIQUES, Fernanda, PINTO, Teresa, “Em busca de uma pedagogia da igualdade: o peso da variável sexo na repre-sentação de bom aluno” in ALARIOA TRIGUEROS, Teresa et al., (coord.) Hacia una pedagogia de la igualdad, Sala-manca, Amarú Ediciones, 1998.

NUNES, Maria Teresa Alvarez, (2007), Género e Cidadania nas Imagens de História, Lisboa, CIG.

PROST, Antoine, “Les acteurs dans l’histoire”, in RUANO-BORBALAN, Jean-Claude (coord.), L’histoire aujourd’hui,Auxerre, Sciences Humaines Éditions, 1999, pp. 415-416.

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VAQUINHAS, Irene, “Breves palavras a propósito da invisibilidade das mulheres nos Programas de História dos ensi-nos básico e secundário”, in “Senhoras e Mulheres” na Sociedade Portuguesa do Século XIX, Lisboa, Colibri, 2000, pp. 185-196.

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Aprender filosofia hoje.Subsídios para um olhar não discriminador

sobre o material pedagógicoFernanda Henriques – Universidade de Évora

Introdução

Uma das ideias mais aceites por toda a gente é, certamente, a de que a Filosofia, tratando daquestão do sentido último da realidade e da própria vida humana, não tem nada a ver com asquestões da discriminação, sejam elas quais forem, e muito menos com as discriminações ligadasao sistema sexo/género. Nada é, contudo, menos correcto e, porventura, a Filosofia, como a Reli-gião, constituem-se nos baluartes fundamentais das mensagens simbólicas mais enviesadas e dis-criminadoras sobre a humanidade que circulam nas nossas sociedades.

A Filosofia, mais do que a Religião, em virtude do seu aspecto laico, continua a ser um redutosofisticado de discriminação, pelas concepções antropológicas que desenvolve e difunde, pelospadrões éticos que legitima e, em última análise, pelas mundividências que propõe às sociedades.Nessa medida, em cada época de mudança, é à Filosofia que se devem, em parte, as novas for-mas de reconceptualização daquilo que é ser humano no feminino, no sentido de, sob roupagensnovas, se continuar a veicular velhos esquemas de pensar a assimetria simbólica dos sexos. Sobreeste assunto, a filósofa espanhola Amelia Valcárcel1 diz explicitamente o seguinte:

Na maior parte do mundo ocidental, a filosofia, a mais alta, difícil e abstracta reflexão das humani-dades, é um dos veículos conceptuais da sexualização, talvez o principal.

(…)

Quando as elites renovadoras quiseram iniciar nos seus países mudanças em profundidade, com-prometeram sempre na sua causa as mulheres, porque desejavam um novo tipo de mulher capaz de ser mãe e educadora do novo cidadão que deveria realizar e consolidar as conquistas pelas quaisse lutava. (…) Porém, uma vez consolidada a mudança, o conjunto das mulheres costuma obter vantagens relativamente escassas. O mesmo pensamento secularizado que as empurrou para aacção sabe propor-lhes um novo lugar em que o seu papel seja, de novo, subsidiário, sob uma formamodernizada.

Empregando a terminologia exacta, a cada reivindicação de igualdade seguiu-se uma naturalizaçãodo sexo, acomodada, na linguagem e nas formas, aos modos e modas conceptuais dos tempos. E osexo, como limite e pedra de toque, continua a ocupar o seu lugar nas diversas e ainda divergentesconcepções do mundo. Porque pensar o sexo, para conotá-lo ou para destruí-lo, é, tenhamo-lo emconta, pensar o poder.2

Assim, para esta autora, como para mim, é absolutamente clara esta ligação entre a Filosofiacomo saber específico e a sustentabilidade de um poder que pode ser visível ou sub-repticiamentediscriminador. Ignorar este poder da Filosofia pode converter-se numa enorme irresponsabilidade,semelhante à não consideração do papel pernicioso da disseminação de um qualquer vírus. Naverdade, ainda que por si só as ideias não transformem as práticas sociais, são, no entanto, elas,as ideias, que as legitimam e as sustentam, ajudando a elaborar as representações e os esquemas

1 Amélia VALCÁRCEL, La política de las mujeres, Madrid, Cátedra, 1997.2 Ibidem, pp. 74-76.

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de pensar com que projectamos o nosso futuro pessoal e interagimos com os projectos daqueles edaquelas que são noss@s contemporâne@s. Sendo uma representação ou um esquema de pensaraquilo que está presente no nosso espírito nos momentos de reflexão ou de acção, eles constituem umaespécie de filtros valorativos com os quais apreendemos o real, quer natural, quer social, sustentando,por isso, práticas de vida mais ou menos igualitárias ou mais ou menos discriminadoras.

Se, por outro lado, tivermos ainda em conta aquilo que Gadamer chamava a eficácia do trabalho da História, para se referir ao modo segundo o qual a nossa consciência é constituída por esquemas de significação trans-subjectivos, que funcionam como princípios de leitura da realidade, sendo, simulta-neamente, condição de possibilidade e de constrangimento do modo como a interpretamos, talvez deva-mos reconhecer o nosso dever de questionar as teorias filosóficas que ensinamos, no sentido de per-cebermos o modo como nelas está directa ou indirectamente presente um olhar discriminador sobre ahumanidade. Dito de outra maneira, uma vez que, enquanto seres pertencentes a uma cultura, estamoscondenados a ter uma consciência histórica, ou seja, a darmos conta de nós dentro do desenrolar de umprocesso que nos contextualiza e nos forma, é nossa obrigação trabalharmos a história que nos trabalha,questionando a herança filosófica que recebemos, re-avaliando-a e re-interpretando-a de forma a quepossamos re-configurar, cada vez com maior equidade, a herança cultural que queremos deixar depoisde nós3.

Enquadrando-se nos princípios interpretativos acerca do possível poder discriminador da Filosofia, asreflexões que se seguem pretendem fornecer algumas pistas de análise de materiais pedagógicos relativosa esta disciplina, procurando identificar alguns potenciais enviesamentos que eles possam conter.

Atender-se-á, nesta proposta, a dois tópicos fundamentais:

A visibilidade das mulheres e do feminino;

O modo de utilização da linguagem.

1. A visibilidade das mulheres e do feminino

Introduzir este tópico de análise na avaliação de qualquer material pedagógico de Filosofia implica consi-derar, no mínimo, 5 questões centrais:

Presença de textos, com relevância para o tratamento dos temas, que sejam de autoria femi-nina;

Representação equilibrada de imagens dos dois sexos;

Recurso a exemplificações não estereotipadas;

Configuração de propostas de trabalho inclusivas;

Inserção da perspectiva de Género na análise d@s autor@s estudad@s e das temáticas anali-sadas.

Vejamos um pouco da justificação possível de cada uma dessas questões.

5

4

3

2

1

2

1

3 Para Gadamer temos o dever de interpretar. Diz ele: A consciência histórica não escuta de forma beatífica a voz que lhe chega do passado mas, reflectindo sobreela, recoloca-a no contexto em que ela se enraíza para avaliar a significação e o valor relativo que lhe pertence. Este comportamento reflexivo perante a tradiçãochama-se interpretação. (Hans-Georg GADAMER, Le problème de la conscience historique – 1958, Paris, Seuil, 1996, pp. 24-25).

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1.1. Presença de textos, com relevância para o tratamento dos temas, que sejam de autoria feminina

A importância desta presença de textos de autoria feminina para o desenvolvimento de um ensino daFilosofia mais isento de discriminação reside no facto de com ela se ir introduzindo, naturalmente, a rela-ção entre a prática filosófica e as mulheres.

Essa introdução é, porventura, a mais eficaz forma de ir destruindo a ideia, totalmente falsa, de que nãohá mulheres filósofas ou de que as mulheres não se interessam pela Filosofia. Pelo menos, é absoluta-mente inegável que, na contemporaneidade, há filósofas, cujos nomes são totalmente incontornáveis, nassuas áreas da especialidade. Citando, apenas, algumas:

Hannah Arendt, na filosofia política;

Françoise Dastur, na fenomenologia;

Eliane Escoubas, na estética;

G. Elizabeth M. Anscombe, nas questões da lógica e da linguagem e também da filosofia damente;

Philippa Foot, Adela Cortina, Victoria Camps, na ética;

Mary Madeleine Davy, Simone Weil, na religião.

Nessa medida, ignorar estas ou outras autoras de relevância equivalente, nunca as referindo ou nuncadando a conhecer as suas produções textuais, é não prestar um serviço científico ao trabalho pedagó-gico, no ensino secundário.

1.2. Representação equilibrada de imagens dos dois sexos

Este é, igualmente, um tópico fundamental para a desconstrução interior de um olhar enviesado sobre o que é, verdadeiramente, a humanidade. Se, sempre que se recorre a uma imagem – como ilustraçãode qualquer tema ou problemática ou como organizador de progresso, isto é, como elemento a explorarnuma análise posterior –, as figurações apresentadas, 1. ou apenas reproduzem a figura masculina, ou2. reproduzem o masculino e o feminino, mas dentro de imagens tradicionais, contribui-se para fortalecera assimetria simbólica na representação social dos sexos, cimentando maneiras menos correctas de rela-ção avaliativa consigo mesmo e com as outras pessoas.

Este aspecto é particularmente relevante para o tratamento dos valores estéticos em que é natural a inser-ção de representações de pinturas de referência. Nesse contexto, importa não recorrer à representaçãodo feminino ligada exclusivamente às situações de sedução ou da simbolização da sensibilidade, damelancolia, da religião, da futilidade ou do ócio, mas procurar pinturas em que a figura das mulheresapareça associada a outras dimensões da vida e do viver.

1.3. Recurso a exemplificações não estereotipadas

Em Filosofia, sobretudo ao nível da iniciação a algumas temáticas, é muito vulgar o recurso a exemplosou a situações exemplares. Também aqui deve ser tomado em conta que os exemplos não só incluamprotagonismos femininos como também os incluam de modo diversificado, tendo em atenção que asmulheres não são apenas mães, filhas ou esposas de alguém, mas são indivíduos com uma vida pessoalprópria, com anseios e aspirações fora daquelas que a tradição sempre lhes apontou. Complementar-mente, por outro lado, convém lembrar que os homens também são pais, filhos ou esposos de alguém.

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Se procurar compreender a realidade de uma forma cabalmente objectiva e crítica é a intencionalidadeda prática filosófica, importa que o ensino da Filosofia contribua, decisivamente, para uma representaçãodessa realidade, o mais complexa e o mais diferenciada possível.

1.4. Configuração de propostas de trabalho inclusivas

Os actuais Programas de Filosofia do Secundário, nos 10.o e 11.o anos, propõem a integração de ummomento dedicado ao desenvolvimento de um tema relevante na vida contemporânea.

Importa que haja uma escolha criteriosa das temáticas a abordar, nomeadamente, a possibilidade filosó-fica da sua concretização, especificamente do ponto de vista da acessibilidade de recursos documentaissérios disponíveis. Dentro das condicionantes a ter em conta na escolha dos temas, convém não menos-prezar, também, a sua riqueza para o enriquecimento de perspectivas da parte de quem aprende. Nestecontexto, a escolha de um tema que obrigue a uma reflexão sobre os diferentes níveis de discriminação aque a sociedade contemporânea submete uma imensa maioria d@s cidadãos e cidadãs parece ter umapertinência essencial.

Todavia, seja qual for o tema escolhido, importa que o plano da sua abordagem inclua tópicos e proble-máticas que focalizem as discriminações, não esquecendo nunca que a discriminação sexual atravessatodas as outras discriminações.

1.5. Inserção da perspectiva de Género na análise d@s autor@s estudad@s e das temáticas analisadas

Este aspecto exige já uma grande finura filosófica na abordagem do ensino da Filosofia, advindo, poroutro lado, de uma posição hermenêutica que reconhece que todo o trabalho filosófico é construído apartir de um lugar não neutro e nunca é bacteriologicamente puro.

A sua internalização no ensino da Filosofia é, do meu ponto de vista, o maior exemplo da radicalidadeda actividade mesma de fazer Filosofia e de se empenhar na sua transmissão.

No entanto, integrar a perspectiva de Género na abordagem da Filosofia não significa desqualificar osfilósofos que definiram uma imagem do feminino inferior à do masculino, no interior do seu sistema. Sig-nifica apenas interrogar esses filósofos para identificar se eles construíram ou não explicitamente qualquerrepresentação do feminino ou se simplesmente incluíram as mulheres sob a designação de Homem comopretenso universal. Neste último caso, o mais generalizado, importa tentar compreender se a palavra e o conceito de Homem incluíam, verdadeiramente, os dois sexos, ou se, pelo contrário, representavamapenas o homem-masculino, e, nessa medida, desprezavam totalmente a existência das mulheres comomodo de se ser humano.

Contudo, seja qual for o caso encontrado nesta interrogação da produção filosófica, ela será sempreportadora de uma actividade inquiridora e crítica de grande fecundidade, conduzindo a transmissão daFilosofia à sua raiz mais própria. Ao descobrir lacunas, esquecimentos ou até contradições, no modo depensar dos grandes autores da Filosofia, quem está na posição de aprendente assume um papel activona recepção da sua herança cultural, fortalecendo a sua liberdade crítica e sendo obrigado a reconhecerque todo o pensar humano, mesmo o mais perfeito, é limitado. A vivência intelectual dessa experiênciados limites do pensar é, sem sombra de dúvida, um dos melhores utensílios de formação de qualquer serhumano que tem de viver numa sociedade global e, por via disso, plurifacetada nos valores e nas signifi-cações, ajudando-o a ser capaz da controvérsia, mas também do diálogo.

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2. A linguagem como elemento discriminador

Quando falamos, fala-se através dos nossos discursos um conjunto estruturado de valores muitas vezesem contradição com o que, genuinamente, julgamos pensar. Atentemos, por exemplo, em expressões discriminadoras que estão depositadas na linguagem através dos provérbios ou de frases feitas, como por exemplo:

Burro velho não aprende línguas (discriminação com base na idade);

O trabalho é bom para o preto (racismo puro);

Maria rapaz (estereótipo).

Quantas vezes já as dissemos sem qualquer consciência do seu peso discriminador e sem nos aperce-bermos dele sequer? E que dizer de vocábulos como semítico e alarve? Quando as proferimos algumavez nos lembramos de que elas estão carregadas de ódios e desprezos acumulados contra alguns povos?

Temos de ter consciência de que o mundo da linguagem é, simultaneamente, órgão e limitação do nossopensar/dizer: só conseguimos trazer ao discurso aquilo que permite ou potencia a estrutura da língua em que nos movemos. E qualquer falar expressa um dito que ultrapassa toda a decisão voluntária dequem fala. Falar é, no fundo, também, valorizar. Sobre isto diz Georges Gusdorf, num livro velhíssimosobre a linguagem: A linguagem apresenta-se como a mais originária de todas as técnicas. Ela constituiuma disciplina económica de manipulação das coisas e dos seres4. Ou seja, falar é moldar e dominar o mundo. Pela fala, o ser humano dignifica ou menospreza a realidade, mas, em qualquer dos casos,introduz nela uma ordem valorativa, salientando, rebaixando, em suma, hierarquizando. Continuandoainda com Gusdorf, temos de consciencializar que a palavra deve a sua eficácia ao facto de não ser apenas uma notação objectiva, mas sim um índice de valor […] cada palavra é a palavra da situação, a palavra que resume o estado do mundo em função da minha decisão5. Neste contexto, podemos dizerque a palavra humana carrega uma dimensão ética profunda, porque se a minha palavra “resume oestado do mundo em função da minha decisão”, eu posso falar:

para reificar o passado, repetindo-o, ou para o desenvolver numa dinâmica de possibilidades futuras, pro-curando dizer palavras novas.6

Assim, falar transporta consigo um recado axiológico subjacente ao explicitamente dito no discurso e,algumas vezes, ao invés da sua mensagem explícita. Procurar a coerência discursiva é, então, também,olhar para as palavras que integram as frases, atentar na forma como elas obedecem a uma morfologiae a uma sintaxe específicas.

Do ponto de vista da discriminação com base no sistema sexo/género, a forma como falamos ou escre-vemos é mais ou menos igualitária consoante está, ou não, atenta ao facto de o discurso dar visibili-dade ao feminino. Essa atenção prende-se com dois aspectos específicos, para além das questões geraisantes apontadas, mas que podem ser incluídas sob a questão da legitimidade do universal supostamenteneutro7.

4 Georges GUSDORF, La Parole, Paris, PUF, 1990 (1952), p. 13.5 Ibidem, p. 12.6 Fernanda HENRIQUES, “Filosofia, Cultura, Linguagem”, in AAVV, Aristotelismo, Antiaristotelismo, Ensino da Filosofia, Rio de Janeiro, Agora da Ilha, 2000, pp. 245-

-262, p. 249.7 Sobre estes temas ver o excelente tratamento feito em: Graça ABRANCHES e Eduarda CARVALHO, Linguagem, Poder e Educação, Lisboa, CIDM, 1999. Ver tam-

bém o já velho, mais ainda importante, texto: Maria Isabel BARRENO, O falso neutro, 1989.

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2.1. A suposta neutralidade do universal masculino

Este tema remete para um dos factores mais profundamente discriminadores das mulheres e do feminino,ao mesmo tempo que traz a lume uma forte controvérsia, quer entre as feministas, quer entre as pessoasque se dedicam ao estudo da questão da linguagem, fundamentalmente, linguistas.

O que é que está em jogo? Basicamente, a contestação da legitimidade de duas situações morfossin-tácticas:

A contestação da legitimidade que homem, mesmo quando é escrito com maiúscula, possadesignar, sem discriminação, os homens e as mulheres.

A contestação da legitimidade não discriminadora da concordância através do plural mas-culino, quando o antecedente é constituído por palavras femininas e masculinas ou quando o referente extra-linguístico é composto por indivíduos dos dois sexos.

Atente-se nas seguintes frases:

O homem, ao inventar a agricultura, iniciou um processo irremediável de ligação à terra.

Dentro da sala de aula havia 20 raparigas e 1 rapaz, todos eles se regozijaram por poderemparticipar na iniciativa proposta.

Os alunos das Universidades portuguesas têm, em geral, poucos recursos bibliográficos ao seudispor para trabalhar.

Os cidadãos portugueses devem cumprir o seu direito de voto.

Os avós ainda são um grande apoio na sustentabilidade das famílias portuguesas.

Poderíamos continuar indefinidamente e em todos os exemplos caberia sempre perguntar: onde estão asmulheres?

Dir-se-á que as frases estão construídas segundo regras gramaticais claramente estabelecidas e que agramática é de natureza puramente linguística. Ambas as coisas, mesmo que fossem pacificamente acei-tes como verdade, não podem ser tidas como sendo imutáveis. As regras gramaticais também são histó-ricas e, por esse motivo, alteráveis. A este respeito, a posição da obra de Gusdorf atrás referida, não sóaponta para o carácter mutável da gramática como também faz o levantamento de algumas situaçõeshistóricas em que havendo necessidade de uma transformação das mentalidades se recorreu à reorgani-zação gramatical e ou lexical.8 Na verdade, se o discurso humano tem um enorme poder […] na configu-ração das visões do mundo, é natural que todas as transformações conceptuais e ideológicas correspon-dam, igualmente a momentos de modificações linguísticas9.

O predomínio deste imperialismo do masculino, apresentado como um universal neutro é, igualmente,patente nas formas habituais de tratamento de homens e de mulheres – eles tratados como seres indivi-duais e autónomos, elas por referência a um estado civil que sempre as referencia a um homem –, bemcomo a designação de profissões ou funções que, geralmente, costumam aparecer no masculino.

Este tópico é, contudo, mais fácil de contornar e superar. Dois aspectos devem ser tidos em conta, a estenível.

8 Cf., Georges GUSDORF, op. cit., pp. 21-36. Ver também: Patricia VIOLI, El infinito singular, Madrid, Ediciones Cátedra, 1991.9 Fernanda HENRIQUES, op. cit., p. 249.

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O primeiro prende-se com o dever de usar uma forma de tratamento igualitário quando houver de sereferir os nomes de autores ou autoras de textos, por exemplo, por um lado, não tratando os homenspelo apelido ou por nome e apelido e as mulheres apenas pelo nome próprio e, por outro, deixando deacrescentar à designação das mulheres a categoria de menina ou senhora, para diferenciar o seu estadocivil. De facto, se se está a considerar uma mulher do ponto de vista da sua obra ou da sua acção social,não se compreende a necessidade de se acrescentar se é solteira, casada, divorciada ou viúva, uma vezque para nenhum homem se vê necessidade de tal explicitação.

O segundo aspecto refere-se ao cuidado que deve haver em fazer o feminino de todas profissões ou fun-ções que forem referidas numa explicação ou num exemplo, pela mesma exigência de dar visibilidadeaos dois sexos.

Por tudo isto, importa, pois, ter muito cuidado com a linguagem usada nos materiais pedagógicos, exi-gindo que ela não oculte as mulheres e o feminino, nem funcione como elemento discriminador.

Há muitas e boas formas de escrever bons textos sem recorrer de modo sistemático ao suposto e falsa-mente considerado universal neutro. E de cada vez que considerarmos que esta questão é despicienda,devemo-mos lembrar sempre que Os Direitos do Homem e do Cidadão que a Revolução Francesa pro-clamou, efectivamente, apenas se referiam ao homem masculino e branco, excluindo, portanto, dessesdireitos muito mais do que metade da Humanidade.

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GUIÃO de APOIOà AVALIAÇÃO de PRODUTOS MULTIMÉDIA

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Sistema de Avaliação, Certificação e Apoio à Utilização de Software na Educação e Formação

Apresentação de Produtos a CertificaçãoFormulário em Linha

Instruções

Preencher o formulário com a informação solicitada relativa ao produto a apresentar a certificação eenviar uma cópia do produto à entidade, de acordo com o respectivo regulamento.

Itens Descrição

F1. Título

F2. Autoria

F3. Editor/a

F4. Versão

F5. Ano de Edição

F6. Língua(s)

F7. Componentes do produto

CD DVD Disquete Programa transferido da Internet

Documentação completa em papel (Português)

Documentação parcialmente em papel (Português)

Documentação completa em formato digital (Português)

Documentação completa em papel (outra língua)

Documentação parcialmente em papel (outra língua)

Documentação completa em formato digital (outra língua)

F8. Distribuidor/a em Portugal

F9. Preço

Gratuito Preço de licença individual: _________________________

Preço de licença de escola:

Preço de licença de ______ instalações: ____________________________

Preço de licença de ______ instalações: ____________________________

Preço de licença por produto obtido por transferência da Internet:

_________________________

F10. Apoio adicional ao/à utilizador/a

Apoio técnico por telefone ________________ Correio postal __________

Correio electrónico ________________________________________________________

Sítio de apoio na Internet _________________________________________________

Nas instalações da Editora

Não dispõe de serviço

Outro ______________________________________________________________________

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Responsável _________________________________________________________________________ Data ____________________

Itens Descrição

F11. Requisitos recomendados de hardware

Leitor de CD Leitor de DVD Leitor de disquetes

Placa de som e altifalantes Microfone Impressora

Processador: _________________ RAM: __________ Outros: _________________

F12. Requisitos recomendados de software(sistema operativo)

Windows 95 Windows 98SE Windows 2000

Windows XP Mac OS 7, 8 ou 9 Mac OS X

Linux Outro sistema operativo: ______________________________

Software adicional necessário: ____________________________________________

F13. Conformidade com as Normas de Acessibilidade (portaria 989/93)

F14. Idade(s) do público--destinatário

3-5 6-8 9-10 11-13 14-17 � 18

Todos

F15. Nível ou níveis de ensino

Pré-escolar

Ensino Básico

1.o Ciclo

2.o Ciclo

3.o Ciclo

Ensino Secundário Ensino Recorrente Ensino Profissional

Formação Profissional Ensino Superior

F15. Articulação com áreas curriculares (disciplinares, não disciplinares)

Áreas curriculares disciplinares [especificar a(s) disciplina(s)]

______________________________________________________________________________

Áreas curriculares não disciplinares [especificar a(s) área(s)]

______________________________________________________________________________

F17. Temas e/ou tópicos

F18. Breve descrição das funcionalidades e usos do software

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Ficha de CatalogaçãoInformação destinada à identificação do produto, catalogação e registo na base de dados

Instrução: preencha a informação solicitada com detalhe e rigor.

Identificação do Produto

C1. Título

C2. Autoria

C3. Editor/a

C4. Língua(s)

C5. Tipo de suporte físico (CD, DVD, disquete)

C6. Idade(s) do público--destinatário

3-5 6-8 9-10 11-13 14-17 � 18

Todos

C7. Nível ou níveis de ensino

Pré-escolar

Ensino Básico

1.o Ciclo

2.o Ciclo

3.o Ciclo

Ensino Secundário Ensino Recorrente Ensino Profissional

Formação Profissional Ensino Superior

C8. Conteúdo/disciplina

C9. Conteúdo/tema(s)

C10. Sistema Operativo

Windows 95 Windows 98SE Windows 2000

Windows XP Mac OS 7, 8 ou 9 Mac OS X

Linux Outro sistema operativo: ______________________________

C11. Tipo de software*

Software educativo geral

Obras de referência

Ferramentas e/ou Ambientes abertos ou de autor

Software educativo específico

Tutorial Livro electrónico

Exercícios de prática & jogos Simulação

Avaliador/a _________________________________________________________________________ Data ____________________

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Observações:

Tipos de Software

Obras de referência [programa que contém informação/conteúdo de carácter geral e que pode teruso educativo em diferentes contextos e situações de aprendizagem, em especial como elemento deconsulta, como sejam uma enciclopédia, um atlas, um dicionário];

Tutorial [programa que inclui percurso pré-programado de aprendizagem, linear ou ramificado];

Ferramenta ou ambiente de autor [programa que se apresenta vazio de conteúdo e que dispõe deferramentas próprias para a criação/construção de conteúdo diverso];

Livro electrónico [programa que contém/reproduz, em formato de apresentação, conteúdos específi-cos de uma determinada área ou tópico. Inclui obras temáticas, sobre o património histórico, literárioe natural, living books, etc.];

Exercícios de prática & Jogos [programa que inclui exercícios e prática repetitiva, quase sempre emformato de jogo, acerca de conceitos e tópicos específicos. Pode incluir mecanismos de feedback(pontuação, por exemplo), indicações para ultrapassar erros, registos do progresso do aluno, etc.];

Simulações [programas que permitem ao utilizador manipular variáveis correspondentes a fenóme-nos, de acordo com um conjunto de regras pré-programadas.]

Nota: Quando o software pode ser classificado em mais do que uma categoria, dado que dispõe dediversas funcionalidades que permitem ao utilizador realizar actividades educativas diferentes, deve serclassificado pelo elemento preponderante.

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Grelha de AvaliaçãoEste instrumento tem como objectivo proceder a uma avaliação a anteriori acerca do potencial educativodo programa e não inclui resultados da sua utilização em contexto educativo.

É composto por duas partes: (a) a primeira parte é uma “grelha de avaliação” que se destina a quantifi-car a análise e apreciação do produto, de forma sistemática e detalhada, em relação a cada item e emrelação a todos e a cada um dos domínios em apreciação; (b) uma segunda parte em que lhe é solici-tada uma avaliação global/descritiva das suas percepções.

Instruções

Assinalar com uma � a coluna que melhor corresponde à sua opinião. No final de cada domínio, deverealizar uma apreciação global sobre esse domínio. Utilize o espaço de observações para registar errosou omissões do software, quando aplicável. Utilize, para apreciar cada item, a seguinte escala:

1. Mau; 2. Suficiente; 3. Bom; 4. Excelente; NA não aplicável ou não avaliado

Identificação e breve descrição das funcionalidades e usos do produto

Título:

Autoria:

Editor/a:

Versão:

Data:

Língua:

Descrição:

Domínio Técnico

NA 1 2 3 4

A1. Instalação do programa

A2. Compatibilidade com outro software e/ou erros de programação

A3. Design

A4. Interface

A5. Navegação e/ou orientação do/a utilizador/a

A6. Funcionalidades disponíveis (por exemplo, pesquisa, impressão de documentos, exportação de informação, áudio e vídeo, etc.)

A7. Ajuda ao/à utilizador/a (integrada no softwareou na documentação adicional)

Observações (incluindo descrição de erros e/ou omissões do software, se aplicável):

Avaliação Global (Domínio Técnico)

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Domínio Científico

NA 1 2 3 4A8. Rigor científico (incluindo qualidade e correcção científica do conteúdo,

actualidade da informação e clareza no uso de termos e conceitos)

Domínio Pedagógico

NA 1 2 3 4A11. Relevância para o desenvolvimento de competências essenciais

(gerais e específicas)

Domínio Linguístico

NA 1 2 3 4

A15. Adequação da linguagem ao público-destinatário

A16. Correcção linguística

A17. Clareza da linguagem

A18. Utilização de uma linguagem explicitamente inclusiva do feminino e do masculino

Observações (incluindo descrição de erros e/ou omissões do software, se aplicável):

Avaliação Global (Domínio Linguístico)

A12. Possibilidade de articulação/integração curricular

A13. Respeito por diferentes ritmos de aprendizagem

A14. Perspectiva pedagógica subjacente ao programa, incluindo papel dos alunos e alunas

Observações (incluindo descrição de erros e/ou omissões do software, se aplicável):

Avaliação Global (Domínio Pedagógico)

A9. Adequação dos conteúdos ao público-destinatário

A10. Pertinência dos conteúdos face à natureza da temática e aos objectivos curriculares

Observações (incluindo descrição de erros e/ou omissões do software, se aplicável):

Avaliação Global (Domínio Científico)

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Domínio dos Valores e Atitudes

NA 1 2 3 4A19. Ausência de preconceitos ou estereótipos de raça,

etnia, religião e/ou cultura de origem

A20. Promoção da igualdade entre homens e mulheres através de:

1. Equilíbrio na visibilidade concedidas à representação do sexo feminino e do sexo masculino

2. Apresentação de personagens com características//comportamentos diversificados e que ultrapassem as tradicionalmente associadas ao respectivo sexo

3. Presença de personagens desempenhando actividades/profissões ou papéis/funções sociais diversificadas e que ultrapassem as tradicionalmente associadas ao respectivo sexo

A21. Ausência de conteúdos que incitem à violência

A22. Relevância na promoção de atitudes positivas face à Natureza e ao Ambiente

A23. Conformidade com as Normas de Acessibilidade (portaria 989/93)

Observações (incluindo descrição de erros e/ou omissões do software, se aplicável):

Avaliação Global (Domínio dos Valores e Atitudes)

Avaliador/a _________________________________________________________________________ Data ____________________

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Avaliação compreensiva/descritivaInstruções

Preencha os campos de acordo com a sua percepção acerca dos aspectos globais do programa. Incluaapenas os aspectos que lhe parecem relevantes e que podem contribuir para uma melhor compreensãoacerca das mais-valias educativas que o programa poderá ajudar a promover.

Avaliador/a _________________________________________________________________________ Data ____________________

Descrição e apreciação global do programa

Descrição e avaliação da relevância e potencial pedagógico do programa