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PRÉMIO DOUTOR CABRAL DE MONCADA UMA VISÃO JURÍDICA DA EVOLUÇÃO DO DIREITO ENQUANTO SISTEMA NA SOCIEDADENAS TEORIAS SOCIAIS MANUEL PINTO DOS SANTOS 1 PRÉMIOS

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PRÉMIO DOUTOR CABRA L DE MONCA DA

uma visão jurídica da evolução do “direito enquanto sistema na sociedade” nas teorias sociais

manuel pinto dos santos

1PRÉMIOS

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prémio doutor cabral de moncada

UMA VISÃO JURÍDICA DA EVOLUÇÃO DO “DIREITO ENQUANTO SISTEMA NA

SOCIEDADE” NAS TEORIAS SOCIAIS

manuel pinto dos santos

ED IÇÃOFaculdade de Direito da Univers idade de CoimbraInst ituto Jur íd ico

C ONC EÇÃO GRÁF ICA | INF OGRAF IAAna Paula Si lva ı apsi [email protected]

C ONTAC TO SPátio da Univers idade ı 3004-545 Coimbra inst itutojur id [email protected]

I SBN 978-989-8787-22-4

© MAI O 201 5

INSTITUTO JURÍDICO | FACULDADE DE DIREITO | UNIVERSIDADE DE COIMBRA

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Uma Visão Jurídica da Evolução do “Direito Enquanto Sistema na Sociedade”

nas Teorias Sociais

manuel pinto dos santos

Resumo: O presente artigo traça a história da ideia do direito enquan-to subsistema autónomo dentro da sociedade, com uma função própria. Encontrando raízes nas construções de Max Weber e Émile Durkheim, a teoria dos sistemas surge pela primeira vez com fulgor no panorama so-ciológico através de Talcott Parsons. É, no entanto, com Niklas Luhmann, proponente de uma visão do direito enquanto sistema autónomo e auto-poiético, dotado de clausura operacional, que o funcionalismo sistémico surge como paradigma viável para uma visão do direito. O corpo do artigo explora a teoria luhmanniana e as correcções que lhe são feitas, mais tarde, por Günther Teubner e Jürgen Habermas, que, cada um à sua maneira, tentaram enfrentar o problema da teoria dos sistemas em face da socieda-de plural com que se depararam. Conclui-se com uma reflexão acerca do lugar que cabe, hoje em dia, a esta teoria.

Palavras-Chave: Niklas Luhmann; Günther Teubner; Jürgen Habermas; funcio-nalismo sistémico; pluralismo; teoria dos sistemas.

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The Idea of “Law as a System in Society” A Juridical Analysis

manuel pinto dos santos

AbstraCt: This article outlines the evolution of the idea of law as an autonomous system in society, with its very own function. With roots in the writings of Max Weber and Émile Durkheim, Systems Theory was first developed as such by Talcott Parsons, whose cybernetic approach gained much praise by social theorists of his time. Drawing upon his work, Niklas Luhmann came up with a vision of Law as an autonomous and autopoietic system, working with operational closure. His construction became one amongst the competing paradigms on the nature of Law, and was later fine-tuned by Günther Teubner and Jürgen Habermas, who struggled to adapt it to the rising pluralism that was to be found in contemporary society. This article concludes with a reflexion on the current role and place of this Systems Theory on the current academic landscape.

Keywords: Niklas Luhmann; Günther Teubner; Jürgen Habermas; systems theory; Law as a social system; pluralism.

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I. Preliminares

1. A Societas pós-1789 é um quebra-cabeças. Ao fascínio humano

perante problemas aparentemente irresolúveis veio unir-se a propensão iluminista para a análise racional e a sistematização científica; e, assim, despontou a Sociologia enquanto disciplina autónoma. Dizemos 1789 de forma simbólica – o número expressa de maneira compacta uma série de transformações que se começam a fazer sentir (dizem-nos os sociólogos) quando, em 1520, Martinho lutero advoga a liberdade de todo o cristão para interpretar a Bíblia1. Certamente que outro símbolo. Mas um que indica o sentido das transformações – a fragmentação da communitas religiosa e a expressão de uma autonomia individual que reclama o seu reconhecimento pelas outras partes. A liberdade religiosa foi a sua face mais visível neste período – mas a transversalidade deste claim to liberty projecta-se (e de forma eminentemente plural) até aos dias de hoje. O problema da compossibilidade das pessoas individuais numa sociedade pacífica. A sua expressão actual no problema do pluralismo, e a sua expressão histórica no problema da modernidade. O motto: “Como é possível a ordem social?”. Seria uma desilusão se a sociedade pluralista conseguisse menos que uma pluralidade de respostas.

2. O direito, com a sua posição privilegiada na manutenção desta ordem, não escapará certamente ao escrutínio desta ciência do social. Arrogar a subtracção do direito ao reino do social seria solipsismo jurídico, não importando quão sacrílego possa parecer ao jurista a redução do edifício político-legal a mera “facticidade social”. Mas o próprio edifício estará sempre inextricavelmente unido à ciência social; ou não é De l’ esprit des lois também uma obra de análise social?2 E não procura Du contrat social estabelecer fundamentos para esta modernidade que se avizinhava? A fronteira é por vezes ténue. Certo é que nenhum

1 Martinho lutero, Carta ao Papa Leão X.2 Raymond aron, As Etapas do Pensamento Sociológico, 32: “A intenção de

O Espírito das Leis (…) é com toda a evidência a intenção a que eu chamo so-ciológica”.

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domínio discursivo deve desprezar a compreensão do real que o outro lhe pode providenciar.

3. Cabe-nos, neste trabalho, assumir um olhar jurídico sobre o contributo sociológico. Analisaremos uma teoria em particular – teoria dos sistemas – e procuraremos relevar aquilo que se mostra de utilidade para a compreensão do sentido e posição do direito; trata-se de uma empreitada de cariz dialógico, que tenta colocar – por a entender plena de contributos de valor – a teoria sociológica em relação com as ciências jusfilosóficas. Abordaremos os escritos de alguns autores célebres pela sua proficiência no domínio da sociologia – mas procurando pôr em relevo os seus contributos para a teoria jurídica.

4. A tensão fundamental – comum a ambos os discursos – é entre o atomismo individual e a vida em comunidade. Não só um comum biológico... Mas o comum da experiência cultural humana, expresso no universo jurídico pela dicotomia suum/commune, autonomia/responsabilidade. Também a sociologia, ciência mais jovem, procurou alcançar a sua plenitude através do cientismo positivista de Auguste Comte3 (não muito depois da superação do normativismo legalista)... para se ver perdida na mais abstracta metafísica. A sua viragem para a fenomenologia mostrou-se indubitavelmente mais produtiva4, com alguns autores tidos hoje como “clássicos” a tecerem uma série de quadros conceptuais ainda hoje altamente relevantes na análise social. Colocando ênfase quer numa prevalência da sociedade (Durkheim), quer na acção individual (Weber), foram sendo construídos modelos da acção da sociedade. Uma tentativa de compreender... e talvez prever o comportamento dos indivíduos e da colectividade. Exploremos um pouco estas duas abordagens, na medida em que possam vir a ser úteis na restante exposição.

4.1.1. Émile Durkheim coloca assim a tónica naquela prevalência da sociedade. Concentrou-se naquilo que a tornava possível, no mecanismo que permitia não se ver apenas um conjunto de indivíduos e suas relações mas este mais-que-eles dinâmico. Encontrou a resposta naquilo a que chamou solidariedade, categoria esta que dividiu em solidariedade mecânica

3 F. J. Pinto bronze, Lições de Introdução ao Direito, 205.4 Luís Cabral de monCada, Filosofia do Direito e do Estado, II, 90 s: “Ilumi-

nando alguns desses factos com a luz dos outros, esforça-se por encontrar, antes de tudo mais, não a lei do mecânico acontecer em séries de repetições indefinidas, mas a individualidade dos todos únicos e irrepetíveis, chamados «épocas» ou os grandes ciclos da cultura e da civilização”.

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e solidariedade orgânica, que fazia ainda corresponder, respectivamente, às sociedades primitivas e modernas5.

Designava a primeira uma união entre indivíduos que existia graças às semelhanças entre estes. Existiria, nas sociedades arcaicas anteriores à divisão social do trabalho, um elevado sentimento de pertença à colectividade derivada da pequeníssima diferenciação existente entre os diversos indivíduos. Seria a comunhão de valores, crenças e funções o factor que unia estes seres humanos. E a este tipo de sociedade, diz Durkheim, (apoiando os seus escritos em investigações de carácter histórico), corresponde um direito dito repressivo, cuja função seria satisfazer sentimentos de vingança da colectividade contra os indivíduos que ofendessem os seus valores. Sendo estes partilhados por todos, aquele que fosse contra as leis – escritas ou não – seria punido por todos, de uma forma que tendia a não ser proporcional ao crime. Todos teriam a mesma forma de ver o crime – crime numa perspectiva sociológica, aquilo que ofende a consciência geral (mas ainda não a consciência jurídica geral de Castanheira Neves...6) – e a ausência de visões alternativas do delito torná-lo-iam universalmente reprovável e, por isso, fortemente punível7 (tome-se como exemplo uma sociedade em que todos dependem de pão para sobreviver, e em que, portanto, aquele que roubar o pão de outro está a roubar-lhe a subsistência. É compreensível que a consciência geral – visto que todos os indivíduos se encontram fortemente envolvidos pelo sistema ético vigente – veja este delito como punível com uma pena capital).

Chegando a sociedades modernas, já com divisão social do trabalho, temos uma solidariedade diferente, dita orgânica. Os indivíduos da colectividade estão unidos pelas suas diferenças, que os fazem depender uns dos outros (à semelhança dos diferentes órgãos num corpo...). Esta nova organização social leva a uma maior diferenciação

5 Raymond aron, As Etapas do Pensamento Sociológico, 314 s.6 António Castanheira neves, Metodologia Jurídica – Problemas Fundamentais,

280: “Trata-se do que se poderá considerar o consensus omnium ou a normativa conscience publique da comunidade de que se trate e em que será lícito ver como que o costume ético-social da mesma comunidade, posto que porventura a diferenciar-se em função dos grupos sociais a que vai referido [...]”.

7 George ritzer, Sociological Theory, 81: “The theft of a pig must lead to the cutting off of the offender’s hands; blaspheming against God or gods might well result in the removal of one’s tongue. Because people are so involved in the moral system, an offense against it is likely to be met with swift, severe punishment”.

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dos indivíduos, que verão, consequentemente, os factos sociais por diferentes prismas. O direito repressivo deixa de ser tão viável – embora nunca desapareça! – uma vez que já não existe uma forma universal de ver o mundo, um conjunto de valores supremos pelo qual todos se guiam.

Assim se chega ao direito restitutivo. Pois se temos na sociedade uma predominância de interacções entre vários grupos que se regem por diferentes concepções (do bom e do mau, do justo e do injusto, do sagrado e do profano...), a função do direito passa a ser a de conciliar estas diferenças e permitir que a sociedade seja funcional a despeito d’(e graças a)elas. Já não se trata de punir um infractor, mas de restituir a situação ao que seria se não se tivesse dado o crime. No conjunto dos “órgãos” do “corpo” da sociedade, o direito fará as vezes do sistema nervoso: conciliando as relações entre os vários órgãos (grupos), permitindo que tudo se passe e tentando passar... despercebido8.

4.1.2. A tónica para o sociólogo francês está sempre na sociedade. O direito consubstancia apenas a expressão mais clara da vontade da consciência geral, ela mesma encarnação do espírito desta sociedade que precede mesmo o indivíduo. Isto tem altas consequências na sua forma de pensar ambos os conceitos: nunca pode um mecanismo social ser explicado por um expediente legal; os institutos legais é que se explicam à luz da sociedade. Os contratualistas, por exemplo, tentaram explicar a possibilidade de uma ordem social a partir do contrato (como que procurando no átomo a fonte das leis da física, macroscopicamente consistentes com a sua estrutura...). Durkheim, porém, escrutina os factos de forma diferente: se se encontra um contrato na base da ordem social, é preciso saber qual a origem, quem permite este contrato (porque possui o átomo estas características? O que o molda…?). Conclui que é a sociedade que possibilita o contrato; é o contrato que é tipificado pela vontade da consciência colectiva (o átomo não é, afinal, o prius). As condições que permitem o livre acordo das vontades são independentes e existem anteriormente ao acordo das mesmas. Não é possível explicar a sociedade a partir do contrato, apesar de este lhe ser nuclear – é preciso perguntarmo-nos “como é possível a ordem social?” e não nos determos no contrato. É preciso ir mais longe – “como é possível o contrato?”. E a resposta, diz-nos Durkheim, está

8 Raymond Aron, As Etapas do Pensamento Sociológico, 318 s.

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na consciência colectiva que o permite9 e que determina um conjunto de valores comuns, cristalizados num conjunto de regras independentes dos fins imediatos da acção e ainda passíveis de interpretação por uma classe legal. Um sistema de normas, sem o qual os valores não estariam em prática e os indivíduos cairiam na anomia. E não é tudo. Ao dar-se conta da estratificação da sociedade em classes profissionais, Durkheim tem não só noção de que a individualização é a característica dominante e o motor da modernização, como ainda vê a décalage de uma classe jurídica, com uma função específica, linguagem e valores próprios, dentro de uma sociedade complexa. Conseguimos ver aqui o gérmen da ideia de direito como sistema independente, dentro de um sistema social complexo.

4.2.1. Numa perspectiva diferente – centrando-se na acção social individual e nas crenças de cada um – mas chegando a conclusões que não destoam, temos Max Weber. Diagnosticando a tendência do mundo moderno para a racionalidade com vista a fins10 (Zweckrationalität, opondo-se à Wertrationalität), encontra o espelho desta tendência da acção individual numa progressiva especialização na sociedade. A sua visão da evolução do direito colocava assim a ênfase no processo de profissionalização. Um direito que progride com os juristas – Berufmenschen que Weber analisou com particular atenção quando se concentrou nas profissões do mundo ocidental moderno.

Apoiando-se em dados da experiência histórica, o A. faz uma proposta para a evolução do sistema legal ligada à maior profissionalização do jurista. Max Weber separa as etapas históricas da formação do jurista em três fases: uma primeira num estilo quase artesanal, no sentido em que o direito vigente passa de mestres para discípulos num cenário de

9 Raymond aron, As Etapas do Pensamento Sociológico, 321: “Os contratos são celebrados entre os indivíduos, mas as condições em que são celebrados são fixadas por uma legislação que traduz a concepção que a sociedade global forma do justo e do injusto, do tolerável e do interdito”. Indo mais longe, Durkheim vê a divisão do trabalho e o contrato social como mecanismos quase Darwinianos, existentes por permitirem a subsistência de um maior número de seres humanos, tendo origem numa “luta pela vida”. Os indivíduos que se especializaram em determinada função deram espaço aos outros e ganharam espaço para si próprios – torna-se possível uma maior densidade moral, nas suas palavras.

10 Max weber, Conceitos Sociológicos Fundamentais, 47: “Age racionalmente em ordem a fins quem orienta a sua acção por uma meta, meios e consequências laterais e pondera racionalmente, para tal, os meios com os fins, os fins com as consequências secundárias como, finalmente, também os diferentes fins possíveis entre si: em todo o caso, pois, quem não actua nem afectivamente (e, sobretudo, de modo não emotivo), nem tradicionalmente”.

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jurisprudência concreta, não formando verdadeiros profissionais legais e não chegando nunca a constituir um verdadeiro sistema (pensemos no direito empírico dos tabeliães...); uma posterior de aprendizagem do direito à volta de alguns mestres notáveis (pense-se nos velhos mestres da escola dos comentadores, que, em Bolonha, atraíam legiões de discípulos de toda a Europa) e que também não produziria, muito provavelmente, um sistema legal racional e organizado, mas sim uma elite de académicos. Por fim – e algo que, quando Weber escrevia, apenas existia no mundo moderno ocidental – a criação de escolas especializadas em direito, onde a ênfase é colocada na teoria e na ciência legais, e o direito apresentado de maneira sistemática e racional11. Apenas através deste tipo de ensino se chegaria a um sistema racional e a verdadeiros profissionais, a leis formais e abstractas, e por essa razão Weber apenas os encontrava na civilização ocidental. A importância deste factor para a nossa exposição está na sua intra-juridicidade: é a evolução dos juristas e do ensino do direito que condiciona o próprio sistema. Muito embora o A. visse o estímulo à especialização como algo de inerente a uma sociedade de crescente “procura” de especialização nas várias profissões, veremos mais à frente que até alguns dos mais acérrimos defensores da autopoiésis do direito admitiam um certo input cognitivo, desde que salvaguardada a autonomia jurídica. Notemos também que Weber encontra nesta progressiva burocratização e na especialização do indivíduo uma importante fonte dos problemas da idade moderna. O grand mal do homem contemporâneo é a sua enorme especialização, que lhe não permite a realização plena da alma...

4.2.2. Uma outra construção weberiana amplamente citada é a sua visão de ordem legal, legitimada por uma de três vias: carismática, tradicional e legal. Não nos cabendo explorar nesta exposição as duas primeiras, é importante que fique claro que, no entender de Max Weber, as sociedades modernas tendem a ser governadas por regimes de base legal, não só por causa do destronamento da Wertrationalität a favor da Zweckrationalität, mas também por força do seu argumento relativo à

11 David trubek, Max Weber on Law and the Rise of Capitalism, p. 724: “The European state separated law from other aspects of political activity. Specialized professional or ‘status’ groups of lawyers existed. Legal rules were consciously fashioned and rulemaking was relatively free of direct interference from religious influences and from other sources of traditional values. Concrete decisions were based on the application of universal rules, and decisionmaking was not subject to constant political intervention”.

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sucessão dos líderes carismáticos, que tenderia a decair para um dos dois outros tipos. Weber previa ainda um progressivo aumento na dificuldade da ascensão dos ditos líderes, associada ao aumento da burocracia e do predomínio da autoridade de base legal. A importância desta ideia para a nossa exposição está na legitimidade do sistema de normas legais jazer na própria ordem legal. A visão do A. parte de uma concepção da acção individual do homem, inspirada pela razão-vernunft que a caracteriza, e desagua na perspectiva de um direito como “conjunto de normas” que assenta numa ordem em si mesma legal. Partindo da racionalidade do indivíduo moderno, Weber acaba por explicar um direito de carácter autónomo12.

5. Não sai o direito incólume deste arrancar da sociologia, do pensamento destes dois homens que estabelecem, por um lado, uma “sociedade” enquanto fenómeno específico e por outro um diagnóstico de crescente racionalidade instrumental da arte dos indivíduos. À falência do normativismo enquanto paradigma do pensamento jurídico corresponde a emergência de novas perspectivas teóricas do direito; e no sentido do desencantamento da communitas e da progressiva centralidade do Homem na perspectiva do Homem, da racionalidade meio-fim e das ideias utilitaristas de primazia do bem-estar da maioria, surge-nos um direito orientado para fins e funções específicas. O advento do funcionalismo jurídico, tornado possível pela (e assentando na) renúncia aos valores absolutos de que a mundividência subjectivista desta societas de sujeitos-indivíduos é lógica causa. A ontologia é substituída pela teleologia – e não nos interessa já o que é o direito mas para que serve ele, assim como se torna irrelevante perguntar em que se funda quando temos de saber quais os seus efeitos. Esta emancipação da validade própria torna o direito ferramenta útil para a sociedade lidar com a complexa realidade que lhe está intrínseca – maxime, com o problema da modernidade. Porque o que caracteriza a sociedade é o pluralismo de valores, entendimentos e mundividências, esta mesma perspectiva teórica se veria fracturada em inúmeras vertentes – que Castanheira Neves sintetiza na distinção entre funcionalismo jurídico material e funcionalismo jurídico sistémico, modelos de índole radicalmente diferente mas unidos pela orientação no sentido da funcionalidade do direito.

12 Raymond aron, As Etapas do Pensamento Sociológico, 227 s.

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5.1. No primeiro caso, temos uma efectiva materialização do direito. O jurídico é convocado para realizar os objectivos que lhe são impostos por um legislador/estratega... e para fazê-lo tendo em conta critérios de eficácia e eficiência, com vista a determinados efeitos. A lei como Zweckprogramm a encarnar a lei-plano e a lei-medida, aplicada na prática de forma técnico-estratégica: a melhor decisão será aquela que melhor realizar os fins a que o legislador se propôs. Consoante a área da vida social a que é dado controlo sobre este direito-instrumento, teremos uma série de diferentes funcionalismos jurídicos materiais: funcionalismo jurídico político, law and economics, funcionalismo jurídico tecnológico. A tolerância de diferentes orientações para o direito advém precisamente daquilo que é a visão particular deste funcionalismo – o direito será aquilo para que se queira que ele sirva, definindo-se e existindo apenas na medida em que cumprir os programas de que é encarregue13.

5.2. Interpretação diferente, e aquela de que este trabalho se ocupa, é aquela do funcionalismo sistémico, que vê o direito como sistema autónomo dotado por sua própria posição na sociedade de determinadas funções. A sua abordagem será portanto objectiva: o direito é um sistema-objecto que pode ser observado num contexto estrutural-social, e ao sujeito compete averiguar quais as funções que ele com efeito desempenha. Note-se que dar ao direito o carácter de estrutura em nada lhe atribui um sentido ou uma ontologia próprios... Toda a estrutura do direito existirá apenas para servir as funções que lhe são intrínsecas – e, portanto, este não será nunca instrumentalizável, nem a decisão poderá jamais ser vista como mera escolha segundo critérios de eficiência.

6. Por seu turno, a chegada do século XX traduziu-se numa viragem no âmbito da investigação sociológica. A ciência chegara, entretanto, à América, onde as “grandes teorias” dos “clássicos europeus” eram vistas com desconfiança. A epistemologia dominante era a da Escola de Chicago, que se caracterizava por uma micro-sociologia altamente empírica e de carácter eminentemente estatístico, baseando os seus dados em investigações de campo (abordagem que viria mais tarde a dar origem às teorias do interaccionismo simbólico e da etnometodologia), e, portanto, algo longínqua da imagem do “sociólogo funcionalista”,

13 António Castanheira neves, «O Funcionalismo Jurídico», 223.

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especulando no seu gabinete, e aproximando-se mais do trabalho científico do antropologista. A viragem funcionalista viria apenas nos anos trinta, quando um reavivar da teoria social vem a destronar o empiricismo que reinava e a instaurar o paradigma do estrutural-funcionalismo.

6.1. A figura central deste movimento foi o norte-americano Talcott Parsons, de cujo trabalho germinou este funcionalismo sistémico que presentemente estudamos. O seu estrutural-funcionalismo, introduzido nos círculos académicos pela obra The Structure of Social Action, tomava como “factos” as obras de Marshall, Pareto, Durkheim e Weber, procurando conciliá-las naquilo a que o investigador Coloradense chamaria a Teoria Voluntarista da Acção14.

Voltando-se para o consenso como motor da sociedade, Parsons procurou unir as ideias de liberdade individual e escolha racional de cada um de Weber com as ideias de indivíduo posterior à sociedade de Durkheim. Parsons parte daquilo a que chama unit-act e que constitui, fundamentalmente, a célula, a unidade elementar da acção. Não apenas “uma acção”, mas um verdadeiro limite inultrapassável até onde é possível analisar uma acção. Este unit-act seria composto por um actor que tem em vista determinados fins (herança de Weber, assim como de Pareto) e que está condicionado por normas e valores, assim como pelas condições materiais e situacionais à qual está sujeito15. Aquelas normas e valores, em existindo alternativas de acção, vão levar a uma orientação normativa em determinado sentido, que dirige um grupo para uma igualmente determinada decisão (a herança de Durkheim!), deixando apenas ao indivíduo a sua motivação individual (conciliando, assim, ambas as ideias). Nota-se aqui uma tensão entre o estático do sistema, das normas que o constituem, e a acção individual volátil; para Parsons, a acção humana está sempre emparedada entre o mundo físico e o mundo cultural e simbólico, mundos de não-acção a que, no entanto, nenhum actor se furta.

Partindo do conceito de função, definida pelo A. como “um complexo de actividades com o intuito de satisfazer uma necessidade ou necessidades do sistema”, o autor elabora uma enumeração das

14 “Sur les cadavres des trois grands sociologues européens” vem este “Américain balourd” erigir uma “immense et redondante platitude idèaliste”, no dizer de bourriCaud.

15 Uma célula... Mas certamente que não um átomo, na medida em que configura um nó de relações que permite atribuir significados. Maria José stoCk, «A Teoria da Acção Social em Talcott Parsons», 17.

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necessidades do sistema que se tornou quase canónica: o paradigma AGIL16, de acordo com o qual o direito seria o subsistema societário que lidaria com a integração dos indivíduos, estando subordinado a um “sistema fiduciário” que conservaria os valores.

Daqui, inferia uma visão de sociedade em equilíbrio, sendo possível encontrar-se esta mesma estrutura e funções sociais (como num regresso aos resíduos de Pareto 17) em qualquer sociedade (em qualquer sistema!) que se quisesse analisar. A aparente paralisia deste paradigma valeu-lhe duras críticas; mas não era por isso que deixava de ser, à época, notável - a começar pela forma como unia os níveis micro e macro. Começava pela relação ego – alter ego, tida como a mais elementar de todas, para aumentar a escala para indivíduos que interagem entre si com o intuito de maximizar a sua gratificação, para, a uma escala maior, colocar estes indivíduos a formar sistemas que interagiriam entre si em graus de complexidade cada vez mais elevados, integrando sempre, no entanto, as quatro funções fundamentais discriminadas, e de forma cibernética. Os indivíduos, interagindo entre si, vão formar um sistema social dividido em quatro subsistemas (fiduciário, legal, político e económico; aos quais correspondiam, respectivamente, as funções de latência, integração, prossecução de objectivos e de adaptação).

Repare-se na posição definida do direito – servindo os valores e símbolos culturais, como veículo para a sua mobilização geral, e de certa forma guiando as conquistas do goal-attainment da política e as escolhas de adaptation da economia. As quatro necessidades fundamentais existiriam também dentro do sistema do direito – como em todos os sistemas – que teria as suas próprias formas de lidar com elas, independentemente dos outros sistemas. Um direito autónomo. Um direito sistémico, desnecessitado de justificações ontológicas porque justificado funcionalmente. Longe dos radicalismos da Law and Economics, ou de um funcionalismo político – o jurídico não serve a política nem a economia, está apenas subordinado ao sistema fiduciário. É a dinâmica interna do sistema-direito – tipificado nas suas funções de integração que o equilibra, e a dinâmica entre os vários sistemas

16 Adaptation, Goal-attainment, Integration e Latency. Todos os fenómenos enquadrá-veis no conceito de “sistema” desenvolveriam estruturas que, num equilíbrio estático, res-ponderiam a estas quatro necessidades – sendo elas condição necessária de sobrevivência do sistema, mas não sua garantia.

17 Que o próprio Parsons dissociou em “hereditariedade e meio” e “siste-mas de valor” – Maria José stoCk, «A Teoria da Acção Social em Talcott Parsons», 23.

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na sociedade que a mantém coesa. O direito cristalizaria as acções concretas dinâmicas padronizadas em normas jurídicas, alimentadas e estabilizadas pela cultura.

Fazer corresponder ao direito uma abstracta função de integração é tão redutor como tentar fundá-lo no consenso, quando, sabia-se já em Roma, o seu núcleo reside na controvérsia18. Um segundo problema – apontado pelo próprio Luhmann – está na própria raiz da teoria. Ela faz uma pré-ordenação d’ “o conceito de estrutura ao conceito de função”19, não procurando explicar a origem da estrutura em-si. É de novo o problema meta-teórico de tentar explicar o complexo com base no aparente, em lugar de encontrar as razões profundas que causam o aparente20.

Parsons representou a ascensão – e o pico – da teoria dos sistemas. Nunca desde ele houve um verdadeiro paradigma sociológico, mas apesar da maior predominância actual das teorias interaccionistas e de conflito, a ideia do sistema – e com ela, o estrutural-funcionalismo – ainda vive. Discípulos de Parsons, como Garfinkel, desenvolveram as suas ideias para o extremo oposto da etnometodologia. Outros, como Robert Merton, tentaram moderá-las, criando teorias de médio alcance21. Mas foi Niklas Luhmann, ao alterar o foco para as comunicações, que tornou a teoria dos sistemas viável como candidata a paradigma do século XXI.

II. Niklas Luhmann e o direito enquanto sistema social autopoiético

1. Esboço inicial – o direito no funcionalismo de Luhmann

A teoria de Luhmann manifesta uma diferença essencial face à de Parsons. Enquanto que este focou o seu olhar na acção, partindo do unit-act, o modelo que abordamos agora manifesta o “theoretical shift” que ocorreu neste período, dinamizado pela crescente influência do interaccionismo simbólico, com a preocupação cada vez maior de desenvolver teorias da comunicação em detrimento de teorias da acção.

18 Ralf dahrendorF, teórico do conflito, acusa Parsons de ser “conserva-dor”, de haver “emigrado para Utopia” e de abandonar “os poderes dominantes ao status quo” – «Out of Utopia».

19 Niklas luhmann, «Sociologia como teoria dos sistemas sociais», 78.20 Supra, ponto 4.1.2.21 Peter hamilton, «A Teoria dos Sistemas», 168 s.

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O núcleo fundamental estará, consequentemente, nas comunicações entre indivíduos, fundadas na utilização de símbolos interpretáveis e de significado contingente e subjectivo.

A teoria em questão aspira a ser estritamente científica – partindo do modelo weberiano de “ciência não-normativa” – não manifestando como tal uma intenção de dever-ser. Diz respeito aos sistemas, tendo como objectivo principal o entendimento da sociedade moderna e partindo da premissa fundamental – e, também ela, weberiana – da diferenciação funcional como característica principal da idade moderna. Luhmann analisa o direito enquanto sistema autónomo por ver nesta forma a única capaz de lidar com a evolução do direito em conjunto com a evolução da complexidade da sociedade; por ver nesta forma a única de manter a independência e auto-observação patentes ao direito; e porque, apesar dos acoplamentos estruturais necessários à sobrevivência de todos eles, o sistema jurídico é independente do político e do económico. Ideias positivistas, sociológicas e naturais do direito caem todas pela sua própria base, encontrando como números primos tautologias, paradoxos e noções claramente distorcidas da realidade (exemplos poderiam ser, respectivamente: “A rule of law consiste nas rules of law”, “A ordem social apoia-se num contrato social, o direito apoia-se na sociedade” e “O que é injusto não é direito”)22.

Luhmann compreende que o direito tem de ser visto objectivamente; e para tal temos de tomar o ponto de vista do direito: como é que o direito se vê a ele próprio?, e de forma mais específica, quais são os limites do direito?, e depois, como é que o direito procede para determinar os seus limites?23

Para resolver estes problemas, adoptou uma visão do direito como um sistema autopoiético e auto-distintivo, produzindo ele-próprio todas as distinções e conceitos que usa, assegurando assim a sua unidade. Partindo do código-base binário legal/ilegal, sem qualquer outro significado em si mesmo que não “o que é legal não é ilegal” e “o que não é ilegal é legal”, todas as distinções e conceitos do direito provêm do próprio direito, não dependendo de valores externos

22 nobles e sChiFF, Law as a Social System, 5.23 Niklas luhmann, Law as a Social System, 58: “The boundaries are de-

fined by the object. This means, in fact, that the law itself defines what the bound-aries of the law are, and what belongs to the law and what does not. Answering the controversy this way shifts the question: how does the law proceed in deter-mining its boundaries?”.

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como “justo” e “injusto”, “correcto” e “incorrecto”, ou de qualquer distinção (“valioso”, “necessário”) decorrente de sistemas económicos ou políticos, bem como éticos, religiosos ou educacionais. Trata-se de um sistema indispensável para simplificar a enorme complexidade do mundo externo e para permitir a vida comum; não se trata, porém, de um sistema simples, pois tem de evoluir por forma a responder à progressiva complexidade do mundo e da sociedade.

Necessário será neste momento clarificar o significado de autopoiesis, conceito que será daqui para diante fulcral, primeiramente formulado por Varela e Maturana24. Estrutura autopoiética seria aquela que, alimentada por um fluxo externo, produziria os próprios componentes que assegurariam a manutenção do sistema fechado e organizado que continua a criação destes mesmos componentes. O exemplo paradigmático seria o da célula eucariótica, que recebe materiais através da membrana celular que irão compor os organelos internos que processarão mais tarde materiais que integrarão por sua vez a célula25.

Quando falamos em sistema, referimo-nos a uma categoria formal relativa às relações que se estabelecem ao longo do tempo. As partes do sistema podem ser, a qualquer momento, substituídas na sua totalidade (não se aplica o paradoxo do Barco de Teseu!) podendo dizer-se que o sistema permanece em existência enquanto que a forma como as partes se relacionam se mantiver constante. O sistema será autopoiético se fabricar a partir de si próprio as partes que assegurarão, no futuro, a sua manutenção26.

24 Humberto varela e Francisco maturana, Autopoiesis and Cognition: the Realization of the Living. Estes dois cientistas referem-se, porém, à autopoiesis relati-vamente a sistemas biológicos – tendo vindo mesmo mais tarde a rejeitar qualquer analogia entre o seu conceito inicial e “lo que hace al sistema social” (De Máquinas y seres vivos, autopoiesis de la organización de lo vivo).

25 Günther teubner enumera da seguinte forma os requisitos para que um sistema possa ser classificado com “autopoiético” (O Direito como Sistema Au-topoiético, 52):

“ 1. Auto-produção de todos os componentes do sistema; 2. Auto-manutenção dos ciclos de auto-produção através de uma articulação

hipercíclica; 3.Auto-descrição como regulação da auto-reprodução”26 Kris murthy dá em Systems Philosophy and Management o produtivo

exemplo da estrutura familiar como sistema social autopoiético. A relação pais--filhos (e o processo de socialização e educação dos filhos que nela vai implicado) gera novas relações do mesmo tipo para o futuro e durante milhares de gerações, muito embora as partes da relação estejam constantemente a ser substituídas.

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O conceito inicial de direito como sistema autopoiético é o ponto a partir do qual Luhmann diverge de Parsons, criando a sua própria teoria dos sistemas. Onde o americano tinha um conceito de equilíbrio cibernético, com subsistemas que se organizavam uns relativamente aos outros, através de trocas e relações mútuas graças à abertura dos sistemas que permitia a sua constante adaptação, o alemão vê o sistema fechado, privilegiando a sua autonomia e diferenciação face ao exterior.

Embora Luhmann não partisse, como Parsons, de analogias orgânicas, o paralelo com a célula eucariótica poderá revelar-se iluminador para esclarecer o conceito fundamental de clausura operacional27 (operationale geschlossenheit), que no caso do direito é uma clausura normativa; cada operação normativa do direito altera o direito como ele é; e apenas o direito se pode alterar a si próprio28. Não se trata de uma característica relativa a um hipotético isolamento causal, mas a uma questão verdadeiramente identitária. Uma clausura relativamente à forma como o direito se reproduz a si próprio. Isto está relacionado com questões de causalidade precisamente por motivos preventivos; num mundo complexo repleto de potenciais causas contaminadoras, os subsistemas (neste caso, o direito) isolam-se para poderem sobreviver. Ou antes: é por se isolarem que sobrevivem. A clausura operacional permite que a esfera jurídica funcione sem quebrar sob as pressões dos interesses, do mundo político, económico ou moral; mantendo a independência das suas comunicações, a ipseidade da sua função, a binariedade do seu código29.

É necessário um elevado grau de autonomia para um sistema desenvolver a complexidade necessária para responder aos problemas

27 Várias fontes brasileiras (entre as quais Rómulo Figueira neves, l. Cademartoli e G. bagenstoss), traduzem Geschlossenheit como um “fechamento” operacional. Embora alguns portugueses também sigam esta via (esteves, J.P.; 1993), “clausura” mostra-se um termo mais adequado ao significado de “auto--contenção” que se quer transmitir com geschlossen, para além de se encontrar mais próximo do termo espanhol clausura e do inglês closure, ambos amplamente utiliza-dos em traduções internacionais.

28 Niklas luhmann, Law as a Social System, 91: “Law is also a historical ma-chine in the sense that each autopoietic operation changes the system, changes the state of the machine, and so creates changed conditions for all further operations”.

29 Niklas luhmann, Law as a Social System, 108: “Only when law is dif-ferentiated from the ever-changing tidal flow of moral communication, and only when distinctions based on law’s own criteria for validity can be made, is it possi-ble to specify the facts which are legally relevant and separate them from general appraisal made by persons”.

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levantados pela sociedade; da mesma forma que, voltando à metáfora orgânica, foi necessário os organismos individualizarem-se para alcançarem uma notável complexidade. Numa palavra, sem a sua autonomia – sem a possibilidade de utilizar, de forma não contaminada, os seus próprios critérios – o direito ver-se-ia incapaz de realizar a sua função. Todo o sistema social serve, neste esquema, uma necessidade humana de redução de complexidade. Da mesma forma como o cérebro humano organiza e selecciona a informação relevante que lhe chega do nervo óptico, que até aí mais não representa que uma imagem bidimensional invertida, num código de impulsos eléctricos, e a transforma, sem esforço consciente para o indivíduo, numa perspectiva tridimensional, coerente e interpretável, focando a atenção do sujeito nos aspectos que, do ponto de vista evolucionário, mais atenção merecem, também os sistemas vão tornar a realidade apreensível. Sendo o ser humano imensamente – por motivos biológicos e antropológicos – limitado na sua capacidade de apreender o exterior, tenderá, instintivamente, a reduzir os estímulos que lhe chegam, de forma a poder ter uma imagem coerente e focada nos aspectos que mais atenção merecem. A individualização relativamente ao exterior é o primeiro passo neste sentido: cria-se uma diferença fundamental entre o que está dentro e o que está fora.

Esta diferença única já começa a tornar o mundo, não só mais apreensível, como mais ordenado, e de certa forma mais improvável. O Homem tenta suprimir o caos – talvez porque a vida é ela própria uma improvável (e apenas aparente) falha da segunda lei da termodinâmica30. O sistema é complexo, uma vez que nele coexistem várias possibilidades. Menos possibilidades, no entanto, do que no mundo exterior – diz-se por isto que o sistema é mais ordenado e menos complexo que o mundo exterior. Um sistema numérico binário, constituído pelos números 0 e 1 exclui o número 2. É um sistema altamente ordenado, na medida em que apenas acolhe a possibilidade de dois estados. O facto de o sistema ser limitado – e operacionalmente fechado – não significa, porém, que este seja incapaz de se adaptar ao meio. Um sistema social complexo terá, como tal, de aceitar uma certa variedade de estados que

30 Peter atkins, Galileo’s Finger, 125: “Although elaborate events may oc-cur in the world around us, such as the opening of a leaf, the growth of a tree, the formation of an opinion, and disorder thereby apparently recedes, such events never occur without somehow being driven. That driving results in an even great-er production of disorder elsewhere”.

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lhe permita adaptar-se a um meio em permanente mutação, como é o caso das sociedades humanas. Se todos os sistemas autopoiéticos são operacionalmente fechados, a verdade é que também são cognitivamente abertos. Queremos com isto dizer que não existem no vácuo; o sistema social é sensível ao meio que o circunda e reage aos estímulos (mas apenas a selectos estímulos...) que dele lhe chegam. Se é claro que a política nunca pode ser direito, é inegável que ela o influencia e que este pode responder aos estímulos cognitivos que desse sistema provêm, fazendo uso das suas respostas internas (e limitadas às existentes no momento) como réplica discreta às possibilidades ilimitadas do complexo mundo externo31.

Cada sistema distingue-se de outros pela forma como mantém a sua clausura operacional, que pode ser conseguida através de diferentes funções, códigos e programas, específicos de cada sistema. Ora, a função do sistema jurídico é manter as expectativas normativas (expectativas que as normas vigentes impõem) face aos exemplos contra-factuais. As comunicações do direito devem permanecer viáveis, apesar de e sabendo que as normas serão, com certeza, infringidas (para Talcott Parsons, a função era uma vaga integração!). Também outros sistemas têm funções semelhantes; mas o direito é único na utilização do seu código legal/ilegal, raiz de todas as suas comunicações32. Trata-se assim da criação de normas face a factos (que neste caso consistem num input cognitivo) externos, do ambiente, e da comparação de novos factos com as normas pré-existentes, sendo o direito capaz de os codificar, face às normas, como legais ou ilegais33. Temos aqui uma operação de simplificação da realidade: o jurídico responde apenas aos factos seleccionados pelas suas normas – há uma identificação da realidade exterior por referência a estruturas próprias do direito, tudo

31 Niklas Luhmann, «L’Unité du Système Juridique», 167: “Cette clôture n’implique, cependant, ni une absence d’environnement, ni une entière détermi-nation par soi”.

32 António Castanheira neves, «O Funcionalismo Jurídico», 261: “O que especificamente se traduziria na selecção e estabilização de expectativas norma-tivas numa sua coerente generalização temporal, material e social – expectativas, sobretudo quanto ao comportamento dos outros, que sabemos seleccionadas e definidas pelo programa e estruturadas pelo código binário Recht/Unrecht ou legal/ilegal, as duas dimensões que sabemos serem os elementos constitutivos do diferenciado sistema social que seria o direito”.

33 “Recht” e “Unrecht”, no original. Klaus A. ziegert traduz como legal/illegal em inglês; já Pierre gubentiF traduz para português como “de acordo com o direito / contrário ao direito” nas suas obras.

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através de comunicações internas e esta auto-referencialidade própria das comunicações legais. Assim é o sistema autónomo.

Mas não só autónomo, o sistema deve ser estável. Para tal, Luhmann divisa a importância dos programas, estruturas normativas (também elas comunicações!34) que estipulam a forma como se aplica o código. Note-se que se o código é inalterável, os programas são por natureza contingentes, e é de certa maneira por auto-referencialidade (comunicações do direito a influenciar comunicações do direito) que o sistema jurídico evolui, e fá-lo de forma dinâmica. Não é uma hierarquia de normas, nem são as pré-existentes que influenciam as seguintes: a única grande condicionante é o momento presente, o culminar instantâneo de miríades de comunicações e o seu auto-reconhecimento a constituir aquilo que é o direito agora. Mesmo as leis constitucionais aparentemente inalteráveis não são mais que areia ao vento. A única coisa constante nelas é que são areia – é o seu código.

Os programas preenchem o vazio deste código35 aparentemente desprovido de significado próprio para além da exclusão da mútua compossibilidade (nada é legal e ilegal!). É graças aos programas que se consegue funcionalizar o mundo jurídico, reduzindo a complexidade do mundo exterior – o jurídico recolhe factos (aqui a importância das ciências forenses e das forças policiais, que encontram a verdade dos factos) que serão utilizados como materiais dos programas condicionais em questão. “Se se dá como provado que o sujeito x executou o acto Ф, codificar como ilegal” seria o exemplo de um programa. Seleccionam-se as possibilidades que interessam ao sistema, elas mesmas recolhidas pelo próprio sistema segundo programas próprios – autopoiesis em acção36.

34 Até porque, e tenhamos sempre isto em mente, “Le droit n’éxiste que dans la communication (ou, en termes psychologiques, dans une perspective de communication)” – Niklas luhmann, «L’Unité du Système Juridique», 169. Co-municação que – digamo-lo com Castanheira Neves - “[...] como nos diz a hoje tão elaborada “teoria da informação” é a transmissão de algo (seleccionado entre alternativas) de um a outro (outro que também selectivamente reagira [sic] a esse algo transmitido) através de um certo meio (de uma especificidade e relevância próprias) com o resultado estrutural de constituir assim um particular comum entre esses um e outro [...]” – «Uma perspectiva de consideração da comunicação e do poder», 500.

35 Niklas luhmann, Law as a Social System, 193: “One could say this in a condensed form: codes generate programmes. Or better: codes are distinctions, which can only become autopoietically effective as distinctions with the help of a further distinction, namely the distinction between coding and programming”.

36 Niklas luhmann, Law as a Social System, 206: “Only the code – which

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Sistema autopoiético mas aberto – os factos provêm da realidade externa, mas são recolhidos e interpretados segundo o critério jurídico. São os programas ditos condicionais, porque criados para aplicação futura mas sempre num momento presente e permanentemente amarrados aos programas precedentes e ao inilidível código37. Não pode assim o direito servir propósitos finais, abolir o passado por motivos de índole política – muito embora, como vamos ver, exista um acoplamento estrutural com esta esfera. O esqueleto fundamental será sempre se – então, e não para que – então. Situa-se aqui a cisão fundamental entre os funcionalismos ditos materiais e este sistémico. O direito não serve qualquer fim de um hipotético organismo societário. Se em Parsons existia alguma ambiguidade quanto a uma possível natureza finalística da função do subsistema (persistindo, porém, a ideia de que se trata de um funcionalismo sistémico), Luhmann é muito claro quando faz referência a um zweckfrei Funktionsbegriff. O direito não consubstancia um organismo, mas um sistema autocontido relativamente à restante sociedade, servindo não um fim desta, mas uma sua-própria função.

Relativamente a esta função, o direito deve manter as expectativas gerais de cada um, e deve fazê-lo através de normas, ou seja, comunicações voltadas para o futuro. Estas comunicações (normas) são, claramente, uma simplificação idealizada da realidade – assim terão de ser, como tudo dentro deste sistema redutor de complexidade. A conduta social é tipificada, havendo uma selecção – pensada, como já dissemos, para o futuro – daquilo que é normativamente possível dentro do sistema. Forma-se assim uma densa teia de expectativas criadas pela lei e que a lei deve assegurar38 – e é aqui que entra a importância da sanção39. A existência de assassínios não leva as pessoas a descrer do

allows for the attribution of the values legal and illegal, but leaves their attribution open – can produce the uncertainty on which the proceedings feed. They, in turn, use this uncertainty as a medium for their own autopoiesis”.

37 Importante é ainda uma referência à chamada justiça procedimental. Mui-to embora a distinção legal/ilegal não possa ser aplicada a si mesma, pode ser apli-cada a um procedimento em particular, contribuindo, assim, para uma maior incerteza, e, portanto, variedade. A própria demora do processo de decisão permite-lhe uma maior flexibilidade – Niklas luhmann, Law as a Social System, 207.

38 Niklas luhmann, Law as a Social System, 148: “Abstractly, law deals with the social costs of the time binding of expectations. Concretely, law deals with the function of the stabilization of normative expectation by regulating how they are generalized in relation to their temporal, factual, and social dimensions”.

39 Niklas luhmann, Law as a Social System, 150: “And, of course, the ex-

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seu direito à vida, pois os assassinos são punidos. O que é interessante é a forma como nem todos os assassinos – aliás, é possível que uma considerável percentagem destes – são punidos. No entanto, a expectativa razoável de que os criminosos capturados e condenados serão punidos cria por sua vez a expectativa de que cada um tem um direito assegurado por lei à vida. Pode dizer-se que existe a expectativa geral de que as expectativas da lei terão correspondência na realidade. A ampla aceitação da existência de inúmeros exemplos contrafactuais não arruína esta expectativa, sendo, aliás, altamente credível que este tipo de expectativas – ambivalentes, que devem ser seguidas mas que todos sabem que não vão ter uma total correspondência com a realidade – são com toda a probabilidade, assim nos diz a investigação psicológica, mais estáveis e perenes que as expectativas factuais que, por exemplo, a ciência nos fornece. É exigida, no entanto, uma resposta adequada no caso de uma desilusão relativamente ao esperado. E aqui o direito brilha, com centenas de corredores, símbolos e procedimentos pré-estabelecidos para lidar com o crime, com o ilícito civil ou administrativo, com a lacuna no contrato ou o imprevisto internacional.

Podemos assim entender que também é função do direito orientar a vontade dos indivíduos (e será isto integração)? Há demasiadas estruturas com essa função, desde a religião até cartazes publicitários, mas é inegável que essa é parte da performance jurídica. Nem tudo aquilo de que o direito é causa será a sua função, é claro – Nobles e Schiff perguntam sarcasticamente “is it a function of law to provide lawyers with income?”40 – mas é sempre importante manter uma noção de conjunto. A própria teoria de Luhmann explica o direito como algo que apenas pode ser explicado por dentro, através de auto-observação; nunca será demais, porém, notar as limitações de qualquer abordagem unilateral. Um mundo plural implica uma pluralidade de mundividências.

pectation of sanctions has an effect. Today, there is general consensus that the concept of norm cannot be defined solely by reference to the threat of sanctions, let alone by reference to imposing sanctions. Nevertheless, the prospect of sanc-tions is part of the symbolic apparatus that allows one to identify whether or not one’s expectations are in line with the law”.

40 nobles e sChiFF, Law as a Social System, 14.

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2. O sentido e a realização do direito

Já vimos que a teoria de Parsons se mostrava pouco adequada para explicar a evolução dos sistemas. Ideias de consenso e equilíbrio não são as melhores para dar conta da evidente contingência do sis-tema legal. Já vimos que Luhmann vê nesta estrutura uma capacidade de auto-organização, de criação dos próprios programas para responder às exigências do mundo exterior, espelhando a sua crescente complexidade.

Esta irritabilität do sistema perante estímulos cognitivos da so-ciedade pode explicar a possibilidade de progressão, mas torna difícil en-contrar o seu sentido. Vemos também que a rejeição de todo o direito natural e dos fundamentos morais do direito – que teria como base um, neste caso, oco código binário – o deixam desprovido do sentido, do projecto humano, da busca de justiça que encontramos irremediavel-mente quando nos questionamos quanto à sua natureza última.

A resposta está, precisamente, numa exigência de justiça. Sa-bemos que o direito é um projecto inacabado, ao qual serão sempre colocados novos problemas. Segundo Luhmann, todo o direito é cons-tituído por estruturas provisórias – no sentido em que qualquer uma delas é passível de ser alterada; não há direito sagrado41. Apesar das exi-gências de estabilidade, nada garante a inalterabilidade de um instituto. O sistema, com sua clausura operacional, desenvolve estruturas de res-posta aos possíveis estímulos: novos factos e problemas que apareçam; novas formas de ver problemas antigos. A justiça, como aplicável nor-mativamente a todo o sistema, funciona como uma exigência feita a todo o sistema, todos os programas e estruturas42. Pede-se ao sistema que seja justo quando se auto-organiza, quando se cria a si próprio. Espera--se que as respostas dadas à contingência do sistema sejam justas. Há uma expectativa, relativamente a todo o sistema – e que, a despeito da

41 Niklas luhmann, Law as a Social System, 216: “A system which runs its internal operations on the basis of information always envisages other pos-sibilities as well. In the case of the legal system, this orientation by contingency increases as the system moves along elucidating positive law”.

42 Niklas luhmann, Law as a Social System, 214: “The system itself has to define justice in such a way that makes it clear that justice must prevail and that the system identifies with it as an idea, principle, or value”. E ainda, 217: “No individual operation of the system and, even less, no structure is exempt from the expectation that it be just; otherwise the norm’s reference to the unity of the system would be lost”.

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possibilidade da sua frustração, representa a unidade de todo o sistema. O que une todas as comunicações do sistema é que se espera que estas correspondam a exigências gerais de justiça e equidade no tratamento. Apesar da “abstracção de compromissos materiais (teleologicamente materiais) e o abandono da referência consequencial” de que nos fala Castanheira Neves 43, o esquema luhmanniano implica um quase-impe-rativo de justiça a guiar a contingência do sistema. Fora do sistema, é certo, fora da matriz autopoiética; não estando a justiça ao alcance da visão legal das coisas, e consistindo num esquema externo de procura de razões e de valores; estes, porém, só válidos perante o sistema de-pois de convertidos em programas.

Estará então este sistema, também ele, sujeito a um escrutínio de valoração, será também Luhmann vítima das exigências axiológicas do direito, precisamente por tanto se furtar delas? Dificilmente é esse o caso; o código legal/ilegal, na sua binariedade, não permite excessos desse género. Castanheira Neves esclarece-nos de forma muito parti-cular relativamente a este ponto: define-se a justiça pela “adequação da complexidade do sistema jurídico”44 – ou seja, a exigência geral de jus-tiça é aquilo que leva o sistema a aumentar a sua complexidade como reflexo da complexidade externa45. Uma fórmula de contingência, permitin-do assim ao direito uma observação de segundo grau ao nível da qual este se autocriaria reflexiva e adequadamente.

Mas do ponto de vista metodológico, como se traduziria esta exigência? A autopoiesis necessita de consolidar a autonomia actuan-te do sistema; fá-lo-á através da construção de uma dogmática46 (um discurso!) altamente específica, que permita qualificar o jurídico em termos jurídicos, separando assim a esfera legal das outras esferas e optimizando a sua função essencial (e será por acaso desejável uma linguagem jurídica própria, utilizando conceitos que não estão conta-minados pela polissemia dos termos, simultaneamente jurídicos e não

43 António Castanheira neves, Apontamentos Complementares de Teoria do Direito, 1988/1989, 26.

44 António Castanheira neves, «O Funcionalismo Jurídico», 262.45 Niklas luhmann, Law as a Social System, 219: “Justice can only mean an

adequate complexity of consistent decision-making”.46 António Castanheira neves, «O Funcionalismo Jurídico», 264: “Quan-

to à dogmática […] que ao pensamento jurídico caberia elaborar e em que, se manifestariam corresponder-lhe-ia, como a qualquer outra, um Negationsverbot e o seu objectivo seria o de garantir a autonomia actuante do sistema jurídico”.

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jurídicos, que somos à falta de alternativa forçados a utilizar por cada língua ser o leito de concubinagem de um sem-fim de sistemas de co-municações?). O princípio fundamental, diz-no-lo o autor em Rechtssys-tem und Rechtsdogmatik, é o da Negationsverbot – o que nos leva directos para o esquema de decisão, também ele isolando o direito de todos os outros sistemas, mantendo a sua diferenciação (Ausdifferenzierung), pos-sibilitando a elaboração, tanto de dogmática como de juízos de direito pelo próprio direito47.

No centro do sistema, e aplicando programas específicos, está o tribunal. Luhmann vê o seu sistema como um “círculo assimétrico”, afastando a ideia de uma hierarquia entre o poder judicial e o legislativo. Ambos comunicam entre si – basta pensar que a legislação é constan-temente invocada nas decisões judiciais, mas que são os tribunais a interpretar a legislação – a encontrar o sentido que o legislador lhe terá dado – e a fiscalizar a constitucionalidade das normas. Para além disso, o legislador, ao criar novas normas, está a tentar prever o tipo de casos que serão levados a tribunal, e terá de os ter sempre em mente quando elaborar o texto da lei. O juiz, caso a lei não providencie uma respos-ta óbvia de legalidade/ilegalidade, terá de dar a sua própria resposta, sendo lhe negada a possibilidade de pronunciar um non liquet. Podemos ver facilmente a teia de comunicações que se desenvolve entre os dois meios, para não falar nas necessidades de execução e aplicação da lei. Os tribunais são, no entanto, o centro deste círculo.

Os tribunais constituem em si mesmos um subsistema do sis-tema legal, com as suas próprias comunicações e autodiferenciação. Já aristóteles escrevia acerca da “independência do juiz relativamente às relações de família”, reportando à separação entre a esfera judicial e os vários segmentos da sociedade. Mais tarde, os romanos separam a criação da lex rogata pelo povo da sua aplicação pelo pretor. Há aqui uma ligação feita às classes da sociedade – um povo legislador, uma no-bre administração. Já aquando dos excessos do normativismo legalista francês, a esfera legislativa era tida como perfeita, e a judicial estava--lhe perfeita e hierarquicamente subordinada. Este modelo foi sendo

47 O autor nota ainda o papel do Richterrecht ao lado da legislação: “The obligation to decide and the freedom to find reasons for a decision (however doubtful), which comes with that requirement and is produced by it, become limited by points of view on justice. And this triad of obligation, freedom and limitation produces law. Together with ever more legislation-type law, there de-velops ever more judge-made law” – Niklas luhmann, Law as a Social System, 279.

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enfraquecido por mudanças metodológicas graduais que foram permi-tindo ao juiz maiores liberdades de interpretação – e volvidos os anos, chegamos ao realismo americano, à ideia de que direito é aquilo que os tribunais julgam ser direito. A legislação continua, porém, a ser vista como o subsistema em plano mais elevado. Como podemos explicar estas divergências de perspectiva, numa palavra, como se diferenciam os tribunais no seio do sistema legal?

Encarnam os tribunais o momento em que o direito se efecti-va, se torna real. O A. explora o paradoxo da proibição da negação da justiça – o tribunal é obrigado a chegar a uma decisão, do tipo legal/ilegal, porque assim é obrigado por lei. As leis, na esfera legislativa, podem mudar – estão sujeitas a pressões da economia e da política, podendo responder a estímulos externos. Os tribunais, porém, estão sempre amarrados à sua função de decidir – por motivos legais48. Luh-mann vê aqui o “santuário” do sistema49: os tribunais têm de decidir (apesar da possível falta de materiais legais!) sob pena de incorrerem numa ilegalidade, sendo a “ilegalidade” pronunciada por tribunais. E no entanto – oh prisão libertadora! – os tribunais chegarão sempre a uma decisão, transformando um conjunto de comunicações indeter-minadas num facto consumado e determinado, numa decisão jurídica, numa condenação ou numa absolvição. Podem até os tribunais não ter quaisquer comunicações – caso de uma lacuna legal – em que se basear, criando uma decisão em sede própria. Mais um golpe a favor da tese autopoiética, na medida em que são os motivos próprios do tribunal e não quaisquer razões (ou interesses, valores morais, programas políti-cos) externas ao direito que, veiculadas nas normas legislativas, vêm a ter como consequência final a decisão. Assim, dizemos que os tribunais estão no centro deste sistema – não constituem um topo hierárquico, na medida em que nunca dão ordens directas ao legislador, apenas “esta-

48 Niklas luhmann, Law as a Social System, 289: “Courts have to decide even when they cannot decide, or at least not within reasonable standards of rationality. And if they cannot decide, they must force themselves to be able to decide. If the law cannot be found, it must simply be invented”.

49 José Manuel Aroso linhares, «A “Abertura ao Futuro” como Dimen-são do Problema do Direito», 404: “O paradoxo de um sistema jurídico que só poderá garantir a sua autonomia se contiver (se incluir, se fizer sua) – ou se, pelo menos, não excluir – a negação desta autonomia – e com esta também a nega-ção das convenções que a protegem. Um paradoxo constitutivo... e desde logo porque, comprometendo o sistema (como um todo) com a preservação de um círculo de auto-afirmação e de auto-negação (...)”.

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belecem condições para aquilo que os tribunais podem compreender, aceitar e praticar”. Insistem, nas palavras do A., apenas “na sua própria existência”. São o centro organizacional, que torna tudo o resto no sistema legal definido e definitivo; da mesma forma como um conjunto de pontos pode existir, mas apenas constitui um círculo quando damos como referência a distância y a um centro em O.

Aquilo que analisamos aqui é uma teoria do sistema. O autor diz-nos que, nesta qualidade, não lhe cabe recomendar uma metodolo-gia desejável, apenas escrutinar aquilo que de facto acontece. Luhmann vai então estudar o momento de decisão de forma diversa da usual, ten-tando ir ao encontro da natureza deste processo. Diz-nos ele que a de-cisão tem os seus alicerces numa fundamental indecisão. Trata-se, sem margem para dúvidas, de uma alternativa, que dará origem a dois ou mais caminhos, que originarão eles próprios novas possíveis veredas. Aquela decisão, em si mesma, não é uma alternativa – é a compossibilidade das várias. Existe porque há uma indecisão – a decisão é, nas palavras do autor, a unidade da diferença entre as alternativas. Isto é ao mesmo tempo a óbvia raiz da controvérsia – pois se não existisse alternativa possível, os casos não seriam decididos mas sim realizados – e o paradoxo radical do sistema. O decisor exclui-se do reino da decisão para poder olhar as alternativas; e decide, não olhando para o passado, que é inalterável, mas para o futuro, que é alterado pela decisão. Este facto apresenta-se-nos como uma violação fundamental do princípio da determinação: não é o passado imutável que determina uma decisão necessária50. O juiz está a pensar nas consequências da sua actuação (dentro do sistema!) quando decide, mas os efeitos não constituem critério da dogmática jurídica51. As consequências

50 Niklas luhmann, Law as a Social System, 283: “The decision assumes the past as immutable and the future and it, therefore, turns around the relationship of determination. It cannot be determined by the past but attempts to treat the future differently; this, however, has no determining effect because there will be more decisions lined up in the future”.

51 É importante esclarecer aqui aquilo a que nos referimos quando fala-mos em futuro; pois o sistema, como entidade autónoma, não está de todo com-prometido com os efeitos externos da sua decisão. A nota fundamental, o futuro que lhe interessa e que influencia (decisivamente?) a decisão é o futuro dele próprio, como sistema. A sua autonomia e diferenciação apenas serão sustentáveis enquanto se manifestar consistente no tratamento dos casos; pois bem, o critério que lhe permitirá sobreviver e que o juiz terá de respeitar para o sistema se manter será “qual o programa condicional a aplicar neste caso concreto de maneira a que, se todos os casos concretos semelhantes forem, doravante, decididos da mesma for-ma, o sistema possa permanecer consistente na sua totalidade?”. A necessidade

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são na sua grande parte imprevisíveis, para além de dependerem de uma grande quantidade de decisões futuras. Por isto, o sistema alimenta a ilusão de viver do passado; por ser baseado em paradoxos mistifica52 (no sentido dado à palavra por Erving Goffman no seu interaccionis-mo simbólico53) a sua actuação, com todo o decoro, todo o mistério à volta do acesso à lei, toda a pompa dos textos legais e das vestes dos juízes. Isto porque a unidade do sistema é um paradoxo; a capacidade legal para dizer o que é legal e ilegal, mais um paradoxo54; a unidade temporal do sistema, o paradoxo dos paradoxos.

de consistência será tratada infra aquando da referência à argumentação, mas é essencial ter esta nota em mente quando se pensa na decisão. Castanheira neves é claro neste sentido: «A “estrutura final” seria porventura relevante na criação e na interpretação das “normas”, não na decisão jurídica da sua aplicação” – «O Funciona-lismo Jurídico», 241.

52 Niklas luhmann, Law as a Social System, 283 s: “Hence a decision is a paradox, which cannot make itself its own subject, and which, at best, can only mystify itself. Authority, decorum, limitation of access to the mystery of law, texts to which one can refer, the pomp of entries and exits of judges – all that is a substitution at the moment at which one must prevent the paradox of deci-sion-making from appearing as a paradox [..]”.

53 Erving goFFman, A Apresentação do Eu na Vida de Todos os Dias.54 O mais admirável resumo deste paradoxo – e de certa forma, de toda

a teoria da autopoiesis – é conseguido, quase profeticamente, pela pena de Robert musil:

«May I tell you what I understand by ‘morality’? […] [It] is the regulation of conduct within a society, beginning with regulation of its inner impulses, that is, feelings and thoughts. […] The oldest reason for it is that God revealed the order of life to us in all its details. […] But the most probable […] is that morality, like any other form of order, arises through force and violence! A group of people that has seized power simply imposes on the rest those rules and principles that will secure their power. Morality thereby tends to favor those who brought it to power. At the same time, it sets an example in so doing. And at the same time reactions set in that cause it to change – this is of course too complicated to be described briefly, and while it by no means happens without thought, but then again not by mean of thought either, but rather empirically, what you get in the end is an infinite network that seems to span everything as independently as God’s firmament. Now, everything relates to this self-contained circle, but this circle relates to nothing. In other words: every-thing is moral, but morality itself is not!» (The Man Without Qualities, traduzido por Sophie wilkins [itálico nosso]).

Aplicando as mesmas ideias ao direito, é muito fácil fazer as ligações – e até o problema do confronto do sistema com um mundo-da-vida (cfr. infra) parece estar patente na resposta que Ulrich obtém de sua irmã após esta explicação. «“How charming of morality,” Agathe said. “But do you know that I encountered a good person today?”».

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Podemos compreender facilmente, assim, em que medida é que a teoria luhmanniana é, para além de sistémica, funcional. O siste-ma não se baseia em razão; nem sempre haverá razões suficientes; e no entanto, é necessário decidir, pois só assim cumpre o direito a função (co-existência, redução da complexidade!) que a sociedade lhe atribui. Nem sempre foi assim, porém; sabemos que o jus civile apenas fornecia protecção jurídica quando existisse uma actio previamente definida. O autor especula que a alteração de mentalidades no que toca à proibição da negação de justiça surge juntamente com as doutrinas Kantianas, que anunciavam a supremacia da prática sobre a teoria55. E é, de facto, nesta altura que o Code Civil entra em vigor, e com ele seu art.4.º56. A ideia de funcionalidade desta teoria permeia toda a explicação que Cas-tanheira Neves nos dá dela; a nota de condicionalidade (Konditionalpro-gramm e não Zweckprogramm) distingue-a decisivamente dos outros fun-cionalismos. Há uma possibilidade patente na decisão, sendo esta virada para o futuro; mas os efeitos desta não constituem critérios. A dogmática, o todo de comunicações consolidadas (muito embora as comunica-ções, por natureza, se refiram a um momento eminentemente presente... as comunicações passadas determinam o momento presente no contexto do sistema autopoiético). A nota metodológica fundamental será, mais uma vez, a da condicionalidade, conforme os programas pré-determinados e com destino final uma decisão dentro do código legal/ilegal. A deci-são será um processo totalmente jurídico, utilizando os critérios (pro-gramas) jurídicos existentes. A teleologia, os efeitos da decisão – ambos são factos extrajurídicos, sem lugar no sistema, e comprometeriam as suas autonomia e diferenciação (e também a consistência...! pois um direi-to que sirva fins que lhe sejam externos estará condenado à contingên-cia dos fins; isto compromete a confiança geral no direito e sua função estabilizadora) que são condições fundamentais da sua sobrevivência.

55 Notavelmente em Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, de 1785 e Kritik der praktischen Vernunft, de 1788.

56 “Le juge qui refusera de juger, sous prétexte du silence, de l’obscurité ou de l’insuffisance de la loi, pourra être poursuivi comme coupable de déni de justice.”, mantendo-se em vigor desde 1804.

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3. Os acoplamentos estruturais como garantes de complexidade

Mas como se recorre a esta dogmática, àquilo a que os juristas chamam “o sistema”57? Sabemos que os programas não se podem aplicar indiscriminadamente, à la légalisme. E no entanto, o sistema parece obrigar a tal: estando isolado nele próprio, não podendo recorrer às comunicações externas como fonte de esclarecimento (o externo serve o propósito de input cognitivo, como já vimos, e de irritieren o sistema, pelo que vimos até agora), a proposta de Luhmann parece condenada a ser um mero normativismo funcionalizado, agregando características destas duas teorias mas não indo mais longe, excepto na sua fundamentação.

Mas será mesmo assim? Mantenhamos este problema do foro metodológico (“como se recorre à dogmática?”) presente como pano de fundo do nosso fio de raciocínio; para lhe dar uma resposta teremos de esclarecer o conceito (já mencionado supra) de acoplamento estrutural. Pois quanto mais insistimos na diferenciação e autonomia do sistema, mais premente se torna a questão de como ele se relaciona com a realidade.

A noção de sistema é aplicada por Luhmann a várias esferas que não o direito. A economia, a política, a educação, a arte, todas estas áreas foram abordadas pelo académico alemão em diversos estudos complementares. E apesar da prevalência que o direito tem no seu trabalho, apesar deste mesmo trabalho tratar fundamentalmente – e sem essas premissas, todo ele cai pela base – na diferenciação e na autonomia, a verdade é que nunca viu o seu objecto de estudo como isolado. Só as comunicações jurídicas podem criar direito; o direito evolui dentro de si mesmo através de operações de direito; mas é impossível negar a influência mútua, o contacto existente entre os vários sistemas, a despeito do seu isolamento operacional.

Basta focarmos a nossa atenção na relação entre direito e economia. Luhmann nunca defenderia as tentativas teóricas da Law and Economics58 – o direito só se explica através do direito, e, como vimos, apenas tomando a perspectiva do objecto (uma visão jurídica)

57 Aqui num sentido diferente do de sistema social; o direito, aquando das decisões usuais que é obrigado a fazer, não se auto-observa frequentemente enquanto “sistema autopoiético fechado, autónomo no seu ambiente”, mas sim como o conjunto de textos por que é constituído.

58 Propugnadas por Richard Posner, em Economic Analysis of Law.

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nos livramos de inescapáveis subjectivismos. A visão de Parsons é demasiado simplista; para além de que a experiência da vida real nos mostra que nem sempre o subsistema económico se encontra numa posição hierarquicamente inferior à do subsistema integrativo. Aquilo que realmente vemos acontecer é um relacionamento por via de reconhecimento e reacção: o direito, neste caso, vai reconhecer algum facto que lhe é externo mas relevante para as suas operações, fazendo-o através das suas próprias normas (programas). Note-se que falamos de comunicações, sempre no seu próprio momento (num presente momentâneo). Ora, a existência do facto e de um simultâneo reconhecimento permitem uma sincronia; haverá uma coordenação quando surgir um padrão entre um determinado estímulo externo e a respectiva irritação do sistema59. No tocante à economia, vemos, por exemplo, que esta sozinha não é capaz (porque não dispõe dos meios para tal) de estabelecer a propriedade de um bem. É a economia que nos diz o valor do que compramos e vendemos, mas não é ela que nos permite dizer a quem pertence. Já o direito, possuindo uma série de programas relativos às formas de entrar na posse de um bem, não apresenta nenhum critério que permita estabelecer qual o valor dos bens. E isto apesar dos vários apelos (já desde Justiniano!) ao “devido valor” e ao “preço justo” na mais variada legislação60. O direito trata, na maior parte das vezes, o estabelecimento de um preço pelo mercado como um evento, que lhe é externo e que influencia (irritiert) as suas

59 Niklas luhmann, Law as a Social System, 383: “The system itself regis-ters the irritation […] only on the video screen of its own structures”.

60 Note-se, para efeitos exemplificativos, o Art. 1542.º do Código Civil, respeitante à extinção dos direitos de superfície por expropriação: “Extinguindo--se o direito de superfície em consequência de expropriação por utilidade pública, cabe a cada um dos titulares a parte da indemnização que corresponder ao valor do respectivo direito”.

Aprofundando um pouco esta questão, encontramos o Art. 22.º/1 do Código das Expropriações, que estipula um “direito de receber o pagamento con-temporâneo de uma justa indemnização”, sendo esta calculada, nos termos do Art. 23.º/1, “com referência à data da declaração de utilidade pública, sendo ac-tualizado à data da decisão final do processo de acordo com a evolução do índice de preços no consumidor”. Qual o índice de referência? Responde-nos o n.º 2. do mesmo artigo: “o publicado pelo Instituto Nacional de Estatística relativamente ao local da situação dos bens ou da sua maior extensão”. Encontraremos melhor exemplo de uma necessidade, da parte do sistema legal, de fornecimento de co-municações pelo sistema económico para que exista possibilidade de efectivação do direito (neste caso, da norma respeitante à expropriação)?

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operações. A selecção e o tratamento dos estímulos é feita através das estruturas existentes em cada um dos sistemas: o acoplamento, quando contínuo no tempo, é, consequentemente, apelidado de estrutural61.

Muitas vezes, um acoplamento deste tipo leva a ambiguidades na identidade. Law is Policy é não ver a subtil distinção de operações entre um sistema e outro; a função da política é a de chegar a decisões colectivamente vinculantes; o seu código é governo/oposição; e a maior parte da sua legitimidade face aos cidadãos vem precisamente do facto de se reger pela batuta da legalidade, apesar de possuir um diferente objectivo. O Rechtstaat é um acoplamento que pode ser visto pelas duas perspectivas concorrentes do direito e da política: traduzindo, por um lado, a extensão de uma pretensa rule of law a todos os domínios de um Estado-nação; e, por outro, uma forma optimizada de alcançar decisões consensuais62. Ambos os domínios estão fechados, comunicam entre si (não directamente, um para o outro... mas um acerca do outro), provocam-se mutuamente – mas cada um com suas operações. A discussão política acerca de uma lei, os argumentos e os intervenientes constituem assuntos de comunicação política, enquanto que os procedimentos definidos por lei para os mesmos eventos – a forma pela qual estes se governam – constituem elementos do sistema legal. Apesar de intimamente entrelaçados – tocando-se mesmo, no ponto de garantia e mútuas cedências a que chamamos Constituição63 – constituem sistemas evidentemente autónomos, muito embora a relação entre ambos, na sua regularidade, signifique que a existência de cada um pressuponha certos aspectos do outro, necessite estruturalmente de certos elementos do outro sistema. Outro exemplo (e de enorme importância) é a confiança constante do direito na força coactiva do Estado. As comunicações próprias do direito, e próprias deste, como, por exemplo, a rotulagem de um determinado acto como ilegal, “irrita” a máquina do Estado, seguindo-se a detenção do autor do acto. Estado esse que apenas pode deter indivíduos nas condições em que a lei lho permite. E isto acontece de forma regular –

61 Niklas luhmann, Law as a Social System, 382: “[...] coupling mechanisms are called structural couplings if a system presupposes certain features of its envi-ronment on an ongoing basis and relies on them structurally [...]”.

62 Niklas luhmann, Law as a Social System, 362 s.63 Niklas luhmann, Law as a Social System, 404: “Not until de eighteenth

century […] was the form invented which guaranteed the structural coupling be-tween the legal and political systems. It was and still is called ‘constitution’”.

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é já estrutural o acoplamento entre estes dois sistemas, e este tipo de relações, se permite um notável aumento na complexidade dos vários sistemas na sua apreensão da realidade, também impede a queda das estruturas no caos. Uma limpa manutenção de independência através da interdependência64.

4. O problema da argumentação

Após uma brevíssima exposição acerca desta matéria, já temos elementos que nos ajudarão a compreender como poderá a inflexibilidade do sistema ser mitigada. É graças a um acoplamento, realizado plenamente ao nível da dogmática textual, com uma esfera de argumentação jurídica. Ora, a argumentação, sabemo-lo, não tem lugar dentro deste sistema. Existe um código; existem programas e uma função; e a clausura operacional assegura que nada de externo ao sistema pode influenciar as operações que dentro dele ocorrem. A argumentação não vai, como tal, alterar a validade legal, o signo recht ou unrecht que um sistema aplica a um facto que lhe é apresentado. Não alterará a lei65. E, no entanto, é evidente que o veredicto dado pelo juiz não é, de todo, independente dos argumentos apresentados pelo advogado.

A âncora do direito está nos textos legais; são estes que asseguram uma observação de primeiro grau do sistema pelo próprio sistema; o direito, enquanto sistema, observa-se como “conjunto de textos” aquando da realização de um caso66. Os “textos” incluem ainda referências a contextos passados (decisões) que ajudam a reduzir as possibilidades de decisão. Encontrar os textos certos para a argumentação requer, no

64 Niklas luhmann, Law as a Social System, 371: “The political system ben-efits from the difference between legal and illegal being coded elsewhere […] [while] the legal system benefits from having peace, a clear differentiation from authority, and with it the enforceability of decisions, secured elsewhere”.

65 Niklas luhmann, Law as a Social System, 305.66 Niklas luhmann, Law as a Social System, 306. A referência feita frequen-

temente à intertextualidade mais não é, segundo Luhmann, que uma representação informal do total do sistema (Dogmatik) pelo sistema (System). O recurso à analogia juris, ao espírito do conjunto dos textos, mostra como estes sistemas-dentro-de--sistemas ganham vida quando referidas ao subsistema da argumentação.

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estado de actual complexidade do mundo, uma grande especialidade do jurista – algo com que Weber concordaria67.

Se a leitura dos textos é uma observação de primeiro grau, a argumentação destes localizar-se-á já num segundo grau. Trata-se já não de verificar os textos acumulados na dogmática mas sim de se colocar a pergunta de como os interpretar num contexto comunicativo. É neste nível secundário que se formam as regras acerca de como interpretar os textos legais. Doutrinas como a exegese, o critério do legislador ideal ou ideias de interpretação extensiva situam-se neste grau de auto-observação do sistema; o observador olha-se a si mesmo e à sua leitura inicial (literal, rotineira) do texto e duvida do resultado a que chega; isto porque é certo e problema milenar que lendo apenas os textos se chegará muitas vezes a resultados pouco satisfatórios68. É muito possível o observador descobrir que a letra da lei o leva a conclusões que vão contra interesses que devem ser tutelados, ou que a sua interpretação literal poderá ter consequências que não poderiam, de todo, ser a intenção do legislador. Há uma procura exterior à norma mas interior ao sistema pela melhor forma de interpretar o texto; e dentro do sistema há duas formas de corrigir a leitura inicial: ou detectando um erro (aplicando à prévia leitura um código do tipo erro/não-erro) ou encontrando razões melhores ou menos boas para interpretar o texto de determinada forma. A hierarquia destas razões desvela-se através de uma observação de terceiro grau – esta já exterior ao sistema e apoiada nos predicados da teoria da argumentação, através de acoplamento.

A especificidade do direito e o seu contacto constante com as realidades humanas (preservando sempre a sua autonomia) conferem-lhe uma especificidade ímpar quanto ao tipo de argumentos utilizados em sua sede; princípios gerais, ideias de “correcção”, “equidade” ou a já escrutinada “justiça” mostram-se pouco adequados para tratar problemas individuais e microscopicamente distintos. O sistema apresenta assim uma alta especificidade e atenção para as diferenças entre cada caso particular; conjura-se, aquando da argumentação, a individualidade e irrepetibilidade do discutido69. E no entanto, os termos

67 Supra, ponto 4.2.1.68 Niklas luhmann, Law as a Social System, 307: “Here one observes one-

self (or others) reading a text and one has one’s doubts”.69 Niklas luhmann, Law as a Social System, 310 s: “[Argumentation]

feeds off the variety of cases it is involved in, thus achieving a high degree of

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utilizados, os programas empregados, mostram-se muitas vezes os mesmos. Cláusulas gerais como a da “boa-fé”, termos como “culpa” e “contrato” apresentam-se modeláveis, utilizam-se tanto no palco da argumentação legal como no exterior do sistema, apresentando uma polissemia aparentemente imperdoável num contexto de rigor como o que arguimos ser necessário para a determinação de uma sentença (à falta de melhor termo, e perdoe-se a polissemia!) justa.

A conciliação destas duas realidades surge através da própria utilização deste tipo de termos em contextos diferentes, expandindo o significado dos termos pouco a pouco através de analogias, construindo, paulatinamente, pontes entre casos relativamente diferentes mas que permitem decisões semelhantes. O léxico do sistema vai-se assim expandindo pouco a pouco; prudentemente se alcançam novos domínios com velhos termos, preservando as velhas expectativas em domínios previamente fora do alcance da regulamentação legal70.

Há dois conceitos que se afiguram fundamentais quando abordamos questões de argumentação dentro do sistema – ou seja, num nível secundário de observação – muito embora não sejam exactamente parte integrante dele – mas antes conceitos técnicos de uma mais abrangente teoria da informação. São eles a redundância e a informação71. Esta consiste no conteúdo novo de uma mensagem; a primeira é definida como todas as partes da mensagem que não são informação – a informação confere variedade a comunicações que sem ela não passam de rotina e repetição (redundância). Note-se, porém, a discreta importância da redundância na comunicação – é ela que nos permite localizar a informação relevante, agrupá-la, detectar erros. A existência de um predicado em cada frase, de um acórdão para cada julgamento, de uma introdução para cada acórdão, de determinantes artigos perante cada substantivo – tudo isto é redundante e necessário.

specificity, which cannot be reduced to general principles (for instance, justice). It becomes highly sensitive towards individual problems and distinctions”.

70 Niklas luhmann, Law as a Social System, 311: “Thus experiences from previous cases and expectations can be preserved, reconfirmed, and carefully ex-tended to new facts and circumstances, or, if this is not satisfying, can be used to create rules for as yet unregulated situations”.

71 E uma terceira categoria – a variação- que se contrapõe (mas não opõe!) à redundância, e se refere às possibilidades operativas do sistema. No fundo, a informação que o sistema é capaz de computar, e que é condicionada tanto pelo presente estado do sistema como pela redundância existente – Niklas luhmann, Law as a Social System, 320.

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Quanto mais informação um sistema deve processar, maior a redundância que deverá possuir – a redundância, e o seu correcto ajustamento, é uma medida de complexidade, e portanto uma medida de justiça. A importância desta função é proporcional às necessidade de selecção exterior por parte do sistema, assim como uma reacção do problema do excesso de “barulho interno” – sistemas de elevada informação72 precisam de elevada redundância de maneira a impedir constantes irritações (e consequentes operações) internas. Alguns autores73 atribuem a esta função um epíteto de mão invisível do sistema – tal o seu papel na coordenação. A consistência do sistema adquire-se através da criação de suficientes redundâncias, permitindo detectar erros, seleccionar informação relevante e responder a um número de casos cada vez maior – responder à contingência da realidade com a consistência do sistema. Assim se explica a solidez que o direito apresenta à sociedade – e a confiança que esta lhe aufere – assim como o seu desenvolvimento e ramificações, que podendo ser apresentados como impeditivos de uma total confiança se mostram, na verdade, como condições essenciais para tal.

Em boa verdade, aquilo a que nos referimos é à importância da repetição dentro do sistema legal. Abordámos a temática da argumentação, inicialmente, através de uma referência ao sistema de textos legais. E a repetição é também de suma importância para o uso destes textos; pois é a partir de não menos que miríades de usos repetidos que os chamados conceitos legais se constroem. São eles as formas de eleição para armazenar o conhecimento e os usos de gerações de argumentos legais74; permitem distinções cada vez mais apuradas e precisas; são “artefactos históricos” que auxiliam as comunicações. O positivismo legalista exacerbou o uso de conceitos. A justificação para o seu método era a tónica colocada na consistência. Mais tarde, e num processo quase dialético, surge a jurisprudência dos interesses, procurando justificações externas ao sistema e vendo o direito como resolução de

72 E já Talcott Parsons (ver supra) se referia ao direito como sistema de “elevada informação” e não tão elevada “energia”.

73 A começar com Martin shaPiro, em Toward a Theory of Stare Decisis.74 Niklas luhmann, Law as a Social System, 340: “With the help of con-

cepts, distinctions can be stored and made available for a great number of deci-sions. In other words, concepts compound information, thereby producing the redundancy required in the system”.

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conflitos de interesses. Conseguimos ver hoje uma síntese de ambos, pois, através de observação secundária, conseguimos ver em tribunal tanto a utilização de argumentos formais como substantivos, permitindo tanto auto-referências como a referência a realidades externas75, que se traduzem – para o sistema – numa reclamação de maior variedade em si-próprio, numa maior adequação de complexidade à realidade. Em maior justiça.

O direito tende para uma maior complexidade à custa de mecanismos de selecção natural76, e não por qualquer direcção imprimida ao direito pela sociedade. Cego para qualquer valor externo que se lhe queira imprimir, o sistema pauta-se pela sua autonomia e diferenciação, como já observámos inúmeras vezes, e estes conseguem-se através do uso de um código binário e programas únicos e específicos. Porém, a simples aplicação de programas e código levaria a um direito pouco elástico e pouquíssimo ajustável à realidade. Mais: a obscuridade do sistema medir-se-ia na obscuridade dos programas, e os erros humanos nunca permitiriam uma plena confiança por parte da sociedade – que muito embora não seja um factor tomado em linha de conta pelo sistema (porque externo) se mostra essencial para a sua sobrevivência. A traça não se apercebe que é a semelhança da sua tonalidade com a do tronco da árvore que permite a sua sobrevivência77, e no entanto a selecção dá-se nesse sentido. A argumentação permite corrigir erros que seriam fatais para a confiança geral de que o direito manteria as expectativas normativas; confiança estabilizada pela elevada redundância do sistema e a referência a uma dogmática consolidada. Cabe aos argumentos uma função essencial de clarificação destes textos, que permita encontrar a

75 Niklas luhmann, Law as a Social System, 346:

“Accordingly, the system practises self-reference with formal argumentation and external reference with substantive argumentation. Formal argumentation is ul-timately predicated on the necessity at all levels to come to a decision and to avoid submersion in the full complexity of the factual world. Substantive argu-mentation prevents the system from isolating itself in formal argumentation”. 76 Referimo-nos a um aumento de complexidade muito embora a se-

lecção natural não tenha nada do género em vista – trata-se apenas de um efeito secundário altamente provável de uma melhor adaptação. Nada obsta a que uma estrutura mais simples tenha sucesso adaptativo, no entanto – Peter J. bowler, Life’s splendid drama: evolutionary biology and the reconstruction of life’s ancestry 1860-1940.

77 A veloz evolução de Biston Betularia, despoletada pela rápida indus-trialização em Inglaterra – Bruce grant e Michael maJerus, «Fine tuning the peppered moth paradigm».

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interpretação que torna possível uma maior consistência futura do sistema, e uma decisão consoante a mesma. A auto-referência necessita, no entanto, de um contraponto de argumentação substantiva – mas é impensável o sistema perder-se nesta, pois a sua função é seleccionar os factos, filtrá-los, de maneira a reduzir a complexidade da realidade exterior. O sistema racionaliza os interesses de acordo com a variedade possível dentro do sistema – i. e., procura dentro de si as referências externas que constituem para si informação computável, que despolete operações. E – note-se a meta-referência – a própria observação que fazemos presentemente dentro do sistema, esta análise à natureza e modo do argumento, consiste em observação secundária do sistema dentro do próprio. A argumentação permite, através da delineação de círculos concêntricos (observação em primeira e segunda linha, mais uma terceira [em que ingenuamente acabamos de entrar, ao analisar a própria teoria argumentativa como analisada pelo direito...!] já externa ao sistema) um visível aumento da diferenciação e da complexidade do sistema. Ora, a crescente complexidade da galáxia argumentativa pode ser vista em paralelo com a crescente complexidade da realidade sem perda de auto-referência78 – e, como tal, uma adequada análise argumentativa por parte do sistema é, para o próprio sistema, reflexo de uma elevada justiça.

5. Um direito sem porquê?

Poder-nos-íamos perguntar qual o objectivo de uma teoria que, ao contrário dos outros modelos funcionalistas que poderíamos analisar, não parece incluir uma intenção prática, parecendo insistir num esquema de conhecimento do objecto pelo conhecimento em si mesmo; ou talvez com um objectivo específico de reafirmar a autonomia do direito perante as ameaças que o mundo contemporâneo, maxime através dos próprios funcionalismos, lhe coloca. E, no entanto, algo mais parece existir; não só uma teoria mas uma proposta. Castanheira Neves refere a integração desta teoria em modelos modernos de direito79, notavelmente por Günther Jakobs (quando argumenta que o direito penal deve proteger a norma jurídica e não os Rechtsgüter, é Luhmann que mobiliza. A ideia do sistema protegendo-se a si próprio de

78 Niklas luhmann, Law as a Social System, 354.79 António Castanheira neves, «O Funcionalismo Jurídico», 268 s.

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indivíduos que se declaram, através das suas acções, como estando fora da “máquina”80 vai de encontro à proposta do A. de um direito-“sistema imunitário”81 da sociedade, identificando conflitos através das suas normas e criando novas normas que criam novas expectativas futuras a proteger) e em Kurt Amelung (e a sua compreensão da norma penal como servindo uma função dentro do sistema social – de forma mais análoga ao estruturalismo Parsoniano); mas todo o esquema decisivo, todo o plano argumentativo, apesar da sua pretensa factualidade científica, parecem encerrar um certo dever-ser – se não mesmo um certo pessimismo quanto ao que efectivamente é.

De facto, o A. deixa-nos presente a ideia de que apesar da sua clausura normativa, o direito não está seguro das imprevidências da sociedade, nem livre das falhas a que os seus inúmeros acoplamentos o expõem. E a sociedade, para além de mais complexa, torna-se também mais imprevidente à medida que o tempo passa; e se é função e pão-nosso do sistema legal lidar com a complexidade, já a imprevidência se torna problemática. Pois o sistema deve fixar expectativas; e cada vez mais difícil se torna fazê-lo. O sistema encontra-se a cada momento no fio de uma afiadíssima navalha, tendo de um lado a necessidade de estatuir normas que respondam aos novos conflitos apresentados pela sociedade, do outro a queda para o excesso normativo e a correspondente perda da confiança geral e impossibilidade de correcto funcionamento. Esta tensão atinge um tal ponto, no presente momento, que é possível assistir ao inesperado paradoxo de uma sociedade que arriscaria o colapso se todo o direito em vigência fosse efectivamente sancionado – Luhmann dá o exemplo da catástrofe a que se assistiria caso todo o mercado negro fosse abolido nos dias de hoje82. Sabemos já que as expectativas normativas se podem manter (e mantêm!) apesar de exemplos contrafactuais. Resta saber, perante a sociedade actual, até onde aguenta o “elástico” das expectativas.

80 Porque a própria consciência da generalidade dos indivíduos, através da sincronia entre as suas acções e as operações do sistema, se encontra (nas pala-vras do autor) acoplada com o sistema – Niklas luhmann, «Die Autopoiesis des Bewufßtseins», 402 s.

81 Niklas luhmann, Law as a Social System, 476: “An immune system gets along without knowledge of its environment. It only registers internal conflicts and develops for them case-by-case solutions which can be generalized, that is, providing surplus capacity for future conflicts”.

82 Niklas luhmann, Law as a Social System, 478.

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Mas o próprio tipo de expectativas dirigidas ao direito é hoje em dia totalmente distinto daquilo que tradicionalmente seria de esperar. O advento do estado social levou a uma presunção de responsabilidade da sociedade; esta deveria resolver as falhas, as desigualdades, os problemas dos indivíduos – compensando, prevenindo, providenciando, a nível educativo, através dos mercados, com medidas políticas capazes de realizar uma chamada justiça social. Uma enorme parte deste quinhão cabe ao sistema legal – e consequentemente, é esperado que este actue em conformidade; a Lei estará a falhar se a sociedade não for ela-própria justa. No entanto, a ideia de sociedade justa é em si mesma contingente – estamos a falar de justiça como igualdade material entre indivíduos? Igualdade de oportunidades? O melhor possível para aquele que está pior? O direito (estudamo-lo agora externamente – observação de terceiro nível) ressente-se desta contingência. A legitimidade passa a estar associada ao procedimento – no fundo, na ideia de que é uma determinada série de comunicações formais pré-determinadas pelo sistema que conferem a obrigatoriedade à lei. O futuro é incerto e o direito não providencia um guia universal, um ideal a seguir. Consiste num sistema que, para sobreviver, se adapta (através de processos internos) consoante os estímulos que recebe (do mundo exterior).

Há um problema que deixámos para o fim desta abordagem. Trata-se da questão dos princípios de direito, que, podendo prestar um enorme serviço no que toca à justificação da decisão, à legitimidade do sistema, ao desafio de dar respostas coerentes a uma realidade em permanente mudança, se encontra fora da máquina autopoiética do A. A alienação é feita aquando do tratamento da argumentação; a “crença” em princípios vista como um anacronismo, na medida em que procurar as “razões para as razões” fora do sistema é algo de impraticável quando se aceita a clausura normativa; sendo a sua proveniência sempre ligada a preceitos “morais”, “éticos” ou a uma crença na “razão” – ou mesmo justificados por uma visão utilitarista (ex: um princípio de “bem-estar geral”) – é necessário fazer uma escolha entre a perspectiva de sistema autopoiético fechado ou um direito fundado em princípios83. Luhmann não tem dúvidas quanto à sua escolha; os princípios, na sua indeterminação fundamental, deixando lugar a vasta interpretação e mesmo à possibilidade de interpretações contrárias, permitindo assim

83 A inflexibilidade da autopoiesis de Luhmman é uma das maiores críticas que Teubner lhe coloca (ver infra).

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ao sistema que se demita de distinguir entre casos alegando uma generalidade (ex: “proporcionalidade”) e permitindo um tratamento difuso da dimensão temporal do sistema; séculos de casos e distinções colocados sob um termo generalista (“boa-fé”) – não passam os princípios, para o autor, de “fórmulas de redundância” do sistema84.

A validade da teoria científica é empiricamente associada à sua maior ou menor aproximação relativamente ao que se verifica aquando da observação directa do fenómeno. Pois esta teoria, aspirando a científica, terá de passar, para sobreviver, a um reality check. E independentemente da sua admirável construção, será necessário admitir que este sistema legal difere substancialmente daquele que observamos quotidianamente. Para começar, porque nos é intuitivamente difícil acreditar num direito sem direcção. Um direito que não aspira a correcto, que procura apenas a sua sobrevivência e autonomia (uma teoria do direito egoísta?) – será este o projecto a que vimos assistindo desde Roma, e se sim – haverá esperança?

Mesmo deixando as dúvidas de natureza axiológica (às quais a teoria nem sequer tenta responder), há ainda a questão da correcção formal. Pois a enorme quantidade de auto-referências nesta teoria – e não só nesta, a crítica é comum a toda a explicação por autopoiesis – leva a um fácil diagnóstico de circularidade, mesmo de solipsismo. De onde vem a legitimidade do direito, então, e onde começa e acaba este? Esta teoria (sociológica!) não se ocupa de responder. Procura meramente descrever o observável – aos juristas caberá explicar.

III - Günther Teubner e o sistema hipercircular gradativo

1. Afinando a autopoiesis

Teubner começa a sua exposição pelo mesmo lugar que o A. anterior: o direito apenas se conhece através de si-próprio; só na auto-referência pode ser autónomo, só, no fundo, não adquirindo a sua validade de nada que lhe seja externo. A este predicado junta um segundo: não dependendo de nada externo, a clássica relação de causa-efeito não se aplica ao jurídico, no sentido em que este é indeterminável por fonte externa. Apenas as máquinas ditas “triviais” operam de forma sintética e

84 Niklas luhmann, Law as a Social System, 312.

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previsível; o direito é imprevisível, não seguindo outra sequência linear para além daquela que ele define para si próprio, na sua auto-reprodução. Permanece dependente do passado; isso é indubitável – mas para onde este o levará, ninguém o determina85.

Sabe, no entanto, que existe algo que efectivamente determina o que é e o que não é direito – as fontes de direito. E saltando de fonte inferior para fonte superior, nas palavras de Hofstadter, acabamos por “bater com a cabeça no tecto”86 – voltamos às fontes inferiores, que acabam por legitimar as superiores. Da mesma forma como são os tribunais que legitimam as leis que lhes dão o poder de julgar, da mesma forma como, no fim de todos os argumentos, há sempre alguém que pergunta “é legal distinguir entre recht e unrecht?”, o sistema – na base como no tecto – assenta em paradoxo.

Teubner apresenta-nos as três alternativas que a doutrina legal encontrou para desfiar o paradoxo. A desconstrução, o desmascarar das antinomias, a desmistificação dos procedimentos legais, conforme defendem os Critical Legal Studies; a procura de consistência real por oposição aos “paradoxos do pensamento”, na esteira de Hart; e finalmente, a sua própria proposta: “a transferência do paradoxo do mundo do pensamento sobre o direito para o mundo da realidade social do direito”. De forma verdadeiramente revolucionária (e demonstrando um certo cepticismo perante as posturas [não verdadeiramente] radicais dos Critical Legal Studies) o autor propõe à doutrina jurídica abraçar a circularidade, largando o tabu veiculado milenarmente por este conceito. Não se trata aqui de aceitar o argumento circular (falho, naturalmente, por petitio principii) mas sim de compreender a circularidade como dimensão fundamental da prática jurídica87. Independentemente de ser aceitável ou não raciocinar circularmente, é necessário compreender que as

85 Günther teubner, O Direito Como Sistema Autopoiético, 33:

“São estas regras que fazem com que um sistema auto-referencial apareça como um sistema independente em face do seu meio envolvente e imune à respectiva influência directa: caso contrário, seria o último a determinar a continuação e reprodução do primeiro, cujo desenvolvimento evoluiria ao sabor de contin-gências exógenas em vez de constituir fruto da lógica necessitante de operações próprias endógena e recursivamente organizadas”.86 Douglas hoFstaedter, Gödel, Escher, Bach: An Eternal Golden Braid, 692.87 Niklas luhmann, Soziale Systeme. Grundriß einer allgemeinen Theorie, 648

“A realidade possui, independentemente mesmo do conhecimento humano e da sua apreensão cognitiva, uma estrutura circular”.

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relações circulares abundam na realidade jurídica. A auto-referência é um problema específico ao qual o direito se não pode esquivar88.

Pode parecer cruel pensar assim. Pode dar a entender que o direito, na autonomia que lhe é própria, é menos que os outros sistemas, porque circular e portanto falho. Nada mais falso. Pois que é a matemática mais que um complexo circular de axiomas, mutuamente fundados? Qual é a origem da vida senão a vida? Qual é a definição de uma palavra que não seja...

outra palavra? Não se conhece um princípio para nada: vivemos num mundo de fenómenos circulares, generalizados de tal forma na nossa consciência que se torna difícil perguntar pelos princípios de cada um (e qual o princípio da consciência?). Levar a cadeia racional até um derradeiro final implica um desmoronar da realidade e uma paralisação total do sujeito. É assim necessário aceitar, epistemologicamente, que a própria realidade tem uma estrutura circular. E só assim poderá ser cognoscível.

E esta mesma circularidade é característica, portanto, da praxis jurídica. Mas se a ideia é tão contrária àquilo que normalmente se postula desejável numa ordem instituída (i. e., se a justificação do direito procura sempre fugir à circularidade), como podemos nós articulá-la com um funcionamento prático do sistema? Pois bem, o que se pretende é uma justificação; “porque é o sistema como o vemos?”, a resposta “porque é circular”. Como é o sistema que vemos? Autónomo.

É precisamente na esteira da autonomia que o sistema se quer circular. Não apenas auto-referencial mas autopoiético, não meramente autónomo mas circular. Pois um direito que admitisse fontes externas a si próprio, mecanismos de hetero-reprodução, estruturas-outras que lhe dessem uma direcção... rapidamente se veria diferente de si próprio; nunca alcançaria a estabilidade que se torna possível pela sua total auto-contenção. Total num sentido mais abrangente que aquele que Luhmann imprime ao seu sistema; não incluindo apenas as comunicações mas tudo o que lhe é próprio: instituições, papéis, normas, actos jurídicos, funções, juristas, no duplo papel de construções semânticas do sistema e de sistemas independentes; os pilares do sistema residem na sua estrutura

88 Günther teubner, O Direito Como Sistema Autopoiético, 33: “[...] todos esses fenómenos representam simples ilustrações particulares e pontuais da natu-reza visceralmente circular da realidade do direito”.

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interna89. Olharmos para esta na forma da estrutura clássica Parsoniana levar-nos-ia a uma ênfase na distinção sistema/Umwelt; a relações de input/output entre uma e outra que se mostram demasiado redutoras para aquilo que se vê na realidade jurídica. Está aqui implícita uma superação desta perspectiva90; a clausura auto-referencial do sistema leva-o à autodescrição e à autoconstituição. Estes processos levam a novos processos de autoconstituição – um hiperciclo, sem o qual a estabilização do sistema não seria possível. O contínuo remetimento do sistema para processos próprios e a recursividade das suas regras de funcionamento permitem que ele se auto-reproduza – evoluindo ao seu próprio ritmo e nos seus próprios moldes formais. E assim (só assim poderia ser!) o direito se autodetermina.

Pretende o A. com isto estatuir um direito removido da realidade, insusceptível às tradicionais relações de causalidade? De todo. Será isto apenas uma reafirmação da (já tão discutida) autonomia? Não apenas. Trata-se da afirmação de uma autonomia num sentido mais refinado, pretendendo dar ao direito o estatuto de “máquina não-trivial” que referimos supra, requerendo uma nova interpretação das relações entre o direito e o não-direito.

O híper-círculo permite ainda ao A. rejeitar uma das concepções que levantavam problemas às restantes teorias de direito autopoiético – o carácter inflexível deste atributo. Para Teubner 91, um sistema não terá de ser “bem que autopoiético” ou não, permitindo-se a existência de diversos graus de autodescrição e autoprodução, configurando uma autopoiesis gradativa, constituída na maior e menor medida em que consiga constituir os seus próprios elementos (sob a forma se ciclos auto-referenciais, bem entendido. A articulação dos vários ciclos – autoprodutivos, autodescritivos, auto-referenciais – num hiperciclo sustentável configura a etapa final e a verdadeira autopoiesis), à medida

89 Günther teubner, O Direito Como Sistema Autopoiético, 66: “[...] não ape-nas os actos jurídicos, mas verdadeiramente todos os componentes do sistema jurídico – estruturas, processos, limites, meio envolvente – devem simultanea-mente ser auto-constitutivos e articular-se entre si de forma auto-reprodutiva (hi-percírculo)”.

90 E com a superação da visão do sistema fechado que comunica com o exterior através de relações input/output... A superação da visão do direito como re-ceptor e executor de um programa externo (político, económico, religioso...); o funcio-nalismo sistémico ultrapassa assim a Zweckrationalität dos funcionalismos materiais.

91 Baseado, porém, na definição prévia de roth, em Die Entwicklung kog-nitiver Selbstreferencialität im Gehirn.

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que se constituem mais ciclos, à medida que a plasticidade e o feedback dentro do sistema aumentam92.

Não só categorialmente gradativa... Mas temporalmente gradativa. O hiperciclo constitui-se, nas suas várias manifestações (históricas, admitindo um pluralismo de direitos), atravessando várias fases de autonomização. Uma inicial – fase de direito socialmente difuso – na qual o discurso jurídico não se distingue do discurso comunicativo usual; aquilo que é direito é totalmente determinado pelo social, não existindo fronteira alguma entre o jurídico e o não-jurídico. Existe a consciência da necessidade de resolver uma controvérsia resultante da vida comum recorrendo ao código legal/ilegal – mas os parâmetros da sua aplicação são hetero-referenciais, não pertencendo a algo a que se possa chamar de sistema jurídico. De seguida, surge uma fase intermédia de chamado direito parcialmente autónomo; e aqui começam a surgir termos, processos, elementos exclusivamente jurídicos; haverá auto-referência, manifestada sob a constituição inicial de critérios jurídicos secundários93 e de uma doutrina jurídica, alcançando esta fase mesmo estádios mais avançados que incluem auto-organização e autoprodução de elementos. A formação total do hiperciclo resultaria na fase autopoiética do sistema; e aqui a teia de comunicações jurídicas é total, autónoma e auto-reprodutiva94. Será demasiado ousado fazer corresponder a estas três fases de progressiva autonomia... as três fases históricas do direito distinguidas por Weber

95? Mesmo não tendo maneira de entrever os desenvolvimentos que lhe sucederiam, não seremos capazes de encontrar aqui ligação evidente – visto ambas as visões estarem unidas por um progressivo desenvolvimento da doutrina jurídica, visto por um através do marcador do ensino do direito (factor também ele de certo modo intrajurídico!), por outro pelo cada vez maior âmbito da auto-referência?

É momento de nos perguntarmos: é isto ainda autopoiesis? O termo aparece pela primeira vez em 1972 para se referir a um processo de autocriação a nível celular. Já aí era contestado. Temos assistido

92 Günther teubner, O Direito Como Sistema Autopoiético, 67: “O aumento cumulativo de relações circulares faz assim da autopoiesis um processo gradativo”.

93 E é nesta articulação de normas primárias com normas secundárias – segundo o “heart” de hart – que podemos verificar a existência de efectivo direito (hart, The Concept of Law).

94 Günther teubner, O Direito Como Sistema Autopoiético, capítulo 3.95 Ver supra.

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a progressivos entorses conceptuais a partir do momento em que o começamos a utilizar para designar a autonomia de sistemas sociais; agora, deixamos cair um outro pilar – já não é um conceito de tudo-ou-nada. O que resta?

Para Teubner, resta o essencial. Vê a sociedade como sistema autopoiético de comunicações – e o adjectivo atribui ao sistema um elevado grau de autonomia perante tudo o mais. As comunicações dependem, na sua grande maioria, umas das outras. Em sociedade, cada acto comunicativo individual aceitará inputs cognitivos provenientes do exterior – do mundo físico, se assim o quisermos – mas estará principalmente dependente de outras comunicações, provenientes que sejam de passados remotos ou imediatos, e mesmo futuras. Não sendo possível rejeitar a aplicação do termo a entidades biológicas (por ser essa a sua origem!), teremos de ver cada indivíduo comunicante como sistema autopoiético em si mesmo, e cada célula de cada indivíduo também. Existe uma construção de sistemas de cada vez maior escopo, através de unidades autopoiéticas mais pequenas. Ao mesmo tempo, porém, existe uma diferenciação no seio da sociedade; certas comunicações vão criando círculos entre si, dentro do sistema. A sua especificidade e progressiva autonomia levará estas unidades (passando pelas fases atrás discriminadas) a alcançar o estatuto de sistemas autopoiéticos de segundo grau, entre os quais o sistema jurídico, articulados entre si num hiperciclo que constitui o sistema autopoiético de primeiro grau.

Resta perguntarmo-nos pela relação entre o indivíduo e o sistema. Que era já um ponto difícil na construção de Luhmann. Uma concepção extremada (por muito que gradativa na evolução...) de direito como sistema não sacrificará os sujeitos aos quais o próprio sistema se dirige? Ver o humano como peça de máquina não é reduzir o humano a... peça de máquina? E mesmo que o sistema seja compatível com o homem-pessoa, este apenas aceita aquilo que lhe é próprio, apenas computa-apreende aquilo para que está programado. O humano, englobando incontáveis vertentes que lhe são próprias, para além de constantemente imprevisível na sua acção, parece um mau candidato a objecto de apreensão desta máquina jurídica.

Teubner vai ver nestes receios exageros com pouco fundamento. Aquilo que é fundamental compreender é que este sistema não é algo de físico, não é sequer uma realidade normativa ou social; o sistema representa as relações comunicativas que se estabelecem entre os sujeitos.

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É uma construção, uma visão das comunicações às quais atribuímos a função do jurídico – estabilizar expectativas, resolver controvérsias. E aqui o indivíduo, com sua consciência – ela também um sistema, nesta teoria – ganha um novo lugar, menos o centro da mundividência96, mais cognoscente da existência de compreensões, de visões alternativas e concorrentes (entre as quais a jurídica). O “indivíduo” torna-se mais independente da realidade quando a decompomos em sistemas; o seu pensamento autonomiza-se da comunicação; une-se a ela (como a todos os sistemas) através da observação recíproca, da interpenetração, da co-evolução. E a comunicação deixa de decorrer directamente da consciência humana – ganha também a sua autonomia, à medida que se autoconstitui circularmente; não é uma construção psíquica, mas social. E a separação do indivíduo do sistema nunca aliena o primeiro, pois este é o fundamental centro de imputação social e principal fonte de perturbações do segundo97.

2. O direito e os outros domínios discursivos

Um outro ponto problemático é o da produção legislativa do direito, que almeja regular toda a sociedade e não só o sistema autónomo em que se inscreve (embora também o faça, através da emissão de regras secundárias que regulam o processo no sistema). A questão não se colocaria fosse o direito vocacionado meramente para a resolução das controvérsias sociais; nesse caso a teoria do sistema aplica-se sem qualquer problema. Os “sensores próprios” do direito encontram o problema real. É feita a reconstrução deste segundo parâmetros jurídicos. As normas convenientes são mobilizadas. O tribunal encarrega-se (pelo procedimento supra, novo ênfase na proibição do déni de justice) de fazer o julgamento adequado. O sistema toma conta da questão. No

96 Günther teubner, O Direito Como Sistema Autopoiético, 93 s: “No uni-verso da autopoiesis, o indivíduo que se dizia morto ganha assim uma nova vita-lidade […] o sujeito pensante autónomo não se perdeu com a autopoiesis, tendo sido, quando muito, descentrado: dir-se-ia apenas que a autopoiesis veio apenas aumentar os seus concorrentes [...]”.

97 Vicenzo Ferrari, «Réflexions Relativistes sur le Droit», ponto 3.1.4: “Günther Teubner, qui vise à une intégration entre la théorie autopoiétique de Luhmann et la théorie de la communication de Habermas, décrit le système juri-dique comme une sorte de sphère définie extérieurement par des règles de pro-cédure, par des processus de décision, mais formée à l’intérieur par des actes réflexifs de communication normative libre”.

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entanto, o direito já não se encarrega apenas de tutelar expectativas e resolver casos individuais. É lhe pedido que influencie o meio social98; o sistema político instrumentaliza o direito (em particular, a “ferramenta” legislativa) para implementar os seus próprios fins. Mas como podemos articular Estado e direito, se ambos se situam nos seus respectivos círculos? Como pode o jurídico legitimar o político, se cada um tem suas próprias comunicações, e tudo o resto é noise? Um direito fechado e uma política fechada numa sociedade fechada. Será esta clausura superável? Ou necessita o direito actual de abdicar da autonomia?

Estamos a abrir o pithos de Pandora. Pois o que dizemos em relação à esfera política aplicar-se-á, mutatis mutandis, à ética, à moral, à economia, à rational choice. Todas estas categorias se relacionam, de uma forma ou de outra, como meio do, ou instrumentalizando o, ou meramente reclamando pelo direito. E todo o sistema fechado que temos vindo a construir se vê (saltando, talvez, mais um degrau de observação) rodeado por dezenas de outros sistemas que reclamam suas próprias autonomias e mundividências99. E ao direito é frequentemente pedido que “sacrifique” a sua racionalidade própria, os programas que desenvolveu à volta do código que o distingue, aos pés destes inúmeros “deuses” modernos.

Voltamos a encontrar uma concepção weberiana – que, através da sua análise à religião, se vê autêntico profeta de um novo politeísmo100. Porque o monoteísmo aparente dos nossos dias tem como outra face da moeda (no mundo ocidental!) a existência de uma pluralidade de esferas de pensamento, cada uma dotada de uma pretensão de universalidade – tal

98 Günther teubner, O Direito Como Sistema Autopoiético, 142 s:

“Os problemas começam apenas quando se trata de aplicar no contexto so-cial as pretensões jurídicas, ou seja, quando se trata de implementar decisões jurídicas concretas. É óbvio que o agente executor destas decisões (“Gerichtsvollzieher”, “huissier”) não pode continuar a conduzir-se exclusivamente dentro dos confins teoréticos do sistema jurídico, devendo em determinado momento saltar para o mundo exterior”. 99 Günther Teubner, «Altera Pars Audiatur»: “Chacune de ces théories de

la réflexion partielles prétend être valable pour la société dans son ensemble, en tant que rationalité universelle”.

100 “Die alten vielen Götter, entzaubert und daher in Gestalt unpersön-licher Mächte, entsteigen ihren Gräbern, streben nach Gewalt über unser Leben und beginnen untereinander wieder ihren ewigen Kampf [...]”.

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qual o direito. Nenhum destes “deuses” pode, claro, ser subestimado. Mas haverá, certamente, conflitos entre eles. Haverá casos de acções eticamente reprováveis e economicamente fabulosas, e da mesma forma como vimos que a política tenta instrumentalizar o direito podemos acrescentar que tenta fazer o mesmo com a economia – e vice-versa. Inúmeras teorias surgem – mencionámos os Critical Legal Studies, a Law and Economics de Posner – tentando conciliar o direito dobrando a sua espinha a um outro “deus”. Teubner não subscreve a qualquer uma destas visões.

Importa discriminar aquilo de que falamos quando mencionamos “deuses”. Nada de numinoso. A teoria em que nos movimentamos é uma teoria de comunicações; e estas entidades mais não são do que os diversos discursos que as várias áreas da vida em comum requerem. Um discurso médico distingue-se do jurídico ou de um económico; todos eles têm diferentes entendimentos de termos semelhantes, utilizam diferentes códigos e programas, desempenham funções diversas e privilegiam fins distintos. A sua formação surge da especialização que Max Weber diagnostica – muito embora, quando este fala de luta de deuses, se esteja a referir a uma pluralidade de esferas de valor – e que é essencial para a vida moderna. E a questão que enfrentamos, mais prosaica que uma autêntica luta divina (ou mesmo, de uma colisão de esferas de valor), é a do conflito de discursos101.

O A. faz uma interessante analogia entre este tipo de conflito e aquele que surge no direito internacional aquando da colisão de duas distintas ordens jurídicas. E de facto, é evidente a semelhança num nível essencial: é à primeira vista impossível atribuir uma superioridade hierárquica a uma das ordens. O direito internacional privado aprendeu, historicamente, a lidar com este tipo de problemas através de uma série de reenvios – não se tendo efectivamente criado uma entidade de nível superior que encontre soluções gerais. Similarmente, não existe autoridade discursiva superior, nem há sistemas de tradução discursiva. A multitude comunicativa mostra-se incapaz de intercomunicação; as fronteiras surgem ao nível da codificação, e o direito, no fim, permanece aquele que codifica como legal ou ilegal102. A sua clausura normativa é que

101 Günther Teubner, «Altera Pars Audiatur»: “L‘attention passe des in-dividus aux discours: il n‘y a pas que les individus, mais aussi les discours, parmi lesquels le droit, qui sont exposés aux collisions qu‘ils génèrent eux-mêmes”.

102 Günther Teubner, «Altera Pars Audiatur»: “La nouvelle probléma-tique de collision ne s’associe pas à des limites territoriales, mais à des codes et à des programmes, qui représentent des limites des discours”.

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se mostra (aparentemente) incapaz de lidar com os desenvolvimentos recentes da sociedade; ou, por outro lado: a sua abertura cognitiva não é suficiente para as exigências da actualidade; ou ainda: o direito não se mostra totalmente adaptado à complexidade actual, indo contra aquilo que era justiça para Luhmann. Não se conseguindo criar, por respeito àquilo que é a originalidade fundamental de cada um dos discursos, uma instância superior, um “direito superior de conflitos”, utiliza-se o mecanismo típico do direito internacional privado da criação de um “foro” próprio de cada parte do conflito, tornando -se possível o reenvio entre os vários “foros”. Resta a questão de saber qual a forma adequada de tratar os conflitos: dentro ou fora do direito.

Abordando a tentativa de incorporação da pluralidade discursiva pelo direito, Teubner confronta a visão de Jürgen Habermas, que ad-voga um modelo baseado na tradução dos discursos em “linguagem jurídica” – entendida como um discurso orientado segundo um critério de “consistência decisória”, que tem a vantagem, para este estudo, de se coadunar amplamente com aquilo que Luhmann previa serem as consequências da argumentação (parte do discurso!) jurídica. A consistência serviria aqui como um filtro; os programas de cada discurso seriam adaptáveis ao direito en passant um teste de consistência, e especialmente um exame constitucional. A especificidade do direito para resolver este tipo de questões interdiscursivas adviria da sua racionalidade própria, de tipo procedimental103. Ora, Teubner caracteriza a visão de Habermas como algo distorcida; na medida em que se por um lado o direito é um discurso muito menos adequado a uma apreciação do tipo “macro” dos sistemas que-não-ele do que estoutro crê – e como tal, a sua racionalidade procedimental não se mostra capaz de criar “normas” substanciais acerca de conflitos interdiscursivos, ou sequer de clarificar muito a questão a um nível geral, portanto não será o direito (nem sequer será o direito constitucional, ao contrário do que defendem vários autores) o “assento de um superdiscurso” conciliador, por um outro lado a experiência mostra-nos que ao nível do caso particular o direito se mostra prontíssimo a uma desconstrução da universalidade da racionalidade... a um despir do discurso em factos discretos,

103 E realizada através da situação de discurso ideal. Ver infra.

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convertendo um discurso geral no particular, em atenção ao caso concreto104. Absolutamente o contrário de uma

generalização de regras de conflito, uma particularização da racionalidade para servir a justiça local.

Temos aqui não uma mera filtragem de conceitos, mas um autêntico motor de produção jurídica assente nos mecanismos particulares do distinguishing e do overruling relativos à jurisprudência existente, do princípio do tratamento diferente do que é diferente, nunca procurando deglutir por inteira a racionalidade própria de um discurso, mas meramente assimilando pelos seus próprios critérios a lógica intrínseca relevante para a questão concreta. O sistema jurídico “serve-se” das ideias próprias dos restantes discursos de modo a chegar a respostas adequadas/consistentes com o sistema, de forma a tornar o juridicamente indecidível em decidível. Ou seja: desde que nos abstenhamos de tentar criar leis gerais de resolução de diferendos (não podemos utilizar a designação “litígios” quando nos referimos a controvérsias interdiscursivas, visto que o litígio pressupõe um entendimento ou decisão justa possível, o que não é possível no diferendo105), o direito será capaz de se encarregar deles no caso particular, à semelhança do que acontece no direito internacional privado (e utilizando um sistema análogo de re-entry)106.

O significado que Teubner encontra nesta solução coaduna-se com uma tónica na praxis jurídica como dimensão fundamental. Com efeito, é a prática casuística que resolve o problema do pluralismo. Mas resolve? Ou a submissão dos discursos à praxis jurídica, ainda que apenas ao nível local, não levará a uma perda de contexto das semânticas estrangeiras? É algo que dá que pensar. A harmonização externa dos vários discursos levará, com efeito, a uma perda de significado interno, como se de autênticas línguas estrangeiras em conflito se tratassem. Será necessário o reenvio de volta para a esfera de origem para se contrabalançar o desequilíbrio causado por esta submissão (local!) ao direito? Aquilo que vemos hoje, na verdade, é um recurso ao

104 Ver infra, parte IV. 105 Distinção introduzida por lyotard, em Le Différend.106 Günther Teubner, «Altera Pars Audiatur», 115: “[Les rationalités]

peuvent y être compensées les unes par rapport aux autres dans le cas particulier, selon la rationalité locale de l’argumentation juridique, et ceci dans une forme «supprimant» le conflit des rationalités partielles en tant que tel”.

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consequencialismo que sempre temos tentado evitar, em sede de teoria dos sistemas. Fazer depender a decisão jurídica das consequências externas da acção – será isto possível num sistema que se diz autónomo, que se diz mesmo autopoiético? Não será reduzir essa autonomia a nada, tendo em conta a infinidade de consequências que um juiz teria de tomar em conta na sua decisão?

É MacCormick107 que encontra forma de mitigar esta proposta, tornando-a aceitável. Fá-lo reclamando uma redução do campo material das consequências a ter em conta. Ou seja, em vez de se subverter a norma jurídica à interpretação (possivelmente abrogante!) que as consequências requeiram, limitar-se-á à partida, na própria norma, o campo das consequências que substancialmente devem influenciar a decisão. Como temos estudado, leva esta opção a um aumento de redundância – assim como a um aumento da capacidade computacional e de resposta do sistema, o que por sua vez implica uma maior adaptação dele à complexidade externa (tornada tão mais complexa com o aflorante pluralismo!) e, consequentemente, uma maior justiça. É limitando as variáveis extrajurídicas que o sistema responde à necessidade de assimilar o consequencialismo.

Assim se mantém a autonomia do sistema de Luhmann. Mas a posição do direito altera-se. Não se encontra já uma justiça vertical, de um direito “ever-reaching” que, do alto, se ocupa de cada controvérsia da sociedade (em baixo), estabilizando as expectativas no fundo, ao sabor das expectativas, na medida em que tal se coadune com a consistência do sistema. Não, o direito evolui e adapta-se; se não ciberneticamente, pelo menos encontrando uma nova posição, neste novo mundo pluralista – a função deste sistema é estabilizar expectativas, e expectativas ele estabilizará desempenhando um papel mediador entre os vários discursos108, estabelecendo

107 maCCormiCk, «Argumentation und Interpretation in Recht: “Rule Consequentialism” und rationale Rekonstruktion».

108 Günther Teubner, O Direito como Sistema Autopoiético, 243 s:

“No caso de uma resposta afirmativa, estaríamos perante uma versão contem-porânea da “justitia mediatrix”, em que a justiça deixaria de desempenhar o pa-pel de mediador “vertical” entre ratio e aequitas, entre direito positivo e direito divino, característico de sociedades hierarquizadas e estratificadas, para passar antes, em resposta à crescente diferenciação funcional das sociedades actuais, a estabelecer um equilíbrio “horizontal” entre as exigências (de consistência in-terna) impostas por um direito positivado e as exigências de uma multiplicidade de sistemas autopoieticamente fechados”.

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as regras de base – pressupostos estruturais – que permitem aos outros sistemas uma certa auto-regulação e a desoneração da responsabilidade pelo resultado ao direito. Pois os indivíduos apenas podem encontrar ordem social se existir estabilidade no tratamento de controvérsias inter-disciplinares. O momento presente é de enorme complexidade; mas o sistema autopoiético como paradigma é infinitamente elástico, na medida em que a justificação processual do direito que mobiliza poderá ser sempre aplicada... desde que o direito se mantenha desprovido de sentido e conteúdo ontológico. Com estes desenvolvimentos, o sistema funciona, no seu papel de redutor de complexidade. O sistema é legítimo, porque o seu processo é legítimo. Mas será que é suficiente para a sociedade actual “funcionar”? Ou devemos aspirar a um projecto um pouco mais humano?

IV. Uma tentativa conciliadora, e um juízo crítico do sistema no momento actual

1. A tentativa conciliadora

Desde os anos sessenta do século XX que a visão sistémica não é paradigma sociológico. E apesar dos desenvolvimentos destes dois autores, o seu crédito permanece baixo nos meios académicos – apesar do manifesto interesse nestes modelos por parte de sociólogos alemães e japoneses. Por seu turno, o funcionalismo jurídico sistémico também colhe críticas de variados expoentes do pensamento jurídico internacional. Arthur kaufmann aponta a “fungibilidade” do direito, se este não for visto como mais que um sistema com a função de reduzir a complexidade do mundo, e rejeita-o de forma pragmática – “os frutos do funcionalismo não são benéficos para o direito”109. Entre nós, Castanheira Neves critica não só os moldes teóricos do modelo (a transferência categorial do termo autopoiesis, o tipo ideal que a autonomia do direito configuraria na versão original tudo-ou-nada de Luhmann...) como também, e principalmente, a sua hipotética aplicação como prática juridicional. Aqui remete principalmente para a ausência de validade axiológica e para a ausência do sujeito neste sistema (problema ao qual Teubner tenta dar resposta...), configurando um direito “sem

109 Arthur kauFmann, Filosofia do Direito, 405.

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porquê”, gravemente insuficiente (quando não cai no “absurdo”!) para lidar com a dimensão humana da realidade110 – que o direito apenas conseguiria assumir através da concepção jurisprudencialista...

Pinto Bronze deixa em aberto a possibilidade – que teremos aqui de admitir – de uma alternativa conciliadora (ou antes uma “síntese reflexiva”) da realidade humana (inter-!)subjectiva e comunicacional com o sistema funcional111. Falamos da proposta de Jürgen Habermas – que postula a existência, lado a lado com o “mundo” dos “sistemas racionais” (System), um “mundo da vida” (Lebenswelt) – horizonte de comunicações governadas por uma racionalidade prática (por oposição à racionalidade técnica do System) e por símbolos culturalmente transmitidos e linguisticamente organizados. Aventuramo-nos agora na obra de um sociólogo especialmente prolífico e de obra especialmente complexa – justifica-se, portanto, que exploremos apenas o estritamente necessário para a compreensão desta hipótese (possivelmente) conciliadora.

Seria o “agir comunicacional”112 o motor da constituição (também ela) circular do mundo da vida. A sua consistência (que permite a manutenção da vida quotidiana, de um uso de símbolos semelhantes por gerações diferentes, pela assimilação de símbolos novos sem corromper o acervo já constituído que constitui a cultura) consegue-se na dimensão semântica pela reprodução cultural, no espaço social pela integração e no tempo histórico pela socialização (no sentido de aquisição de competências que permitem a manutenção intergeracional dos padrões vigentes para a vida colectiva – conseguido principalmente pela educação). São patentes as influências de Max Weber, Karl Marx,

110 António Castanheira neves, «O Funcionalismo Jurídico», 281: “Tudo está em compreender que o funcionalismo sistémico se imporia com a irrenun-ciabilidade e a insuperabilidade de «sem porquê»”. E ainda, 315: “Pois é desligado [...] [o direito] de uma sua compreensão de intencional projecto humano-cultural--social em que os homens assumem a sua humanidade convivente num compro-misso de sentido para a praxis social”.

111 Fernando J. Pinto bronze, Lições de Introdução ao Direito, 213: “[...] combina uma dimensão sistémica com uma outra prática, relevando ali a invariância de uma estrutura e aqui a variação imediatamente manifestada pelas acções comunicativas”.

112 Jürgen habermas, The Theory of Communicative Action, I, 286:

“The actions of the agents involved are coordinated not through egocentric calculations of success but through acts of reaching understanding. In commu-nicative action participants are not primarily oriented to their own successes; they pursue individual goals under the condition that they can harmonize their plans of action on the basis of common situation definitions”.

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Talcott Parsons (desde logo, nas dimensões que escolhe...) e da corrente do interaccionismo simbólico neste quadro conceptual. Note-se a aparente estabilidade deste mundo da vida, equilibrado graças aos seus mecanismos de reprodução simbólica. A progressiva diferenciação da era moderna, no entanto, significa que a manutenção do Lebenswelt terá de ser conseguida – e assim se tem verificado – cada vez mais através de consensos dos agentes comunicacionais, conseguidos de maneira arriscada e mobilizando a dimensão do sistema113.

É fácil encontrar refracções desta ideia no quotidiano. O problema da sociedade multicultural vem a precipitar-se em questões como a do racismo (problema decorrente de tradições-preconceitos com origem no Lebenswelt...) que buscam uma resposta-consenso artificial com base no sistema e na sua racionalidade própria. Um exemplo apto seria o das leis de discriminação positiva e quotas que surgem em diversos países relativamente ao acesso ao trabalho e ao ensino superior. Perde-se a decisão individual para se dar lugar a um consenso funcional. Os significados tradicionais separam-se do seu substracto original e concreto, para dar lugar a generalizações, princípios universais, procedimentos de argumentação, valores abstractos... mais englobantes, mais talhados para a vida em sociedade, menos adaptados para as formas concretas e particulares de viver – e vemos o espreitar do problema da colonização do Lebenswelt.

Porquê um problema? O autor é defensor do projecto (inacabado!) da modernidade, que encarna, a seu ver, os valores do Iluminismo – fundamentalmente, a ideia da autonomia do homem como princípio último, a visão de um homem emancipado da tradição e da natureza e cuja única lei é aquela que ele dá a si próprio. Um homem que quer apenas a própria vontade (nos termos de Hegel114) e que é livre para toda a crítica. A normatividade do homem moderno será aquela que ele se impõe a si mesmo na sua liberdade.

Ora, tendo-se visto defraudada a expectativa iluminista do auto-governo da sociedade através das instituições político-administrativas,

113 Jürgen habermas, «O Conteúdo Normativo da Modernidade», 320: “Porque os mundos da vida só podem oferecer um dispêndio limitado de coor-denação e de compreensão mútua, num determinado nível de complexidade, a linguagem corrente tem de ser aliviada por aquele tipo de linguagens que Parsons pesquisou na base do exemplo do dinheiro”.

114 Georg Friedrich hegel, Lectures on the Philosophy of History: “The will that wills itself is the basis of all right and of all obligation, hence of all positive laws, moral duties, and imposed obligations”.

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o Homem vê-se preso por novas correntes. O sistema laboral, o sistema económico, a comunicação social, todas as polities – todos estes se impõem ao indivíduo e não lhe permitem a sua realização. O Lebenswelt vê-se colonizado, e a resposta tendencial tem sido no sentido de uma sobre-reacção do sistema legal, isto é, quantidades extraordinárias de legislação e a criação de novos e cada vez mais especializados subsistemas115. O projecto do Estado Social, que deveria criar condições de simultânea igualdade entre sujeitos e garantir-lhes uma esfera de desenvolvimento autónomo e auto-realização, mostra-se um reduto de burocratização e regulamentação – como forma de impedir os extremos a que a sociedade se veria sujeita, caso fosse dada rédea livre ao Lebenswelt. A juridificação do estado social salva-nos dos conflitos das personalidades individuais (que surgem, em grande parte, devido à ineficácia das comunicações próprias do Lebenswelt no tratamento de questões complexas – que necessitam da linguagem mais complexa e sofisticada que os sistemas providenciam) – mas estando o sistema jurídico desprovido de um medium neutro, à semelhança do capital e do poder, (correspondentes, já desde Parsons, aos sistemas económico e político), apoia-se n’ “uma praxis de singularização dos factos, da normalização e do controlo, cujo poder reificante e subjectivante Foucault registou até às ramificações mais capilares da comunicação quotidiana”116.

Demonstrando a actualidade que a regulação política do sistema económico não é suficiente para impedir os efeitos malignos da externalização dos seus custos para o Lebenswelt, e tendo o Estado Social (o hipotético regulador central...) falhado na sua missão reguladora, Habermas conclui que não será a criação de novos sistemas nem uma maior especificação dos existentes a resposta para o problema da crise actual do mundo da vida... Mas sim a “construção de limiares de inibição na permuta entre sistema e mundo da vida” e a “instalação de sensores na permuta entre mundo da vida e sistema”117. O objectivo será construir os sistemas inseridos no Lebenswelt, funcionando este como uma buffer zone que evite colisões. Os impulsos (input cognitivo...) terão de partir do

115 Jürgen habermas, «O Conteúdo Normativo da Modernidade», 331: “Entretanto, uma rede cada vez mais densa de normas jurídicas, de burocracias estatais e para-estatais, cobrem o quotidiano dos clientes potenciais e factuais”.

116 Jürgen habermas, «O Conteúdo Normativo da Modernidade», 331.117 Jürgen habermas, «O Conteúdo Normativo da Modernidade», 332-333.

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Lebenswelt para a estrutura auto-reguladora dos sistemas. A solidariedade terá de se impor como meio integrativo-regulador, face ao dinheiro e ao poder. Uma sociedade composta por sistemas que, colocados sob controlo pelo mundo da vida, entram ocasionalmente em conflitos fronteiriços uns com os outros – conflitos mitigados pela influência e integração do mundo da vida.

A respeito já do conflito entre sistemas, porém, Habermas dificilmente subscreveria a ideia de Teubner relativa à necessidade de reenvios (muito embora esta última estratégia se revele frutífera como forma de impedir a sobrecarga do Lebenswelt)... na medida em que se revela proponente de uma universalidade inerente ao direito, cedendo-lhe uma posição fulcral no projecto da modernidade e na tarefa de conciliação dos discursos. Universalidade que face à facticidade do pluralismo é apenas possível após um abdicar da validade material – e manifestando-se assim um direito que, muito embora construção da cultura ocidental, demonstra um carácter manifestamente (digamo-lo com Aroso Linhares!) “acultural118, como única forma de acolher sob a sua “asa” as plurais “formas de vida boa” compossíveis na societas actual. Isto implica reconhecer uma efectiva não-existência de fronteiras constituídas por direitos naturais no “reino” da vida social; implica ainda que escolher uma forma jurídica de a regular não consiste em mais que uma escolha da sociedade em particular no seu conjunto plural. A inexistência de absolutos – porque tudo são discursos – implica a inexistência de uma validade (materialmente!) universal (só possível num hipotético retorno ao jusnaturalismo...). E no entanto dizemos que há universalidade... porque admitimos a possibilidade de o procedimento validar o discurso.

Como? É através da regra de argumentação, do seu procedimento específico, que encontramos as rules e os warrants legítimos para reger a pluralidade das formas de vida. É num discurso particular, guiado pelos critérios da “situação ideal de diálogo” (a igualdade de oportunidades e a ausência de constrangimentos) que a universalidade adquire a sua validade...

118 José Manuel Aroso linhares, «O Homo Humanus do Direito e o Projecto Inacabado da Modernidade»:

“No sentido desde logo de reconhecer que tais aquisições, emergindo embora primeiro num determinado contexto civilizacional […] - por razões que podem de resto ser tematizadas […] devem ser levadas a sério como progressos ou desenvolvimentos racionais de uma etapa ou estádio-limite […] e então e assim (uma vez emancipadas da «tradição» que as produziu) responsabilizadas por uma estrutura-framework global”.

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de carácter eminentemente procedimental119 – o único possível, na sociedade descentrada actual. Tendo assim em mente de que se trata de uma solução possível para um problema... averiguamos que se trata do problema da controvérsia prática, com todas as suas idiossincrasias. Teremos apenas de as ver iluminadas pelo farol da teoria da acção comunicativa: como Konstrukte culturais de significado precipitado nas comunicações presentes. Não veremos sujeitos-pessoas, mas sujeitos-Konstrukte; Konstruct será também a societas histórico-concreta em que os inscrevemos, como Konstruct será ainda a ordem-sistema onde se procurará a solução. Os sujeitos, em particular, ver-se-ão despidos da sua unicidade natural; não serão aquilo que eles próprios, na sua história particular, se fizeram, mas sim actores fungíveis e relativos, desempenhando o papel de partes da controvérsia, papel esse ao qual estará atribuída determinada posição e determinadas titularidades, às quais corresponderão – e pela primeira vez neste trabalho os vemos a tomar parte activa no sistema – determinados direitos subjectivos, eles também aquisições culturais, que mobilizarão os significados (historicamente precipitados) a que o terceiro imparcial terá de recorrer como forma de comparar as posições (no contexto de bilateralidade atributiva) das partes conforme elas se inseriram no ordenamento concreto-contextual. Ora os direitos subjectivos não poderão ser aqui mais que símbolos mobilizadores de uma série de significados assimilados pela communitas, na sua expressão actual-contextual. E daí adquirem eles a sua universalidade... mas nunca uma material validade. Esta permanece vedada ao sistema, no contexto actual de pluralismo

2. O juízo crítico

Lembremos os mecanismos propostos por Habermas para enfrentar a crise actual do mundo da vida. Eram eles as “barreiras de inibição” e os “sensores”. Onde encontraremos refracções destes mecanismos numa tentativa actual de mitigar as falhas de comunicação entre o sistema-direito e um mundo-de-vida? Em primeiro lugar, a cada vez maior preeminência dos mecanismos de resolução alternativa de litígios, como a

119 José Manuel Aroso linhares, «O Homo Humanus do Direito e o Pro-jecto Inacabado da Modernidade», 529: “Um discurso (o discurso) que, orientado pelas condições contrafácticas da «situação ideal de diálogo» (ideale Sprechsitua-tion), nos confronta com os desafios da «igualdade de oportunidades» e da «ausência de constrangimentos»...”.

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negociação, a mediação, a arbitragem e a conciliação, permitindo a resolução de controvérsias jurídicas sem a necessidade de submissão total dos factos da vida ao sistema, escusando uma tradução completa para a linguagem jurídica e sem a perda da racionalidade própria do mundo da controvérsia. A colisão entre duas esferas de liberdade pode ser resolvida sem a transição para o nível (ou num nível mais mitigado...) do sistema, libertando assim o indivíduo da tensão de se ver a ele sujeito. Trata-se este mecanismo, indubitavelmente, de um de barreira; impede-se que qualquer controvérsia tenha como destino o tribunal – e assim se reduz sobremaneira o impacto do sistema sobre o Lebenswelt, cada vez maior por conta dos excessos legislativos actuais. Note-se, entre nós, a crescente importância e o expansivo âmbito deste tipo de instituição: começando pela Lei n.° 31/86, de 29 de Agosto, regulando o recurso à arbitragem; mais tarde o grande passo dado pela Lei n.º 78, de 13 de julho de 2001, instituindo a figura dos Julgados de Paz em Portugal, de tramitação processual simplificada, resolução célere e uma procura de papel activo das partes na resolução real do litígio. Mais recentemente, a criação de sistemas de mediação pública, nomeadamente a nível de direito do trabalho (Protocolo entre o Ministério da Justiça e a Confederação da Indústria Portuguesa a 5 de Maio de 2006), de direito da família (Despacho n.º 18 778/2007, de 13 de Julho) e de direito penal (Lei n.º 21/2007, de 12 de Junho), é indicação clara da preocupação actual de encontrar métodos extrajurídicos para resolver questões tradicionalmente encaradas como controvérsias jurídicas – desonerando tanto o sistema como os indivíduos120.

Necessário será ainda fazer menção aos mecanismos de arbitragem internacional... imperativos na medida em que se torna impossível subjugar os estados a uma autoridade mais elevada – a sua pretensão de soberania leva-os a rejeitar a admitida sujeição a um “mero” sistema (de índole necessariamente nacional...) que a aceitação de um processo judicial implicaria (muito embora, por via da internacionalização

120 Já luhmann refere este fenómeno, tão actual:

“Un bon exemple en est offert par la discussion, qui a pris naissance aux États--Unis, concernant la «déjuridicization». Il s’agit là, pour partie, de remplacer des formes spécifiques d’action par des formes de nature différente, par exemple la solution judiciaire de conflits par une conciliation extorquée à l’amiable, et, pour partie, d’avoir le dessein, lié à l’opération précédente, de soustraire au droit, autant que possible, des domaines entiers de la vie.” – «L’Unité du Système Juridique».

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dos sistemas político e económico, os estados se vejam obrigados a cumprir com o “jogo” destes dois discursos...) – e, como tal, o recurso a métodos extrajurídicos para resolver os conflitos de Direito Internacional Público. Na impossibilidade de recurso ao sistema, vemos o aflorar destes mesmos métodos que – hoje – tentamos aplicar ao indivíduo. A impossibilidade de acesso ao sistema conflui com a fuga (lato sensu!) ao domínio do sistema.

A referência à colisão das múltiplas ordens nacionais não pode deixar de nos reenviar à questão (paralela, ainda que pertencente a diferente dimensão...) do pluralismo dos discursos e à proposta de Teubner. Este deixa-nos um apontamento que não tomámos anteriormente mas que se torna neste momento do maior interesse: a referência ao recurso a processos sociais autónomos de inscrição normativa. Consistem estes na procura da resolução de conflitos dentro do seu foro social próprio, através da assimilação da lógica jurídica. A possibilidade de resolver conflitos recorrendo à racionalidade própria do direito... mas sem a necessidade de invocar o sistema. Isto através do recurso a instituições de consultoria ou de conciliação... ou a métodos verdadeiramente auto-determinativos. Pense-se na institucionalização das comissões de ética, nas universidades, nos hospitais, nas grandes empresas, onde se alcança uma verdadeira justiça local, através de regulamentos e procedimentos próprios, sanções para lá do alcance ao mesmo tempo que sempre aquém do direito. Uma verdadeira endocitose da racionalidade jurídica num outro discurso, dotando-o de maior autonomia e dificultando o aparecimento de novos conflitos interdiscursivos... e, do ponto de vista jurídico, o auxílio na construção destas pequenas contra-instituições, que na realidade o desoneram de responsabilidades em domínios altamente específicos. E a justiça torna-se conceito relacional, permitindo uma pluralidade de interpretações e de coexistências121.

Conceito relacional esse que, como no-lo diz o mesmo Teubner122, apenas ganhará com um foco cada vez maior no caso concreto... O direito, na sua universalidade, ver-se-á sempre impotente enquanto verdadeiro interlocutor se insistir na perspectiva macro de normalização social a que uma perspectiva que o identifique com o projecto moderno o amarrará

121 Günther Teubner, «Altera Pars Audiatur», 121: “Les «commissions étiques» au sens plus large sont aujourd’hui les expériences les plus interéssantes en matière de politique de société”.

122 Ver supra.

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sempre. Ou, por outras palavras: o direito não será nunca capaz de conciliar as pessoas com os sistemas, bem como os sistemas entre si, se não largar uma certa tentativa macrorreguladora – e demonstra-se sempre perigoso regular um sistema através de outro sistema. A resposta estará na capacidade particular do direito para dar respostas concretas a problemas (controvérsias) concretos. Mais: de não poder deixar de dar respostas concretas aos problemas concretos que lhe são apresentados (e, eterno retorno! O art. 4.º do Code Civil!). É aqui que reside a sua força particular como discurso conciliador; o potencial iluminista que Habermas atribui ao direito123 apenas se pode concretizar abdicando da ideia de porta-estandarte iluminista e “percebendo que a prioridade do problema-controvérsia (e deste como núcleo gerador do próprio projecto do direito) pode ser recuperada sem pôr em causa a inteligibilidade racional das práticas e discursos envolvidos”124.

Mais que a apologia da praxis, a necessidade de ter em conta os sujeitos nos seus contextos concretos, de ver no caso uma controvérsia irrepetível. Isto sim – a apreensão das realidades da vida quotidiana enquanto expressões únicas de pessoas inseridas num determinado contexto comunitário-cultural, com vista a resolver uma questão de direito – configura uma faceta do tipo sensor da parte do sistema; uma forma de captar a realidade como ela é, sem abdicar da racionalidade própria do mundo e dos indivíduos que o constituem... e de a submeter, num diálogo de aproximação, à visão do sistema. Um sistema, porém, sensível à real posição das partes, encarnado no papel do terceiro imparcial... O problema do pluralismo apenas poderá ser resolvido ao nível das fronteiras do discurso; ora, ao nível das fronteiras, será necessária uma dinâmica de progressiva adequação das comunicações, apenas alcançável se aquele sistema macroscopicamente hipercircular que vimos anteriormente for capaz de, ao nível microscópico em que a controvérsia lhe chega, for capaz de construir uma espiral de constante aproximação125. Não será numa hipotética universalidade que o direito se constitui como o discurso de conciliação neste mundo

123 Jürgen habermas, «O Conteúdo Normativo da Modernidade», 334. 124 José Manuel Aroso linhares, «O Homo Humanus do Direito e o

Projecto Inacabado da Modernidade».125 José Manuel Aroso linhares, «Jurisprudencialismo: Uma Resposta

Possível em Tempo(s) de Pluralidade e Diferença?», 16: “[…] e então e assim a acentuar uma dinâmica de transformação e de irrepetibilidade, que é também de crescimento ou de adequação progressiva […]”.

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plural; mas na sua capacidade de olhar os sujeitos na perspectiva irrepetível que corresponde à sua situação histórico-concreta – quaisquer que sejam os sujeitos (dentro de uma determinada ordem jurídica) e de providenciar uma resposta, plasmando a normatividade que lhe é própria na decisão, mobilizando uma intenção judicativa. O discurso jurídico e a realidade da vida convergem no caso. É ele o prius. É dos casos (das colisões de visão do mundo de cada um... e de cada discurso, a um nível superior) que surge o problema do pluralismo. E no caso terá ele de ser resolvido – em cada um deles.

Perguntar-se-á o leitor que sistema poderá aguentar tamanho renversement das suas premissas iniciais. Está claro que nenhum; e é por isso que aquilo em que desembocamos é numa mudança de paradigma, e uma que consigo trará um novo horizonte de validade... Mas dessa não nos cabe aqui ocuparmos, de bem documentada que está em alheios escritos. Mas que dizer daquela clausura, que daquela autonomia, que daquela autopoiesis? Serão anacronismos face à sociedade complexa e dinâmica que temos hoje perante os olhos? Meras construções académicas da sociologia, sem refracção no entendimento actual do direito?

Qualquer sistema terá sempre de ser visto como uma construção abstracta do sujeito. A lista de axiomas que vimos anteriormente126 é passível de ser facilmente rebatida como subjectiva – “interdependência das partes” mais não é que um reenvio para relações causa-efeito, como apreendidas pelo sujeito, assim como equilíbrio e fronteiras mais não são que uma percepção e um conceito fabricado pelos sentidos. Olhar algo como um sistema não é mais – o próprio acto de olhar o sistema como sistema, antes ainda de o sistema assumir essa função – que reduzir a complexidade do real, como forma de melhor o apreender.

A visão do direito como sistema tem, assim, a virtude de o tornar apreensível enquanto totalidade autónoma. Apesar das vicissitudes apontáveis a cada concepção em particular, a visão de sistema que a sociologia proporciona permite um outro olhar sobre o jurídico, particularmente enriquecedor na medida em que o coloca em relação com as outras áreas da vida. Não pode o jurista, pela própria necessidade de ver os dois lados que o seu papel mobiliza, deixar de se interessar por esta perspectiva alter-nativa das ciências sociais. Não só por uma vontade de autoconhecimento... como de autoposicionamento interdiscursivo. E porque, a aceitar uma perspectiva que procure conciliar o jurídico com um mundo de sujeitos-pessoas e discursos

126 Ver supra, ritzer.

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plurais, teremos de aceitar também que a formação interdisciplinar do jurista é fundamental para uma efectiva aproximação entre os elementos da vida e do jurídico. E mesmo deixando essa perspectiva por uma outra, que procure conciliar um pólo de autonomia-suum com um de responsabilidade perante a commune, colocando a ênfase na controvérsia concreta, o estudo, por parte daqueles que procuram aproximar a vida e a justiça, das várias visões de vida e de justiça mostrar-se-á em cada caso fundamental para uma efectiva realização da validade do sistema (este já outro!).

Se o sistema (aquele, autopoiético) existe? A perspectiva existe; e ele não poderá existir como mais que uma perspectiva. Se traduz uma realidade? É fácil concordar com a autonomia e com a auto-referência constitutiva do jurídico; e as especificações, argumentos e desenvolvimentos que a teoria dos sistemas trazem para o campo são do maior interesse na explicação da subsistência do direito como discurso autónomo e coerente. Mas o direito – digamo-lo com Castanheira Neves – “(...) não existe só para subsistir”127. E mesmo essa subsistência estaria muito dificilmente garantida se o direito se visse desprovido da dimensão que esta teoria lhe nega constantemente – a dimensão de praxis humana dotada de sentido. O direito subsistirá enquanto as sociedades o procurarem como método justo de encontrarem justeza na solução das suas controvérsias. E por muito belo que seja o exo-esqueleto formal de que o funcionalismo sistémico o dota por via das teorias sociais, é através do sentido normativo, da sua orientação para a realização jurídica de uma validade que lhe é própria que o direito adquire a sua autonomia. Haverá algum Homo mais auto-referente que o Homo... Humanus?

127 Cfr. Apontamentos complementares de Teoria do Direito (1988/1989), 38.

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