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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE AMAURI VASSÃO FILGUEIRAS PRESBITERIANISMO EM MUTAÇÃO: O CASO DA CHÁCARA PRIMAVERA São Paulo 2017

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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

AMAURI VASSÃO FILGUEIRAS

PRESBITERIANISMO EM MUTAÇÃO: O CASO DA

CHÁCARA PRIMAVERA

São Paulo

2017

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Amauri Vassão Filgueiras

PRESBITERIANISMO EM MUTAÇÃO: O CASO

DA CHÁCARA PRIMAVERA.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Presbiteriana Mackenzie para obtenção do grau de mestrado.

São Paulo

2017

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F481p Filgueiras, Amauri Vassão

Presbiterianismo em mutação: o caso da Chácara Primavera /

Amauri Vassão Filgueiras – 2017.

128 f.: il; 30 cm Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2017.

Orientador: Prof. Dr. Leonildo Silveira Campos

Bibliografia: f. 123-128 1. Desinstitucionalização 2. Pluralismo 3. Identidade 4. Cultura

5. Conflitos I. Igreja Presbiteriana Chácara Primavera II. Título

LC BX9042.B66

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AMAURI VASSÃO FILGUEIRAS

PRESBITERIANISMO EM MUTAÇÃO: O CASO DA

CHÁCARA PRIMAVERA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Presbiteriana Mackenzie para obtenção do grau de mestrado.

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________________________

Prof. Dr. LEONILDO SILVEIRA CAMPOS

Universidade Presbiteriana Mackenzie

___________________________________________________________________

Prof.ª Dr.ª SANDRA DUARTE DE SOUZA

Universidade Metodista de São Paulo

___________________________________________________________________

Prof. Dr. RICARDO BITUN

Universidade Presbiteriana Mackenzie

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IN MEMORIAM

Aos meus pais e mais do que amigos, Clóvis e Cota, que pela fé, e com muito trabalho, zombaram da realidade quando esta lhes negava os recursos que lhes permitiria presentear aquele menino que começava a ler, tesouros da literatura. O mais precioso, a Bíblia Sagrada...

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AGRADECIMENTOS

A gratidão é o exercício de trazer à memória aqueles que alimentaram nossos

sonhos, viabilizaram nossos projetos e enriqueceram nossa caminhada. Agradecer

é, também, reconhecer que a memória não se lembrou de tantos outros.

Nossa gratidão sincera:

À Igreja Presbiteriana do Brasil, minha segunda casa, onde desde criança aprendi a

buscar e valorizar o conhecimento e, mais do que tudo, a amar a sua Fonte;

À Universidade Presbiteriana Mackenzie, pela bolsa de estudos e pela excelente

estrutura disponibilizada aos mestrandos com seus funcionários maravilhosos;

Aos meus mestres, esses doutores extraordinários, que ofereceram recursos e

experiência com enorme competência num ambiente em que o peso do rigor

acadêmico se misturou à leveza da doçura e do impagável humor tupiniquim;

Aos meus colegas de turma, um grupo em que a rica diversidade sempre esteve

ligada pelos fios inquebráveis do companheirismo e da solidariedade;

Ao meu orientador, Prof. Dr. Leonildo Silveira Campos, que deixou escapar por entre

as brechas de sua incontestável competência e rigor as marcas indisfarçáveis do

pastor que encoraja e anima;

Aos meus filhos, presentes que a graça do ETERNO nos permite desfrutar: meus

lindos Gui, Teté e Gigi, que doaram do precioso tempo que a eles pertencia;

À Mara, minha amada e linda esposa, que com tenaz resistência se opôs a qualquer

alternativa que não fosse a persistência, quando desistir parecia o único caminho;

Ao DEUS Eterno, que se ri de minhas pretensões de aprisiona-lo numa rede de

explicação acadêmica, e cuja graça me faz sorrir de ter feito deste exercício uma

experiência de angústia, aprendizado e prazer. A Ele toda Honra!

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RESUMO

O presente conteúdo é resultado de um esforço multidisciplinar, a combinação de várias lentes por meio das quais se pretende analisar alguns aspectos presentes no processo de mutação do campo religioso da Igreja Presbiteriana do Brasil, IPB. O objetivo geral é reunir, classificar, identificar e avaliar alguns dos elementos históricos, sociológicos e religiosos mais significativos que viabilizem a compreensão da dinâmica das alterações em curso dentro do campo do presbiterianismo conservador. Trata-se da leitura de uma rede eclesiástica que historicamente opera a partir de um rígido controle burocrático com base num sistema conciliar piramidal, uma instituição que se expressa a partir de um espírito de dogmatismo racionalista e rigorismo ético, do que tem resultado uma pronunciada dificuldade de inserção cultural e baixo crescimento numérico em relação a outras igrejas evangélicas brasileiras. Todavia, a denominação tem apresentado sinais de pluralidade, abertura e redução dos níveis de controle e interferência dos concílios sobre as igrejas locais e suas lideranças. Tomou-se como recorte e objeto de análise a Igreja Presbiteriana Chácara Primavera, sediada na cidade de Campinas, SP, que servirá como amostra de um quadro que aponta para a uma reconfiguração do sistema de relações dentro do campo da IPB. Organizada oficialmente em março de 2004, a comunidade chama a atenção por algumas razões: seu crescimento numérico exponencial muito acima dos patamares da denominação, a incorporação de práticas inovadoras em seus ambientes litúrgicos e metodológicos – em comparação com os hábitos da IPB –, a dinâmica adotada na apropriação de temas e ícones culturais com a finalidade de avaliá-los a partir de uma ótica teológica conservadora. Saliente-se, sobretudo, o fato de a Chácara Primavera atuar como um centro de irradiação de um movimento que tem influenciado uma esfera cada vez mais ampla de pastores e líderes presbiterianos, e outros, com respeito à comunicação da visão, conceitos e práticas relativas a processos de plantação de igrejas movendo-se com expressiva autonomia dentro da esfera da IPB. Quanto à metodologia aplicada, optou-se pelo itinerário da pesquisa bibliográfica a partir da análise de livros, teses, dissertações, artigos e documentos gerados pelos concílios da IPB disponibilizados na internet.

Palavras Chave: Desinstitucionalização, Pluralismo, Identidade, Cultura,

Conflito.

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ABSTRACT

The present content is the result of a multidisciplinary effort, the combination of several

lenses through which we intend to analyze some aspects present in the process of mutation

of the religious field of the Presbyterian Church of Brazil, IPB. The general objective is to

gather, classify, identify and evaluate some of the most significant historical, sociological and

religious elements that enable understanding of the dynamics of changes under way within

the field of conservative Presbyterianism. It is the reading of an ecclesiastical network that

historically operates from a rigid bureaucratic control based on a conciliar pyramidal system,

an institution that expresses itself from a spirit of rationalist dogmatism and ethical rigorism,

which has resulted in a pronounced difficulty of cultural insertion and low numerical growth in

relation to other Brazilian evangelical churches. However, the denomination has shown signs

of plurality, openness and reduced levels of control and interference of the councils on local

churches and their leadership. The Presbyterian Church Chácara Primavera, based in the

city of Campinas, SP, was used as a clipping and object of analysis, which will serve as a

sample of a framework that points to a reconfiguration of the relations system within the IPB

field. Organized officially in March 2004, the community draws attention for a number of

reasons: its exponential numerical growth well above the denomination levels, the

incorporation of innovative practices in its liturgical and methodological environments - in

comparison to IPB's habits - the dynamics adopted in the appropriation of themes and

cultural icons with the purpose of evaluating them from a conservative theological

perspective. It should be pointed out, above all, that Chácara Primavera acts as a center for

irradiating a movement that has influenced an ever wider sphere of Presbyterian pastors and

leaders, and others, regarding the communication of vision, concepts and practices to

processes of church planting moving with expressive autonomy within the sphere of IPB. As

for the applied methodology, the itinerary of the bibliographic research was chosen from the

analysis of books, theses, dissertations, articles and documents generated by the IPB

councils made available on the Internet.

Key words:

Deinstitutionalization, Pluralism, Identity, Culture, Conflict.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO. ................................................................................................... 10

Cap. 1 – CHÁCARA PRIMAVERA: ANATOMIA DE UMA GESTAÇÃO ........... 16

1.1.

1.2.

1.3.

1.4.

O problema da historiografia protestante. .................................................

Chácara Primavera: breve narrativa histórica ..........................................

IPB: fragmentos históricos de um campo em mutação..............................

Presbiterianismo brasileiro e desencaixe cultural .....................................

17

25

34

44

Cap. 2 – CHÁCARA PRIMAVERA: ANATOMIA DE UMA IDENTIDADE ........ 53

2.1. Traços da identidade presbiteriana. .......................................................... 55

2.2. Pluralismo e desinstitucionalização: identidades em crise. ...................... 62

2.3. Chácara Primavera: traços de uma identidade contestada. ..................... 72

2.4. Chácara Primavera, IPB e o campo religioso brasileiro............................. 89

Cap. 3 – CHÁCARA PRIMAVERA: ANATOMIA DE UM CONFLITO................ 94

3.1. Campo Protestante: uma história de divisão e conflitos............................ 95

3.2.

3.3.

Campo Presbiteriano: fertilidade para conflitos prolongados. ...................

Chácara Primavera: compreendendo a controvérsia.................................

104

104

3.4 Chácara Primavera o sistema conciliar: crise de autoridade? .................. 110

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................ 120

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................... 123

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INTRODUÇÃO

O conteúdo do presente trabalho resulta de um esforço de identificação e

análise de alguns dos fatores que apontam para o processo de reconfiguração e

realinhamento de forças no interior do campo religioso representado pela Igreja

Presbiteriana do Brasil, IPB. Com o uso da expressão ‘mutação’ se pretende apontar

para um conjunto de alterações que têm ocorrido em órbitas cada vez mais próximas

do centro identitário da instituição, cuja cultura eclesiástica é caracterizada por um

sólido, complexo e elaborado sistema teológico e ético historicamente ancorado e

cristalizado1, e que opera a partir de um rígido aparato de controle burocrático com

base num detalhado corpo de estatutos e leis2.

O presbiterianismo representado pela IPB, que estende suas raízes até à

Reforma e eventos subsequentes no século XVI, chegou ao solo tupiniquim em 12

de agosto de 1859, data em que aportou no Rio de Janeiro o missionário americano

Ashbell Green Simonton. A denominação que segundo dados de sua secretaria

executiva3 contava com 649.510 membros em 2016, se define como uma federação

de igrejas locais interdependentes com sistema de governo representativo conciliar

piramidal hierarquicamente ascendente4: conselhos das igrejas locais, presbitérios,

sínodos e o Supremo Concílio, este o órgão máximo na escala de autoridade e

fórum do qual emanam as decisões definitivas e definidoras das demandas da

denominação.

Sendo assim, a estrutura teológica e organizacional da IPB naturalmente

exibirá reduzido grau de permeabilidade e maleabilidade. Se por um lado tal espírito

serve como elemento de preservação da identidade e coesão institucional face aos

1 O núcleo da identidade teológica da IPB tem sido definido com base nos documentos históricos do século XVI,

a Confissão e os Catecismos de Westminster. Cf. Manual Presbiteriano, p.8.

2 Cf. Manual Presbiteriano com notas remissivas. São Paulo. Editora Cultura Cristã, 2013. A base sobre a qual

se orienta a IPB se encontra no conjunto de documentos do Manual Presbiteriano: Constituição Interna, Código de Disciplina, Princípios de Liturgia, Estatutos e Regimentos Internos dos Concílios e Igrejas, promulgados entre os anos de 1950 e 1951. As resoluções dos concílios bem como as eventuais alterações e necessários ajustamentos não tem modificado a substância de nenhum desses documentos.

3 http://www.executivaipb.com.br/estatisticas/. Acesso em 12/4/2017.

4 “Os concílios guardam entre si gradação de governo e disciplina; e, embora cada um exerça jurisdição original

e exclusiva sobre todas as matérias da sua competência os inferiores estão sujeitos à autoridade, inspeção e disciplina dos superiores”. CI/IPB, Art. 61. Manual Presbiteriano, p. 34.

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vetores da desinstitucionalização e pluralização típicos da modernidade, por outro

lado ameaça a sobrevivência da própria instituição à medida que conspira contra a

mobilidade e possibilidade de ajustamentos e respostas adequadas dentro de uma

moldura cultural que apresenta velozes e radicais transformações.

A atenção do pesquisador foi sendo atraída à medida que a histórica

resistência da estrutura da IPB, condição nitidamente reforçada durante o período

turbulento compreendido pelas décadas de 1960 a 1980, começa a apresentar

níveis significativos de porosidade para infiltração de mudanças. Percebem-se claros

sinais da presença de um panorama de crescente pluralidade nos campos litúrgicos

e metodológicos e elevação no grau de autonomia das igrejas, contribuindo para o

fortalecimento da figura do pastor e liderança local sugerindo uma alteração na

relação de poderes entre os concílios. À guisa de antecipação, o processo de

mutação não significará alteração na rigidez da plataforma de sua agenda moral que

se manterá irredutível com respeito aos delicados temas da pauta da sociedade

brasileira, tais como o aborto e a questão do gênero, por exemplo.

Dentro do quadro geral do campo religioso e cultura institucional tomou-se

como recorte para objeto de análise e como amostra particular de uma tendência

mais ampla a Igreja Presbiteriana Chácara Primavera, sediada em Campinas, SP.

Trata-se de uma comunidade organizada oficialmente em 2004 que tem

experimentado de um crescimento numérico exponencial para os padrões da

denominação, que se movimenta com grande mobilidade e autonomia e cuja visão,

conceitos eclesiológicos e metodologia aplicada no processo de plantação de igrejas

têm sido considerados inovadores em comparação com a dinâmica da instituição.

O ponto de ignição que deflagraria o processo de levantamento das

questões-hipóteses examinadas neste trabalho e que definiriam o eixo temático da

pesquisa pode ser localizado em algum momento durante a reunião ordinária do

Supremo Concílio da IPB5 realizada em julho de 2014 na cidade de Natal, RN6. O

cenário que instigou a pesquisa foi um evento que reuniu mais de mil representantes

de presbitérios, sínodos e autarquias além de outros visitantes, incluindo

5 O Supremo Concílio deve se reunir ordinariamente a cada quatro anos.

6 O autor deste trabalho, pastor da IPB, esteve presente na referida reunião como deputado representante do

Presbitério Leste Sorocabano, tendo acompanhado e participado de todas as seções plenárias do evento. Registro em (ATA DO ATO DE VERIFICAÇÃO DE PODERES DA XXXVIII REUNIÃO ORDINÁRIA DO SUPREMO CONCÍLIO DA IGREJA PRESBITERIANA DO BRASIL) – à pág. 11. Conf. http://se.icalvinus.net/icalvinus.php?d=1497711723586. Acesso em 16/06/2017.

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estrangeiros. Na ocasião foram enviados para exame, deliberação e decisão 849

documentos7, e entre eles alguns que se referiam ao tema Chácara Primavera e

comunidades presbiterianas.

Um dos documentos fora enviado pela Junta de Educação Teológica8 (JET)

órgão responsável por coordenar, supervisionar e administrar a movimentação do

ensino teológico da denominação. Seu conteúdo contestava de forma veemente os

conceitos de eclesiologia aplicados pelo Centro de Treinamento de Plantadores de

Igrejas, CTPI9, entidade que funciona como uma rede de pastores que serve como

braço de irradiação da visão e plataforma do movimento liderado pela Chácara

Primavera. Por razões de ordem protocolar tal documento, solicitando que nenhum

professor do CTPI pertencesse aos quadros dos seminários da IPB, não pode seguir

para exame e deliberação do plenário do Supremo Concílio.

Outros documentos enviados pelo Presbitério e pelo Sínodo Piratininga10

solicitavam a interferência do SC no tocante a alguns procedimentos e práticas

adotados pela Chácara Primavera em seus encontros bem como exigiam que se

cumprisse uma decisão anterior que determinava que a expressão ‘comunidade’

fosse retirada dos nomes das igrejas. Após algumas horas de acalorado debate a

maioria dos representantes do plenário se manifestou contrária a qualquer

intervenção mais drástica, mesmo porque a questão era de competência do

presbitério11 ao qual pertence a Chácara Primavera. A temperatura que envolveu os

debates pode ser, de certa forma, medida pela decisão do presidente do Supremo

Concílio, Rev. Roberto Brasileiro, que “conclamou o plenário para um momento de

oração de joelhos”12.

Este(s) episódio(s) de alguma maneira revelaria o tom das relações entre

os agentes do campo religioso da IPB em torno da Chácara Primavera, de seus

satélites na cidade de Campinas e das ‘comunidades presbiterianas’. Algumas

hipóteses surgem nesse contexto. A primeira delas, a de que está ocorrendo um

realinhamento de forças no interior do campo da IPB que aponta para o

7 http://se.icalvinus.net/icalvinus.php?d=1505710298272. Ata final da Reunião do Supremo Concílio, pág. 54.

Acesso em 13/4/2017.

8 http://se.icalvinus.net/icalvinus.php?d=1497711723586. Ata final do SC, pág. 54. O autor deste trabalho, como

representante no Supremo Concílio teve na ocasião acesso à íntegra do documento supra citado.

9 https://ctpi.org.br. Acesso em 13/4/2017.

10 http://se.icalvinus.net/icalvinus.php?d=1505710298272. Ata final do SC, pag. 125. Acesso em 13/4/2017.

11 A Igreja Presbiteriana Chácara Primavera é jurisdicionada ao Presbitério Metropolitano de Campinas.

12 Ibid.

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enfraquecimento do poder dos agentes defensores do conservadorismo teológico e

metodológico com respeito a questões litúrgicas e metodológicas. Se não se pode

afirmar que haja uma aceitação tácita dos elementos propostos pela Chácara

Primavera, pode-se cogitar de que a maioria dos agentes prefere optar pelo

pragmatismo e pela tolerância ao novo modelo em detrimento a uma eventual

fidelidade à tradição.

Uma segunda hipótese, naturalmente resultante da anterior, se relaciona

com uma possível acomodação e reajustamentos na cultura eclesiástica da

denominação com respeito às relações e exercício de autoridade. O eixo de poder

estaria se deslocando, ainda que não bruscamente, dos concílios superiores para as

lideranças locais, o que indicaria que o sistema de governo estaria se aproximando

do modelo que pressupõe que a autoridade e as iniciativas pertencem às

comunidades locais que se ligam voluntariamente a uma convenção que, nesse

caso, existe para cuidar dos interesses das igrejas locais, e não o contrário.

Uma terceira hipótese se refere ao modo de tratamento das controvérsias

dentro da Igreja Presbiteriana do Brasil, solo fértil para o surgimento e

prolongamento de conflitos em razão da própria configuração estatutária. Presume-

se que está em curso a ampliação dos níveis de tolerância entre eventuais agentes

opostos, muito provavelmente face à distribuição do poder e da pluralização dos

modelos que os conselhos têm adotado para suas igrejas locais.

Quanto ao conteúdo, este se encontra distribuído em três capítulos ajustados

numa relação de interdependência. O primeiro está organizado em torno de um

itinerário histórico cujo objetivo é identificar os principais elementos formativos da

cultura eclesiástica da IPB e da Chácara Primavera. Faz-se uma tentativa de

descrição da narrativa de nascimento e expansão da Chácara Primavera, num

primeiro momento, para em seguida se fazer um recuo às décadas de 1960 e 70 a

fim de oferecer um ponto de referência comparativo a fim de demonstrar que a

comunidade surge num momento de recuo dos níveis de patrulhamento ideológico e

eclesiástico. Finalmente, procede-se a um sobrevoo sobre o período histórico de

formação da identidade presbiteriana, uma tentativa de recolher elementos que

possibilitem compreender as razões por detrás da relação ambígua da denominação

diante dos elementos e traços culturais típicos da cultura tupiniquim.

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O segundo capítulo inicia com uma tentativa de descrever os elementos

básicos constitutivos do conjunto de forças que operam na pós modernidade

responsáveis pelo desmanche e pulverização das velhas identidades, moldura

dentro da qual as identidades do presbiterianismo conservador tanto quanto da

Chácara Primavera são construídas. Na sequencia busca-se descrever os traços

identitários do presbiterianismo conservador representado pela IPB para logo a

seguir tratar da identidade contestada da Chácara Primavera.

O terceiro capítulo se destina à avaliação das causas por detrás das

controvérsias típicas de uma instituição como a Igreja Presbiteriana do Brasil. Num

primeiro estágio recolhem-se fragmentos históricos que permitam uma visualização

geral a respeito do cristianismo e seu potencial para a geração de controvérsias e

divisões. Num segundo momento são apresentados alguns elementos que

demonstram os processos de alongamento cronológico das disputas internas no

campo presbiteriano. A seguir avaliam-se alguns argumentos específicos usados

nas declarações de censura e tentativas de demonstrar que a Chácara Primavera é

uma descaracterização da identidade presbiteriana. Finalmente, procurou-se em

nossa pesquisa verificar a existência de indícios de que a IPB estaria

experimentando de um lento processo de enfraquecimento de sua estrutura conciliar

à luz do que tem ocorrido com as comunidades presbiterianas.

A despeito das naturais limitações das teorias explicativas dos fenômenos

religiosos foram adotadas contribuições tais como a perspectiva de reconstrução

histórica do presbiterianismo oferecida por Antônio Gouvêa Mendonça. De alguma

forma se usam as lentes de Stuart Hall, Anthony Giddens e Zygmunt Bauman para a

leitura do cenário da pós-modernidade – hipermodernidade ou modernidade tardia –

mais especialmente no que se refere ao processo de desinstitucionalização e

desmontagem de identidades antes consideradas unificadas. Pierre Bourdieu

oferece a plataforma primária para análise das relações controversas e de conflitos

do campo religioso, no caso o sub campo presbiteriano. Ricardo Mariano e Daniele

Hervieu-Léger oferecem pistas essenciais para a compreensão do fenômeno

religioso no que diz respeito aos desigrejados ou na linguagem do Censo

demográfico de 2010 “evangélicos não determinados”.

Com respeito à metodologia empregada circunstâncias obrigaram a restringir

a pesquisa no âmbito da coleta de material bibliográfico. Registre-se que após um

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primeiro encontro muito produtivo com o pastor Ricardo Agreste da Silva, fundador e

pastor da igreja desde o começo do trabalho, não foi possível a realização de outros

encontros e nem mesmo de contatos por outros meios a partir dos quais fosse

possível diversificar as técnicas de seleção de material. Foram feitos inúmeros

contatos via e-mail com a secretaria da igreja na tentativa de entrevistar o pastor

local – chegamos a sugerir conversas por meio da plataforma Skype. Nada obstante,

o pastor gentilmente colocou à disposição a estrutura de secretaria e gestão da

igreja para prestar as informações de que precisávamos o que foi feito via e-mail.

Salientem-se outros aspectos do processo de identificação, seleção e análise

do material que foi coletado ao longo da produção deste trabalho. Em primeiro lugar,

a tarefa seria facilitada pelo fato de o autor, pastor presbiteriano, conhecer há mais

de dez anos pessoalmente a dinâmica dos encontros de funcionamento da Chácara

Primavera. Em segundo lugar, desde os passos iniciais havia sido definido que o

esforço principal se daria a partir de uma ênfase bibliográfica. Assim, foram reunidos

artigos, obras, teses, dissertações, e documentos que construíram a plataforma da

pesquisa. Finalmente, existe farto material disponível na internet na forma de vídeos,

áudios e outros, seja na própria página da igreja13.

Finalizando, a discrição e uma considerável invisibilidade do presbiterianismo

nas duas últimas décadas, em relação com alguns períodos na história do

protestantismo brasileiro e na comparação com os movimentos pentecostal e

neopentecostal, têm contribuído para a relativa ausência de interesse dos

pesquisadores em visitar vez por outra o campo da IPB. Tem havido algumas

poucas iniciativas dentro dos cursos de pós-graduação em sua maioria viabilizadas

por pesquisadores que de alguma forma se relacionam com o campo presbiteriano

sobre o qual escrevem. Daí ser importante reconhecer a necessidade de se fazer

um esforço extra de seguir os conselhos propostos pelos epistemólogos a respeito

dos cuidados que se deve ter com uma participação não crítica. Logo, como ensina

Henri Desroche (1984) os que estão próximos do objeto analisado devem se

distanciar e os que estão longe devem dele se aproximar. Reconhecemos, contudo,

que no decorrer da pesquisa as dificuldades sempre presentes motivaram a adoção

de uma ‘vigilância epistemológica’.

13

Além da página www.chacaraprimavera.org.br poderão ser encontrados centenas de vídeos num canal do

Youtube, https://www.youtube.com/user/chacaraprimavera.

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CAPÍTULO 1

CHÁCARA PRIMAVERA: ANATOMIA DE UMA

GESTAÇÃO

A compreensão dos fenômenos históricos e sociais depende, na maioria das vezes, do percurso de longos e sinuosos caminhos (Antônio Gouvêa Mendonça).

INTRODUÇÃO:

A gênese, o florescimento e a exponencial ampliação das áreas de influência

da Chácara Primavera, suas práticas inovadoras, mobilidade e autonomia chamam a

atenção não apenas para sua visibilidade numérica e para o seu formato

contemporâneo, mas para a possibilidade de ser um sinal de que a Igreja

Presbiteriana do Brasil, denominação à qual pertence, experimenta de significativas

mudanças em sua cultura organizacional fruto de longa gestação histórica.

A compreensão de uma nova dinâmica e as eventuais projeções que se

queira fazer dependerão de bem mais do que a indispensável observação de um

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lugar privilegiado do presente. Impõe-se um recuo histórico que permita identificar,

selecionar e avaliar os principais elementos sociais, religiosos e culturais que

possam ser agregados ao esforço de análise empírica. Este será o objetivo

essencial deste capítulo.

O itinerário proposto seguirá algo como uma engenharia histórica reversa que

parte de uma tentativa de reconstrução dos principais eventos e pensamentos

envolvidos diretamente da formação da Chácara Primavera para seguir recuando.

Segue-se uma tentativa de descrição dos eventos históricos e sociológicos

presentes no processo de mutação do campo presbiteriano no período entre as

décadas de 1960 e 90, período que comporta dois momentos radicalmente distintos

com respeito às circunstâncias sociais, ideológicas e políticas. Em terceiro lugar

propõe-se um voo panorâmico sobre o protestantismo de missão que se instalou no

Brasil a partir do século XIX e que representaria a contradição de um

presbiterianismo que sai de uma nação como portador da modernidade, mas que em

razão de causas complexas se alienaria da cultura tupiniquim.

O que se espera ao final deste capítulo é prover um quadro mínimo de fatores

de cunho histórico-social que ofereça condições para uma compreensão mais

adequada do processo de alterações do campo presbiteriano bem como uma

avaliação mais aproximada da construção identitária da Chácara Primavera e das

controvérsias na relação desta com alas conservadoras da IPB.

1.1. O problema da historiografia protestante

O processo de clivagem, seleção e análise dos fatos e dos pensamentos que

historicamente têm formatado a cultura organizacional da IPB enfrentará muitos

desafios além daqueles que estão ligados à questão das fontes e ao grau de

fidelidade da transmissão pelas diversas vias. Segue-se, quase como uma digressão

explicativa do método, um sobrevoo panorâmico sobre o campo da historiografia

protestante, suas alternativas e limitações.

Saliente-se, em primeiro lugar, que o processo de reconstrução historiográfica

em geral está sujeito a muitas variáveis e fluidez metodológica. Ainda que se

reconheça que a partir da década de 1970 tem ocorrido algo como um refinamento e

mesmo afinamento teórico a partir da combinação de outras lentes das ciências

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humanas, tal como o faz a chamada História Cultural ou Nova História Cultural,

todavia mesmo aqui a confiabilidade é relativa. Trata-se de uma abordagem do

objeto e da seleção dos fatos e do pensamento orientadas por elevado grau de

condicionamento (BURKE, p. 32). Longe de apresentar uma prática discursiva

unificada, o conjunto de reconstrução histórica chamado de História Cultural é um

campo dinâmico e muito controverso de estudos e proposições teóricas, cujas

propostas contêm perguntas sofisticadas e desafiadoras (BELLOTTI, p. 15).

A historiografia protestante seria por muito tempo relegada a um subitem

dentro do campo religioso brasileiro mencionada sempre em contraposição ao

catolicismo e dele dependente para os interesses de pesquisa. Não é de estranhar

que assim o seja, considerando um campo religioso que por séculos foi

caracterizado por uma expressão monolítica. Antônio Gouvêa Mendonça, em

palestra proferida para historiadores em 2004, destacava que “a historiografia

brasileira relega o protestantismo ao segundo plano, ou mesmo o ignora, enquanto a

literatura mundial é plena sobre o protestantismo” (2004, p. 02).

Considere-se, também, a extensão ou cobertura explicativa do termo

‘protestantismo’, que tem sido utilizado de forma bastante elástica capaz de

comportar muitas variações sem uma clarificação conceitual. As ramificações que se

tornariam cada vez mais expressivas, desdobramento natural da proposta da

Reforma Protestante, de alguma forma mantinham pontos e elementos de contato

que justificariam uma categorização mais abrangente e genérica. Contudo, o quadro

atual do movimento evangélico brasileiro parece justificar o protesto de Rubem Alves

(1979, p. 27) um dos primeiro autores, se não o primeiro, a tentar demonstrar a

insuficiência dessa definição cristalizada que não resistiria em razão de tantas

distinções e idiossincrasias. Melhor seria se referir à coexistência de vários

protestantismos.

Entre os anos 1950 e 60 os poucos trabalhos produzidos se referiam ao

protestantismo histórico de missão dentro do qual se enquadra o presbiterianismo.

Na avaliação de Mendonça (1984, p. 12) foram pouquíssimas as obras produzidas

até o começo da década de 1970 que podem contribuir para uma leitura sociológica

ou que sirvam como plataforma de avaliação da relação das instituições com a

sociedade ou cultura. A maioria delas possuía objetivos eclesiásticos.

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Outro elemento que agrega dificuldade ao processo de reconstrução

historiográfica diz respeito ao próprio objeto de estudo. Considere-se o

distanciamento histórico que separa a IPB e sua cultura organizacional de seu ponto

alfa ou fundante. O presbiterianismo estende suas raízes até a Reforma do século

XVI com Lutero e deriva, mais especificamente, da construção do pensamento de

João Calvino (1509-1564) e das formulações do modelo de governo eclesiástico

desenvolvido por John Knox (1514-1572) na Escócia puritana.

Considere-se o fato de que o protestantismo de viés presbiteriano não é um

tipo de novelo histórico e religioso cuja ponta seja fácil de localizar, como bem

assinalaria Mendonça (1984, p. 255) em seu esforço por responder às questões

ligadas à invisibilidade do protestantismo de missão de recorte presbiteriano em

relação à cultura brasileira:

Não foi fácil dados os trilhos, atalhos e encruzilhadas que frequentemente pareciam conduzir a lugar nenhum. Tive que ir selecionando e puxando as pontas do tecido emaranhado das ideias religiosas que, a partir do século XVI, vão se encaminhando para formar um protestantismo cansado e diluído como o brasileiro.

À dificuldade assinalada junte-se o desafio da neutralidade e da objetividade.

Carlos Siepiersky (HINSON/SIEPIERSKY, 1992, p. 09) destaca que “provavelmente

a grande contribuição da história como ciência é nos mostrar que toda a narrativa

histórica é sempre vista de uma perspectiva”. Seja qual for o método adotado todos

serão de alguma forma seletivos, muito em razão do que salienta Marc Bloch: “a

diversidade dos testemunhos históricos é quase infinita. Tudo que o homem diz ou

escreve, tudo que fabrica, tudo que toca pode e deve informar sobre ele” (2001,

p.80). A seletividade é, por assim dizer, inevitável.

Michel Certeau (2002, p. 81) ressalta que toda pesquisa historiográfica está

sujeita a interesses e determinadas imposições que poderão estar ligadas a

privilégios:

Em história, tudo começa com o gesto de separar, de reunir, de transformar em 'documentos' certos objetos distribuídos de outra maneira. Isso demonstra que toda operação historiográfica irá retalhar o tecido da história, para constituí-lo de uma outra forma, segundo seus objetivos próprios, estabelecidos a priori. Portanto, o historiador, longe de aceitar os "dados", os constitui. E disso resulta o seu "material", que é criado por ações combinadas, que o recortam e o destinam a ser um ―reimpresso coerente.

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Se a seletividade na identificação de material é um processo inevitável, um

risco adicional é a possibilidade de que este poderá ser, também, ajustável. O

espaço da construção ou reconstrução historiográfica se torna quase sempre um

campo de batalha pelo resgate das memórias, espaço de disputa pela legitimação

que ameaça os valores básicos da metodologia científica. Ao que se pretende que

seja informação de fatos surge a contrainformação, se o alvo perseguido é legitimar

uma dada versão.

É de se esperar que os períodos mais turbulentos e conflituosos dentro de um

dado campo religioso, como foram as décadas de 1960 e 70 na IPB, reflitam essas

tendências de maneira mais intensa. Um dos exemplos das contradições entre as

versões é encontrado na introdução de uma das obras de Boanerges Ribeiro a

respeito do presbiterianismo brasileiro. Ribeiro, historiador que havia sido presidente

do Supremo Concílio da IPB entre os anos 1966 a 1978, assim se refere a um de

seus adversários:

Há anos li uma obra cujo autor se propõe a historiar 50 anos recentes do presbiterianismo brasileiro. Com surpresa, lá me vi mencionado e pintado de anjo mau: Eu havia, em 1962, proposto ao Supremo Concílio a extinção da Confederação da Mocidade Presbiteriana, afirma o autor. Como teria ele excogimado essa tolice? Nunca propus ao Supremo Concílio (nem a ninguém) a extinção de Confederação alguma. Não compareci à reunião de 1962, do Supremo Concílio, nem lhe mandei proposta sobre Confederação alguma... Moral: se você quer fazer História Protestante no Brasil, documente, e cite suas fontes (1987, I).

Em tempo, no exemplo acima Ribeiro também não se daria ao trabalho de

citar a obra ou o autor a quem ele se refere.

A verdade é que até bem pouco tempo o esforço historiográfico protestante se

resumia simplesmente à coletânea de fatos, eventos e registro dos discursos e dos

pensamentos a partir de duas formas de olhar com propósitos antagônicos. De um

lado o uso da lente apologética com finalidades eclesiásticas, que certamente irá

privilegiar os conteúdos que servirão para consumo interno a serviço da

confessionalidade utilizados para legitimar o discurso institucional. De modo

contrário à visão acima descrita, há aquele processo de identificação e seleção de

eventos que servirá ao propósito de contestação, que em alguns momentos

assumirá tons de intensa beligerância de um tipo de guerrilha ideológica.

Seja como for, o que se tem são modelos a serviço dos agentes em sua luta

pela legitimação da estrutura, de um lado, e que se prestam como armas dos que

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contestam a realidade. Como declara Tiago Watanabe (2007, p. 19), “a historiografia

do protestantismo foi produzida pelos que estavam direta ou indiretamente

envolvidos numa disputa institucional: não só narrou essa disputa como tomou

partido de algumas posições”.

Um modelo dessa natureza estará sujeito a riscos inevitáveis, pois uma das

faces de uma dada história é que ela costuma ser apenas uma versão de uma

narrativa maior cujos elementos com ela conectados e que lhe dariam sentido geral

são ignorados. Não se trata de um tipo de ficção, ou criação de fatos inexistentes,

mas de usar os recursos de edição por meio de cortes e ênfases para lhes dar a

conotação que se deseja. Até à década de 1960, destaca Watanabe (2007, p. 03), a

maior parte dos estudos era realizada por clérigos cujas obras privilegiavam o

aspecto descritivo e enaltecedor das personagens em razão de se prestarem a

finalidades eclesiásticas. Enquadra-se na moldura mais ampla da disciplina da

‘História’ que até o início do século XX era elaborada a partir de relatos de “grandes

fatos” em que personagens históricos tornavam-se verdadeiros heróis do passado

(MICELLI, 1999).

Nesse viés eventos tornavam-se magistrais e, a partir de sua documentação,

“oficialmente verdadeiros”. Selecionam-se os fatos, constrói-se a realidade e se dá a

ela uma versão incontestável a partir do enaltecimento dos feitos heroicos e

magistrais, uma história dos vencedores. Mendonça (2004, p. 03) assim se refere às

publicações produzidas pelas denominações:

Essas publicações têm padecido de três tipos de obstáculo que as vêm impedindo de penetrar no círculo dos historiadores profissionais: primeiro, trazem, quase todas, as marcas do denominacionalismo triunfalista, assim como uma linguagem hermética de grupo porque são escritas para consumo interno; segundo, porque não dialogam com a cultura brasileira; terceiro, porque são publicadas por editoras domésticas e, por isso, não alcançam as áreas acadêmicas.

Lauri Emílio Wirth (2003, p. 107) afirmará que “os interlocutores dessa

memória sempre são sujeitos qualificados, institucionalmente legitimados e

autorizados” Dentro dessa moldura é natural que surja a figura do ‘historiador oficial’

que, inversamente à condição de um ombudsman, tem como função recolher e

organizar os relatos a partir da necessidade da criação de uma versão ou narrativa

que ofereça a base de plausibilidade e legitimidade da estrutura.

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Aquilo de fala Wirth representa o fato de que os relatos paralelos que não

possuem o selo da instituição não possuem a credibilidade emitida por um tipo de

autoridade cartorária para dar fé ao registro. Boanerges Ribeiro (1987, II), que fora

presidente do Supremo Concílio da IPB e num período seu historiador oficial,

ressalta que ao escrever uma de suas obras a respeito do presbiterianismo deseja

fugir do hábito de escrever algo como “história inspirada”, ou seja, obra “em que o

autor se imagina continuador dos Atos dos apóstolos e afirma, nos eventos, a

revelação de Deus”.

O fato é que o desafio da neutralidade não afetará apenas a historiografia

produzida para os propósitos da instituição, mas igualmente aqueles que dela

discordam ou a ela contestam. Leonildo Silveira Campos (2008, p. 103-104) ressalta

esse ponto em artigo no qual analisa a obra de Rubem Alves ‘Protestantismo e

Repressão’, trinta anos após sua primeira edição. Cabe salientar que Alves fora

pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil, sendo exilado eclesiasticamente durante os

turbulentos anos do regime militar que prevaleceu no Brasil.

Ao longo deste artigo pretendemos levar em consideração uma frase de Pierre Bourdieu (2005:40): “compreender é compreender o campo com o qual e contra o qual cada um se fez”. Daí a proposta: analisar o entorno da produção de textos como o de Alves; trazer de volta um debate sobre a questão da neutralidade científica no estudo das organizações religiosas nas quais muitos autores são também atores... De qualquer forma consideramos que o livro de Alves foi escrito com toda a paixão de um polemista, embora ele tenha tentado se manter nos domínios do acadêmico e do científico.

Apenas para registro en passan, a expressão ‘exilado eclesiasticamente’ no

caso de Alves e de tantos outros poderá ser avaliada a partir de duas lentes, aquela

fornecida pela instituição com sua eventual coloração e, do outro lado a que se opõe

à organização. De uma forma ou outra se trata da utilização de filtros ideológicos

que darão colorações diferentes ao mesmo fato ou relato.

A década de 1970 seria marcada por uma considerável mudança de

paradigma no campo da historiografia protestante. Como uma via alternativa à

versão produzida nos domínios e para os interesses denominacionais surgirão

esforços de construção historiográfica a partir do ambiente das academias no rastro

da implantação de cursos de sociologia da religião. Uma das marcas desse período

é a interdisciplinaridade, o intercâmbio entre as várias áreas de domínio dos

sociólogos, antropólogos e pesquisadores da religião o que permitirá uma ação

colaborativa de vários olhares. Cabe salientar que esse novo paradigma se tornaria

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uma das ferramentas para a análise dos processos fundantes do movimento

evangélico que a partir da década de 1980 começaria a experimentar de

crescimento espetacular tornando-se um fenômeno cada vez mais plural, complexo

e difuso.

Destaque-se nesse ponto a contribuição de Antônio Gouvêa Mendonça que,

nada obstante pertencer aos quadros do presbiterianismo brasileiro (foi pastor da

Igreja Presbiteriana Independente do Brasil, IPI) romperia com o cativeiro

hagiográfico eclesiástico que se perceberia na produção de uma obra na qual uniu o

rigor metodológico com uma farta e densa pesquisa bibliográfica e documental. Seu

objetivo visava compreender os processos que conduziram a um afastamento do

protestantismo dos processos culturais e políticos. (SOUZA, p. 172).

O estudo do protestantismo agora inserido na academia e não mais objeto exótico, não foi feito só com o apoio de igrejas. O autor se inseriu no debate propondo resolver problemas sem respostas: as causas para o distanciamento político e cultural do protestantismo (WATANABE, 66).

Outra contribuição digna de nota é a obra do francês Émile G. Léonard, ‘O

Protestantismo Brasileiro’, que fugiria do lugar comum por meio de prover uma

abordagem no campo da história social religiosa avaliando as relações eclesiásticas

com o corpo social e religioso brasileiro (1981, p. 16). Mendonça (2004, p. 3),

respeitosamente, considera que a despeito de ser a primeira obra da historiografia

escrita para fora “não chegou a atingir a plenitude do diálogo com a sociedade

brasileira”.

Paradoxalmente, este novo campo de pesquisa se encontra emoldurado por

um novo tempo, e por isso mesmo será bastante povoado por ex pastores que ali

encontrarão espaços para sobrevivência. Uma das razões é o fato de que as

décadas de 1960 e 70 seriam marcadas por turbulências, polarizações e expurgos

de lideranças dentro do campo religioso do protestantismo histórico por razões

ideológicas e teológicas (SANTOS, p. 234). Esta seria uma das causas apontadas

por Ricardo Mariano (1999, p. 93) por detrás do processo de inauguração de uma

historiografia de contestação que ocorrerá a partir de um olhar crítico, pela seleção

de fatos comprometedores e que passará pelo uso de um discurso ácido e virulento,

algo como um tipo de acerto de contas com o passado:

Os cientistas que se dedicaram a fazer uma análise crítica do Protestantismo são, todos eles (na medida em que conheço), ex-pastores, ex-seminaristas,

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ex-líderes leigos forçados a deixar suas funções. Não se encontra em seus trabalhos a atitude amorosa que marca, por exemplo, os relatos de E. Léonard. Os trabalhos, sem exceção, procuram as relações do Protestantismo com os processos de invasão cultural e ideológica que marcaram a expansão colonial norte americana. O protestantismo é analisado como uma ideologia repressora, totalitária, capitalista, que se encontra em casa num Estado capitalista e totalitário.

A questão que inevitavelmente se levanta: haverá algum método que ofereça

garantias mínimas de isenção no processo de investigação histórica? Considerando

o que foi acima exposto, e a despeito das limitações de quaisquer métodos, um

modelo próximo do oferecido pela História Cultural oferecerá uma plataforma com

menores riscos, ainda que os certamente os haja. Isso porque a abordagem busca

se desvencilhar do cativeiro cronológico, antes, volta-se para a conexão dos fatos e

de sua relação com as ideias e circunstâncias do momento e contexto. Trata-se de

um eixo orientador que possibilitará uma abordagem que favorece os propósitos de

proceder a uma hermenêutica histórica, esforço de aproximação daqueles fatos e

pensamentos significativos que ao longo do tempo plasmaram a cosmovisão, a

estrutura e a cultura organizacional. Como salienta Eliane Moura da Silva (2004, p. 1)

num simples, mas denso artigo a respeito da religião, diversidade e valores culturais:

O pensar religioso também pode ser colocado no domínio da História Cultural que tem na definição básica do historiador Roger Chartier, o objetivo central de identificar a maneira através da qual, em diferentes tempos e lugares, uma determinada realidade social é construída, pensada e lida.

Assim, em que pese a presença de uma inegável gama de dificuldades,

espera-se poder coletar os fatos e pensamentos mais significativos dos relatos, fatos

e eventos ligados ao presbiterianismo que viabilizem o processo de compreensão

das mutações desse campo religioso e estrutura institucional. Igualmente, condições

adicionais poderão ser fundamentais para a compreensão dos conteúdos dos

próximos capítulos que tratam da questão da identidade e das controvérsias nas

relações da Chácara Primavera com alguns setores mais conservadores da IPB.

Visto ter Mendonça alertado com respeito às dificuldades de se localizar as

pontas desse emaranhado de fatos e eventos, adotaremos como ponto de partida

um quadro de referência histórico delimitado pelas décadas de 1960 a 90 para dali

recuar ao ponto alfa de lançamento da matriz do presbiterianismo. Este possui

várias camadas de depósitos de origem social, religiosa e ideológica que lhe

formataram a cosmovisão e cultura organizacional.

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Resolvemos iniciar a caminhada apanhando os fios que estão à mostra e

puxando os eventos e pensamentos determinantes que estão mais próximos, o que

concede a eles o privilégio de exercer influência direta para seguir vasculhando

camadas mais antigas. Afinal, quando se apela para a tradição composta de tantas

camadas, à qual delas é feita a referência? Em que nível poderá a Chácara

Primavera apelar para a história a fim de se projetar como uma comunidade cuja

identidade seja de fato portadora das marcas de uma igreja reformada?14

1.2. Chácara Primavera: breve narrativa histórica.

Aqui não caberia o termo ‘história’ quando se considera o que afirma Michel

Certeau (2002, p. 15) de que a operação historiográfica pode ser considerada como

um discurso sobre um outro que não mais existe. No caso da Chácara Primavera

não se poderá falar de impossibilidade do passado se pronunciar diante da narração

de sua própria história.

Como antecipado na introdução, as informações foram coletadas a partir de

três abordagens: o depoimento colhido do pastor Ricardo Agreste da Silva, um dos

fundadores e pastor efetivo da igreja, por meio de informações oferecidas pela

secretaria da Chácara Primavera e, grande parte, coletadas dos dados

disponibilizados nos conteúdos da internet. Cabe salientar que o próprio Agreste

informou que pouca coisa foi sendo registrada dos fatos localizados no período

anterior à organização oficial da igreja.

A Chácara Primavera identifica e celebra a sua data de fundação o primeiro

domingo de março de 200115, embora para os padrões constitucionais da IPB a data

oficial é a da organização da congregação16 em igreja, 14/03/2004, momento em

que a comunidade adquire personalidade jurídica. O momento histórico em questão

encontra a IPB experimentando sinais de flexibilidade em relação à religiosidade de

novas igrejas que em grande parte resulta do fluxo de membros no contato com

14

O conceito mais amplo de uma igreja reformada: herdeira dos movimentos liderados por Zuínglio, Calvino, John Knox e seus sucessores, que adotaram em questões de fé e governo uma posição intermediária entre luteranos e anglicanos, de um lado, e dos anabatistas e entusiastas, do outro. No seu sentido mais amplo, a tradição reformada inclui aspectos teológicos, éticos, filosóficos, sociais e políticos.

15 Conf. https://www.youtube.com/watch?v=X2TIozULAPs.Vídeo. Acesso em 18/05/2017.

16 Congregação é o termo utilizado na Constituição da IPB e que se refere a uma comunidade que

ainda não possui condições econômicas e de liderança para ser organizada em igreja. Cf. Constituição da IPB, artigos 1 a 6.

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novos ambientes, como as chamadas comunidades evangélicas que emergiram no

final da década de 1980 (Érika Giesbrecht, 2001, p. 7).

Assim, a Chácara Primavera surge no contexto da assimilação das igrejas

históricas como a IPB de algumas inovações, tais como os chamados ‘grupos de

louvor’, prática inserida pelas comunidades evangélicas que produzirão e utilizarão

maciçamente de cânticos contemporâneos e que começam a ser inseridas na

agenda litúrgica das igrejas. As referidas inovações penetram os ambientes dentro

dos quais prevalecia a solenidade e serenidade das peças melódicas e poéticas

presentes nos hinos sacros. Instrumentos considerados ‘mais profanos’, tais como

percussão, guitarra e contrabaixo, foram sendo assimilados gradativamente – não

sem muita guerra santa e a percepção de que a igreja havia apostatado.17

Ressalte-se, portanto, que as sementes do que se tornaria a Chácara

Primavera seria lançadas sobre um solo que começa a ser fertilizado por outros

conteúdos inovadores, o que de certa forma favoreceria o crescimento da

comunidade num ambiente de níveis mais amenos de resistência institucional.

A pesquisa realizada por Giesbrecht sobre o campo presbiteriano na cidade

de Campinas ocorreria no começo dos anos 2.000 e apontou para um cenário que

de alguma forma refletia a porosidade que facilitaria a inserção de inovações:

Não é mais possível afirmar que a Igreja Presbiteriana do Brasil é tão tradicional e rígida. Ela apresenta agora uma nova configuração, na qual a proposta do grupo dos avivados é tolerada. No Presbitério de Campinas existem igrejas que adotaram estas propostas e não foram desligadas de denominação. No Seminário Presbiteriano do Sul chegou-se a interpretar o avivamento, tanto das igrejas presbiterianas como das igreja protestantes históricas, como uma nova forma de vivenciar o mesmo conteúdo evangelístico. (2001, p. 07).

Saliente-se que a Chácara Primavera não se enquadra na tipologia de uma

igreja ‘avivada’, adjetivo mais adequado para aquelas igrejas que se aproximam

liturgicamente das comunidades pentecostais ou das chamadas comunidades livres.

Pelo contrário, à medida que cresce em visibilidade e se expande se perceberá que

a despeito da utilização de conteúdos contemporâneos o ambiente de culto é

caracterizado por uma expressiva calmaria e racionalidade.

17

O autor desse trabalho conheceu de perto esse período e as evoluções processadas no campo litúrgico.

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Seguindo a cadeia de eventos proposta pelo pastor Ricardo Agreste18 tome-

se como pré-história ou tempo de encubação do que viria a se tornar a Chácara

Primavera o período compreendido entre os anos 1995 e 96. Agreste havia exercido

o pastorado na Igreja Presbiteriana de Pirituba, bairro da zona norte de São Paulo

entre os anos 1987 e 94 e seguira para os Estados Unidos para um curso de

mestrado no Calvin Theological Seminary (Grand Rapids, Michigan), uma

prestigiada instituição calvinista. A combinação de dois fatores deflagraria o que se

poderia chamar de uma nova visão conceitual a respeito da natureza da igreja e de

sua relação com a sociedade.

O primeiro fator é localizado na interface entre dois universos acadêmicos, o

secular e teológico. Os primeiros meses de sua estada nos EUA foram reservados

para o aprendizado da língua inglesa numa universidade que permitiu a Agreste a

oportunidade de relacionar-se mais profundamente com um hindu e um muçulmano

e experimentar o que chama de choque de cosmovisões. Já no Calvin ele teria

motivos para reforçar sua percepção a respeito das limitações da linguagem

utilizada pelas denominações históricas em relação à cultura pós-moderna.

Um segundo elemento de influência e fator preponderante da mudança de

visão, admite Agreste em seu depoimento, resulta do encontro com o pensamento

de Lesslie Newbigin, missiólogo britânico (1909-1998). Muito do conteúdo desse

missiólogo gira em torno do tema do pluralismo presente na sociedade ocidental e

da urgente necessidade de a igreja adotar conceitos e ferramentas para o

estabelecimento de um diálogo o universo pós-moderno. (2016, p. 17). Newbigin

havia servido por muito tempo como missionário na Índia, e ao retornar à Inglaterra

em 1974 constataria os efeitos avassaladores das forças secularizadoras que

dissolviam a estrutura das igrejas conservadoras, seja pelas vias da aniquilação

pura e simples ou pelo processo de assimilação.

A essência do pensamento distribuído pelas obras do teólogo europeu às

quais o pastor presbiteriano eventualmente se refere trata do tema da

contextualização cultural, que se tornaria um dos eixos condutores do pensamento e

18

Depoimento colhido do pastor Ricardo Agreste da Silva em encontro realizado entre às 08:10h e 11:00h do dia 08 de novembro de 2016 na cidade de Campinas e acesso ao site da igreja https://chacaraprimavera.org.br/quem-somos/historia. Acesso em 25/04/2017.

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das práticas inovadoras adotadas pela Chácara Primavera19, o que pode ser

comprovado pela reafirmação desse compromisso com a contemporaneidade

cultural em vários dos vídeos. Assim a comunidade se apresentará quanto à sua

visão e missão:

A Igreja Presbiteriana Chácara Primavera é uma igreja cristã de tradição reformada, plantadora de novas igrejas, atenta à cultura contemporânea e determinada a comunicar a vida em Jesus de forma criativa, acolhedora e transformadora. A Igreja Presbiteriana Chácara Primavera será referência no movimento de igrejas urbanas caracterizadas pela integridade no ensino e prática da Bíblia, pela relevância em relação à cultura contemporânea e pelo comprometimento com a plantação de novas igrejas. (grifos nossos).

Em seu retorno ao Brasil em 1997 Agreste foi convidado para atuar

como professor no Seminário Presbiteriano do Sul, na cidade de Campinas: “foi ali

que conheci a professora Ana Maria Coelho Rocha que, em maio daquele mesmo

ano, me convidou para iniciar um grupo de estudo bíblico em sua casa na região do

Gramado”20, bairro de classe média alta.

Uma digressão que permita levantar a questão a respeito do que viria a ser o

ambiente preferencial do movimento gerado a partir da Chácara Primavera. De

alguma forma se trata de uma linha de continuidade com o que em um dado

momento consistiu o estrato social que atrai os olhares do presbiterianismo, como

assinalam autores como Valdir Gonzales Paixão (2008, p. 112),

O que se percebe é que a Igreja Presbiteriana do Brasil enquanto categoria de igreja e parte integrante do sub-campo religioso protestante histórico traz consigo um sistema de práticas e representações que se estabeleceu e se configurou principalmente a partir de uma relação com os estratos médios da sociedade, ou seja, suas práticas, dogmas, rituais e códigos morais trazem consigo as aspirações, representações de desejos e necessidades de tais camadas.

À medida que a Chácara Primavera afirma a necessidade de uma linguagem

contextualizada, de que recorte da cultura e de que ambiente social se estará

falando? Se há no centro do pensamento da Teologia da Libertação o que se

presume ser a opção de Jesus pelos pobres deve-se perguntar se haveria algo

como uma opção de Jesus pela classe média alta. Volte-se ao objetivo central.

19

https://chacaraprimavera.org.br/quem-somos/nossa-missao-e-valores. Acesso em 24/04/2017.

20 https://chacaraprimavera.org.br/quem-somos/historia. Acesso em 25/04/2017.

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29

Em agosto de 2000 Agreste foi convidado pelo então pastor da Igreja

Presbiteriana Ebenezer, em Campinas, com a proposta para plantação de uma

igreja na cidade junto com um casal da referida comunidade.

No segundo domingo de Janeiro de 2001, realizamos o nosso primeiro encontro com aproximadamente 15 pessoas na residência do Ralph e Sylvia. Em Fevereiro nos deslocamos para um salão do consultório médico do Dr. Afonso Celso, pois nosso grupo já tinha crescido para 25 pessoas. No primeiro domingo de março nos mudamos mais uma vez. Com aproximadamente 40 pessoas, realizamos nossa primeira reunião no Buffet Metropolitan, momento que se tornaria o marco de nascimento de nossa Igreja.

21

O local do encontro fica na região do Jardim Taquaral, bairro da Chácara

Primavera, que daria o nome à igreja que o manteria mesmo após a mudança de

endereço para outro bairro. Por esse tempo Agreste já havia ampliado o alcance de

sua visão a respeito de uma nova maneira de ver e ser igreja a partir de linguagem e

metodologia que estivessem sintonizadas dentro da moldura de uma cultura pós-

moderna. Giesbrecht (2001, p. 15) salienta que o tema começava a ocupar os

debates acadêmicos e eclesiásticos na região de Campinas. Uma das congregações

presbiterianas começava a chamar a atenção:

Em Campinas existe uma comunidade na qual se pode dizer que estas questões possuem relevância. Trata-se de uma recente congregação da Igreja Presbiteriana Ebenezer, a Congregação Presbiteriana do Parque

22

Primavera. Seu pastor é professor do Seminário Presbiteriano do Sul e do Centro de Pós Graduação Andrew Jumper, encontra-se profundamente envolvido com essas discussões e imbuído do desejo de tornar prática sua posição teológica na vida de uma igreja. Devido ao breve período de existência desta comunidade, pouco mais de um ano, ainda não é possível observar os resultados dessa empreitada, que poderá ser um tema muito interessante para pesquisas posteriores.

Um dos fatores preponderantes para a expansão da igreja e que faria parte

de sua visão e do seu modus operandi seria, desde o início, o fator ‘parceria

ministerial’, que nesse caso incluía instituições estrangeiras. Dois parceiros em

especial se destacam no fortalecimento da comunidade entre os anos 2000 e 2004.

Um deles a agência americana Mustard Seed Foundation23, sediada na cidade de

Falls Church, Virginia, EUA, e cuja visão e propósitos incluem o levantamento de

recursos financeiros com o objetivo de patrocinar a fundação de pequenos projetos

de congregações evangélicas ao redor do globo. Um segundo parceiro foi a

21

Idem, ibidem.

22 Grifos nossos. O correto é Chácara.

23 http://msfdn.org/. Acesso em 25/04/2017.

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30

Redeemer Presbyterian Church24, sediada em Nova Iorque, Manhattan. Ambas as

instituições se prontificariam a apoiar o projeto parcialmente pelo período de três

anos.

Vale salientar que um dos componentes da visão da Redeemer Presbyterian

Church25 está em conexão com o discurso adotado pela Chácara Primavera, que é a

preocupação com a linguagem e com projetos que estejam em sintonia com as

demandas da cultura e desafios da sociedade de Nova York. Ainda com respeito às

parcerias, com o intuito de esclarecer a respeito do tema ‘dependência estrangeira’,

Agreste irá salientar a importância do fator brasileiro ‘igreja mãe’, a IP Ebenezer26,

de Campinas:

Deixa esclarecer umas coisas que talvez as pessoas não conhecem a história da Chácara Primavera. Nos três primeiros anos da Chácara, que foi o período de plantação da igreja propriamente dita, olha o que aconteceu. Primeiro, nós somos gratos a Deus porque a Igreja Presbiteriana Ebenezer, que foi a nossa igreja mãe aqui em Campinas, ela investiu durante três anos cercas de 45 mil dólares nesse projeto...

Agreste enfatizava que uma das marcas do modus operandi das

comunidades plantadas deveria ser o investimento em outros projetos de plantação

de igrejas à semelhança do que ocorrera com a Chácara Primavera. Percebe-se que

desde sua fundação a Chácara Primavera pretende ser mais do que uma igreja local

tornando-se o centro de irradiação de um movimento de plantação de igrejas.

Portanto, sejam quais forem as conclusões a que se deva chegar, sejam quais forem

24

Pode-se conferir a essência do pensamento da igreja americana em uma das obras de seu fundador e pastor Timothy Keller, Igreja Centrada, Edições Vida Nova, 2014.

25 https://www.redeemer.com/#whois. Acesso em 24/04/2017.

26 Vídeo de comemoração dos nove anos de fundação da igreja. Fragmento começa em 2’:55”.

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31

os juízos de valor quanto à comunidade e liderança, o processo de crescimento da

comunidade e expansão da visão está em consonância com o discurso adotado por

Agreste.

A comunidade seria oficialmente organizada, como já mencionado, em 14 de

março de 2004 de acordo com os estatutos da Igreja Presbiteriana do Brasil27. Leia-

se um fragmento da ata do Conselho que segue para registro em Cartório em

cumprimento da Constituição da IPB quanto à personalidade jurídica:28

Ata da Assembleia de Organização da Igreja Presbiteriana Chácara Primavera e aprovação de seu estatuto – No dia 14 de março de 2004, às10 horas e quinze minutos, na sede da Congregação Presbiteriana Chácara Primavera, à rua Miosólis, 100, Chácara Primavera, Campinas, SP, reúne-se, sob a presidência do Rev. Jorge Matos Soares Junior, vice-presidente do PMCP, Presbitério Metropolitano de Campinas, e os membros da Congregação Presbiteriana Chácara Primavera para organizar a Congregação em igreja. Inicia-se a Assembleia orando o Rev. Ricardo Agreste da Silva. Verifica-se o livro de presença constatando-se a assinatura de 98 irmãos presentes à Assembleia. Havendo quórum o pastor Jorge declara instalada a Assembleia.

Nada se menciona a respeito do número eventual de membros ausentes e

que seriam posteriormente agregados. Todavia, a frequência média dos encontros

dominicais era de 300 pessoas, o que aponta para um crescimento exponencial na

ordem de aproximadamente 750% tomando-se como comparação o número de 40

pessoas que frequentavam o primeiro local de encontro no ano 2000. Trata-se de

um índice absolutamente fora dos padrões da denominação. No período em questão

a igreja começava a se expandir por meio da plantação de uma nova comunidade

em Vinhedo, cidade vizinha a Campinas, que seria a primeira ‘filha’ da Chácara

Primavera.

Deve ser destacada uma inovação na forma de comunicação da Chácara

Primavera, qual seja, o uso da expressão ‘comunidade’ como nome de fantasia que

seria adotado por outras igrejas da IPB, fato que produziria desconforto e protestos

da ala mais conservadora e, também, resolução do órgão maior da IPB

determinando que a expressão fosse retirada. Tal decisão que seria acatada pela

Chácara Primavera apenas em 2014 – outras igrejas não acataram a decisão ou a

27

Conf. Manual Presbiteriano da Igreja Presbiteriana do Brasil. São Paulo. Cultura Cristã, 2013, p. 10. Constituição da IPB, Art. 5º e 6º.

28 Fotocópia de ata de organização da Igreja Presbiteriana Chácara Primavera cedida exclusivamente para o

atendimento das finalidades deste trabalho sendo vedados quaisquer outros propósitos.

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32

ignoraram29, como se pode perceber na nomenclatura adotada por várias igrejas

parceiras.

A Chácara Primavera se destacaria, desde os seus primeiros anos de

organização, pela adoção de uma atitude agressiva na apropriação dos meios de

comunicação disponíveis na internet. O primeiro culto gravado em vídeo ocorreria

em 2006, tempo em que a igreja reunia por volta de 500 pessoas. Seguiram-se

doações para compra de equipamentos para aperfeiçoamento do sistema e

disponibilização dos vídeos na internet30. Segundo Daniel Ladeira de Araújo (2008,

p. 11) em setembro de 2006 o site começou a disponibilizar os cultos ao vivo em

áudio e vídeo.

Ao longo dos anos a comunidade adotaria ações bastante inovadoras nos

campos discursivo, litúrgico e metodológico. Os ambientes dos encontros não

seriam os templos de arquitetura austera e despovoados de imagens de qualquer

natureza. O espaço adotado se tornaria cenograficamente adaptado às temáticas

das séries de palestras (expressão preferencial ao uso do termo ‘sermão’) sempre

introduzidas por vídeos especialmente produzidos que trazem as marcas da

excelência de qualidade técnica.

Tais adaptações atrairiam críticas e censuras da parte de alguns agentes do

campo presbiteriano localizados nos ambientes conservadores. Acusações do tipo

‘culto antropocêntrico, ‘interação exagerada com a cultura pop’, ‘quebra do 5º

mandamento’ e descaracterização da identidade presbiteriana’31 fariam parte do

elenco de argumentos das peças de acusação que seriam aqui e ali dirigidas contra

a Chácara Primavera e as comunidades presbiterianas.

Finalizando, ao longo dos últimos dezesseis anos a Chácara Primavera

experimentou de um crescimento impressionante para os padrões típicos da

denominação a que pertence. Atualmente a igreja conta com cerca de 1.600

membros, um crescimento de 4.000%.32. Além da ‘Chácara Paineiras’ outras

‘congregações’ (termo que consta do manual presbiteriano) que no caso carregam o

nome de ‘campos’ e que se apresentam pelo nome comum ‘chácara’, foram

29

http://chacaraprimavera.org.br/parceiros. Acesso em 15/05/2017.

30 https://www.youtube.com/watch?v=thhfAw0mt6I&feature=youtu.be. Acesso em 28/04/2017.

31http://resistenciaprotestante.blogspot.com.br/2013/05/qual-o-problema-com-as-comunidades-

presbiterianas.htm. Acesso em 22/04/2017.

32 Informações obtidas de contatos diretos com a secretaria da igreja e registrado em email do dia 10/05/2017.

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33

surgindo na própria cidade de Campinas como fruto do trabalho e da coordenação

da igreja: Chácara Cambuí, Chácara Barão Geraldo, Chácara Norte-Sul33. Mais

recentemente foram inauguradas duas iniciativas do tipo comunidades ‘semi

virtuais’, ou como adota a comunidade, ‘vídeos sites’ na cidade de Limeira e de

Curitiba, que reúne um grupo de pessoas que recebe o ‘sinal’ a partir do centro em

Campinas.

A história recente da Chácara Primavera confirma a visão e os valores

adotados pela comunidade, seja qual for o julgamento que se lhe faça (questão para

ser resolvida pela IPB). A decisão de plantar igrejas a partir de uma visão atenta à

cultura reverbera e que pode ser percebido estatisticamente: dos projetos em

parceria quinze foram concluídos e quinze estão em execução.

Acrescente-se à narrativa a criação do Centro de Treinamento de Plantadores

de Igrejas, CTPI, que se apresenta como “uma rede de pastores e igrejas,

comprometidos com uma teologia cristã reformada e engajados no cumprimento da

grande comissão de Cristo através da plantação de novas igrejas em cidades

brasileiras.”34 Trata-se de uma das eventuais evidências de que se está presente

diante de algo mais do que simplesmente uma igreja plantadora de outras igrejas. O

CTPI funciona não apenas como polo de preparo missiológico mas, também, como

centro de irradiação da visão dos conceitos e práticas adotados pelas comunidades

presbiterianas.

Finalizando, as tensões internas que eventualmente fizeram parte da breve

história da Chácara Primavera não foram aqui relatadas em por duas razões. A

primeira delas, a impossibilidade de aprofundar a pesquisa sem que o seu pastor e

fundador pudesse participar diretamente dos depoimentos. Qualquer tentativa de

criar outro caminho para entrevistas com líderes e membros de forma geral soaria

como um tipo de auditoria. Em segundo lugar, as idiossincrasias da comunidade que

pudessem ser identificadas a partir da ótica de seus frequentadores ou líderes não

acrescentaria muito mais para os propósitos deste trabalho que não é o de vasculhar

eventuais elementos que não estejam na superfície. Todavia, a questão permanece

em aberto.

33

http://chacaraprimavera.org.br/onde-estamos. Acesso em 15/05/2017.

34 http://ctpi.org.br/. Acesso em 06/05/2017.

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34

1.3. IPB: fragmentos históricos de um campo em mutação.

O processo de gestação de movimentos de naturezas diversas tende a

progredir ou ser abortado na proporção da intensidade das forças contrárias dentro

do campo no qual se origina e procura se desenvolver. Até os anos 1970, o

presbiterianismo se apresentaria ainda mais hermético e refratário do que fora até

então em razão da polarização política e ideológica em torno dos embates entre os

modelos representados pelo capitalismo americano e marxismo soviético.

Outro fator causador do recrudescimento da intolerância seriam as eventuais

originárias dos movimentos pentecostais que começam a surgir dentro das igrejas

históricas, eventos que provocariam alguns cismas no final dos anos 1960 e começo

de 70. É natural reconhecer que os líderes e os movimentos por eles deflagrados

serão projetados na história ou por ela engolidos dependendo das circunstâncias

que os cercam. Visto que as raízes do presbiterianismo e da Chácara Primavera se

estendem até à Reforma Protestante, vale o exemplo de Lutero e a projeção de sua

figura dentro do campo hermético do catolicismo romano:

O impacto que Lutero causou se deve em boa parte às circunstâncias que estavam fora do alcance de sua mão e das quais ele mesmo frequentemente não se apercebia. A invenção da imprensa fez com que suas obras fossem difundidas de uma maneira que tinha sido impossível fazê-lo poucas décadas atrás. O crescente nacionalismo alemão, de que ele mesmo era até certo ponto participante, se prestou a ser um apoio inesperado e muito valioso. Os humanistas que sonhavam com uma reforma segundo a concebia Erasmo... tão pouco estavam dispostos a que o esmagassem como tinha ocorrido com João Huss. As circunstâncias políticas foram um dos fatores que impediram que Lutero fosse condenado imediatamente e quando por fim as autoridades eclesiásticas e políticas se viram livres para agir, já era demasiado tarde para calar o seu protesto (GONZALES, Vol. 6, p. 45).

Os conceitos missiológicos propostos pelo pastor Ricardo Agreste e o

crescimento da visibilidade da Chácara Primavera ocorrem dentro de um cenário

significativamente distinto. As radicais alterações do campo político e ideológico

brasileiro, aliadas às forças atomizadoras da secularização, contribuiriam para aliviar

gradativamente o nível do controle institucional no campo da IPB sobre concílios e

igrejas, sobre seus líderes e seus formatos particulares. A pluralização partidária no

cenário político nacional de certa forma iria se refletir no campo da IPB, um dos

fatores que contribui para o processo de realinhamento de forças e para a redução

da capacidade de mobilização das alas conservadoras.

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35

O período compreendido pelas décadas de 1960 e 1970 resultará numa

drástica mudança de rumos para a IPB. Os anos que antecederam o golpe militar

eram um prenúncio das polarizações que se instalariam no Brasil. A denominação,

que de certa maneira se mantinha neutra até o final da década de 1950 quanto a

questões de cunho político, assumiria inequívoca posição de apoio e sustentação da

ideologia e práticas do governo militar, em níveis sobre os quais discordarão os

historiadores. Paulatinamente foram sendo eliminados os espaços para opiniões

divergentes tornando-se a denominação um ambiente de patrulhamento ideológico e

de indisfarçável intolerância.

Mendonça assinala que o período entre os anos 1916 a 1952 seria marcado

pelo desejo do que chama de unionismo e que teria no pastor presbiteriano Erasmo

Braga uma das figuras mais proeminentes para a divulgação de um projeto de

aproximação entre as igrejas no rastro do que havia sido debatido e compreendido

na Conferência de Edimburgo em 1910, importante congresso missionário que

reuniu missionários, líderes de agências e outros obreiros cristãos de países da

Europa e da América do Norte para a definição de estratégias evangelizadoras

unificadas. Deve ser ressaltado que, no caso da proposta do pastor Erasmo Braga,

se tratava de um projeto que contaria com o influxo de milhões de dólares oriundos

de igrejas da América do Norte:

De fato, durante muitos anos foi possível participar de cultos e escolas dominicais da maioria das igrejas no Brasil portando a mesma versão da Bíblia, o mesmo livro de hinos e a mesma revista de escola dominical. Outro sonho era chegar a unir em uma só todas as igrejas protestantes no Brasil. O grande defensor desse sonho em vigília foi o auxiliar de Erasmo Braga, o pastor presbiteriano independente. (Mendonça, 2005, p. 55)

A partir de 1950 a atmosfera começaria a revelar a presença de elementos

contestadores. Marcio Ananias Vilela (2014, p. 12) em sua tese de doutorado a

respeito da essência dos discursos entre os anos 1960 e 1970 salienta que o

período que antecedeu o golpe militar era marcado por intensos debates a respeito

do tema do engajamento nas questões sociais:

Estas discussões eram realizadas de maneira sistemática entre os anos 1950 e 1962 e que teriam provocado, no interior da IPB, intenso debate sobre o papel político e social da Igreja. Debate que ganhava força com a adoção crescente do que se tornou conhecido na Igreja Presbiteriana do Brasil como Evangelho Social. Em linhas gerais, os defensores desta leitura do Evangelho acreditavam que a IPB deveria se engajar na luta por reformas sociais – defendidas pelo Governo e por amplos setores da sociedade - tendo como

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36

diretriz fundamental os ensinamentos cristãos. Após o Golpe civil-militar de 1964, a documentação revela que esse grupo que trabalhava e defendia uma teologia associada ao Evangelho Social perderá força e será isolado ou expulso da IPB, tornando-se hegemônica na instituição uma visão teológica que primava pelo afastamento da igreja das questões sociais, fazendo com que a única preocupação da igreja caísse na conversão e consequente salvação da alma.

Thiago Watanabe (2007, p. 26) assinala que no período anterior ao golpe,

começando na década de 1950, foram introduzidas leituras nos seminários de

pensamentos de origem europeia de conteúdo polêmico para os padrões teológicos

presbiterianos, que historicamente mantinham dependência da matriz teológica

americana. O nome do professor Richard Shaull, embora americano, estaria entre os

protagonistas que deflagraram este movimento que atrairia a hostilidade da

liderança da igreja. Mendonça (2005, p. 59, 60) ressalta que entre os anos 1952 e

62 o cenário protestante ganhará uma nova consciência a partir da presença de

teologias com novos formatos e conteúdos:

Nova consciência política brota entre intelectuais e jovens estudantes que passam a clamar pelas chamadas então “reformas de base” [...] É nesse cenário que surge o “bando de teologias novas” (9) que atinge primeiro o Seminário Presbiteriano do Sul, em Campinas (SP), e se alastra por outros em pouco tempo. Ao mesmo tempo em que uma nova realidade histórico-social se abria para os jovens leigos das igrejas, aragens frescas do pensamento teológico passaram a entrar pelas janelas dos seminários.

Assim, eram os estudantes estimulados no envolvimento de questões sociais

e levados à crítica ao governo e à instituição. Ao conservadorismo opunha-se um

discurso que encorajava o diálogo ecumênico, a participação em movimentos

estudantis e uma aproximação com a cultura, o que representava o ocaso das

preocupações de uma dada ordem moral que sempre estiveram no topo do ranking

da identidade formulada a partir do fundamentalismo.

O desenvolvimento de uma nova consciência desembocará em conflitos de

conteúdos teológicos e ideológicos cada vez mais intensos. Um dos momentos mais

emblemáticos desse adensamento do pensamento crítico seria a Conferência do

Nordeste, realizada entre 22 a 29 de julho de 1962 na cidade de Recife que teria

como tema ‘Cristo e o Processo Revolucionário’, que instou a igreja a não se omitir

de sua responsabilidade social e política. A partir de 1964, logo após o golpe militar,

as denominações evangélicas seriam desafiadas a assumir posições dentro do

esquema ideológico bipolarizado que opunha a versão capitalista representada

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37

pelos Estados Unidos à proposta carregada pelo marxismo, então patrocinado pela

União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.

O ex-pastor presbiteriano Valdir Gonzales Paixão Júnior (2008, p. 4) em sua

tese sobre o autoritarismo da IPB nos anos da ditadura militar expressa o que

parece ser uma grande contradição entre a tradição reformada com sua ênfase na

liberdade individual e o que se percebe na concretude da intolerância patrocinada

pelas alas conservadoras da IPB:

Até que ponto uma denominação eclesiástica protestante que tem suas bases tradicionais relacionadas aos ideais democráticos e liberais pode ser marcada por uma teologia fundamentalista e uma ética política e social autoritária e repressiva à semelhança de um governo autoritário que se estabelece no Brasil após um Golpe de Estado civil-militar? Este fato leva à indagação até que ponto os procedimentos adotados pela IPB seriam ou não reflexos da situação política do país e até que ponto um regime político tido como de exceção pode influenciar no cotidiano de uma instituição religiosa que baseia sua práxis na ética da fraternidade e tolerância e é administrada sob um sistema de governo democrático representativo.

Foi de fato um período crítico, marcado por truculência, delações, expurgos e

um esquizofrênico patrulhamento ideológico que parece tão contraditório com o

espírito de liberdade preconizado pela Reforma. Mas talvez não se possa dizer que

as reações violentas estivessem exatamente fora da tradição do protestantismo, que

em muitas ocasiões tornou-se exatamente o oposto do que se presumia que viera

para ser.

Sob as lentes de Pierre Bourdieu (1996, p. 50) pode-se conferir que de fato

uma instituição religiosa é um campo de conflito que tenderá a assumir maior

intensidade na proporção dos interesses desejados ou ameaçados. Em todo tipo de

campo cada um procura legitimar suas posições, alianças e oposições,

configurando, portanto, um espaço social marcado pela lógica dos interesses de

cada grupo. O espaço social é formado por campos, microcosmos ou espaço de

relações objetivas, que possui lógica própria e irredutível. O campo é tanto um

“campo de forças”, uma estrutura que constrange os agentes nele envolvidos,

quanto um “campo de lutas”, onde os agentes atuam conforme suas posições

relativas no campo de forças, conservando ou transformando a sua estrutura. O

encaixe da metáfora bourdiana parece óbvio no período em questão.

Mesmo dentro de um sistema de governo democrático representativo

prevaleceria a inspiração extraída dos exemplos do governo militar. A direção da IPB

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exerce forte pressão sobre pastores e líderes que se preocupam com problemas

sociais no Brasil. O diretor do jornal Brasil Presbiteriano foi despedido por abrir

espaço no órgão oficial para debate de assuntos políticos e econômicos. Um jovem

é elogiado por ter sido espião do presidente do Supremo Concílio tendo denunciado

vários preletores da IV Conferência Nacional de Jovens Presbiterianos. Cinco

professores e trinta e nove alunos do Seminário Presbiterianismo de Campinas

foram expulsos. Foram fechados o Sínodo da Bahia e Presbitério de Salvador e

despojados vários pastores. A lista é longa. (ARAÚJO, 2010, p. 13-14).

Destaca-se nesse período a figura do pastor Boanerges Ribeiro que

pavimentaria o caminho de sua eleição ao Supremo Concílio em 1966, em

Fortaleza, por meio do uso do veículo oficial da IPB, Brasil Presbiteriano (era editor

responsável) e pela valorização de uma maior atuação (poder) dos presbíteros na

gerência do sagrado além das fronteiras das igrejas locais. Ribeiro usaria de um

discurso que reforçava na mentalidade da maioria do povo presbiteriano, qual seja, a

de que os responsáveis pela crise e instabilidade na Igreja eram o ecumenismo, o

comunismo e o modernismo.

Ribeiro se sustentaria por três legislaturas (PAIXÃO JR, p. 177), e sua vitória

ocorreria durante o período de recrudescimento dos embates no campo ideológico

nacional, que potencializaria uma histeria entre a liderança a respeito de salvar a

igreja das ameaças comunistas e liberais. O Brasil Presbiteriano se tornaria o

principal veículo de divulgação das ideias e convicções dos líderes da denominação

para legitimar e disseminar a versão de apoio ao regime. Leia-se um fragmento

dentre tantas postagens em defesa do regime nesse período:

O presidente da República tem-se revelado um cidadão sereno, judicioso, bem intencionado e capaz. Desde as primeiras horas do exercício da Presidência, suas palavras austeras; sua firmeza; sua moderação na vitória, imprimiram aos acontecimentos um rumo conveniente e tranquilizador. Merece, com seu governo, o apoio dos cristãos, que devem constantemente orar a Deus por ele, e positivamente participar da vida nacional. (JORNAL BRASIL PREBITERIANO. São Paulo, ano VII, nº 9, junho de 1964, p. 3).

Um dos pastores de prestígio da denominação, Rev. Oscar Chaves, assim se

pronunciaria utilizando-se de um veículo que chegaria para consumo de grande

parte das lideranças e membros das igrejas presbiterianas:

Todos os verdadeiros cristãos se regozijaram e estão regozijando com os resultados da gloriosa revolução de março-abril: o expurgo dos comunistas e seus simpatizantes, da administração do nosso querido Brasil. A Providência

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39

de Deus se fez sentir na hora certa, quando muitos fiéis, já ansiosos e temerosos, pensavam que a nação teria de ser flagelada pela horda dos anarquistas e materialistas - Deus agiu na hora certa, repetimos usando a coragem e o patriotismo das Forças Armadas e de civis (JORNAL BRASIL PRESBITERIANO. São Paulo, ano VII, nº 8, maio de 1964, p. 07).

Paixão Jr (2008, p. 177) salienta que Jaime Wright, ex-pastor presbiteriano e

militante em prol dos Direitos Humanos, ao analisar a participação da instituição no

golpe de 64 e período da ditadura política destacou o fato de que a própria

Universidade Mackenzie, faculdade presbiteriana, colocou-se ao lado de tal regime

sendo, inclusive, cenário de instalação do C.C.C., ou seja, Comando de Caça aos

Comunistas. Wright assim colocou a questão:

(...) o Mackenzie, na época, era conhecido como a sede do C.C.C. (Comando de Caça aos Comunistas), e os conflitos que havia na Rua Maria Antônia com a Faculdade de Filosofia da USP, que na época era do outro lado da rua do Mackenzie, eram resultado disso. Era o Mackenzie que estava a favor do Regime Militar, a ponto de ter essa administração ali (Comando de Caça aos Comunistas), e se jogavam, se pichavam uns aos outros, ali em frente aos muros e isto já estava sob o comando de Boanerges Ribeiro (cf. Entrevista com Rev. Jaime Wright. Vitória, Espírito Santo, 26/03/1999).

João Dias de Araújo (2010, p. 10), ex-pastor da IPB, classificaria a instituição

como representante de “um presbiterianismo infiel à Reforma que se estabelecia

como irremovível, inclinado ao pietismo e ao fundamentalismo, sem comprometer-se

com as lutas contra a miséria, a fome, a doença, o trabalho negado”. Rubem Alves

(1982, P. 11) utilizaria de uma linguagem poética para descrever as tensões

presente no campo presbiteriano ao qual um dia havia pertencido:

Há muitas formas de organizar as experiências que o protestantismo guarda. Os inquisidores colocarão fogo nos olhos do seu deus e com ele consumirão aqueles que se atrevem a ser diferentes. Os pacificadores colocarão o fogo nas lanternas e nos fogões, para iluminar, aquecer, coser...

Seja qual for a densidade de desabafo e o nível de veracidade dos conteúdos

de contestação pessoal que obras dessa natureza contenham, não se pode negar

que o período seria caracterizado por um clima de guerra aberta a tudo que

contivesse sinais mínimos de ameaça à tradição e ao alinhamento ao com as forças

detentoras do poder ou com a ideologia do pensamento norte-americano.

A relação da IPB com o regime militar recebe interpretações a partir de

diferentes enfoques. Como visto anteriormente, a interpretação dependerá da

coloração ideológica da lente de que a usa. Araújo (1985, 18, 02), autor e ator dentro

da trama, insiste em que a Igreja Presbiteriana do Brasil teve participação mais do

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que oficiosa. Parte da liderança operava dentro do campo religioso acusando

modernistas e comunistas, defendendo ardorosamente o sistema capitalista - alguns

juristas teriam participado diretamente de atos institucionais para a ditadura. Paul

Freston considera que a IPB adotou uma postura compatível com seu

conservadorismo, mas passiva e alienada. Marcio Vilela, por sua vez, considera que

as críticas ao regime são indicativas de uma relação de comprometimento da IPB:

A documentação aponta para uma igreja reativa a essas críticas, o que reforça o ponto central da nossa tese: a Igreja Presbiteriana do Brasil manteve uma relação de comprometimento e de legitimação com o Regime, pelo menos até meados da década de 1970, quando se fortalece os movimentos pela abertura política. Sobre os discursos e as práticas da IPB nesse período, o historiador Silas Luiz de Souza afirma: “a IPB deu apoio oficial ao governo militar, incentivando seus ministros, presbíteros e membros em geral a seguirem os passos da liderança eclesiástica” (2014, p. 14).

Essa postura não seria privilégio da IPB. A Igreja Presbiteriana Independente

do Brasil, IPI, que resultara do cisma do campo presbiteriano em 1903, e que

parecia apresentar um grau de permeabilidade e maleabilidade superior à IPB, foi

igualmente fustigada pelos conflitos dentro de seu campo:

A década de 60 trouxe para a IPI algumas preocupações. Saída das comemorações do centenário do Presbiterianismo no Brasil (1959, em conjunto com a IPB), a IPI teve de enfrentar como todas as igrejas irmãs, uma década que, começando com incertezas políticas, trouxe quase em seus meados o golpe militar de 1964. Atingida de rijo, abriu-se na IPI um processo de “caça às bruxas”, ou no caso, tudo o que pudesse lembrar marxismo, mesmo que a semelhança estivesse só no sufixo. A cúpula da igreja alinhou-se às forças repressoras do sistema político vigente. Até o seminário foi fechado e os alunos presos. O discurso espiritualizante foi reforçado; o comunismo, o ecumenismo e o liberalismo teológico eram vistos como ameaças diabólicas ao país e à igreja, cabendo também a esta última o combate sem tréguas a essa “trindade do inferno” (LIMA, 1989, p. 11).

Um fator de controvérsia teológica contribuiria para enrijecer as

amarras do protestantismo histórico. Trata-se do que se chamará movimento de

renovação espiritual, um fenômeno de avivamento que atingiu vários grupos

evangélicos tradicionais como os batistas, os presbiterianos e os metodistas nos

anos 60. Em determinado ponto do percurso o movimento receberia a influência e

inserção de práticas pentecostais o que gerou divergências nas denominações

tradicionais, transformando conflitos em rupturas e o surgimento de outras

denominações, como a convenção batista nacional. Os conflitos na Igreja

Presbiteriana do Brasil dariam origem à Igreja Cristã Presbiteriana, em 1968. (GINI,

p. 160).

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Essa expressão de religiosidade talvez pudesse ser categorizada como uma

‘marola’ dentro da tipologia das ‘três ondas’ criada por Paul Freston (1994, p. 71)

para enquadrar o desenvolvimento do pentecostalismo brasileiro. As rupturas

decorrentes do movimento intraeclesiástico que originavam o êxodo de grupos

inteiros de uma igreja local foram mais graves nas igrejas batistas (ALONSO, p. 09)

em comparação com a IPB, muito em razão da configuração federativa e de

interdependência do modelo presbiteriano.

A história do protestantismo brasileiro será, também, a história das batalhas

pela implementação de inovações. Nas décadas de 60 e 70 a linha demarcatória

entre o sagrado e o profano era bem mais nítida. Expressões tais como ‘música do

mundo’ ou ‘instrumento do diabo’ eram típicas de uma versão avessa a qualquer

aproximação com elementos da cultura. Apenas como ilustração segue abaixo um

fragmento do depoimento do fundador do grupo musical Vencedores por Cristo, o

missionário americano Jayme Kemp:35

Alguns fatos não vou me esquecer, quando nós entramos com a bateria na igreja. Isso já foi pecado sem perdão! Também fomos criticados pelos ritmos, chamavam de “música do diabo”. Agora não é mais “musica do diabo”, mas naquela época a bateria era um “instrumento do diabo”.

As alterações de humor do campo presbiteriano de alguma forma

acompanharam as mudanças no cenário político, ideológico e religioso nacional.

Tais modificações, lentas e gradativas, podem ser percebidas no âmbito da

liderança maior, coincidentemente ou não, a partir de 1994 quando foi eleito como

presidente ao Supremo Concílio da IPB Guilhermino Cunha36. Pastor por mais de

três décadas da Igreja Presbiteriana do Rio de Janeiro, a primeira plantada em solo

brasileiro, Cunha ocuparia a função de presidente do SC até 2002 e apresentava

tendências indisfarçavelmente conciliadoras e ecumênicas. A eleição de Cunha já

denotava a recomposição das forças e dos agentes dentro do campo da IPB, e à

medida que sua gestão se desenvolvia se percebe um radical distanciamento da

postura dos presidentes anteriores, sobretudo de Boanerges Ribeiro.

Em 2002, Cunha, agora ocupando o cargo de vice-presidente do SC (o Rev.

Roberto Brasileiro fora eleito) e o de presidente da Sociedade Bíblica do Brasil,

35

http://www.vpc.com.br/website/exibe_txt.asp?conteudo_txt=39&tit=historia. Acesso em 13/05/2017.

36 http://se.icalvinus.net/icalvinus.php?d=1495450543945. Acesso em 20/05/2107.

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assinaria junto de tantos outros líderes evangélicos um manifesto de apoio37 à

candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva, um representante das esquerdas à

presidência da República, atitude impensável duas décadas atrás.38 No âmbito

teológico o referido pastor protagonizaria outro evento que revela a mudança de

atmosfera da IPB em relação ao período anterior.

Um outro evento revelador da postura de Guilhermino Cunha se daria num

evento em que o pastor cedeu o púlpito da IP do Rio de Janeiro para o Dr. Samuel

Doctorian, defensor de pensamentos teológicos inaceitáveis para os padrões da IPB,

o que geraria um duro posicionamento da parte do Supremo Concílio em sua

reunião ordinária de 2002 em resposta a vários documentos encaminhados por

sínodos e presbitérios39:

RESOLVE: A. - CONSIDERAR o ensino do Dr. Samuel Doctorian assemelhado ao montanismo, tal qual definido na Pastoral sobre o Espírito Santo (Ed. Cultura Cristã, 1995, p. 16, n. 58), ao reivindicar possuir revelações superiores ao NT, contrariando a Palavra de Deus e, portanto, contrário e prejudicial à suficiência das Escrituras, negando o lema da Reforma “Sola Scriptura“; B. - DECLARAR, à luz da Bíblia, inerrante Palavra de Deus, à luz da Confissão de Fé, em seu capítulo I, item 6, e à luz dos documentos doutrinários da IPB (Resolução SC-1978-036 e Pastoral sobre o Espírito Santo), que o ensino do Dr. Samuel Doctorian é herético e os que professarem ou divulgarem o conteúdo dos mesmos, por não estarem em conformidade com os ensinos da Sagrada Escritura, são passíveis de disciplina, a teor do disposto no Código de Disciplina, art. 4.º; C. - PROIBIR de toda e qualquer forma a concessão da palavra ao Dr. Samuel Doctorian na IPB, bem como a promoção, divulgação e comercialização dos ensinos, por todos os ministros, concílios e entidades, sob pena de disciplina; D. - DETERMINAR que no prazo de trinta (30) dias, a partir da publicação da presente resolução, os irmãos, concílio e entidades abaixo dêem informações quanto aos fatos narrados na presente resolução, manifestando-se pormenorizadamente sobre eles: Rev. Guilhermino Cunha e demais pastores da IP do Rio de Janeiro; Conselho da IP do Rio de Janeiro; Conselho Editorial, Superintendente e Editor da Editora Cultura Cristã e Diretoria da FENEP, à época dos fatos; E. - DETERMINAR à Mesa do Supremo Concílio que ao receber as manifestações dos indicados acima delibere a respeito, inclusive encaminhando a concílios e órgãos competentes para instauração de eventual processo disciplinar e/ou administrativo, prestando relatório circunstanciado das providências e andamento das mesmas, na reunião da CE/SC-2003...

Guilhermino Cunha não apenas se revelaria como uma figura de tendências

opostas aos antecessores. Sua rede de relacionamentos incluiria personagens tais

como o pastor da IPB Rev. Caio Fábio de Araújo Filho – de quem Cunha é amigo

37

http://juliosevero.blogspot.com.br/2006/04/lula-e-os-evanglicos.html?m=1. Acesso em 16/05/2017.

38 https://noticias.uol.com.br/inter/reuters/2002/10/17/ult27u27501.jhtm. Acesso em 16/05/2017.

39 http://se.icalvinus.net/icalvinus.php?d=1496236229886. Acesso em 16/05/2017.

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até os dias atuais40 - hoje fora dos quadros da denominação e que no final da

década de 1990 se veria envolvido no conhecido escândalo do dossiê Cayman,

documentos que, como posteriormente se comprovaria, foram forjados por outros a

fim de incriminar figuras de destaque do Partido da Social Democracia Brasileira,

PSDB, que teriam contas em paraíso fiscal.

Portador de um carisma extraordinário, autodidata com impressionante

preparo em várias áreas das ciências humanas além da teologia, à época presidente

da Associação Evangélica Brasileira e com trânsito em vários setores dos campos

religioso, empresarial e político, Caio Fábio seria um dos grandes responsáveis por

aglutinar boa parte da liderança evangélica em torno de um projeto capitaneado por

um partido de esquerda. O pastor afirmaria: “aproximei Lula dos evangélicos, os

quais, durante anos, o chamavam de ‘diabo’. Muitas foram as oportunidades que

criei para que ele tivesse a chance de se deixar perceber pela igreja”41.

Não obstante as radicais alterações de percurso de sua vida e ministério,

Caio Fábio exerceu grande influência sobre seminaristas e pastores presbiterianos

entre as décadas de 1980 e 90 por meio de farta literatura e das conferências da

Visão Nacional de Evangelização – VINDE – que fora criado pelo pastor. Deve-se no

mínimo considerar o fato de que muitos dos pastores que se encontram permeáveis

a inovações e que votam nos concílios fazem parte da geração que havia adotado o

então Rev. Caio Fábio como ícone na área da pregação e como representante do

pensamento evangelical. Atualmente Caio Fabio é um tipo de guru do movimento de

igrejas orgânicas ‘Caminho da Graça’ (CHIROMA, 2014).

Seja como for, a mudança de atmosfera entre os dois períodos mencionados

é notável. Na década de 1950 a presença de vetores que estimulavam o

engajamento social. As décadas de 60 a 80 se tornariam um período de

enrijecimento institucional e a partir dos anos 1990 a abertura para a chegada de

inovações. Em cada período a IPB contaria com um presidente do SC que parecia

talhado para a ocasião: José Borges dos Santos Junior, progressista, exerceu o

cargo no final dos anos 1950; Boanerges Ribeiro assumiu a cadeira por três

40

Muitos são os vídeos disponibilizados pela plataforma Youtube que revelam a relação de Guilhermino Cunha e Caio Fábio até os dias atuais.

41 http://juliosevero.blogspot.com.br/2006/04/lula-e-os-evanglicos.html. Acesso em 28/05/2017.

Depoimento de Caio Fábio sobre sua proximidade com Lula: https://www.youtube.com/watch?v=UfyGQFje5Po. Acesso em 28/5/2017.

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mandatos num período turbulento e de ameaças internas e externas à instituição.

Finalmente, em tempos de abertura e arejamento surgirá a figura de Guilhermino

Cunha com a porosidade de sua visão a contribuições de campos da religiosidade

mais liberal.

Deve-se observar que alguns dos pastores que possuíam uma visão

inovadora acabaram por deixar a denominação, boa parte deles o fazendo de

maneira silenciosa e discreta, sem provocar traumas ou cismas. Trata-se de um

tempo propício para o surgimento de alternativas de toda a natureza dada à nova

conformação plural e mais elástica do tecido institucional da IPB.

1.4. Presbiterianismo brasileiro e desencaixe cultural: apanhado histórico.

Um dos elementos que compõem a visão da Chácara Primavera, como já tem

sido mencionado, é a afirmação da necessidade de uma abordagem cuja linguagem

e metodologia estejam na frequência das demandas da cultura contemporânea.

Trata-se de um dos pontos de maior atrito e controvérsias na história do cristianismo,

que tem sua origem nas palavras do próprio fundador, Jesus de Nazaré42. Trata-se

do caráter paradoxal da própria missão da igreja: ser enviada ao mundo embora a

ele não pertença e dele deva manter distância. A história do cristianismo seria

marcada pela ambivalência na relação igreja-sociedade.

São complexas e diversas as causas que estão na base da postura refratária

da IPB no que diz respeito à apropriação de elementos da cultura. Trata-se, de certa

forma, de um desvio do pensamento e da postura de Calvino que se tornou uma

referência pela maneira como desenvolveu sua teologia em conexão com as

demandas da cidade de Genebra. O escritor André Biéler (1990) apresenta em uma

obra densa os desdobramentos e influência do pensamento do reformador francês

na construção da cultura ocidental. Henry Van Till em sua obra ‘Conceito Calvinista

de Cultura’ (2010, p. 290) aponta para o envolvimento dessa versão teológica dentro

da trama da história e da cultura: “a religião de um povo se manifesta em sua cultura

e os cristãos não podem ficar satisfeitos com nada menos do que uma organização

cristã da sociedade”.

42

Na conhecida oração sacerdotal Jesus diz: “Não peço que os tires do mundo, mas que os livres do mal. Eles não são do mundo como também eu não sou. Assim como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo”. Evangelho de João, cap. 17, vv 15 a 19. Versão Almeida e Atualizada, 2ª Ed.

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Van Till (1990, p. 135) salienta que, a despeito de afirmar do ponto de vista

teológico que existe antítese entre elementos da cultura e o reino de Cristo, Calvino

“tinha o desejo de aceitar os dons da graça comum de Deus no campo da cultura

humana e até mesmo fazia contato com os descrentes para serem mestres da

técnica e da forma artística”. Esse autor ressalta a figura de Abraham Kuyper (1837-

1920), gênio versátil do calvinismo holandês, que se tornaria um modelo de teólogo

que se infiltraria na cultura como poucos antes e depois dele: jornalista, estadista e

educador – fundador da Universidade Livre de Amsterdã – Kuyper organizaria sua

teologia voltada para a inserção na cultura e sociedade, um pensamento que nem

sempre seria bem recebido nos círculos mais conservadores (1990, p. 139).

Apenas para ficar em Calvino e Kuyper, trata-se de dois teólogos que mais do

quaisquer outros construíram pontes entre a teologia e a cultura, entre a religião e a

sociedade, embora a visão de ambos com respeito aos aspectos positivos da cultura

não fosse exatamente a mesma. Em Calvino se perceberá um extremado realismo a

respeito da precariedade do ser humano, todavia, não se poderá acusa-lo de

determinista e de projetar uma versão ultra pessimista da cultura e da capacidade do

ser humano. Pode-se afirmar que se trata de um humanista, não do tipo de um

Erasmo de Roterdã. Poucos foram tão engajados em projetos de transformação

econômica, social e educacional como o reformador de Genebra.

Todavia, os traços predominantes do protestantismo americano que se

instalou no Brasil em meados do século XIX resultam de um longo processo de

filtragens, adaptações e acomodações. Nesse período, a autoimagem protestante foi

sendo forjada no encontro da convicção religiosa com as vicissitudes e demandas

de ordem sócio-política desde os primeiros dias pós Reforma Protestante. Uma

sociedade que enfrentava velhos e novos problemas seria o ventre onde seria

gestada uma teologia complexa.

Tomem-se, nesse primeiro momento, algumas das contribuições oferecidas

por Mendonça para a compreensão das causas por detrás do distanciamento dos

presbiterianos em relação à cultura. Este autor salienta que o protestantismo de

missão, principalmente o de recorte presbiteriano, tem sido por décadas como uma

“presença sensível que não corresponde a uma participação ideológica cultural e

política... até certo ponto negador de seus modelos históricos ligados ao liberalismo

e à modernidade” (1984, p. 9, 11). Mudanças sociais acabariam por esvaziar as

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suas propostas iniciais, e uma das razões elencadas se refere à ancoragem em um

momento histórico num passado distante que causará, certamente, anacronismo na

linguagem e metodologia:

Seus credos e suas confissões, datados de séculos atrás e produzidos em contextos significativamente diferentes, se já não tinham muito sentido, ao serem transportados para o Brasil no século XIX acabaram sendo marcos históricos aos quais as instituições religiosas se amarraram enquanto a sociedade caminhava. (1984, p. 257).

Em uma de suas palestras anos atrás o pastor Ricardo Agreste iria expor a

limitação do presbiterianismo em lidar com as demandas da cultura presentes na

sociedade urbana em razão dos condicionamentos históricos que haviam feito a

denominação se sentir muito à vontade no universo rural. Seguindo a linha de

pensamento de Alvin Tofler (1998), o pastor afirmava que muitas igrejas que estão

na cidade na era digital ainda operam a partir de categorias da era agrícola.43 O

pluralismo percebido na IPB parece indicar algo da realidade brasileira, em que as

três categorias sugeridas por Tofler parecem conviver ao mesmo tempo.

A verdade é que o protestantismo de missão que chegou à capital do Império

logo encontraria outros caminhos mais acessíveis para sua aceitação, que seriam as

rotas e trilhas do café que levavam às regiões interioranas de São Paulo, Minas

Gerais, Rio de Janeiro e Espírito Santo:

Em 05 de março de 1865, Blackford organiza em São Paulo a segunda igreja presbiteriana, com dezoito pessoas. De São Paulo lançam-se os presbiterianos para o interior, o que veio a caracterizar a ação missionária tipicamente rural dessa denominação no seu período inicial (1984, p. 25).

Mendonça (1984, p. 207-257) enfatiza que boa parte das causas da alienação

cultural do protestantismo está ligada ao fato de que os missionários, pregadores e

educadores que aqui chegaram, a despeito de sua rica formação acadêmica,

trouxeram na bagagem suas formas de crença muito afetadas pela teologia dos

avivamentos, do transcendentalismo representado por Ralph Waldo Emerson, do

escolasticismo dogmático, do pietismo e de uma visão escatológica pré-milenarista.

Reunidas, essas condições iriam se somar à prática de uma tríplice combinação de

ações:

43

https://www.youtube.com/watch?v=oRzz1_d7g98&list=PLl6S1cbsz4OxTwa8-dMHFkcA3vvGoa1rg&index=1. Vídeo - fragmento: 42’00” – 42’:44. Acesso em 30/05/2017.

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O padrão de pregação do protestantismo brasileiro de missão foi sempre tríplice: avivalista, polêmico e moralista. O padrão avivalista tem por objetivoa conversão do indivíduo, o polêmico convencê-lo da verdade do protestantismo ante o catolicismo e o moralista mostra e inculca os padrões de conduta diferenciadores da nova religião...(p.207) O conhecimento das línguas bíblicas, a prática da exegese e da hermenêutica sobre os textos sagrados produziu filósofos e gramáticos conhecidos. Por outro lado, a polêmica e o moralismo isolaram os protestantes da cultura, assim como este último, o moralismo, parece ter fechado as portas dos eruditos protestantes para a literatura (p. 215).

Olhando a partir de outra perspectiva observa-se que o encontro da cultura do

protestantismo norte-americano com a cultura tupiniquim será marcado por

tentativas de imposição de um modelo sobre o outro. O olhar daquele sobre a

cultura brasileira tem suas raízes lançadas no modelo que aqui aportou em meados

do século XIX que trazia na bagagem uma autoimagem cultural formatada pelo

‘Destino Manifesto’, expressão cunhada em 1845 que resumia a autocompreensão

dos “brancos norte-americanos de que seu país tinha um objetivo assinalado pela

divina providência para guiar o resto do mundo nos caminhos do progresso e da

liberdade” (GONZALES, Vol. 9, p. 31) e que legitimaria o expansionismo e

colonialismo.

Duncan Reily (1984, p. 19) descreve a justificativa encontrada para o

expansionismo americano do que resultaria diversos níveis de transplante e/ou

imposição cultural:

Como Deus, por Moisés, libertou os israelitas da escravidão no Egito, pela travessia maravilhosa do Mar Vermelho, os puritanos se libertaram da opressão dos soberanos ingleses Tiago I e Carlos I, atravessando o Atlântico no pequeno navio Mayflower. Deus estabelecera o seu pacto com o povo liberto, no Sinai; paralelamente, os puritanos, antes de pôr os pés em terra seca na América, firmaram o Mayflower Pact. Explicitaram que haviam encetado sua viagem de colonização “para a glória de Deus, avanço da fé cristã e honra do nosso rei e país... solene e mutuamente, na presença de Deus, e cada um na presença dos demais, compactuamos e nos combinamos em um corpo político civil.” Finalmente, como Josué havia conquistado a terra da promissão, os americanos viam como seu “destino manifesto” conquistar o continente de Oceano a Oceano, espalhando os benefícios de uma civilização republicana e protestante por toda a parte.

A chegada do protestantismo ao Brasil, um modelo que de alguma forma

estava coberto pela convicção de ser portador da modernidade, coincide com um

período de surto progressista. Isto se devia ao fato de que boa parte do pensamento

das elites relativo à política, à religião, às artes e, principalmente, aos novos

empreendimentos havia sido trazido da Europa iluminista:

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O país desfruta de um contexto social aberto às inovações da época, em certa áreas até progressista, e por que não dizer, liberal. O país conta com um número grande de centros urbanos, de acesso relativamente fácil através da nova rede ferroviária, e com um sistema de comunicações que garante aos missionários um contato mais estreito com as suas igrejas de origem e uma maior integração dos pontos missionários estabelecidos pelo país. É nesse contexto social que a fé trazida pelos protestantes vai encontrar solo fértil em meio a um pequeno segmento da população brasileira (CAVALCANTI, 2008, p. 67).

Émile G. Léonard (1981, p. 27-55) registra que durante o período em que

foram chegando os missionários americanos no Brasil, como Ashbell Green

Simonton que desembarcou no Rio de Janeiro 12 de agosto de 1859 enviado pela

Igreja Presbiteriana do Norte dos Estados Unidos (PCUSA), personagens da elite

brasileira como o Regente Feijó, e mesmo da parte do Imperador, alimentavam a

expectativa de que os cidadãos protestantes eram portadores de elementos da

modernidade. Não havia um interesse religioso, apenas a esperança de que

houvesse uma contribuição para as transformações do panorama social e

econômico no Brasil.

No período dos grandes empreendimentos civilizadores a religião protestante

de alguma forma seguia no rastro das nações protagonistas a partir de dois

modelos. O protestantismo transplantado para o Brasil seria do tipo de ‘mercado

aberto’, distinto dos sistemas europeus nos quais a igreja oficial é exportada dentro

do pacote do empreendimento vindo a fazer parte da ordem social gerida. Nesse

caso as igrejas protestantes se tornam a expressão religiosa da presença

colonizadora. Os missionários se utilizam da infraestrutura colonial (principalmente

dos sistemas de transporte e comunicações exportados para as colônias) para

expandir o seu trabalho espalhando templos em nações do hemisfério sul e também

redes educacionais e hospitalares que influenciariam o desenvolvimento dessas

colônias. Dessa forma, as igrejas protestantes se tornam partícipes no

estabelecimento de uma nova ordem social. (CAVALCANTI, 2008, p. 62).

No caso das missões norte-americanas é preciso competir pela adesão dos

fiéis como num mercado aberto, e não se pode contar com a estrutura do governo e

com sua proteção. O protestantismo americano que desembarcaria no Brasil havia

sido forjado desde a chegada dos pais puritanos. Mendonça assinala uma das

peculiaridades que seriam ao longo das décadas adensadas tornando-se

responsáveis pela formatação do modelo de protestantismo que viria para o Brasil:

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Dadas às condições e causas do seu êxodo da Inglaterra sentiam-se “responsáveis pela ordem das coisas na sociedade. De modo que se pode dizer que a construção na nacionalidade americana, no seu espírito, está intimamente ligada ao calvinismo. Ao longo das décadas o espírito do protestantismo foi sendo forjado por meio da disciplina rígida, solidamente bíblica, “de espiritualidade profunda, zelosa e severa, dominando todos os setores da vida, tanto social quanto individual” (1984, p. 43-47).

As transposições e imposições culturais ocorridas no século XIX e começo do

século XX encontravam respaldo nas academias a partir das teorias antropológicas

desenvolvidas com base no evolucionismo unilinear. Tratava-se de uma teoria

idealista que toma como padrão o europeu, sua sociedade e tecnologia, do que

resultou uma plataforma filosófica como justificativa para o domínio do Novo Mundo

(LIDÓRIO, 2008, p. 27). A leitura que fazem os missionários do povo brasileiro é de

cima para baixo e contém expressões do tipo: “insensatez, miséria religiosa e

cultural, ausência das artes e das ciências, obscuridade e vazio” (CARDOSO, p. 03).

Certamente que no caso dos empreendimentos missionários europeus o risco

da imposição seria maior por ser a igreja um braço autorizado e oficial do estado.

Mas mesmo no caso americano percebe-se desde o início alguns dos elementos

que tornariam a relação cultural uma via de mão única. Não seria a única causa da

resistência à assimilação de elementos da cultura tupiniquim, mas está entre elas.

O sucesso das missões protestantes depende, portanto, da capacidade das

igrejas de atrair certos segmentos da população local. A "conversão" do "nativo"

requer por parte dele uma renúncia muito grande: ele tem que abandonar a sua

própria cultura e adotar um novo estilo de vida, nesse caso um estilo estrangeiro.

Num país como o Brasil do século XIX sempre existirá uma minoria da população

que é atraída pela mensagem protestante, mas o número de convertidos pode ser

maior ou menor dependendo do momento histórico da chegada do missionário e do

contexto em que essa missão se insere no país.

A forma de organização eclesiástica contribuiu para o distanciamento do

presbiterianismo da sociedade. Cavalcanti (2008, p. 66) salienta que se trata de um

modelo hierarquizado, que se assemelha com o modelo católico vigente no Brasil

com a diferença de que o poder é compartilhado com os leigos. Os batistas, por sua

vez, tem poder para ordenar seus próprios clérigos e para tomar todas as decisões

pertinentes à vida religiosa da igreja, o que lhes permite maior crescimento.

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Retomemos uma das questões levantadas por Mendonça, que está na base

das causas das dificuldades de comunicação da fé presbiteriana. Era de se esperar

que houvesse um choque entre a racionalidade da fé anglo-saxônica com o

misticismo brasileiro no que se refere à experiência do sagrado. Enquanto o

presbiterianismo experimentava a religião num modo disciplinado, ascético,

pragmático, e racional, os adeptos brasileiros buscavam a experiência mais

imediata, mais mística, mais visceral, e por que não dizer, pré-moderna. Ao aqui

chegar o pentecostalismo encontraria bem mais facilidades de aceitação.

O prolongamento do distanciamento se relaciona, também, com o fato de

igreja americana permanecer por muitas décadas se imiscuindo nos assuntos da

Igreja Presbiteriana brasileira. A transferência da liderança para as mãos dos

brasileiros seria um dos pontos fundamentais dos tensos debates que contribuiriam

para a ruptura que ocorreu em julho de 1903 originando a Igreja Presbiterana

Independente. A presença direta na liderança ou indireta de agentes patrocinadores

prolongou a dependência estrangeira, uma das causas por detrás da ácida e

contundente afirmação de Mendonça (2012, p. 74) de que “o protestantismo que

chegou ao Brasil jamais se identificou com a cultura do país. Continua sendo um

protestantismo norte americano com suas matrizes denominacionais e dependência

teológica”.

Assim, embora no período compreendido entre 1865 a 1888 a igreja

presbiteriana tenha conquistado sua autonomia e houvesse um grande crescimento

por meio de plantação de várias igrejas e da instalação de colégios em muitos

pontos, o progresso seria ofuscado por uma grave crise. Um grupo de presbiterianos

revelaria gradativamente um sentimento nacionalista que levaria a intensas

divergências entre o Sínodo e a Junta de Missões de Nova York a respeito das

prioridades de evangelização e educacional. O debate acerca da maçonaria seria

apenas uma cortina de fumaça para encobrir o problema mais delicado, que era a

permanente intromissão estrangeira nos assuntos da igreja, o que levaria ao cisma

de 31 de julho de 1903.

Boanerges Ribeiro, na conclusão de uma de suas obras, registra com

detalhes melodramáticos o que seriam os momentos finais da reunião que

representou a ruptura institucional a partir de um grupo liderado pelo pastor Eduardo

Carlos Pereira:

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Tendo falado de chapéu na mão, o Rev. Eduardo inclinou a cabeça para o moderador e saiu da plataforma, dirigindo-se à porta. Um presbítero de sua igreja, que não era membro do Sínodo, pediu em voz alta para abraçar o orador. Os partidários do Re. Eduardo, em número de 16, levantaram-se, então, e começaram a abraçar os seus amigos e a despedir-se. Muitas lágrimas se confundiram umas com as outras nessa ocasião. Os membros do Sínodo, em pé, começaram a cantar o hino ‘Deus vos até nos encotrarmos’ sem deixar seus lugares... o Sínodo estava em oração. Passava das onze horas da noite. (RIBEIRO, 1987, p. 423).

O ‘grande cisma’ do presbiterianismo brasileiro seria sucedido por outras

rupturas no futuro que dariam origem a outras igrejas por razões teológicas,

ideológicas e eclesiásticas. Na verdade, a tendência à produção de um número

interminável de ramificações pertence à própria maneira de ser do protestantismo

desde a Reforma no século XVI.

Deve-se considerar que os conflitos presentes numa instituição burocrática e

conservadora tal como a IPB tendem a se prolongar em idas e vindas, drenando

parte considerável da energia dos agentes cujo objetivo é a preservação do campo.

O grande problema desse tipo de permanente tensão interna, para usar da

linguagem de Bourdieu (1986, p. 59), reside no fato de que aqueles que detêm o

poder são, também, os sacerdotes detentores dos bens simbólicos que

desempenham igualmente a função de fomentar o crescimento da denominação por

meio da disponibilização de ofertas e religiosos que permita o crescimento da

organização e sua sobrevivência.

Os resultados das ações protetivas, a canalização de esforços para a

preservação da tradição e confessionalidade resultariam nas estatísticas acusadas

pelo censo da própria IPB de 2010: 312.343 membros44, uma quase invisibilidade se

comparada com as igrejas pentecostais com seus milhões de membros. A questão

que eventualmente se levantará no campo da IPB talvez seja com respeito ao grau

de elasticidade da organização para comportar movimentos inovadores, tais como a

Chácara Primavera e as comunidades presbiterianas.

CONCLUSÃO:

Procuramos demonstrar que o sucesso da gestação de movimentos tais como

a Chácara Primavera está relacionado com a intercessão histórica e sociológica de

44

Conf. Relatório oficial da IPB - http://www.executivaipb.com.br/Atas_CE_SC/CE/CE%202010/doc_262. Pdf. Acesso em 06/05/2107.

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fatores presentes no interior do campo religioso com os elementos presentes na

sociedade. A igreja, com seu modelo alternativo, eventualmente aproveitou dessa

convergência de fatores para se firmar, expandir e projetar, tanto quanto para se

tornar o centro de irradiação de um conjunto de conceitos e métodos em processos

de plantação de igrejas.

Procuramos também apresentar um quadro de elementos históricos que

operaram como determinantes para que a IPB houvesse se tornado um campo

religioso refratário à aproximação da cultura e inibidor de alternativas que

escapassem da moldura racionalista. Os recortes históricos que foram

disponibilizados têm indicado que a IPB conseguiu por muito tempo preservar a

estabilidade de seu campo religioso pelas vias da expulsão ou silenciamento de

vozes contrárias, exatamente uma das razões de sua estagnação numérica e de seu

alienamento cultural.

As três últimas décadas têm revelado uma significativa modificação na

estrutura do pensamento político da IPB, muito em razão da própria reconfiguração

do quadro político nacional. A nova geração de pastores e presbíteros, os agentes

que definem os rumos da denominação, tem sido formatada dentro dessa nova

moldura sócio-histórica e eclesiástica, favorável à instalação de um modelo mais

plural e tolerante a inovações e à implantação de novas fórmulas.

O próximo capítulo constará de um esforço de identificação e análise dos

fatores presentes no fenômeno de secularização que têm contribuído no processo

de fragmentação de identidades e diluição do controle das instituições. Trata-se de

uma tentativa de demonstrar alguns elementos que têm favorecido o surgimento de

iniciativas tais como a Chácara Primavera por produzir uma condição de pluralidade

no campo presbiteriano.

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CAPÍTULO II

CHÁCARA PRIMAVERA: ANATOMIA DE UMA

IDENTIDADE

A identidade é uma luta simultânea contra a dissolução e a fragmentação; uma intenção de devorar e ao mesmo tempo uma recusa resoluta a ser devorado (Zygmunt Bauman).

INTRODUÇÃO:

O capítulo anterior procurou oferecer uma visão panorâmica dos

condicionantes históricos, ideológicos e sociais que têm produzido significativas

mutações e um realinhamento de forças no campo da IPB. Outro objetivo foi o de

investigar os fatores que de alguma forma têm fornecido os elementos estruturantes

para a formatação da identidade da IPB que resultou numa instituição refratária à

aproximação e apropriação de elementos dos diversos campos da cultura

tupiniquim.

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O presente capítulo contém um esforço que se desdobra em três momentos

interligados. O primeiro deles, uma tentativa de visualização da identidade

presbiteriana e seus traços dominantes. O segundo contém uma tentativa de

examinar a relação de forças produzidas pela secularização responsáveis pela

fragmentação de identidades, diluição do controle das instituições religiosas e

formação de um cenário marcado pela pluralidade. Finalmente, se fará um esforço

de descrição dos traços da identidade da Igreja Presbiteriana Chácara Primavera em

relação ao campo da IPB e o cenário religioso brasileiro.

Como ponto de partida, uma definição primária, quase simplista. Considere-se

identidade, do latim identitas, como o conjunto de características e dos traços

próprios que distinguem um indivíduo, grupo ou comunidade dos demais ou em

comparação e mesmo em oposição com o(s) outro(s). Acrescente-se, porém, que à

essência ou ao que é fundamental se pressupõe um processo de metamorfose, ou

seja, de constante transformação, tornando-se a identidade “... o resultado provisório

da intersecção entre a história da pessoa, seu contexto histórico e social e seus

projetos. A identidade tem caráter dinâmico”. (FARIA/SOUZA, 2011, p. 36).

Segue-se uma apresentação de duas perspectivas a respeito do conceito de

identidade assinalado pelo pensador francês Claude Dubar (2006, p. 7). Do ponto de

vista da corrente denominada essencialista, o conceito de identidade repousa sobre

a crença nas “essências, nas realidades essenciais, nas substâncias ao mesmo

tempo imutáveis e originais [...] o que se mantém na mesma a despeito das

mudanças, para além do tempo, o que permanece idêntico”. O autor citará

Parmênides (Séc. X a.C) e sua fórmula ‘o ser é, o não ser é’ a fim de ressaltar o

caráter permanente da identidade a despeito das mudanças.

Dubar (2006, p. 8) citará Heráclito, que viveu um século antes, e as frases a

ele atribuídas ‘não se pode tomar banho duas vezes no mesmo rio’ e ‘tudo flui’ com

o objetivo de ressaltar uma concepção oposta à precedente, uma corrente que será

denominada de nominalista:

Não há essências eternas. Tudo é submetido a mudança. A identidade de qualquer ser empírico. A identidade de qualquer ser empírico depende da época considerada, do ponto de vista adoptado. Quais são então, neste caso, as categorias que permitem saber alguma coisa sobre estes seres empíricos em constante mutação? São as palavras, os nomes que dependem do sistema de palavras em uso, servindo, num determinado contexto, para as nomear. São os modos de identificação, historicamente variáveis.

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Visto dessa maneira o processo de construção identitária social assume uma

condição dialética que se faz presente nos encontros ao longo da história do

indivíduo ou do grupo, aquilo que se supõe ser um permanente processo de

interferências inevitáveis das produções culturais. Outro ingrediente dessa tensão se

refere ao fato de que a identidade virá a ser concebida em termos de “oposição

entre o que esperam que o sujeito assuma e seja e o desejo do próprio sujeito em

ser e assumir determinadas identidades” (FARIA/SOUZA, 2011, p. 37). Correndo o

risco de simplificação, pode-se considerar que a questão envolvendo a Chácara

Primavera se relaciona com o que a IPB espera de suas comunidades e o que

muitas destas desejam de fato ser no encontro com a cultura contemporânea.

2.1. Traços da identidade presbiteriana.

O presbiterianismo como hoje se vê é fruto de um longo e complexo processo

histórico. Todavia haverá conformidade entre os reformados (calvinistas) de que os

elementos essenciais formativos de sua identidade são encontrados no movimento

que ocorreria logo após a Reforma de Lutero que seria denominado de a ‘segunda

reforma’. Pode-se creditar a João Calvino (1509-1564) a estrutura da identidade

teológica e ao escocês John Knox (1514-1572), que retornaria para a Escócia após

um tempo na companhia de Calvino, a base de seu governo eclesiástico.

Aqueles que seriam os ancestrais do presbiterianismo americano teriam sua

identidade formada a partir do século XVI e XVII, período turbulento que resultaria

na Reforma da Igreja na Inglaterra. Os que haviam fugido para o continente e

chegado até a Genebra de Calvino retornariam posteriormente com profundo desejo

de ver uma reforma de amplo alcance em seu país. O grupo que ficou conhecido

como o partido dos puritanos contribuiria de maneira significativa para moldar o

sentimento do povo inglês, e diante de pressões emigraram para a América onde

iriam exercer notável influência na construção da sociedade que aspiravam.

Identidades sofrem alterações ao longo da história no encontro com tantas

outras fontes de influência e demandas. Aspectos da construção identitária do

puritanismo, captadas por Max Weber (2004) e que para o pensador alemão

nutririam o espírito do capitalismo, tinham sua base nas convicções religiosas e na

autocompreensão como povo eleito e cujas obras deveriam ser de tal natureza que

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comprovassem o seu status. Essa atitude, que desembocou numa ascese

intramundana, influenciou a dinâmica do trabalho e do estudo, e seria fator

preponderante para a formação do espírito protestante do povo americano.

Nos Estados Unidos outros ingredientes foram sendo, naturalmente,

incorporados na construção identitária do calvinismo Todavia seriam eles, os

puritanos e os seus desdobramentos, como indica Mendonça (1984, p. 44), os

grandes responsáveis pela formatação do espírito protestante americano. A

estrutura do pensamento e autoimagem do protestantismo receberia contribuições

resultando num espírito anti-institucionalização. A vida seria organizada em torno do

tripé religião-moralidade-educação. Aos poucos a convicção de povo eleito se

transformaria sentimento de superioridade cultural que encorajaria e justificaria os

empreendimentos de colonização e missionários (Mendonça, 1984, p. 65-73).

As comunidades calvinistas iriam desenvolver características particulares que

as tornariam, lá na frente, igrejas organizadas a partir de um sistema democrático

representativo, estruturado sobre a modalidade hierárquica de concílios e

controladas por um complexo sistema burocrático. Ocorre que a identidade

presbiteriana brasileira seria tremendamente afetada, como foi mencionado no

capítulo anterior, pela combinação histórica em nosso país de elementos como o

escolasticismo dogmático, o transcendentalismo e o pré-milenarismo que viriam a

determinar a essência e os contornos de uma identidade autocentrada e

culturalmente refratária (Mendonça, 1984, p. 255-257).

Quanto à sua organização a IPB se autodefine e se organiza como uma

federação de igrejas locais orientadas e controladas pela Escritura Sagrada e pelos

documentos de Westminster. Trata-se de uma relação piramidal hierárquica cuja

autoridade é exercida pelos que governam (pastores e presbíteros reunidos em

concílios) e pelos que são governados (assembleia). Cada uma das igrejas locais

pertencentes à federação se organiza em pessoa jurídica e à assembleia geral

compete eleger pastores e oficiais (presbíteros e diáconos) ou pedir sua

exoneração, aprovar estatutos, ouvir informação de relatórios financeiros e outros e

deliberar sobre aquisição ou alienação de imóveis45.

45

Constituição da IPB. Manual Presbiteriano pág. 8 e 9.

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Os traços da cultura burocrática se percebem na dependência das normas

escritas, estatutos, regimentos internos, documentos, atas, códigos reguladores de

conduta e tribunais e por um sistema meticuloso de controle contábil. A respeito

dessa matéria cabe a observação de Lairton Lira Cruz Jr (2006, p. XVII e XX)

A literatura esclarece que o modelo organizacional mecanicista, adotado pela IPB é pouco adequado aos novos tempos, apresentando disfunções e limitações, que se refletem na sua estratégia de manutenção de seus colaboradores e de crescimento quantitativo de sua membresia [...] Portanto, repensar o modelo de gestão da tomada de decisão na Igreja Presbiteriana do Brasil pode ser o começo de um processo de revitalização da organização através da adoção de práticas administrativas mais modernas.

Quanto ao sistema de governo representativo, os concílios da IPB são

assembleias constituídas de ministros e presbíteros e guardam entre si gradação de

governo e disciplina, assim dispostos em ordem ascendente:

1. O Conselho da Igreja Local, composto pelo pastor e por presbíteros eleitos

pela Assembleia para um mandato de cinco anos com direito à sucessivas

reeleições. O Conselho se organizará em diretoria cuja presidência caberá ao

pastor.

2. O Presbitério exercerá jurisdição sobre os ministros e conselhos de

determinada região e se reunirá ordinária ou extraordinariamente tendo como

representantes os pastores e um presbítero eleito pelo Conselho da igreja

local para representa-la.

3. O Sínodo exercerá jurisdição sobre três ou mais presbitérios.

4. O Supremo Concílio exerce jurisdição sobre todos os concílios e se reunirá

ordinariamente a cada quatro anos como assembleia composta dos

deputados eleitos pelos presbitérios.

Os componentes acima elencados, agregados ao escolasticismo, dogmatismo

e rigorismo moral que foram sendo incorporados ao presbiterianismo brasileiro, de

certa forma autorizam a classificar a Igreja Presbiteriana do Brasil como uma

comunidade discursiva, conceito atribuído a John Swales46, de relativa

complexidade, que foi capturado e desenvolvido por Ederval Scarpin (2014) em sua

dissertação de mestrado a respeito da tipificação, gêneros e identidade da IPB.

46

Nesse caso deve ser informado que se trata de extrair informações do pensamento de John Swales a partir de fontes secundárias.

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Scarpin (2014, p. 16) utilizará a expressão supramundo para representar as

quatro referências que se constituem na base pré-existente à comunidade: a Bíblia

Sagrada que se torna o protodiscurso debaixo do qual estarão todos os outros

gêneros desenvolvidos pela igreja, e os três documentos de Westminster, a

Confissão de Fé e os Catecismos Maior e Breve. Essa classificação inicial se

enquadra no modo como a IPB se define no Artigo Primeiro de sua Constituição47:

A Igreja Presbiteriana do Brasil é uma federação de igrejas locais, que adota como única regra de fé e prática as Escrituras Sagradas do Velho e Novo Testamento e como sistema expositivo de doutrina e prática sua Confissão de Fé e os Catecismos Maior e Breve; rege-se pela presente Constituição; é pessoa jurídica, de acordo com as leis do Brasil, sempre representada civilmente pela sua Comissão Executiva e exerce o seu governo por meio de concílios e indivíduos, regularmente instalados.

Partindo dos fundamentos, serão agrupados os gêneros que funcionam como

unidades representativas da denominação. Servem como um tipo de padrão mais

pormenorizado de uma comunidade tradicional dividido em três modalidades, ou

‘mundos’: administrativo, ritual e social. Segue abaixo a divisão estabelecida pelo

autor (2014, p. 22-24) que opera como um feixe identitário da denominação.

Os itens dos gêneros listados têm sido historicamente sedimentados e

acabam por apontar para a própria identidade das comunidades locais e da

denominação. O exame de documentos de conselhos e das sociedades internas

revelará a ausência de ações de planejamento estratégico visando o

estabelecimento de objetivos, metas e cronograma48.

GÊNERO FUNÇÃO/OBJETIVO BÁSICO

GÊNEROS DO SUPRAMUNDO

Bíblia Sagrada

Confissão de Fé Instruir os paradigmas do sagrado;

estrutura interpretativa das Escrituras.

Catecismos Exercitar pela memorização os

paradigmas estabelecidos pela

Confissão de Fé.

47

Manual Presbiteriano da Igreja Presbiteriana do Brasil. Supremo Concílio da Igreja Presbiteriana do Brasil. São Paulo. Editora Cultura Cristã, 2013, p. 8.

48 Trata-se de uma conclusão do autor deste trabalho à luz de suas próprias experiências na relação com

conselhos e sociedades internas.

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59

GÊNEROS DO MUNDO ADMINISTRATIVO

Constituição Orientar a respeito das regulamentações

legislativas da IPB.

Estatutos Estruturar regulamentos das igrejas

locais e dos concílios com relação a

questões cíveis.

Código de Disciplina Estabelecer parâmetros

regulamentadores dos direitos e deveres

dos membros e órgãos bem como de

eventuais ações disciplinares.

Princípios de Liturgia Estabelecer parâmetros definidores e

regulamentadores das formas de

expressão de culto e processos

ritualísticos.

Carta Pastoral Instruir a comunidade a respeito de

questões teológicas, éticas e ideológicas

mais específicas.

Digesto Organizar as resoluções do Supremo

Concílio facilitando processos de

notificação e de pesquisa.

Resolução Determinar o cumprimento de decisões

tomadas por uma instância hierárquica.

Planilha Orçamentária Apresentar balancetes, projeções e

estatísticas financeiras.

Ata Registrar fatos e resoluções ocorridas

nas reuniões de assembleias, concílios e

departamentos internos.

Relatório Prestar contas.

GÊNERO DO MUNDO RITUAL

Sermão Instruir os fiéis, normalmente em espaço

e ambiente solenizados, a partir de uma

passagem bíblica.

Santa Ceia Promover a comunhão dos membros

com Cristo e entre si.

Batismo Sacramentar a iniciação e inclusão dos

membros na comunidade.

Profissão de Fé Declarar publicamente, em culto solene,

a respeito da crença em Cristo e das

disposições de honrar a Ele e à

comunidade.

Hinos Expressar por meio de composições

sacras dos paradigmas relativos à

devoção, à adoração e aos conteúdos

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gerais da fé.

Oração Dominical Apresentar a Deus as súplicas que

ratificam a crença e os princípios

essenciais como ensinado pelo próprio

Cristo.

Ordenação Investir um membro de autoridade, ato

de um dos concílios.

Moto Motivar os participantes de um dos

departamentos internos e reforçar

objetivos essenciais.

Classe de Catecúmenos Instruir os iniciantes a respeito das

bases fundamentais da fé e prática da

igreja visando a recepção como

membro.

GÊNEROS DO MUNDO SOCIAL

Logomarca Estabelecer uma associação e conceitos

a símbolos que sintetizem a identidade

da comunidade ou algum aspecto

relevante.

Convite Solicitar a presença de alguém ou

instituição em algum evento

Aviso Dar ciência sobre algum acontecimento

ou sobra a realização de algo.

Artigo pastoral Instruir e oferecer bases de conduta

Programa de culto Instruir os cultuantes a respeito da

ordem do culto previamente organizada.

A despeito da inegável pluralidade que tem se instalado dentro do campo

presbiteriano, as igrejas tradicionais espelham em quase sua totalidade este

sistema, do qual decorrem outras atividades que acabam por se tornar traços

menores de identidade. Até à década de 1970 as comunidades da IPB

apresentavam uma dinâmica praticamente semelhante quanto aos encontros

semanais: no domingo, escola bíblica matutina e um culto solene vespertino Meio de

semana, dois encontros, um deles como espaço de ensino doutrinário e outro

destinado a reunião de oração. As outras atividades eram realizadas pelas

sociedades internas, ou domésticas.

Os templos representavam outro aspecto da identidade da IPB até anos atrás.

De variados desenhos arquitetônicos e dimensões, nada obstante austeros, tinham

em comum a configuração dos espaços que se tornavam ‘mais sagrados’ à medida

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61

que os ambientes se aproximassem do púlpito, o local indiscutivelmente mais

‘santo’, o que irá selecionar por status aqueles que ocuparão cada um daqueles

espaços, que trajes e comportamento deverá adotar.

De certa forma as mudanças sociais exigem alterações, mesmo que

discretas, na organização dos ambientes de culto, o que certamente irá obrigar uma

redefinição de atitudes. Tomem-se como exemplo algumas das igrejas

presbiterianas que estão sendo plantadas nos grandes centros, algumas delas tem

de optar por salões de hotéis, ficando sujeitas a novas configurações de ambiente e

horário. Ainda que tais comunidades preservem as linhas litúrgicas pautadas pelo

chamado princípio regulador do culto49, são todavia obrigadas a promover algum tipo

de inovação na cultura organizacional e nos modos de acompanhamento dos fiéis.

Assim, ainda que tais alterações se processem de modo menos radical, em níveis

distintos se alterarão as significações de sagrado e as relações com ele.

No caso da Igreja Presbiteriana Chácara Primavera o que se tem é um

conjunto de inovações ainda mais agudas, o que tem gerado protestos, críticas e

denúncias das alas mais conservadoras da denominação e de pastores e de

teólogos de prestígio na organização50, deve-se no mínimo questionar: seria a

Chácara Primavera uma expressão desfigurada do presbiterianismo, guardando

muito pouco das características essenciais da verdadeira identidade de uma igreja

reformada? Ou estaria ela, na verdade, sendo apenas o que se espera de uma

comunidade calvinista adaptada ao seu tempo e submetida às naturais

metamorfoses a que toda identidade está sujeita?

Deve-se considerar, também, dependendo da perspectiva de avaliação que

as comunidades presbiterianas podem estar se tornando em novos abrigos com

adornos típicos da pós-modernidade, mas que se sustentam a partir dos elementos

essenciais da identidade calvinista. As conclusões irão variar a partir do ponto de

49

Trata-se de uma versão ancorada no pensamento dos puritanos que não admitirá no conteúdo litúrgico algo que não esteja devidamente estabelecido nas Escrituras. A despeito de eventuais discordâncias entre os teólogos em algum ponto ou outro, trata-se de um conteúdo no qual devam constar orações, hinos, os sacramentos e a exposição bíblica. Para a IPB, os princípios estão regulamentados na Confissão de Fé de Westminster e nos Princípios de Liturgia do Manual Presbiteriano.

50 O Supremo Concílio reunido em 2014 recebeu um documento com mais de 80 páginas com farta requerendo

que pastores da IPB não fizessem parte do quadro de monitores do CTPI, ligado às comunidades presbiterianas. O documento fora enviado pela Junta de Educação Teológica, JET, órgão responsável pela definição e coordenação de todo o sistema de ensino teológico da denominação. O processo não seguiu em razão de o documento não ter sido enviado pelos canais competentes

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vista, pois como bem assinalou o franciscano Leonardo Boff, todo ponto de vista é a

vista de um ponto: “a cabeça pensa de onde os pés pisam” (1999, p. 09).

2.2. Secularização, pluralismo e resistência: identidades em crise.

Uma das causas explicativas da descaracterização da identidade

presbiteriana que sofrerá uma comunidade como a Chácara Primavera é, na opinião

de alguns, a elevada porosidade de suas fronteiras e a intencionalidade de suas

ações que permitem a incorporação de inovações nos campos litúrgico, discursivo e

metodológico incompatíveis com o padrão da denominação. Secularização é o ponto

em questão.

As expressões derivadas de ‘secular’ – secularismo, secularidade e

secularização – tomam seu significado moderno da distinção medieval entre aquilo

que estaria sob jurisdição eclesiástica, mais particularmente monástica, e o que

estaria sob jurisdição secular. A partir de G. H. Holyoake (1817-1906) e seus pontos

de vista antirreligiosos os termos passaram a ser associados à negação de

causalidades sobrenaturais e do conjunto de afirmações de abordagens não-

religiosas da realidade (HAMILTON, 2007, p. 541).

Os protestantes, especialmente os presbiterianos, não deveriam se

surpreender com os efeitos da secularização e muito menos em serem eles os

portadores de elementos da modernidade. A começar pelo fato de que a Reforma

Protestante foi um dos - senão o – fatores preponderantes, junto com o Iluminismo,

para a fecundação do solo no qual floresceria a secularização e os fenômenos

coadjuvantes ao processo de desencantamento do mundo Não se poderá negar que

o desenvolvimento das ciências e de um sistema capitalista arrojado encontrará na

desmagificação e desencantamento do mundo, um de seus fatores de propulsão,

originários das convicções religiosas e teológicas das experiências de ascese

intramundana do calvinismo, (WEBER, 2004).

Foram as convicções religiosas e os princípios formulados pelos

reformadores, tais como o livre exame das Escrituras e a doutrina do sacerdócio de

todos os crentes, que produziram as rachaduras nas estruturas do rígido monopólio

religioso e lançaram as sementes do pluralismo que seguiria na esteira do conceito

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de liberdade individual. Como salienta Rubem Alves (1982, p. 58) “o individualismo

protestante contém em si as sementes da desintegração”.

Com o advento da modernidade, ventos soprados pelo Iluminismo penetraram

no campo teológico, principalmente na Alemanha, originando tentativas de tornar o

pensamento cristão razoável e apetecível ao homem moderno. Pensamentos e

versões teológicas produzidas por homens como Rudolph Bultman, que sacudiria as

estruturas do mundo teológico com sua proposta de demitização das Escrituras

(MONDIN, p. 115), atravessariam as décadas gerando reações ao liberalismo na

linha da neo-ortodoxia de Karl Barth no século e outros teólogos na primeira metade

do século XX. As alterações drásticas no pensamento teológico seriam em grande

parte promovidas pelas circunstâncias criadas por duas guerras devastadoras que

revelariam as terríveis ambiguidades das teologias, sobretudo da igreja alemã.

Seria Dietrich Bonhoeffer (1906-1945) um dos precursores e propagadores de

uma versão teológica secularizada, proposta que seria denominada de a ‘Teologia

da Morte de Deus’. É certo que o pensamento de Bonhoeffer tem sido deformado à

medida que se o compreende como uma procuração para uma vida secular e mais

nada, o que está muito distante da verdade. Salienta o sacerdote italiano Batistta

Mondin (1980, p. 190):

A secularização nunca é entendida por Bonhoeffer como uma rendição complacente às concepções secularistas e atéias do homem moderno; não é um artifício para liquidar a Igreja e a teologia em favor do homem e do mundo, mas sim uma nova metodologia para tornar inteligível e eficaz a comunicação do Evangelho em nosso século.

Apesar da defesa feita à maneira como Bonhoeffer compreendia o desafio da

modernidade secularizada e da ‘maioridade do mundo’, Mondin (1980, p. 166)

acrescenta que pode ser creditado ao teólogo alemão o fato de ter “contribuído de

forma determinante para a discussão do problema da reexpressão do cristianismo e

para o desencadeamento da secularização e da teologia do cristianismo a-religioso”.

O resumo simplista acima visa despertar a atenção para o fato de que o

protestantismo lançou as sementes de um desmanche das identidades então

definidas e unificadas a partir do questionamento dos quadros de referência de

autoridade e das bases da teologia. O advento da pós-modernidade seria o

momento da convergência de outros ingredientes, tais como o desencanto com a

ciência, a eclosão de duas guerras mundiais devastadoras, a hipertrofia do conceito

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de liberdade individual e o colapso das metanarrativas, o que contribuiu para o

adensamento das forças geradas pela secularização.

Dentro dessa moldura cultural deixou de ser mera aposta intelectual afirmar

que se trata de um tempo em que as identidades estão sendo ‘descentradas’, isto é,

deslocadas e fragmentadas, para citar Stuart Hall (2006, p. 08). Mais do que isso,

pode-se desconfiar se em algum momento as identidades modernas poderão

adquirir o status de coesão e estabilidade, sobretudo em razão do que diagnosticou

Zygmunt Bauman (2004, p. 15) a respeito das instituições sociais que...

[...] não podem mais manter sua forma por muito tempo (nem se espera que o façam), pois se decompõem e se dissolvem mais rápido que o tempo que leva para moldá-las e, uma vez reorganizadas, para que se estabeleçam. É pouco provável que essas formas, quer já presentes ou apenas vislumbradas, tenham tempo suficiente para se estabelecer, e elas não podem servir como arcabouços de referência para as ações humanas, assim como para as estratégias existenciais a longo prazo, em razão de sua expectativa de vida curta.

Para muitos teóricos trata-se de um tempo de interrupção na linha de

continuidade que possibilitava a transmissão e preservação dos símbolos

unificadores das identidades nacional, cultural e religiosa. Como observa Anthony

Giddens (1990, p. 37, 38), uma sociedade moderna sinaliza que o passado não

pode ser mais venerado e as tradições perpetuadas com a chegada ao fim das

sociedades tradicionais. David Harvey, citado por Hall (2006, p. 16) irá se referir a

essa dinâmica como “um rompimento impiedoso com toda e qualquer condição

precedente, um processo sem fim de rupturas e fragmentações internas em seu

próprio interior”.

Seguindo na linha do que propõe Giddens, a de um rompimento impiedoso

com toda e qualquer condição precedente, pode-se falar da religião na pós-

modernidade como uma condição ou estado de supressão das estruturas que

ofereciam as bases teóricas de plausibilidade para os grande sistemas religiosos.

Daniele Hervieu-Léger (1997, p. 45) salienta que se trata de um processo de

substituição pelas pequenas narrativas subjetivas que se articulam à(s) grande(s)

narrativa(s) que constitui(em) a(s) tradição(ções), cujas depositárias são as

instituições.

Os efeitos de tal processo de atomização se percebem no interior dos campos

das instituições religiosas tradicionais. Elas ofereciam quadros de referência que em

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níveis diversos um dia contribuíram para sustentar as velhas identidades, mas que

“mostram hoje sérios sinais de cansaço, mais do que isso, de exaustão em sua

capacidade de reprodução ampliada”, como observa Antônio Flávio Pierucci (2004,

p. 17). Em outro momento afirmará o pensador weberiano (1997, p. 103) que a

religião foi desbancada de seu papel de matriz cultural totalizante tendo sido a ela

reservada a esfera privado-íntima. Para Bauman (2004, p. 33) não há como

depositar confiança nas antigas estruturas:

Com o mundo se movendo em alta velocidade e em constante alteração, você não pode mais confiar na pretensa utilidade dessas estruturas de referência com base em sua suposta durabilidade (para não dizer atemporalidade). Na verdade, você não confia nem precisa delas. Essas estruturas não incluem facilmente novos conteúdos. Logo se mostrariam muito desconfortáveis e incontroláveis para acomodar todas as identidades novas, inexploradas e não-experimentadas [...] Rígidas e pegajosas, também é difícil livrar essas estruturas dos velhos conteúdos quando se chega a sua data de validade. No admirável mundo novo das oportunidades fugazes e das seguranças frágeis, as identidades ao estilo antigo, rígidas e inegociáveis, simplesmente não funcionam.

Esse fenômeno que foi gestado no ventre da Reforma e do Iluminismo, que

tem enfraquecido o controle dos grandes sistemas religiosos no ocidente,

surpreendentemente gera novas dinâmicas pelas quais o ser humano irá expressar

sua religiosidade. Assim, não se trata de aniquilação da vida religiosa, mas de sua

redefinição à medida que a individualidade herdada da modernidade pressupõe que

o indivíduo mesmo escolha seu próprio tutor. Antônio Flávio Pierucci (1997. p. 112)

dirá que a secularização dilui a força da tutela das instituições religiosas,

determinando-lhes o fim de um status de abrigo, mas ao fazê-lo paradoxalmente

libera forças que contribuem para a revitalização da religião possibilitando novas

moradas, mais esparsas, menos institucionais.

Peter Berger (1971, p. 134) se refere à secularização como “o processo pelo

qual se suprime o domínio das instituições e os símbolos religiosos de alguns

setores da sociedade e cultura”. Assim, de protagonista, a religião nas versões

institucionais católica e protestante terá o seu papel redefinido. Sua legitimação não

será mais imposta, mas passará a ser um processo adotado voluntariamente, sem

coerção. Mais ainda, a religião instituição foi deslocada, não mais se referindo e

interferindo em questões sociais e políticas, sendo-lhe reservado o direito de intervir

no mundo privado. A secularização, ao romper o monopólio religioso inaugurou a

condição de pluralismo.

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Assim, o processo de desmanche das identidades carrega as sementes das

desinstitucionalização, que poderá mesmo gerar um processo de ‘desigrejação’ que

no Brasil tem sido confirmado pelos números do CENSO de 2010 que aponta um

movimento de milhões de evangélicos não determinados, em outra linguagem,

desigrejados.

A verdade é que a quebra do monopólio dos grandes sistemas, aliado ao

processo de individuação originará um campo religioso marcado pela pluralidade e

pela privatização do sagrado e das expressões religiosas. Isso não deveria pegar os

protestantes de surpresa tendo em vista que as sementes do processo de

secularização têm sido lançadas pelo espírito da Reforma Protestante, como

observa Rubem Alves (1982, p. 37): “o protestantismo tem temas esquecidos, peças

empoeiradas que ninguém mais sabe usar, mas que poderiam ser tiradas das

sombras: a liberdade, foi com esse tema que a Reforma se iniciou...”. Alves (1982, p.

58) ainda dirá:

Um dos princípios fundamentais da Reforma, o sacerdócio universal dos crentes, afirma que cada fiel se encontra perante Deus, sem a necessidade de instituições ou pessoas mediadoras. Além disso, a ênfase do livre exame das Escrituras e no direito de cada um de interpretá-la, à luz da consciência, teria criado as condições para a multiplicação de compreensões conflitivas da fé.

Como resposta às eventuais distinções a respeito dos impactos causados

pela secularização nos campos da Europa e da América Latina, Pierucci (1997, p.

106) propõe uma abordagem de considerável plausibilidade a partir de outra lógica

ao avaliar as eventuais distinções dos desdobramentos e efeitos. O sociólogo

considera que no caso europeu o que se tem é um “incremento linear de não-

crença”, enquanto no contexto latino-americano se pode constatar um processo “de

secularização como a passagem de uma situação de monopólio-ou-hegemonia de

uma única religião para um cenário diversificado de pluralismo religioso plenamente

aceito e definitivamente instalado”. Dessa forma Pierucci visa explicar o paradoxo

entre o que ele insiste ser a secularização um processo irreversível e a

efervescência da religião e sua capacidade de ajustamentos.

O pluralismo religioso, para Marcelo Ayres Camurça (2003, p. 63), se

fundamenta na perda de controle dos grandes sistemas religiosos que abarcavam o

todo social a religião se recompõe em novas formas. Assim, a religião não se

extingue, antes, reinventa sua própria dinâmica, ganha novos contornos e se adapta,

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seja para atender ao espírito da própria secularização e o capitalismo, seja para

adaptar-se a ela sem ser por ela devorado.

Reconhecer que as instituições religiosas são coadjuvantes, seja a Igreja

Católica pluralizada ou a versão evangélica com suas intermináveis versões, e que

atuam não mais como protagonistas no debate sobre temas como ecologia, bioética,

ética, artes e etc. implica em propor algo como uma redução significativa de seu

papel, todavia, não de sua expulsão das questões gerais da sociedade. Basta olhar

para a representatividade das bancadas religiosas durante as discussões de temas

caríssimos à agenda de ambas as vertentes para se perceber o ‘segundo violino’ se

faz ouvir suas notas com intensidade, para usar de uma expressão que Pierucci

(1997, p. 106) adota ao se referir à diluição do papel institucional da religião.

Do pluralismo religioso do qual se poderá falar como o espaço das múltiplas

crenças é também o da variedade de ofertas. O campo religioso se torna um

mercado de bens e serviços, para lembrar Bourdieu. Berger (1971, p. 169) também

tomará essa dinâmica moderna como a causa que deflagra a livre competição entre

as religiões. Tradições e ritos não podem mais ser impostos, mas negociados como

produtos a serem adaptados de forma a atender a demanda das consciências

individuais. Instala-se a dinâmica marcada pelo pragmatismo e uma lógica que usará

das ferramentas de outro fenômeno da modernidade e da pós-modernidade, o

neoliberalismo econômico, para fomentar e atender às demandas de um fervilhante

comércio de serviços religiosos.

Destaque-se, à guisa de comparação, a lógica de mercado aplicada pela

Igreja Universal do Reino de Deus, IURD, em uma relação de ambiguidade com a

ética protestante e o espírito do capitalismo em Weber (2004), como observa Mary

Esperandio (2005, p. 38, 43).

Na IURD, o ideal já não é mais ter um trabalho, uma profissão para exercer a vontade de Deus. Mas, sim, ter o próprio negócio. Ser empresário parece ser o caminho ideal para a obtenção de lucro. Mas, diferentemente do Calvinismo em que o lucro deveria ser poupado, aqui o lucro deve ser gozado. Ganhar para gastar. Participar da sociedade de consumo que tudo quer possuir. Também Deus é para ser “possuído”. Se ele é a fonte da bênção, da riqueza, por que buscar bênçãos nessa fonte e não se tornar possuidor da própria fonte, como pregava o bispo Macedo num dos seus programas de rádio? [...] A IURD se estabelece justamente por atender as necessidades religiosas produzidas na pós modernidade: ambição de riqueza; desejo de consumo; evitação de todo e qualquer tipo de sofrimento. Capitalismo e IURD reforçam-se mutuamente.

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Para as instituições conservadoras na linha da IPB, a ética por detrás do

espírito do capitalismo se aplica à vocação secular do trabalho, e não à relação

instituição-fiel da qual se poderá auferir lucro por meio da oferta de bens religiosos.

A ética financeira é um dos pontos mantidos em comum dentro das igrejas

presbiterianas, orientadas por uma cultura eclesiástica que se utiliza de um rígido

sistema contábil e dentro das obrigações de prestação de contas aos membros.

Instituições tais como a IPB tendem a recusar-se a participar de das disputas

por consumidores de bens religiosos utilizando-se das mesmas regras de mercado e

de competição pela disputa de devotos. Isso porque sua identidade está atrelada ao

apego à tradição e à fidelidade à sua herança histórica. As alas conservadoras não

considerariam que a igreja esteja diante de um tipo de escolha de Sofia institucional,

como se fosse obrigada a optar pela preservação da tradição que resultaria na

possibilidade de estagnação, ou pela adoção do pragmatismo que maculará a velha

identidade.

Uma das formas de se avaliar os impactos da secularização e do processo de

desinstitucionalização é olhar para os números do CENSO do IBGE. De muita

utilidade são os artigos que apresentam algumas reflexões a respeito do mapa

religioso oferecido pelo Censo de 2010 na obra ‘Religiões em Movimento’

(TEIXEIRA/MENEZES, 2013, p. 14). Pierre Sanchis assim se refere às mutações

das identidades religiosas no prefácio:

A segunda característica da “religião” que parece desenhar-se sob nossos olhos é uma desinstitucionalização crescente. As estruturas sólidas que fundavam, enquadravam, regulavam o universo das experiências religiosas, conferindo-lhes distinção, identidade e conteúdo, não o fazem mais com o mesmo rigor... Um dos problemas mais críticos que as instituições religiosas terão de enfrentar nos próximos tempos será de se haver com um significado menos totalizante para a relação identitária que seus fiéis manterão com elas. (Grifos nossos).

A sociedade brasileira tem se tornado um cenário de impressionante

variedade de formas de arranjos religiosos. Templos suntuosos de grandes impérios

da fé repartem o espaço com um número cada vez maior de micro igrejas com seus

precários salões de culto e com a nova modalidade das casas ‘estações’ das igrejas

orgânicas e as expressões individualizadas adotadas pelos ‘desigrejados’. Um

universo caleidoscópico, formado por inúmeras identidades atendidas por uma

variedade interminável de recriações que operam na lógica de um mercado

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efervescente, um desfile de ‘profetas’, ‘apóstolos’, ‘líderes carismáticos’,

‘missionários’ e ‘bispos’ e uma multidão de peregrinos ou ‘mochileiros da fé’ movidos

por relações cada vez mais efêmeras e superficiais (BITUN, 2011, p. 22).

Dentro desse universo alguns movimentos, que certamente não possuem a

mesma visibilidade de outras expressões, têm-se destacado como uma alternativa,

principalmente por seu apelo ético, o que valeria a publicação de matéria sob o título

‘Os novos evangélicos’ pela revista ÉPOCA51 em agosto de 2010. O articulista se

refere ao movimento como a ‘Nova Reforma Protestante’, rótulo não utilizado pelos

pensadores que eventualmente o representariam. Os grupos focalizados na

reportagem, alguns pouco institucionalizados, outros mais, têm em comum a busca

pelo papel da religião na cultura contemporânea dentro de um cenário em que as

instituições e os milhares de expressões religiosas estão ‘sob júdice’ em razão de

sua credibilidade arranhada.

Entre as igrejas destacadas e os líderes entrevistados mereceram destaque a

Chácara Primavera e o pastor Ricardo Agreste, que numa das frases salientou um

dos pontos de apoio do compromisso da comunidade que pastoreia: “É lisonjeador

saber que nos consideram pensadores. Mas o grande problema dos evangélicos

brasileiros não é de inteligência. É de ética e honestidade”. A propósito, pesquisa

Datafolha52 encomendada pela Ordem dos Advogados do Brasil, três anos atrás,

acusa a ausência da igreja evangélica entre as dez instituições mais confiáveis,

enquanto a Igreja Católica aparece em quarto lugar.

Com relação à Chácara Primavera, a leitura positiva feita pelo lado de fora

não corresponde à que é feita da perspectiva dos representantes das alas mais

conservadoras da IPB. A comunidade é acusada de se prostrar diante da pressão da

secularização tornando-se cativa de suas demandas.53 A adoção de metodologias

extraídas dos campos do marketing e da cultura contemporânea representa algo

como um sacrifício da fidelidade bíblica e institucional no altar do pragmatismo, uma

51

http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI161475-15228,00- html. Acesso em 21/05/2017.

52 https://folhapolitica.jusbrasil.com.br/noticias/128682455/exercito-e-pf-sao-as-instituicoes-mais-confiaveis-

partidos-politicos-e-congresso-ficam-nos-ultimos-lugares. Acesso em 21/05/2015.

53 http://resistenciaprotestante.blogspot.com.br/2010/08/igreja-contextualizada-ou-secularmente.html. Acesso em

06/06/2017.

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capitulação diante das forças e demandas da secularização. A ofensa maior, uma

descaracterização da identidade presbiteriana54.

Aqueles que denunciam as ações da Chácara Primavera certamente

endossariam a observação feita por Arilson Oliveira (2012, p. 16) em sua avaliação

do pensamento de Peter Berger em relação a essa questão:

No que se refere ao conteúdo religioso, tem-se um princípio de mutação, ou seja, de constante adaptação das demandas, o que implica em uma lógica absolutamente inversa ao tradicionalismo religioso. Na verdade, as religiões, nesse contexto, tem a opção de adotar uma estratégia de adaptação, deixando os conteúdos sujeitos à moda, correndo, porém, o risco de perder os seus fiéis.

Exalte-se a bravura dos agentes pertencentes às alas conservadoras da IPB,

mobilizados em torno de um projeto comum de salvação ou resgate da velha

identidade presbiteriana, recusando-se a admitir que se fale de ‘identidades

presbiterianas’. Muitos que pertencem a este grupo revelam seu descontentamento

com o atual estado de pluralidade dentro do campo da IPB e se organizam em torno

de movimentos - um deles rotulado de neopuritanismo - a fim de trazer de volta

aqueles traços que do calvinismo que caracterizam a verdadeira identidade

presbiteriana. Um dos articulistas do movimento assim se posiciona:55

Há hoje uma ideia de que existem diversas formas de Presbiterianismo e até diversas formas de Reformados: O Escocês, o Brasileiro, o tupiniquim, o Puritano, o Americano, etc. Mas estas coisas nunca passaram pelas mentes dos teólogos de Westminster. A Confissão de Fé da Igreja Presbiteriana do Brasil é a de Westminster, fruto de mais de cinco anos e meio de cessões conciliares, sérias, piedosas, que fez o grande teólogo puritano e participante, Robert Baillie, afirmar: “Outra assembléia igual eu nunca vi, e nem é provável que venha e existir”. Quem subscreve os Padrões de Westminster subscreve o que os teólogos puritanos do século XVII redigiram.

A tentativa do autor em recusar admitir que não existe espaço para a

pluralidade dentro do campo presbiteriano somente comprova que a fragmentação já

está ali, instalada, e se expandindo. A Chácara Primavera seria resultado dessa

reconfiguração e evidência dela, talvez um presbiterianismo que dentro do campo da

IPB mais se afaste da identidade tradicional se comparado com tantas outras igrejas

que adotam sistema de células, afirmam a crença na contemporaneidade dos dons

54

http://resistenciaprotestante.blogspot.com.br/2010/08/igreja-contextualizada-ou-secularmente.html. O artigo traz alguns fragmentos de conteúdos de documentos e resoluções do Supremo Concílio da denominação em resposta a solicitação de Presbitério de Piratininga para que se examinassem as inovações das comunidades presbiterianas que apelavam para recursos de marketing o que promove com entusiasmo o apetite das pessoas por entretenimento”

54. Acesso em 04/06/2017.

55 http://www.iphr.org.br/2008/11/neo-puritanismo-ou-neo-presbiterianismo/. Acesso em 05/06/2017.

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(indício de proximidade com o pentecostalismo) e outras configurações menos

ortodoxas. A questão que demorará algum tempo para ser respondida é se as

comunidades são apenas um acidente ou ocorrência espasmódica com prazo de

validade determinado ou se já estão sendo absorvidas pelo tecido da cultura

eclesiástica passando a conviver numa relação tensa, mas administrável.

A verdade é que o presbiterianismo, ou qualquer outra instituição, deverá lidar

com a realidade descrita por Hall (2006, p. 13) como “uma multiplicidade

desconcertante e cambiante de identidades possíveis”. Caberá ao tempo revelar

qual é o nível de elasticidade do presbiterianismo, se este permitirá ou não a

acomodação de tais novas manifestações identitárias litúrgicas, discursivas e

metodológicas em níveis razoáveis de tolerância. Algo como um teste para confirmar

ou negar a percepção de Rubem Alves (1982, p. 52, 53) que, com os pés fincados

no final dos anos 1970, considerava como algo inexorável dentro do espírito do

protestantismo o processo dialético “instituição-comunidade: reforma e ruptura",

indicador da ausência de maleabilidade das instituições:

Quem examina os últimos quinze anos da vida de algumas das mais significativas denominações protestantes, descobrirá uma série de expurgos, característicos da dialética de ruptura – indicações de que a instituição havia

atingido o limite de sua elasticidade.

Pudesse contemplar a IPB hoje Alves talvez viesse a repensar suas

conclusões. Como se pretende demonstrar no terceiro capítulo há evidências de que

a rede de decisões da IPB tem-se tornado bem mais elástica, o que não significa

afirmar que não há nesse tecido organizacional um ponto de ruptura. Seja como for,

trata-se de um tempo em que a velha identidade presbiteriana, com os traços do

escolasticismo dogmático, da liturgia solene e da ancoragem histórica parece

destinada a conviver com outras identidades portadoras da capacidade de

ajustamentos e que poderão servir como alternativas para a sobrevivência da

instituição, pelo como elementos de provocação.

A questão a ser respondida é se a Chácara Primavera, cuja identidade vem

sendo construída na interface do encontro igreja-cultura será, para o campo

presbiteriano, uma das suas novas moradas ou abrigo alternativo ao lado de tantos

outros dentro de um universo portador de uma pluralidade irreversível.

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2.3. Chácara Primavera: traços de uma identidade contestada.

Um dos traços distintivos da Chácara Primavera se refere ao que se poderia

denominar de coerência entre o que uma instituição apresenta em sua declaração

de missão, visão e valores e o que ela de fato realiza. Esse é o caso da comunidade

como se poderá perceber a seguir.56:

A Igreja Presbiteriana Chácara Primavera é uma igreja cristã de tradição reformada, plantadora de novas igrejas, atenta à cultura contemporânea e determinada a comunicar a vida em Jesus de forma criativa, acolhedora e transformadora. A Igreja Presbiteriana Chácara Primavera será referência no movimento de igrejas urbanas caracterizadas pela integridade no ensino e prática da Bíblia, pela relevância em relação à cultura contemporânea e pelo comprometimento com a plantação de novas igrejas. (Grifos nossos)

Quanto à declaração ‘plantadoras de novas igrejas’, até 2014 – como

comprovaria em documento enviado ao Supremo Concílio da IPB e no site da

própria igreja, a Chácara Primavera havia investido R$ 1.153.850,80 em vários

projetos de plantação de igrejas em alguns estados brasileiros - um deles, na cidade

de Higashiura, no Japão. A igreja continua operando para mediar investimentos

oriundos de parceiras estrangeiras canalizando-os para mais quinze iniciativas57, um

dos raríssimos casos dentro da IPB de índices exponenciais de plantação de outras

comunidades.

Um segundo elemento se relaciona com a expressão ‘atenta à cultura

contemporânea’. Como visto no capítulo anterior o presbiterianismo havia adotado,

até a década de 1960, uma postura refratária em relação aos vários campos da

cultura. Mais do que isso, a linha que separava a igreja e o mundo era nítida, ou

seja, o secular e o sagrado estavam em campos distintos, muito bem definidos e

opostos. Os conflitos ideológicos e teológicos reforçaram as fronteiras contra a

invasão do que estivesse do lado de fora da cultura organizacional. Então, a partir

da década de 1990 ventos de inovação começaram a penetrar pelas frestas da

rígida estrutura.

Como já assinalado, a IPB havia sido visitada por ventos do pentecostalismo

no final da década de 1960 e mais recentemente algumas incorporações litúrgicas

tais como os ‘grupos de louvor’ foram emprestadas das comunidades evangélicas.

56

https://chacaraprimavera.org.br/quem-somos/nossa-missao-e-valores. Acesso em 27/05/2017. 57

https://chacaraprimavera.org.br/parceiros. Acesso em 28/05/2017.

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Todavia, a Chácara Primavera tem implementado inovações a partir da inserção de

elementos que para seus contestadores são inaceitáveis. Pode-se de alguma forma

considerar que de trata de uma equação na qual há duas variáveis excludentes, o

que Marcelo Ayres Camurça (2003, p. 55) denomina de “emblemas matriciais - o

sagrado e o profano”.

O fato de que a Chácara Primavera se compreende como ‘uma igreja de

tradição reformada atenta à cultura’58 decidida a incorporar vários de seus elementos

no ambiente e espaço de culto e reflexão, implicará num exercício de equilibrismo.

Impõe-se a necessidade de uma estrutura de pensamento teológico orientador, de

um lado, e capacidade de se atribuir valores aos elementos que poderão ser ou não

adotados, do outro.

A afirmação do Pacto de Lausanne – uma visão teológica - salienta que a

cultura está sujeita a uma condição permanente de ambiguidade: “uma vez que o

homem é criatura de Deus, parte de sua cultura é rica em beleza e bondade. Pelo

fato de o homem ter caído, toda a sua cultura (usos e costumes) está manchada

pelo pecado e parte dela é de inspiração demoníaca”.59 A questão, como se pode

avaliar, é definir o que deve e pode ser apropriado e ressignificado e aquilo que por

inerência deverá ser recusado.

Tome-se um exemplo brasileiríssimo. Uma das igrejas presbiterianas resolveu

abrir o espaço de seu salão social para aulas de capoeira para meninos em situação

de risco e, como não poderia deixar de ser, com fins evangelísticos. Uma

comunidade da mesma denominação recusou-se terminantemente por se tratar de

uma arte de inspiração demoníaca. Muitas instituições neopentecostais não terão

problema algum em tomar elementos do catolicismo e das religiões afro, dar-lhes

uma tintura cristã e apresenta-los como produto evangelicamente customizado.

A verdade é que os debates em torno do tema da contextualização não são

algo novo. Mais precisamente, as eventuais ambiguidades presentes no processo

estão contidas nas palavras do próprio fundador do cristianismo, Jesus de Nazaré:

Não peço que os tires do mundo, mas que os guardes do mal. Eles não são do mundo, assim como eu não sou. Santifica-os na verdade; a tua palavra é a

58

https://chacaraprimavera.org.br/quem-somos/nossa-missao-e-valores. Acesso em 28/05/2017.

59 O Evangelho e a Cultura. Série Lausanne. Vol 3. Belo Horizonte. ABU Editora, 1983, p. 8.

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verdade. Assim como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo.

60

Nesse ponto, uma ajuda da teologia. René Padilla (2005, p. 16-18) apresenta

três significados da expressão ‘mundo’ (kosmos, no grego): a soma total da criação,

a presente ordem de existência e a humanidade hostil a Deus e escravizada pelos

poderes das trevas. O problema é que predominou uma tendência entre uma ala

considerável dos cristãos de considerar a cultura de forma geral como portadora de

uma substância que deve ser evitada, a não ser que seja resgatada. Padilla (2005,

p. 22) observa que o conceito de igreja como uma entidade separada do mundo se

prestará a toda sorte de falsas interpretações:

Num extremo está a posição em que a separação não passa de uma simples distinção epistemológica: a igreja sabe que foi reconciliada por Deus e o mundo não o sabe – e isso é tudo. No outro extremo está a posição segundo a qual a separação é um abismo intransponível entre duas cidades que somente se comunicam entre si em termos de uma cruzada por parte de uma para conquistar a outra.

Justo Gonzáles (1994, Vol. 1, p. 88) observa que num dado momento durante

os três primeiros séculos a igreja se percebeu diante de um desafio, qual seja, a de

responder ao desafio da aproximação de elementos da cultura:

Se todos concordavam quanto à necessidade de se abster da idolatria, nem todos concordavam quanto à postura que devia ser adotada diante da cultura clássica pagã. Essa cultura incluía a obra e o pensamento de sábios tais como Platão, Aristóteles e os estóicos, cuja sabedoria tem recebido a admiração de muitos até os nossos dias. Rejeitá-la equivalia a rejeitar muito do melhor do que o espírito humano havia produzido. Aceitá-la poderia parecer como uma concessão ao paganismo e como o começo de uma nova idolatria.

Embora o desafio da contextualização seja tão antigo quanto o cristianismo, o

termo em si seria utilizado pela primeira vez em 1972 por Shokie Coe, diretor da

Fundação de Educação Teológica (FET) do Concílio Mundial de Igrejas (BURNS,

2011, p. 73). A expressão passaria a ser usada em substituição à expressão

‘indigenização’, formulada no século XIX para resumir os propósitos de adaptar as

formas de culto, a música, a arquitetura da igreja à sua cultura. O alvo dos

proponentes era possibilitar às igrejas do terceiro mundo plantadas por americanos

ou europeus a serem “autogovernadas, autosustentadas e autopropagadora”

(NICHOLS, p. 17).

60 Evangelho de João, cap. 17. 15 a 18. Versão Almeida Revista e Atualizada. Sociedade Bíblica do Brasil, 2008.

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Não se trata exatamente de um dilema histórico, bipolarizado, mas algo muito

próximo de uma gradiente ou linha com vários pontos nos quais as diversas

posições e disposições se encontram e se modificam. Embora longe de ser uma

disposição geral, a preocupação com respeito à necessidade de algum tipo de

‘indigenização’ ocupou as iniciativas de muitos missionários, de agências e de

igrejas protestantes no Ocidente. William Carey (1761-1864) corretamente chamado

de ‘o pai das missões modernas’ (JOHNSTONE, 1998, p. 30), é descrito como

alguém extremamente preocupado com a questão da aproximação e apropriação

cultural:

Carey preocupava-se com justiça social, igualdade e amor. Antes de ir à Índia ele tomou posição contra a escravidão, e até parou de comer açúcar, produto de trabalho escravo na América Central. Esta atitude naturalmente se repetiu em sua oposição ao sistema de castas na Índia. Assim que um indiano ser batizado e admitido à primeira participação na ceia do Senhor, a casta tinha de ser quebrada, algo que em Serampore não inibiu o sucesso do trabalho de Carey e o crescimento da igreja (600 batismos antes de 1818). Carey foi responsável pelo abandono oficial de sati (no qual as viúvas eram sempre queimadas vivas com os copos de seus maridos), do infanticídio de crianças defeituosas, e também da prática de deixar velhos à margem do rio Ganges para morrer. (BURNS, p. 67)

Exemplos de iniciativas visando algum tipo de contextualização, individuais e

de grupos missionários, são encontrados às centenas desde Patrício, o famoso

‘santo da Irlanda’, um ex escravo que no final do século IV ajudou a “desromanizar o

evangelho adaptando-o a forma e práticas às quais os celtas estavam mais

familiarizados” (BLINCOE, p. 227). Mais recentemente, Hudson Taylor (1832–1905)

John Nevius (1829-1893) missionários na China, foram de alguma forma protótipos

de iniciativas individuais que criticavam em muitos pontos a postura de

distanciamento que caracterizava boa parte de seus colegas europeus e americanos

(BURNS, 70-72).

Um dos fatores que constrangem muitos evangélicos a considerarem o tema

da contextualização cultural se relaciona com o solo onde nasceu a expressão, de

forte coloração ecumênica, que foi o Concílio Mundial de Igrejas, reconhecidamente

uma alianças de igrejas e líderes muito mais abertos ao diálogo cultural e inclinados

a atribuir valores muito elevados a outras religiões. Bruce Nichols protestará contra o

que o CMI tem realizado sob as justificativas de contextualização: “a linha que

separa o mundo e a igreja ofuscou-se”. (1987, p. 19).

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Mais recentemente John Travis (PARSHAL, 2009, p. 688-693), pseudônimo

para ocultar sua verdadeira identidade por razões de segurança, missionário de

longa data entre muçulmanos na Ásia, formulou uma linha de categorização para as

etapas de contextualização. A iniciativa de Travis pode ser vista como um tipo de

régua de seis níveis no qual ‘C1’ (Community One) indica uma igreja que

praticamente transplantou as formas e cultura ocidentais para um ambiente

muçulmano. Por sua vez, o grau ‘C6’ representa uma comunidade que praticamente

mantém todos os elementos da cultura e algumas práticas do ambiente em razão

dos riscos de isolamento e das ameaças de retaliação e morte da parte de

familiares, da sociedade e do governo de um país islâmico.

Os debates entre os missiólogo em torno das propostas de Travis não parece

ter um fim próximo. A verdade é que a relação dos cristãos com a cultura é um

problema que levanta diversas questões para as quais serão propostas várias

respostas. Os representantes das alas mais liberais, ligados aos movimentos

ecumênicos, serão sempre mais permeáveis e suas comunidades muito mais

abertas a relacionamentos com outras vertentes e à aproximação e apropriação de

elementos da cultura. Por outro lado, os conservadores se mostrarão muito menos

maleáveis. Edwin Yamuchi (2007, p. 154) menciona a classificação proposta por H.

Reinhold Niebuhr como um caminho para a resolução dos dilemas:

O Cristo contra a cultura, o Cristo da cultura e o Cristo acima da cultura. Os sintetistas, como o cristianismo como o cumprimento e restaurador de valores humanos, os dualistas, que vêem o homem como sujeito a duas moralidades, a cristã e a cultura e os conversionista, que acreditam que Deus vem ao homem dentro de sua cultura a fim de transformar o homem e a cultura.

O expoente mais destacado do ‘Cristo contra a cultura’ foi Tertuliano, que se

tornaria um protótipo do anti política e anti filosofia. Tornou-se emblemática a frase:

‘O que Atenas tem a ver com Jerusalém?’ Contraditoriamente, ele havia contraído

uma dívida para com alguns conceitos clássicos da retórica romana. Tertuliano

circulava na rota oposta de Orígenes e Clemente de Alexandria que misturaram

tantos conceitos filosóficos neoplatônicos que se tornava “difícil decidir se eles eram

cristãos platônicos ou platônicos cristãos” (YAMAUCHI, 2007, p. 154).

Os exemplos acima tomados de Jesus e dos ‘pais da Igreja’ expõem a

realidade de que os desafios enfrentados pela Chácara Primavera não são novos.

Um exame detalhado dos recursos disponibilizados com fartura na internet permite

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concluir que os discursos de seus palestrantes apontam para uma comunidade

paradoxal: à facilidade com que se apropria de elementos da arte contemporânea e

da cultura pop corresponderá um discurso anti cultura e de condenação de muitas

de suas expressões típicas do contexto pós-moderno.

A Chácara Primavera, de alguma forma, tem construído sua identidade muito

em antagonismo às antigas estruturas, não porque sejam antigas, mas por tentarem

preservar uma linguagem e metodologia que apresentarão inevitável anacronismo,

como observa Agreste (SILVA, 2015, P. 18).

Muitas das igrejas existentes vivem em um gueto cultural, tratando de assuntos que eram discutidos no século 16, ouvindo músicas do século 18 e fazendo uso de um linguajar que se parece com um dialeto com seus inúmeros códigos incompreensíveis para um iniciado. Para estas igrejas, sua missão se tornou manter estas estruturas e esses valores culturais...

A crítica feita ao modelo de igrejas ancoradas historicamente e

desconectadas cultural e socialmente não elimina o fato de que a Chácara

Primavera se percebe como herdeira do pensamento reformado. Nesse ponto

surgirá uma questão digna de nota, que vai aparecer na expressão em latim

“Ecclesia Reformata et Semper Reformanda Est”, de autoria do pensador reformado

holandês Gisbertus Voetius (1589-1676), à época do Sínodo de Dort (1618-1619),

slogan que tem sido costumeiramente traduzido como “A Igreja é reformada e está

sempre se reformando”. Segue uma interpretação a partir dos olhares de teólogos

prestigiados da IPB:61

A Igreja é reformada e está sempre se reformando” tem sido interpretado como se Voetius estivesse dizendo que uma característica da Igreja Reformada é que ela está sempre mudando. Contudo, é difícil imaginar que Voetius, calvinista estrito, que participou em Dordrecht da disputa contra os discípulos de Armínio, tivesse usado este lema para encorajar a abertura da Igreja para novas idéias de qualquer tipo – seria o mesmo que dizer que os seguidores de Armínio estavam certos e que a Igreja Reformada deveria se abrir para uma reforma de natureza arminiana na sua soteriologia!

Seja como for, a comunidade se assume como uma igreja missional, termo de

uso recente adotado por muitas igrejas a fim de expressarem o seu compromisso

com a missão da igreja de forma fiel ao Evangelho no cotidiano e dentro das

estruturas da cultura e da sociedade. Um dos palestrantes que tem marcado

presença nos congressos do CTPI, Michael W. Goheen (2014, p.21), assim define a

61

http://tempora-mores.blogspot.com.br/2010/10/sempre-reformando-ou-sempre-mudando.html. Acesso em 29/05/2017.

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expressão: “o termo missional lembra a igreja de que ela deve estar orientada para o

mundo para permanecer fiel à sua identidade como uma agente da missão de Deus

e participante na história de Deus”.

A convicção da Chácara Primavera a respeito de sua identidade a leva a

construir pontes com uma via de mão dupla: os fieis são encorajados a se envolver

política e socialmente em projetos diversos, e são treinados para isso. A

comunidade desenvolve iniciativas particulares e em parcerias e, via de regra, seus

pastores se posicionam quanto às realidades dos campos político e social. A

questão que gera desconforto surge quando o fluxo da relação com a cultura se

inverte, ou seja, à medida que os elementos seculares são introduzidos no cotidiano

da igreja, mais especialmente no espaço do culto.

A comunidade nasceu e tem se desenvolvido a partir de uma forte ligação e

uso de ferramentas disponibilizadas pela internet, que se tornou uma de suas

vitrines e ferramentas preferenciais. A Igreja foi organizada em 2004, e em 2006 o

site já disponibilizava os cultos ao vivo em áudio e vídeo (ARAÚJO, 2008, p. 18). Ao

longo dos anos a igreja desenvolveu uma especial capacidade de aperfeiçoar a

página e manter uma plataforma virtual que disponibilizasse todo o material dos

encontros em vários formatos, tais como vídeos, áudios e PDF. A aposta nessa

modalidade de mídia não poderá ser menosprezada, para divulgação, propaganda e

banco de dados disponíveis. Um dos braços do movimento, o CTPI – Centro de

Treinamento de Plantadores de Igrejas – faz uso amplo da plataforma.

Uma das evidências da crença na ferramenta da web foram duas iniciativas

recentes, a criação de duas comunidades semivirtuais, uma em Limeira e outra em

Curitiba. Os grupos se reúnem num dado local e após terem desenvolvido os

primeiros itens da liturgia do encontro, como cânticos, leituras e orações são

conectados com o palestrante da Chácara Paineiras no período vespertino no

domingo. Uma inovação que é acrescentada ao arsenal de tantas outras

implementadas pela comunidade que a destaca como um desconfortável modelo de

possibilidade de expressão de uma igreja reformada.

Seja qual for o propósito por detrás da organização de uma comunidade semi-

virtual, como fase de instalação de uma comunidade ‘real’, observe-se as

considerações de Leonildo Silveira Campos (2012, p. 59) com respeito às

tendências dos eventuais devotos virtuais:

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Há um crescente número de evangélicos que não mais se adapta às estruturas burocráticas (que exigem arrecadação de dízimos e ofertas) e preferem limitar a frequência aos cultos a alguns dias por ano, aumentando a prática do lazer, ou até fazendo parte do que temos chamado de “paróquia virtual”, praticando uma religiosidade evangélica na rede mundial de computadores. Como prova disso, aumenta o número de igrejas que transmitem seus cultos pela internet, chegando os pastores ao agradecimento pelas visitas presenciais e invocando uma bênção especial para os que acompanham o culto virtualmente. Talvez esses evangélicos não determinados sejam uma expressão dos “desigrejados” que nos EUA ou Europa são muitos, nestes tempos de individualismo e de formação de um rebanho virtual.

A base sobre a qual a Chácara Primavera estrutura suas ações, e que se

encontrará na rota oposta dos teólogos conservadores, é o que veio a se chamar de

uma liturgia ou atos de culto inclusivos. A comunidade se posiciona de tal modo que

as pessoas que não gostam de igreja sejam de alguma forma atraídas. Segue-se um

resumo do pensamento do pastor da comunidade, Ricardo Agreste (2015, p. 17-19):

Muitos se lembram das experiências monótonas e irrelevantes que tiveram

nas igrejas de seus pais as quais eram obrigados a frequentar quando eram

por eles levados;

Muitos tiveram uma experiência desagradável ou desconfortável ao serem

convidados por amigos ao enfrenarem um clima de frieza, ritual estranho e

linguagem completamente fora do convencional;

Muitos encontram a arrogância hipócrita daqueles que tratavam seus

negócios com desonestidade e protagonizavam comportamentos indevidos

no trabalho e na família;

Muitos têm conhecido a igreja a partir da mídia, que expõe os escândalos de

sacerdotes católicos e pastores evangélicos;

O modelo de igreja com o qual estes novos evangélicos estão tendo contato e a mensagem que nelas é anunciada, inevitavelmente conduzia muitos deles à decepção com instituições que se denominam igrejas e, consequentemente, à confusão dos sentimentos de frustração com a própria fé cristã.

Desde os primeiros anos de sua organização a comunidade estabeleceu para

si o lema-tripé: uma igreja ‘criativa’, ‘acolhedora’ e ‘transformadora’. Assim, a

Chácara Primavera deseja expressar as marcas de uma comunidade que encontre

alternativas para lidar com o cenário de “identidades contraditórias, empurrando em

diferentes direções” (HALL, p. 13). Há durante os encontros um tempo

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especialmente dedicado para encorajar os visitantes e para fazê-los sentirem-se em

casa e para apontar-lhes onde poderão receber os seus brindes (livro, DVD) e

tomarem um cafezinho pós-encontro. Não são raros os momentos em que durante

os encontros são anunciados novos membros que migraram de outras

denominações e que são agora recebidos na família ‘Chácara Primavera’.

A julgar pela quantidade impressionante de desigrejados é de se esperar que

a comunidade de fato tenha um campo imenso para cultivar sua visão. Os

desigrejados, ou ‘desidentificados’ têm contra si as crises identitárias das próprias

instituições que lhes poderiam oferecer referências perdidas. Assim, a Chácara

Primavera não deseja ser um tipo de ‘estação de passagem’ para peregrinos em

viagem que farão da comunidade um lugar de pertencimento transitório. Essa é a

condição do tipo das chamadas igrejas orgânicas, que tem reforçado a hipótese pós-

moderna de transitoriedade e liquidez, para citar Bauman (CHIROMA, p. 121).

Todavia, quando se afirma como uma igreja atenta à cultura certamente suas

práticas estarão voltadas para que a comunidade se torne um tipo de ‘futuro que se

faz presente’ para aqueles fieis que estão com a mochila nas costas para uma nova

experiência (BITUN, p. 117).

Os traços distintivos da Chácara Primavera, tomando-se aqui a igreja mãe

que se reúne como Chácara Paineiras, são facilmente percebidos em várias

situações. Do ponto de vista litúrgico e discursivo basta estar presente a um

encontro ou assistir aos vídeos disponibilizados na internet para que se conheçam

as características que têm proporcionado um crescimento exponencial, por um lado,

e o surgimento de críticas das alas conservadoras, do outro. Segue abaixo uma

tentativa de resumir alguns dos elementos mais significativos da identidade da

igreja.

Em primeiro lugar, volte-se o olhar para os encontros realizados na Chácara

Paineiras, a comunidade sede. Para o internauta, minutos antes do ‘encontro de

adoração’ é disponibilizado um vídeo no qual paisagens deslumbrantes são

apresentadas tendo ao fundo música instrumental. Logo a seguir, surge a descrição

da visão e missão da igreja. Para o visitante, o encontro transcorrerá num clima de

absoluta tranquilidade. Na introdução o(a) dirigente faz a leitura de um texto bíblico

alusivo ao tema da adoração – texto projetado na tela - seguindo-se um breve

período de cânticos de estilo contemporâneo mais ao estilo MPB. As transições

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entre as várias partes do culto são suaves, entremeadas de vídeos muito bem

produzidos, sempre trazendo um testemunho de membros da comunidade e a

divulgação de um projeto missionário ou social realizado ou patrocinado pela igreja.

Em segundo lugar, o momento da mensagem, ou palestra. O processo de

comunicação apresenta um estilo próprio, distinto, muito diferente do modelo

adotado pelos pregadores das igrejas presbiterianas em geral, mesmo as mais

contemporâneas. O pastor palestrante usa trajes informais mesmo nas

oportunidades em que se celebra a Santa Ceia ou a cerimônia do batismo, que nas

comunidades tradicionais exigem de pastores e presbíteros o uso de terno e

gravata. O púlpito cede lugar a uma mesinha sobre a qual vai um laptop com a

palestra toda organizada em slides. Um banquinho fica ali, à disposição, e por vezes

não um copo com água, mas uma xícara. Todas as mensagens são introduzidas por

vídeos especialmente preparados para cada uma das séries, após o que o conteúdo

da palestra é apresentado em slides.

Outro ponto interessante: na maioria absoluta das palestras o mensageiro não

segue o itinerário que mesmo nas igrejas mais contemporâneas é ainda a regra: a

Bíblia é o ponto de partida e o ponto de chegada, e sempre opera não apenas como

fonte para a reflexão, mas como símbolo de autoridade e da presença do sagrado

sobre o púlpito. As pessoas mais idosas e conservadoras desconfiarão se a Bíblia

não estiver na forma de livro, mas num tablete. No caso da Chácara, os textos são

disponibilizados na tela do Datashow, e não haveria necessidade daquele ritual por

vezes constrangedor de procurar os textos bíblicos, que para muitos é um suplício.

Em várias situações a Chácara Primavera é espaço de dessacralização e de

afirmação de que a religião foi de alguma maneira domesticada e secularizada,

perdendo sua aura de sagrado além.

No desenvolvimento da reflexão, o palestrante via de regra vai fazer uma

longa introdução pela exposição de temas e cenas do cotidiano, levantando

questões para somente lá na frente tomar textos bíblicos dos quais serão extraídas

as respostas. Mais uma vez inverte-se o roteiro. Nas igrejas tradicionais a Bíblia vem

sempre ‘primeiro’, na Chácara ela entra depois. Seja como for, alterações no fluxo

da relação com os símbolos do sagrado.

Destaque-se a importância atribuída pela comunidade à arte e aos recursos

aplicados na cenografia. O palco, que numa igreja tradicional seria reservado para o

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púlpito, marcado pela austeridade e despovoado de imagens ou banners de

qualquer natureza será o espaço para a expressão de toda a criatividade artística

cujo objetivo é ilustrar cada uma das séries de mensagens. Um exemplo: um dos

encontros marcava o início de uma nova série de palestras com o título

‘Relacionamentos Líquidos’, alusão ao pensamento de Zygmunt Bauman. O cenário

recebeu tratamento alusivo ao tema, e o que poderia gerar desconforto para os

pastores mais conservadores é motivo de elogio da parte do pastor Ricardo

Agreste:62

“Hoje de fato é um dia muito especial para a nossa comunidade. Além de nós estarmos começando uma nova série, uma série muito importante que fala sobre os nossos relacionamentos, você pode ver como a nossa turma a cada dia trabalha de forma mais bonita em todos os sentidos. Esse é um privilégio e, assim, uma alegria fazer parte de uma comunidade que instituiu como cultura: o que faz para Deus faz da melhor forma. É um privilégio. Infelizmente poucas igrejas tem essa visão. A maioria ainda vive naquela visão, ah! Deus vê o coração...”.

A liderança da comunidade atribui um grau elevado de importância às

imagens como conectivos facilitadores ou fixadores comunicacionais com ênfase

temática, seja na forma de decoração estática do ambiente ou de vídeos

invariavelmente muito bem produzidos. Saliente-se que o tema ‘comunicação

compreensível e contemporânea’ é um dos pilares da proposta da comunidade,

como observa Agreste em outra palestra:

Você pode imaginar a quantidade de pessoas que estão ouvindo domingo após domingo o Evangelho de uma forma que eles possam compreender porque este é o ponto, integridade para com a Palavra de forma que as pessoas da nossa cultura inseridas na nossa cultura compreendam o que nós estamos falando, compreendam o que nós estamos falando, compreendam o que nós estamos falando.

63

Em terceiro lugar, e esta é a área de maior sensibilidade, saliente-se o nível

de apropriação de elementos da cultura contemporânea pelas comunidades

presbiterianas. Trata-se de algo compatível com o que tem sido estabelecido na

visão, missão e valores da igreja, mas gerador de muitas críticas e desconforto para

alguns.

Segue uma lista apresentada pelo pastor da IPB Ageu Cirilo Magalhães, já

mencionado neste trabalho – e ainda o será muitas vezes em razão de seu

62

http://www.chacaraprimavera.org.br/series/relacionamentos-liquidos-189. Fragmento do vídeo entre 00’45” a 01’33”. Acesso em 03/06/2017.

63 https://www.youtube.com/watch?v=oRzz1_d7g98&list=PLl6S1cbsz4OxTwa8-dMHFkcA3vvGoa1rg. Acesso em

20/05/2017. Vídeo ‘A igreja e o problema da aculturação’. Fragmento entre 2’:27” e 2’:46”.

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protagonismo como o representante mais contundente das críticas às comunidades.

Magalhães elencou algumas palestras com seus títulos secularizados, vídeos,

poemas e canções de artistas da cultura pop que para a Chácara Primavera fazem

parte de seu arsenal comunicacional, mas que segundo a avaliação do pastor

representam apenas uma tentativa de atender aos anseios do não crente. Agreste

não negaria essa afirmação, mas não a colocaria nesses termos.

Série de Palestras Recursos utilizados

Paradoxos de Diana, a

princesa de Gales.

A canção dos vídeos exibidos é ‘Candle in the wind’, de

Elton John.

UFC Família. Foi montado um ringue no cenário do palco.

A família no banco dos

réus.

Foi apresentado um vídeo de 2min40s com vários trechos

do desenho “Os Simpsons”.

Transforma meu

pranto em dança. Foi exibido um clipe do grupo U2 no meio do sermão.

Revisão de vida. O clipe apresentado nos sermões tem a música “Epitáfio”,

da banda Titãs.

Mais que um vingador. Vídeo com cenas do filme ‘Os Vingadores’.

Outras séries trariam conteúdos voltados para questões que emergem dos

dramas da sociedade contemporânea e seriam contempladas com títulos bastante

sugestivos:

Missão Impossível: alusão ao filme de mesmo nome.

Jabulani – levando alegria aos outros (por ocasião da Copa do Mundo de

2010).

A Cabana (por ocasião do sucesso do livro).

iFamily: uma família à minha imagem e semelhança.

Entre a arca e a cruz: quando do lançamento do filme ‘ Noé’.

Essa é a nossa copa: por ocasião da Copa do Mundo de futebol no Brasil.

Relacionamentos líquidos: alusão ao pensamento de Zygmunt Bauman.

Família 2.0, tempo de upgrade: alusão ao universo tecnológico.

Lidando com esqueletos no armário.

A menina de vermelho: tema extraído de uma cena do filme A Lista de

Schindler.

De volta à cabana: alusão ao filme lançado em 2017 ‘A Cabana’.

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Pelos títulos das séries se pode perceber o desejo de conexão com temas de

fácil acesso ao ouvinte. Uma das questões que poderiam ser levantadas – para isso

é preciso assistir aos vídeos - é o fato de que à medida que o palestrante,

principalmente o pastor Ricardo Agreste, vai desenvolvendo o tema as respostas e

sugestões já vão sendo oferecidas extraídas não da reflexão bíblica, mas de fontes

diversas – que testadas serão compatíveis com os princípios reformados. Algumas

vezes a transição do bate papo informal para a Bíblia causa certo desinteresse em

razão da introdução de um elemento estranho que estava até então escondido.

Os resultados alcançados pela estratégia de comunicação foram

compartilhados por Agreste num dos encontros comemorativos de nove anos de

fundação da comunidade, anos atrás:

O que mais me surpreende é o testemunho de pessoas que nesses nove anos chegaram na nossa comunidade dizendo assim: “olha, eu já tinha tentado caminhar em uma ou outra igreja, mas o que me surpreendeu é que aqui eu consegui entender o que as pessoas diziam, eu consegui entender o que as músicas tratavam, eu consegui entender o que a pregação falava, e eu conseguia relacionar com a minha vida o que era ensinado aqui.

64

Os espaços e ambientes dos encontros da Chácara Primavera são

reconhecidamente uma reconfiguração da noção de sagrado e de solenidade. De

alguma maneira estão presentes na experiência da comunidade as marcas da

secularização enquanto força ‘dessacralizadora’ e ‘desritualizadora’. A redução das

relações ao nível da consciência, a hipertrofia da modernidade na escolha de

ferramentas de comunicação e excessiva informalidade contribuem para a

supervalorização do imanente e a perda de contato com a transcendência, com o

‘totalmente outro de Rudolph Otto. Como observa Cleide C. Scarlatelli Rohden,

interpretando Mircea Eliade:

Na verdade o homem moderno não mais conhece a manifestação camuflada do sagrado na medida em que essa dimensão foi abolida e esquecida quando decidiu valorizar apenas a sua existência histórica. A dimensão sagrada passou por um recesso na modernidade. Mas como o próprio Eliade insiste, o sagrado não foi abolido da vida dos homens. Ao nível da consciência, com certeza podemos dizer que não restam mais traços da realidade, mas ao nível do inconsciente não podemos dizer o mesmo.

Em razão dos condicionantes históricos, visto que a igreja começou a partir

de uma relação com pessoas da classe média e classe média alta, na casa de um

64

https://www.youtube.com/watch?v=oRzz1_d7g98&list=PLl6S1cbsz4OxTwa8-dMHFkcA3vvGoa1rg. Acesso em

20/05/2017. Vídeo ‘A igreja e o problema da aculturação’. Fragmento entre 2’:45” e 3’:18”.

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empresário e posteriormente num Buffet, e à medida que se definem os conteúdos,

os temas e o estilo de comunicação, vão sendo definidos também o recorte

socioeconômico dos que serão contemplados pelos projetos. Dessa forma, a

expressão Chácara Primavera vai ganhando contornos de uma ‘grife’ que não

poderá estar à disposição de alguns consumidores, aqueles que acabarão nos

bancos das igrejas pentecostais e neopentecostais.

Um dos elementos distintos da identidade dos novos formatos de igrejas

presbiterianas é a utilização de um nome ou marca que parece apontar para algo

que evite associação com termos como ‘igreja’ que atrairia conotações com as

realidades asfixiadoras da espontaneidade e da criatividade que estariam presentes

nos modelos solidificados pelas instituições tradicionais. A utilização do termo

‘comunidade’, que pode ter sido tomada de empréstimo do campo evangélico

neopentecostal, tem sido uma das causas dos atritos em relação ás alas

conservadoras da IPB.

Os presbiterianos de forma geral não viam muito problemas na definição dos

nomes de suas igrejas. Foi somente com a introdução de princípios de marketing

que se começou a pensar na importância do desenvolvimento de um nome-marca. A

Chácara Primavera, de forma distinta das igrejas presbiterianas, adotaria como

nome fantasia a expressão ‘comunidade’ em detrimento do nome igreja, que seria

estampado nas mídias e em outros documentos que não fossem os oficiais nos

quais deve constar o nome da pessoa jurídica. Somente no segundo semestre de

2014 a expressão ‘comunidade’ seria retirada em cumprimento tardio a uma

resolução do Supremo Concílio da IPB de 200665 que proibiu o uso do termo.

Todavia, tudo indica que houve um esforço de preservar a ‘marca’ pela qual a igreja

se tornou conhecida – Chácara Primavera.66

65

Considerando a resolução da CE-SC/IPB-2012: “DOC. CCXV - Quanto ao documento 158 – Oriundo do(a): Sínodo Piratininga - Ementa: Consulta sobre Decisão da CE-SC/IPB 2006, Doc. XLV, quanto ao documento 179, sobre Igreja auto intitulada Comunidade Presbiteriana. Considerando: 1. Que a resolução CE-SC/IPB-2006 - Doc. XLV que proíbe o uso do termo "comunidade" para referir-se a uma igreja presbiteriana está em vigor; 2. Que a CE não é o fórum para tratar de assuntos teológicos deste tipo. A CE-SC/IPB - 2012 RESOLVE: 1. Tomar conhecimento; 2. Encaminhar este documento à próxima RO do SC.” – Grifos nossos.

66 Vale lembrar que houve apenas uma conversa com o líder e pastor presidente do Conselho Rev. Ricardo

Agreste, que não conseguiu agendar encontros posteriores por razões diversas. Assim, tornou-se inviável tomar depoimentos de outros líderes pessoalmente. Muito gentilmente o pastor Ricardo deixou sua secretária e o gestor liberados para prestar as informações possíveis – que não acrescentariam muita coisa além daquelas que é possível extrair naturalmente das visitas às igrejas e por meio de consulta pela internet.

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86

Quais teriam sido as razões por detrás do uso da expressão ‘comunidade’?

Não haveria motivos teológicos para tanto, visto que a expressão igreja ocorre por

74 vezes no singular e 36 vezes no plural em toda a Bíblia. Em o Novo Testamento

e na tradução grega do Antigo Testamento, a Septuaginta, a palavra é tradução do

substantivo ekklesia, que na maior parte das vezes significa uma congregação local

de cristãos67 aos quais os apóstolos irão se dirigir em suas cartas. A bem da

verdade, o termo ‘comunidade’ não aparece como verbete em vários dicionários

bíblicos e teológicos consultados. As razões para seu uso serão de outra natureza,

certamente.

Embora tenhamos sido informados que o uso do termo ‘comunidade’ pela

liderança da Chácara Primavera tenha sido acidental, a questão permanece de pé,

pois tantas preferem o seu uso. Ageu Magalhães afirma que “as igrejas não se

chamam igrejas, mas "comunidades", pois, na visão do movimento, "igreja" é uma

palavra que mais assusta do que atrai.”68 Um site americano69 traz a seguinte

declaração a respeito do significado de igreja:

É muito duvidoso para mim que as pessoas associem a palavra igreja com conexões profundas e significativas, e que represente as pessoas carregando os fardos uns dos outros, comendo um com o outro, compartilhando recursos, defendendo os marginalizados e levando as boas novas para lugares difíceis de maneira prática e tangível.

O significado de igreja teria, então, se transmutado e deixado de significar

ajuntamento comunitário para passar a ser compreendido como instituição e rigidez

estrutural. Comunidade, por sua vez, representaria o que sugere o termo bíblico a

ela associado: comunhão, partilha, contribuição. Comunidade tem a ver com

unidade social, e não apenas pontos em comum encontrados num determinado

tempo-espaço religioso. Rubem Alves (1972, p. 48) avalia a dialética presente na

construção de caminhos a partir da oposição instituição-comunidade:

Comunidade busca significações emergentes na sua vivência, o que significa que ela se vê como criadora de significações, e se recusa ao papel de recipiente das significações verticalmente dadas pela instituição, ou seja, pelo magistério que detém o monopólio da verdade. A comunidade é uma contestação deste monopólio da verdade [...] Enquanto a instituição afirma as significações que o

67

Conf. Novo Dicionário da Bíblia. Vol. I. São Paulo, Ed. Vida Nova, 1986. Verbete ‘igreja’, p. 735.

68 http://resistenciaprotestante.blogspot.com.br/2010/08/igreja-contextualizada-ou-secularmente.html. Acesso em

04/06/2017. Acesso em 05/06/2017.

69 http://kathyescobar.com/2010/01/14/the-difference-between-cultivating-communities-and-building-churches/.

Acesso em 05/06/2017.

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passado cristalizou, a comunidade se entende como criadora de significações.

Talvez a explicação mais razoável esteja na ligação que se poderá

estabelecer com um fenômeno que começa, a ocorrer no final dos anos 1980

quando começam a surgir as chamadas ‘comunidades evangélicas’. Trata-se de

igrejas alternativas que surgem como reação ao protestantismo tradicional e ao seu

comportamento restritivo. Igrejas majoritariamente jovens e modernas formarão um

fenômeno de vanguarda que contribuirá para o surgimento da cultura gospel.70 Seja

como for, deve-se perguntar se o ideário das ‘comunidades’ será procurado nas

igrejas primitivas que carregavam as marcas comunitárias ou se o uso do termo

indicará apenas uma alteração epidérmica e efêmera.

A verdade é que a questão a respeito do termo ‘comunidade’ ocuparia uma

condição de menor importância em razão de algo que parece visível: a promoção da

marca ‘Chácara Primavera’, que nas duas versões aparece em destaque.

Na inscrição à direita nota-se a diferença de ênfase nas fontes, dimensão e

cores. A expressão ‘igreja presbiteriana’ aparece quase como no recurso ‘fade’,

expressão que indica uma lenta transição de uma imagem que vai

desaparecendo enquanto oura vai surgindo. A logomarca oficial da

IPB é uma sarça que seria modificada por decisão do Supremo

Concílio em 2014 e que deveria estar presente compatibilizada

com a marca regional utilizada71.

Deve-se, no entanto, considerar que a Chácara Primavera está longe de ser a

única que adota uma logomarca própria sem referência à logo da IPB. Todavia,

chama a atenção o fato de que a referência à Igreja Presbiteriana do Brasil na

página da comunidade ocorra numa imagem tímida e escondida no rodapé. Deve-se

levantar a questão a respeito das razões pelas quais a igreja se apresente como um

70

https://musicaeadoracao.com.br/28691/explosao-gospel-analisada-por-pesquisadora/. Acesso em 04/05/2017.

71 http://www.executivaipb.com.br/arquivos/identidade_visual.pdf. Acesso em 04/05/2017.

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tipo de ‘presbiterianismo envergonhado’. Não seria científico conjecturar, e também

não o será deixar de levantar perguntas: ‘Igreja Presbiteriana’ seria uma marca com

baixo teor de aceitação no mercado de ideias e serviços religiosos no país em razão

das associações que a ela se venha fazer como uma estrutura historicamente

condicionada?

O fato de que outras comunidades que estão ligadas à igreja sede – Chácara

Paineiras – em Campinas são apresentadas com o nome ou grife: Chácara Cambuí,

Chácara Norte Sul e Chácara Barão. Todas essas comunidades ainda não foram

organizadas como igrejas, segundo a Constituição da Igreja Presbiteriana. Cada

uma delas já pode contar com um pastor de campo e para todos os efeitos já

possuem uma expressão colada em sua identidade e na mente dos frequentadores

e membros: chácara.

Pode ser levantada a questão se estaria em curso uma estratégia que

envolve o termo em inglês ‘naming’72, que é a prática de desenvolver nomes de

marca para corporações, produtos e serviços. Assim, a marca ‘chácara’ não se

restringe a um endereço específico, mas se espalha e marca território em vários

lugares. Sejam quais forem os interesses dos líderes da igreja, mais ‘duas Chácaras’

foram inauguradas, uma em Limeira e outra em Curitiba, como foi mencionado, o

que dá a ideia da expansão da igreja que opera em um nível que se assemelha a de

uma instituição própria. Aos poucos a instituição amplia sua esfera de influência ao

mesmo tempo em que os que lhe são apresentados não saberão, num primeiro

momento, que se trata de uma das igrejas que pertencem à federação da IPB.

Numa das palestras por ocasião da comemoração de nove anos da fundação

da igreja o Pastor Ricardo Agreste reafirmaria a visão da comunidade com respeito à

estrutura e à relação com a instituição. Ele citaria dois riscos que assediam as

igrejas, o mito da desinstitucionalização e os riscos da institucionalização. De um

lado uma recusa da comunidade em ser confundida com o movimento das igrejas

emergentes e as igrejas orgânicas. Do outro, o desejo de se libertar de um sistema

burocrático que retarde a execução de projetos. Pontuem-se alguma realidades na

relação institucional da comunidade:

72

http://marketingfuturo.com/o-que-e-naming-conceitos-de-branding-e-marketing/. Acesso em 04/06/2107.

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a. A Chácara Primavera opera internamente a partir da autoridade do

conselho da igreja que funciona exatamente nos moldes eclesiásticos de

qualquer outra igreja presbiteriana. O pastor Ricardo, em seu depoimento,

esclareceu que a instrução para os membros das igrejas inclui detalhes de

funcionamento da denominação e da igreja local;

b. A igreja, por meio de seu Conselho, está jurisdicionada ao Presbitério

Metropolitano de Campinas e ao longo dos últimos anos tem se mantido

dentro dos padrões de relação institucional como toda e qualquer igreja da

IPB.

c. A igreja remete regularmente sua verba mensal ao Presbitério bem como o

dízimo ao Supremo Concílio e se faz representar em todas as reuniões

dos concílios superiores.

Deve-se reconhecer e admitir, naturalmente, que as ações da Chácara

Primavera parecem extrapolar os limites naturalmente impostos a uma igreja local.

Isso em razão da liberdade que a liderança da desfruta para a celebração de

parcerias com instituições estrangeiras para intermediação de projetos de plantação

de igrejas, no apoio a iniciativas de denominações fora do campo presbiteriano e na

participação direta na organização do Centro de Treinamento para Plantadores de

Igreja – CTPI.

A Chácara Primavera vai reafirmando a essência de sua identidade e

ampliando seu raio de atuação, como se pode verificar. Isso de alguma forma

representa a fragmentação e pluralização da estrutura da IPB, e a intensificação,

certamente, do espírito individualista dos agentes cuja tendência é não gastar

energias com o que não lhes seja de interesse particular e específico. Sendo assim,

a comunidade vai revelando traços particulares e os afirmando, desafiando a

instituição a que pertence a avaliar a possibilidade de que a tendência ganhe

proporções ainda maiores, quando se considera o espírito de pragmatismo de

líderes gestados no ventre de um protestantismo pós denominacionalista.

2.4. A Chácara Primavera e o macro campo religioso brasileiro.

Em relação ao campo de sua denominação, a IPB, a Chácara Primavera tem

se tornado um fenômeno: em quinze anos saiu de quarenta membros para cerca de

1.400. Quinze projetos de plantação e revitalização de igrejas foram executados e

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mais quinze estão em andamento. Ministérios de elevada qualidade personalizados,

dirigidos para jovens, crianças e adolescentes. O Centro de Treinamento de

Plantadores de Igrejas, CTPI, têm oferecido vários cursos e realizado congressos

que rivalizam com os mais tradicionais e bem sucedidos do meio evangélico. Mais

do que tudo, a igreja tem contribuído para formatar uma cultura que se torne uma

alternativa de base calvinista com seus rígidos princípios morais e éticos e que se

posicione a uma distância segura das idealizações românticas e ingênuas dos

desinstitucionalizados e dos saudosismos pegajosos do cativeiro institucional.

Como foi mencionado anteriormente, a Chácara Primavera possui uma

característica herdada de sua denominação: uma estrutura organizacional que opera

dentro de um sistema de controle burocrático73. Mais do que isso, a comunidade vai

além da discrição presbiteriana quanto à arrecadação: não são levantadas ofertas

durante o culto. Os visitantes em momento algum são pressionados. Por conta

desse aspecto é preciso compreender que as técnicas de persuasão empregadas

pela comunidade possuem outro alvo imediato.

Um dos pilares da identidade da comunidade é se tornar igreja para quem

não quer igreja. Nesse caso, não haveria tempo melhor. Segundo o Censo de 2010

‘os evangélicos sem vinculação’ ou ‘não determinados’ estão em alta, 779%, um

número expressivo e em crescimento, sem contar o grupo que orbita levemente

ligados à sua própria denominação, prontos para serem removidos. São aqueles que

optam pelo crer sem pertencer, mas não com total convicção, atraindo o

posicionamento das diversas expressões religiosas. Avaliando esse fenômeno dos

sem destino assumido, Ricardo Mariano assim se refere:

Fenômenos que vêm sendo reforçados pelo avanço da afirmação da liberdade individual como valor e como prática legítima, e pelo fato de que a liberdade e o pluralismo religiosos – conforme sustenta a tese principal de Peter Berger (1985) em O dossel sagrado – tendem a fazer com que a religião seja encarada mais e mais como uma questão de livre escolha ou preferência pessoal, algo que, na prática, tem sido evidenciado sobejamente pelo intenso e crescente trânsito religioso no país. (2013, p. 127).

73 Nas igrejas presbiterianas o pastor assina os talões e cheque com o tesoureiro que é o responsável direto pelos

pagamentos – ou um administrador - Cabe a uma Comissão proceder ao exame de contas da tesouraria cujo balancete é

apresentado à Assembleia Geral Ordinária.

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O sociólogo e pastor Ricardo Bitun (2011, p.111) cunhou a expressão

‘mochileiros da fé’ metáfora que descreve um dos aspectos da dinâmica da religião

na modernidade74, qual seja, o trânsito contínuo de milhões dentro, principalmente,

do universo neopentecostal, na opinião do sociólogo:

Os mochileiros são atraídos, não pelo apelo à conversão religiosa, mas pelo apelo à cura e à satisfação da necessidade instantânea, imediata. O mochileiro mobiliza-se todas as vezes que ocorrer o aparecimento de algo melhor às suas necessidades. É uma prática distante das conversões tanto do protestantismo histórico como do pentecostalismo de primeira e segunda onda

Para Bitun esse trânsito ou peregrinação ocorre em duas etapas, a primeira,

interdenominacional, de uma religião para outra, e num segundo momento dentro

das próprias instituições (2011, p. 104). Seja como for esse movimento apenas

confirma que a sociedade tupiniquim, por tanto tempo catolicamente carola e

pentecostalmente fiel, recebe os ventos da pós-modernidade, uma sociedade com

uma estrutura leve, fluída, efêmera e móvel que cria variadas expectativas, desejos

e obsessões (LIPOVETSKY, 2016, p. 09).

Os evangélicos de recorte neopentecostal, representados pelos grandes

impérios da religião, respondem às demandas desse novo nicho por meio do uso de

parte da herança do pentecostalismo agregando uma elevada capacidade de

adaptação, do discurso, mobilidade organizacional e de produtos sempre sujeitos à

customização e renovação. Uma amostra significativa pode ser vista na análise da

versão mais bem sucedida desse espectro, a Igreja Universal do Reino de Deus.

Leonildo Silveira Campos (1997, p. 15) anotara que a IURD é uma organização cujo

sucesso se deve em grande parte à eficácia no quesito comunicação de massas e

de marketing presentes num empreendimento religioso-empresarial paradigmático

que desenvolveu a elevada capacidade de adaptação cultural

Neste cenário as igrejas neopentecostais adaptam-se e respondem às

demandas por meio da recriação dos produtos religiosos, por processos de

customização de antigos conteúdos, afinal , segundo a leitura de Zigmunt Bauman

(2013, p. 10), uma sociedade impulsionada por uma cultura líquida é compulsiva e

obsessiva, capaz de impulsionar a si mesma, dissolver tudo o que é sólido, e

substituir rapidamente as formas derretidas por outras tão líquidas quanto.

74 Daniele Hervieu-Léger descreve o processo de bricolagem e estilhaçamento do crer e fragmentação da religião que origina

novos movimentos e trânsitos dos fiéis.

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Considere-se, também, que o crescimento de evangélicos não determinados não

significa o completo derretimento de suas identidades, mas algum tipo de

reorganização para muitos deles. Mariano (2013, p. 128) ressalta que o êxodo da

instituição não significa abandono da religião, mas recomposição e individualização:

O crescimento do número de evangélicos não determinados, friso, se deve também à expansão da desvinculação desses religiosos de suas igrejas, situação em que o crente (nascido ou não em família evangélica) mantém a identidade e parte das crenças e práticas religiosas, mas opta por fazê-lo fora de qualquer instituição

Uma outra questão é o fato de que tem crescido o número dos que deixam

suas vinculações religiosas e que são portadores de uma renda mais elevada.

Certamente que muitos deles assim o fazem em razão das decepções que

experimentaram agregando-se a isso o fato de que muitos possuem uma

capacidade mais aprimorada de julgamento.

CONCLUSÃO

Procuramos identificar ao longo deste capítulo elementos constitutivos da

identidade presbiteriana tradicional que vai se alterando à medida que as próprias

estruturas religiosas são afetadas e têm o seu controle e influência diluídos pelas

forças externas da secularização. Foi realizado um esforço para demonstrar que

paralelamente à fragmentação das estruturas institucionais, em razão da

individualização e subjetivação, têm surgido novas possibilidades e configurações

religiosas que atuam como novos abrigos e estações de passagem.

A julgar pelas propostas da Chácara Primavera, não é de estranhar que a

igreja amplie o seu alcance sobre um universo cada vez maior daqueles que optam

por se relacionar por meio de uma plataforma virtual a fim de ter sua experiência

religiosa particular antes de retomar uma eventual relação comunitária. Uma parte

considerável dos que gravitam nas periferias foram vítimas de ambientes de abuso

ético, e serão atraídos por uma proposta que lhes seja confiável, e de alguma forma

poderão desenvolver tal experiência por meio da internet.

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A IPB, por sua vez, a despeito da resistência de um grupo de líderes

conservadores que cultivam de certo saudosismo, apresenta um campo com uma

pluralidade cada vez mais expressiva, o que permite o surgimento de propostas

alternativas, uma delas a Chácara Primavera, ela mesma evidência de que a

estrutura tem se tornado mais elástica. Num tempo de desmanches de identidades

essa comunidade vai reafirmando sua condição de eventual alternativa para o

presbiterianismo numa sociedade pós-moderna.

Dentro de um cenário de novas configurações procuramos destacar alguns

elementos formativos da identidade da Igreja Presbiteriana Chácara Primavera, na

tentativa de compreender sua relação com o campo de sua denominação e com o

macro campo religioso brasileiro, suas eventuais possibilidades e riscos.

O próximo capítulo é destinado a uma avaliação mais pormenorizada dos

encontros, desencontros, colisões e possibilidades de novos arranjos na relação da

Igreja Presbiteriana Chácara Primavera com sua denominação. O esforço que se

fará toma como premissa o fato de que o sistema de organização eclesiástica, bem

como a tradição da IPB, se apresenta como um campo propício ao surgimento de

controvérsias e conflitos que tenderão se perpetuar à medida que o próprio modelo

organizacional e aparato institucional os alimenta.

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94

CAPÍTULO III

CHÁCARA PRIMAVERA: ANATOMIA DE

UM CONFLITO

“Não penseis que vim trazer paz à terra; não vim trazer paz, mas espada. Pois vim causar divisão entre o homem e seu pai; entre a filha e sua mãe e entre a nora e sua sogra” (JESUS de Nazaré).

INTRODUÇÃO:

Afirmar que a religião em suas múltiplas formas e expressões é portadora da

paradoxal capacidade de reunir grupos, de um lado, e potencializar a discórdia e

divisão, do outro, aproxima-se de um truísmo. Uma rápida avaliação da história e do

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cenário religioso universal bastará para que se constate a presença de um ciclo

interminável de controvérsias que evoluem para conflitos não apenas entre os

distintos sistemas de crenças e ritos, mas dentro de estruturas ou instituições que

após um período de convergência e estabilidade serão palcos de atritos, embates e

divisões, numa espécie de processo dialético que responsável por originar formas e

expressões distintas de arranjos.

Os desdobramentos tendem a se tornar mais graves e imprevisíveis à medida

que o campo teológico-institucional for penetrado pelos interesses políticos-

ideológicos e na proporção em que o aparato religioso e os discursos de seus

agentes servirem para legitimar as ações de preservação ou ocupação de espaços.

Este capítulo se propõe a examinar algumas das dimensões das

controvérsias presentes nas relações intraeclesiásticas dentro do campo da Igreja

Presbiteriana do Brasil, mais especificamente no que diz respeito às eventuais

disputas entre os representantes do pensamento e das práticas da Chácara

Primavera e das comunidades presbiterianas, de um lado, e os agentes que

discordam tratar-se de uma legítima expressão do presbiterianismo.

3.1. Cristianismo: uma história de controvérsias, divisões e conflitos.

Conflitos sociais permeiam as relações de indivíduos e instituições, em graus

e formas diversas. Trata-se de interesses momentaneamente antagônicos e

necessariamente incompatíveis quanto à posse ou gestão de bens raros – materiais

ou simbólicos. Como observa Lewis Coser (1990, p. 50), conflitos...

Podem fazer com que se confrontem estados (guerras) ou, no seio de uma mesma

sociedade, grupos religiosos, nacionais ou étnicos, classes sociais ou quaisquer

outras instituições sociais (igrejas, partidos, empresas, organizações e associações

diversas).

Coser (1990, p. 51) ainda observa que, se para o marxismo o conflito está

inscrito na própria natureza social, do que resultará que se tornarão como que

necessários num processo dialético até ao estabelecimento de uma nova ordem –

conflito de classes – para o funcionalismo testemunha um tipo de disfunção. Como

pontuava Emile Durkheim, o conflito representa um estado patológico de

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enfraquecimento da solidariedade social que substitui a cooperação pela

concorrência.

Seja qual for a interpretação que se lhe atribua, a verdade é que a história do

cristianismo é uma linha pontuada de controvérsias, conflitos e rupturas, desde os

primórdios. Romanticamente ingênuo e enganoso é o mito da igreja perfeita, noção

extraída do relato sumário do autor do livro de Atos dos Apóstolos que num

instantâneo apresenta a comunidade de Jerusalém de forma idílica75. O choque de

realidades dentro de um mesmo campo religioso, e a percepção de que a

comunidade se apresenta como agentes portadores de distintos capitais simbólicos

é algo que poderá ser percebido na comparação de dois fragmentos da narrativa

dos primeiros anos da igreja primitiva:

Da multidão dos que creram era só um o coração e a alma. Ninguém considerava exclusivamente sua nem uma das coisas que possuía; tudo, porém lhes era comum.

76

Ora, naqueles dias, multiplicando-se o número dos discípulos, houve murmuração dos helenistas contra os hebreus, porque as viúvas deles estavam sendo esquecidas na distribuição diária

77.

O relado do livro de Atos registra que a igreja primitiva não estará em conflito

apenas com o mundo exterior, com a cultura e a sociedade do Império Romano. As

tensões estão presentes dentro do campo em de diferentes níveis desde o começo

da formatação das identidades das distintas comunidades. As controvérsias no

campo presbiteriano, a presumível rivalidade entre as forças e agentes que lutam

pela preservação da tradição e os representantes de propostas inovadoras, do outro,

possuem raízes muito antigas. O relato bíblico apresenta uma comunidade

apresentando sinais de fragmentação, como avalia o teólogo John Stott (p. 133):

Nesse caso, os hellenistai não só falavam o grego, mas pensavam e agiam como gregos, enquanto que os hebraioi não só falavam aramaico, mas estavam profundamente imersos na cultura hebraica. Evidentemente sempre houve uma rivalidade entre esses grupos na cultura judaica; a tragédia é que ela continuou dentro da nova comunidade de Jesus que, através de sua morte, tinha abolido tal tipo de distinção.

Saliente-se outro nível e espaço de controvérsia ou conflito no livro de Atos,

desta feita opondo líderes de duas igrejas de distintas compreensões. A causa está

75

Atos dos Apóstolos, cap. 2. 42-47.

76 Atos dos Apóstolos cap. 4. 32.

77 Atos dos Apóstolos cap. 6. 1.

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ligada a elementos da tradição, étnicos e teológicos, o que ensejaria a realização do

primeiro concílio de igrejas cristãs de que se tem notícia.

Alguns indivíduos que desceram da Judeia ensinavam aos irmãos: Se não vos circundardes segundo o costume de Moisés, não podeis ser salvos. Tendo havido, da parte de Paulo e Barnabé, contenda não pequena discussão com eles, resolveram que esses dois e alguns outros dentre eles subissem a Jerusalém, aos apóstolos e presbíteros, com respeito a esta questão.

78

Percebe-se a partir de uma leitura rasteira do texto que o problema se

encontra na colisão do interesse dos agentes preservadores da tradição com

aqueles que têm incorporado inovações no campo do discurso e dos costumes:

Choques sempre acontecem quando alguma nova verdade é experimentada e perturba um grupo privilegiado. O povo geralmente fica apreensivo, quando os seus pontos de vista tradicionais são desafiados, a não ser quê estejam abertos para novas maneiras de compreender e sejam competentes para testar novas interpretações e corajosos para cruzar novas fronteiras. ( SMITH, p. 111).

À medida que as igrejas se multiplicavam e se espalhavam pelo Império

Romano, havia um número cada vez maior de gentios sendo incorporados e

dividindo espaço com os judeus que haviam se convertido ao cristianismo. Os

choques continuariam a ocorrer com base em distintas cosmovisões, e os séculos

que se seguiriam até ao tempo em que o Império Romano sorriu para a igreja,

seriam o cenário de muitas controvérsias em torno de questões teológicas.

Destacam-se nesse período as figuras dos apologistas e dos polemistas,

principalmente Justino Mártir no primeiro grupo e Irineu no segundo grupo.

Estes homens enfrentaram um governo hostil a quem procuraram convencer com os argumentos de suas produções literárias. Os apologistas procuraram convencer os lideres do estado de que os cristãos nada tinham feito para merecer a perseguição que lhe era impingida. Polemistas procuraram enfrentar o desafio dos movimentos heréticos. [...] Os apologistas queriam refutar as falsas acusações de ateísmo, canibalismo, incesto, preguiça e práticas anti-sociais atribuídas a eles por vizinhos e escritores pagãos, entre os quais Celso, por exemplo. Positivamente desenvolveram uma perspectiva construtiva para demonstrar que, ao contrário do cristianismo, o judaísmo, as religiões pagãs e culto do estado eram loucos e malévolos. [...] Os polemistas procuraram condenar pela força do argumento os falsos ensinos a que se opunham (CAIRNS, 1995, p. 85, 89).

Percebe-se que o cristianismo nasce e se expande tendo de desenvolver

recursos e métodos que lhe permitissem não apenas a sobrevivência contra ataques

78

Atos dos Apóstolos, cap. 15. 1, 2.

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dos inimigos da fé mas, também, condições para a preservação de uma estrutura de

pensamento teológico razoavelmente unificado e sólido.

Outro ponto que agregaria combustível aos eventuais conflitos e

controvérsias, e que mereceu algumas linhas no primeiro capítulo deste trabalho, se

referia às diferentes percepções a respeito da aproximação e apropriação de

elementos da cultura cristã. Justo Gonzáles (1994, Vol. 1, p. 88) esclarece a razão

pela qual Tertuliano expressou seu distanciamento da filosofia por meio da frase já

mencionada “Que tem Atenas a ver com Jerusalém?”

Tertuliano escreveu estas linhas porque, como veremos mais adiante, em seu tempo circulavam muitas tergiversações do cristianismo, e ele estava convencido de que estas heresias se deviam ao fato de que alguns haviam tratado de combinar a fé cristã com a filosofia pagã.

Houve dois períodos na história da igreja que foram marcados por um grande

número de importantes controvérsias, as décadas que sucederam o evento da

Reforma Protestante, deflagrada em 1517, e um período anterior localizado entre os

anos 313 e 451. Este seria o tempo em que o imperador Constantino expandiria o

seu poder e que o levaria a interromper finalmente o ciclo de perseguições contra os

cristãos. A partir desse ponto as disputas resultariam na organização dos concílios

como tentativa de resolver as questões: “esses concílios fizeram grandes

formulações universais como os credos niceno e atanasiano. Neste período,

estabeleceram-se os principais dogmas da igreja” (CAIRNS, 1995, p. 105).

Seria a partir da adoção da fé cristã por Constantino, em moldes certamente

duvidosos quanto às reais motivações e muito distintos de um cristão comum, que o

cristianismo começaria a ser revestido de outros ingredientes que iriam pouco a

pouco torna-lo o próprio poder por detrás do império. As controvérsias e conflitos

entre o protestantismo e o catolicismo seriam gestadas em um lento processo de

inserção de inovações oriundas do estado e de muitas esferas do paganismo:

Depois da conversão de Constantino o culto cristão começou a sentir a influência do protocolo imperial. O incenso, que até então tinha sido sinal do culto ao imperador, apareceu nas igrejas cristãs. Os ministros que oficiavam no culto começaram a usar vestimentas ricamente ornamentadas durante o mesmo, em sinal de respeito pelo que estava tendo lugar. Pela mesma razão vários gestos de respeito normalmente feitos diante do imperador começaram a surgir também no culto. (GONZÁLES, 1994, Vol. 2, p. 37).

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Séculos mais tarde, o monge agostiniano Martinho Lutero afixaria nas portas

da capela de Wittemberg, Alemanha, um conjunto de pequenas declarações

contestando algumas doutrinas e práticas prevalentes no catolicismo, documento

que se tornaria conhecido com as 95 teses. Os desdobramentos da Reforma de

Lutero podem ser medidos e avaliados a partir de várias óticas, todavia, nos

arriscamos a propor uma leitura bastante otimista e de certa forma conciliadora:

Os dois séculos e meio, entre 1500 e 1750 a.D., constituíram-se em uma época fantástica. Uma série de despertamentos revitalizou e alterou basicamente o cristianismo da Europa Ocidental. Esse segmento do globo estava entrando numa nova era e o cristianismo deu uma importante contribuição para a modificação da cultura que emergia. Em um grau menor, mas não menos importante, mudanças foram vistas em alguns aspectos do cristianismo oriental. Explorações, conquistas, e missionários intrépidos levaram o cristianismo para uma parte bem mais ampla da superfície da terra do que previamente ocorrera com ele ou com qualquer outra religião. (LATOURETTE, 2006, XXXII)

Certamente que essa leitura fragmentada não irá revelar as disputas

acirradas entre protestantes e católicos no campo ideológico e político que

resultariam em guerras sangrentas e prolongadas. Não pode passar despercebido,

também, o fato de que a Reforma Protestante, como bem lembrou Rubem Alves

(1982, p. 58), já mencionado neste trabalho, que o protestantismo contém as

sementes da desintegração, e nada teria de monolítico ou homogêneo, conforme

bem salienta Wiliston Walker (2006, p. 509):

Nos anos seguintes à dieta de Worms, a Reforma espalhou-se rapidamente em quase todos os territórios da Alemanha, sobretudo nas vilas e cidades. Durante esse período, tudo o que era "revolucionário" era imediatamente chamado de "luterano", tanto pelos próprios revolucionários como por seus oponentes católicos. O nascente movimento evangélico, entretanto, estava longe de ser homogêneo, e seu crescimento era desordenado, escondendo profundas diferenças sob o nome de pregação, reforma litúrgica e ação política "luteranas". Em 1524 e 1525, as fissuras dentro do movimento começaram a ficar aparentes, e seus efeitos foram limitar a Reforma e fazer de Lutero líder de um partido ao invés de líder de uma nação.

Logo após a eclosão da Reforma a igreja luterana se veria diante de

controvérsias teológicas que eram, na verdade, reproduções de discordâncias entre

o próprio Lutero e Felipe Melanchton, outro dos reformadores.

Essas disputas criaram desunião política e religiosa. Os príncipes da Alemanha pensaram que os problemas acabariam se o movimento luterano não fosse tão fragmentado. Um documento conhecido como a Fórmula de Concórdia, elaborado em 1577, e publicado em 1580, tendo sido aceito pela maioria dos luteranos da Alemanha como expressão de sua teologia.

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Com respeito ao que se poderia esperar do posicionamento de Lutero em sua

compreensão da relação da igreja com a sociedade e os poderes políticos, deve-se

considerar que o reformador, mesmo a partir da elaboração de sua teologia dos dois

reinos, “sempre teve dúvidas sobre como a fé devia relacionar-se com a vida civil e

política. E essas vacilações têm continuado a aparecer em boa parte da tradição

luterana até o século XX.” (GONZÁLES, 1994, Vol. 6, p. 73).

As controvérsias logo após o evento da Reforma se espalhariam para além do

universo luterano, chegando à Confederação Suiça, um complexo mosaico de

diversos estados com suas leis próprias, local que se tornaria um dos celeiros de

grandes reformadores e berço do pensamento calvinista. Logo se perceberão

controvérsias teológicas entre o reformador de Zurich, Ulrico Zwinglio, e Lutero a

respeito da predestinação e da Santa Ceia e a respeito do alcance da reforma:

Também quanto ao alcance das reformas que deveriam ocorrer na igreja, os dois reformadores diferiam. Como já dissemos anteriormente, Lutero cria que bastava desfazer-se de tudo o que contradizia as Escrituras, enquanto Zwínglio insistia na necessidade de preservar somente o que se encontrasse explicitamente na Bíblia. [...] Por isso, quando as circunstâncias políticas fizeram que o magistrado Felipe de Hesse tratasse de unir os reformadores alemães com os suíços, a questão da presença de Cristo na ceia tornou-se o obstáculo intransponível (GONZÁLES, 1994, Vol. 6, pág. 95, 96).

As divisões se sucediam e assumiam várias formulações. Haveria quem

defendesse expressões ainda mais radicais, como Tomás Müntzer (1488?-1525)

que alegava receber revelação direta mediante visões e sonhos. Ele defendia um

espiritualismo completo que sujeitava a Bíblia ao teste da experiência religiosa:

apenas aquele que é possuído pelo Espírito pode compreender corretamente as

Escrituras e “denunciava tanto os romanistas como os luteranos como ‘escribas’ que

suprimiam a ‘palavra interior’ por meio de sua dependência servil da letra da

Escritura” (WALKER, 2006, p. 510):

Opondo-se ao "boa vida de Wittenberg", isto é, à recusa de Lutero em extrair de sua redescoberta do Evangelho uma nova lei, quer para a moral como para a vida social, ele defendia uma revolução sangrenta, se necessária, para derribar injustiça cometida tanto por príncipes como por sacerdotes. Não foi surpresa, pois, que no devido tempo ele tenha assumido uma posição de liderança na revolta dos camponeses. Lutero opôs-se veementemente a Müntzer e a Karlstadt, e a homens como eles, chamando-os de Schwarmer (fanáticos, entusiastas).

A controvérsia entre Müntzer e Lutero não ficaria apenas no debate de ideias,

mas extrapolou para uma revolta de camponeses. Salienta Walker (2006, p. 512)

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que quando a rebelião, mal dirigida, caiu em excessos maiores de violência e

pareceu tornar-se anarquista, Lutero voltou-se contra os militantes camponeses com

violento panfleto ‘contra a corja de camponeses assassinos e ladrões’, exigindo que

os príncipes os esmagassem pela forca das armas. Gonzáles (1994, Vol. 3, p. 83)

resume a dimensão do conflito com suas trágicas consequências:

Nesta nova rebelião, um fator veio somar-se às demandas econômicas dos camponeses. Esse novo fator foi a pregação dos reformadores. Mesmo que Lutero não cria que sua pregação devesse ser aplicada em termos políticos, houve muitos que não estiveram de acordo com ele nesse ponto. Um deles foi Tomás Müntzer. [...] Ainda, depois, quando a rebelião foi sufocada no sangue, o Reformador exigiu dos príncipes misericórdia para com os vencidos. Mas suas palavras não foram ouvidas, e calcula-se que mais de 100.000 camponeses foram mortos.

As divisões chegariam aos cantões suíços. Um dos movimentos entendia

que a Reforma não havia ido longe o suficiente. Uma dessas expressões ficou

conhecida como anabatista, e que de certa forma se originava da insistência de

Zwinglio na Bíblia como fundamento Logo, o reformador seria chamado de falso

profeta pelo grupo que assumiria crenças milenaristas e que seria perseguido de

forma brutal por católicos e protestantes (CAIRNS, 1995, p. 248).

A história ainda revelaria muitas divisões dentro do espectro do movimento

protestante e, tragicamente como algo típico daqueles dias, muitas controvérsias se

desdobravam em conflitos violentos. Uma das razões se deve ao fato de que havia

uma íntima relação entre religião e uma determinada nação ou cantão. Para

encerrar esse quadro destaquem-se mais duas controvérsias de distintas dimensões

e lugares, ambas relacionadas com o calvinismo e que contribuíram decisivamente

para a construção de sua identidade, diga-se, polêmica.

Com respeito ao calvinismo, conflitos parecem estar na sua própria estrutura

desde suas raízes. João Calvino, que havia migrado para Genebra onde veriam

reafirmadas suas convicções reformadas, fora convencido por Guilherme Farel a

permanecer na cidade, e logo sua habilidade teológica, seu conhecimento de

jurisprudência e seu zelo reformador não apenas lhe tornariam no personagem

central da cidade como provocariam muitos conflitos. Os princípios protestantes logo

encontrariam resistência entre os burgueses, e um dos pontos da controvérsia que

se instalara girava em torno da necessidade da excomunhão de pecadores

impenitentes. Diante do rigor de Calvino a cidade se negava a seguir os seus

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conselhos, o que posteriormente lhe causaria o desterro para Estrasburgo. Em seu

retorno em 1541 o reformador retomaria com o mesmo vigor o que se propusera a

fazer antes de seu exílio. Assim, o presbiterianismo encontra nas convicções de

Calvino e tantos outros os ancestrais de seu espírito polêmico e resistente a

acomodações.

Nota-se naqueles tempos que a presumível liberdade de pensamento estava

restrita por rígidos limites, não apenas no âmbito da igreja católica, mas também no

meio protestante. Um dos casos que se tornaria emblemático e que confirma o fato

de que as controvérsias muitas vezes evoluíram para a tragédia se verá no famoso

caso de Miguel Servetto, médico espanhol acusado de grave heresia (já fora

condenado pela Igreja Romana) e que fará lembrar os tempos sombrios da

perseguição contra os cristãos:

Servetto acabava de escapar dos cárceres da inquisição católica na França, onde corria contra ele um processo de heresia e seviu obrigado a passar por Genebra, onde foi reconhecido quando foi escutar Calvino pregar. Foi arrastado e Calvino preparou uma lista de trinta e oito acusações contra ele. Visto que Servetto era um erudito, e além do mais tinha sido acusado de heresia pelos católicos, o partido que se opunha a Calvino em Genebra adotou sua causa. Porém, o governo da cidade pediu conselho às regiões protestantes da Suíça e todos concordaram que Servetto era herege. Isso calou a oposição, e resolveram condenar Servetto a ser queimado vivo, mas Calvino tratou de mudar essa condenação, transformando-a na de decapitação, por ser uma pena menos cruel (GONZÁLES, 1994, Vol. 6, p. 117).

Outra controvérsia envolveria Calvino, esta relacionada com a presença de

Cristo na Ceia. Tratava-se de outra disputa teológica dentro do ambiente protestante

– mais uma – como tantas outras que se seguiriam. Deve-se reconhecer que o

protestantismo vai se alastrando e se fragmentando de controvérsia em

controvérsia, de conflito em conflito.

Um evento importante que contribuiria para cristalizar as posições teológicas

do calvinismo ocorreu no âmbito da igreja holandesa que até então não possuía uma

identidade definida. Nesse contexto, Jacob Arminius (1560-1609), um pastor que

havia estudado com Teodoro Beza em Genebra, começou a questionar a doutrina

calvinista da predestinação. Depois de sua morte seus simpatizantes publicaram um

documento no qual resumiram em cinco pontos a sua rejeição do calvinismo

clássico. O parlamento convocou um sínodo para resolver a controvérsia, o Sínodo

de Dort, cujas seções se estenderam de novembro de 1618 a maio de 1619. Com

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base nos relatórios das delegações, uma comissão de nove membros redigiu o

documento, os Cânones de Dort, que condenaram as ideias dos arminianos e

afirmaram as convicções reformadas que seriam conhecidas como os cinco pontos

do calvinismo.79

As raízes do que seria o calvinismo que chegaria ao Brasil em meados do

século XIX se localizam nas décadas de conflitos na Inglaterra e Escócia, não

apenas entre protestantes e católicos, mas envolvendo o partido dos reformados

puritanos e a versão estatal que havia surgido com Henrique VIII. Para a Igreja

Presbiteriana do Brasil e seu compromisso teológico, o clímax se encontra na

produção dos documentos de Westminster, entre 1642 e 1646, cuja elaboração

esteve cercada pela moldura de conflitos e disputas políticas.80

Deve-se considerar que o protestantismo vive algo como um paradoxo. De

um lado, a liberdade do livre exame das Escrituras e a recusa de submissão às

autoridades que não seja biblicamente constituídas. Todavia, não se trata de um

espírito volúvel, mas rigidamente comprometido com sua própria consciência naquilo

e onde ela se firmar. Daí a tendência para a controvérsia, que passa pela afirmação

da verdade além da liberdade, como se veria na primeira tentativa de fixação do

calvinismo em solo brasileiro.

O caso seria emblemático, e ocorreria durante a tentativa de fixação dos

franceses no Brasil com a expedição de Nicolau Vilegaignon em 1555 que abriria

oportunidade para a vinda de um grupo de huguenotes para a América, a convite do

próprio Vilegaignon e com a mediação do próprio Calvino. As controvérsias que

resultaram na morte trágica de alguns dos calvinistas que haviam retornado de uma

viagem frustrada de volta à França daria ensejo à produção da ‘Confissão de

Guanabara’.81

Assim, controvérsias seriam parte integrante do protestantismo não apenas

por conta de seu caráter atomizador, mas em razão da própria insistência em afirmar

para o outro a convicção. Talvez a contradição presente nessa dinâmica seja o fato

de que a linha que separa a controvérsia do conflito aberto seja tênue, como a

história irá registrar tantas vezes. 79

http://cpaj.mackenzie.br/historiadaigreja/pagina.php?id=186. Acesso em 14/06/2017.

80 http://cpaj.mackenzie.br/historiadaigreja/pagina.php?id=190. Acesso em 14/06/2017.

81 http://reforma500.com.br/wp-content/uploads/2016/08/Confiss%C3%A3o-da-Guabara.pdf

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Do conjunto de razões que possam explicar a tendência do presbiterianismo

brasileiro para a polêmica uma se relaciona diretamente com as conjunturas

históricas e religiosas que ajudaram a moldar a identidade do protestantismo no

Brasil. Como bem salienta Mendonça (1984, p. 255), o esforço para defender as

instituições eclesiásticas gera mecanismos de autopreservação. Pode ser

acrescentado o fato de que o protestantismo foi crescendo muito em antagonismo

com o catolicismo o que leva a produção de um discurso de legitimação e afirmação

da fé. O próprio ímpeto polêmico se tornaria uma grande força (MENDONÇA, 1994,

p. 257), e a lealdade à verdade estabelecida em dogmas e documentos oferece

muito pouco espaço para a acomodação de novas tendências e pensamentos, do

que resultarão, inevitavelmente, controvérsias e polêmicas.

Como se procurou demonstrar resumidamente a história do presbiterianismo

é a história das controvérsias e conflitos permanentes, que assumem variados graus

de intensidade e beligerância, dependendo da combinação de fatores. Os

desdobramentos são os mais diversos. O presbiterianismo brasileiro também

alternará momentos de conflitos e tempos de relativa paz. Tome-se como exemplo

das variações das tensões o período localizado na virada do século XIX no qual as

controvérsias atingiriam o clímax no cisma de 1903. Compare-se com o longo tempo

de relativa tranquilidade coberto pelas décadas de 1910 a 1950 (Mendonça, 2005, p.

55). Já as décadas de 1960 e 70 controvérsias se desdobraram em delações,

expurgos, fechamento de concílios e rupturas.

Por essas razões, e outras que escaparam a este trabalho, a IPB está longe

de ser reconhecida como uma denominação com tendências de acomodação dos

diversos pensamentos e práticas. Trata-se de um campo historicamente fertilizado

com o espírito da controvérsia.

3.2. Campo presbiteriano: fertilidade para conflitos prolongados.

Uma das lentes preferenciais utilizadas no campo da sociologia para fins de

análise de cenários dentro dos quais se manifestam os fenômenos religiosos e suas

instituições é o conceito de campo desenvolvido pelo pensador francês Pierre

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Bourdieu (1930-2002). Não caberá aqui, obviamente, avaliar as eventuais limitações

de compreensão de Bourdieu quanto à sua teoria de campo religioso, pois sempre

haverá outra perspectiva de leitura. Todavia, sua contribuição para a compreensão

das relações com respeito ao tema é inegável.

Bourdieu irá dialogar com os clássicos, e das relações entre os teóricos

oferecerá uma alternativa metodológica importante para a compreensão da relação

sujeito-sociedade. De forma geral, o campo pode ser considerado tanto um ‘campo

de forças’, pois constrange os agentes nele inseridos, quanto um ‘campo de lutas’,

no qual os agentes atuam conforme suas posições, mantendo ou modificando sua

estrutura (BOURDIEU, 1996). Uma explicação auxiliar:

O conceito de campo é um dos conceitos centrais na obra de Pierre Bourdieu e é definido como um espaço estruturado de posições onde dominantes e dominados lutam pela manutenção e pela obtenção de determinados postos. Dotados de mecanismos próprios, os campos possuem propriedades que lhes são particulares, existindo os mais variados tipos, como o campo da moda, o da religião, o da política, o da literatura, o das artes e o da ciência. Todos eles se tornam microcosmos autônomos no interior do mundo social. A estrutura do campo é como um constante jogo, no qual, cientes das regras estabelecidas, os agentes participam, disputando posições e lucros específicos (ARAÚJO, 2009, p. 36).

Um conceito anterior que por vezes fica oculto pelo posterior desenvolvimento

do conceito de campo é o que se denomina de habitus, que pode ser entendido

como um conjunto de propensões que permite aos indivíduos agir dentro de uma

dada estrutura social com vistas à manutenção de sua dinâmica organizacional.

Visto de outra forma, trata-se de um “sistema das disposições socialmente

constituídas que, enquanto estruturas estruturantes constituem o princípio gerador e

unificador do conjunto de práticas e das ideologias características de um grupo de

agentes” (BOURDIEU, 2005 p. 191). Um campo possuirá suas próprias regras,

princípios e hierarquia. Será tanto um campo de forças quanto um campo de

batalhas.

O campo é tanto um “campo de forças”, uma estrutura que constrange os agentes nele envolvidos, quanto um “campo de lutas”, onde os agentes atuam conforme suas posições relativas no campo de forças, conservando ou transformando a sua estrutura (BOURDIEU, 1996, p. 50).

Não se pode negar que a metáfora bourdiana servirá para enquadrar algumas

das instituições religiosas e para compreendê-las a partir de categorias que não

sejam impostas pelas construções teológicas.

Uma organização como a Igreja Presbiteriana do Brasil se assemelha de fato

a um campo com seus espaços estruturados e hierarquizados, uma arena na qual

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lutas são travadas pela conquista de posições. Os bens-alvo dos antagonismos são,

na maioria das vezes, bens simbólicos, como, por exemplo: prestígio ou

reconhecimento. Os agentes que monopolizam a autoridade e ocupam as posições

portadoras de maior capital simbólico se organizam e desenvolvem estratégias para

conservação do campo. Os detentores de menos capital procuram subverter a

dominação, devem igualmente articular-se a fim de encontrar maneiras de sublevar-

se de alguma forma.

Uma conexão interessante entre o pensamento de Bourdieu e os conflitos

presentes na relação da Chácara Primavera e as alas conservadoras é o fato de que

a mobilização dos novatos se dá de forma a não contribuir para uma revolução total

que venha a colocar em perigo a própria existência do campo.

Algumas instituições, ou alguns campos, em razão de sua cultura

organizacional particular tendem a se tornar um ambiente mais propício para o

surgimento de disputas na comparação com outras modalidades de configurações

religiosas. Esse parece ser o caso IPB em comparação com o sistema de governo

episcopal, por exemplo. A despeito de sua organização hierárquica piramidal

conciliar, a IPB opera a partir do princípio teológico do sacerdócio universal de todos

os crentes e sobre a plataforma de um sistema de governo democrático

representativo. Sendo assim, cada membro das igrejas locais em plena comunhão,

bem como cada representante eleito para os concílios terão alguma medida de

poder em suas mãos e direitos salvaguardados pela Constituição da denominação

para levantar questões ou iniciar algum tipo de debate.

Em comparação com o modo de governo congregacional utilizado pelos

batistas as disputas na IPB tendem a consumir um tempo muito maior do que

poderia ocorrer dentro de um sistema que privilegia a autonomia das congregações

locais. Enquanto as igrejas presbiterianas pertencem a uma federação e estão

debaixo da autoridade dos concílios superiores, as igrejas batistas se encontram

ligadas a uma convenção por adesão voluntária e dentro de uma relação de

cooperação (SOUZA, p. 7):

A Convenção se relaciona com as igrejas em decorrência dos laços cooperativos, isto é, reconhece as ligações determinantes do arrolamento como igrejas cooperantes, mas também as reconhece como igrejas locais, autônomas, interdependentes e que vivem num ambiente de mutualidade. [...] A Convenção Batista Brasileira, portanto, existe em função da igreja, como declarado em seus documentos filosóficos. A Convenção é composta de

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igrejas batistas que decidem voluntariamente se unir para viverem juntas a mesma fé, promovendo o Reino de Deus e assumindo o compromisso de fidelidade doutrinária, cooperação e empenho na execução dos programas convencionais.

Assim, não apenas o nível de crescimento e mobilidade da organização

poderá ser comprometido em razão da morosidade presente nos processos

decisórios e centralizados. A dependência dos manuais e documentos, mais o

tempo da resolução das disputas e a amplitude que um caso específico poderá

assumir uma dimensão que não se adequa aos tempos que urgem por resoluções

rápidas. Pode-se argumentar, no entanto, que o fato de a IPB ser vista como um

campo de constantes disputas que se prolongam indefinidamente garantirá níveis

mais elevados de justiça durante, minimizando o risco de precipitações.

Com o objetivo de ilustrar este aspecto da cultura organizacional da IPB tome-

se um exemplo verossímil, embora hipotético. Um membro de uma determinada

igreja local, descontente com as práticas inovadoras no campo da liturgia de sua

comunidade, resolve enviar um documento ao Conselho de sua igreja. Este

examinará os contornos legais do documento a partir do que deverá avaliar o

conteúdo a fim de responder ao solicitante. A partir desse instante pode-se deflagrar

um longo processo, se eventualmente o membro desejar recorrer da decisão às

instâncias superiores: Presbitério, Sínodo e Supremo Concílio. Uma questão que

numa igreja batista seria resolvida num tempo bem mais curto assume proporções

que envolverão outras esferas da denominação.

Um dos exemplos clássicos, certamente o mais emblemático, a respeito do

prolongamento quase indefinido de processos de avaliação e resolução de algumas

questões se refere à controvérsia em torno da maçonaria. A verdade é que desde a

chegada ao Brasil do missionário Ashbell Green Simonton em 1859, as relações

entre os presbiterianos e os maçons se estreitariam e o problema seria uma das

causas por detrás do cisma de 1903:

A questão maçônica foi suscitada no final de 1898 a partir de um artigo publicado no periódico O Estandarte [...] A racionalização religiosa das tendências cada vez mais fortes de fragmentação se deu por meio do surgimento de uma disputa teológica. E essa querela dividiu os nacionais. Era a chamada Questão Maçônica, que questionou a possibilidade de um cristão legítimo ser também um maçom. [...] A resolução do Sínodo de 1906 aconselhava de forma clara os presbiterianos a se absterem de pertencer às fileiras maçônicas. Nesse mesmo espírito seguiram as decisões de 1916, 1934, 1936, 1956, 1958 e 1987. (KITAGAWA, p. 176-179).

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A questão se arrastaria de 1994 a 2006. Em 2002 o Supremo Concílio

determinou que não fossem ordenados maçons, mas a resolução não alterava a

condição dos eventuais oficiais que faziam parte da maçonaria. O SC de 2010

declara de forma enfática a incompatibilidade da maçonaria com a fé cristã:

82

SC-E - 2010 - DOC. LXXXI: Quanto ao documento 218 - Consulta Sobre Presbíteros Maçons em Disponibilidade: Considerando: 1. a incompatibilidade das doutrinas maçônicas com a fé cristã; 2. a necessidade de tratar dessa questão de forma pastoral e amorosa para promover a paz no seio da igreja; O SC-E/IPB - 2010 RESOLVE: 1. O mesmo continua a ser presbítero em disponibilidade enquanto se envidam esforços pastorais conforme decisão do SC/2006: "tratar com o máximo de amor e respeito aqueles que ainda estão na maçonaria, para que seu desligamento seja feito pelo esclarecimento do Espírito mais do que por coerção ou constrangimento". SC - 2010 - DOC. LXXVII: Quanto ao documento 447 - Quanto a incompatibilidade com a Maçonaria : O SC/IPB - 2010 RESOLVE: 1. Aprovar o documento. 2. Reafirmar a incompatibilidade das doutrinas maçônicas com a fé cristã.

Há outras considerações que injetam elementos ainda mais complicadores ao

sistema, como se poderá notar no caso específico das comunidades presbiterianas

e da Chácara Primavera. A disputa e o crescimento dos níveis de tensão começam

a ocorrer a partir da interferência de um membro de outro concílio e de outras

esferas da IPB. No caso específico, seria o Sínodo de Piratininga o concílio a

solicitar posicionamento da Comissão Executiva do Supremo Concílio a respeito de

ações de uma igreja que pertence a outro presbitério (Presbitério Metropolitano de

Campinas) que por sua vez é jurisdicionado pelo Sínodo de Campinas.

Pode-se perceber por um simples exemplo que o sistema presbiteriano é

pródigo em possibilitar múltiplas interferências que comprovam que se trata de um

campo fértil para o surgimento de controvérsias que assumem grandes proporções e

deslizarão num grande período de tempo. Observe-se que a controvérsia a respeito

da questão maçônica, que parecia ter sido definitivamente sepultada, aparecerá em

dois momentos distintos durante a Reunião Ordinária do Supremo Concílio em 2014.

Momentos antes da eleição da mesa executiva, cada um dos candidatos a

presidência é obrigado a responder se pertence ou não a uma ordem maçônica –

todos responderiam negativamente83. Posteriormente, um dos documentos que

82

http://se.icalvinus.net/icalvinus.php?d=1497393508965. Acesso em 04/06/2017.

83 O autor deste trabalho esteve presente na referida reunião como deputado representante do Presbitério Leste

Sorocabano e acompanhou todas as seções do plenário.

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foram enviados solicitava esclarecimento a respeito da ordem Demolay, do que

resultariam as seguintes considerações e resoluções:

SC-E/IPB-2014 - DOC.XXVIII - Quanto ao do-18 cumento 185 - Oriundo do(a): Sínodo Baurú - Ementa: Consulta sobre a Ordem Demolay. Considerando: 1) Que a Ordem Demolay é reconhecidamente em sua estrutura um braço da maçonaria, sendo que para ser estabelecida precisa estar debaixo da tutela de um maçom, caracterizando assim uma extensão22 da mesma; 2) Que a consulta do Sínodo de Bauru é de extrema relevância para que haja um posicionamento oficial da IPB sobre o assunto; O SC-E/IPB 2014 RESOLVE: Determinar que todas a decisões com respeito a Maçonaria estabelecidas no SC/IPB 2006 Doc. CIV se aplicam também a chamada a Ordem Demolay e similares.

A morosidade para a tomada de decisões ‘definitivas’ também está presente

com respeito à questão envolvendo a Chácara Primavera e as comunidades

presbiterianas. As primeiras consultas foram encaminhadas à Comissão Executiva

do Supremo Concílio em 2006. Conforme se pode verificar na resolução, o termo

‘comunidade’ estava proibido para se referir a uma igreja presbiteriana. Nota-se que

o assunto seria agora remetido para a Reunião Ordinária do Supremo Concílio, que

se realizaria em 2014.

Considerando a resolução da CE-SC/IPB-2012: “DOC. CCXV – Quanto ao documento 158 – Oriundo do(a): Sínodo Piratininga – Ementa: Consulta sobre Decisão da CE-SC/IPB 2006, Doc. XLV, quanto ao documento 179, sobre Igreja auto intitulada Comunidade Presbiteriana. Considerando: 1. Que a resolução CE-SC/IPB-2006 – Doc. XLV que proíbe o uso do termo “comunidade” para referir-se a uma igreja presbiteriana está em vigor; 2. Que a CE não é o fórum para tratar de assuntos teológicos deste tipo. A CE-SC/IPB – 2012 RESOLVE: 1. Tomar conhecimento; 2. Encaminhar este documento à próxima RO do SC.”

A resolução do Supremo Concílio de 2014 ratificaria a decisão da CE-SC/IPB-

2006, e muito estranhamente, a resolução não se encontra registrada na redação da

ata final.84 Seja como for, o sistema presbiteriano parece não estar habilitado para

responder às demandas de seu tempo, o que obrigaria a denominação a pensar em

muito mais do que alterações na periferia de sua cultura eclesiástica.

84

Como acima mencionado, o autor esteve presente e participou das decisões. A decisão que confirmou as resoluções anteriores por alguma razão escaparam ao secretário. Todavia, a Chácara Primavera alterou o seu nome fantasia, como se pode verificar na página da internet da igreja.

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3.3. Chácara Primavera: compreendendo a controvérsia.

O renomado e respeitado teólogo anglicano, James I. Packer (1998, p. 232)

irá se referir a dois tipos de conservadorismo, que ajudarão a ilustrar os debates no

campo presbiteriano em relação à sua identidade:

Um tipo de conservadorismo é a decisão heroica de preservar algo visto na herança cultural como de real valor: agarrar-se a tal valor e defende-la haja o que houver [...] Esse tipo de conservadorismo – conservadorismo criativo, como me aventuro a chamar – talvez se prove ser a opção mais radical, realista, inteligente, ousada e estimulante que o mercado de idéias tem a oferecer [...] O outro tipo de conservadorismo, entretanto, é cego, obstinado, uma aderência turrona ao que é velho e convencional só porque é velho e convencional.

Pode-se constatar que o presbiterianismo, em especial a IPB, tem se

orientado a partir de uma linha conservadora utilizando-se do aparelho institucional

que muitas oportunidades serviu para silenciar as vozes que têm sido chamadas de

progressistas ou liberais. As controvérsias envolvendo a Chácara Primavera

caminhariam nessa direção, não fora a presença de um novo tempo. Agentes

alinhados em torno do que se pode chamar de posição moderada contribuem para a

minimização da intensidade dos conflitos.

O conteúdo do presente tópico aborda alguns aspectos da controvérsia

envolvendo a Chácara Primavera e que saiu do âmbito da denominação e foi levada

ao público da internet a partir de duas postagens do pastor Ageu Magalhães, já

mencionado anteriormente. Dos artigos constam pesadas críticas não apenas às

comunidades presbiterianas, mas também insinuações a respeito da negligência de

concílios da denominação.

O primeiro artigo foi postado em agosto de 201085 e não parece haver dúvidas

a respeito de quem são os alvos das críticas, a despeito de não serem mencionados

claramente. As chamadas comunidades presbiterianas seriam abrigos no Brasil das

tendências de um movimento oriundo dos Estados Unidos que tem como alvo

principal criar uma igreja ao gosto dos consumidores:

As igrejas não se chamam igrejas, mas “comunidades”, pois, na visão do movimento, “igreja” é uma palavra que mais assusta do que atrai. Não há púlpito. No lugar dele, uma mesinha com laptop e um banquinho para o pregador apoiar-se. Os pregadores usam sempre roupa informal, nunca terno

85

http://resistenciaprotestante.com.br/2010/08/16/igreja-contextualizada-ou-secularmente-conformada/. Acesso em 14/06/2017

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111

e gravata. A decoração do salão de cultos é repleta de imagens, banners, ou cartazes com frases de efeito. O sermão nunca é chamado desta forma, mas de “palestra” ou “conversa”. No Brasil, músicas seculares de compositores como Vinícius de Morais, Toquinho, etc, são usadas dentro do culto.

Em outro artigo postado em maio de 201386 intitulado ‘qual o problema das

comunidades presbiterianas’ o autor introduz o conteúdo com uma gravura com o

título da obra ‘Igreja? Não, obrigado!’ A expressão ‘Chácara Primavera’ não é

mencionada, o que não é necessário considerando-se a simples menção do livro de

autoria do pastor Ricardo Agreste, fundador e pastor da comunidade. A primeira

denúncia diz respeito ao ‘culto antropocêntrico’:

O culto praticado nas comunidades presbiterianas coloca o homem no centro. Seguindo o modelo norte-americano denominado “Seeker Sensitive” (sensível ao que busca) o culto é totalmente remodelado para atender aos anseios do não crente. Em uma das palestras do Centro de Treinamento para Plantadores de Igreja (CTPI) um dos pastores de comunidade presbiteriana ensina o que segue:

A questão é que Magalhães vai bem mais longe em sua tentativa de

descrever os traços identitários das comunidades que visualiza, generaliza, mas que

não nomeia. O autor apela para um fragmento de uma obra do teólogo americano de

linha conservadora, John MacArthur Jr,87 a fim de aprofundar a sua crítica ou

legitimá-la:

Em lugar do púlpito, o enfoque está no palco. As igrejas estão contratando, em regime de tempo integral, especialistas em mídia, consultores de programação, diretores de cenas, professores de teatro, peritos em efeitos especiais e coreógrafos. Tudo isso não passa da extensão natural de uma filosofia norteada por marketing seguida pelas igrejas. Se a igreja funciona apenas com o objetivo de promover um produto, é bom mesmo que seus líderes prestem atenção aos métodos da Avenida Madison. Afinal, a maior competição para a igreja é um mundo repleto de diversões seculares e uma gama de bens e serviços mundanos. Portanto, dizem os especialistas de marketing, jamais conquistaremos as pessoas até que desenvolvamos formas alternativas de entretenimento a fim de ganhar-lhes a atenção e a lealdade, desviando-as das ofertas do mundo. Desta forma, esse alvo estipula a natureza da campanha de marketing.

O autor traz à superfície um dos dilemas que desde os primórdios do

cristianismo tem sido motivo de grandes controvérsias. Parafraseando a observação

de Gonzáles (1994, Vol. 1, p. 88), rejeitar os recursos disponibilizados pelas ciências

humanas, pelo marketing e pelas artes populares implica em recusar o melhor que o

86

http://resistenciaprotestante.blogspot.com.br/search/label/Igreja%20Amig%C3%A1vel. Acesso em 14/06/2017.

87 MacArthur Jr, John, Com Vergonha do Evangelho: Quando a Igreja se torna como o mundo. São Paulo.

Editora Fiel, p. 78.

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espírito humano pode produzir. Aceitar tais contribuições pode significar uma

concessão às forças desestruturantes da secularização, algo como um paganismo

customizado. Talvez fosse o caso de os tradicionalistas visitarem a história para

avaliar a presença dos moldes filosóficos na estruturação da metodologia de suas

teologias dogmáticas.

Magalhães ousa afirmar que as inovações implementadas pelas comunidades

têm como fatores motivacionais o objetivo de atender às demandas de uma cultura

secularizada e secularizante. A cultura contemporânea oferece os ingredientes

principais para o processo de construção de igrejas que estariam muito mais

voltadas para atender às demandas dos seekers sensitives, expressão que aponta

para igrejas que proporcionam experiências tão confortáveis, atrativas e não

ameaçadoras quanto possível.88

O conhecimento mais profundo da Chácara Primavera indicará que em alguns

pontos a comparação feita por Magalhães, usando do texto do MacArthur, beira o

exagero:

Tudo isso não passa da extensão natural de uma filosofia norteada por marketing seguida pelas igrejas. Se a igreja funciona apenas com o objetivo de promover um produto, é bom mesmo que seus líderes prestem atenção aos métodos da Avenida Madison. Afinal, a maior competição para a igreja é um mundo repleto de diversões seculares e uma gama de bens e serviços mundanos. Portanto, dizem os especialistas de marketing, jamais conquistaremos as pessoas até que desenvolvamos formas alternativas de entretenimento a fim de ganhar-lhes a atenção e a lealdade, desviando-as das ofertas do mundo. Desta forma, esse alvo estipula a natureza da campanha de marketing.

Isso não significa ignorar que a Chácara Primavera de fato se distancia

bastante dos modelos de culto presbiteriano nos casos em que se utiliza de temas,

canções, poemas e vídeos de artistas seculares – alguém diria profanos – como

ingredientes dos encontros que são nomeados atualmente como de ‘adoração’,

como se pode ver no vídeo de introdução. Isso implica admitir em um tipo de

cativeiro ideológico resultante dos efeitos típicos da hipermodernidade.

Quanto à questão da utilização de recursos oriundos da cultura secular nas

palestras considere-se o fato de que é absolutamente natural que os pregadores dos

púlpitos das igrejas presbiterianas façam uso de ilustrações anexadas aos sermões:

88

https://www.google.com.br/search?q=gera%C3%A7%C3%A3o+millennials&rlz=1C1NHXL. Acesso em 05/06/2017.

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113

cenas da vida real, citações de filósofos e poetas seculares, comentários a respeito

de times de futebol, fragmentos de filmes e novelas e outras formas de

comunicação. Considere-se uma mera hipótese, não obstante verossímil, de um

pregador proferindo um sermão de um púlpito de uma igreja tradicional e que faça

uso do recurso de sua oratória presbiteriana para declamar um fragmento do Hamlet

ou um poema de Carlos Drumond de Andrade. Cogite-se da possibilidade de a

reação ter sido de admiração e aplauso silencioso. Todavia, Shakespeare

certamente causaria muito desconforto se fosse representado pelas vias de um

vídeo no qual a interpretação se desse por meio de um famoso ator. Declamar

‘Epitáfio’, da Banda Titãs para ilustrar a mensagem é bem diferente de projetar um

vídeo em que a própria banda execute sua canção.

Deve-se no mínimo cogitar pelas causas por detrás das críticas que partem

das alas conservadoras da IPB contra o uso de vídeos, banners, gravuras e imagens

de qualquer natureza. Não estariam elas associadas à histórica tendência

iconoclasta do protestantismo? Uma fina ironia, não percebida, está presente nos

atos de iconoclastia, ou iconofobia protestante, qual seja, um impulso secularizador

com a finalidade de desativar o sistema simbólico da igreja católica (RANQUETAT

JR, 2012, p. 95), o mesmo impulso que agora é denunciado.

O argumento é que as inovações implementadas pela Chácara Primavera têm

como cenário o espaço e horário historicamente reservados ao culto solene, em que

trajes, ritos e comportamento assumem dimensão completamente distinta de

ambientes tais como salas de aula, acampamentos e contextos menos ‘sagrados’.

Deve-se admitir, sem presunção de seu mérito, que os templo presbiterianos sempre

foram caracterizados pela austeridade e singeleza de suas formas, e que a

produção cenográfica implementada pela Chácara Primavera representa uma

quebra de paradigma.

Finalizando este tópico percebe-se nos artigos propósitos de potencializar um

eventual desconforto transformando-o em controvérsia. Uma tentativa de adicionar

ingredientes de legitimidade se deu pela apropriação de parte do discurso de

discursos de teólogos que não pertencem ao mundo tupiniquim, e que estejam numa

posição de elevada respeitabilidade, como é o caso do teólogo americano R. C.

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Sproul, que dirá: “a igreja precisa reconhecer que sua missão nunca foi a de

relações públicas ou de vendas”.89

Tal conclusão em tom de denúncia aproximaria as comunidades

presbiterianas do espectro das igrejas neopentecostais em seu uso de ferramentas

diversas para a produção e disponibilização de bens e serviços religiosos. Todavia,

após cuidadosa avaliação dos discursos e práticas da Chácara Primavera o que se

irá perceber é a presença de um duro discurso de crítica às práticas e líderes

neopentecostais bem como aos movimentos desinstitucionalizados – não obstante a

crítica à hipertrofia institucional esteja presente. Será possível afirmar um razoável

distanciamento entre as comunidades presbiterianas e os vários movimentos que

despontam neste começo de milênio tais como os movimentos seeker sensitive, as

igrejas emergentes (MEISTER, 2006, p. 97) e as chamadas igrejas orgânicas

(CHIROMA, p. 122).

Em tempo, destaque-se que as controvérsias serão alimentadas pelos

recursos da réplica e tréplica, e nada indica que a Chácara Primavera deseje fazê-lo

nos mesmos moldes utilizados pelo pastor Ageu Magalhães. Em segundo lugar,

presume-se que o peso de um discurso na arena dos debates deveria ser

diretamente proporcional à presença de elementos da teologia e da tradição

agregados á própria importância e status do interlocutor. Usando de uma linguagem

bourdiana com respeito ao pastor Magalhães, trata-se de um agente portador de um

elevado capital simbólico, uma figura de prestígio e destaque na denominação, que

ocupa o cargo de diretor do Seminário José Manoel da Conceição, JMC, uma das

mais conceituadas instituições de ensino teológico da IPB. Mais ainda, a postagem

vem de um dos membros da Junta de Educação Teológica – JET90, órgão

responsável pela coordenação, operação e fiscalização de toda a movimentação na

área teológica da denominação. Um elemento adicional: o conteúdo da postagem

traz resoluções do Sínodo de Piratininga, concílio que agrega alguns presbitérios na

região da grande São Paulo, o que aponta para o caráter de oficialidade

institucional.

89

Conferência do Ministério Ligonier sobre o tema geral "Lutando pela Verdade", em 2007. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=JWgqRTJF-48. Acesso em: 15/06/2017.

90 Conf. http://www.ipb.org.br/educacao/jet-junta-de-educacao-teologica. Acesso em 15/06/2017.

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Com base no que acima foi descrito era de se esperar que a controvérsia

Chácara Primavera migrasse para a condição de um conflito com maior potencial de

beligerância, o que não tem ocorrido, fato que apontará para algumas alterações na

autocompreensão de grande parte dos agentes da denominação.

3.4. Chácara Primavera e o sistema conciliar: crise de autoridade?

O que se tem podido colher das considerações acima aponta para mais do

que uma disputa pela legitimidade de uma determinada forma e metodologia

aplicada por uma instituição que parece se afastar do padrão da IPB. Chamará a

atenção o fato de que a controvérsia envolvendo a Chácara Primavera esteja se

tornando uma das evidências da mutação presente no campo do exercício da

autoridade. No artigo do pastor Ageu Magalhães são copiadas resoluções do

Supremo Concílio de datas diferentes e que dizem respeito ao mesmo tema o que

sugere morosidade na definição da questão:

CE-SC/IPB-2006 – DOC. XLV – Quanto ao documento 179 - Ementa: Oriundo do Sínodo Oeste Fluminense, consulta sobre o uso do nome "Comunidade". [...] CE-SC/IPB-2012 – DOC. CCXIV – Quanto ao documento 285 – Oriundo do Sínodo Vale do Paraíba – Ementa: Consulta quanto ao uso do termo Comunidade. [...] CE-SC/IPB – 2012 – DOC. CCXV – Quanto ao documento 158 – Oriundo do Sínodo Piratininga – Ementa: Consulta sobre decisão da CE-SC/IPB 2006, Doc. XLV, quanto ao documento 179, sobre igreja auto intitulada Comunidade Presbiteriana. [...] CE-SC/IPB-2013 DOC. CCXII – quanto ao documento 175 – Oriundo do(a): Sínodo Piratininga – Ementa: Consulta sobre Movimento de Comunidades da Igreja Presbiteriana do Brasil. (Grifos nossos).

Percebe-se nos documentos acima uma amostra de uma das características

do sistema presbiteriano, a interdependência entre os diversos concílios.

Teoricamente, que um membro de uma igreja ou representante de um concílio

distante geograficamente poderá levantar uma questão a respeito de comunidades

que não estão debaixo de sua jurisdição direta91. O Supremo Concílio é o fórum

último de deliberação e decisões à medida que um presbitério ou sínodo move um

tipo de ação em relação a uma igreja local que não está sob sua jurisdição.

Logo após transcrever num dos artigos as resoluções em sua íntegra92

Magalhães se utilizará dos textos de um dos documentos padrão de referência da

91

http://resistenciaprotestante.blogspot.com.br/search/label/Igreja%20Amig%C3%A1vel. Acesso em 14/06/2017.

92 http://resistenciaprotestante.blogspot.com.br/search/label/Igreja%20Amig%C3%A1vel. Acesso em 14/06/2017.

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IPB, o Catecismo Maior de Westminster como base para o argumento e não hesitará

em denunciar a presença de um espírito de negligência por parte dos concílios e de

rebeldia por parte das igrejas citando um dos artigos do Código de Disciplina da IPB:

O Catecismo Maior, pergunta 128, ensina “Quais são os pecados dos inferiores contra os seus superiores? Resposta: Os pecados dos inferiores contra os seus superiores são: toda a negligência dos deveres exigidos para com eles; a inveja, o desprezo e a rebelião contra as suas pessoas e posições em seus conselhos, mandamentos e correções legítimos; a maldição, a zombaria e todo comportamento rebelde e escandaloso, que vem a ser uma vergonha e desonra para eles e para o seu governo.” Nosso código de disciplina assevera que concílios estão em falta quando “... c) são deliberadamente contumazes, na desobediência às observações que, sem caráter disciplinar, o concílio superior fizer no exame periódico do livro de atas; d) tornam-se desidiosos no cumprimento de seus deveres, comprometendo o prestígio da igreja ou a boa ordem do trabalho; e) adotam qualquer medida comprometedora da paz, unidade, pureza e progresso da igreja.” (CD Art. 7º).

As reações dos concílios inferiores denunciados por Magalhães,

principalmente dos presbitérios aos quais cabe por direito e dever cumprir as

resoluções emanadas dos concílios superiores e cuidar da saúde doutrinária das

igrejas locais, pode denotar duas realidades. A primeira seria a anuência do

presbitério em relação às práticas adotadas pela comunidade, e a segunda

apontaria para algum tipo de indiferença ou desobediência pura e simples. O que

estará em pauta na agenda de discussões será o conceito de autoridade e a

maneira como o poder é exercido no sistema hierárquico presbiteriano:

Esta desobediência das igrejas, intituladas comunidades, às decisões do Supremo Concílio da IPB macula o princípio de autoridade exposto na CI (Art. 3º e 61) e é péssimo exemplo para os membros das igrejas locais.

93.

As primeiras resoluções que dizem respeito ao movimento das comunidades

presbiterianas datam de 2006, como já fora mencionado. Houve, como se pode

averiguar, outras solicitações posteriores a respeito da mesma questão o que aponta

para algo além da natural morosidade dos processos no sistema da IPB. A hipótese

que tem sido levantada aponta para um tipo de diluição da autoridade conciliar o que

paralelamente aumenta o espaço e liberdade de decisão das comunidades locais.

Esse parece ser o caso em questão, o que sugere a presença em curso de um

gradativo distanciamento do modelo de governo representativo conciliar e uma

aproximação jamais admitida do sistema de convenções.

93 http://resistenciaprotestante.blogspot.com.br/search/label/Igreja%20Amig%C3%A1vel. Item de número 03,

último parágrafo. Acesso em 14/06/2017.

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Em tempo, pode parecer em princípio que a liderança da Chácara Primavera

estaria desmobilizada ou desinteressada na afirmação da legitimidade de suas

iniciativas. Pelo contrário, farta documentação enviada ao Supremo Concílio

apresentou uma série de argumentos a respeito de que sua autonomia não tem sido

fruto de independência às esferas de autoridade dos concílios. Em resposta à

questão que havia sido levantada com respeito aos acordos de parceria com a

Spanish River Church, EUA, assim se pronunciou o Supremo Concílio:

SC - 2014 - DOC. XLVII: Quanto ao documento 015 - Relatório sobre a Situação da Spanish River Church: Considerando: 1) Que a Spanish River Church é uma igreja local fundada em 1967 pelo Dr. David Nicholas, na cidade de Boca Raton, no Estado da Flórida - Estados Unidos da América; 2) Que a referida Igreja é filiada à PCA (Presbyterian Church in America) e que ao longo dos anos tem colaborado com a plantação de Igrejas em diversos lugares do mundo, apoiando líderes locais; 3) Que a IPB mantém vínculo no nível superior dos relacionamentos eclesiásticos denominacionais com PCA; 4) Que os esforços da Spanish visando a plantação de novas igrejas por meio de parcerias estabelecidas são legítimos; 5) Que o uso da nomenclatura "comunidades" não é demandado pela Spanish River que usa o termo "igrejas" quando trata de suas parceiras; 6) Que não há evidência de quebra de protocolo relacional ao consagrar as referidas parcerias; 7) Que o relatório apresentado pela CRIE responde os quesitos de consulta oriundo do Presbitério Piratininga e Sínodo Piratininga. O SC/IPB 2014 RESOLVE: 1. Tomar conhecimento e aprovar o relatório. 2. Informar que a CRIE tem conhecimento da existência de parceria firmada entre a Spanish River Church e Igrejas Presbiterianas. 3. Informar que não existe qualquer evidência de subordinação eclesiástica das igrejas que recebem apoio com a que presta auxílio. 4. Registrar voto de gratidão à Spanish River pelas parcerias de plantação de igrejas junto à IPB. (Grifos nossos)

Os grifos indicam que a Chácara Primavera foi alvo de desconfiança e

interferência com respeito à sua maneira de operar dentro de um concílio, o

Presbitério Metropolitano de Campinas, a quem cabe averiguar as questões

levantadas. É certo que o sistema presbiteriano permite que concílios venham a se

posicionar em relação a outros concílios, todavia, trata-se de uma interferência

indireta e de certa forma um questionamento da autoridade e responsabilidade

daquele que deixou passar eventuais irregularidades. Esse é o modelo presbiteriano

que parece estar em cheque, e que tem na Chácara Primavera uma das evidências

de que alterações estão em curso. Até onde irão tais alterações pertence a outra

esfera.

Levante-se outra questão. Apelando-se mais uma vez para as lentes de

Bourdieu, estraria ocorrendo uma redistribuição do capital entre os diversos agentes

da IPB. Ainda no campo das hipóteses, deve-se cogitar pelo nível de influência

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produzida pela figura de Magalhães em comparação ao pastor Ricardo Agreste. Por

ocasião da reunião do SC em 2014, a voz de Magalhães não se faria ouvir para a

maioria dos representantes, a despeito de sua indiscutível capacidade acadêmica,

irretocável conduta ética e seu status elevado na denominação.

Colocam-se ambos os líderes em condições distintas e com suas igualmente

distintas áreas de influência. No entanto, não se poderá ignorar o fato de que o

Centro de Treinamento de Plantadores de Igrejas – CTPI – que é um dos braços

ligados às comunidades presbiterianas oferece a Agreste a possibilidade de se

relacionar e influenciar um número cada vez maior de pastores e líderes, seja por

meio dos cursos e eventos distribuídos ao longo do ano ou principalmente por meio

da conferência que se realiza todos os anos em Campinas e que rivaliza com os

grandes congressos, reunindo 2016 mais de 1.300 participantes, a grande maioria

pastores presbiterianos.

CONCLUSÃO:

Procuramos neste capítulo recuperar alguns elementos que foram aqui

distribuídos com o objetivo de avaliar a relação da controvérsia com a Chácara

Primavera. Estaria à vista um processo de reorganização de agentes em torno de

um projeto que se distancie do tradicionalismo mas que não se confunda com as

vertentes neopentecostais, e ao mesmo tempo uma evidência de esvaziamento da

autoridade conciliar. Alguns destaques finais.

Em primeiro lugar, controvérsias são inerentes ao próprio modo de ser do

cristianismo, e em especial do protestantismo em razão de sua convicção com

respeito à liberdade de crença e no livre exame que se possa fazer das Escrituras.

Isso o deixaria livre para não se submeter facilmente à autoridade ao mesmo tempo

em que fertiliza o campo das várias interpretações quanto a cada um dos aspectos

relativos à teologia, ética e modos de organização eclesiástica.

Em segundo lugar, a cultura presbiteriana e seu sistema democrático

representativo a partir de concílios, e tendo como base uma complexa rede de

documentos e códigos, permitirá que as disputas se prolonguem indefinidamente,

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algo que parece incompatível com o senso de rapidez, eficiência e urgência que o

mundo moderno impõe, muito distante do cenário no qual a maior parte da estrutura

eclesiástica foi moldada. Por conta disso, a controvérsia envolvendo as

comunidades presbiterianas poderá durar algum tempo, a não ser que a história

surpreenda com a interrupção de processos dialéticos a partir de uma síntese

forçada de imposição de qualquer natureza.

Em terceiro lugar a Chácara Primavera parece bem pouco disposta a

alimentar controvérsias a despeito das críticas que a ela têm sido dirigidas. Esse é

um dos pontos que podem apontar para a presença de um novo espírito dentro do

presbiterianismo, que se delicia menos com a emergência de disputas, que se

importa menos com a instituição como um todo e que se obriga a pensar mais na

própria comunidade, uma mentalidade tipicamente moderna e pragmática.

Em último lugar, todos esses ingredientes parecem confirmar que está em

curso um processo de alteração no campo da IPB, não apenas no que tange à

diversidade de expressões litúrgicas e metodológicas, mas, sobretudo no que diz

respeito ao esvaziamento da autoridade dos concílios e à elevação dos níveis de

autonomia das congregações locais.

Somente o tempo dirá se esta será uma tendência a ser mantida e ampliada e

em que níveis irá se refletir na retomada do crescimento e da recuperação da

visibilidade da IPB no cenário nacional. Por outro lado, não se poderá garantir que

tal condição garantirá a harmonia e a interdependência das comunidades em torno

de um sistema centralizado.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Assim como ocorre invariavelmente com muitos projetos acadêmicos, à

medida que o olhar se aproximava do objeto de estudo o campo começou a assumir

outras cores e os movimentos iam sendo percebidos com maior nitidez. Em princípio

havia sido atribuído um valor bem maior à questão da contextualização cultural

como um dos pontos mais salientes no processo de modificação do campo da IPB.

Todavia, quando se avaliam os elementos, fatos e pensamentos em torno da Igreja

Presbiteriana Chácara Primavera em sua relação com a instituição à qual se

encontra ligada, a IPB, o resultado do conhecimento mais profundo e ampliado irá

surpreender. Seguem abaixo algumas percepções de uma visão condensada do

conteúdo que tem sido desenvolvido.

Em primeiro lugar, algumas considerações em relação à Chácara Primavera.

Trata-se, de fato, de uma comunidade que a despeito de sua lealdade aos princípios

básicos do presbiterianismo começa a dar sinais de que opera como uma ‘igreja

dentro da igreja’. Isso pode ser percebido na forma com que a marca ‘Chácara’ tem

sido reforçada e atrelada aos projetos de expansão que se verifica no surgimento de

outras comunidades satélites na cidade de Campinas, e nas experiências vídeo sites

em Limeira e Curitiba. Não se trata apenas de uma igreja plantadora de novas

igrejas, mas também de algo como clones de sua visão. Como já foi ventilado, difícil

imaginar que uma das ‘chácaras’ se livrem do nome num eventual processo de

aquisição de autonomia. Como num processo de ‘fading’, a expressão presbiteriana

vai desaparecendo aos poucos para dar lugar a uma nova marca.

Outro aspecto, a Chácara Primavera se tornou não apenas uma igreja

plantadora de outras igrejas, mas o centro de irradiação de um movimento, ou algo

que se encaminha para tal. Trata-se não apenas de multiplicação de esforços no

estabelecimento de novas comunidades, mas da inseminação de conceitos e uma

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maneira de ser e agir. Trata-se de um sistema de pensamento elaborado a partir de

um centro teológico que valoriza a utilização de ferramental das ciências humanas

na avaliação da realidade.

A Chácara Primavera tem se tornado uma evidência para a comprovação da

hipótese de que alterações significativas dentro do campo da IPB estão ocorrendo. A

Chácara Primavera tornou-se um tema em torno do qual vários agentes da IPB

devem se mobilizar. Tal percepção se tornou evidente durante os debates em torno

da legitimidade das práticas adotadas pelas comunidades presbiterianas, á medida

que grande parte dos representantes, pastores e presbíteros de igrejas que se

aproximam mais dos modelos tradicionais tem revelado elevado grau de tolerância

para com uma proposta que tem sido considerada por alguns como desqualificada

para os padrões da denominação.

Percebe-se na dinâmica da Chácara Primavera algo que Mendonça enfatizou,

e que já foi pontuado neste trabalho, qual seja, a dependência de formatos e

diretrizes que são produzidas nos Estados Unidos. Tanto quanto os setores mais

conservadores da IPB, a Chácara Primavera revela uma indisfarçável dependência

do que é gerado na matriz americana para ser consumida no Brasil. Mais do que

isso, a linguagem assume um conjunto de códigos que se direcionam para uma faixa

estreita do estrato social brasileiro próximo das faixas ‘A’ ou ‘B’.

Deve ser ressaltado que as eventuais críticas dirigidas à Chácara Primavera

de uma eventual assimilação de metodologia secularizada precisam ser, também,

consideradas sob outra perspectiva. Percebe-se claramente que a comunidade se

aproxima e se apropria de elementos da cultura, tomando-os como temas e

eventualmente, para os conservadores, abusando de seu uso. Todavia, pode-se

notar um objetivo claro: a proposta da comunidade é descobrir os elementos ocultos

por detrás da cultura da sociedade pós-moderna para compreender sua cosmovisão

e, assim, submetê-la à lente das Escrituras.

Outra constatação a que pudemos chegar se refere ao fato de que os debates

em torno da Chácara Primavera têm revelado uma nova dinâmica de resolução de

controvérsias e conflitos em razão da pluralidade e uma tendência ao pragmatismo

metodológico. Tem ocorrido uma redistribuição de forças nesse processo de

atomização, o que tende a diluir a intensidade das controvérsias, e a escamoteá-las.

Tal cenário indica a possibilidade de convivência pacífica entre as várias posturas

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distintas e a impregnar a cultura organizacional, que tem como uma de suas marcas

a presença de conflitos que se perpetuam indefinidamente.

Outro aspecto que se pode constatar é o fato de que há fortes indícios de que

o sistema presbiteriano de governo começa a dar sinais da necessidade de

avaliação. Um desses sinais é o fato de que não apenas os conselhos das igrejas

locais, mas os presbitérios têm ignorado as resoluções emanadas do Supremo

Concílio. Em consequência as lideranças dos pastores despontam e se reforçam à

medida que desfrutam de mais autonomia para a implementação de inovações, o

que também se pode perceber em projetos de plantação de igrejas em contextos

urbanos, mesmo aquelas iniciativas que preservam itens fundamentais da tradição.

À luz do que temos considerado pode-se concluir que as controvérsias em

torno da Chácara Primavera têm, de fato, revelado que o campo presbiteriano está

em mutação, não do tipo que se processa em áreas que seriam consideradas

periféricas, mas em ambientes próximos do centro de sua estrutura e cultura

eclesiástica. Assim, poderá ocorrer que a Igreja Presbiteriana do Brasil terá duas

opções nos próximos anos: escolher ela mesma e decidir por algumas mudanças

que a tornem mais adequada às demandas da sociedade, ou assistir às alterações

em seu próprio campo que as mudanças trarão.

Finalizando este texto, podemos concluir que as suspeitas iniciais que se

referem à Igreja Presbiteriana Chácara Primavera na relação com a instituição à

qual pertence obriga a pensar a respeito da extensão e simultaneidade de

fenômenos semelhantes em outras instituições do protestantismo brasileiro. Isso,

contudo, exigirá uma nova etapa para novas investigações a fim de que se possa

avaliar se as hipóteses aqui levantadas se aplicam a outros setores da complexa

teia do movimento evangélico brasileiro.

O presbiterianismo está em processo de mutação, talvez não exatamente na

velocidade e intensidade das alterações que têm se processado em outros

ambientes e instituições. Seja como for, trata-se de uma oportunidade de a Igreja

Presbiteriana do Brasil recuperar parte de sua tradição que já foi sinônimo de

modernidade.

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