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UNIVERSIDADE DO EXTREMO SUL CATARINENSE – UNESC
PÓS GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL E CULTURAL
IVAN DE SOUZA RIBEIRO
PRESENÇA E INVISIBILIDADE DA POPULAÇÃO NEGRA EM
CRICIÚMA E REGIÃO DO PERÍODO ANTERIOR E POSTERIOR Á
SUA “FUNDAÇÃO” (1880) E O CONTEXTO HISTÓRICO RELATIVO
NO BRASIL.
CRICIÚMA, NOVEMBRO DE 2005.
IVAN DE SOUZA RIBEIRO
PRESENÇA E INVISIBILIDADE DA POPULAÇÃO NEGRA EM
CRICIÚMA E REGIÃO DO PERÍODO ANTERIOR E POSTERIOR Á
SUA “FUNDAÇÃO” (1880) E O CONTEXTO HISTÓRICO RELATIVO
NO BRASIL.
Trabalho de Conclusão do Curso, apresentado para obtenção do grau de pós-graduado no Curso de Pós Graduação em História Social e Cultural da Universidade do Extremo Sul Catarinense, UNESC. Orientador: Antônio Luiz Miranda
CRICIÚMA, NOVEMBRO DE 2005.
IVAN DE SOUZA RIBEIRO
PRESENÇA E INVISIBILIDADE DA POPULAÇÃO NEGRA EM
CRICIÚMA E REGIÃO DO PERÍODO ANTERIOR E POSTERIOR Á
SUA “FUNDAÇÃO” (1880) E O CONTEXTO HISTÓRICO RELATIVO
NO BRASIL.
Trabalho de Conclusão do Curso, aprovado pela Banca Examinadora para obtenção do grau de pós-graduado no Curso de Pós Graduação em História Social e Cultural da Universidade do Extremo Sul Catarinense, UNESC, com linha de Pesquisa em populações negras e imigração.
Criciúma, 09 de dezembro de 2005.
À minha companheira Priscila Schacht Cardozo,
parceira de todas as horas, incentivadora para
realização deste trabalho.
À Leia, que forjou a ferro e fogo na minha
personalidade a capacidade de indignação
permanente face a qualquer tipo de injustiça e o
orgulho de minhas origens.
Aos parceiros e parcerias que cotidianamente
foram um permanente apoio a realização deste,
no caso a “Confraria da Ampulheta e do Copo”
(Juliano, Meri, Mariana, Cláudia, Anselmo) e à
Sonete.
À cena Anarcopunk que propiciou o valioso
contato com várias instâncias da comunidade
negra em São Paulo e no Brasil.
AGRADECIMENTOS
Ao agradecer pessoas e/ou Instituições que propiciaram o incentivo necessário ou pelo
contrário duvidaram e menosprezaram a produção deste trabalho, muitas seriam as
referências.
Por alguns sou citado como forasteiro, intrometido, enxerido que veio meter-se sem
ser chamado nas questões pertinentes à população negra em Criciúma e Região. Tanto nas
questões atuais referentes a políticas públicas a população negra quanto nesta modesta
pesquisa histórica sobre a presença negra em Criciúma e região, muitas pessoas foram
apoiadoras e algumas foram depreciadoras.
Ofereço e agradeço a estes dois lados. Umas pela paciência de ter tido comigo longos
papos nos quais pude aprofundar meu interesse e meu conhecimento sobre a cidade de
Criciúma, à outros pelos ataques, pelas constantes frases e ações pelas costas visando minar,
visando diminuir, visando desestimular meu ímpeto tanto na pesquisa que ora apresento
quanto às questões relativas á população negra em Criciúma.
Agradeço aos vários amigos e amigas da comunidade negra local, à comunidade da
UNESC que foi parceira em todas as horas tanto nas atividades quanto na aceitação das
propostas que este “louco de pedra” fez e faz à Instituição, e a todos e todas que no cotidiano
aprenderam se não a gostar a pelo menos respeitar este anarcopunk inveterado.
IDENTIDADE
Houve um tempo em que
constava de sua carteira
o dado cor
na minha: pardaescuracabeloscarapinhados.
Diante do espelho, me pergunto
que faço com estes lábios grossos,
este nariz achatado?
Que faço com esta memória
de tantos grilhões,
destas crenças me lambendo as entranhas?
Será que não é demais não ter o direito
de ser negro?
Causa espanto?
Pardaescura é o aspecto que vocês deram
à nossa história.
Morra de susto!
Sou, vou sempre ser: NEGRO !
ENE, É, GÊ, ERRE, O
Aqui ô!
José Carlos Limeira
RESUMO
Esta pesquisa busca a partir do contexto histórico brasileiro, a partir de 1850, em relação à episódios históricos relativos à questão da presença negra no Brasil, contextualizar historicamente a questão da “fundação” da cidade de Criciúma que, segundo dados oficiais, foi fundada por famílias italianas em 1880. Busca-se a partir da análise deste contexto histórico verificar qual o quadro político, social, econômico e ideológico do Brasil remetendo-o para o sul de Santa Catarina, para a partir daí entender Omo se deu o processo de invisibilidade da população negra presente na região sul de Santa Catarina, invisibilidade esta construída buscando fortalecer o projeto político e ideológico de branqueamento do Brasil. Na construção desta pesquisa os episódios analisados foram os seguintes: a Lei Bill Aberden, que proibiu por pressão da Inglaterra o tráfico internacional de escravos, na seqüência é analisada a Lei da Terra (lei 601 – 1850) que junto com a lei anterior buscou criar as condições adequadas para a ocupação territorial brasileira por imigrantes de origem européia, na seqüência é analisada a Guerra do Paraguai por dois fatores: um por ser o mecanismo utilizado para se atingir a inversão demográfica no Brasil, e também pelo fato de vários remanescentes desta Guerra, negros na condição de forros, vieram se estabelecer na região de Criciúma, no próximo tópico será trabalhada com as referências bibliográficas sobre a construção da invisibilidade da população negra em Santa Catarina, também com autores que em suas pesquisas diagnosticaram a presença negra em Criciúma e região antes de 1880 e como por interesse de se glorificar o imigrante de origem italiana, no caso de Criciúma e Região, esta presença negra foi simplesmente suprimida da historiografia oficial. E no último tópico é realizado um apanhado geral da pesquisa e realizada a análise de um livro sobre as etnias formadoras de Criciúma (A semente deu bons frutos – de Otila Arns) livro este adotado como o oficial da historiografia sobre a contribuição de cada etnia para a construção de Criciúma e que ao realizar a análise esta pesquisa se contrapôs de ponta a ponta ao capítulo referente a negros em Criciúma e buscou de forma efetiva o livro assim como a historiografia oficial, buscou construir um história favorecendo os imigrantes de origem italiana em detrimento a outros grupos no caso negros, o foco desta pesquisa.
Palavras-chave:
Negros, Imigração, Discriminação, Invisibilidade.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 09
2 ABOLIÇÃO DO TRÁFICO INTERNACIONAL DE ESCRAVOS E A LEI DA
TERRA ................................................................................................................................
13
3 IMIGRAÇÃO E BRANQUEAMENTO ........................................................................... 17
4 A GUERRA DO PARAGUAI, A INVERSÃO DEMOGRÁFICA BRASILEIRA E
O SUL CATARINENSE ....................................................................................................
24
5 NEGROS NO SUL DE SANTA CATARINA: PRESENÇA E INVISIBILIDADE ..... 27
6 NEGROS EM CRICIÚMA, A SEMENTE DE ORIGEM AFRICANA........................ 34
7 CONCLUSÃO .................................................................................................................... 46
8 BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................ 47
1 INTRODUÇÃO
A presente pesquisa que ora apresenta-se é fruto de várias indagações levantadas sobre
a questão da visibilidade e diversidade étnica em Criciúma e região, no período histórico
anterior e posteriormente a sua fundação em 1880.
Este trabalho busca modestamente contribuir com a discussão posta atualmente na
sociedade local sobre a constatada invisibilidade histórica da população negra na região, e
também fazer um convite para uma reflexão sobre a construção desta invisibilidade mediante
uma análise do contexto histórico na época da construção de Criciúma e região, construção
esta física e histórica.
Nossa pesquisa vem de encontro as grandes lacunas existentes na historiografia local
sobre a presença da população negra em Criciúma e região, sendo que na atualidade existem
leis na esfera municipal e federal que tornam obrigatório o ensino de educação afro nos
currículos das escolas da rede municipal e estadual.
Esta obrigatoriedade colocou os educadores das disciplinas de Historia, Geografia e
Artes na situação de incluírem nos seus planos de aula a educação afro, para a partir daí
darem conta de explicar a presença negra em Criciúma e região.
Ao debruçarmos sobre esta empreitada, de imediato percebemos que seria necessário
fazermos um enfrentamento com a historiografia oficial e tradicional que sempre esteve a
serviço da perpetuação e manutenção do status quo vigente que solidificou o discurso do
heroísmo do imigrante italiano em Criciúma e região.
A ausência de estudos mais profundos e material didático mais elaborado sobre o
histórico da presença negra em Criciúma e região que levem em conta sua efetiva
contribuição para o desenvolvimento local, juntamente com o discurso oficial sobre o
pioneirismo dos italianos, heróicos e desbravadores, discurso construído para justificar as
desigualdades econômicas e sociais existentes na atualidade, foram também alguns dos
elementos motivadores deste trabalho.
Outros fatores que influenciaram a escolha do tema foram. alguns fatos paradoxais e
pitorescos de Criciúma.
A cidade de Criciúma, localizada no sul do Estado de Santa Catarina, adotou para si, o
titulo de “Cidades das Etnias”, onde segundo o discurso oficial as mais distintas etnias,
conviveriam aqui na mais perfeita harmonia, onde as chances seriam iguais para todos,
independente da origem étnica, sendo que até uma festa designada de “Festa das Etnias”
ocorre na cidade, celebrando esta suposta “democracia racial”.
Porém, na prática, o que presenciamos na cidade é a reprodução em menor escala do
que ocorre em todo Brasil: uma sociedade excludente, invisibilizante, discriminatória e
racista, onde as populações de baixa renda são na sua maioria os negros, que são também
moradores das áreas mais periféricas e desassistidas da cidade, logo com menos acesso a
condições mínimas de saneamento básico, acesso a escolas de qualidade, acesso a emprego,
justiça, saúde, lazer e demais condições que caracterizam através do seu acesso o exercício
pleno da cidadania, numa dita sociedade democrática e inclusiva.
Logo o primeiro passo para analisarmos esta sociedade é debruçarmos em cima de sua
construção, construção esta histórica, física, ideológica e econômica.
Na condição de historiador alicerçarei meu trabalho principalmente nos aspectos
históricos da construção da cidade, abordarei outros, mas deixando as portas abertas para
complementos dentro deste trabalho.
A temporalidade deste trabalho foi escolhida buscando verificar as ocorrências no
Brasil a partir da segunda metade do século XIX, período na história brasileira em que vários
episódios tornam-se cruciais serem analisados e relacionados com o momento histórico da
região sul de Santa Catarina, mais especificamente a região de Criciúma e adjacências, por
tratarem direta ou indiretamente da temática da questão do negro a partir da segunda metade
do século XIX no Brasil.
Buscaremos entender sob quais condições deu-se a ocupação da região de Criciúma
face a provável presença da população negra em período anterior a chegada dos imigrantes de
origem italiana.
Consideramos o entendimento destas condições peça fundamental, pois partiremos de
outra ótica na análise histórica sobre a fundação de Criciúma. Nova ótica comparativamente
às análises feitas tradicionalmente que enfocam o contexto à partir da chegada e dos interesses
dos imigrantes italianos em 1880.
Análise esta que desconsidera os fatos e decorrências históricas relativas à população
negra, gerando com isso uma cadeia de invisibilidades em relação à população negra.
Quanto ao termo “negro” ou “populações negras”, utilizo-os de forma muito tranqüila,
pois o aparecimento e fortalecimento nas últimas décadas do século XX de entidades
representativas de lutas desta população negra na sociedade, designadas de “Movimentos
Negros” são a prova cabal da não pejoratividade do termo negro, mesmo porque faço de
forma provocativa uma resignifição do termo, uma vez que a sociedade muita vezes tende a
utilizá-lo como forma de desqualificação e eu o utilizo como referencia histórica e positiva
desta população, estas entidades representativas da população negra que conquistaram
grandes vitórias no campo dos direitos humanos, dos cidadãos e cidadãs negros na sociedade
brasileira, além de despertar a sociedade brasileira como um todo sobre a farsa da dita
“democracia racial” existente no Brasil.
Logo, sendo este pesquisador oriundo destas organizações utilizo estes termos em um
reconhecimento a efetiva contribuição dos Movimentos Negros para as conquistas sociais
para esta população e para a sociedade como um todo, lembrando que até hoje não vi o
conjunto destas organizações se intitularem de Movimento Afro-descendente, somente
Movimento Negro.
Reforçando este ponto de vista em defesa da plena utilização do termo negro, pode-se
citar as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para
o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana que traz o seguinte:
Em primeiro lugar, é importante esclarecer que ser negro no Brasil não se limita às características físicas. Trata-se, também, de uma escolha política. Por isso, o é quem assim se define. Em segundo lugar, cabe lembrar que preto é um dos quesitos utilizados pelo IBGE para classificar, ao lado dos outros – branco, pardo, indígena – a cor da população brasileira. Pesquisadores de diferentes áreas, inclusive da educação, para fins de seus estudos, agregam dados relativos a pretos e pardos sob a categoria negros, já que ambos reúnem, conforme alerta o Movimento Negro aqueles que reconhecem sua ascendência africana. É importante tomar conhecimento da complexidade que envolve o processo de construção da identidade negra em nosso país. Processo esse, marcado por uma sociedade que, para discriminar os negros, utiliza-se tanto da desvalorização da cultura de matriz africana como dos aspectos físicos herdados pelos descendentes de africanos. Neste processo complexo, é possível, no Brasil, que algumas pessoas de tez clara e traços físicos europeus, em virtude de o pai ou a mãe ser negro(a) se designarem de negros; que outros com traços físicos africanos, se digam brancos. É preciso lembrar que o termo negro começou a ser usado elo senhores para designar pejorativamente os escravizados e este sentido negativo da palavra se estende até hoje. Contudo, o Movimento Negro ressignificou este termo dando-lhe um sentido político e positivo. Lembremos os motes muito utilizados no final dos anos 70 e no decorrer dos anos 1980, 1990: Negro é lindo ! Negra, cor da raça brasileira! Negro que te quero negro! 100% Negro! Não deixe sua cor passar em branco! Este último utilizado na campanha do censo de 1990.1
Dentre estes episódios que serão analisados e contextualizados historicamente com os
dados históricos disponível sobre o mesmo período em Criciúma e região podemos citar: as
primeiras tentativas de se iniciar o processo de imigração de europeus para o Brasil a partir de
1824; a abolição do tráfico internacional de escravos em 1850; no mesmo ano e não por
coincidência a decretação por parte do governo imperial do Brasil da “Lei da Terra”; a Guerra
do Paraguai ocorrida entre 1865 e 1870.
1 MEC, Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília, DF: 2004. p.15-16.
Já as Leis do Sexagenário, do Ventre Livre e Abolição da Escravatura em si, serão
apenas citadas uma vez que estas requerem um estudo em separado visto sua importância.
Episódios como estes, nos ajudarão a tentar entender o processo de ocupação territorial
nesta região e o conseqüente preenchimento dos postos sociais e econômicos pelas diversas
etnias (italiana principalmente) no sul do Estado no período de implantação dos núcleos
coloniais estrangeiros na segunda metade do século XIX.
Remetendo ao titulo deste trabalho em que utilizamos a referência geográfica citando
Criciúma e Região e não somente Criciúma, optamos por isso pelo fato de que Criciúma
segundo a historia oficial embora fundada oficialmente em 1880, obteve sua emancipação e
status de cidade somente décadas depois em 1925, logo, antes disso, esteve integrada com o
distrito de Araranguá, e estando encravada entre dois distritos no caso Araranguá e Laguna,
estava localizada numa região com notória presença de população negra antes de 1880, como
perceberemos mais à frente neste trabalho.
2 ABOLIÇÃO DO TRÁFICO INTERNACIONAL DE ESCRAVOS E A LEI DA
TERRA
Neste capítulo serão analisadas as Leis Bill Aberden e Lei da Terra como fatores de
influência para a ocupação da região pesquisada.
Considera-se de fundamental importância para a proposta de pesquisa que está sendo
realizada, abordar a questão da Abolição do tráfico internacional de negros escravos, a
chamada Lei Bill Aberden, e a edição da Lei da Terra no Brasil. Ambas foram editadas em
1850 e em análise, foram cruciais como esboço que se desenhava quanto à ocupação
territorial no Brasil, para esta pesquisa, Criciúma e Região também sofreram o impacto direto
e indireto destes fatos.
A partir da segunda metade do século XIX o Brasil vivia vários dilemas a cerca de seu
futuro, segundo Salles e Soares:
Em um relatório de fazendeiros de Vassouras que definia o escravo como nosso inimigo inconcebível, o relatório afirmava também que havia na ocasião cerca de 2.500.000 de cativos, em sua maioria africanos, que viviam no império e que representavam 1/3 dos habitantes do país, esta concentração de africanos no coração do império do Brasil era preocupante2.
A cidade de Vassouras nesta época constituía-se no maior centro cafeicultor da então
província do Rio de Janeiro, logo este relatório citado acima traz as preocupações dos
fazendeiros da época com o alto índice populacional dos negros no Brasil.
Para o Governo Brasileiro no período, o problema era conciliar o tráfico de negros
escravizados, na ocasião o país era o único das Américas a manter o regime de escravidão, e a
integridade do território nacional. Até poucos anos antes, este tráfico era considerado
fundamental no Brasil, por garantir o abastecimento de mão-de-obra para agricultura. Para a
Grã-Bretanha neste período dos anos 40 do século XIX, essa não era uma questão
fundamental e seu governo insistia no cumprimento da proibição do tráfico.
A ameaça à soberania brasileira representada pelas pressões inglesas tornava-se mais
forte do que a possibilidade de falta de mão-de-obra.
2 SALLES, Ricardo; SOARES, Mariza de Carvalho. Episódios de história afro-brasileira. Rio de Janeiro: DP&A, Fase, 2005. p. 91.
Cedendo as pressões que enfrentava internamente, o Governo Brasileiro tinha se
recusado a assinar um tratado anterior que a Grã-bretanha havia proposto. Isso levou ao fim
das negociações e a promulgação da Lei Bill Aberden, pelo parlamento inglês.
Tratava-se de uma Lei que autorizava a captura de navios brasileiros onde quer que
fosse pela marinha britânica e o julgamento de sua tripulação por tribunais militares
britânicos.
Toda esta pressão contribuiu para que, em 1850, quase vinte anos após sua Abolição
formal em 1831, as autoridades imperiais brasileiras resolvessem acatar a proibição efetiva do
tráfico internacional de escravos, na ocasião, o mercado brasileiro estava abarrotado de
cativos.
O sistema escravagista brasileiro estava então com seus dias contados, pois com a
proibição do tráfico internacional, o regime de escravidão no Brasil estava condenado, assim,
a Abolição da Escravatura no Brasil era eminente.
O período entre a proibição do tráfico de escravos (1850) e a Abolição da Escravatura
(1888) é abordado por Xavier da seguinte forma:
Foi um período onde definitivamente acabou-se, limitou-se, eliminou-se a possibilidade do tráfico negreiro no Brasil, que efetivamente termina em 1850, ao primeiro tratado seriamente assinado em 1831, mas que não é levada a sério, como se diz ‘coisas pra inglês ver’, só ingleses acreditavam naquilo. Foi em 1850 que acaba o tráfico e que se chega à conclusão de que a escravidão era impossível de ser mantida e preservada e aí começam a se adotar determinados mecanismos para ir desmontando a máquina da escravidão, até 1888, isso de forma lenta, gradual e extremamente segura.3
Sendo a Abolição da Escravidão uma questão de tempo, várias preocupações
povoavam a mente das elites e dos gestores do Brasil, dentre estas preocupações podemos
destacar algumas que tem ligação direta com nosso assunto em questão sobre a presença
negra no sul do estado de Santa Catarina.
Uma delas era a questão do acesso à terras, pois até então não havia nenhuma
regulamentação sobre o processo de doação de terras da união para quem as solicitasse.
O governo imperial preocupado, dentre outras coisas, com o fim próximo da
escravidão e já prevendo receber pedidos de doação de terras por parte dos negros, forros
acostumados com a lida na terra edita a Lei 601 também chamada de “Lei da terra”.
Esta lei regulamentou a concessão de terras públicas, tornando proibido a concessão de
terras públicas a quem as solicitasse e ao mesmo tempo tornou mais fácil à expedição de
títulos de propriedades para estrangeiros a partir de parcerias com empresas estrangeiras de 3 XAVIER, Juarez Tadeu. Cultura iorubá. Texto acessado em 03.09.2005: http://www.humanizar.com.br/paginas/ioruba.htm p.08
colonização, buscava-se com isso diminuir as dificuldades para atrair imigrantes da Europa
para colonizar o território brasileiro.
Sobre a Lei da Terra, Xavier aborda da seguinte forma:
Com relação à Lei da Terra, a terra era bem primário de produção e na medida em que você tinha a possibilidade de o Estado ceder terra, você cria uma nova forma de aquisição da terra que é através da poupança individual ou familiar. Uma população que é escrava, portanto, privada da possibilidade de constituir poupança individual ou coletiva/familiar, fica alijada da possibilidade de aquisição do mais importante bem [...] e essa decisão, essa Lei da Terra, de 1850, no nosso ponto de vista, esculpiu essa possibilidade de não ingresso do negro dentro de uma estrutura de produção absolutamente importante e fundamental como é a posse da terra. 4
Embora Xavier aborde sobre a impossibilidade da população negra em constituir
poupança, vários autores como Chaloub e Spricigo nos traz detalhes de negros que
conseguiram juntar um pecúnio.
Ironicamente, porém é o fato que os recursos adquiridos por estes negros escravizados
eram utilizados na compra da liberdade dos mesmos.
Porém, enquanto a partir da Lei da Terra, as populações de origem européia recebiam
benefícios, concessões e facilidades no acesso à terra, as populações negras quando
conseguiam reunir algum pecúlio, o utilizava na compra de sua liberdade.
Outra análise e outras conseqüências da Lei da Terra nos trás Jesus:
Na história do uso da terra urbana brasileira, o papel da Lei das Terras – Lei nº 601 de 18 de setembro de 1850 – marca um rompimento de grande importância para a definição de como ela seria apropriada. A partir de sua promulgação, a simples posse da terra deixou de ser efetivada pela concessão por utilização – antigo regime de Sesmaria – E passou a ocorrer pela compra oficialmente registrada. Assim, a Lei de Terras de 1850 procurou reconhecer e regulamentar a monetarização da terra no país. Outro atributo concedido pela Lei foi a instituição da possibilidade de importação de mão-de-obra livre para substituição do trabalho cativo. Com a introdução do colono e sua condição de trabalhador assalariado e o livre acesso à propriedade da terra, tanto no campo como nas áreas urbanas, a Lei de Terra de 1850, como instrumento de intervenção do Estado, possibilitou a transformação definida da terra em mercadoria, a separação entre público e privado e, por conseqüência, a organização do espaço.5
Podemos perceber que neste processo de monetarização da terra no Brasil e de
organização do espaço, a população negra foi mais uma vez excluída.
Pois não dispondo de pecúlio, não teve condições de adquirir terras que para a
população negra era ferramenta de trabalho.
4 Ibiden, p.10. 5 JESUS, Edson Pena de. A Lei de Terras de 1850 e a organização espacial urbana. Texto acessado em 03.09.2005 - p.01.
Tendo sua mão-de-obra substituída pela mão-de-obra do imigrante europeu, foi mais
uma vez excluída, lembrando que estavam excluindo um terço da população brasileira na
época.
Quanto ao processo de organização do espaço tanto urbano quanto rural, a população
negra viu-se também a margem desta organização, uma vez que expulsos das fazendas,
também não eram bem recebidos nas cidades.
No Brasil, como um todo, foram adotadas regras de conduta, utilizando-se parâmetros
europeus de comportamentos.
Costumes, práticas culturais e religiosas de origem africana foram criminalizadas,
inclusive como veremos mais a frente foi adotado, na cidade de Criciúma, em 1924 e
reformado em 1928 o Código de Conduta do município que dentre outras coisas proibia
práticas religiosas que não fossem cristãs, aglomeração de pessoas em vias públicas e reunião
em locais públicos, leia-se nas entrelinhas rodas de samba e de capoeira.
Como pode-se perceber a Lei da Terra de 1850, criou as condições para que se
incentivasse a imigração européia para o Brasil, e em Criciúma e região, foi determinante para
que as empresas colonizadoras italiana pudessem utilizar o chamariz do acesso às terras da
região como atrativo para a vinda dos imigrantes italianos para a região.
3 IMIGRAÇÃO E BRANQUEAMENTO
Neste terceiro capítulo, será analisado o processo de imigração européia desencadeado
pelos fatores tratados no capítulo anterior, no caso a Lei da Terra e a Bill Aberden.
Estas leis criaram condições mais adequadas para mias uma tentativa que
anteriormente já havia falhado no Brasil, a vinda de mão-de-obra livre, as tentativas anteriores
falharam justamente pela ausência de ajustes nesta direção no Brasil.
Desde a época da independência em 1822, o incentivo a políticas de imigração já
constava na lista de interesses do Brasil.
Dentre os fatores que colocavam o tema nesta lista, destacam-se os seguintes: a
necessidade de ocupação territorial no Brasil, a importância de soldados para garantir a posse
efetiva do país e por último no estímulo á mão-de-obra assalariada, na análise da época
considerada superior á mão-de-obra escrava.
Esta última postura era resquício dos filósofos iluministas do final do século XVIII,
que no geral defendiam as liberdades individuais e defendiam o progresso, a ser alcançado
através da razão.
No Brasil, um dos entusiastas destas idéias foi José Bonifácio (1763-1838) que tinha
influência sobre Dom Pedro I. As primeiras experiências de imigrantes europeus no Brasil
careciam conforme afirmamos acima de alguns ajustes que posteriormente foram feitos.
Nestas primeiras tentativas, Seyferth nos traz da seguinte forma:
Às primeiras tentativas de colonização com imigrantes ocorreram antes da Independência, iniciou-se com os assentamentos de alemães no nordeste e de suíços no estado do Rio de Janeiro em 1818. Uma tentativa anterior de assentamentos de pequenos agricultores, buscando-se com isso uma solução para a ocupação territorial, especialmente no sul [sul do Brasil], contou com imigrantes provenientes da Ilhas Açores, que se estabeleceram em terras litorâneas do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. [....] Após a Independência a colonização com imigrantes foi retomada em 1824, voltando para o Sul do país [principalmente] por causa das disputas territoriais com a Argentina e o Uruguai [....] Ao longo do Império quase todas as discussões sobre colonização levantaram a questão da grande propriedade escravocrata como entrave para qualquer política consistente de imigração. A rigor, a primeira fase do sistema de colonização com imigrantes não produziu grandes resultados e foi interrompido, no Sul em 1830 e só retomada em 1846, após a revolução farroupilha. Entre 1818 e 1850 o Brasil recebeu um número relativamente pequeno de europeus (menos de 20000 indivíduos) e, entre eles cerca de seis mil alemães foram encaminhados para projetos de colonização nos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná.6
6 MAIO, Marcos Chor (org); SANTOS, Ricardo Ventura. Raça Ciência e Sociedade. Rio de Janeiro: FIOCRUZ/CCBB, 1996. In: SEYFERTH, Girarda. Construindo a nação: hierarquias raciais e o papel do racismo na política de imigração e colonização. p. 45-46.
A efetiva substituição da mão-de-obra dos negros escravizados por imigrantes
europeus e a defesa da Abolição da Escravatura nem sempre eram expressões de nobres
sentimentos, segundo Valente:
Entre aqueles que queriam pôr fim à Escravidão no Brasil, existiam os que, inspirados em teorias evolucionistas em voga na Europa, acreditavam que a presença negra impediria o progresso do país e, por isso, a abolição colocava a possibilidade de substituição do negro pelos imigrantes europeus. Os imigrantes de origem asiática não eram bem vindos por alguns políticos, já que, considerados inferiores, sobre eles também recaia o perigo da degeneração racial. Nas décadas de 60 e 70 do séc XIX, teóricos europeus, como o conde de Gobinneau e medico francês Louis Couty, e também o zoólogo americano Louis Agassis, estiveram no Brasil e elaboraram análises sobre a “realidade brasileira”. Nessas análises, determinaram a “inferioridade negra” e viram na mestiçagem a produção de elementos degenerados que só poderiam levar o Brasil a barbárie. 7 Neste debate de caráter pseudo-científico sobre qual o melhor perfil do imigrante para
substituir a mão-de-obra escrava no Brasil, os braços a serem assalariados escolhidos foram
os europeus, numa comunhão de forças nesta direção que juntou políticos, intelectuais e
produtores, que patrocinavam um projeto de civilização de caráter eurocêntrico, analisado
como o único capaz de viabilizar a construção de uma nação brasileira civilizada e moderna.
Neste período, na primeira metade do século XIX, segundo Elias:
A grande experiência nessa transição do trabalho escravo para o livre, ainda em meados do século XIX, pode ser atribuído a Nicolau de Campos Vergueiro (1778-1859). Grande proprietário de terras (e de escravos) em São Paulo, também foi regente, senador, ministro e o primeiro fazendeiro de café a utilizar imigrantes europeus em suas lavouras. Trouxe famílias alemãs, portuguesas e suíças na década de 1840, adotando o modelo de parceria, também conhecido como ‘sistema Vergueiro’: o colono assinava um contrato comprometendo-se a pagar os gastos com o seu transporte, ficava obrigado a trabalhar na lavoura de café cujos ganhos eram divididos entre ele e o fazendeiro; e o excedente de mantimentos (que o colono podia plantar para sua subsistência) também era dividido com o dono da terra 8
Logo, o processo de substituição da mão-de-obra de negros escravizados por
imigrantes europeus atendia a um projeto de futuro para o Brasil, no caso o branqueamento de
sua população e a medida do possível o início do processo de extinção da população negra no
Brasil.
Neste mecanismo acionado à partir de 1850, um dos instrumentos para se atingir este
objetivo foi a Guerra do Paraguai, que veremos mais a frente num capítulo específico sobre o
tema.
7 Ibiden, p.32. 8 REVISTA NOSSA HISTÓRIA. Os imigrantes – In: ELIAS, Rodrigo. Imigração: Brasil que veio de longe, texto Braços para fazer um país. Ano 02 (outubro/2005) nº 24, p.15
A questão da inversão demográfica no Brasil, como fator primordial para o futuro do
Brasil, um futuro mais europeu, logo mais “civilizado” e menos degenerado, Xavier nos traz
da seguinte forma:
Para nós é interessante entender como se criaram mecanismos que se materializaram na sociedade brasileira, para que a população negra não conseguisse realizar os seus projetos [...]. O problema da não renovação do estoque humano, o fim do tráfico traz uma conseqüência no Brasil. Quando se pega todos os dados demográficos, você lê que é desde 1850 que começa a acontecer no Brasil a transição demográfica. A população era majoritariamente negra e ela passa a ter uma outra composição étnica e cultural, porque nessa fase final, a vida útil do trabalhador escravo, do homem africano escravizado, da mulher africana escravizada, era de 5 a 7 anos. O homem que começava na labuta aos 7 anos de idade, aos 14 ou 15 anos estava imprestável para a atividade produtiva e o índice de moralidade era muito grande. A não renovação do estoque humano foi definindo a composição e a transição demográfica do Brasil nesse período. É quando a população negra passa a não ser mais a maioria absoluta da população.9
Toda esta política de imigração e branqueamento buscava-se alicerçar á partir de
discursos de autoridades de diversas áreas.
Estas manifestações do que ficou chamado de racismo cientifico eram expressas
publicamente, Valente nos traz o seguinte exemplo:
Em 1880, Pereira Barreto, medico fluminense, manifestou seu racismo científico da seguinte maneira: O que constitui, porém, o grosso da nossa população escrava e o contingente das outras populações caracterizadas todas anatomicamente pela sua menor massa de substancia cerebral; e essa condição anatômica de inferioridade e bem própria para abrandar os rancores abolicionistas contra a parte da sociedade que tem por si a vantagem efetiva da superioridade intelectual.10
Seguindo ainda a análise das manifestações do dito racismo cientifico muito vigente
na época, a defesa da imigração européia era defendida da seguinte forma conforme nos trás
Valente: “Sobre a necessidade da imigração ‘branca’, assim manifestou-se o deputado
paulista Bento de Paula Souza, em 1869: A exceção dos chins, da raça malaia e dos africanos,
entendo que todos os que vierem para o país contribuirão para a nova aurora de sua
felicidade”. (1994, p.33).
Logo por discursos como estes pode-se perceber o valor que as populações negras
tinham para os donos do poder.
Populações negras estas que foram seqüestradas no continente africano, e que foram
trazidos para o Brasil como escravos, e que entre 1550 e 1850, quando foi oficialmente
9 XAVIER, Juarez Tadeu. Cultura iorubá. Texto acessado em 03.09.2005 – http://www.humanizar.com.br/paginas/ioruba.htm p.14 10 VALENTE, Ana Lúcia E.F. Ser negro no Brasil hoje. São Paulo: Moderna, 11ed., 1994. p.33
extinto o tráfico somavam impressionante soma de cerca de 3,6 milhões de africanos
escravizados segundo cálculos do IBGE.11
Se contarmos o fato de que durante 300 anos nasceram milhões de negros em cativeiro
e na condição de escravos também sofreram todas as agruras desta condição, e que nestes
séculos foram a força motriz do Brasil no seu desenvolvimento, a injustiça das declarações a
cerca do valor do trabalho desenvolvido pelos negros escravizados torna-se mais cruel estas
afirmações.
Neste projeto político e dito cientifico, com a vinda dos imigrantes europeus para o
Brasil buscava-se uma solução para a presença das populações negra e mestiça no Brasil estas
tidas como fator de degeneração do Brasil e conseqüentemente do seu futuro.
Por trás deste processo e possível perceber a ideologia eugênica, que Mota demonstra
nos trás da seguinte forma:
A eugenia, tal como originalmente imaginada era a aplicação de “boas práticas de melhoramento”, ao aprimoramento da espécie humana. Em 1865 Francis Galton, médico, naturalista e filósofo, foi o primeiro a sugerir com destaque o valor da reprodução humana controlada, considerando-a produtora de aperfeiçoamento da espécie, empregando a palavra “eugenia” pela primeira vez em 1883. 12
Na prática estas ditas “boas práticas de melhoramento” significava o melhoramento do
padrão genético da humanidade à partir da eliminação dos indivíduos considerados inferiores,
no caso do processo migratório a população negra local.
Segundo Gobineau um dos mentores da ideologia eugênica:
[ ] creio poder concluir que a questão da escravidão do Brasil não tem solução a vista; que, se esta solução for adida por muito tempo, vira naturalmente pela extinção da classe servil; que a população brasileira propriamente dita, na realidade mestiça ou pelo menos tão aparentada aos negros como os brancos, quando considerada em seu conjunto, esta igualmente fadada a desaparecer, seja por extinção, seja pela absorção nas famílias portuguesas que vem aqui se estabelecer; e que se pode prever dentro de um tempo determinado a supremacia absoluta de uma nova espécie de nova nação, cuja base será formada pelos portugueses de Açores e do sul do reino, mais ou menos mesclados a alemães, franceses e italianos.13
Foi sob este espírito que anos depois se iniciou especificamente o contato para a vinda
dos imigrantes italianos que segundo a história oficial fundaram a cidade de Criciúma.
Como pode-se perceber utiliza-se neste trabalho um alinhavamento dos episódios
históricos que antecederam a fundação da cidade de Criciúma, este enfrentamento da
11 DIAS, Lucy. Com auto-estima e alto astral. Revista TV Escola. Brasília: Governo Federal, Abril - 2002. 12 MOTA, André. Quem é bom já nasce feito: sanitarismo e eugenia no Brasil. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. p.14 13 RAEDERS, Georges. O Conde de Gobineau no Brasil. São Paulo: Paz e Terra. Coleção Leitura. 1997 p. 55
invisibilidade que existe sobre as condições em que as populações negras se encontravam no
Brasil, faz-se necessário para que seja possível mais para frente analisar a região de Criciúma
em si, juntamente com seus personagens.
No Brasil nesta segunda metade do século XIX, este era o contexto histórico sobre as
políticas desenvolvidas em relação à terra, ao trabalho, à imigração e a população negra.
Recapitulando, com a Lei da Terra a concessão de terras devolutas do Estado a quem
as solicitasse fica proibido a terra uma vez monetarizada para ser adquirida à partir de sua
compra, as populações negras sem acesso ao pecúlio fica alijada do acesso a este bem
primário, ao mesmo tempo são criadas facilitações para aquisição destas mesmas terras, com a
intermediação de empresas de colonização, para imigrantes de origem européia, no caso os
ditos italianos para região sul do Brasil.
As regiões que logo em seguida formariam a Itália num processo de unificação que
durou de 1861 a 1870, foram o principal núcleo de envio de imigrantes para o Brasil no
período entre 1870 e 1920 foram enviados para o Brasil 1,4 milhões de pessoas, ou seja, 42%
de mais de 3 milhões de estrangeiros que vieram para o país nesta época. Segundo Elias:
[...] eles não eram propriamente ‘italianos’. A Itália até sua unificação (iniciada em 1861 e completada em 1870), era constituída por estados independentes, em culturas, climas, economias e até línguas diferentes, eles eram, na verdade, vênetos, calabreses, toscanos, sicilianos, piemonteses [...] embora tenham sido identificados ao longo de décadas como ‘o imigrante’ , viraram italianos no Brasil.14
Uma parcela destes imigrantes ditos italianos veio para a região sul do Brasil, várias
famílias acabaram “fundando” o núcleo colonial que posteriormente viria a se tornar
Criciúma. Na ocasião no período de 1880 as populações locais, no caso os tropeiros,
indígenas e negros fugidos, outros forros e outros brasileiros foram preteridos na época em
relação ao acesso à terra. Como pode-se verificar a questão territorial brasileira, era uma via
de duas mãos: ao mesmo tempo que a doação de terras devolutas da união ficava proibida,
criavam-se condições e facilitações para que esta mesma terra, agora negada a uns, fosse
facilitada a outros. Sendo que estes “uns” seriam os brasileiros pobres em geral, a população
negra, fosse escrava ou forra e os indígenas. E os outros as populações de origem européia, no
caso da região desta pesquisa, o sul do estado de Santa Catarina, os italianos.
As leis criadas nessa direção buscavam fixar os imigrantes à terra e criar facilitações
para que os mesmos tivessem a medida do possível atendidas todas as suas necessidades
básicas. Nem que com isso fosse necessário tomar medidas externas em relação aos que 14 REVISTA NOSSA HISTÓRIA. Os imigrantes – In: ELIAS, Rodrigo. Imigração: Brasil que veio de longe, texto Braços para fazer um país. Ano 02 (outubro/2005) nº 24, p.14.
ocupassem anteriormente. A principal Lei promulgada sobre a questão das colônias de
imigrantes no período e as demais condições locais, alguns autores nos trazem da seguinte
forma, Sônego, citando Piazza:
[...] existiam os fatores de atração apresentados pela propaganda do império brasileiro, considerado Il Paese Della Cuccagna (país do paraíso, a terra prometida, o eldorado). [...] Em 1874, o comendador Caetano Pinto Celebrou com o governo imperial um fabuloso contrato para trazer 100.000 imigrantes para o Brasil, baseado na Lei de 1867*, a qual dava garantias aos imigrantes e lhes assegurava vários benefícios como passagem grátis, terras a baixo preço e outras vantagens.15
Enquanto a citação de Piazza remete à Lei de 1867, decreto nº 3784 (19.01.1867) do
Império brasileiro, regulamentado para as colônias, o Pe. João Dall´Alba nos traz o que seria
o princípio de outra Lei, no caso, complementar a 3784, diz ele que:
[...] importante a Lei Imperial nº 3789, de 29 de janeiro de 1867, que torna a regular a criação das colônias. [...] exigia um médico e um engenheiro para medir terras. Cada colônia devia reservar uma área de lotes urbanos para serviços públicos. Os colonos deviam ser acolhidos e alimentados por dez dias. Logo recebiam um lote e um auxílio de vinte mil réis por pessoa, mais instrumentos, sementes. Alimentações até a primeira colheita. Estes auxílios, bem como a terra e a casa provisória, eram incluídos nas prestações anuais.16
Como pode-se notar a partir das leis acima citadas, criavam-se as condições
necessárias para a substituição no Brasil da mão-de-obra negra e escrava, para a mão-de-obra
branca européia e livre.
Estava criado então o cenário perfeito para esta transição combinando imigração e
branqueamento, desqualificação do trabalho escravo e apologia da mão-de-obra européia. A
historiografia local sobre o assunto, deu o reboco final da construção e justificativa
historiográfica para a transição, o Pe. João Dall´Alba se posiciona da seguinte forma:
Como vimos, da parte o governo brasileiro, era a previsão da Abolição da mão-de-obra escrava, que o levava a uma política de atração de imigrantes europeus. As teorias econômicas liberais não punham mais a riqueza de uma nação nas minas e fontes extrativas, mas sim no trabalho do homem.17
Neste trecho pode-se analisar a total desconsideração da condição de ser humano (ou
homem) como citado acima, bem como do trabalho do negro escravizado, que até então eram
os braços e pernas do trabalho no Brasil.
* A Lei de 1867, citada é o decreto nº 3.784 (19-01-1867) do Império Brasileiro – regulamentado para as Colônias do Estado. 15 ENIO, Sônego. Pioneiros... também! Florianópolis: Ed. do autor, 2002. p.02 In: PIAZZA, Walter (org). Italianos em Santa Catarina. São Paulo: Lunardelli, 2001, p.158. 16 DALL´ALBA, Pe. João Leonir. Pioneiros nas terras dos condes. Orleans: Gráfica do Lello, 2003. 2ed.p.22. 17 Ibiden, p.22.
O homem citado acima é o europeu, branco e com a missão de trazer a civilização e o
progresso para o país. Na seqüência Dall´Alba continua: “sendo o território brasileiro quase
despovoado e sendo o trabalho do homem civilizado o que mais riqueza produz, nossos
governantes voltaram-se para a velha Europa, para de lá atrair a riqueza do trabalho imigrante.
(p.22)”.
Como pode-se perceber neste capítulo, toda a política de ocupação de terras neste
período no Brasil foi desenvolvido apartando os brasileiros em geral:
Segundo Seyferth:
Neste debate sobre política de colonização, [..] as chamadas “raças inferiores” foram deixadas à margem de todos os projetos oficiais ou particulares envolvendo imigrantes : [agricultura moderna] era coisa para civilizados brancos. Ao direcionar os imigrantes para assentamentos em terás devolutas o sul do país, o governo imperial acabou promovendo o estabelecimento de colônias inicialmente homogêneas – principalmente alemãs e italianas – com presença mínima de brasileiros. A estes se fizeram restrições, quase sempre constantes de alvarás e recomendações por ofício a diretores de colônias e chefes de comissões de terras e colonização (e que não aparecem na legislação), que regulamentavam a concessão de terras, tais como: atestados de casamento (já que a concessão era “familiar”) – espécie de comprovante de [moralidade] – imponderáveis provas de “bom comportamento” e “escrúpulos”, eufemismos que permitiam a exclusão, sobretudo, da população chamada “cabocla”. Caboclos, negros, mestiços em geral [...] eram considerados apenas coadjuvantes do progresso a ser introduzido por uma agricultura nacional18
E finalizando Seyferth ainda nos trás as palavras de Menezes e Souza (1875) “os
pressupostos de inferioridade e a hierarquização baseada em elementos de natureza racial
(como determinante de “capacidade”) são mais do que óbvios quando está em jogo a idéia de
“progresso” orientadora das políticas de colonização19”.
18 MAIO, Marcos Chor (org); SANTOS, Ricardo Ventura. Raça Ciência e Sociedade. Rio de Janeiro: FIOCRUZ/CCBB, 1996. In: SEYFERTH, Girarda. Construindo a nação: hierarquias raciais e o papel do racismo na política de imigração e colonização. p. 48 19 Ibiden.
4 A GUERRA DO PARAGUAI, A INVERSÃO DEMOGRÁFICA BRASILEIRA E O
SUL CATARINENSE
Como pode-se verificar no capítulo anterior, vários mecanismos foram acionados após
1850, visando criar as condições necessárias para que o “trem” Brasil entrasse nos “trilhos”.
Branqueamento era a palavra chave na época, dando a tônica da sintonia das políticas
pseudo-científicas vigentes no Brasil e no mundo, a classificação “racial” baseada em
premissas “científicas” havia branqueado, como viu-se, as populações imigrantes, criando
uma classificação em que as populações de origens européias ganharam o topo desta
hierarquização, porém para vingar o intuito de trazes estes imigrantes para o Brasil, medidas
tinham que ser tomadas. A vinda destes imigrantes por si só, não resolveria a questão da
maciça presente de negros, mestiços, africanos, sejam livres ou forros no Brasil, presença esta
que como já citou-se anteriormente comprometia racialmente o futuro do Brasil, uma vez que
as razões políticas apontavam para o branqueamento como solução definitiva para se forjar a
ferro e fogo a construção de um Brasil “etnicamente viável”, tendo o elemento branco,
europeu e cristão como matriz do processo civilizatório no país.
Dentre as iniciativas que vieram complementar a política de branqueamento do Brasil,
neste capítulo destaca-se o conflito ocorrido entre 1865-1870, a chamada Guerra do Paraguai.
Não serão abordados os aspectos gerais do conflito, uma vez que não é o foco desta pesquisa.
Mais sim, a questão da presença negra durante este conflito. Neste conflito, que é considerado
o maior conflito militar ocorrido na América do Sul, envolvendo a chamada Tríplice Aliança,
a Argentina e o Uruguai, contra o Paraguai do ditador Solano Lopez.
Ultimamente a historiografia brasileira tem-se debruçado de forma mais detalhada
sobre este conflito. Há muitas controvérsias sobre este conflito, porém a presença da
população negra neste conflito e sua conseqüente utilização como bucha de canhão pelo
governo brasileiro é uma certeza de vários pesquisadores trazem com riquezas de dados.
Estas conseqüências foram terríveis para os negros. Os mais fortes, em uma seleção
que os tirou do eito para a guerra, morreram lutando. Os negros mortos somaram entre 60 a
100 mil, há estimativas que informam que até 140 mil. Isso nunca apareceu nas estáticas
oficiais. Algumas estimativas de militares brasileiros, Caxias inclusive a margem da
historiografia oficial, dos observadores estrangeiros, dos próprios aliados argentinos, chega-se
com relativa segurança em torno de 90 mil negros na guerra do Paraguai.20
Nas palavras de Perdigão Malheiro aborda o tema desta guerra trazendo a seguinte
analise sobre a guerra do Paraguai
Antes da guerra, os negros eram 31,2% da população; depois, essa proporção cai pela metade. Cai não só proporcionalmente como em números absolutos, de 2,5 milhões para 1,5 milhões, representando uma queda de 40 % no global da população negra, “desapareceu” 1 milhão de negros. Naturalmente, eles não foram todos mortos na Guerra do Paraguai, o numero das alforrias aumentou, os mulatos especialmente conseguiram emancipar-se aproveitando o espaço da ascensão social permitido pelo branqueamento.O próprio trafico, que cessou em 1853, fez diminuir o numero de escravos, mas não houve nesse curto espaço a absorção de 1 milhão de negros escravos:o aumento da mortalidade contribuiu para o desequilibro entre o numero de negros, mulatos e brancos. [...] Número engrossado, naturalmente, pelos negros alforriados em uma manobra legal para poderem lutar no Exercito e poderem lutar no Paraguai. O número de negros, somo visto, diminuiu 40%. [...] Além do mais, embora não existam estatísticas demográficas confiáveis sobre o numero de mulatos escravos em 1850, a tendência foi a sua porcentagem baixar ate praticamente zero nos últimos anos de escravidão.Um fator não desdenhável, também, e que a proporção de homens livres cresceu seguindo mais ou menos o aumento da população branca. E, como dado final, sabe-se que após a guerra do Paraguai apenas 20 mil negros com alforria garantida. [...] E fácil concluir-se que, na fase em que o mais alto era o preço do escravo, milhão de negros foram mortos sintomaticamente na Guerra do Paraguai. Conscientemente ou não, houve um processo de arianização da população brasileira, que estimulou a ideologia do branqueamento - esta, já consciente do rumo a tomar.Como consciente foi o uso do negro como bucha de canhão, assumindo toda a responsabilidade da guerra. Consciente foi a habito abusivo do homem rico mandar seus escravos ou comprar negros para substituí-lo ou a seus filhos na guerra. O resultado pratico foi a contribuição enorme que a Guerra do Paraguai teve para a diminuição do povo negro brasileiro, uma chacina (de mortos na frente paraguaia e no Brasil) da qual ate hoje os negros não se recuperaram demograficamente, mesmo porque , em seguida a matança de 1864/1870 , começou-se a aplicar-se a ideologia do branqueamento, naturalmente.21
Nesta pesquisa que realizada sobre o contexto histórico que antecedeu a fundação da
colônia de Criciúma fiz questão de trazer as palavras acima de Perdigão Malheiro. Neste
texto, o autor traz informações importantes para o nosso trabalho: Malheiro reafirma o
processo de branqueamento do Brasil a partir de premissas eugênicas e branqueadoras, a
partir do incentivo a imigração européia em substituição a mão-de-obra da população negra
escravizada, e também nos traz a análise sobre o nefasto quadro da Guerra do Paraguai como
um tipo de “solução final” aplicado às populações negras no Brasil.
Ironicamente estes negros que participaram durante a Guerra do Paraguai foram
designados de voluntários da pátria.
Segundo Sousa:
20 SALLES, Ricardo; SOARES, Mariza de Carvalho. Episódios de história afro-brasileira. Rio de Janeiro: DP&A, Fase, 2005. p. 10 21 Ibiden, p.15.
A expressão, voluntários da pátria, elemento comum dessas narrativas, funciona como categoria explicativa da vitória sobre o Paraguai, da unificação do Exercito e, por extensão, do advento da Republica. Os voluntários da pátria constituem um mito para a historia militar e republicana, em que todas as diferenças sociais e étnicas são amalgamadas, com encanto, para forjar a construção do ethos nacional tão necessário a origem do Estado Republicano.22
Destes “voluntários”, muitos conseguiram sobreviver à Guerra do Paraguai, e ao
término da mesma, não retornando a região de onde provinham. Fez-se questão de trazer nesta
pesquisa a temática da Guerra do Paraguai, pelo fato de que o conflito encaixa-se no período
histórico que está sendo abordado, no caso a segunda metade do século XIX, também pelo
dato de que esta Guerra possibilitou a efetiva inversão demográfica como pode-se verificar
nos parágrafos anteriores.
Outro motivo de peso foi o fato de alguns remanescentes da Guerra do Paraguai, terem
após o encerramento do conflito, se instalado na localidade denominada Urussanga Velha,
pertencente na época do final do conflito a Freguesia de Araranguá, isto em 1870. a localidade
de Criciúma viria a ser fundada em 1880, portanto dez anos depois da chegada de negros na
região citada acima. Logo, a Guerra do Paraguai também pode ser considerada como um fator
importante para entender a presença negra na região sul catarinense. Porém, esta questão da
presença e invisibilidade negra em Criciúma e região, estaremos abordando no próximo
capítulo.
22 SOUZA, Jorge Prata de. Escravidão ou morte: os escravos brasileiros na Guerra do Paraguai. Rio de Janeiro: Adesa, 1996, 2ed. p.14.
5 NEGROS NO SUL DE SANTA CATARINA: PRESENÇA E INVISIBILIDADE
O desmonte da estrutura escravista vigente no Brasil por séculos, muitos foram às
preocupações com as conseqüências deste desmonte, uma das principais foi garantir a
completa exclusão da população negra dos planos dos arquitetos do Brasil do “futuro”.
Neste Brasil do futuro pintado como europeu e “civilizado” inserido no contexto do
trabalho assalariado não tinha lugar para aquela população que segundo o discurso da época,
era um fator de “atraso”, “vergonha” e empecilho para o deslanchar do Brasil.
A região posteriormente designada de Criciúma serviu no passado, assim como serve
hoje, como “perfeito” laboratório de relações raciais.
Se hoje como afirmou-se na Introdução deste trabalho, a cidade assumiu o “status” de
Cidade das Etnias, berço e morada da dita “democracia racial”, no passado também podemos
aqui identificar uma região em que as políticas imigracionistas, branqueadoras, invisibilizante
e excludentes foram amplamente aplicadas.
Neste capítulo serão analisados alguns dados sobre a presença da população negra no
sul do Estado e em Criciúma e região no período anterior a 1880.
Esta análise será feita a partir de referências bibliográficas de vários autores que
abortaram a temática.
No capítulo anterior em que abordou-se a questão da Guerra do Paraguai, no final do
mesmo justifica-se o fato da ocorrência do conflito (1865-1870) encaixar-se no período
histórico desta pesquisa, e pelo fato de que alguns remanescentes desta Guerra, na condição
de forros, optaram por permanecerem na região após o fim do mesmo, tornou-se
indispensável trazer os dados referentes a vinda destes imigrantes para a região do estado de
Santa Catarina.
Diversos autores citam que a Guerra do Paraguai foi um episódio que acarretou a
vinda de negros para a região sul do Estado de Santa Catarina. Um destes autores, Maria de
Fátima Fraga Silva que numa monografia sobre a presença da população negra na localidade
de Urussanga Velha, atualmente distrito da localidade de Içara e distante aproximadamente 30
quilômetros do centro da cidade de Criciúma, trás a seguinte informação:
Por volta de 1870 aparecem João Soares, Loterio Felício e Crispim Santiago, negros aparentemente alforriados. – Meu avô veio da Bahia, no tempo da Guerra do Paraguai afirma seu Genésio, nascido em Urussanga Velha em 1928. Naquele tempo tomavam posse das terras e Crispim Santiago tomou posse de uma terrinha e uma mulher de nome Maria Bernadete coma [sic] qual viveu toda a vida. Crispim Santiago
teve um filho chamado João Crispim. Ao ser batizado, o padre afirmou que um vivente não podia ficar sem o sobrenome e acrescentou “dos Santos”. Assim os descendentes do escravo baiano alforriado, combatente da Guerra do Paraguai, que decidiu não voltar para Bahia nasceram e criaram-se na Urussanga Velha com o sobrenome “dos Santos”.23
A informação trazida por Silva, consideramos de extrema importância, uma vez que ela
dá conta que dez anos antes da propalada fundação de Criciúma já se registrava a presença de
população negra pela região do Estado de Santa Catarina.
Num exercício de imaginação, à partir do contexto do processo de branqueamento e
imigrantismo vigente no Brasil na época, e sendo o processo de colonização da região sul do
estado fruto direto desta empreitada, pode-se analisar as dificuldades encontradas por estes
remanescentes da Guerra do Paraguai na região.
Alguns autores, vide Arns, remetem a presença da população negra em Criciúma apenas
à partir de 1905, o primeiro grupo e o segundo em 1912, porém num entendimento que o
“status” de Criciúma à condição de cidade ocorreu somente em 1925, sendo Criciúma
anteriormente pertencente à Freguesia do Araranguá, que não por acaso, pertencia também a
localidade de Urussanga Velha, logo entende-se que numa constituição de fortalecimento do
discurso do imigrantismo heróico de desbravador, Criciúma foi fundada em 1880, por braços
imigrantes...
Outro autor que cita a Guerra do Paraguai como uma dos fatores de colonização e
presença negro no sul de Santa Catarina é Oliveira que numa pesquisa sobre negros nas áreas
carboníferas do sul de Santa Catarina, citando a cidade de Içara, ao qual pertence Urussanga
Velha, diz que:
A cidade [Içara] também tem uma considerável parcela de sua população composta por descendentes de africanos [...] os motivos que os fizeram permanecer no local foram, principalmente, as possibilidades de trabalho nas minas de carvão e, economicamente, a possibilidade de acesso à terra. [..] Içara tem três áreas habitadas por uma população em sua maioria composta por pessoas negras: Urussanga Velha – na área rural: Mineração no bairro Aurora, na periferia da cidade; e Itapetec [...] no centro da cidade”24
A citação que é trazida acima reforça a questão da presença de remanescentes da Guerra
do Paraguai, na zona rural da hoje cidade de Içara, na localidade de Urussanga Velha, já a
questão da presença negra vinculada às minas de carvão da região, avaliamos que diz respeito
aos primeiros anos do século XX, quando a exploração do carvão e a construção da estrada de 23 SILVA, Maria de Fátima Fraga. Cento e vinte e três anos da raça negra no município de Içara. Criciúma - SC: 1993. Monografia ( Especialização em História) – Curso de Pós-Graduação “latuo Sensu” Especialização em História,UNESC, p.01 24 OLIVEIRA, Geraldo Barbosa de O. Júnior. Negros nas áreas carboníferas do sul de Santa Catarina: marginalidade social e segregação. P.272. In: BOAVENTURA, Ilka (org). Negros no sul do Brasil: invisibilidade e territoriedade. Florianópolis: Letras Contemporânea, 1996.
ferro Dona Tereza Cristina provocou um grande fluxo de população negra em busca de
emprego na região.
Porém, até agora neste capítulo, tem-se citado apenas a presença de população negra
na região, na condição de forros, livres pelo advento de terem sido combatentes da Guerra do
Paraguai, os ditos “voluntários da pátria”.
A presença de negros na condição de escravos no período anterior à 1880 foi citada
por vários autores, os imigrantes italianos como pode-se verificar no capítulo anterior eram
proibidos de possuírem negros escravizados, porém a existência dos mesmos em propriedades
na freguesia do Araranguá pertencentes a descendentes de açorianos e lusos é retratada por
Spricigo dizendo que:
Em 1866 os dados apresentados acerca da população da Freguesia do Araranguá, nos dão uma visão mais detalhada de seus habitantes. A população constituía-se de 3.376 homens livres e 907 escravos, distribuídos em 614 casas. Podemos inferir através destes dados que havia em média um escravo para cada quatro habitantes livres, e é claro que entre a população livre poderia haver ainda uma quantidade de negros libertos [...] se pensarmos a escravidão no sul de Santa Catarina nos moldes de outras regiões brasileiras [...] certamente nos será frustrante. Falar da existência de escravos, torturas, disputas entre escravos e senhores, são informações que geram desconfiança em boa parte da população. Desconfiança fruto de uma historiografia local que gerou a invisibilidade na Freguesia do Araranguá.25
Estas características diferenciadas da escravidão no sul do estado e também em toda
Santa Catarina fortaleceu o discurso dito comum no Brasil de que o Estado seria um pedaço
da Europa no sul do Brasil.
Esta especificidade é relatada por Pedro da seguinte forma:
Santa Catarina, particularmente, nunca fez parte dos centros mais dinâmicos do país voltados até as primeiras décadas deste século (século XX), para o abastecimento do mercado externo com produtos tropicais. Tampouco converteu-se numa região complementar importante para o suprimento do mercado, foi o caso do Rio Grande do Sul. Assim, a reduzida acumulação de capital nunca permitiu a aquisição de um contingente de escravos negros comparável àquelas regiões. Mas ainda, a contínua entrada de imigrantes europeus fez com que o trabalho livre superasse o trabalho escravo, e também possibilitou uma autêntica “regeneração racial” ao combinar a imigração branca com exportação de negros para as regiões produtores de café. Esta situação, aliada a padrões tradicionalistas de cultura, foi muito provavelmente um campo fértil para a disseminação de idéias e práticas discriminatórias em relação aos negros. 26
A hipótese levantada na citação acima por Pedro, sobre a exportação de negros da
região sul para regiões produtoras de café, não é apoiada por Leite que citando Azevedo nos
traz que: “[..] durante esse período havia em São Paulo uma série de medidas do legislativo
25 SPRICIGO, Antônio César. Sujeitos esquecidos, sujeitos lembrados: entre fatos e números a escravidão registrada na Freguesia do Araranguá no século XIX.. Florianópolis, 2003. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, UFSC, 2003. p.28. 26 PEDRO, Joana Maria. Et Al. Negro em terra de Branco: escravidão e preconceito em Santa Catarina no século XIX. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988. p.9-10.
para barrar a entrada de mais escravos e, por outro lado, havia o interesse em favorecer, ao
máximo a imigração européia27”
Estas ditas características diferenciadas em relação à presença negra e escravizada no
Estado e na região de Criciúma, não deve ser analisada como indício de que em Criciúma e
região, a escravidão teria sido benigna, menos aviltante ou degradante.
A degradação das condições do trabalho escravo não se mede pelo número de escravos
submetido à condição de mercadoria sem liberdade de ação, mas sim pela existência efetiva
de indivíduos negros nesta condição de escravo.
Esta condição de mercadoria dos negros escravizados de Criciúma Spricigo nos trás da
seguinte forma:
Defendendo das circunstâncias um escravo poderia tornar-se um capital extremamente depreciativo, podendo gerar prejuízos a seus donos. Isso poderia ocorrer quando da partilha de bens os herdeiros menores recebessem como parte da herança [bens semoventes]: animais cavalares, vacuns e escravos. Nos inventários post-mortem os escravos eram classificados para efeito de partilha como animais semoventes. Apesar de possuírem um alto valor no mercado, os escravos eram classificados como animais.28
Como estamos trabalhando sobre a presença negra em Criciúma e região, um dado
interessante é trazido por Spricigo sobre a escravidão na região antes da chegada
colonizadores, a informação dá conta que mesmo antes da chegada dos remanescentes da
Guerra do Paraguai à região denominada de Urussanga Velha, como citamos anteriormente, já
havia a presença negra na localidade.
Spricigo nos informa que:
O inventário da finada Joaquina Rosa de Jesus moradora da localidade de Urussanga Velha/Araranguá, em 1860, deixa aos seus herdeiros: propriedades, casas, engenhos e nove escravos. Seu marido João Fernandez pede ao juiz dos órfãos para que seja feita a venda dos escravos Mateus (25anos), Thomazia (20 anos) e Luzia (10 anos), para que sejam dadas as partes aos filhos menores já que os escravos são bens perecíveis, dando assim grande prejuízo aos herdeiros menores29.
Logo, como podemos perceber a presença negra em Criciúma e Região antes da
chegada dos primeiros imigrantes italianos e ditos “fundadores” é uma realidade
incontestável.
27 BOAVENTURA, Ilka. Descendentes de africano: invisibilidade e segregação. p.50. BOAVENTURA, Ilka (org). Negros no sul do Brasil: invisibilidade e territoriedade. Florianópolis: Letras Contemporânea, 1996. 28 SPRICIGO, Antônio César. Sujeitos esquecidos, sujeitos lembrados: entre fatos e números a escravidão registrada na Freguesia do Araranguá no século XIX.. Florianópolis, 2003. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, UFSC, 2003. p.29. 29 Ibiden, p.50.
Porém, cabe aqui lembrarmos o contexto histórico, social e econômico, vigente no
Brasil da época, onde a presença destas populações negras, indígenas e caboclas eram
desconsideradas e mesmo a condição de humanidade destes não era levada em conta por
alguns dos historiadores “oficiais” da região de Criciúma, conforme vimos no capítulo
anterior, historiadores estes que sempre tiveram o compromisso de forjar o mito do heroísmo
imigrantista dos italianos em detrimento a toda uma população presente na região de Criciúma
antes de 1880.
A constatação da presença negra em Criciúma e região antes de 1880 também foi
percebida por Mazzuchetti e Pavei que assim como outros autores atestam a supressão
documental e histórica desta presença.
Porém a partir da oralidade nos é trazido a seguinte informação a cerca do assunto da
presença negra em Criciúma antes de sua fundação.
A localidade denominada Morro Estevão, segundo entrevistas teria como origem:
“Um fugitivo da escravidão, vindo da região de Jaguaruna, acabou por se refugiar no Morro
Estevão então despovoado, onde acabou se escondendo. Viveu como eremita por muitos anos,
da caça, coleta e plantios rudimentares30”.
Como podemos perceber a fuga como resistência à escravidão era freqüente, tanto em
regiões com grande presença de negros escravizados, quanto em regiões com pequena
presença negra.
Segundo os autores acima citados:
Seu nome era Estevão, e os colonos identificaram o lugar onde ele estava como sendo Morro Estevão, mas tarde incorporado a todo povoamento. A história repassada pelos mais velhos, de bola em bola, permanece até hoje. A associação do Morro com o nome do negro é anterior à própria ocupação do povoado31
Na condição de negro fugitivo, e ocupando uma área que posteriormente foi destinada
aos imigrantes de origem italiana favorecidos pelas empresas de colonização e pela política de
assentamento nas terras da união de populações de origem européia, o negro Estevão fazia
parte daquela parcela da população local, presente na região antes do início do processo de
ocupação territorial que foi completamente desconsiderada quando a implementação da
política imigracionista na região.
30 MAZZUCHETTI, Fernando, PAVEI, Dalana. Outros sujeitos na colonização de Criciúma. In: Revista de História – Tempos Acadêmicos. Criciúma-SC: nº 01, 1ed, 2003. p. 63. Entrevista concedida a Fernando Mazzuchetti em 17/11/1999. 31 Ibiden, p.63.
Em entrevista32 realizada por Mazzuchetti, Gabriel Zanette, nascido em 18/06/1911,
associa o nome da localidade ao negro fugido da escravidão:
E tu sabe porque é São Estevão e Morro Estevão? Foi por causa de um negrão fugido da escravidão que ficou no Morro ali em cima, era só uma picada que passava antigamente, e o nome do negrão era Estevão. Era fugido da escravidão e se escondeu ali, não tinha ninguém ali, só ele, então tudo dizia Morro Estevão, que em que ele vivia e morava o negrão sozinho, ele veio fugido, muito antes de eu nascer.(Ibden, p.63)
Na seqüência do texto de ambos, mais uma entrevista, agora do irmão gêmeo de Gabriel
Zanette, no caso João Zanette, trás mais dados sobre a questão:
O nome de Morro Estevão, dizem que lá no morro tinha um rancho com um negro chamado Estevão e, quando os primeiros chegavam, começaram a dizer que o Morro do Estevão, e ficou, o povo contava isso na época. Eu acredito que possa ter sido um negro fugitivo, porque trabalhou conosco um negrinho chamado de Luiz Tesoura, que trabalhava com um e outro até 98 anos, morava na terceira linha São Rafael, ele dizia que também tinha fugido da escravidão em Jaguaruna e se escondido por aqui, depois levou a liberdade e acabou ficando33
A presença destes personagens negros, citados neste capítulo, não foram levados em
conta pela historiografia oficial sobre a fundação de Criciúma.
Os negros fugidos, alforriados ou livres foram invisibilizados pela construção
“histórica” a serviço da política de imigração européia, do branqueamento e da eugenia.
Esta invisibilidade “matou” à presença negra na Criciúma e região da época. Os João
Soares, Loterio Felício, Crispim Santiago não tiveram sua presença na região levadas em
conta. Os Matheus, as Thomazias e as Luzias também não tiveram a chance na época de
serem visibilizadas pela história. Muitos menos os Estevãos e Luiz Tesouras tiveram suas
presenças devidamente registradas.
Porém assim como na resistência quilombola as condições impostas pelo escravismo,
a população negra, criou e recriou e cria e recria cotidianamente estratégias de resistência ao
processo cotidiano de invisibilidade.
Segundo Leite:
Diferentes estratégias utilizadas pelos negros ao longo deste século para lidarem com a invisibilidade, o racismo e as mais diferentes formas de segregação, não podem ser desconsideradas. O território negro aparece, então como elemento de visibilidade a ser resgatado. Através dele, os negros, isolados pelo
32 Ibiden, p.63. 33 Ibiden, p.64.
preconceito racial, procuraram reconstruir uma tradição centrada no parentesco, na religião, na terra e nos valores culturais ao longo da sua descendência.34
E é exatamente na cultura que é por si só uma cultura de luta e resistência que a
população negra ontem e hoje, cotidianamente constrói os alicerces da sua presença na região
de Criciúma e região e no Brasil como um todo.
34 BOAVENTURA, Ilka. Descendentes de africano: invisibilidade e segregação. p.50. BOAVENTURA, Ilka (org). Negros no sul do Brasil: invisibilidade e territoriedade. Florianópolis: Letras Contemporânea, 1996.
6 NEGROS EM CRICIÚMA, A SEMENTE DE ORIGEM AFRICANA.
Esta pesquisa foi elaborada á partir de fontes não primárias, ou seja, foi construída por
meio de uma pesquisa bibliográfica sobre a presença da população negra no sul de Santa
Catarina, mais especificamente em Criciúma e região, mas para analisarmos esta presença
buscamos contextualizar vários episódios da história do Brasil à partir de 1850, para
conseguirmos fazer as reflexões necessárias para o real entendimento da presença desta
população na região de Criciúma no período anterior e posterior a 1880.
Como já citamos anteriormente nesta pesquisa, analisarmos em separado a chegada dos
ditos “fundadores” da cidade de Criciúma, no caso os italianos, sem contextualizar os por
quês, os como, os por onde, os apoios, os respaldos, e outras coisas, significaria de forma
efetiva colaborar com a construção de uma história oficial, construída à partir de interesses de
certos grupos de ontem e hoje interessados em fortalecer e a perpetuar a idéia de que Santa
Catarina seria um “Estado Europeu e Branco”, encravado no sul do Brasil.
Por ocasião das comemorações dos 100 anos da dita “fundação” de Criciúma, embora
o status de cidade tenha vindo somente em 1925, foi lançado em 1980 o livro “Criciúma
1880-1890 - A semente deu bons frutos”. O livro de autoria de Otília Arns narra a história dos
grupos étnicos que iniciaram a formação de Criciúma.
Desde os agradecimentos e saudações às comemorações ao centenário da “fundação” de
Criciúma, o livro já mostra a que veio e a serviço de que estava.
Cito a questão de nos agradecimentos o livro já mostra sua intenção pelos seguintes
fatos: por ocasião das comemorações do centenário de Criciúma (1980), o Brasil vivia o
último governo da ditadura militar, que vigorava nos país desde 1964, o então presidente do
Brasil, o ditador João Batista de Figueiredo enviou uma mensagem ao povo de Criciúma,
parabenizando-a pelo centenário, nesta mensagem o ditador cita que: “.... Com seu progresso
vertiginoso, Criciúma é como um símbolo do nosso querido Brasil. Italianos, alemães e
poloneses, identificados com o núcleo original da cidade que nascia, trouxeram-lhe a valiosa
contribuição de sua criatividade e amor ao trabalho35.”
Podemos perceber nestas palavras o cunho eurocêntrico e invisibilizante, que deu a
tônica do livro, à partir desta mensagem do presidente da época.
35 ARNS, Otila. Criciúma 1880-1980: A semente deu bons frutos. Florianópolis: Estado de Santa Catarina, 1985. p.13.
Na seqüência da mensagem o mesmo continua sua homenagem à Criciúma: “A fusão
destes bravos colonizadores com a população local deu origem ao caldeamento de raças de
que surgiu o tipo brasileiro característico da região36”
Por este discurso podemos analisar a importância atribuída aos imigrantes aos quais se
aplicou o adjetivo de “bravos colonizadores” e coloca-se a população presente anteriormente
a chegada destes na região, à reboque dos imigrantes italianos.
O discurso do presidente Figueiredo, 100 anos após a chegada dos primeiros
imigrantes italianos, estava perfeitamente afinado com o discurso dos governantes do Brasil
na ocasião da implementação da política imigracionista no final do século XIX que
proporcionou a vinda dos imigrantes europeus, e que supervalorizava os brancos europeus em
detrimento aos brasileiros, no caso negros, caboclos, indígenas e lusos em geral.
Além desta consonância dos governantes, conforme expresso na mensagem enviada e
que consta no livro de Arns, consta também no mesmo uma mensagem enviada por Carol
Voitila, o Papa João Paulo II, também parabenizando o centenário de Criciúma.
Nesta mensagem, enviada a pedido dos padres rogacionistas o supremo pontífece
concede uma benção apostólica especial a todos criciumenses... porém em particular às
famílias italianas, que segundo a mensagem foram os pioneiros da cidade, e cita os 22
sobrenomes que mereciam segundo ele, a benção particular.
Logo passado na ocasião, um século da chegada dos italianos, seus descendentes ainda
se valiam do dito “pioneirismo” dos primeiros italianos para receber, segundo os católicos, do
representante máximo de Deus na terra... Uma benção especial.
Além destas declarações, consta ainda do Bispo local e do Governador Bornhausen,
todas com a mesma tônica sobre heroísmo, desbravadores, pioneiros, etc. Esta é a tônica do
livro, e esta tônica que vamos analisar neste último capítulo.
Os diversos grupos citados, no caso italianos, alemães, poloneses, lusos e negros são
destacados a partir dos fatos significativos de cada etnia.
Segundo Spricigo ao analisar o livro:
Arns ao escrever a história de Criciúma evidenciando a presença e importância de múltiplas etnias, não deixa de estar supervalorizando os feitos imigracionistas, anulando a possibilidade de um entendimento diferente ou divergente sobre a ocupação inicial das terras de Criciúma e redondezas37
36 Ibiden, p.13. 37 SPRICIGO, Antônio César. Sujeitos esquecidos, sujeitos lembrados: entre fatos e números a escravidão registrada na Freguesia do Araranguá no século XIX.. Florianópolis, 2003. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, UFSC, 2003. p.60.
Ainda neste capítulo estaremos analisando o que Spricigo cita como evidências da
presença e importância da etnia negra, na fala de Arns.
Segundo Spricigo, a autora do citado livro:
É também descendente de imigrantes alemães que se fixaram no início do século XX em terras que pertenciam a Criciúma, no atual município de Forquilhinha. Além de possuir formação acadêmica, a autora reforça a importância do que escreve por ser irmã do Cardeal Paulo Evaristo Arns... e por serem filhos dos pioneiros alemães que ocuparam aquelas terras. Em Forquilhinha, terra da autora, a construção do discurso de ocupação daquele espaço comprova o enaltecimento das realizações germânicas em detrimento das demais grupos étnicos, o que muito provavelmente deva ter ocorrido em Criciúma.38
O mesmo ainda traz a seguinte reflexão sobre assunto, a fundação de Criciúma:
Para muitos moradores de Criciúma, há discordância quanto ao fato dos imigrantes terem fundado a cidade. A contrariedade de tal acontecimento repousa em argumentos, que afirmam que antes da chegada dos imigrantes já habitavam aquelas terras descendentes lusos e seus escravos·
Esta reflexão vem a reforçar nossa argumentação a cerca da presença negra e outras
etnias, antes da chegada dos “fundadores”.
Voltando ao livro de Arns, no capítulo sobre a etnia negra em Criciúma, várias
citações ali contidas são passíveis de reflexões e contestações à partir do que pesquisamos.
Logo na primeira página (p.105) do capítulo sobre os negros, ao descrever as
características dos negros, a autora tende a folclorização da população negra ao firmar que:
“Dotado de talento artístico, principalmente para a música, o negro e sua família são
encontrados nas promoções de clubes39”. Como podemos perceber a cultura e contribuição
dos negros dá-se segundo a autora a partir da música, na seqüência contradizendo-se a mesma
cita que “esse elemento negro, sobre o qual repousava toda uma economia baseada no
trabalho braçal, mesmo no sistema minifundiário do sul-catarinense40”.
No segundo tópico deste capítulo de Arns, como o sub-título de: “A vinda dos
imigrantes” a autora trás a seguinte informação: “segundo os informantes, o primeiro pioneiro
negro se fixou em Criciúma em 1905, um grupo de sete chegou em 1910, um Manoel
Estevão, em 1912, um, em 1917 e, mais dois, entre 1919 e 1921, outros penetram em épocas
posteriores41”.
38 Ibiden, p.60. 39 ARNS, Otila. Criciúma 1880-1980: A semente deu bons frutos. Florianópolis: Estado de Santa Catarina, 1985. p.105. 40 Ibiden, p.105. 41 Ibiden.
As perguntas que cabem aqui são muitas: de qual Criciúma se está falando? Uma vez
que conforme informações que trouxéssemos nos capítulos anteriores, a que viria a se
transformar na cidade de Criciúma somente em 1925, e antes disso pertencente à Freguesia de
Araranguá, já acusava a presença de negros em localidades da região como Urussanga Velha
em 1860.
Urussanga Velha que também pertencia à Freguesia de Araranguá, o caso da ocupação
do Morro Estevão por um negro fugido de Jaguaruna que acabou dando o nome do Morro, e
que é citado nos capítulos anteriores até por imigrantes italianos, são ignorados pela autora .
Arns afirma que coletou estas informações sobre os pioneiros negros em Criciúma, à
partir de entrevistas como representantes da comunidade negra local, ela os cita como
informantes e os nomina: “ Ana Alves, Elízio Cândido, Enedina Rosantina, Enoltides Caetano
de Oliveira, Feliciano Correia Santiago, José Sebastião, Joventina Lima Estevão, Maria dos
Santos lima, Pedro Paulo dos Santos, Zoe Domingos de Jesus42”.
Os critérios utilizados pela autora e a metodologia adotada não são descritos pela
mesma, que ainda afirma que: “Quando os pioneiros negros chegaram a Criciúma,
encontraram, segundo os informantes, as etnias: italiana, polonesa, alemã e portuguesa
brasileira e bugre 43”.
Este livro em comemoração aos 100 anos da “fundação” de Criciúma, que foi
patrocinado pelo Conselho Estadual de Educação, passou a ser considerado a verdade nua,
crua e incontestável da história da fundação de Criciúma, logo os dados acima, passaram a ser
os reconhecimentos oficiais sobre os negros em Criciúma.
Porém convém questionar de como as entrevistas foram utilizadas, uma vez que
serviram como uma luva para fortalecer o discurso do heroísmo do imigrante italiano,
lembrando que estamos analisando ainda somente a primeira página do capítulo sobre s
negros.
Na seqüência do capítulo, no sub-título sobre as causas da fixação em Criciúma, a
autora descreve a busca por emprego por parte dos imigrantes negros, e à partir da fala de um
dos entrevistados a autora cita que: “Apenas um dos informantes mencionou a procura de
melhores condições de estudo e de serviço para seus filhos.”
É possível perceber nas entrelinhas as questões postas sobre o fato de que de todos os
entrevistados, apenas um tinha citado a educação como caminho para melhores condições de
vida. Com isso a autora busca evidenciar ou demonstrar o suposto pouco apreço da população
42 Ibiden. 43 Ibiden.
negra pela educação, tornando-se esta seu próprio algoz na ocupação dos postos menos
favorecidos na sociedade como um todo.
À partir deste entendimento, no livro busca-se justificar que como as famílias negras,
segundo a autora não tinham na educação a mola motriz para conquista de melhores
condições de vida, ao contrário das famílias italianas, que são colocadas como precursoras da
educação na região, ocupando desta forma “naturalmente” os postos mais importantes e
privilegiados na região de Criciúma.
Cabe aqui refletirmos que durante o período de escravidão, haviam leis que proibiam
de forma efetiva a população negra de freqüentar a escola, com o advento da Abolição da
Escravatura, demorou ainda algumas décadas para que a população negra tivesse real acesso
aos bancos escolares.
Na visão de Arns, a preocupação com a educação dos filhos, não fazia parte das
prioridades da população negra, porém as condições sócio-econômicas desta população é que
geravam este impedimento no acesso à educação.
No discurso dos chamados informantes por Arns, a mesma cita que segundo eles:
“Seus antepassados tinham sido ‘amigos’ dos pioneiros, além disso um Amadeu Felipe,
declarou considerar-se ‘filho’ e outros ‘companheiros de trabalho’ dos imigrantes
pioneiros44”.
Como pode-se perceber acima, mais uma fala que vem a corroborar o discurso
imigrantista e pioneiro dos italianos, e nas relações estabelecidas, discursa-se sobre o caráter
benigno e benévolo das relações estabelecidas entre os imigrantes italianos e a população
negra.
Embora numa relação de trabalho livre, uma vez que os imigrantes eram proibidos de
terem escravos, mas na condição de “donos” da terra, por conta dos privilégios recebidos
durante décadas convém desconfiar destas cordiais relações entre patrões (imigrantes
italianos) e empregados (negros), uma vez que a contraposição capital X trabalho está
presente.
Mesmo com o discurso de alguns historiadores que dizem que numa economia de
minifúndio como a de Santa Catarina, os senhores de escravos e os escravos trabalhavam
ombro a ombro, em condições de suposta igualdade, o fruto desta labuta coletiva não era
coletivizado, logo a questão de se considerar os imigrantes como “companheiros de trabalho”,
não se confirmava na hora da divisão dos rendimentos destes trabalhos ditos coletivos.
44 Ibiden.
No tópico sobre as relações dos negros com outras etnias, a autora cita que: “os negros
sofreram ainda por algum tempo, o estigma da escravidão 45”.
O grande afluxo da população negra para Criciúma deu-se em 1905 e 1912, não
esquecendo a presença anterior da mesma na região conforme vimos anteriormente. A autora
não especificando este “algum tempo” que a população negra sofreu o estigma da escravidão.
Se analisarmos que hoje em 2005, o acesso da população negra às condições gerais
que o “status” de cidadão e cidadã garante podemos perceber que não são concretizadas por
conta deste estigma da escravidão e da cor da pele. Imaginemos no período em que foi escrito
o livro, a 25 anos atrás em 1980.
E num retrocesso maior, imaginemos se o estigma da cor da pele, da origem africana
com toda sua cosmovisão e com o discurso vigente no final do século XIX e início do século
XX sobre a eugenia, branqueamento e discriminação contra os remanescentes da escravidão,
não se fazia presente criando impedimento de todas as ordens à condição de cidadãos e cidadã
a esta população negra.
A partir desta análise, imaginarmos que o estigma foi passageiro e momentâneo, é o
mínimo ser condescendente com a história oficial.
Na seqüência destas falas dos “informantes”, sobre as relações entre negros e italianos,
Arns nos traz que: “Uns diziam que havia um pouco de desconfiança, outros que não haviam
mistura, outros ainda que havia um bom relacionamento, até amizade,.. porém cada qual
conservava-se no seu lugar 46”.
Logo, enquanto cada um, segundo a autora: “conservava-se em seu lugar”, não valeria
conflitos, nem maiores problemas.
Fica aqui a dúvida, qual o lugar de cada grupo étnico? Nas relações estabelecidas entre
negros e italianos, na desigualdade forjada a partir da “ciência” eugênica, a partir das políticas
imigracionistas favoráveis aos europeus, em detrimento as populações locais indígenas,
caboclos, lusos e negros.
Fica a partir de então estabelecido que em Criciúma, assim como em toda Primeira
República do Brasil, que o lugar dos imigrantes de origem européia, seria na condição dos
agentes do progresso, da civilidade e passaporte do Brasil no seleto grupo dos países
desenvolvidos, condições esta que segundo o discurso da época o Brasil não havia atingido
ainda devido à maciça presença de negros, “mestiços” e “mulatos” no seu meio, e que na fala
45 Ibiden, p.106. 46 Ibiden.
e na análise do discurso de Arns podemos perceber que em Criciúma no final do século XIX e
início do século XX o discurso local era consoante com o nacional.
Citando uma entrevista com Domingos de Jesus, Arns nos traz que:
as famílias de outras línguas são gente boa, está certo, mas no começo para gente conseguir emprego era muito difícil. Sobre a Igreja ou s não na escola, a gente tinha o passo muito livre, mas quando chegava hora de arrumar um emprego eles se referiam mais ao sobrenome e deixavam os brasileiros ou negros para trás...47
.
Analisando este trecho da entrevista que Arns realizou com Domingo de Jesus,
podemos analisar o seguinte: mesmo restringindo o acesso ao emprego de forma explícita, as
famílias de outras línguas (no caso italianos) são consideradas boa gente.
Nas mãos destas “famílias de outras línguas” já estavam as empresas ou iniciativas
empresárias rurais ou urbanas, e à partir desta posição estas famílias já privilegiam os
candidatos a partir do seu sobrenome, ou seja, pessoas de origem italianas eram preferidas em
detrimento aos ditos brasileiros e negros.
Já na questão do citado pleno acesso à Igreja e escola, podemos analisar, que enquanto
no final do século XIX ainda vigorava o impedimento legal da população negra acessar a
escola, no caso do senhor de escravo ter interesse em que seu “bem semi-movente” tivesse
acesso à escola, teria que remeter uma carta à capital federal, fazendo a solicitação, esta
seguiria por mula até o Rio de Janeiro, lá seria analisada pelos representantes governamentais,
o que poderia levar meses ou anos e depois seria despachado a posição do Governo sobre a
solicitação, o que era um desestimulante à iniciativa.
O Decreto nº 1.331, de 17 de fevereiro de 1854 estabelecia que nas escolas públicas do país não seriam admitidos escravos, e a previsão de instrução para adultos negros dependia da disponibilidade de professores. O Decreto nº 7.031-A, de 06 de setembro de 1878, estabelecia que os negros só podiam estudar no período noturno e diversas estratégias foram montadas no sentido de impedir o acesso pleno desta população aos bancos escolares.48
Porém com o advento da Abolição da Escravidão, e a preocupação com a quantidade
de negros na condição de livres, a escola passou a ser uma instituição para a “domesticação”
da população negra, para que a mesma fosse “educada” para o convívio social, dentro de
valores característicos eurocêntricos.
47 Ibiden, p.105. 48 MEC, Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília, DF: 2004. p.07.
No acesso a religião a instituição servia do mesmo modo para a doutrinação,
domesticação e adequação da população negra aos padrões comportamentais e religiosos de
Criciúma da época.
Assim como em outras regiões do Brasil, muitos negros viam na vida religiosa a
possibilidade de acessar a educação para seus filhos.
Na página 107 é citado que os “pioneiros negros valorizavam e sentiam-se honrados
em ter um filho Padre ou uma filha Irmã, a situação financeira, às vezes, não lhes permitia
mandar um filho estudar 49”
A situação financeira da população negra na época, correntemente impedia o acesso
dos mesmos á educação, e com isso criava-se um círculo vicioso que se repete até hoje: pais
com baixa escolaridade, por conseqüência desemprego, por conseqüência dificuldades
educacionais, além do não acesso à saúde, alimentação, justiça, respeito e cidadania.
Às vezes citando estas temáticas já não sabemos se estamos falando da época da
pesquisa, ou se falamos da atualidade, no caso século XXI.
O certo é que este círculo vicioso mantém-se. Mantendo-se na questão religiosa, Arns
cita que: “a etnia negra de modo geral, valorizava muito a religião. Os negros eram católicos
apostólicos romanos. Pertenciam a Irmandades 50”
Na seqüência dos parágrafos, a autora trás algumas citações dos informantes sobre a
questão do catolicismo, todas citações corroborando o discurso católico, os subtópicos
seguintes são: a comunhão, a festa de Corpus Christi, as vocações sacerdotais e religiosas...
Como podemos perceber tudo enfocando o catolicismo da população negra em
Criciúma nos primeiros anos do século XX. A única citação às religiões de origem africana
consta num único parágrafo na página 108 que cita o seguinte: “ hoje os umbandistas
comemoram a festa de Iemanjá no mar, no dia 1º de janeiro” (p.108).
Ao voltarmos um pouco no início do capítulo sobre negros do livro Arns, e
percebermos que são citadas algumas pessoas como entrevistadas, designadas como
“informantes” pela autora, avaliamos que a mesma ao citar a questão da religião da população
negra em Criciúma, como sendo católica, sem dar margem para nenhum comentário tipo: os
informantes por nós entrevistados são católicos, porém existiam e existe a presença de
diversas manifestações de religiões de origem africana.
49 ARNS, Otila. Criciúma 1880-1980: A semente deu bons frutos. Florianópolis: Estado de Santa Catarina, 1985. p.107 50 Ibiden.
Porém num livro construído para glorificar uma cultura, uma religião, um continente e
uma cosmovisão de mundo, não poderia esperar outros comentários.
Mas, muitas vezes as tentativas que maquiar a história dão margem a possibilidades
quase inusitadas de análises.
No caso da citação da questão do catolicismo da população negra em Criciúma, Arns
cita que muitos pertenciam a Irmandades religiosas católicas.
A presença das Irmandades Católicas negras em Criciúma demonstra que assim como
em todo Brasil, muitos negros tendo adotado a fé católica, e não encontrando espaço dentro da
mesma, para que de forma ampla pudesse praticar sua fé, livre de perseguições e
discriminações, organizavam as Irmandades, onde a população negra passava a conviver e
praticar sua fé no catolicismo.
As Irmandades locais assim como no Brasil todo também serviu como sociedades de
ajuda mútua, onde os participantes obtinham auxílios variados frente às dificuldades
encontradas por esta população, face a uma sociedade que discrimina os negros, mesmo nos
meios católicos.
Na seqüência do livro de Arns, o sub-tópico designado como: Cultura – A atitude dos
pioneiros e relação à cultura.”
Neste sub-tópico, a autora consegue extrapolar toda ética possível, lembrando que o
livro tratava-se de “Semente que deu bons frutos”, no primeiro parágrafo deste a mesma cita:
“os primeiros negros de modo geral, não valorizavam muito a cultura. A preocupação
primeira era ganhar dinheiro para a sobrevivência. Algumas tinham vontade de mandar seus
filhos para a escola, mas as condições financeiras não permitam que os mandasse estudar”.
No entendimento da autora, cultura resumia-se a freqüência em sala de aula, a mesma
contradiz-se uma vez que afirma que à vontade de enviar os filhos aos estudos havia, porém
não havia as condições.
Ontem, no passado, assim como hoje as condições de acesso da população negra a
educação são difíceis e tortuosas, mesmo quando do acesso das crianças negras à educação na
atualidade, os índices de evasão escolar destas crianças em comparação às crianças brancas
são bem maiores.
Fruto de um currículo invisibilizante, na qual as crianças não se reconhecem como
agentes da história, fruto de tratamento desigual por parte das educadoras, despreparadas para
abordar a questão da diversidade étnica em sala de aula, assim como desinteresse por parte
destas em valorizar esta diversidade.
Na seqüência Arns tenta contemporizar a questão do interesse da população negra à
educação: “os descendentes negros hoje dão muito valor ao estudo. Um sinal evidente é o
número de pessoas formadas no ensino médio e superior 51”.
A autora não traz dados sobre estes números, mas na atualidade dados extras oficiais
dão conta que a presença de estudantes negros na UNESC – Universidade do Extremo Sul
Catarinense – em 2004 era de apenas 1,6% do total de alunos, num universo de 11 mil alunos.
Esta ausência da população negra no ensino superior não se dá de forma alguma por
conta de desinteresse desta população, mas sim por eficientes mecanismos ajustados
secularmente de impedimento do acesso efetivo desta população às condições gerais que se
traduzem em cidadania.
Na análise da autora, as educadoras negras do passado também não seriam
consideradas de forma efetiva profissionais da educação, no máximo “tias” carinhosas e
dedicadas a no máximo crianças da primeira série, segundo ela: “Destacam-se as professoras
negras pela sua eficiência e dedicação, pelo carinho especial que sentem pelas crianças. São
consideradas excelentes professoras para a 1ª série do 1ª Grau, na comunidade de Criciúma 52”.
Na seqüência do capítulo, a autora traz os seguintes subtítulos: as artes, usos e
costumes (o uso da língua), habitação, nutrição, trajes, lazer, saúde e o último o problema da
permanência do negro em Criciúma.
Como podemos perceber este capítulo de Arns sobre a população negra em Criciúma
traz dados gerais e busca reforçar a idéia do pioneirismo italiano assim como respaldar a
cidade de Criciúma como “terras ítalas”, onde a bondade e a camaradagem destes até permitiu
a vinda dos imigrantes negros.
No capítulo como um todo percebe-se a suposta adequação da população negra local
aos valores civilizatórios europeus, seja no catolicismo expresso por alguns entrevistados, seja
no depoimento de outros sobre amizades com os italianos.
Porém, esta “adequação” foi fruto de uma efetiva política que criou e impôs um rígido
código de posturas que buscou reorganizar a vida em sociedade em Criciúma a partir de
comportamentos tidos como “civilizados”.
Assim, a partir da expansão local proporcionada pela exploração do carvão nas
primeiras décadas do século XX junto com a construção da estrada de Ferro Dona Tereza
Cristina.
51 Ibiden, p.109. 52 Ibiden.
Este crescimento urbano, segundo Nascimento: “ Foi se criando assim, em Criciúma, e
em toda região, uma visão de mundo articulada com a sociedade urbana, baseada nas noções
de trabalho, ordem, disciplina, progresso e nos bons hábitos 53”.
Ideais estes bem positivistas como podemos perceber, na fala de Nascimento, que
também traz detalhes sobre o Código de Postura Local.
Segundo o autor: “O Código de Postura do município, reformado em 1928, é um
documento importante para se perceber o processo de urbanização que a cidade viveu até
aquele momento 54”. Na análise do Código o autor cita que no mesmo: “se refletem as
situações e relações sociais presentes na cidade e, ao mesmo tempo, aquelas medidas que as
autoridades procuravam impor a população de acordo com uma visão ideal de cidade e do
comportamento dos cidadãos no espaço público e no espaço privado 55”
O Código foi aprovado em 1924 e reformulado em 1928, mas precisamente no dia 09
de janeiro (Código de Posturas Municipais, Lei nº 48).
O citado Código vem procurar como afirmamos acima ordenar o crescimento e o
comportamento da população de criciúma, não por mera coincidência, 1924 é o auge de fluxo
migratório da população negra em Criciúma, em busca de melhores condições de vida.
A Lei tinha entre outros propósitos, enquadrar esta população de origem negra,
afirmando isto a partir da análise de alguns artigos do Código: Dentre estes destacamos: “a)
desobstaculização da circulação de pessoas e mercadorias: as ruas são entendidas como
lugares de passagem e não de permanência. Procura-se assim punir as pessoas que
obstaculizem a circulação, ou seja, que ‘incomodem ou possa prejudicar ao transito público
(art.22) 56”.
No mesmo período no Brasil como um todo, práticas da população negra, como roda
de samba e a capoeira, eram criminalizadas, tidas como praticas não condizentes com a
civilidade, assim como hábitos comuns os negros de reunirem-se em rodas para conversar.
Porém, com o Código de Postura isto passou a ser punível com multa.
Nascimento ainda traz o tópico do Código de Postura referente à moralidade pública;
“... nascida da necessidade de convivência coletiva e influenciada pelo catolicismo,
combatem-se os jogos, a obscenidade e os divertimentos considerados imorais 57.”
53 NASCIMENTO, Dorval. Formação histórica de Criciúma (1880-1930): a elite dominante e a formação da cidade. Criciúma: 1993. Pós-Graduação (Especialização em História) – Curso de Especialização em Ensino da História, FUCRI., 1993. p.37 54 Ibiden. 55 Ibiden. 56 Ibiden , p.38. 57 Ibiden.
Partindo da questão da influência do catolicismo no Código de Postura de Criciúma,
podemos supor que as práticas religiosas das populações negras com religião de matrizes
africanas não eram permitidas, e pelo contrário criminalizadas.
Como buscamos demonstrar neste último capítulo sobre a população negra em
Criciúma e região, foram grandes as dificuldades enfrentada por esta população face a
constantes tentativas de cerceamento do exercício pleno da condição de cidadãos
criciumenses.
Seja através da invisibilidade histórica, seja pela proibição das práticas culturais e
religiosas de origem africana seja pelo impedimento do acesso ao emprego, a educação e a
terra.
Porém apesar disto tudo, em Criciúma e região, assim como em todo Brasil, a
população negra local resistiu e resiste as perseguições e discriminações e a todas as tentativas
ontem e hoje que tentam barrar a efetiva ascensão social política, econômica, cultural e
religiosa.
E esta pesquisa proporcionou contribuir para uma discussão longa, ampla, necessária e
fundamental: a presença da população negra em Criciúma no período anterior e posterior a
sua “fundação” em 1880.
Ao contrário de decretar verdades históricas absolutas e certezas inquestionáveis, esta
pesquisa propõe um outro ponto de vista para a “mesma história”, história esta que estamos
constantemente escrevendo e reescrevendo.
7 CONCLUSÃO
Consideramos que foi muito recompensador termo nos proposto à realizar a presente
pesquisa que ora concluímos.
Seja pelo fato que a temática da presença da população negra em Criciúma, no período
da sua “fundação” seja um tema pouco explorado, seja pelo fato que a exploração desta
temática seja de suma importância para o município de Criciúma, na área educacional, uma
vez que uma Lei Municipal de 1997, introduziu a Educação Afro nos currículos escolares do
município.
Juntando-se á Lei na esfera municipal, a Lei Federal 10.639 que introduziu a
obrigatoriedade do ensino em todo o Brasil, vem reforçar a importância de pesquisa na área
de imigração no sul de Santa Catarina, sobre óticas e ângulos dos que comumente se tem
abordado à temática, a partir de uma perspectiva eurocêntrica, preconceituosa, racista e
invisibilizante.
Pesquisas e trabalhos desenvolvidos sobre este perfil, buscam perpetuar o “status quo”
vigente, justificando a ocupação para a população de origem italiana no caso da cidade de
Criciúma.
Tendo sido escolhido alguns episódios históricos do Brasil Império, à partir de 1850,
buscamos com isso entender o quadro político, social, econômico e ideológico do Brasil da
segunda metade do século XIX em diante, para então analisarmos os fatos que geraram a
imigração para a região do sul de Santa Catarina.
Capítulos por capítulo procuramos montar o “quebra-cabeça” daquele período, e assim
termos um entendimento mais amplo da imigração em Criciúma.
No capítulo II, com a análise das questões da Lei Bill Aberden e da Lei da Terra,
podemos perceber que tais medidas, longe de serem tomadas visando o fim do nefasto tráfico
de escravos no caso da Bill Aberden, atendia a pressões inglesas, ávidas por mercados
consumidores, assim como a Lei da Terra (Lei 601) longe de objetivar a regulamentação da
doação de terras da União, atendeu diretamente ao projeto de facilitação da implementação da
política imigracionista que visava “branquear” o país, além de excluir a população negra do
acesso a uma ferramenta importantíssima de trabalho para os mesmos, no caso a terra.
No tópico seguinte abordamos a implementação do projeto imigracionista no Brasil,
bem como a ideologia eugênica, que visa a regeneração racial no Brasil, à partir de premissas
eurocêntricas e racistas.
À partir destes ingredientes, a Leio de Terras, a Bill Aberden, o projeto imigracionista
e a política de branqueamento, buscando analisar os indícios da presença negra no sul de
Santa Catarina, e podemos perceber o que os aguardava neste contexto tão desfavorável do
final do século XIX no Brasil.
Na seqüência comando o projeto de branqueamento e de inversão étnica, analisamos a
Guerra do Paraguai, que além de fatores citados anteriormente, também acabou gerando
remanescentes do conflito, que na condição de forros estabelecendo-se em terras do sul de
Santa Catarina.
No capítulo V, após analisarmos todo o contexto dos episódios anteriores, trouxemos
um olhar mais sobre a questão da invisibilidade da presença negra em Criciúma e região.
E a partir de vários autores quem, ou analisaram esta invisibilidade, ou trouxeram
dados sobre esta presença negra na região, podemos confirmar que a presença negra em
Criciúma e região, antes da chegada dos imigrantes italianos foi um fato, porém o contexto da
época buscou e ainda hoje busca, invisibilizar esta presença.
E no último capítulo, em que dentre outros livros, analisamos a obra de Otília Arns:
“Criciúma 1880 –1890: a semente que deu bons frutos” considerado por alguns locais como o
livro definitivo sobre as etnias formadoras da cidade de Criciúma, procuramos trazer o
discurso oficial sobre a contribuição da população negra na cidade de Criciúma.
Discurso oficial este, preconceituoso, racista, invisibilizante e perpetuador do mito do
pioneirismo italiano, heróico e desbravador, ao que nos contrapomos trazendo várias
contribuições sobre a efetiva presença negra em Criciúma e região.
Esta pesquisa não esgota de modo algum o tema sobre imigração e presença da
população negra em Criciúma, pelo contrário, um de seus objetivos é justamente instigar
novas pesquisas, contra argumentações e reações das mais diversificadas, para que a partir do
debate produzido na sociedade, possamos ampliar o leque de visões sobre a imigração em
Criciúma e região.
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