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JOSÉ-AUGUSTO FRANÇA "0 que fiz, fiz. O que escrevi, escrevi. Arrependimentos, não tenho. Penas, algumas" ENTREVISTA DE ANA SOROMENHO FOTOGRAFIAS DE TIAGO MIRANDA Nasceu em Tomar, em 1922, cresceu em Lisboa e amadureceu em Paris, onde se formou e completou a sua educação sentimental e intelectual. Em dezembro celebrou 91 anos com a publicação do segundo volume de memórias. Conversa com um homem que atravessou o século XX e que diz que "o céu pode esperar" vista

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JOSÉ-AUGUSTOFRANÇA

"0 que fiz, fiz.O que escrevi, escrevi.Arrependimentos, não tenho.Penas, algumas"

ENTREVISTA DE ANA SOROMENHO FOTOGRAFIAS DE TIAGO MIRANDA

Nasceu em Tomar, em 1922, cresceu em Lisboa e amadureceu em Paris,onde se formou e completou a sua educação sentimental e intelectual.

Em dezembro celebrou 91 anos com a publicação do segundo volume de

memórias. Conversa com um homem que atravessou o século XX e quediz que "o céu pode esperar"

vista

O homem, o crítico, o historiador

de arte, o cineclubista, o romancis-

ta, o professor. Para todos, José-Au-

gusto França é, simplesmente, "o

França". Um amante inquieto e gu-loso da vida que aos 91 anos conti-

nua a caminhar com passo ligeiro

c conserva uma memória assom

brasa. Regista tudo, não falha uma

data. Investigador imparável, até

ao final do ano passado poderiaser visto regularmente no 9A da sa-

la de leitura da Biblioteca Nacio-

nal, mergulhado em documentos e

jornais. A obra é impressionante.Mais de noventa livros publicados,romances e cnnlos incluídos, pro

dução de escrita em revistas da es-

pecialidade, exposições comissaria-

das. Em 1976, criou o Departamen-to de História de Arte da Universi-

dade Nova de Lisboa. Figura maiorda cultura em Portugal, José-Au-

gusto França é um fazedor incansá-

vel. Mas "o meu mundo é escrita",

diz. K também os jardins, as cida-

des, os museus, o cinema... Há dez

anos que divide os meses entre

Portugal e França. A sua "Lisboa

sentimental", cidade sobre a qualtanto escreveu, é o Jardim da Estre-

la. Se não chover, podemos encon-trá-lo na esplanada do "lago dos pa-

tos", fumando um cigarro com o

primeiro café da manhã e lendo o

"I.e Monde". K aqui que é visitado

pelos amigos e por todos quantostiverem disponibilidade e prazerem conversar. Em França, o refú-

gio é Jarzé, uma aldeia no Loire on-

de fica a quinta de Maité, a mulherdo segundo casamento. É lá que es-

tá a maioria dos livros e o parquecom a buganvília à sombra da qual

desenhou o segundo livro de me-

mórias, "Memórias para Após2000" (Livros Horizonte), que lan-

çou no final do ano passado. É tam-bém na casa de Jarzé que tem uma

gaveta cheia de pequenas agendas,

guardadas meticulosamente des-

de 1946. São os "alibis de vida parame lembrar que tal foi a vida quelevei c que me levou a mini".

Doou o seu espólio a várias

instituições — Biblioteca Nacio-

nal, Gulbenkian, Cinemateca —,

a coleção de arte foi para Tomar.

O que vai fazer às agendas?Não sei nem quero pensar nisso. A

quem podem interessar? As agen-das só me serviram para registaros encontros que tive, os filmes que

vi, os livros que li, enfim, tudo o que

fiz, num registo puramente factual.

Não há anotações à parte. O que im-

porta é o que vem à memória quan-do se procura saber o que aconte-

ceu num delerminado dia.

Foi o que aconteceu quandoescreveu os livros de memórias.

Nesse sentido, folhear as agen-das é mexer na vida?

Ah, sim! E já foram uma ajuda pre-ciosa. Quando nos anos 60 apare-ceram 20 desenhos falsos do Ama-

deo de Souza-Cardoso, lembrei-

-me de uma pessoa que me tinha

mostrado uns desenhos cubistas

no Hôlel Sainl Pierre, em Paris, on-

de cheguei a viver. Consegui verifi-

car a data e pude denunciá-lo co-

mo prova. [Abre ao acaso uma pá-

gina de 2013] Cá está: dia 3 de se-

tembro. Estava em Jarzé. De ma-

nhã fui ao correio da estação e de-

pois ao café do museu c fiquei porlá a almoçar. Kscrevi ao Lemos

[Fernando Lemos, amigo do gruposurrealista que vive no Brasil! e às

17 horas estive com a doutora Ana— quem seria esta doutora Ana?

Jantei fora e à noite não fui ao cine-

ma, fiquei cm casa a reler o Torga.Recuando ao tempo anterior às

agendas, por onde quer começar?

Talvez com 9 anos, a caminho da

estante cio escritório do meu pai.

As primeiras emoções são com a

leilura.

Que livro ia buscar?

O "Alves & Companhia", do Eça.

Com 9 anos?

Pois. Não será uma leitura muito

moral para um menino. O meu pai

também ficou admirado e explicou-me o contexto. A seguir foi o Júlio

Dinis, "A Morgadinha dos Cana-

viais", um livro muito bonito queainda guardo. Depois voltei ao Eça e

li "Os Maias" qualro vezes seguidas.

Quando se revê rapazinho, o querecorda sobre si?

Estamos a falar de um menino dos

anos 30 do século passado, filho

único de pais burgueses com al-

guns meios. O contexto era esse.

Um filho único tem uma psicolo-

gia especial, é pouco sociável. Não

era tímido, simplesmente não ti-nha ninguém com quem brincar.

Naturalmente, seria um miúdo

sensível, embora a formação da

sensibilidade viesse mais lardc.

Nesse retrato é já um pequenointelectual.

E era um pequeno intelectual. Os

meus pais procuravam compen-sar-me por eu estar sempre a ler, e

a minha avó dizia que a leitura era

má para os olhos.

O interesse pela arte começacomo?

Começa por ver. Aos domingos de

manhã ia com o meu pai ao Museu

de Arte Antiga ver o Nuno Gonçal-

ves e as pinturas antigas. O meu

pai interessava-se por arte, gosta-

va do Columbano, mas não gosta-

va do Malhoa, o que era bom sinal.

Em 1938 fomos ver a Igreja de Fáti-

ma, do Pardal Monteiro, e vi as mi-nhas primeiras obras do Almada.

O meu pai era amigo do cónego Pe-

reira dos Reis, reitor do Seminário

dos Olivais e conselheiro do car-

deal Cerejeira. Foi esse padre que

convenceu o Cerejeira a defender

a Igreja moderna e calou o bico a

todo o beatério que estava contra.

Dois anos depois aconteceu a gran-de Exposição do Mundo Portu-

guês. Esse foi o primeiro contacto

sério com o modernismo. Passei o

verão inteiro de 40 vendo exposi-

ções c namorando por lodo o lado.

De Lisboa, sobre a qual tanto

escreveu, que impressões guarda?As primeiras impressões tiveram a

vantagem extraordinária de a mi-

nha mãe andar sempre a mudar de

casa, c islo deu me um conheci

mento interior da paisagem cie Lis-

boa. Com seis meses cheguei de To-

mar para a Travessa do Possolo e

depois andámos entre o Arco do Ce-

go e a Almirante Reis. Cheguei a

mnrar em três casas diferentes na

Morais Soares até me fixar entre a

Alexandre Herculano e a Avenida

da Liberdade. Isto deu me a possibi

lidade de guardar uma memória de

Lisboa que depois se alterou muito.

Na década de 40, a Câmara Munici-

pal decidiu que os edifícios tinham

de ser todos pintados de cor de ro-

sa. Não havia licença para outras co-

res, e ficou se com a imagem de

uma Lisboa que caiu na lixívia.

As mudanças sucessivas de casa

tinham a ver com quê?Andava-se pela rua, as casas esta-

vam cheias de escritos nas janelas,

era muito fácil mudar, e a minha

mãe gostava. Mudávamos, gastava--se um dinheirão em novas decora-

ções, depois ela via oulra e zumba!

Chegámos a voltar para uma casa

da qual já tínhamos saído, e muitas

vezes o meu pai enganava-se e vol-

tava à morada anterior.

No seu livro de memórias não há

um retrato preciso da sua mãe.

Pois... Estava mais ligado ao meu

pai. Sentia uma profunda amizade

por ele, enlendendo-o. Quis ser

um intelectual, gostaria de ter feito

o curso de Direito, chegou a ser jor-nalista em Tomar, escreveu uma

peça de teatro, mas era contabilis-

ta de profissão e veio para Lisboa,

onde chegou a montar uma empresa grande. Esta era a migração típi-ca que se fazia nos anos 20, da pro-víncia para a capital. A minha mãe

tinha um quadro burguês de dese-

jo de ascensão social, que o meu

pai não tinha mas que, natural

mente, acompanhou. A personali-

dade dela era forte — o que queria,

conseguia. Teve uma vida longa e

fui muito amigo dela até à sua mor-

te, mas a relação afetiva c humana

foi com o meu pai.Perdeu-o com 20 anos.

E tive de ser emancipado por cau-

sa de problemas de herança. Dei-

xou-me a meio do curso da facul-

dade, um curso que ele não tinha

podido fazer e queria muito que eu

fizesse. Tudo isso foi um trauma,mas o gosto da leilura deu-mo ele.

E depois fez muitas coisas. O quemais lhe custou não poder parti-lhar com ele?

O meu primeiro romance, "Nature-

za Morta' 1

, que publiquei em 1949,

foi-lhe dedicado: "A Zé Maria Fran-

ça, meu amigo."

Quando é que a vida começa a

abrir?

A que chama "a vida"?

Ao mundo que se abre. Quando é

que tem a perceção que vai ser

por ali que encontra o seu sítio?

O meu sítio é um sítio de escrita.

As primeiras emoções talvez sur-

jam com os primeiros namoros...

Depois houve África. Sim. Definiti-

vamente, África. Agora que me

põe a questão, sou levado a pensar

que a abertura ao mundo foi a par-tida para Luanda, em 1945. Fui

com um amigo do meu pai, um

magnata colonial, com a promessade ser o seu homem de confiança.

O meu pai tinha colocado uns di-

nheiros nesses negócios, portantonão era nenhum favor que me fa-

ziam. A situação da minha partidaera brilhante. Pela primeira vez en-

contro me sozinho com uma certa

responsabilidade de negócio e po-

TEMPO USA MÁQUI-NA DE ESCREVER,NÃOTEMTELEMÓ-VEL. ANOTA OS DIASEM PEQUENAS AGENDAS, QUANDO NÃOESTÁ EM CASA (NAFOTO), Ç LUGAR DOSEU OFÍCIO É A BI-BLIOTECA NACIONAL

dia escapar da minha mãe. Assim

me atirei à vida.

As impressões africanas...

Luanda era uma pequena cidade

provinciana, sem interesse particu-lar. Fiquei num hotel com um ami-

go que linha feilo a bordo, um en-

genheiro com quem partilhavauma certa repugnância pelo mun-do colonial. Era convidado para jo-

gar bridge e todas essas coisas, e

não me interessava nada jogar

bridge com aquela genle. Acabei

por só ficar um ano. Mas, fazendo

o balanço, foi um tempo de liberda-

de e aprendizagem. Nesse ano tam-

bém escrevi muito.

A repugnância a que se referiu

pelo mundo social também asentiu pela situação colonial?

E vi a de perto, porque fui trabalhar

para a fazenda açucarcira do Bom

Jesus. Foi lá que escrevi o romance"Natureza Morta" e tomei consciên-

cia do sítio angolano e da escravi-

dão negra. Andava com o senhor

Vales a comprar pretos e fui postofora da companhia por causa desse

livro. Esse foi o ano cm que o Marccllo Caetano fez a viagem às coió

nias. Estava lá com o Henrique Gal-

vão, o homem do assalto ao "Santa

Maria", detestavam-se, e conheci-

-os em festas no palácio do governa-dor. O Caelano ia visitar as provín-cias com a comitiva atrás. E como o

único sítio que tinha as baixelas era

Luanda, ia uma camioneta sempreadiante com as baixelas necessárias

para receber o senhor ministro das

colónias. Imaginei um conto em

que a camioneta tinha uma panne,

caía, e diverti-me imenso com isso.

Ainda passa lá o fim da SegundaGuerra Mundial?Andámos toda a noite de consula-

do em consulado a beber, com a

pretalhada atrás, sem entenderem

nada, mas contentes de nos veremcontentes. Mais tarde, soube que

por cá os meus amigos tinham an-dado em grandes festas e que se

fizeram manifestações a festejar a

vitória dos aliados. Existem ima-

gens dessas manifestações, onde,

entre as bandeiras dos aliados, apa-recem uns paus sem bandeira e

ate bandeiras do Bcnfica. Eram,

evidentemente, a homenagem aos

aliados soviéticos, cujo nome não

podia ser mencionado.

No regresso, o que encontra?

Um mundo modificado. Logo em46 rebenta o Movimento de Unida-de Democrática [MUDI c começa a

haver uma revolta mais fixada. Mal

cheguei fui assinar as listas. Seis

meses depois casei-me, mais uma

vez para fugir à casa da minha

mãe. Quando cheguei mostrei ao

Castro Soromenho o meu manus-

crito sobre Angola, ele era de lá,

deu-me força para o publicar. Era

um homem muito politizado, umcomunista anti-Cunhal. Foi a partirdele que conheci o Casais Montei-

ro, o António Pedro e depois os sur-

realistas. O regresso marca a mi-nha entrada na vida intelectual.

Fernando Lemos, camarada

surrealista e grande amigo, dizia

que se sentia no Portugal daque-le tempo como num lugar de

condenados. E tem esta frase:

"Estávamos unidos por umfuturo que tínhamos de inventar,

porque ninguém nos dava nada."

O Lemos tem uma grande inteli-

gência interior. Isso está absoluta

mente certo.

Que futuro queria inventar?

Entretanto aconteceu uma desgra-

ça. Ainda nesse ano fiz a primeiraviagem a Paris, vejo o Picasso, e a

vida dá uma volta por uma nova

paixão. Conhecia o Picasso das re-

produções e de repente vejo-o em

carne e osso pendurado numa pa-rede em Paris. Já tinha estado em

Madrid, andado pelo Prado, ficara

fascinado como Fl Greco, como

tantos com aquela idade, mas ver

o Picasso estragou me a vida.

Em que sentido?

Pensara seguir um caminho mais

literário, mas depois do romance

de África só voltei aos romances

em 2000. A minha visualidade de-

senvolveu-se a partir dessa altura,

obrigando me a percorrer um ca

minho cm fascínio c dedicação.Ainda em Paris, estive na grande

exposição do Cândido Portinari or-

ganizada pelo Partido Comunista

Francês. O Portinari estava lá. Fui

ter com ele falando em português,ficou encantado, e quando regres-sei escrevi para a Horizonte o meu

primeiro artigo de crítica de arte.

Como lhe acontece o surrealismo?

As maiores ligações de amizade fo-

ram com o Azevedo [Fernando], o

Vespeira [Marcelino] e o Lemos, o

único vivo dessa gente toda. Apre-ciava muito o Anlónio Pedro, quesem ser um grande pintor era umextraordinário criador. O Pedro,dez anos mais velho, era um ho

mcm de grande sensibilidade c ho

nestidade moral. Foi sobretudo

tuna influência de alma: "Para

quem acreditar nisso da alma da

gente" — escrevi eu na altura. I '. era

uma alma certa. O único poema de

cor que sei, e que é muito bom, é

dele: "Que bestas, que bestas, oh,

que de bestas, que de bestas, ahl,

ah!" Sete sílabas c uma decassílaba.

É de uma musicalidade maravilho-

sa c aplicável urbi et orbi.

Ser surrealista implicava o quê?No catálogo da exposição de 1949,

cada um de nós dizia as suas ra-zões para ser surrealista. Escrevi

que para mim era uma questão mo-

ral. "Liberdade cor de homem." A

expressão é do André Breton, e a

liberdade moral era o meu compro-misso com o surrealismo. Todos os

outros tinham uma expressão poé-tica que eu não tinha. O Cesariny

separou-se logo, dizendo: "Isto não

é grupo, nem é surrealista!" Real-

mente, não éramos nem uma coisa

nem outra, mas ficámos com uma

grande amizade. O que teve de

bom foi ter-nos livrado do Partido

Comunista. A grande contestação

portuguesa organizada que havia

era o PC, e safámo-nos dessa in-fluência pelo surrealismo, iramosantiestalinistas e cheguei a ser con-

vidado pelo Benjainin Péret paraformar um partido trotskista portu-

guês. Falei com algumas pessoas,acharam interessante, mas nin-

guém mexeu uma palha. Organi-zar um parlido dá um irabalMn...

Entretanto vai para Paris comple-tar a sua formação. Como teve

conhecimento de que poderiafazer Sociologia da Arte, umterritório fora do horizonte

português dessa época?Tinha feito a Galeria de Março [pri-meira galeria de arte contemporâ-nea de Lisboa nessa épocal, que de-

pois não deu em nada, porque no

domínio da arte quem mandava

era o Serviço Nacional de Informa-

ção [SNI]. Eu era um jovem brilhan-

te e prometedor, e as pessoas di-

ziam: "A crítica de arte é o França."

Olhava para o espelho e pensava:"Não pode ser só isto." Há algunsanos que ia anualmente a Paris, ti-nha lido o livro cio Pierre Francas-

tel, o crítico de arte que seguia n

método da análise social, e dizia:

"Era o que eu queria dizer." Mas

ele já era o Francastel e eu um su-

jeito de Lisboa sem essa possibilidade. Quando publiquei o meu livro

sobre o Amadeo de Souza-Cardo-

so, fui a Paris ter com ele e ofereci-

lho. Quinze dias depois telefonou-

-me a saber se me interessava fa-

zer a licenciatura com ele na École

des Ilautes Études. Pedi bolsa à

Fundação Gulbenkian. Acabaram

por não ma dar por razões políti-cas evidentes.

Ficou zangado?Talvez (ivesse goslado. Fiquei sem

dever nada a ninguém. Oito dias

depois tinha uma bolsa do gover-no francês e parti com a família pa-ra o meu primeiro período de -vida

em França. Acabei por fazer lá o

doutoramento.

A sua tese sobre a Lisboa do

marquês de Pombal é uma obra

inaugural. Até então, ninguém se

interessara pela reconstrução da

cidade após o terramoto.

A minha ideia era fazer a oposição

entre a sociedade e a arlc barroca

do tempo de D. João V c depois,

com o corlc do terramoto, como

tudo se transformou em situação

neoclássica, ou de iluminismo, porassim dizer. Mas, como bom fran-cês que era, Francastel detestava o

barroco e sugeriu que fizesse só o

terramoto e a Baixa pombalina De

facto, uma novidade absoluta paranós. Vim a Portugal seguir a pistade uns documentos que estavam

numa gaveta no Estado-Maior dn

Exército, no Campo de Santa Cla-

ra. Eram os estudos das plantas de

Lisboa que nunca ninguém tinha

tratado, e sem eles não poderia terfeito a tese. Depois fiquei mais uns

anos em Paris, escrevendo para os

"Cahiers dv Cinema", viajando e

publicando em revistas de arte.

Por essa altura também escrevi "A

Arte em Portugal no Século XX".

Entretanto, o Francastel convidou-

-me para ser seu assistente.

Convite que não aceita. Já tinha

nome como crítico, era membro

respeitado na Association Inter-nacional des Critiques d'Art, no

início dos anos 60 a maioria dos

artistas portugueses que frequen-tava estava fora, e regressa à

casa da Rua da Escola Politécni-

ca, ao país de Salazar. Porquê?Comn expliquei a Francastel, ra-

zões familiares...

Tempos difíceis?

Conflituosos. Tive uma certa de

pressão. Resolvi o caso escreven-

do. Mergulhei na arte em Portugalno século XIX. coisa que nunca ti-nha pensado estudar. Academica-

mente, é o meu melhor livro.

Mas não o seu preferido.O preferido é o livro sobre os anos

20. Diverti-me muito a fazê-10. São

anos de grande falhanço para Por-

tugal. Fiz muitas exposições, tenho

pena de não Ler feito a dos anos 20.

Por três vezes fui convidado, a coi-

sa não marchou. Também tenho

pena de não ter feito uma biogra-fia do duque cie Saldanha. Que bi-

cho extraordinário! E o portuguêstal e qual.

Ainda pode fazer.

Minha senhora, aos 91 anos não

me vou meter muna obra que leva

três ou quatro anos a realizar. É

uma questão de bom senso. Saiu

este ano um livro bom da Fátima

Bonifácio sobre o Rodrigo da Fon-

seca. Estranhamente, também não

havia nada, e ainda fiquei com

mais pena. Nunca ninguém fará

um bom livro sobre o Saldanha.

Nunca se sabe.

Eu espero que não. Essa c a minha

vingança."Não há História sem memória e

sem História não há futuro nem

esperança." Citação sua. Não será

uma visão um pouco marxista?

Sou um marxista dissidente. O

marxismo tal como o conhecemos

foi vítima daquele estupor do Esta-

line, o Trotsky também não era

fresco. Mas a esperança na Histó-

ria não são só os "amanhãs que

cantam", é também uma coisa

abraâmica. A questão da esperan-

ça põe-se sempre. O mundo não

vai acabar.

É um otimista, portanto.Vieira de Almeida, o professor queme ensinou a pensar, dizia: "A inte

ligência vence." O otimismo éuma

folie, mas o pessimismo uma des-

graça. Não há um progresso linear.

Sabemos que a História não se re-

pete. Gagueja. Pode voltar atrás, pa-rece que volta atrás, há coincidên-

cias ou não, descobrem-se as cau-

sas e avança-se.Para um historiador, o acaso não

existe?

Já dizia o Almada: "Não há um mal

-entendido com as coisas." Há sem

pre causas para os acasos. Os aca-

sos são uma ignorância das cau-

sas, que são múltiplas, polissémi-

cas, e nunca lineares. Um historia-

dor deve saber isto.

Alguns dos seus livros são sobre

épocas em que viveu, e manteve

o tom memorialista nessas

obras. Foi importante escreversobre um tempo a que assistiu?

Sim. Mas também é delicado falar

sobre uma época que ainda está

cheia de testemunhos. Escrevi isso

quando fiz o livro sobre o Amadeo

c ainda estavam vivos o Almada, o

Diogo Macedo e o Eduardo Viana,

que tinham sido amigos do Ama-

deo e me escondiam coisas.

Que coisas?

O Almada, talvez por ciúme, não

queria falar. Estava farto de ouvir

toda a gente dizer que o Amadeo é

que era o grande pintor. O Diogo

era um bocado sinuoso. E o Viana,

que era um bonzão, não era capaz,

por uma questão sentimental. Adelicadeza de falar sobre um tem-

po ao qual não assisti e sobre o

qual recolhi muita informação,mais ou menos fidedigna, como to-

das as informações, é quando ain-

da há teslemunhos que podem

sempre dizer que não era assim. O

contexto é sempre a grande dificul-

dade dos historiadores.

Quando é que começou a fre-

quentar o ateliê de Almada

Negreiros, que considera o maiorartista português?Tinha chegado de Itália, onde vira

pela primeira vez "A Flagelação",do Piero Delia Francesca, num pe-

queno museu em Urbino — paramim, continua a ser o grande quadro —

, e escrevi um artigo no "Co-

mércio do Porto". O Almada leu-o

e telefonou três vezes para minha

casa até me apanhar, para dizer

que Linha goslado muilo. Eu era

um rapazinho de 25 anos e senti

uma honra extraordinária. O nos-

so encontro intelectual começou

aqui. Ia visitá-lo à casa de Eicesse,

onde linha uma barraca no quin-tal que era o seu mundo, e era umacoisa extraordinária... [pausa] A úl-

tima imagem que tenho dele é nasala de Bicesse. O Almada na ba-

lauslrada da mezzanine a fazer-me

um adeus, e a Sarah Afonso, ao

meu lado, a fazer um gesto: o Zé jánão vinha. Estava fatigado, farto

da vida. Não tinha saúde, deixou-

-se morrer. Tenho uma coisa atra-

vessada com o Almada. Eu era a

pessoa que poderia fazer lhe a

grande entrevista, cheguei a pro-

por-lhe, aceitou, combinámos

uma vez, duas, depois não podia,

era muito versátil em compromis-sos, e acabei por desistir.

Escreveu que não guarda arre-

pendimentos...O que fiz, fiz. O que escrevi, escre-

vi. Está feito. Asneira ou não, fui

responsável c continuo a ser. Arre

pendimentos, não tenho. Penas, al-

gumas. Tenho, por exemplo, uma

pena estúpida de ter recusado co-

nhecer o António Ferro, quandoele caiu e o Salazar o mandou paraa Suíça. A dada altura, eu fui a Ber-

na ver umas coisas, e o Carlos Bote-

lho escreveu um cartão elogiadíssi-

mo para levar. Andei com o cartão

no bolso e resolvi não o ver. O Fer-

ro era o SNI, e eu estava do outro

lado. Estupidez. Teria gostado de o

conhecer. Mais tarde, escrevi so-

bre ele e entendi-o.

Depois do percurso como crítico

e historiador de arte, a emoção

perde-se?Estou hisloricamenle viciado. Mas

é a sensibilidade mais imediata queconta. E se por ai aguenta, aguentamesmo. Sou muito mau para levar

alguém a ver exposições, as pes-soas querem explicações c não es

tou para maçadas. Ando vertigino-samente de um quadro para outro,volto atrás nas salas e muitas vezes

dá-me para me ir embora e regres-sar no dia seguinte. São situações

de emoção que se controlam mais

ou menos. Uma vez encontrei uma

pessoa a ver assim uma exposição.

Era o André Malraux. Não o conhe-

ci pessoalmente, mas fiquei em

boa companhia.Há pouco, quando falávamos das

razões do regresso de Paris,

ficou reservado...

Pois... Que quer que lhe diga? Evi-

dentemente que tive amores e dei-

xei de os ter. Uns porque morre-

ram, os amores, outros as pessoas.A minha primeira mulher, Fernan-

da, de quem fiquei amigo, neste

momento está morrendo, e sou eu

que tenho de estar a aguentar , por-

que a nossa filha eslá em Paris.

Nesse capítulo sentiu-se umhomem livre?

E delicado. Pode significar egoís-

mo — e não é. No segtmdo volu-

me de memórias tenho umas coi

sas mais confessionais. Alguém di-

zia que fulano escreve distante.

Eu bordo em volta do distante.

Certa senhora disse uma vez queeu era uma ilha. Talvez tivesse si-

do uma ilha por ter sido filho uni

co. E também por feitio e reserva.

A "LISBOA SENTIMEN-TAL' DE :OSÉ-AUGUS-TO FRANÇA, ONDENAS MANHÃS DE SOLVEM LER O' LE MON-DE" E ENCONTRAR--SE COM AMIGOS

JARDIM DA ESTRELA

ÁLBUM COM O PAI, EM 1934 (EMCIMA, À ESp.); COM O GRUPO DOLICEU CIL VICENTE (EM CIMA

:

À DIR.PRIMEI RO A CONTAR DA Dl R.); NA

EXPOSIÇÃO DO GRUPO' SURREALIS-TA DE LISBOA, EM 194 S(NO MEIO, À

ESp.): PASSEANDO COMA MÃE, EM1944 (AO LADO): EM PARIS, EMCASA DE VIEI RA DA SI LVA E ÃRPÃDSZENES (CASAL À ESp,), COMFERNANDA (A PRIMEIRA MULHER)NOVAIS TEIXEIRA E FERNANDODACOSTA, NUMA FOTOGRAFIATIRADA PELO ARTISTA FERNANDO'LEMOS, CÚMPLICE DE UMA VI DA

Uma coisa importante na minha

vida foi o segundo casamento,

com Maité. Deu-me uma certa re-ferência ao mundo.

Por ser francesa?

Deu me outro patamar de vida no

entendimento profissional e inte-

lectual. Também é historiadora de

arte, é especialista em D. João V, e

falávamos sobre as mesmas coisas.

Acabou por sacrificar a carreira

por minha causa. Enfim, também

não tinha muita vontade de a fazer.

Permitiria?

Quis que fosse professora em Lis-

boa, e de modo nenhum ela quis

ser professora. Tinha um doutora-

mento praticamente feito sobre D.

João V e desistiu de o fazer. A Mai-

té tinha um ar mundano de filha-

família de uma certa nobreza provinciana, que ajudava bastante emParis. Conheceu os mesmos histo-

riadores que eu c estava inteira

mente à vontade nesse domínio.

Mas é, sobretudo, uma organizado-ra extraordinária.

Vivem entre duas cidades.

Há já dez anos que fazemos assim.

Não são exatamente duas cidades.

A casa em França é numa quinta, à

beira de uma aldeia, que é muito

da família da minha mulher.

Onde se sente melhor?São duas vidas diferentes. Lá te-

nho a casa e o parque, onde me

obrigo a passear todos os dias. por

que é preciso caminhar. Vou à al-

deia a pé comprar jornais c tenho

um escritório que é o dobro deste

c uma excelente biblioteca da famí

lia da Maité. Daqui a quatro meses

já lá estou, com muita satisfação.

E Lisboa?

Em Lisboa tenho o Jardim da Estre-

la. Até ao ano passado ainda ia para a Biblioteca Nacional, tinha mui-

to trabalho. Agora reformei-me.

Reformou-se? Quando?Ontem, [ri-se] Publiquei este livro

de memórias e tenho um livro em

provas que ainda está para sair.

São memórias inventadas do Con-

selheiro Adalberto, a partir do diá

rio que escreveu entre 1880 e 1890.

É um homem conservador, fontis

ta, diretor bancário arredado da po-lítica, foi amigo do Ramalho Orli-

gão, retratado pelo Columbano, co-

nheceu o Eça de Queirós e eviden-

temente ia muito ao teatro e à ópe-

ra. Morre no fim das memórias, em

1890, com o desgosto do Ultimato

inglês. Permitiu-me ter 150 textos

sobre tudo o que se passou desde

as comemorações do centenário

do Camões até 1890, o ano do apo-calipse português, com o Ultimato.

Deu-me um trabalhão a investigar

jornais e revistas da época, mas di-

verti-me muito com as opiniões do

Conselheiro. E pronto, acabou.

Tem tanta vitalidade, o que vaifazer?

ARTE "RETRATOS DOSCRÍTICOS' 1

,DE NIKIAS

SKAPINAKIS (1971);

DO CAFÉ A BRASILEIRA:RUI MÁRIO GONÇALVES,FRANCISCO BRONZE,FERNANDO PERNES E

JOSÉ-AUGUSTO FRANÇA(DA ESQ. PARA ADIR.)

"

Isso pergunta a minha mulher,

que lem de me aturar a não fazer

nada. Há uma palavra francesa,

muito bonita: bouquiner, ler umacoisa aqui c ali. É o que tenho feito.

Mas às vezes estou chateado. Du-

rante dez anos, fui passando de ro

mance para romance. Acabava

um, começava outro. Publiquei o

último, "Mina e as Coincidências",

e fiquei sem vontade de fazer

mais. Com os contos, a mesma coi

sa. Escrevi trezentos e tal contos

pequenos c depois cm brincadeira

fiz um conto de dez palavras: "Go-

mes nasceu, viveu, morreu mas foi

menos do que isso." Aqui tem a his-

tória toda de uma pessoa, em dez

palavras exatas. Mais pequeno não

é possível. I! assim fechei os con-

tos. Não há nada na forja, c toda a

gente se admira. Não tenho vonta-

de de fazer nada e sinlo falta de.

Proponho-lhe um exercício

semelhante ao do seu conto.

Pode descrever-nos o Portugaldo século XX em dez palavras?Dá me um dia para pensar?Claro.

[Um dia depois telefonai Quer (o-

rnar nota? Cá vai: "Entre Pessoa c

Almada, os portugueses votaram,

aliás, em Salazar." Hesitei entre 'po-

rém' ou 'afinal' e acabei por me de-

cidir por 'aliás', Que é a chave da

frase. Fica assim . o

asoromenhoílexp resso.impresa.pt