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BASTIDORES DA LIBERTAÇÃO Ricardo David Lopes [email protected] O percurso da independência de An- gola é feito de 'estórias', umas públi- cas, outras menos conhecidas. O jor- nalista da /?7P António Mateus conta uma versão vivida no terreno. Houve falta de vontade de che- gar a um acordo em que ninguém perdesse a face A data da independên- cia de Angola, cujos 37 anos se comemo- ram no domingo, foi definida nos Acordos de Alvor, em Janeiro de 1975, entre o Governo português, o MPLA. a FNLA e a UNITA. Era então previsível que, no cenário da Guerra Fria que se vivia, a convivência entre os três movimentos seria muito difícil ou até impossível? É um facto que o contexto de Guer- ra Fria então prevalecente ampli- ficou as rivalidades, incongruên- cias e sede do poder de MPLA, UNITA e FNLA. Ainda mais por cada um deles ter querido, logo após o 25 de Abril, posicionar-se como o legítimo representante do povo angolano'. Todos eles senti- ram justificada a respectiva apos- ta de corrida às armas, que arras- taria o país para uma guerra de- vastadora nas décadas seguintes. Centenas de milhares de civis, co- lhidos no meio de confrontos en- tre as forças nacionalistas, procu- raram refúgio em países vizinhos, em Portugal, ou no Brasil. Meses depois dos Acordos, FNLA, forças zairenses e mercenários portugueses e ingleses, organiza- dos pela CIA, invadiram Angola pelo Norte, enquanto a África do Sul, em apoio da UNITA, entrava pelo Sul, receosa que a independência enco- rajasse a luta dos independentistas da Namíbia e da SWAPO. Sem o apoio de Cuba, pedido por Agosti- nho Neto, teria sido possível ao MPLA repelir essas forças? Os factos mostram que a inter- venção militar 'cirúrgica' dos cu- banos, quando a operação Savan- nah se avizinhava de Luanda, conseguiu evitar uma batalha dentro da cidade. Isto associado à retirada, à última hora, do apoio prometido da CIA à FNLA, nessa ofensiva final. Em Novem- bro de 1975, dois meses após ter avançado quase até às portas de Luanda, a Zulu Task Force sul- -africana deparou com uma su- cessão de pontes dinamitadas em pontos estratégicos, confinada a atacar a cidade através de um eixo desguarnecido, dependente de uma articulação com a FNLA que desapaTeceu com a retirada da CIA. O então comandante das tropas sul-africanas, general Constand Viljoen, contar-me-ia, anos mais tarde, em Pretória, que os seus homens foram traídos

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BASTIDORESDA LIBERTAÇÃORicardo David [email protected]

O percurso da independência de An-gola é feito de 'estórias', umas públi-cas, outras menos conhecidas. O jor-nalista da /?7P António Mateus contauma versão vivida no terreno.

Houve falta devontade de che-gar a um acordoem que ninguémperdesse a face

Adata da independên-cia de Angola, cujos37 anos se comemo-ram no domingo, foi

definida nos Acordos

de Alvor, em Janeirode 1975, entre o Governo português,o MPLA. a FNLA e a UNITA. Era então

previsível que, no cenário da GuerraFria que se vivia, a convivência entreos três movimentos seria muito difícil

ou até impossível?É um facto que o contexto de Guer-ra Fria então prevalecente ampli-ficou as rivalidades, incongruên-cias e sede do poder de MPLA,UNITA e FNLA. Ainda mais porcada um deles ter querido, logoapós o 25 de Abril, posicionar-secomo o legítimo representante do

povo angolano'. Todos eles senti-ram justificada a respectiva apos-

ta de corrida às armas, que arras-taria o país para uma guerra de-

vastadora nas décadas seguintes.Centenas de milhares de civis, co-

lhidos no meio de confrontos en-tre as forças nacionalistas, procu-raram refúgio em países vizinhos,em Portugal, ou no Brasil.

Meses depois dos Acordos, FNLA,

forças zairenses e mercenários

portugueses e ingleses, organiza-dos pela CIA, invadiram Angola pelo

Norte, enquanto a África do Sul, em

apoio da UNITA, entrava pelo Sul,receosa que a independência enco-rajasse a luta dos independentistasda Namíbia e da SWAPO. Sem o

apoio de Cuba, pedido por Agosti-nho Neto, teria sido possível aoMPLA repelir essas forças?Os factos mostram que só a inter-venção militar 'cirúrgica' dos cu-

banos, quando a operação Savan-nah já se avizinhava de Luanda,conseguiu evitar uma batalhadentro da cidade. Isto associadoà retirada, à última hora, do

apoio prometido da CIA à FNLA,nessa ofensiva final. Em Novem-bro de 1975, dois meses após teravançado quase até às portas de

Luanda, a Zulu Task Force sul--africana deparou com uma su-cessão de pontes dinamitadas em

pontos estratégicos, confinada aatacar a cidade através de umeixo desguarnecido, dependentede uma articulação com a FNLA

que desapaTeceu com a retiradada CIA. O então comandante das

tropas sul-africanas, generalConstand Viljoen, contar-me-ia,anos mais tarde, em Pretória, queos seus homens foram traídos

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pela CIA. Ainda tentaram um ata-

que 'por espírito de missão', mas

depressa descobriram que ou re-tiravam ou seriam chacinados.

O general Joãode Matos jogoucarta decisiva

ao contratarsul-africanos

99Porquê esse apoio da África do Sul

à UNITA? Foi uma aliança de princí-pios ou de conveniência?

Foi, essencialmente, de conve-niência, mas deveu-se também àpersistência de Jonas Savimbi nabusca desse apoio, a que a lideran-

ça política sul-africana se opôs deinício. Só quando operacionaismilitares como Constand Viljoenargumentaram a 'gravidade' doRooi Gevaar (perigo vermelho),que florescia do lado de lá da fron-teira, e o que isso poderia repre-sentar em termos de apoio aoANC e à SWAPO, é que Pretóriaavalizou o apoio à UNITA. Apoioesse que escalaria na década se-

guinte, de forma clandestina,ocultado à opinião pública sul--africana. A África do Sul era amaior potência militar do conti-

nente, a economia mais poderosade África e o último reduto onde o

poder de maioria negra ainda pa-recia distante. Por outro lado, Pre-tória mantinha a administraçãodo então Sudoeste Africano, ape-sar da oposição da SWAPO. A li-derança militar sul-africana eraassumida por um conselho de se-

gurança restrito, encabeçado pelopróprio Presidente, e que decidi-ra - depois do colapso da presen-ça portuguesa (sua antiga aliada)em Angola e Moçambique - criarzonas tampão de progressão da-

queles movimentos, fora das fron-teiras do país.

0 que fez virar essa decisão de re-curso às armas, por Pretória, rela-tivamente a Angola?0 número crescente de vítimasmortais sul-africanas brancas pro-vocou uma pressão insustentávelda opinião pública junto de um Go-

verno que garantira ao eleitoradonão estar envolvido na guerra emAngola. Num país ainda a sofrercom o pesadelo da Guerra Anglo--boer, a perda de dezenas de jovensbrancos, num conflito de motiva-ções políticas, era intolerável. E, o

facto de essa ofensiva servir de pre-texto à presença de milhares de cu-banos num país vizinho, em lugarde ser argumentável, como defesacontra o comunismo soviético,agravava-o. Com a ONU a exigir a

Pretória que reconhecesse a inde-pendência da Namíbia e os EUA a

proporem um triângulo de acordo(o calar das armas, a troco da reti-rada dos cubanos de Angola e da

independência da Namíbia), ini-ciaram-se as negociações que euacompanharia, ao longo de maisde uma década, em Brazzaville,Kinshasa, Gbadolite, Cairo e Zuri-

que, antes da assinatura do acordo

final, em Nova lorque.

0 que falhou após as cimeiras deFrancevílle, no Gabão, e Gbadolite,no Zaire?

Quase sempre falhou uma realboa vontade de todas as partesde chegar a um acordo em queninguém perdesse a face. E, ao

mesmo tempo, em dar umaoportunidade real ao eleitoradoangolano de se expressar nasurnas. O clima de desconfiançarecíproco foi-se agravando. Deum lado, defendiam-se interes-ses instalados, do outro, preten-dia-se conquistá-los. Pelo meio,sofriam sempre os mesmos. E

para agravar tudo, multiplica-vam-se interesses externos, des-

de políticos (Guerra Fria,apartheid) e económicos (a per-sistência da guerra civil propi-ciava a mineração ilegal e o trá-fico de diamantes, marfim e ma-deiras preciosas).

1 - Líder da empresa de segu-rança sul-africana ExecutiveOutcomes (EO), Eeben Barlow,explica operações ao Estado--Maior general angolano pararecrutas das Forças Armadas

Angolanas, em Cabo Ledo, a sulde Luanda, em 19942 - Membros da EO, numintervalo do seu trabalhocom as FAA3 -Mercenários da EO dão for-mação aos recrutas para asFAA em Cabo Ledo, 1994

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Depois dos acordos de Bicesse edas eleições de 1992, Savimbi re-jeitou os resultados do escrutínio

e a UNITA voltou à guerra. Tinhaacantonado os seus homens, ar-mados, no Zaire, enquanto as FAA

tinham desmobilizado a maioria dos

seus efectivos...Savimbi argumentoula 'necessida-

de' de ter mantido 'cartas ocultas'

com o que afirmou ser um jogo vi-ciado pelo Governo angolano e a

máquina do Estado, que em Ango-la era corpo e espírito do MPLA.Em poucos meses, a ONITA tomoumilitarmente a maioiiia do territó-rio angolano, confinando o Gover-no ao controlo de pouco mais do

que os centros urbanos. Foi nessecontexto que o então chefe de Es-tado Maior das Forças Armadas,general João de Matos, jogou umacarta decisiva, ao contratar os ser-

viços da empresa de segurança sul-

-africana Executive Outcomes

(EO). A EO nasceu do desmantela-mento do aparelho de segurançado final do apartheid. Era chefiada

por Eeben Barlow, antigo coroneldas forças especiais sul-africanas,e englobava operacionais de elitemilitar, com grande experiência de

guerra e acções de guerrilha. Mui-tos tinham participado no apoio ac-tivo à UNITA e na formação do te-

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mível batalhão 32 'Búfalo', uma das

unidades de combate mais expe-rientes e competentes, da era mo-derna, no continente. A EO deunas vistas aos olhos de Luanda,após ter sido contratada por umaempresa privada para recuperarinstalações petrolíferas na zona do

Soyo, que tinham 'caído' numarota de contrabando da UNITA.Um jornal sul-africano reportouque a EO fora contratada para ma-tar o líder da UNITA. Procurei Ee-ben Barlow em Pretória e ele deu--me a sua versão, que reportei atra-vés da Lusa (era nessa altura chefede delegação da Lusa em Joanes-

burgo). Meses mais tarde, recebium telefonema de Eeben Barlow:a sua empresa estava a ser acusa-da de mercenarismo, mas ele in-sistia que tudo se passava com li-

sura; fora contratado pelo Execu-tivo angolano para relançar acapacidade bélica das FAA e fez-

-me um convite irrecusável: 'Que-res vir connosco a Angola assistirà formação que estamos a dar? As-sim verificas por ti mesmo!'. E fui,com mais meia dúzia de corres-pondentes estrangeiros acredita-dos em Joanesburgo.

Foram para onde em Angola?Cabo Ledo (sul de Luanda), numabase de tropas especiais angola-nas onde a EO sediou a sua forma-ção de várias levas de recrutas.

Em Agosto de 1999, José Eduardodos Santos anunciou que o Gover-no não negociaria mais com a UNI-TA e, em 2000, declarou uma am-nistia a todos os que abandonas-sem a guerra e participassem nademocracia. Isto teve resultados?Teve uma resposta muito fracturan-te para a UNTTA. Por essa altura, o

cansaço de guerra já se sobrepunhahá muito, de ambos os lados, às pro-messas de um futuro melhor, feitas

a nível político. Por outro lado, as re-

velações de uma série de barbarida-des atribuídas a figuras próximasde Savimbi, nomeadamente o assas-

sínio de Tito Chingundji e vários fa-

miliares, provocaram cisões profun-das no partido e afastamentos, dis-

cretos, de figuras que temiam

retaliações por essa ruptura. Recor-do uma conversa que tive em Joa-

nesburgo com o 'biógrafo' de Savim-

bi, o jornalista escocês Fred Brid-gland, autor de Savimbi, a Key forÁfrica, o livro que serviu de credi-

bilização de Savimbi no mundo oci-

dental, ao cortar-lhe ligações umbi-licais a Pequim, ainda maoísta.

Bridgland ficou gélido ao saber do

assassínio de Chingundj i. De um dia

para o outro, passou de apoiante ir-redutível de Savimbi a um dos seus

mais agressivos críticos.

0 fim da Guerra Fria e o abandonodo apoio norte-americano à UNITA

contribuíram também para a paz em

Angola. Pode também falar-se, ao

longo desses anos, de uma vitóriadiplomática do Governo angolano?Os resultados falam por si. Inde-pendentemente dos erros de per-curso, de abusos graves cometidos

por todas as partes, o facto é que o

Governo angolano conseguiu, ao

longo de três décadas, transformarradicalmente a seu favor a posiçãoda Casa Branca relativamente aLuanda. A diplomacia age sobre

uma rede de interesses estratégi-cos, complexos, muitas vezes con-traditórios ao longo do tempo e, devalor moral e ético questionáveis.Mas o que conta, sempre, é o saldo

final; o atingir ou não dos objecti-vos que melhor servem o interessede quem a exerce ou a determina.

António MateusJornalista há 30 anos, é actual-mente coordenador geral de in-formação das antenas interna-cionais da RTP. Ao longo de dé-cada e meia, acompanhou noterreno as sucessivas rondasde negociações de paz em An-gola, a independência da Namí-bia, a retirada dos cubanos deAngola, a erradicação do

apartheide a eleição de NelsonMandela como primeiro Presi-dente negro da África do Sul.

Licenciado pela Universida-de Técnica de Lisboa, chefioudelegações da Lusa em Mapu-

to e Joanesburgo e foi o pri-meiro conselheiro de imprensada CPLP.

Fundou e dirigiu a revista por-tuguesa Focus, foi editor de po-lítica Internacional da RTPe èautor de dezenas de grandesreportagens de jornalismo de

investigação.É, ainda, autor de três livros

dedicados a África: 'Mandela -A Construção de um Homem','Selva Urbana' e 'Homens Vesti-dos de Peles Diferentes' e co--autor de 'Curtas Letragens eHistórias', cujas receitas rever-teram para projectos dedica-dos a crianças desfavorecidas.