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Onde estão os intelectuais na era da técnica? No mundo digital das redes sociais e do acesso generalizado ao conhecimento ainda espaço para o intelectual clássico? o pensador global e politicamente empenhado, ao estilo de Sartre, estará definitivamente extinto ou metamorfoseou-se em novas criaturas? 0 PÚBLICO não tem respostas, mas abre a conversa Luís Miguel Queirós

Press Review page - ULisboa · laco Zygmunt Bauman (1925-2017), criador do conceito de modernidade líquida-e que já em 1987 publica um célebre ensaio sobre a decadência dos intelectuais-,

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Page 1: Press Review page - ULisboa · laco Zygmunt Bauman (1925-2017), criador do conceito de modernidade líquida-e que já em 1987 publica um célebre ensaio sobre a decadência dos intelectuais-,

Onde estão os

intelectuais na

era da técnica?No mundo digital das redes sociais e do acesso generalizado ao conhecimento

há ainda espaço para o intelectual clássico? o pensador global e politicamente

empenhado, ao estilo de Sartre, estará definitivamente extinto ou metamorfoseou-se

em novas criaturas? 0 PÚBLICO não tem respostas, mas abre a conversa

Luís Miguel Queirós

Page 2: Press Review page - ULisboa · laco Zygmunt Bauman (1925-2017), criador do conceito de modernidade líquida-e que já em 1987 publica um célebre ensaio sobre a decadência dos intelectuais-,

i j dias numa qualquer li-L J vraria generalista, é qua-

se certo que encontrará,entre os títulos em destaque, obrascomo A Arte da Vida, do sociólogo po-laco Zygmunt Bauman (1925-2017),criador do conceito de modernidade

líquida - e que já em 1987 publicaum célebre ensaio sobre a decadênciados intelectuais -, ou A Sociedade do

Cansaço, em que o influente filósofo

alemão de origem coreana Byung-Chul Han sugere que vivemos já ho-

je numa versão refinada da distopiaque Orwell concebeu em 1984, ouainda Homo Deus, a sequela de Sa-

piens, do historiador israelita YuvalNoah Harari, com o seu aviso de quepodemos estar às portas de uma era"dataísta" que tornará a humanidadeirrelevante.

E se passarmos os olhos pelas listasde pensadores influentes que revistasde referência, como a inglesa Prospectou a americana Foreign Policy, vão

regularmente divulgando, também

tenderemos a persuadix-nos de que o

intelectual é hoje uma espécie mais

viçosa do que ameaçada, ainda que o

eclectismo destes inventários possaser desconcertante, misturando es-

colhas previsíveis, como o sociólogo

Júrgen Habermas ou o linguista e

activista Noam Chomsky, com figu-ras como o artista chinês Ai WeiWei,o romancista Mário Vargas Llosa ouo humorista Stephen Colbert, parareferir apenas alguns exemplos.

De onde vem, então, a sensação de

que não apenas se teria quebrado o

molde em que foram feitos os gran-des intelectuais da segunda metadedo século XX, como Jean-Paul Sar-tre (1905-1980), como estaríamosagora a assistir ao desaparecimentoda própria figura do intelectual? Umdos mais recentes indícios de que aquestão está mesmo na ordem do diafoi o facto de o ministro dos NegóciosEstrangeiros português ter sentido anecessidade de escrever um extenso

artigo significativamente intitulado"Será que as redes sociais estão subs-

tituindo os intelectuais?". Publicadohá duas semanas no diário brasileiroFolha de S. Paulo, o texto de Augusto

Santos Silva constitui uma verdadei-ra chamada às armas, apelando aosintelectuais para que não caiam noerro de ignorar as redes sociais, mas

também não deitem a toalha ao chão,abdicando de exercer a sua função crí-tica e permitindo que o p opulismo e a

desinformação vençam sem luta.Ouvindo intelectuais (ainda não

desapareceram t0d05. . . ) de diversas

áreas, da sociologia à literatura e das

ciências da comunicação às tecnolo-

gias digitais, o PUBLICO procuroutestar essa hipótese de que os intelec-tuais estariam a perder condições desobrevivência num mundo de acessovirtualmente instantâneo à informa-

ção e onde todos dispõem de arenasonde podem exprimir publicamen-te as suas opiniões. Há respostas (e

novas perguntas) para todos os gos-

tos, dos que enterram isem a menornostalgia o intelectual clássico aos

que julgam reconhecer em algunseconomistas actuais a mesma voca-

ção multidisciplinar e pulsão inter-ventiva que animou esses maitres à

penser dos anos 60 e 70, geralmenteoriundos da Filosofia.

Para o sociólogo Bruno Monteiro,co-autor do livro Intelectuais Euro-

peus no Século XX, a própria questão

pressupõe que "existe uma coisa, o in-

telectual, que todos sabemos o que é",

quando, na verdade, "ssmpre houvevisões diferentes do intelectual e do

relacionamento que este deveria man-ter com o mundo social". Se "algunseram a favor da implicação em cau-sas políticas", outros defendiam "umadistância higiénica do nundo", nota,lembrando que a discu ssão data do

próprio caso Dreyfus, quando surgiua noção de intelectual.

Não só o intelectual "é uma figu-ra eminentemente histórica", subli-

nha, como também a sua definiçãofoi sendo, em cada momento, objectode disputa. Uma discussão que per-siste e não é desinteressada. "Se se

perguntar a várias pessoas pelo fimdos intelectuais, os diagnósticos se-

rão sensíveis ao lugar que cada umadelas ocupa", profetiza Bruno Mon-teiro. "Para quem está liais próximodo intelectual tradicioral, confirmaresse fim seria aceitar a iminência dasua própria morte social", e por isso

terá interesse em propor definiçõesmais restritivas, ao passo que "os quenão se identificam com essa figura, ou

não podem sequer ter esisa pretensão,tenderão a defender fronteiras maisporosas".

Sem uma visão maniqueísta dos no-

vos meios digitais, o sociólogo acre-dita que estes têm gerado genuínos"produtores de ideias", cue "estão, isso

sim, fora das incubadoras tradicionaisde intelectuais". Mas também nãoaceita acriticamente que "o espaçovirtual das redes sociais seja neces-sariamente mais livre e democrático",

apontando, por exemplo, o risco agra-vado de se ter apenas "um simulacrode discussão aberta", porque o debate

passa muitas vezes a 'dispensar os

mecanismos de escrutínio das opini-ões ou de cotejamento com a realida-de" e a promover "bolhas" nas quais"ideias idênticas se vão confirmando

reciprocamente". E se ' é verdade queexiste maior circulação de ideias, o

hiato entre especialistas e leigos nem

sempre parece ter diminuído", sugere."Sabemos realmente o que implica o

algoritmo das aplicações que usamosdiariamente?"

Dylan: um Nobel sintomático

E não será possível que esse réquiempelo intelectual seja, no essencial, umamelancolia de esquerda? O colunista e

crítico literário Pedro Mexia acredita

que sim, porque "a direita teve sem-

pre uma certa resistência à figura do

intelectual e nunca lhe reconheceua centralidade de que este usufruiuà esquerda". Uma reserva que "tem

que ver com uma certa desconfiançapelo teórico e abstracto", mas tambémcom a hegemonia da esquerda entreos intelectuais clássicos. "O nome quevem logo à cabeça é Sartre, de quema direita não se sente seguramenteórfã."

José Bragança de Miranda, soci-

ólogo com vasta obra publicada nosdomínios da comunicação e da ciber-

cultura, acha que o "intelectual como

uma espécie de consciência crítica da

humanidade, alguém que paira sobre

o real e o abrange na sua totalidade,entrou em crise". O "exemplo máxi-mo" dessa estirpe teria sido Marx,que, "ali mesmo no Museu Britânico[em cuja biblioteca o autor de O Ca-

pital escreveu boa parte da sua obra],

conseguiu ver o passado, o presente e

o futuro da humanidade". Este tipo de

intelectual, diz, "dispersou-se numainfinidade de analistas e especialistas

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que, todos juntos, não chegam a fazerum intelectual dos antigos".

Quando depois aponta Sarte como"o último grande modelo do intelec-tual europeu" e afirma que "o que so-

brou foi uma infinidade de pequenosfuncionários televisivos", poderia co-

meçar a presumir-se que não só con-

firma como lamenta a morte desse

intelectual clássico. Mas não lamentade todo. "Já desapareceu tanta coisa,

porque é que o mundo fica pior se de-

saparecer o intelectual?", pergunta."O que importa é o pensamento, e

esse está hoje cada vez mais poten-te e excedeu as formas históricas da

economia, da filosofia, da sociologia,

que o tornaram uma manta de reta-lhos que se esperava que o intelectual

pudesse recoser."A esses "pensadores do total", Bra-

gança de Miranda censura-lhes "a ten-tativa de substituir por fantasmago-rias a complexidade da vida e do real".E acrescenta que "a desgraça começaquando sabem escrever". Se Sartrefoi o último dos grandes intelectu-ais, diz, "foi também porque escreviamuito bem, como hoje o Sloterdijk é

fundamentalmente um bom escritor".Assumindo que tem uma "visão mui-to positiva" das possibilidades cria-das pelas novas tecnologias, defende

que "quando deixamos de entregar a

responsabilidade de pensar a outros,temos a responsabilidade de pensarpor nós próprios."

Tanto Bragança de Miranda como

Bruno Monteiro citam curiosamente

o mesmo facto como um dos indíciosde que a percepção do intelectual es-

tá a mudar: a atribuição do Nobel daLiteratura a Bob Dylan, na qual o

primeiro vê "o sintoma de um pen-samento novo, que escapa tanto aosintelectuais como aos funcionáriosdos media".

Num mundo em que o pensamentoeconomicista tem vindo a tornar- se

particularmente influente, a ensaístaRosa Maria Martelo, da Faculdadede Letras do Porto, interroga-se se "o

que temos hoje de mais semelhante ao

perfil interventivo do intelectual clás-

sico" não será aquilo a que chama o

"economista crítico". Thomas Pikettyou Jacques Sapir, em França, seriam

possíveis exemplos, como o seria Ya-nis Varoufakis, que "teve a audáciade quebrar o protocolo de silêncio do

Eurogrupo para nos mostrar o lado

oculto das instituições europeias" e"está agora a desenvolver um partidotransnacional". Se tivéssemos de en-contrar "um equivalente actual parao plano de actuação em que Sartrese situou no seu tempo", o efémeroministro das Finanças grego seria umcandidato mais pertinente, sugere,do que outros aparentemente maisplausíveis.

Arlindo Oliveira, director do Insti-tuto Superior Técnico e autor do re-cente livro Mentes Digitais, concorda

que "as redes sociais e os mecanismos

de personalização de notícias fazemcom que as pessoas leiam mais as notí-cias e opiniões que estão próximas das

suas", criando as tais "bolhas " de quefala Bruno Monteiro. E reconhecendo

que as novas tecnologias reforçam o

imediatismo - "a coisa que se lê numminuto, o vídeo que se vê em cinco mi-nutos" -, defende que "o ideal é haverum equilíbrio entre os mecanismosmais profundos de aprendizagem",como ler livros ou frequentar cursos,e estes novos meios, "que trazem mui-to maior volume de informação, maisrica e mais rapidamente".

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Se ainda há intelectuais? ArlindoOliveira acha que sim, mas que "são

como sempre uma pequena fracção da

população, e talvez sejam hoje menosvisíveis". Já "esse intelectual clássicode que as pessoas sentem falta, talveztenha passado um pouco o tempo de-

le", até porque, observa, "a tecnologiaé hoje tão mais importante na vidadas pessoas, tem tanto mais impactona economia e nas questões sociais,

que um intelectual que não a entenda,pelo menos nas suas consequências,dificilmente poderá ser influente".

0 intelectual como moscardo

Um dos aspectos que explicam a"enorme diferença entre a posição do

intelectual público nos anos 60 e no

presente" é desde logo, sublinha o pro-fessor e ensaísta António Feijó, vice-reitor da Universidade de Lisboa, "o

acesso ao saber". E ilustra o argumen-to com uma anedota que pode bem serfactual: "Há 50 anos, o Eduardo PradoCoelho recebia na Livraria 1110 único

exemplar que chegava a Portugal do

último livro do Deleuze; agora qual-quer pessoa manda vir um Deleuze e

recebe-o em 48 horas."Sem esse contexto de "acesso limi-

tado ao conhecimento", é difícil que o

intelectual possa hoje ter no espaçopúblico o tipo de prestígio de que ou-trora gozou, defende. Mas se admite

que "alguma coisa se perde no desa-

parecimento de intelectuais que fala-vam com alguma autoridade", e que"a conversa, sendo hoje mais ampla, é

também mais barulhenta e desigual",saúda, todavia, o fim dessa "apropria-ção do monopólio da fala pública porum grupo restrito".

Apesar das mudanças que todos

reconhecem, há configurações dointelectual que a Bruno Monteiro"parecem manter pertinência, como

a figura socrática do intelectual co-mo moscardo, aquele que incomoda

a tranquilidade do mundo das apa-rências". Isto é, "alguém que cultivaa dúvida em si e nos outros, que ques-tiona o que é assumido como a ordemnatural das coisas".

Uma espécie ameaçada num meio

que parece estar sujeito a pressõesuniformizadoras pouco assumidas,mas nem por isso menos eficazes.António Feijó chama a atenção parao aparente paradoxo de a mediatiza-

ção nas grandes universidades estara levar a que "as pessoas tenham de

distinguir-se pelo inédito e procurema next big thing', ao mesmo tempo que"o novo que propõem é quase sempreconvencional, porque tem de se adap-tar a uma ortodoxia difusa".

O crítico de cultura António Guer-reiro não andará muito longe destas

preocupações quando constata, numdepoimento escrito, que "triunfou emtoda a linha" uma "estetização difusae generalizada em todos os domíniosda sociedade", à qual atribui "um efei-

to anestésico", e que coincide com "a

ascensão dos divulgadores e comis-sários, que são figuras do enfraque-cimento da crítica". A outros factoresmais frequentemente invocados paraexplicar o desaparecimento dos inte-lectuais Guerreiro soma-lhes "o papelque os media hoje desempenham nasocialização e legitimação da cultura"e "a transformação da universidade,hoje muito mais voltada para a tec-

nicização do saber e para a funciona-lidade pragmática".

É talvez ainda do mesmo fenó-meno que Rosa Maria Martelo falaao observar: "Quando o artista agelogo à partida como um fazedor decultura e os intelectuais dependemprofissionalmente da legitimação das

instituições", cria- se "um clima pro-pício à conformidade", contexto em

que, receia, "pode haver pouco espaço

para a voz dissonante do intelectualclássico". ¦