220
O DISCURSO ORAL CULTO

preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

�� ��������� ��� ����

Page 2: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

PROJETO DE ESTUDO DA NORMA LINGÜÍSTICA

URBANA CULTA DE SÃO PAULO

(PROJETO NURC/SP - NÚCLEO USP)

USP – UNIVERSIDADE DE SÃO PAULOReitor: Prof. Dr. Jacques MarcovitchVice-Reitor: Prof. Dr. Adolpho José Melfi

FFLCH – FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANASDiretor: Prof. Dr. Francis Henrik AubertVice-Diretor: Prof. Dr. Renato da Silva Queiroz

CONSELHO EDITORIAL ASSESSOR DA HUMANITASPresidente: Prof. Dr. Milton Meira do Nascimento (Filosofia)Membros: Profª. Drª. Lourdes Sola (Ciências Sociais)

Prof. Dr. Carlos Alberto Ribeiro de Moura (Filosofia)Profª. Drª. Sueli Angelo Furlan (Geografia)Prof. Dr. Elias Thomé Saliba (História)Profª. Drª. Beth Brait (Letras)

Endereço para correspondência

Comissão EditorialPROJETO NURC/SP – NÚCLEO USP FFLCH/USPÁrea de Filologia e Língua PortuguesaAv. Prof. Luciano Gualberto, 403sala 205 – Cidade Universitária05508-900 – São Paulo – SP – BrasilTel: (011) 818-4864e-mail: [email protected]

Compras e/ou assinaturasHUMANITAS LIVRARIA - FFLCH/USPRua do Lago, 717 – Cid. Universitária05508-900 – São Paulo – SP – BrasilTel: 818-4589e-mail: [email protected]://www.fflch.usp.brSERVIÇO DE DIVULGAÇÃO E INFORMAÇÃO

Telefax: 818-4612 – e-mail: [email protected]

Humanitas Publicações agosto/1999

PUBLICAÇÕESFFLCH/USP

FFLCH

Page 3: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

PUBLICAÇÕESFFLCH/USP

1999

������������������ �� ����������������������

������������������������� ����������������������������

������� ������������������ � ���!��"#��$�%�����������%��������

���������������������� ���������������������������������������������������������

ISBN: 85-86087-57-2

�� ��������� ��� ����

����������&��' (

������ !"

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO • FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

PUBLICAÇÕESFFLCH/USP

Page 4: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

D611 O discurso oral culto / Dino Preti (organizador) et al. 2. ed. – SãoPaulo, Humanitas Publicações – FFLCH / USP, 1999.– (Proje-tos Paralelos,V.2)

224p.

ISBN: 85-86087-57-2

Projeto de Estudo da Norma Lingüística Urbana Culta de São

Paulo - Projeto NURC/SP - Núcleo USP

1. Língua oral 2. Análise do discurso 3. Linguagem culta 4.Português - Língua - Brasil 5. Sociolingüística 6. Estilística I.

Preti, Dino, org. II. Título III. Série

CDD (19.ed.) 001.542 469.79861

Copyright 1999 da Humanitas FFLCH/USPÉ proibida a reprodução parcial ou integral,

sem autorização prévia dos detentores do copyright

Serviço de Biblioteca e Documentação da FFLCH/USPFicha catalográfica: Margarida Maria de Souza CRB/8-5809

1ª. edição 1997

Editor ResponsávelProf. Dr. Milton Meira do Nascimento

Coordenação editorial e capaM. Helena G. Rodrigues

DiagramaçãoSelma Mª. Consoli Jacintho

Revisãodos autores

HUMANITAS PUBLICAÇÕES FFLCH/USP

e-mail: [email protected].: 818-4593

Page 5: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

SUMÁRIO

Dedicatória .............................................................................................. 7

Apresentação ........................................................................................... 9

Breve notícia sobre os autores ............................................................ 15

Normas para transcrição dos exemplos .............................................. 19

1. A propósito do conceito de discurso urbano oral culto:a língua e as transformações sociais .............................................. 21Dino Preti

2. A propósito do conceito de discurso oral culto:definições e imagens ........................................................................ 35Diana Luz Pessoa de Barros

3. Imagens da norma culta, interação e constituição dotexto oral ........................................................................................... 55 Beth Brait

4. Purismo no discurso oral culto ...................................................... 79Marli Quadros Leite

5. A expressividade na língua falada de pessoas cultas ................... 115Hudinilson Urbano

6. Processos de formulação do texto falado: a correção e ahesitação nas elocuções formais ................................................... 141Leonor Lopes Fávero

7. Marcas do discurso de divulgação na linguagem falada culta ... 161Ieda Maria Alves

Page 6: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

6

O discurso oral culto, p. 5-6, 1999.

8. Preservação da face e manifestação de opiniões: um caso dejogo duplo ....................................................................................... 173Paulo de Tarso Galembeck

9. Considerações sobre a utilização de novas tecnologias naanálise do léxico do português falado culto de São Paulo .......... 195 Zilda Maria Zapparoli

Page 7: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

7

O discurso oral culto.

ESTE LIVRO É DEDICADO À MEMÓRIA DEMARGARET DE MIRANDA ROSA

Margaret nasceu no Rio de Janeiro, em 06 de janeiro de 1959, filhacaçula do desembargador Felipe Augusto de Miranda Rosa e LourdesAragão de Miranda Rosa. Ainda no ginásio se encantou com a línguaportuguesa, a cujo estudo se iria dedicar na Faculdade de Letras da UFRJ.Em 1980, casando-se com o engenheiro metalúrgico Sidney Costa LimaRaymundo, transferiu-se para a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letrasde Volta Redonda, onde foi monitora, lecionou e obteve do CNPq umaprimeira bolsa de iniciação científica para pesquisa, o campo que realmen-te a atraía e em que iria demonstrar seus altos dotes intelectuais.

Em 1985 iniciou a Pós-Graduação na Universidade de São Paulo,logo passando a integrar o Grupo das Terças do Projeto NURC/SP, o qualencetava a exploração dos textos orais que gravara e então editava. Nãosó participou da preparação dos volumes II e III de A linguagem faladaculta da cidade de São Paulo, como no IV, Estudos, foi co-autora deum capítulo, O turno conversacional. Sua dissertação de Mestrado (Mar-cadores de atenuação na linguagem falada culta da cidade de SãoPaulo – NURC/SP), que teve a orientação do Prof. Dr. Dino Preti e foiaprovada com louvor, valeu-lhe o Prêmio Moinho Santista Juventude de1990 e deu origem a Marcadores de atenuação, livro publicado em1992 pela Editora Contexto.

O trabalho do marido levou-a para Minas Gerais e, por algumtempo, à dedicação exclusiva ao papel de esposa e, depois, mãe de Thomaze Guilherme. Iniciava um curso de Formação Holística de Base pela Uni-

Page 8: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

8

O discurso oral culto.

versidade da Paz, em Brasília, quando surgiu a doença que em curtíssimoprazo a levaria, aos 02 de julho de 1996.

Breve e intenso clarão, Margaret deixa no coração dos companhei-ros de Projeto NURC/SP a lembrança de seu brilho, de sua seriedade notrabalho, e a saudade de sua presença amiga, alegre, cordial e serena.

Page 9: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

9

O discurso oral culto.

APRESENTAÇÃO

A boa receptividade do volume Análise de textos orais, publicadoem l993 e já em segunda edição, constituiu importante estímulo para estenovo livro da série PROJETOS PARALELOS: O discurso oral culto,coletânea de nove ensaios assinados também pelos pesquisadores do Nú-cleo USP do Projeto NURC/SP – Projeto de estudo da norma lingüísticaurbana culta de São Paulo.

Reunidos periodicamente em sua sede, no prédio de Letras daFaculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, esses pes-quisadores têm-se dedicado a discutir os mais variados temas ligados àanálise da língua oral.

Esta obra incorpora o resultado desses debates e os enfoques maisrecentes do estudo da língua falada.

Sua base teórica é, em geral, ainda, a Análise da Conversação, namaioria dos artigos, mas a ela vieram juntar-se outras linhas de estudo,como a Sociolingüística, a Análise do Discurso, a Estilística, a Informá-tica aplicada à análise lingüística, a Sociologia (em especial as idéias deGoffmann).

Numa visão geral dos trabalhos deste livro, diríamos que existemdois grandes blocos, o primeiro composto pelos quatro primeiros en-saios, que rediscutem, sob enfoques modernos, a conceituação de lin-guagem e falantes cultos; e o segundo, com os cinco trabalhos seguintessobre temas diversos, mas sempre ligados à língua oral.

Como a obra anterior, a documentação das idéias desenvolvidasfoi realizada com os materiais colhidos pelo Projeto NURC/SP e, parti-

Page 10: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

10

O discurso oral culto.

cularmente, com os três primeiros volumes da série A LINGUAGEMFALADA CULTA NA CIDADE DE SÃO PAULO (l986-l988).

No primeiro artigo, “A propósito do conceito de discurso urbanooral culto: a língua e as transformações sociais”, Dino Preti reflete sobreas transformações da sociedade brasileira nas últimas décadas e as suasconseqüências sobre a língua. O A. procura defender a idéia de que seprocessou, nas grandes comunidades urbanas, uma aproximação entre alíngua falada culta e a dos falantes comuns, entendidos como aqueles deinstrução média, mas que, como os primeiros, sofrem a influência dasmudanças sociais e, em particular, da “norma lingüística da mídia”. Emseu trabalho, mostra que há um processo em curso de uniformizaçãosocial da língua, em decorrência dos contextos interacionais da cidadegrande, onde se misturam freqüentemente os mais diversos tipos de fa-lantes, perdendo-se ou confundindo-se, nas interações, os índices de es-colaridade, como variável identificadora dos falantes.

Retomando o mesmo tema, mas agora sob o enfoque de “Defini-ções e imagens”; Diana Luz Pessoa de Barros analisa o conceito de con-versação culta e de falante culto, detendo-se a examinar também a atitu-de lingüística desse falante e a sua construção consciente do que a A.denomina de “imagem da norma culta”. Para a pesquisadora, embora“os responsáveis pelo Projeto NURC tenham definido o falante cultoapenas como falante instruído, não é somente esse o papel social que osfalantes constroem e expõem nos inquéritos do NURC.”

Partindo dos procedimentos de correção no discurso, mostra a A.como esses falantes “têm consciência da existência de normas lingüísti-cas e conversacionais, fabricam uma imagem dessas normas e, por con-seguinte, um discurso da norma na fala, e se constroem, a partir daí,como falantes cultos com funções sociais determinadas.”

O terceiro ensaio da obra, de autoria de Beth Brait, também abor-da o problema da conceituação de norma, visto sob o prisma das “ima-

Page 11: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

11

O discurso oral culto.

gens que os interlocutores têm da norma culta e de sua importância emalguns processos interativos específicos.”

A A. assume a posição crítica de que, se não se conseguiu, até omomento, chegar a um conceito mais preciso e fechado de norma urbanaculta na cidade de São Paulo, pelo menos em potencial, os diálogos eentrevistas constituem “um vasto material para o conhecimento das ima-gens da norma culta e de seus falantes, flagrados nas formas lingüísticasenunciativas e discursivas”.

O artigo, associando campos teóricos diversos (a Análise da Con-versação e a Análise do Discurso de inspiração bakthiniana), mostra comoé possível chegar-se à compreensão do discurso culto por meio da análi-se do imaginário dos falantes e da metalinguagem revelada nos seus textos.

O quarto artigo (e último que trata de tema ligado à conceituaçãodo discurso oral culto) examina a permanência do purismo lingüístico nalinguagem dos falantes cultos. Sua autora, Marli Quadros Leite, com-para usos puristas e antipuristas, em nível de léxico e de morfossintaxe,documentando-os com trechos de entrevistas gravadas pelo NURC/SP,ao lado de exemplos retirados de um discurso presidencial de FernandoHenrique Cardoso.

O parâmetro para aferir purismo/antipurismo será a metalingua-gem prescritiva de duas gramáticas da língua portuguesa, a de EvanildoBechara e a de Celso Cunha e Lindley Cintra.

Os cinco ensaios que se seguem têm como objetivo diversos pro-blemas ligados ao discurso oral culto ou, até mesmo, à sua forma deanálisá-lo por meio de técnicas informáticas modernas.

Assim, Hudinilson Urbano estuda “A expressividade na línguafalada de pessoas cultas”, convencido de que tal característica se encon-tra, particularmente, na linguagem da conversação.

Para o A. há dois tipos de traços e efeitos expressivos: “os relacio-nados à expressão dos elementos subjetivos e afetivos; e os veiculados àexpressão dos aspectos interacionais.”

Page 12: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

12

O discurso oral culto.

Para comprovar a presença de ambos no discurso culto, HudinilsonUrbano examina o texto de um diálogo gravado do NURC/SP, caracteri-zando muitos dos fenômenos expressivos e mostrando, por exemplo,como fatores interacionais agem sobre o falante no sentido de que estesmanifestem suas emoções e despertem nos interlocutores sentimentosanálogos.

Ieda Maria Alves escreve especificamente sobre problemas de ter-minologia, presentes no discurso dos falantes cultos. Sua análise é base-ada nas elocuções formas (EF) do Projeto NURC/SP, textos que repro-duzem aulas ou conferências. “Marcas do discurso de divulgação na lín-guagem falada culta” se detém nas características terminológicas de umtecnoleto que “visa à precisão semântica, à sistematização conceitual, àneutralidade emotiva, à economia formal e semântica”.

Um dos objetivos principais desse artigo é demonstrar que o traçopredominante do discurso de divulgação é a consciência que o falantetem de uma anterioridade, isto é, a existência de uma formulação e refor-mulação contínua, já que, como as ciências e as técnicas, todo conheci-mento se apóia em um processo preexistente, de tal forma que “a formu-lação é, de certa forma, uma reformulação.”

O ensaio de Paulo de Tarso Galembeck baseia-se no problema daauto-imagem do falante e discute os mecanismos de preservação da face,em textos de fundo opinativo ou judicativo de falantes cultos.

Partindo de idéias do sociólogo americano Goffmann e baseado,também, no clássico estudo de Brown e Levinson sobre face, o A. exa-mina vários diálogos do projeto NURC/SP, procurando mostrar estraté-gias de distanciamento e envolvimento dos interlocutores ou de defesa eresguardo de suas opiniões no ato de fala, estratégias que se evidenciamem marcas gramaticais, processos de reformulação (paráfrases) e tiposespecíficos de marcadores conversacionais (hedges).

Ainda a propósito de textos de elocuções formais (EF) gravadospelo NURC/SP, Leonor Lopes Fávero estuda o processo de correção e

Page 13: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

13

O discurso oral culto.

hesitação no discurso culto, mostrando as diferenças entre os dois tiposde fenômeno. No primeiro, analisa a auto-correção do tipo auto-inicia-das, nos níveis lingüístico (fonético-fonológico, lexical e morfossintático)e enunciativo.

Ligando a hesitação às disfunções, a A. analisa a sua ocorrêncianos mesmos níveis lingüísticos em que estudou a correção.

Apesar de referir-se a lingüistas conhecidos da linha da Análise daConversação para documentar sua linha teórica, como Marcuschi; Güliche Kotschi; Sacks, Schegloff e Jefferson; Chafe; entre outros; a A. reconhe-ce que o assunto constitui um amplo e aberto campo de pesquisa.

No último artigo desta obra, Zilda Maria Zapparoli realiza uma aná-lise lexical de nove entrevistas do Projeto NURC/SP. A idéia central de seutexto é mostrar como é possível trabalhar com o léxico desses inquéritos, apartir da “aplicação de técnicas computacionais que possibilitem a inter-secção homem/máquina nas etapas de armazenamento, processamento erecuperação qualitativa e quantitativa de informações lingüísticas.”

A A. baseia-se no método de análise de textos desenvolvido porAndré Camlong, do Centre de Recherches Iberiques Contemporaines(Universidade de Toulouse II) e pretende demonstrar a possibilidade dedescrever o léxico, utilizando técnicas computacionais de última geraçãoligadas a fundamentos lingüísticos, matemáticos e estatísticos. Conformeesclarece em seu artigo, sua descrição lexical pautou-se por “um métododescritivo, objetivo e indutivo de análise, que pressupõe trabalho em umambiente de tecnologia de ponta da Informática, mediante a utilizaçàodo programa Stablex.”

Pode-se sentir pela leitura dos nove ensaios desta obra a idéia quepresidiu sua elaboração, que é a de abrir novos campos de estudo e pes-quisa; demonstrar experiências originais, rever e rediscutir temas tradi-cionais, enfim, propor ao leitor o desafio de encarar criticamente certosconceitos lingüísticos sobre os quais muitos especialistas já teriam fe-chado questão, como, por exemplo, o de norma e discurso culto.

Page 14: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

14

O discurso oral culto.

Rastreando temas conhecidos da Análise da Conversação, daEstilística, da Análise do Discurso, da Sociologia, da Lexicologia; enve-redando pelo campo das experiências computacionais aplicadas à Lin-güística, O discurso oral culto pretende ser, acima de tudo, uma provo-cação ao debate científico, no sentido de abrir novos e desafiadores ca-minhos para a pesquisa lingüística.

D.P.

Page 15: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

15

O discurso oral culto.

BREVE NOTÍCIA SOBRE OS AUTORES

BETH BRAIT é doutora e livre-docente pela USP, onde é profes-sora aposentada. Nessa universidade, leciona como professora convida-da no programa de pós-graduação do Departamento de Lingüística daFaculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Atua também noprograma de pós-graduação do Departamento de Lingüística Aplicadada PUC/SP. Foi durante anos crítica literária do Jornal da Tarde. Possuivárias obras sobre problemas lingüísticos e literários, entre as quais arecente Ironia em perspectiva polifônica.

DIANA LUZ PESSOA DE BARROS, professora titular de Lin-güística na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USPfoi presidente da Associação Brasileira de Lingüística – ABRALIN. Temdesenvolvido e orientado pesquisas e publicou obras, principalmente nasáreas de Teoria e análise de Textos, Semiótica discursiva e Estudos delíngua falada. Principais livros: Teoria do discurso. Fundamentossemióticos; Teoria semiótica do texto; Dialogismo, polifonia,intertextualidade; Em torno de Bakhtin (em co-autoria com José LuizFiorin).

DINO PRETI, professor titular de Língua Portuguesa pela USP(aposentado) e, atualmente, professor de Língua Portuguesa da PontifíciaUniversidade Católica de São Paulo. É Coordenador Científico do Pro-jeto NURC/SP e seus trabalhos se encontram nas áreas de língua oral,vocabulário popular, além de incursões em áreas lingüísticas interliga-

Page 16: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

16

O discurso oral culto.

das, como a Sociolingüística e Análise da Conversação, Sociolingüísticae Literatura. Principais publicações: Sociolingüística – os níveis de fala,A linguagem proibida, A gíria e outros temas, A linguagem dos idosos.

HUDINILSON URBANO é doutor pela Faculdade de Filosofia,Letras e Ciências Humanas da USP e trabalha na área de Filologia eLíngua Portuguesa, desde 1972. Tem-se dedicado ultimamente ao estu-do da língua falada e suas relações com a língua escrita, com participa-ção ativa dentro do Projeto NURC/SP. Está também ligado ao ProjetoNacional de Gramática do Português Falado. Nos dois projetos realizoue publicou, individualmente ou em co-autoria, pesquisas sobre estratégi-as e mecanismos de produção do texto oral.

IEDA MARIA ALVES, doutora em Lingüística pela Universidadede Paris III, Sorbonne Nouvelle, leciona a disciplina de Filologia e LínguaPortuguesa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas daUSP. Seus trabalhos têm abordado a área do léxico, especialmente a cria-tividade lexical e a elaboração de dicionários terminológicos. É autora deNeologismo. Criação lexical.

LEONOR LOPES FÁVERO, doutora pela Pontifícia UniversidadeCatólica de São Paulo e livre-docente pela USP, trabalha como Professo-ra Associada do Departamento de Lingüística da Faculdade de Filosofia,Letras e Ciências Humanas da USP. Sua especialidade abrange os cam-pos da Lingüística Textual e dos Estudos de língua falada e história dasidéias lingüísticas. Obra mais recente: As concepções lingüísticas no sé-culo XVIII.

MARLI QUADROS LEITE é professora do Departamento de Le-tras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e CiênciasHumanas da USP, onde leciona Língua Portuguesa. Defendeu Mestradoe Doutorado em Semiótica e Lingüística, na mesma universidade, e suaespecialidade é o estudo da norma e uso lingüísticos. Além de artigos e

Page 17: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

17

O discurso oral culto.

ensaios, é autora do livro Metalingagem e discurso – a configuração dopurismo brasileiro, publicado pela Humanitas, USP.

PAULO DE TARSO GALEMBECK leciona Língua Portuguesana Faculdade de Ciências e Letras da UNESP – campus de Araraquara.Defendeu Mestrado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulosobre o tema: Um estudo da correferência entre sintagmas nominais doportuguês e, em 1990, escreveu seu doutorado que apresentou na USPsobre Um estudo dos elementos anafóricos em textos conversacionais –Projeto NURC/SP. Tem publicado um grande número de artigos sobreproblemas conversacionais em revistas e coletâneas científicas ligadas aáreas da Lingüística, mais comumente da Análise da Conversação.

ZILDA MARIA ZAPPAROLI é professora livre-docente pela USP,na área de Lingüística, onde atua no programa de pós-graduação da mes-ma universidade. Suas atividades se concentram na aplicação das técni-cas computacionais à pesquisa e análise lingüística.

Page 18: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

19

O discurso oral culto.

NORMAS PARA TRANSCRIÇÃO

OCORRÊNCIAS SINAIS EXEMPLIFICAÇÃO

Incompreensão de palavras ( ) do nível de renda ( )ou segmentos nível de renda nominal

Hipótese do que se ouviu (hipótese) (estou) meio preocupado(com o gravador)

Truncamento (havendohomografia, usa-se acentoindicativo da tônica e/outimbre) / e comé/ e reinicia

Entonação enfática maiúscula porque as pessoas re TÊMmoeda

Prolongamento de vogal econsoante (como s,r) ::podendo

aumentarpara ::::ou mais ao emprestareos...

éh ::: ... dinheiro

Silabação - por motivo tran-sa-ção

Interrogação ? e o Banco... Central...certo?

Qualquer pausa ... são três motivos... ou trêsrazões... que faze m com quese retenha moeda... existeuma... retenção

Comentários descritivostranscritor ((minúscula)) ((tossiu))

* Exemplos retirados dos inquéritos NURC/SP nº 338 EF e 331 D2

Page 19: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

20

O discurso oral culto.

OCORRÊNCIAS SINAIS EXEMPLIFICAÇÃO

Comentários que quebram aseqÜência temática daexposição; desvio temático - - - - ...a demanda de moeda - -

vamos dar essa notação - -demanda de moeda pormotivo

Superposição, simultaneidadede vozes ligando as A.na casa da sua irmã

linhas B. sexta-feira?A.fizem LÁ...B. cozinharam lá?

Indicação de que a fala foitomada ou interrompida emdeterminado ponto. Não noseu início, por exemplo. (...) (...) nós vimos que

existem...

Citações literais ou leiturasde textos, durante a gravação “ ” Pedro Lima...ah escreve

na ocasião... “O cinema fa-lado em língua estrangeiranão precisa de nenhumabaRREIra entre

nós”...

OBSERVAÇÕES:1. Iniciais maiúsculas: só para nomes próprios ou para siglas (USP etc.)2. Fáticos: ah,éh, ahn, ehn, uhn, tá (não por está: tá? você está brava?)3. Nomes de obras ou nomes comuns estrangeiros são grifados.4. Números: por extenso.5. Não se indica o ponto de exclamação (frase exclamativa)6. Não se anota o cadenciamento da frase.7. podem-se combinar sinais. Por exemplo: oh:::...(alongamento e pausa).8. Não se utilizam sinais de pausa, típicos da língua escrita, como ponto- e-

vírgula, ponto final, dois pontos, vírgula. As reticências marcam qualquertipo de pausa.

[

[

Page 20: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

21

O discurso oral culto.

A PROPÓSITO DO CONCEITO DE DISCURSOURBANO ORAL CULTO: A LÍNGUA E AS

TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS

Dino Preti

Quando se iniciaram as análises das gravações do Projeto NURC/SP, havia a expectativa de se encontrar nos diálogos e entrevistas a lin-guagem de falantes que correspondesse à classificação antecipada deculta. Porque na escolha desses informantes foi levada em conta suaformação universitária e essa variável – grau de escolaridade – constituiua base para a formação do corpus

Essas primeiras análises, no entanto, revelaram resultados ines-perados e até contraditórios. Considerando que as situações de intera-ção eram praticamente sempre as mesmas, isto é, gravações conscien-tes, monitoradas por um documentador, com fases mais espontâneas eoutras mais tensas, com variações de nível de intimidade entre os inter-locutores dos diálogos ou das entrevistas, os inquéritos acabaram reve-lando um discurso que se identificava, na maioria das vezes, com o dofalante urbano comum. E damos a essa denominação o sentido que lheatribuímos em outro momento (PRETI, 1994: 36-37), isto é, o de umfalante de um dialeto social dividido entre as influências de uma lin-guagem mais tensa, marcada pela preocupação com as regras da gra-mática tradicional, e uma linguagem popular, espontânea, distensa.Portanto, essa hipotética linguagem urbana comum comportaria opo-

Page 21: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

22

PRETI, Dino. A propósito do conceito de discurso urbano oral...

sições como a presença de uma sintaxe dentro das regras tradicionaisda gramática ao lado de discordâncias, regências verbais de tendênciauniformizadora, colocações dos componentes da frase justificadas pe-los elementos prosódicos, como no caso dos pronomes pessoais; abran-geria a precisão de um vocabulário técnico, ao lado da abertura de sig-nificado de vocábulos gírios; utilizaria vocábulos raros, de significa-ção precisa, específica, concomitantemente com vocábulos popularesde uso constante e de significado aberto.

Portanto, os componentes desse discurso urbano comum se ade-quariam às variações de interação a que estão sujeitos os falantes nascidades grandes, ajudando a expressar os vários papéis sociais que de-sempenham, respeitadas as características da situação interacional. Trata-se, pois, de um dialeto social que atende tanto aos falantes cultos comoaos falantes comuns, com menor grau de escolaridade.

Note-se que estudos sobre problemas de variação de linguagemprovocados por variação de situações interacionais já tinham demons-trado que falantes cultos podem utilizar uma variedade de registros quevai do formal ao coloquial, em função de suas necessidades de comuni-cação. E, mais: é a possibilidade dessa variação de registros que nospermite identificar o falante culto real e não seu conhecimento maior oumenor das regras da gramática tradicional, conhecimento de que se utili-zaria muito mais na língua escrita (Cf. PRETI, 1990: 4-5).

Um episódio histórico, nos Estados Unidos, o caso Watergate,com suas gravações secretas, revelou ao país inteiro, não só graves pro-blemas políticos, como também o fato de que o presidente americano –um falante culto – “tinha na intimidade de seu gabinete a mais vulgar daslinguagens”(ALÉONG, S. s/d: 265). No Brasil, o caso Ricupero mos-trou, também, como um ministro, de linguagem normalmente tensa emseu pronunciamentos, utilizava, numa conversa informal nos bastidoresde uma emissora de TV, esperando o momento de uma entrevista oficial,uma linguagem com marcas populares. O fato motivou o comentáriocurioso de um cronista social, que se revela um purista intransigente,esquecido da situação de comunicação em que ocorrera o diálogo:

Page 22: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

23

O discurso oral culto.

“Foi quase inacreditável ouvir Rubens Ricupero falar, na sua terrívelentrevista, duas vezes, pô, uma linguagem chula que não cabe numafigura tão religiosa quanto ele. Ou será que Ricupero não sabe que pôé abreviatura de “pô...” (Diário de Pernambuco, 6/9/94 – apudMARCUSCHI, 1996: 8)

Podemos afirmar que, hoje, pelo menos entre os estudiosos dalinguagem, há um concenso sobre esses problemas de variação de lin-guagem dos falantes cultos, isto é, aqueles que sabem escolher a varianteadequada, de acordo com as situações de interação.

Mas, se voltarmos à idéia de que as gravações do NURC/SP seprocessaram dentro de uma situação de interação quase sempre igual –exceção feita, talvez, das elocuções formais, realizadas para um públicoou então de alguns diálogos e entrevistas de que participaram interlo-cutores mais formais, pela própria personalidade ou pelas funções de queestavam investidos – podemos observar que, na grande maioria das ve-zes, a linguagem se identifica com a de falantes que estão fora do grupodos cultos e que falam normalmente a linguagem comum que se fala nacidade grande.

Como se explica que os falantes cultos não apresentem (comotodos desejariam) um discurso bem característico, em que a cultura lin-güística ficasse suficientemente comprovada?

Primeiramente, é preciso lembrar que, dentro do contexto socialdas últimas décadas do século, tem predominado, no Brasil, um processode uniformização cultural, em decorrência de um fenômeno político dedemocratização, acentuado, entre nós, nos anos noventa, mas já perfeita-mente observado nos fins da década de setenta. Esse processo vem es-tendendo a uma faixa cada vez maior da comunidade urbana as possibi-lidades de acesso à escola (e até mesmo à universidade), assim como lhetem proporcionado um acesso mais fácil e intenso à informação, às fon-tes de notícia, aos meios informatizados. Por outro lado, um lazer, decerta maneira, uniforme, preparado para atingir indistintamente todas asclasses sociais, vem aumentando de forma acentuada a presença damidia,na cultura contemporânea, levando a sua linguagem oral e escrita

Page 23: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

24

PRETI, Dino. A propósito do conceito de discurso urbano oral...

a tornar-se padrão até para estudos da norma escolar. E, talvez, pensandonisso, um lingüista brasileiro de linha gerativista, Mário Perini, produziusua Gramática descritiva do Português (1995), na introdução da qual serefere à idéia de elaborar uma gramática, considerando “o padrão geral,aquela variedade de língua que se manifesta de maneira uniforme nostextos técnicos e jornalíticos de todo o país”(p.26). Na verdade, esse “pa-drão geral não-literário” (id.) raramente aparece nos exemplos da obra,praticamente, todos eles, imaginados pelo autor. Mas é de se supor que anorma da midia tenha presidido a exemplificação criada por Perini. Ca-beria lembrar, a propósito, que a linguagem do jornal, mas também a dorádio, da TV,do cinema, do teatro e da propaganda, mesmo quando escri-ta, representa uma associação do oral com o escrito, valendo-se das es-truturas da fala espontânea, associadas aos preceitos da gramática tradi-cional, o que se tornou norma na linguagem urbana comum. Da mesmaforma, seu vocabulário é uma curiosa mistura de vocábulos tidos comocultos com vocábulos populares e gírios.

Também já se começa a propor para o ensino o texto oral comum,distante do literário, mas sob muitos aspectos seu inspirador imediato,como afirma Marcuschi:

“... já se deu há algum tempo uma passagem do uso do texto exclusiva-mente literário para o não literário, e agora começa, com certa timi-dez, a entrada do texto falado. É de supor que a compreensão dasformas da oralidade venha a lançar luz sobre uma série de usos lin-güísticos na própria Literatura, como no caso mais notório que é Gui-marães Rosa.” (MARCUSCHI, L.A, 1993:4)

Índice inequívoco dessas transformações culturais, a presença dalinguagem oral comum, até em contextos de ensino, demonstra uma novaatitude lingüística, em que está implícita a rejeição do caráter normativoinflexível da tradição gramatical e a aceitação do caráter normal do usovigente.

Um dos índices mais expressivos desse processo democratizadorda cultura e de sua representação na linguagem espontânea ocorre, em

Page 24: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

25

O discurso oral culto.

nível de léxico, com o uso crescente das formas gírias, nas mais variadassituações de interação, com os mais variados tipos de falantes (inclusiveos cultos). Não estaríamos exagerando, se disséssemos que esse vocabu-lário se expandiu consideravelmente, na época contemporânea, surgindoinclusive em situações de interação formal e constituindo, hoje, uma marcarepresentativa do léxico popular na linguagem urbana comum.

Esse painel cultural e suas conseqüências lingüísticas favorecemdecididamente a linguagem popular, aumentam-lhe o prestígio. Pode-seafirmar que muitas de suas formas expressivas, embora em desacordo coma tradição gramatical, se incorporaram definitivamente à linguagem oralurbana comum, incluindo-se também na fala das pessoas cultas e nas suasexpectativas com referência aos interlocutores, durante uma interação.Assim, por exemplo, não seria mais possível a um falante culto, em qual-quer tipo de situação interacional, evitar sempre o uso do pronome proclítico,em início de frase, como determina a gramática tradicional.

Em que poderíamos diferenciar os falantes urbanos cultos dos fa-lantes chamados comuns? Dependendo da situação de interação, podem-se identificar aqueles por apresentarem certas marcas provenientes desua cultura lingüística, em decorrência de seu grau de escolaridade. Nãosão certamente índices absolutos, específicos, pois, dependendo das cir-cunstâncias (convívio com falantes cultos, por exemplo), podem estarpresentes também nos falantes comuns e, com isso, estamos propondo arelatividade da classificação de dialetos sociais e registros.

Suponhamos alguns trechos de diálogos do NURC/SP, retiradosde cinco textos publicados pelo Projeto (CASTILHO, A.T./ PRETI, D.1987), envolvendo faixas etárias diferentes. Eles nos mostram a presen-ça de marcas de linguagem culta, porque revelam um nível alto de esco-laridade do falante, ao lado de marcas da linguagem popular, que se in-corporaram ao que denominamos de linguagem urbana comum.

São raros os momentos em que surgiram marcas de uma lingua-gem reveladora de uma baixa escolaridade do falante ou até de escolari-dade nula, embora haja ocorrências, como no inquérito 343 (falantes daprimeira faixa etária – 25/35 anos), em que se perde no sintagma umamarca de plural, restrita apenas ao artigo (“os nego”):

Page 25: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

26

PRETI, Dino. A propósito do conceito de discurso urbano oral...

“ F.1 então tem... parece que... um... alguma coisa que... passa da taxa

de um por cento de...de morte assim... força::da... o próprio... o

próprio conjunto MUda... a situação da coisa... de modo a elimi-

nar aquilo... enquanto não chegou naquilo é deixado os nego atua-

rem à vontade” (idem, 1485-1490)

Esses casos, porém, podemos levar à conta de uma pronúncia des-cuidada, muito mais do que a um hábito lingüístico constante do falante,o que é comprovado pelo restante da gravação.

Raros, também, são os casos de uma linguagem que se aproximeda escrita, mas existem. Os exemplos mais importantes estão no inqué-rito 255 (interlocutores da segunda faixa etária – 36/55 anos), em que osfalantes se formalizam, pois a interação une o diretor de um grande colé-gio de São Paulo e um de seus professores, no gabinete da diretoria:

“F.2 é assim quando a gente sabe hoje vai ter um filme bom...vai pas-

sar um filme que eu já assisti há dez anos atrás e que é uma re/

uma re/ é uma representação então eu até aviso o pessoal ‘olha

vamos ter hoje esse filme’então a gente fica junto assiste a essefilme... mas em termos assim de... assistir habitualmente não existe

isso...” (idem, 494 –500)

Esse diálogo apresenta-se tenso, formado de várias exposiçõeslongas, que mais se assemelham a depoimentos individuais. A interaçãoperde sua naturalidade, a tensão conversacional obriga os falantes a con-trolarem mais o que dizem. Nesse inquérito, observamos que um dosfalantes chega a empregar, em determinado momento a regência indiretado verbo assistir (no sentido de “estar presente”). Mas o uso lingüísticoacaba sendo mais forte e várias vezes essa mesma regência se transformaem direta, como é hábito na linguagem urbana comum, em São Paulo:

“F.2 geralmente o dia que a gente vai ao cinema é na sexta-feira à

noite... então a gente procura ir... assistir assim os filmes que a

gente considera melhor” (idem 438-440) (523-525)

Page 26: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

27

O discurso oral culto.

Nos textos escolhidos, o discurso dos falantes cultos pode ser iden-tificado pelas seguintes características:

– marcas de um vocabulário mais amplo, de menor uso na lingua-gem comum e mais preciso em sua significação:

“F.2 quanto mais você se distancia da natureza... mais você perde a

per-cepção de que as coisas ... se dão em ciclos...” (NURC/SP

343, D2, 841-843)

“F.1 eu sou um indivíduo:: muito despreendido... assim... de bens...

materiais... por uma questão de natureza... realmente me importo

muito pouco com aquilo que:: tenho... mas eu considero o auto-

móvel... face às condições do transporte urbano... como sendo

um dos bens... ahn... indispensáveis à minha vida...” (NURC/SP

255, D2, 182-187)

“F.1 como ela::... leva a vidinha dela talvez ela se encaminhe para isso

a não ser que haja outras aberturas hoje eu estive vendo... um

livro editado pelo::... Instituto Roberto Simonsen... vocês conhe-

cem? as profissões ah::: no segundo ciclo e terceiro ciclo... no

terceiro as profissões de menos duração e de mais duração... aque-

las mais rápidas não? que são as tecnológicas... então... diante

disso eu:: vislumbrei outras... coisas... para... aquele gosto dela

não só arquitetura não é?” (NURC/SP 360, D2, 1265)

“F.1 escandaLOsa:: no trajar e no no:: portar-se.

F.2 namorar

F.1 no namorar:: no portar-se... por sair com com um rapaz de braços

da::dos... enfim atitudes menos::... menos recatadas menos coi-

sas que eram consideradas... escandalo::sas... éh:: uma moça que

vivia na janela o dia inteiri::nho... e que dava bola para todo

mun::do então eram escandalosas” (idem, 241-248)

Page 27: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

28

PRETI, Dino. A propósito do conceito de discurso urbano oral...

“F.2 os chine::ses iriam dominar a Europa... uns::... duzentos anos as-

sim entre outras

Doc. quando... quando...

F.2 coisas mas aí já é muito elocubrativo né?” (idem, 1020-1023)

– uso de vocábulos técnicos:

“ F.2 é... é a moda... antigamente era::... conjuntura... agora é infra-estrutura e poluição ((risos))

F.1 exatamente... saneamento

F.2 saneamento...” (NURC/SP 62, D2, 200-203)

“F.1 bom... não sei... eu creio que sempre quando o o... a programa-

ção... procura atingir uma faixa quantitativa... em temos de mer-

cado... obviamente... aquela porção... que busca... uma melhor

qualificação dos programas acaba se frustrando naturalmente...”

(NURC/SP 255, D2, 568-573)

“F.1 problema emocional para a cidade seria... saneamento...

despoluição... seria analogia de terapia com o indivíduo...”

(NURC/SP 343, D2, 220-22l)

– estruturas que lembram as normas da gramática tradicional, re-metendo, portanto, à formação escolar do falante:

“F.2 é assim quando a gente sabe hoje vai ter um filme bom...vai pas-

sar um filme que eu já assiti há dez anos atrás e que é uma re/ uma

re/ é uma representação então eu até aviso o pessoal ‘olha vamos

ter hoje esse filme’então a gente fica junto assiste a esse filme...

mas em termos assim de... assistir habitualmente não existe isso...”

(NURC/SP 255, D2, 494-500)

Page 28: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

29

O discurso oral culto.

“F.2 então::: fulano de tal:: sempre foi:: um:: menino mais estudioso..

não é? tirou diploma com:::... menção honro::sa não sei o que

tarará... pega e mandam procurá-lo porque acham que ele tem...

condições para arranjar... e se ele não arranja tem muita gente que

fica chateada ou pelo menos desapontada... né? ((risos)) e::: não é

fácil ((risos)) (NURC/SP 360, D2, 1140-1146)

“F.1 cresceu muito depois da guerra... imigração... e::... do NORte so-

bretudo do Norte... então aí mudou mudaram-se os hábitos mu-

dou... aquela...” (NURC/SP 396, D2, 623-626)

“F.2 agora há muita peruca

F.1 os coques

F.2 tem peruca

F.1 havia os que as que gostavam de cachos havia quem gostava de

coque havia quem gostava de franjinha...” (idem, 1960-1965)

“F.2 quanto mais você se distancia da natureza... mais você perde a

percepção de que as coisas... se dão em ciclos...” (NURC/SP 343,

D2, 841-843)”

“F.2 desenvolvimento em que sentido?

F.1 crescimento... o Brasil diz-se basicamente subdesenvolvido e diz-

se também que ele está crescendo...” (idem, 499-500)

Ao mesmo tempo, podemos observar que esse discurso incorpo-ra, talvez para efeito expressivo, mas certamente por influência do usocomum, várias marcas da linguagem popular como, por exemplo:

– gíria e vocábulos de intensificação expressiva, de efeito hiper-bólico:

“F.2 para viVER o que ele acreditava que era o papel de um policial

numa linha de verdade... entende? eu achei muito bacana...”

(NURC/SP 255, D2, 523-525)

Page 29: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

30

PRETI, Dino. A propósito do conceito de discurso urbano oral...

“F.2 uhn o nazismo matou... dez milhões

F.1 então... o nazismo... matou:: uma cacetada de:: judeus... mas tam-

bém não passa de um por cento... e:: já podaram o nazismo

F.2 uhn uhn (NURC/SP 343, D2, 1480-1485)

“F.1 me preocupo com o humano... se embananando ele sozinho com

as coisas que ele cria... sabe porque você tinha civilizações anti-

gas... mas... o que ela criava o que ela produzia... era muito me-

nos... do que uma... de hoje em dia cria certo?” (idem, 1034-1039)

“F.1 então os homens ainda estão num esquema bem bolado... que

não não foram eles que criaram mas... deixa eles irem para a fren-

te...” (idem, 1422-1424)

“F.1 escandaLOsa:: no trajar e no no:: portar-se.

F.2 namorar

F.1 no namorar:: no portar-se... por sair com com um rapaz de braços

da::dos... enfim atitudes menos::... menos recatadas menos coi-

sas que eram consideradas... escandalo::sas... éh:: uma moça que

vivia na janela o dia inteiri::nho... e que dava bola para todo

mun::do então eram escandalosas” (NURC/SP 396, D2, 241-248)

A ocorrência de vocábulos gírios, se testada no discurso dos fa-lantes cultos, hoje, vinte anos depois da maioria dessas gravações, certa-mente seria bem mais intensa, porque a gíria adquiriu, nas décadas 80 e90, um prestígio crescente, surgindo até em interações de natureza maisformal.

– mistura de tratamentos gramaticais tu/você:

“F.2 acho que::... sabe você vai saber controlar se for consciente a tuacriação se souber por que você está fazendo aquilo” (NURC/SP

343, D2, 1435-l437)

Page 30: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

31

O discurso oral culto.

– pronomes pessoais ele e suas variações como objeto direto:

“F.1 então os homens ainda estão num esquema bem bolado... que

não não foram eles que criaram mas... deixa eles irem para a

frente...” (idem, 1422-1424)

“F.1 depois à tarde volta aquele mesmo serviço certo? de atender os

clientes éh:: ora mostrando os equipamentos ora fazendo demons-

tração... eh ora levando eles na nossa filial e:: mostrando o equi-

pamento in loco...” (NURC/SP 62, D2, 109-113)

– formas irregulares do futuro do subjuntivo confundidas com oinfinitivo:

“F.2 carioca já é mais folgado carioca::... não quer saber de gravata

não quer nada aqui em São Paulo se você não por uma gravata

você não é bem recebido (idem, 154-156)

– formas onomatopaicas:

“F.2 então::: fulano de tal:: sempre foi:: um:: menino mais estudioso..

não é? tirou diploma com:::... menção honro::sa não sei o que

tarará... pega e mandam procurá-lo porque acham que ele tem...

condições para arranjar... e se ele não arranja tem muita gente que

fica chateada ou pelo menos desapontada... né? ((risos)) e::: não

é fácil ((risos))” (NURC/SP 360, D2, 1140-1146)

– italianismos da linguagem ítalo-brasileira de São Paulo, típicomarcador conversacional, ainda muito em uso em certos contextos fala-dos:

“F.2 então::: fulano de tal:: sempre foi:: um:: menino mais estudioso..

não é? tirou diploma com:::... menção honro::sa não sei o que

tarará... pega e mandam procurá-lo porque acham que ele tem...

Page 31: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

32

PRETI, Dino. A propósito do conceito de discurso urbano oral...

condições para arranjar... e se ele não arranja tem muita gente que

fica chateada ou pelo menos desapontada... né? ((risos)) e::: não é

fácil ((risos)) (idem, ibidem)

– discordâncias entre verbo e sujeito posposto:

“F.1 alguns clubes italianos ainda era relativamente modestos... por-

que::... milionário aqui só existia nessa ocasião três ou quatro...”

(NURC/SP 396, D2, 530-533)

– regências de verbo de movimento com preposição em:

“F.1 depois à tarde volta aquele mesmo serviço certo? de atender os

clientes éh:: ora mostrando os equipamentos ora fazendo demons-

tração... eh ora levando eles na nossa filial e:: mostrando o equi-

pamento in loco...” (NURC/SP 62, D2, 109-113)

Observe-se, também, que, num mesmo momento do texto (nummesmo turno), ocorrem marcas de uma linguagem que revela suas liga-ções com um pretenso nível culto e um nível popular, variações que seencontram, assim, no que denominamos de uso lingüístico comum. Osexemplos são mais freqüentes em nível lexical. Voltemos a um dos textoscitados:

“F.l escandaLOsa:: no trajar e no:: portar-se.

F.2 namorar

F.3 no namorar:: no portar-se... por sair com com um rapaz de bra-

ços da::dos...enfim atitudes menos::... menos recatadas menos

coisas que eram consideradas... escandalo::sas... éh;:: uma moça

que vivia na janela o dia inteiri::nho... e que dava bola para todo

mun::do então eram escandalosas” (NURC/SP 396, 24l-248)

Mas podem ocorrer também em nível de estruturas gramaticais:

Page 32: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

33

O discurso oral culto.

“F.2 agora há muita peruca

F.l os coques

F.2 tem peruca” (idem, 1960-1962)

De sorte que, considerados esses fatos, poderíamos admitir a hi-pótese de que o grau de escolaridade (nível universitário), variável bá-sica para a escolha dos falantes cultos no Projeto NURC, embora ajude aidentificação, não é suficiente para marcar um discurso próprio dos fa-lantes cultos que, até em situação de gravação consciente, revelaram umalinguagem que, em geral, também pertence aos falantes comuns.

Assim, se pretendêssemos encontrar um discurso que revelassemarcas mais constantes e uniformes do nível de escolaridade do falanteculto, isto é, seu grau universitário, só poderíamos surpreendê-lo em si-tuações formais, tensas, como, de certa forma, acontece com as elocuçõesformais gravadas pelo Projeto.

Em síntese, o que o corpus do Projeto NURC/SP tem-nos mostra-do (e isso já na década de 70) é que os falantes cultos, por influência dastransformações sociais contemporâneas a que aludimos antes (funda-mentalmente, o processo de democratização da cultura urbana), o usolingüístico comum (principalmente, a ação da norma empregada pelamídia), além de problemas tipicamente interacionais, utilizam pratica-mente o mesmo discurso dos falantes urbanos comuns, de escolaridademédia, até em gravações conscientes e, portanto, de menor espontanei-dade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALÉONG, Stanley (s/d) Normes linguistiques, normes sociales, une perspective an-thropologique. In: BÉDARD, E. et MAURAIS, Jacques (éd.) La norme linguis-tique. Paris, Le Robert.

CARADEC, François (1988) N’ayons pas peur des mots. Paris, Larousse.

Page 33: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

34

PRETI, Dino. A propósito do conceito de discurso urbano oral...

CASTILHO, A.T. e PRETI, D. (org.) (1987) A linguagem falada culta na cidade deSão Paulo: materiais para seu estudo. São Paulo, T.A.Queiroz/FAPESP, vol.II(Diálogos entre dois informantes).

MARCUSCHI, Luiz Antônio (1993) O tratamento da oralidade no ensino de língua.Recife, Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística da UFPe.

________. (1996) “Língua falada e o ensino de Português” – Minicurso durante o 6ºCongresso brasileiro de língua portuguesa. São Paulo, Pontifícia UniversidadeCatólica de São Paulo. (mimeografado)

PERINI, Mário A. (1995) Gramática descritiva do Português. São Paulo, Ática.PRETI, Dino (1990) Mas, afinal, como falam (ou deveriam falar) as pessoas cultas?

São Paulo, O Estado de S.Paulo, Suplemento Cultura, 529, ano VII, 22-9-90,p.4-5.

________. (1994) Sociolingüística – os níveis de fala. 7.ed. São Paulo, Editora daUniv. de São Paulo.

Page 34: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

35

O discurso oral culto.

A PROPÓSITO DO CONCEITODE DISCURSO URBANO ORAL CULTO:

DEFINIÇÕES E IMAGENS

Diana Luz Pessoa de Barros

Muitas são as perspectivas que podem ser escolhidas para o exa-me do conceito de discurso oral culto. Farei apenas algumas considera-ções provisórias sobre o caráter “culto” dos textos orais, a partir dosinquéritos do Projeto NURC-SP.

Essas reflexões estão organizadas em dois blocos: o primeiro so-bre o conceito de norma culta na fala; o segundo, sobre as noções deconversação culta e de falante culto, e sobre a imagem que os falantes doProjeto fazem da norma culta.

1. Conceito de norma culta na fala

Dicotomias de diferentes ordens podem ser arroladas para aconceituação de norma culta: igualdade vs. superioridade funcional, nor-mal vs. normativo, uso vs. norma, sistema vs. norma, etc. Utilizarei nesteestudo a distinção do canadense Stanley Aléong (s/d) entre normas ex-plícitas e normas implícitas:

“La norme explicite comprend cet ensemble des formes linguistiquesayant fait l’objet d’une tradition d’élaboration, de codification et de

Page 35: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

36

BARROS, Diana Luz Pessoa de. A propósito do conceito de discurso ...

prescription. Elle se constitue selon des processus sociohistoriques (...).Codifiée et consacrée dans un appareil de réference, cette norme estsocialement dominante en ce sens qu’elle s’impose comme l’idéal àrespecter dans les circonstances qui appellent un usage réfléchi oucontrôlé de la langue, c’est-à-dire dans les usages officiels, dans lapresse écrite et audiovisuelle, dans le système d’enseignement et dansl’administration publique.

Quant aux normes implicites, il s’ágit de ces formes qui, pour êtrerarement l’objet d’une réflexion consciente ou d’un effort de codification,ne représentent pas moins les usages concrets par lesquels l’individuse présente dans sa société immédiate.” (p.261-262).1

A lingüística preocupa-se com o funcionamento e a organizaçãodas várias normas implícitas, procurando descrevê-las e explicá-las, semvalorizá-las de modo diferente. Se é esse o interesse do lingüista, o fan-tasma da norma explícita paira sobre os estudos da linguagem, já que osusuários da língua estão sempre muito preocupados com problemas de“correção” lingüística, com os “belos” e “bons” usos da linguagem. Há,portanto, uma norma lingüística explícita, legitimada em cada sociedade.

Aléong, para precisar o conceito de norma explícita, que se con-funde com o de norma culta, propõe que se considerem três pontos:

1 – a existência de um discurso da norma que classifica os fatoslingüísticos em bons, corretos, errados, belos, etc, de que de-corre o caráter prescritivo da norma culta;

1 “A norma explícita compreende o conjunto das formas lingüísticas que tenham sido ob-jeto de uma tradição de elaboração, de codificação e de prescrição. Ela constitui-se se-gundo processos sócio-históricos (...). Codificada e consagrada em um aparelho de refe-rência, essa norma é socialmente dominante, no sentido de que ela se impõe como o ideala respeitar nas circunstâncias que pedem um uso refletido ou controlado da língua, isto é,nos usos oficiais, na imprensa escrita e audiovisual, no sistema de ensino e na administra-ção pública.Quanto às normas implícitas, trata-se dessas formas que, mesmo sendo raramente objetode uma reflexão consciente ou de um esforço de codificação, não deixam de representaros usos concretos por meio dos quais o indivíduo se apresenta na sociedade imediata.”

Page 36: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

37

O discurso oral culto.

2 – a remissão a um aparelho de referência, isto é, a usuários deautoridade e prestígio em matéria de linguagem e a academi-as, gramáticas e dicionários;

3 – a difusão e imposição na escola, na imprensa e na administra-ção pública.

À primeira vista, pelas características apontadas, é possível consi-derar que a norma explícita diz respeito à modalidade escrita.

Minha intenção é examinar como esses três componentes da defi-nição de norma explícita se aplicam à língua falada, verificar se há umanorma explícita para a fala e, nesse caso, se escrita e fala são “regidas”por uma mesma norma ou por normas diferentes.

Antes de abordar cada um dos pontos de caracterização da norma,farei uma observação mais geral sobre as modalidades da escrita e da fala.

1.1 Norma explícita na escrita e na fala: primeira reflexão

Os usuários da língua elaboram construções imaginárias diferentessobre a escrita e a fala e suas normas. Em estudo sobre redações de ves-tibular (BARROS, 1985) pude perceber claramente essas diferenças.Obrigados a escrever um texto, os vestibulandos procuraram “preencher”o espaço da prova com estruturas e vocabulário que acreditavam pró-prios da escrita, em oposição ao caráter “prosaico” da fala. Usavam as-sim, em geral, a ordem indireta nas frases – “tinha eu cinco anos” – eléxico menos usual e até erudito, precioso – “adentrar” em lugar de “en-trar”, “haver” ou “possuir”, em vez de “ter”, “anfitriã” e não “dona-de-casa”, “recinto” por “sala” e assim por diante. O caso mais impressio-nante era o do verbo “ter”, coloquial demais para a escrita e, por isso,sistematicamente substituído: “Eu possuía um cachorrinho”, “Quandoeu havia sete anos”, “Eu havia uma boneca” e assim por diante.

Há, portanto, da parte dos usuários, uma certa consciência de queescrita e fala são regulamentadas por regras do bem falar ou escrever,embora eles não tenham nenhuma clareza sobre elas.

Page 37: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

38

BARROS, Diana Luz Pessoa de. A propósito do conceito de discurso ...

1.2 Aparelho de referência e de divulgação e imposiçãoda norma

Começarei pela questão dos aparelhos de referência e de difusãoda norma. Quando se afirma que a norma explícita deve ser referendadapor usuários de autoridade e de prestígio e por dicionários, gramáticas eacademias, já se aponta que a norma explícita não se diferencia das de-mais por “qualidades” lingüísticas, mas por elementos sócio-históricos:necessidades de organização política, de unificação nacional, de domí-nio de grupos ou de classes. Em outras palavras, a norma explícita (ou“culta”) é a norma dos locutores de autoridade e prestígio. São elesque respondem pelos usos literários e sagrados da língua, pelos usos dasclasses dominantes.

Essa ambigüidade da norma culta, ao mesmo tempo uma entre asdemais normas e a norma do prestígio e da autoridade, presidiu também aorganização do material do Projeto NURC. O Projeto não diz em nenhummomento que considera como norma culta a dos falantes “literatos” ou ados falantes da classe dominante, mas sim a dos “falantes cultos”. O ter-mo “culto” deve ser aí entendido em uma de suas acepções, a de “instruí-do”. Assim os informantes do Projeto NURC devem ter nível universitá-rio. Pode-se dizer que são falantes que na escola “aprenderam” ou “confir-maram” a norma explícita, já que a escola é um dos lugares estratégicos desua difusão. Dessa forma, ao mesmo tempo que se reconhece a “igualda-de” intrinsecamente lingüística das diferentes normas, aceita-se a diferen-ça “extrínseca” que existe entre elas e que assegura a uma dessas normasum papel, nesse caso também lingüístico, diferenciado na sociedade, comoa norma dos falantes “cultos” ou “instruídos”.

Essa remissão ao “falante culto” – de prestígio, de autoridade, per-tencente a certas classes, com instrução – ocorre tanto para a escrita quantopara a fala. Não há, porém, para a fala um aparato institucionalizado dereferência e de difusão como há para a escrita – dicionários, gramáticas,academias. Não se pode pensar que faltem à sociedade e sobretudo àsclasses dominantes os meios para organizá-los ou que elas estejam abrindomão de um de seus instrumentos de poder. Seria ingenuidade acreditar

Page 38: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

39

O discurso oral culto.

nisso. Ao contrário, essa “ausência” de remissão institucional não deve sertomada como uma falta e sim como uma das características da norma ex-plícita na fala, a que possibilita ao falante “culto” maior variedade de usos.É a capacidade de variação e não o “purismo” de um único uso que separa-rá de um lado os falantes cultos, de outro os que “não sabem falar”, não sãomaleáveis, não se adaptam às necessidades dos diferentes momentos esituações. Essas questões serão abordadas no item que segue.

1.3 O discurso da norma

Apontarei apenas alguns elementos que permitem que se afirmeque há um discurso da norma para a modalidade da fala. Na última partedeste estudo, examinarei mais detalhadamente o assunto ao tratar da no-ção de “conversação culta” e da imagem que os falantes do Projeto fa-zem da norma.

O discurso da norma é aquele que classifica os fatos de linguagemcom base em categorias éticas e estéticas e a partir de critérios que nãosão lingüísticos e sim sócio-históricos, como vimos. De um lado, opõe-se o bom (correto) ao mau (incorreto) uso da língua, de outro, o belo aofeio na linguagem (Vejam-se, por exemplo, Le bon usage de Grevisse ouos “belos usos” da corte francesa).

A primeira decorrência desse discurso é o caráter prescritivo danorma explícita, divulgada e imposta na escola, na imprensa, na televi-são, na administração pública e referendada por dicionários, gramáticase academias. A segunda decorrência é que se confundem o ético e oestético e que ambos, estreitamente vinculados a fatores sociais e cultu-rais, mostram-se como “naturais”. Em outras palavras certos usos sãonaturalmente bons e belos. Apagam-se as relações de classe ou de ins-trução apontadas.

Para fugir um pouco do estritamente lingüístico, tomo como ilus-tração questões de bom e de mau gosto, em relação ao sentido do gostoou paladar. Aprendemos em dadas culturas a apreciar certos sabores e a

Page 39: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

40

BARROS, Diana Luz Pessoa de. A propósito do conceito de discurso ...

não gostar de outros e, rapidamente, passamos a considerar esses gostoscomo “naturais”. Assim se os chilenos ou sicilianos apreciam enorme-mente, e como prato requintado, os ouriços do mar, a maior parte dosbrasileiros é incapaz de comê-los: são amargos, com gosto de iodo.

O dicionário define amargo como um sabor desagradável. Masdesagradável para quem? Uma propaganda de Vermouth diz: “Para quemgosta do sabor amargo”, como se dissesse, “para quem tem bom gosto”.Há, sem dúvida, estéticas gustativas diversas do amargo, do agridoce, doazedo, mas elas não têm o mesmo papel que a “norma explícita do gosto”assume na organização social. Quando o dicionário diz que amargo é umsabor desagradável está, assim, anulando a distinção entre natureza ecultura, “naturalizando” o bom gosto ou o gosto bom, que é cultural.

Esse processo de “naturalização” da norma explícita oculta não sóo modo de diferenciação das normas, como a própria existência de nor-mas diferentes, pois leva muitas vezes à negação das demais possibili-dades lingüísticas ou gustativas, em favor de uma delas. É o caso doprofessor que diz ao aluno: “Isso não é português”. Chega-se assim àlinguagem marcadamente ideológica do preconceito: “isso não é por-tuguês”, mesmo que milhões de pessoas se comuniquem dessa forma,mas não o grupo de prestígio; “isso não é comida”, ainda que povosinteiros apreciem tais sabores. Não se diz mais que uma norma ou gostoé melhor ou pior do que outra, diz-se que só ela é, só ela existe.

Em relação à fala pode-se afirmar que há um discurso da norma,ou seja, que há usos na fala que são considerados “corretos” ou “erra-dos”, “bons” ou “maus”, “belos” ou “feios”, e não apenas na escrita.Basta que nos lembremos da enorme campanha contra Lula nas eleiçõespresidenciais baseada, em grande parte, no fato de que ele não “fala bem”.

Se é fácil reconhecer a existência de um discurso da norma nafala, é mais complicado mostrar que discurso é esse e quais as conse-qüências da ausência, já apontada, de um aparato institucionalizado dereferência e de difusão da norma na fala.

As decorrências são principalmente um certo “abrandamento”da norma e a possibilidade de maior variação de usos. Em outros

Page 40: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

41

O discurso oral culto.

termos, há um discurso da norma na fala, mas esse discurso, além deprescrever, permite um leque maior de variações. Nesse sentido, asgramáticas servem de referência sobretudo para a escrita, mas men-cionam, às vezes, que certos usos são possíveis, aceitáveis ou maisfreqüentes na fala.

Celso Cunha, em sua Gramática da língua portuguesa, citaMartinez de Aguiar, que diz, sobre colocação pronominal: “...deixou alíngua falada no Brasil de dizer “vem-me ver”(...) para dizer “vem me-ver”...”(1972: 132).

É também Celso Cunha quem afirma que: “Vossa Senhoria é tratamento muito raro na língua falada.”(p.293);

ou que:“Na fala vulgar e familiar no Brasil é muito freqüente o uso do prono-me ele(s), ela(s) como objeto direto (...)”(p.290);

ou ainda que:“Esta última construção [“visar”com objeto direto], condenada poralguns gramáticos, é a dominante na linguagem coloquial brasileira etende a dominar também na língua literária (...)” (p.494).

As citações acima apontam três questões para reflexão: em pri-meiro lugar, que as prescrições são mais rígidas para a escrita do que paraa fala; em segundo lugar, que o exame das passagens das gramáticas emque se faz referência aos usos possíveis na fala contribuirá para que seestabeleçam os limites dessa “aceitabilidade”, pois nem tudo é permitidona norma culta da fala; em terceiro lugar, que as noções de usos aceitá-veis ou possíveis podem levar à conclusão de que há uma única normaexplícita para as modalidades da fala e da escrita, uma mesma norma queprescreve os “bons” usos para ambas.

Parece-me mais plausível e econômico considerar assim que háuma única norma explícita para a escrita e para a fala e que essa norma seaplica mais rigidamente à escrita. Daí decorrem certas características dafala que podem ser examinadas nos inquéritos do Projeto NURC:

Page 41: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

42

BARROS, Diana Luz Pessoa de. A propósito do conceito de discurso ...

a) o discurso da norma aceita e mesmo prescreve para a fala umespaço maior de variação do que para a escrita: o falante cultoé, em uma das definições possíveis, aquele que usa a línguaadequadamente em diferentes situações de discurso e de inte-ração verbal (Veja-se o estudo de Dino Preti, neste mesmo li-vro);

b) há limites para as variações prescritas e aceitas em todos osníveis de descrição lingüística (O exame das gramáticas mos-tra que, embora se considere aceitável na fala o uso de “vemme-ver”, em nenhum momento é referendado o emprego de“nós vai” ou de um certo tipo de vocabulário. O falante cultonão usará concordância ou termos “fora da norma da fala”, noprimeiro caso, por razões éticas que dizem respeito ao bom eao correto, no segundo, por motivos, em geral, estéticos do“belo uso”, que impedem o emprego de palavras ditas “vulga-res”. Os limites da norma na fala são distantes, afastados, masexistem, e o exame de gramáticas e dicionários e de inquéritoscomo os do NURC permitirá que se saiba a partir de que pontoo falante deixa de ser culto.);

c) os falantes cultos têm consciência da existência de uma normaexplícita da fala, que estabelece o bom e o mau, o belo e o feio,e também do papel dos diferentes registros que utilizam noespaço aceitável e possível de variação.

A norma explícita da fala tem assim algumas das marcas gerais danorma explícita: existe um discurso da norma com as características acimaapontadas; essa norma é referendada por falantes de autoridade e de pres-tígio, mas não há um aparelho institucionalizado de referência e de im-posição da norma na fala.

Na última parte deste estudo, serão apresentados, a partir de resul-tados do exame dos procedimentos de reformulação por correção (BAR-ROS e MELO, 1990; BARROS, 1990; BARROS, 1994), alguns dostraços que definem uma conversação culta e um falante culto e a imagemque os falantes do Projeto têm da norma.

Page 42: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

43

O discurso oral culto.

2. Os falantes cultos e as imagens da norma

Os procedimentos do texto falado, como a paráfrase, a correção oua inserção constroem os vários papéis da conversação – papéis conversa-cionais, papéis sociais, papéis “individuais” (BARROS, 1996). Os papéissociais na conversação não decorrem apenas do conhecimento das posi-ções sociais dos falantes, mas se constroem nos processos discursivos comomecanismos persuasivo-argumentativos do texto falado. Entre os papéissociais encontra-se, sem dúvida, o de “falante culto”, tal como definidoanteriormente, isto é, falante de prestígio, que conhece as regras da conver-sação e da língua, que emprega adequadamente suas possibilidades de va-riação, que tem a função de referendar os “bons usos” da linguagem. Mes-mo que os responsáveis pelo Projeto NURC tenham definido o “falanteculto” apenas como “falante instruído”, não é somente esse o papel socialque os falantes constroem e expoem nos inquéritos do NURC.

Os resultados de estudos sobre os procedimentos de correçãomostram como se constrói esse papel social de falante culto, isto é, apon-tam que os falantes do Projeto têm consciência da existência de normaslingüísticas e conversacionais, fabricam uma imagem dessas normas e,por conseguinte, um discurso da norma na fala, e se constroem, a partirdaí, como falantes cultos com funções sociais determinadas.

Examinei em outros trabalhos os procedimentos de correção emdois tipos de inquéritos do Projeto NURC, os diálogos entre informantese as entrevistas. Retomo neste estudo, com as finalidades acima arrola-das, alguns dos resultados obtidos e a eles acrescento dados decorrentesde análises parciais desses procedimentos no terceiro tipo de inquéritodo Projeto, as elocuções formais (aulas e conferências).

A construção discursiva do falante culto depende, a meu ver, deduas estratégias, principalmente, a que diz respeito às regras conversa-cionais no sistema de tomada de turnos e de estabelecimento das rela-ções interacionais entre sujeitos; a que se refere às normas lingüísticas dafala, em sentido mais restrito. Os dois itens que seguem – “conversaçãoculta” e “imagens da norma”– tratarão dessas questões.

Page 43: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

44

BARROS, Diana Luz Pessoa de. A propósito do conceito de discurso ...

2.1 Conversação culta

Nos trabalhos mencionados, o procedimento de reformulação porcorreção foi definido, a partir de GÜLICH e KOTSCHI (1987), comoum ato de reformulação textual que tem por objetivo levar o interlocutora reconhecer a intenção do falante e garantir, dessa forma, a intercom-preensão. Foram examinados dois tipos de correção, a reparação, que dizrespeito às “infrações” conversacionais, e a correção propriamente dita.

As reparações e um certo tipo de correção (a heterocorreção oucorreção do outro) constituem lugar privilegiado de exame das regras daconversação, de como se estabelecem as relações de interação entre osinterlocutores, do modo de construção, enfim, da “conversação culta”,“própria” de falantes cultos.

A reparação deve ser entendi da como correção de violações dasregras conversacionais. Essas regras mudam culturalmente e admitem,além disso, em uma mesma cultura, variações aceitáveis para o falanteculto. O modo, portanto, como o falante infringe as regras da conversa-ção ou corrige as infrações próprias ou de seu interlocutor é uma dasformas de construção do seu papel social de falante culto.

Nos inquéritos do NURC duas particularidades do uso das repara-ções devem ser mencionadas: a ausência de reparações claras e o uso deformas implícitas de reparação.

Não ocorrem casos de reparação explícita nos dois tipos de inqué-ritos do Projeto NURC que foram examinados. Como apontei nos outrostrabalhos, dessa ausência decorrem os papéis conversacionais dos diálo-gos: laços interacionais frouxos, tanto nas entrevistas, quanto nos diálo-gos entre informantes; relaxamento da tensão conversacional; preocupa-ção dos falantes em impressionar bem a “audiência” (documentador,analistas, etc.), a quem em última instância eles se dirigem. Dessa ausên-cia, resultam também “traços” do falante e da conversação culta: o fa-lante procura não violar as regras da conversação ou, quando as infrigeou quando é o seu parceiro que o faz, esforça-se por não repará-las demodo explícito, por ocultar as reparações de que faz uso. As reparações

Page 44: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

45

O discurso oral culto.

mais diretas tornam a conversação mais tensa interacionalmente, fazemmais fortes os laços entre interlocutores, sejam eles cooperativos ou deconflito. Tem-se aí, portanto, um traço das conversações cultas: elas nãodevem expor a agressividade ou a excessiva aproximação das relaçõesinteracionais. A demonstração de fortes “paixões” não caracteriza, emprincípio, o “falante culto”, que constrói assim relações conversacionaismenos tensas, mais “mornas” no texto falado. Nos inquéritos do NURC,pelas demais razões acima apontadas, os falantes levam às últimas con-seqüências essa tarefa de construção do papel social de sujeito culto.

As reparações utilizadas serão, por conseguinte, sempre repara-ções implícitas ou reparações voltadas para o bom funcionamento daconversação.

Nos diálogos entre informantes podem ser consideradas repara-ções implícitas ou mascaradas as sobreposições de vozes um pouco maisacirradas e as disputas pela palavra e pelo turno. No exemplo que segue,L1 toma a palavra várias vezes sem que o turno lhe tenha sido atribuídoe L2, ameaçado de perder a vez, não abre mão do turno, ora falando emvoz sobreposta, ora aproveitando as pausas do outro para recuperá-lo:

L2- (...) pelo menos na... a... ah por si...

fisicamente né?

[

L1- isso já se cuidam

[

L2- de higiene de:: trocar de rou::pa todo esse negócio

(quer dizer) já é alguma coisa que elas fazem porque...

[

L1- ah ajuda demais né?

[

L2- já ajudam bem...

L1- agora tem sempre

Page 45: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

46

BARROS, Diana Luz Pessoa de. A propósito do conceito de discurso ...

L2- um já ajuda o outro

L1- numa família grande há sempre um com tarefa de supervisor...(...)

(INQ.360,p.140-141, l.179-190).

A insistência de L2 em manter a vez pode ser considerada umaforma de reparar a infração do outro, que toma a palavra sem que ela lhetenha sido atribuída conforme as regras. Da mesma forma, as tentativasde L1 de assumir o turno podem ser vistas como uma forma de acusar ooutro de monopolizar a conversa. Não há, porém, reparações explícitasdo tipo de “deixe eu falar”, “fique quieto, que estou falando”, “agora é aminha vez, você já falou muito” e assim por diante, impróprias na con-versação culta.

Nas entrevistas ocorrem reformulações voltadas para o bom fun-cionamento da conversação e para a construção dos papéis conversacio-nais de entrevistador e entrevistado. Assim, o entrevistado pode corrigiro modo de perguntar do entrevistador ou julgar improcedentes certasquestões suas, da mesma forma que o entrevistador pode procurar reesta-belecer a organização própria da entrevista quando o entrevistado dela seafastar. Essas reparações, por se referirem às regras de um tipo de con-versação e aos papéis atribuídos aos que dela participam, são aceitas nasconversações cultas:

a) Inf- (...) agora quem sabe se vocês PREcisando ... melhor ... ou melhor

insistindo em determinadas perguntas eu poderia dizer mais alguma coisa

(INQ 250, p. 134, l. 54-56).

O informante, nesse inquérito, corrige as perguntas do entrevistador.

b) Inf- (...) então teria que saber o que é que vocês preferem ... e o que é que

vocês preferem?

Doc- não vamos supor que a gente omita a opinião gente:: educada (como eu

sou) ((risos)) assim “não:: qualquer coisa ser:: ve e tal e não sei que” ... e

o que que você prepararia se a gente deixasse ... tudo a seu encargo?

(INQ 235, p. 128, l. 351-356).

Page 46: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

47

O discurso oral culto.

No trecho, o entrevistador corrige o entrevistado para reparar asregras da conversação, pois o entrevistado invertera os papéis da entre-vista, ao fazer perguntas ao entrevistador: “e o que é que vocês prefe-rem?”

Conforme foi já mencionado, as heterocorreções, ou seja, as cor-reções em que o falante corrige os “erros” de seu parceiro, contribuemtambém para a construção do papel de falante culto. As conclusões vãona mesma direção das obtidas no exame das reparações.

Há também poucas heterocorreções nos inquéritos do NURC emgeral, e nas entrevistas as heterocorreções são praticamente inexistentes.Essa ausência do procedimento, além de concorrer para a construção dospapéis conversacionais em que as relações de interação são frouxas oupouco tensas, contribui também para a constituição do papel social defalante culto. O participante da conversação que não corrige seu interlo-cutor apresenta-se como um falante pouco agressivo ou polêmico, queraramente se expõe, mais distante e menos apaixonado. Esse “distancia-mento” dos interlocutores é, sem dúvida, uma das características da con-versação culta, uma de suas “normas”. Os poucos empregos deheterocorreções nos diálogos entre informantes são em geral atenuados:

L2- (...) em cidade grande o metrô é uma forma ... de comunicação né? de

levar e trazer ...

L1- transporte né?

L2- [pessoas é ...

L1- não é bem comunicação é transporte. (INQ 343, p. 27, l. 422-427)

L1- ao repetir o ato de corrigir L2, utiliza o atenuador “bem”– “não é bemcomunicação é transporte”–, diminuindo assim a “agressividade” de sua

correção.

Em lugar da heterocorreção, o falante culto usa com freqüência,sobretudo nas entrevistas, as “negações polêmicas” (Ducrot, 1983), comas quais “corrige” a voz do outro, pressuposta ou subentendida, mas sem-pre identificada com a da audiência. Esse procedimento não aparece de

Page 47: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

48

BARROS, Diana Luz Pessoa de. A propósito do conceito de discurso ...

modo explícito no diálogo e não produz o efeito menos culto ou maisrude do conflito, da “briga”.

Vejam-se os exemplos que seguem:

a) Inf- (...) então nós ligávamos muito e:: não é caro é relativamente barato ...

(...) (INQ 137, p. 80, l. 355-356)

O informante contesta a voz implícita da “audiência” ou do sensocomum que diz que telefonemas do exterior são caros.

b)L2- que não aceitaria ... não isso não é fofoca de:: de bastidor mas eu::

( ) você é autêntica ... e ele se negou ele disse que NÃO receberia se não

fosse ... o:: ... se não recebesse TAMbém o Ponteio.

O falante corrige uma voz implícita, que se identifica com o públi-co, com o senso comum, e que afirma que essa história da premiação dePonteio é fofoca de bastidor.

Em resumo, a conversação culta faz uso peculiar dos procedimen-tos de correção e caracteriza-se por: ausência quase total de reparações ede heterocorreções; emprego de reparações apenas quando garantem asregras de certos tipos de conversação e os papéis conversacionais quecabem a cada locutor; uso implícito ou ocultamento dos procedimentosde reparação e de heterocorreção (por meio de recursos de sobreposiçãode vozes e de negação polêmica); atenuação das heterocorreções utiliza-das. Desses usos, decorrem os traços típicos da conversação culta ou sua“norma” e os elementos caracterizadores do papel social de falante culto.As conversações cultas terão, assim, por norma o pouco envolvimentodos falantes, um certo “distanciamento” entre eles, a ausência explícitapor um lado de conflitos ou de polêmicas, por outro de aproximaçõesapaixonadas, o ocultamento das relações mais “passionais”, a fraca ten-são conversacional e o caráter “morno” ou “frouxo” dos laços interacio-nais. Constrói-se dessa forma o falante culto, distante, elegante, condes-cendente, ao menos na aparência explicitada da conversação. Essa con-

Page 48: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

49

O discurso oral culto.

descendência na condução do diálogo abre caminho para que o falanteculto use as variações lingüísticas com tranqüilidade.

2.2 Imagens da norma

Duas são as expectativas quando se examinam os procedimentosde correção nos inquéritos do NURC, se o ponto de vista escolhido é odo caráter culto dos diálogos e dos falantes:

a) a primeira é a de que as correções ocorram muito raramente oumesmo não ocorram, pois os falantes cultos “erram” menos;

b) a segunda, a de que as correções assinalem a preocupação dosfalantes cultos com os “bons” e “belos” usos da linguagem.

Ambas as expectativas se fazem a partir de uma concepçãolimitadora da noção de reformulação por correção e da de “erro”, qualseja, a de correção de “erro gramatical”, a de “erro” como violação danorma lingüística padrão. Se não é essa a concepção de “erro” e de corre-ção que norteou os estudos dos procedimentos de reformulação, deve-se,porém, reconhecer que esses “erros” também existem e são corrigidos naconversação.

As duas expectativas acima apontadas confirmam-se nos inquéri-tos do NURC: os “erros gramaticais” são pouco freqüentes e a correçãodeles mostra a preocupação dos falantes com os “bons” usos da língua e,portanto, consciência da norma.

São as correções fonético-fonológicas e morfossintáticas que mar-cam, em geral, a preocupação do falante com o bom uso da língua, coma correção gramatical. Nos diálogos entre informantes ocorrerampouquíssimos casos de correção de “erros” fonético-fonológicos (3%) enão houve esse tipo de correção nas entrevistas e nas elocuções formais.Entre os “erros” morfossintáticos corrigidos, também em pequeno nú-mero nos diálogos entre informantes (8%), aconteceram principalmenteenganos de concordância.

Os exemplos de correção que seguem apontam, alguns explicita-mente, a preocupação do falante com o uso “correto” de sua fala:

Page 49: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

50

BARROS, Diana Luz Pessoa de. A propósito do conceito de discurso ...

a) L2- quando você vai pra:: para Aliança né? (INQ 343, p. 18, l. 30) (D2).

Corrigiu-se foneticamente uma forma menos culta do bem falar:“pra” por “para”.

b) Inf- mas muitas das manifestações que poderiam me interessar aqui já foram

... eu creio ... tratados por out/ tratadas por outras pessoas (INQ 156, p.

72, L. 8-11) (EF).

O falante interrompeu sua fala para “consertar” a concordância,ainda que de termos distantes: “manifestações (...) tratados” por “mani-festações (...) tratadas”.

c) e talvez no decorrer da palestra fique esclarecido ... fique esclarecida a mi-

nha opção (INQ 156, p. 72, l. 4-5 (EF).

De novo, correção de concordância.

d) Inf- (...) a gente quer saber agora quais as razões que faz ... que fazem com

que ... ah ... (estou) meio preocupado (com o gravador) ((risos)) ... éh ...

faz fazem ... éh::: ... ah quais as razões que levam as pessoas a ... (...)

(INQ 338, p. 34, l. 10-14) (EF).

Nesse trecho das elocuções formais o falante preocupado com acorreção gramatical corrige “faz” por “fazem”, vacila quanto ao acertode sua correção e termina por substituir “faz fazem” por “levam a”.

Observe-se ainda nos exemplos arrolados a preocupação do fa-lante em corrigir-se – não deixa para o seu parceiro a tarefa de corrigi-lo– e em fazê-lo rapidamente, mesmo que, para tanto, precise interrompersua fala. Explica-se a predominância já mencionada de autocorreçõesautoiniciadas e no mesmo turno em que o “erro” foi cometido.

Bem mais freqüentes nos inquéritos examinados, os casos de corre-ção semântico-pragmática marcam, muitas vezes também, a preocupa-

Page 50: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

51

O discurso oral culto.

ção do locutor com o seu papel social de falante culto. São aquelas corre-ções, principalmente, em que um termo mais “comum” é substituído poruma palavra menos usual ou mais técnica ou, ao contrário, aquelas emque um termo “mais difícil” ou técnico é trocado por uma palavra maiscomum. Neste caso, o emprego do termo mais “culto” foi uma amostrade “bem falar” e sua substituição por uma palavra mais usual ocorreudevido à necessidade didática de se fazer entender pelo público. Essevaivém entre o mais usual e o mais raro é também, como já se apontou,uma das características do falante culto, a de saber usar as variaçõeslingüísticas para seus objetivos de comunicação.

Os exemplos abaixo, extraídos das elocuções formais, mostramas duas possibilidades:

a) passa-se nestas correções de um registro mais “coloquial” –“começa”, “década”, “penetra” – para um mais “culto” – “reinicia”, “de-cênio”, “intruso”:

Inf- (...) ... e comé/ e reinicia o ... ciclo ... (...) (INQ 338, p. 36, l. 94).

Inf- (...) ... na década no no de/ no decênio de trinta ... (...) (INQ 156, p. 73, l.

33-34).

Inf- (...) ... o filme brasileiro foi considerado ... um::: ... um penetra ... um::

inTRUso ... (...) (INQ 153, p. 90, l. 6-8).

b) substitui-se, nas correções que seguem, um registro mais“culto”– “reserva”, “bateria de”, “complexas”– por um uso mais “colo-quial” da língua – “dinheiro no bolso”, “porção de”, “difíceis”;

Inf- (...) ... de tal forma que ela sempre tenha alguma reserva algum dinheiro

no bolso ... (...) (INQ 338, p. 35, l. 56-57).

Inf- (...) é:: se aplicar assim uma bateria de testes ... uma porção de testes (...).

(INQ 377, p. 24, l. 53-54).

Inf- (...) e as outras tarefas vão se tornando mais:: complexas ... mais difí:: ceis

... (...) (INQ 377, p. 25, l. 99-100).

Page 51: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

52

BARROS, Diana Luz Pessoa de. A propósito do conceito de discurso ...

O último aspecto a ser apontado sobre a imagem que os falantesdo Projeto constroem da norma é o de que muitos usos que não sãoaceitos pelas gramáticas aparecem nas falas examinadas e não são corri-gidos ou, ao contrário, “bons usos”, segundo a gramática, são “conserta-dos”. Algumas hipóteses explicativas podem ser apresentadas para o pri-meiro caso: esses usos estão dentro das possibilidades de norma culta nafala, ainda que não sejam aceitos na norma explícita da escrita; essesusos assinalam, em sincronia, que mudanças lingüísticas estão ocorren-do, tal como ensinam Jakobson e Labov; os erros são idiossincrasias dofalante. Por sua vez, as correções de “bons usos gramaticais”, do segun-do caso, entram no rol das hipercorreções e mostram, uma vez mais, apreocupação do usuário em “falar bem”.

Vejam-se os exemplos abaixo sobre a questão:

a) Inf- (...) ... vocês:: se lembram que naquele primeiro texto que nós vimos

aqui a respeito do estilo ... há:: ... havia ... três ou quatro citações (...)

(INQ 405, p. 50, l. 103-105).

Há, no trecho, uma correção “gramatical” de imprecisão do tem-po verbal, mas não se corrige “se lembram que”, muito provavelmenteuma regência já aceita na fala, pelos falantes cultos, e, quem sabe, umamudança lingüística em movimento.

b) Inf- (...) Gulgamilsh tem um amigo que chama-se (INQ 124, p. 59, l. 59).

Inf- (...) mas antes de René Descartes houve um outro que chamava-se (INQ

124, p. 60, l. 86).

As duas colocações pronominais ocorrem com o mesmo falante.

Retomo, agora, para terminar, as conclusões, provisórias, que pudeir apontando no decorrer do estudo: a da existência de uma norma explí-cita para a fala, a mesma que se apresenta para a escrita, mas com maio-res possibilidades ou aceitabilidade de variação, no caso da fala; a daconstrução, por meio dos procedimentos discursivos da conversação, do

Page 52: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

53

O discurso oral culto.

papel social de falante culto e, em decorrência, da conversação culta; ada formação de uma “imagem da norma”, de um discurso da norma, deque os falantes cultos têm consciência.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALÉONG, Stanley (s/d) Normes linguistiques, normes sociales, une perspectiveanthropologique. In: BÉDARD, E. et MAURAIS, J. (éd.) La norme linguistique.Paris, Le Robert.

BARROS, Diana Luz Pessoa de (1985) A festa do discurso. Teoria do discurso e análisede redações de vestibulandos. Tese de livre-docência. FFLCH-USP.

________. (1990) Procedimentos e funções da correção na entrevista. Anais do XI Con-gresso da ALFAL. Campinas. /no prelo/.

________. (1994) Procedimentos de reformulação: a correção. In: PRETI, Dino (org.)Análise de textos orais. São Paulo, FFLCH-USP.

________. (1996) Procedures and resources in the construction of the oral text. Text. /noprelo/.

________. & MELO, Zilda M.Z.C. (1990) Procedimentos e funções da correção naconversação. In: PRETI, Dino (org.). A linguagem falada culta na cidade de SãoPaulo. vol. IV Estudos – São Paulo, T.A.Queiroz/FAPESP.

BÉDARD, E. et MAURAIS, J. (éd.) (s/d). La norme linguistique. Paris, Le Robert.CASTILHO, A.T. e PRETI, D. (1986) (org.) (1987) A linguagem falada culta na cida-

de de São Paulo: materiais para seu estudo. São Paulo, T.A.Queiroz/FAPESP, vol.I. Elocuções formais.

________. (org.) (1987) A linguagem falada culta na cidade de São Paulo: materiaispara seu estudo. São Paulo, T.A.Queiroz/FAPESP, vol. II. Diálogos entre dois in-formantes.

CUNHA, Celso Ferreira da (1972) Gramática da língua portuguesa. Rio de Janeiro,MEC- FENAME.

GÜLICH, Elisabeth & KOTSCHI, Thomas (1987) Les actes de reformulation dans laconsultation. La dame de Caluire. In: BANGE. P. (org). (1985) L’analyse desinteractions verbales. La Dame de Caluire: une consultation. Actes du Colloquetenu à L’Université Lyon 2, du 13 au 15 décembre, Berna.

MARCUSCHI, Luiz Antônio (1986) Análise da conversação. São Paulo, Ática, sériePrincípios.

PRETI, Dino e URBANO, Hudinilson (orgs.) (1988) A linguagem falada culta na cida-de de São Paulo: materiais para seu estudo. São Paulo, T.A.Queiroz/FAPESP, vol.III. Entrevistas (Diálogos entre informante e documentador).

Page 53: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

55

O discurso oral culto.

IMAGENS DA NORMA CULTA, INTERAÇÃO ECONSTITUIÇÃO DO TEXTO ORAL

Beth Brait

Introdução

Integrado a uma pesquisa maior, voltada para as particularidadesarquitetônicas do texto oral1 e para os mecanismos interacionais que aíatuam, este estudo apresenta algumas formas de presença de imagens danorma culta, selecionadas no material do Projeto NURC-SP/USP (CAS-TILHO & PRETI, 1987), e que estão explicitadas por meio de diferentesformas de metalinguagem, traduzidas em aspectos lingüísticos, discursi-vos e enunciativos. Presentes no processo de constituição de um textooral, essas formas serão tratadas basicamente a partir do relacionamentoentre tópicos e subtópicos (FÁVERO, 1993), destacando-se as que sãomotivadas pelas imagens que os interlocutores têm de norma culta e desua importância em alguns processos interativos específicos.

1 Refiro-me aqui à pesquisa pessoal, ligada ao PROJETO/NURC-SP/USP, e cujos resulta-dos parciais podem ser conferidos no texto “O processo interacional” (BRAIT, 1995:189-214) e na comunicação “Estratégias interacionais e configuração do texto falado” (noprelo) apresentada no XXI Congresso Internazionale di Linguistica e Filologia Romanza– Università di Palermo, Facoltà di Lettera e Filosofia, Centro di Studi Filologici eLinguistici Siciliani, setembro de 1995)

Page 54: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

56

BRAIT, Beth. Imagens da norma culta, interação e constituição ....

A perspectiva que sustenta a pesquisa deriva de fundamentos teó-ricos fornecidos pela Análise da Conversação articulada com alguns tó-picos da Análise do Discurso de inspiração bakhtiniana, o que significa,em última análise, eleger um corpo de conceitos não contraditórios,advindos das duas vertentes para, através deles, reconhecer, descrever eanalisar os processos interacionais, no caso a metalinguagem reveladoradas imagens da norma culta, que contribuem para a constituição datextualidade no discurso oral.

Da Análise da Conversação serão considerados, como em traba-lhos anteriores, conceitos que dizem respeito aos seguintes aspectos: tra-ços caracterizadores dos participantes, tanto de um ponto de vistasociocultural quanto lingüístico; situação de comunicação em que o diá-logo se dá e que ao mesmo tempo vai sendo constituída por esse eventointeracional; estratégias interacionais que se vão instaurando em funçãodo texto organizado em parceria; papel da metalinguagem na arquiteturae na economia geral do texto.

Nesse sentido, serão consideradas as características do tipo de textoescolhido, conforme tipologia abrangida pelo corpus do material doNURC-SP /USP, bem como a especificidade da situação que envolve ostextos e que pode ser resumida, grosso modo, da seguinte maneira: sãointerlocutores de formação universitária, de diferentes idades, com co-nhecimento de que a coleta de dados estava sendo realizada para poste-rior estudo da linguagem falada culta da cidade de São Paulo.

Sem perder de vista essas características é que serão localizadas,descritas e interpretadas algumas formas de metalinguagem e suas rela-ções com as imagens que os interlocutores têm da norma culta. Apresen-tados de forma explícita, esses procedimentos lingüístico-textuais estãoconfigurados, por exemplo, na organização de determinados tópicos esubtópicos que revelam encaminhamento do tópico central, propostopara a interlocução, para tematização da linguagem, na explícita pre-ocupação com a precisão vocabular ou, ainda, em expressõesmetaenunciativas que testemunham o esforço para a administração dasestratégias interativas. Esses recursos serão observados, portanto, emfunção das particularidades do evento interacional em processo, direta-

Page 55: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

57

O discurso oral culto.

mente relacionados ao estabelecimento dos procedimentos de coesão ecoerência constitutivos do texto oral.

A vertente bakhtiniana contribui teoricamente para uma concep-ção de linguagem, essencialmente interacional, que propõe conceitos deenunciação, de construção de sentido, de interdiscurso e de heterogenei-dade discursiva que, combinadas com particularidades teóricas e descri-tivas da perspectiva conversacional, contribuem de forma decisiva para adescrição e análise das especificidades interacionais do texto oral.

Da teoria de Mikhail Bakhtin serão considerados, de forma espe-cial, os conceitos de diálogo e dialógico, entendidos como relação entrefalantes numa situação específica de comunicação e articulação existen-te entre um discurso e os demais que o atravessam e o constituem. São,portanto, dois níveis de interação verbal através dos quais se poderá ob-servar a heterogeneidade enunciativa e discursiva que, sendo constituti-va de qualquer texto e de qualquer discurso, participa de forma tambémexplícita do texto oral.

Os conceitos de diálogo e dialógico presentes na teoria do pensa-dor russo auxiliam a análise na medida em que, sendo o discurso umprocesso de intercâmbio entre eu/outro, o diálogo aparece como um gê-nero discursivo no qual o circuito dialógico pergunta-resposta pressupõedois interlocutores ativos, históricos e sociais e, também, os diversosdiscursos que os envolvem:

“Essa alternância dos sujeitos falantes que traça fronteiras estritasentre os enunciados nas diversas esferas da atividade e da existênciahumana, conforme as diferentes atribuições da língua e as condições esituações variadas de comunicação, é diversamente caracterizada eadota formas variadas. É no diálogo real que esta alternância de sujei-tos falantes é observada de modo mais direto e evidente; os enuncia-dos dos interlocutores (parceiros do diálogo), a que chamamos de ré-plicas, alternam-se regularmente nele. O diálogo, por sua clareza esimplicidade, é a forma clássica da comunicação verbal. Cada répli-ca, por mais breve e fragmentária que seja, possui um acabamentoespecífico que expressa a ‘posição do locutor’, sendo possível respon-der, sendo possível tomar, com relação a essa réplica, uma posição

Page 56: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

58

BRAIT, Beth. Imagens da norma culta, interação e constituição ....

responsiva2 (...) a relação que se estabelece entre as réplicas do diálo-go- relações de pergunta-resposta, asserção-objeção, afirmação-con-sentimento, oferecimento-aceitação, ordem-execução, etc. (...) só épossível entre enunciados provenientes de diferentes sujeitos falantes.Pressupõe o outro (em relação ao locutor) membro da comunidadeverbal” (BAKHTIN, 1992: 294).

O conceito de texto oral aqui considerado levará em conta duascategorias aparentemente contraditórias: homogeneidade textual e hete-rogeneidade enunciativa e discursiva que, em função das perspectivasteóricas escolhidas, constituem justamente os dois pólos interligados pelasestratégias interacionais que dimensionam o texto, seus sentidos e seusefeitos de sentido.

A imagem da norma culta e suas formas de aparecimento nostextos estarão sendo apoiadas, também, em algumas noções de normaapresentadas por teóricos como Stanley Aléong, Denise François e DinoPreti.

1. Norma, imaginário e identidade textual

Este estudo, portanto, na tentativa de flagrar as formas de pre-sença de imagens da norma culta em textos do Projeto NURC-SP/USP,procurará localizar formas de metalinguagem, tópicos e subtópicos rela-cionados à emergência textual e discursiva do imaginário configuradordessa norma, bem como as funções interativas desempenhadas por esseselementos na constituição da textualidade. Assim sendo, serão focaliza-dos trechos do Inquérito 333 e do Inquérito 18.

2 Para Bakhtin, “a compreensão responsiva nada mais é senão a fase inicial e preparató-ria para uma resposta (seja qual for a forma de sua realização). O locutor postula essa

compreensão responsiva ativa: o que ele espera não é uma compreensão passiva que,

por assim dizer, apenas duplicaria seu pensamento no espírito do outro, o que espera éuma resposta, uma concordância, uma adesão, uma objeção, uma execução, etc.”

(BAKHTIN, 1992:291).

Page 57: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

59

O discurso oral culto.

Dando continuidade aos estudos dos processos interacionais pre-sentes no Inquérito 3333, um exame do trecho compreendido entre aslinhas 141 a 300 possibilita a localização de tópicos e subtópicos direta-mente ligados a determinada imagem das normas em geral e da normaculta em particular, permitindo, ainda, uma avaliação da imagem que osfalantes instruídos, cultos, têm dessa sua condição.

Seguindo os processos metodológicos propostos, é necessário ca-racterizar os participantes e a situação de comunicação em que estãoenvolvidos, para, em seguida, detalhar os aspectos pertinentes a este es-tudo.

As protagonistas encontram-se em condições de igualdade no quediz respeito à linguagem que utilizam: são paulistanas, ambas do mesmosexo, têm a mesma idade, o mesmo estado civil, formação universitária,profissão com igual valor social. Uma é jornalista e a outra escritora.

Sem dúvida esse conjunto de características tem uma função es-pecial na condução da organização textual, quer do ponto de vista dostópicos e subtópicos que vão sendo desenvolvidos e vão evidenciando ospressupostos, os valores culturais aí produzidos e reproduzidos, quer dacumplicidade lingüística e estilística que vai pontuando o diálogo e mar-cando os elos de coesão e conseqüente coerência do texto oral.

É nesse sentido que se pode pensar numa dimensão consensualdo diálogo, num conjunto em que o acordo entre os interlocutores estáfortemente presente, e que pode assumir formas diversas e em particularmiméticas, como as que já foram descritas pelos analistas da conversa-ção e que estão assim resumidas por Kerbrat-Orecchioni (1991:124):fenômeno de eco, de reprodução inconsciente do comportamento postural,mímico, vocal ou verbal, do parceiro da interação.

Esse conjunto de aspectos, que procuraremos evidenciar maisadiante, configuram uma

“homogeinização, de grau evidentemente variável , das vozes dos co-locutores. Um tal princípio é a base de toda a reflexão sobre as

3 “O processo interacional” (BRAIT, 1994:189-214).

Page 58: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

60

BRAIT, Beth. Imagens da norma culta, interação e constituição ....

interações: se para poder inter-agir é preciso, no início do processo,dispor de competências heterogêneas (são dois ideoletos que entramem contato na interação), no transcorrer do desenvolvimento da troca,essas diferenças vêm a se neutralizar parcialmente, graças à interven-ção do fenômeno de sincronização interacional, de coordenação e deharmonização dos comportamentos respectivos das pessoas em pre-sença” (KERBRAT-ORECCHIONI, 1991:124).

No que diz respeito à arquitetura textual, essa situação complexapermite observar, pela condição textual e discursiva caracterizadora doevento, que a produção de sentido no interior de um diálogo exige umtrabalho interativo constante, um trabalho conjunto que implica proces-sos lingüísticos e discursivos específicos de co-adaptação, de reformula-ção, de solicitação, de explicação, cuja função é estabelecer a intersubje-tividade constitutiva do texto.

Entretanto, apesar desse ponto de partida ideal, dessa aparentesimetria de caracterísiticas e de papéis a serem desempenhados no diálo-go, bem como do princípio de homogeinização que vai reger a constru-ção conjunta do texto, é necessário observar também as conseqüênciastextuais e discursivas diferenciadas que essa situação produz, como exi-gência do trabalho interativo. Não há apenas cumplicidade e solidarieda-de, mas há também um certo tipo de embate, de disputa, na medida emque o diálogo implica

“vozes diferenciadas, seres diferentes que podem verdadeiramente di-alogar” (KERBRAT-ORECCHIONI, 1991:121).

No trecho em questão, atentas às particularidades dessa situaçãoconcreta de comunicação, as interlocutoras sabem que o tema “televi-são” sobre o qual deverão discorrer, embora ligado à vida profissional deambas, é um pretexto para a observação das particularidades da lingua-gem falada culta. Sabem que foram escolhidas porque pertencem à cate-goria dos falantes cultos, instruídos. É nesse sentido que é possível ob-servar as formas interativas de condução do tema geral proposto pela

Page 59: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

61

O discurso oral culto.

documentadora, que vai sendo transformado, conduzido para tópicos esubtópicos que dizem respeito à linguagem em geral, aos diferentes fala-res reconhecidos e conhecidos por essas interlocutoras cultas.

As considerações, motivadas por particularidades de falas de ar-tistas de televisão, aspecto que preserva em certa medida a face dadocumentadora, o papel por ela desempenhado nesse evento interacional,constroem progressivamente uma imagem da norma culta em oposiçãoàs demais normas existentes. Essa construção, reveladora do imagináriosociolingüístico-cultural que cerca a norma culta e seus usuários, vai sendoconduzida pelas duas interlocutoras de forma homogênea, partilhada,constituindo um dos pilares mestres da coerência que caracteriza o texto.

O tópico principal recai sobre a linguagem, dando continuidadeao trecho inical do inquérito4, e vai sendo particularizado em subtópicosafins e metalingüísticos, voltados para um discurso sobre a norma, nosentido explicitado por Stanley Aléong:

“há um discurso da norma, ou seja um pensamento ou uma visão delinguagem segundo a qual se pode classificar os fatos lingüísticos deacordo com categorias como bom, mau, correto, puro, errôneo, pa-drão etc” (ALÉONG, s/d:270).

Os sub-tópicos, aqui reconhecidos como metalingüísticos, são osseguintes:

a) a necessidade de codificação da língua:

141 L2 quer dizer não há codificação((rindo)) como é que

não há codi/

L1 é

L2 não pode haver uma codificação... num país assim

não é?

4 O trecho inicial foi analisado em “O processo interacional”, capítulo 9 da obra Análise de

textos orais.

Page 60: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

62

BRAIT, Beth. Imagens da norma culta, interação e constituição ....

b) a necessidade dos artistas cursarem a Escola de Arte Dra-mática5 para disciplinarem sua pronúncia:

145 L1 mas é por isso que eu digo que a a às vezes a gente diz

“bom esses artistas deviam cursar ... a a Escola de

Arte Dramática” a maioria dos bons artistas que

nós temos hoje na televisão cursou

escola de arte dramática

c) a linguagem caipira como estigma de determinados atores:

153 L1 e isso e todavia falam:: MUI::ti Araci Balabanian é

uma das poucas que fala bem ... e ela

155 [

L2 fala por exemplos

L1 é de Mato Grosso ... e ela é de Mato Grosso...

Araci não é paulista...

L2 mas ela fez o curso aqui

[

L1 ela veio para São Paulo fazer a EAD aqui...

mas ela é de Mato Grosso ... agora os ou/ o Juca de

Oliveira ela fala feito um caipira do interior do Estado

você reparou? é uma pronúncia absolutamente

caipira...

L2 mas ( ) ele carrega

165 L1 do interior do Estado

L2 mas é vo / voluntária né?

L1 não ... não é voluntária não ... é difícil você repara ...

5 EAD – Escola de Arte Dramática criada por Alfredo Mesquita, em São Paulo, no final dadécada de quarenta, destinada a melhorar o nível dos intérpretes brasileiros.

Page 61: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

63

O discurso oral culto.

d) a variante “não culta” como estigma profissional:

168 como é difícil... para o Juca interpretar determinados

papéis ... se bem que os produtores já viram já

perceberam então ele ele está sempre adequado ao papel

de homem ... ele faz muito na televisão um homem rural

... então está bem ... mas ele tem uma pronúncia bem

acaipirada ... do interior do Estado de São Paulo...

e) o papel da escola na transmissão da norma culta:

174 então não é uma questão de formação da Escola de

175 Arte Dramática onde as pronúncias já estão ... “jogos já

estão feitos” como se diz ... isso seria do curso primá::rio

... ensinar um brasileiro a falar ... pelo menos quando

quer falar bem depois ele pode partir para as gírias...

f) a língua e a identidade nacional:

acho que há uma língua ( ) uma nossa que está se

180 construindo todos os dias como o país também que está

se construindo todos os dias ... ela tem que se

g) a construção de uma língua e as influências benéficas deoutros idiomas:

acrescentar com influências ... éh francesas ... alemãs

e e e italianas como é o caso de São Paulo ... e não

vejo nisso ... deturpar o idioma eu acho que com

185 isso nós o acrescentamos...

Page 62: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

64

BRAIT, Beth. Imagens da norma culta, interação e constituição ....

h) as influências maléficas no processo de construção de umalíngua:

L2 eu acho H. mas eu acho também ... eu

fico ( ) revoltada com

[

L1 como você não vai ...

L2 a influência excessiva por exemplo do Do cinema ... da

190 história em quadrinhos ... histórias que não têm nada

que ver com (nós) mas absolutamente nada que ver com a

nossa formação ... com a nossa história

i) a influência dos italianos:

200 L1 é ... agora quand/ quando há uma influência por exemplo

[

mas quando você vê ...

L2 você citou o italiano ... o italiano está morando aqui ...

miLHAres ...

L1 uhn ...

205 L2 não

L1 é

[

L2 é ... e eles são brasi/ são são propri braziliani né?

L1 é ... propri braziliani ...

[

L2 propri braziliani ... de modo que:: é muito justo

210 e essa:: ...

L1 eles imprimirem a

L2 (esse) entrosamento é muito justo ...

Page 63: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

65

O discurso oral culto.

j) as relações entre o português do Brasil e o português de Por-tugal:

217 L1 Mas olha a propó::sito da língua da terra jovem e da

terra antiga da terra de origem que no caso seria Portugal

220 ... eu:: ... há muitos anos quando eu já estava acho que

começando na minha carreira de jornalista ... eu::...

tive uma entrevista ... com uma senhora que era

embaixatriz do:: Canadá ... em ...eh:: no Bra/ eh::

(...)

236 é muito engraçado porque o imigrante ... preservou a

linguagem do seu país ... no momento em que ele imigrou

... e guardou esta linguagem para seus filhos para sua

decendência ... como patrimônio como se fosse

240 realmente um reTRAto da sua Pátria ... então essa

linguagem vai evoluindo no seu país de origem ... e no

país ... jovem para o qual ela foi transportada ela fica mais

ou menos estagnada ... que é o caso dessa área francesa

do Canadá ...

k) as formas de permanência da língua de origem no país novo:a expressão do francês clássico na fala dos camponeses doCanadá francês e os vocábulos clássicos no sertão brasileiro:

233 ...no Canadá francês

...ouve-se dos...camponeses franceses expressões ...

de Rabelais ... expressões de um francês clássico ... então

(...)

245 disseram também que em vários lugares do sertão ...

nosso se ou/ se ouve ainda eh:: vocábulos ... ahn ... mais

Page 64: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

66

BRAIT, Beth. Imagens da norma culta, interação e constituição ....

ahn clássicos já em completamente em desuso ...

não é?

l) a caracterização da linguagem do caboclo como “lingua-gem originalíssima e inteligente”:

252 tem ( ) entre os caboclos ...

L1 é::

L2 tem muita coisa ainda

[

255 L1 tem muita coisa ... de mistura com

linGUA::gem do caboclo que aliás é uma linguagem

originalíssima ... e inteligente

m) o emprego do ‘vós’ no começo do século e sua permanênciana fala popular

L2 e o:: e o emprego do vós não é

L1 é ( ) o emprego do vós

[

260 L2 o emprego do vós

L1 é ...

L2 também que aliás até algum ... até o:: acho que o fim

do século passado ... éh mamãe sempre como:: contava

que elas tinham umas amigas que eram sempre

265 carinhosas eram umas velhinhas muito simpáticas então

elas se vi/iam visitá-las ... e almoçavam com elas e

elas diziam “comei batatin::nha” ...

L1 comei? (riu)

[

Page 65: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

67

O discurso oral culto.

L2 “comei batatinha” quer dizer ofereciam as coisas

270 assim ... nessa nessa ... nessa linguagem usavam ainda

normalmente essa linguagem isso não é ... começo do

século não é?

L1 não e no meio

[

L2 ainda

275 L1 é engraçado e no meio assim do

L2 usando vós

[

n) a atitude prescritiva dos que dominam a norma culta em re-lação aos que não a dominam e a avaliação estética das vari-antes:

L1 POvo ... em São Paulo eu me lembro quando eu

era ... mocin::nha ... eu tive uma empreGAda ... éh que

ela atendia o telefone e dizia ... “aqui é a casa de madame

280 H. ... aí ... eu fiz ver que não se dizia assim que que eu

que eu não era madame H. e:: expliquei eu diSSE ...

“olha fulana você não::me chama de madame H.

... porque maDAme aqui no Brasil ... é mais ou menos

empregado no caso casa de madame ... como se fosse

285 uma casa de uma coleteira — não tenho nada contra a

((rindo)) a classe das coleteiras prezo muito ... mas

enfim na ((pigarreou)) — fosse uma coleteira

((pigarreou duas vezes)) ... uma cabelereira ... que não

é o caso ... de uma:: residência particular então você não

... não diga “casa de madame H. e não e nem me

Page 66: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

68

BRAIT, Beth. Imagens da norma culta, interação e constituição ....

chame de madame — porque ela só me chamava de

madame — eu acho muito desagradável ( ) você me

chame dona H. não me chame de madame”... aí ela

pôs a mão no quadril me olhou — eu nunca hei de me

295 esquecer isso faz tantos anos ...— ”por que a

senhora não quer que eu lhe dê madamia?” mas

[

L2 madamia

... delicioso

L1 é ... madamia...

[

300 L2 que eu lhe dê madamia ((riram)).

1.1 O papel dos tópicos e subtópicos na construção dosentido e da unidade textual: a emergência de umaimagem da norma culta

No que diz respeito a esse conjunto de subtópicos que contribuipara a construção e produção de sentido e efeitos de sentido sustentadopelo imaginário em torno da norma culta, é possível observar que sãoesses elementos que fornecem as primeiras informações sobre a dimen-são ao mesmo tempo homogênea e heterogênea da constituição textualoral. Existe um processo colaborativo de constituição temática do textoque implica a situação específica de interação verbal e uma certa ordemde valores culturais, herdados e transmitidos socialmente e que estão aíreproduzidos pelas interlocutoras nos turnos que vão sendo alternados,dimensionando a reapropriação desses elementos culturais no desenvol-vimento da interação.

Logo no início, L2 apresenta a idéia da “codificação” e L1, con-cordando com essa idéia, exemplifica com a Escola de Arte Dramática e

Page 67: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

69

O discurso oral culto.

sua função na formação dos “bons artistas que nós temos hoje na televi-são”. Nesse sentido, não só L1 dá seqüência ao subtópico proposto porL2, mas também, através da particularidade do exemplo, estabelece arelação com o tópico geral proposto pela documentadora, ou seja, televi-são. Assim, a participação interacional atua, também, na macro estruturasintática da coerência textual: os comentários sobre a linguagem não sãogratuitos ou ocasionais, mas estão diretamente interligados com o quefoi proposto pela documentadora e com os pressupostos sobre o domínioda língua boa, bonita e correta.

O desenvolvimento desse subtópico vem com a colaboração deL2 que dá exemplos de artistas que vieram de outras regiões do país eque freqüentaram essa escola, o que permite a L1 inserir, como seqüên-cia natural, os subtópicos da “fala caipira”, da pronúncia “acaipirada”,opondo fala rural a fala urbana, opondo falas regionais a um padrãopaulistano disciplinado pela Escola de Arte Dramática. Dando conti-nuidade a seu turno, L1 desloca a função da EAD para a escola e suafunção na constituição da pronúncia e da língua em geral, o que lhepossibilita tocar na questão das influências. Apropriando-se desse últi-mo aspecto, L2 introduz a questão da relação existente entre língua enacionalidade, criticando a influência do cinema e da história em qua-drinhos que “não têm nada a ver com (nós) mas absolutamente nadaa ver com a nossa formação ... com a nossa história”, e apontandopara outras influências, como a dos italianos, que representam um “en-trosamento” entre língua nacional e outras línguas, entre povo brasilei-ro e outros povos.

É também o tema da influência que permite a L1 dar seqüência aotexto, desenvolvendo um longo turno sobre as relações lingüísticas exis-tentes entre um país colonizado e seu colonizador, aspectos que perdu-ram, segundo L1, ao longo da história do país colonizado, e que sãoexemplificados com os casos do Brasil e do Canadá, e com a possívelpresença de termos clássicos no sertão. L2 confirma essas hipóteses lin-güísticas apresentando outros exemplos que vão sendo, alternadamente,complementados por L1 e L2, com o caso da linguagem do caboclo, como emprego do vós e com a criatividade presente na linguagem popular.

Page 68: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

70

BRAIT, Beth. Imagens da norma culta, interação e constituição ....

Esse conjunto confirma a existência de uma unidade temática,gradativamente organizada e desenvolvida pelas interlocutoras. Enquan-to participantes ativas do evento, elas co-operam nesse nível da consti-tuição textual, empenhando-se na seqüência temática do evento, atravésde subtópicos interligados, coesos e responsáveis, juntamente com ou-tros fatores, pela coerência textual.

Fica evidente também que essa homogeneidade temática está apoi-ada em questões gerais de linguagem e de língua, interligando-se ao tematelevisão por meio da exemplificação do caso dos artistas. Entretanto, énecessário assinalar que a interação está, nesse nível, apoiada sobre pres-supostos culturais compartilhados pelas interlocutoras no que diz res-peito à noção de norma culta, de linguagem correta, do bem falar e que,ao serem parcialmente explicitados, vão demonstrando o quanto elas es-tão levando em conta o conjunto da cena enunciativa, isto é, além daspróprias presenças, a presença da documentadora contribui para a insta-lação de aspectos muito particulares em relação à temática proposta.

Sob esse enfoque, elas não apenas se consideram falantes da nor-ma culta da cidade de São Paulo, aspecto que procuram evidenciar atra-vés dos cuidados com o vocabulário, com as construções sintáticas ecom uma evidente preocupação geral com a forma como se expressam,mas também tematizam, metalingüisticamente, essa competência com aexplicitação de conceitos referentes ao que consideram pertinente a essanorma. Provavelmente, são esses os conceitos de língua, registros e ní-veis considerados por elas como constitutivos do universo dos estudio-sos interessados em registrar o diálogo em pauta, e que são, de fato, suaverdadeira audiência. Ambas se dirigem aos estudiosos da norma cultade forma aberta e apaixonada.

Essa constatação demonstra que a construção do texto, tambémno nível temático, mas não só nele, acontece enquanto construção derelações sociais entre sujeitos, incluindo a construção de “imagensidentitárias” e a representação da situação em que estão envolvidos. Pa-rafraseando Robert Vion (1992), que se apóia nos trabalhos lingüísticosde inspiração etnometodológica, é possível afirmar que o desenvolvimentoda interação verbal implica o estabelecimento de relações sociais entre

Page 69: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

71

O discurso oral culto.

os sujeitos envolvidos. Esses sujeitos falam de determinadas posiçõessociais e dão vida aos papéis desempenhados através das marcas que vãoconstituindo o texto elaborado em conjunto. O lugar do sujeito falantevai definindo-se ao mesmo tempo em que se define o lugar do seu inter-locutor: os lugares são necessariamente simétricos ou complementares.Esses lugares não reproduzem mecanicamente as relações sociais objeti-vas, mas seguindo seus modelos constituem-se na situação específica deinteração.

Ainda no que diz respeito ao trecho escolhido, as protagonistas seposicionam no espaço dos falantes da norma culta e também dos que sãocapazes de refletir sobre ela. Constróem esse espaço como o centro apartir do qual é possível pensar as questões de língua e de linguagem,considerando os demais lugares como hierarquicamente inferiores, ain-da que se possa colher, como aspecto pitoresco e exceção, exemplos“deliciosos” da presença da norma culta no falar do “povo”. Isso confir-ma a passagem em que Abric (1987:56) diz: “o indivíduo não reage emfunção da situação objetiva à qual ele é submetido, mas em função darepresentação que ele faz dessa situação”.

De fato, apesar desse empenho das interlocutoras em mostrar seusconhecimentos lingüísticos, incluindo em sua fala até mesmo a relaçãolíngua-identidade nacional-norma culta, isso não significa que durante afala elas não tenham deslizado por construções sintáticas que certamenteelas mesmas não incluiriam nesse conceito de linguagem correta e boni-ta que elas defendem.

1.2 Algumas outras formas de metalinguagem relacio-nadas À norma culta e Às funções interativas porelas desempenhadas

Ainda no que diz respeito ao Inquérito 333 e às formas de metalin-guagem que funcionam interativamente para a construção de uma imagemda norma culta, é necessário assinalar a participação de diferentes fontesenunciativas na construção desse espaço textual. As formas assumidas por

Page 70: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

72

BRAIT, Beth. Imagens da norma culta, interação e constituição ....

essas fontes, a maneira como vão sendo introduzidas no diálogo e comovão sendo nomeadas e mostradas pelas interlocutoras do trecho em ques-tão podem ser detectadas nas seqüências abaixo assinaladas, consideran-do-se, em primeiro lugar o fato de que, por tratar-se de um diálogo, umainteração face a face, temos, no conjunto, a presença e a atuação discursivadas duas interlocutoras, as quais vão alternando turnos e configurando duasfontes enunciativas explícitas e constitutivas do diálogo.

Além dessas duas fontes constitutivas do diálogo, aparecem ou-tras fontes enunciativas, constituídas a partir de diferentes recursos dis-cursivos-textuais, como se pode constatar nas seguintes formasmetaenunciativas:

145 L1 a gente diz:

“bom esses artistas deviam de cursar ... a a Escola de

Arte Dramática’... a maioria dos bons...

174 L1 questão de formação da da Escola de

Arte Dramática onde as pronúcias já estão ... “jogos já fei-

tos” como se diz...

207 L2 é .... eles são brasi/ são são propri braziliani né?

L1 é ... propri braziliani...”

228 L1 francês... e ela me disse uma coisa muito interessante

que se verifica muito nos países novos

245 L1 ... porque me

246 disseram também que em vários lugares do sertão...”

249 L2 papai mesmo tem nos livros dele ele tem muitas

expressões... completamente:: caídas em desuso e::

portuguesas e por/... e ... de português clássico não é ?

Page 71: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

73

O discurso oral culto.

263 L2 do século passado ... éh mamãe sempre como:: contava

que elas tinham umas amigas que eram sempre

278 L1 era mocin::nha ... eu tive uma empreGada ... éh que

ela atendia o telefone e dizia ... “aqui é a casa de madame H...”

295 L1 esquecer isso faz tantos anos... “por que que a

senhora não quer que eu lhe dê madamia?”

O que se observa nesse conjunto é que as vozes enunciativas, evo-cadas de forma explícita através da inclusão do discurso direto, do discursoindireto, de pseudo-provérbios e de termos estrangeiros, nesse diálogo,funcionam exatamente como no texto escrito, se considerarmos a questãosob o ângulo do imaginário da norma culta que envolve o diálogo: sãoformas de autorização do que está sendo dito. O dircurso da norma,

“remete a um aparelho de referências que compreende exemplos debom uso em locutores investidos de autoridade e de prestígio em maté-ria de linguagem” (ALÉONG, s/d :270).

Esses procedimentos têm a função discursiva de confirmar a hete-rogeneidade constitutiva do discurso, quer ele se apresente sob a formade texto oral ou escrito, circunscrevendo, ao mesmo tempo, particulari-dades do universo lingüístico e social dos interlocutores.

Bastaria uma incursão sobre o campo semântico recoberto pelostermos a gente, papai, mamãe, empregada e outros que funcionamcomo fontes discursivas do diálogo em questão para confirmar o universoconfigurado socialmente, onde estão bem definidos os locutores investi-dos de prestígio em matéria de linguagem e os demais, que deles se dife-renciam sociolingüisticamente.

Se por um lado os valores culturais a respeito do uso da línguaadvêm de discursos que estão em curso na sociedade e que se inserem na

Page 72: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

74

BRAIT, Beth. Imagens da norma culta, interação e constituição ....

fala das interlocutoras nessa situação específica de interação, como é ocaso da valorização da norma culta e da desvalorização da pronúnciacaipira do interior de São paulo e de outras regiões brasileiras, a exposi-ção consciente e explícita de outras vozes constitui a condição de hetero-geneidade marcada e mostrada que se apresenta no texto oral com a mes-ma constância que no texto escrito.

Mas para complementar a abordagem de algumas formas de me-talinguagem motivadas pelo imaginário em torno de uma norma culta ede falares que estão fora dessa norma e que participam dos procedimen-tos interativos de um texto, e especialmente desse material coletado peloProjeto NURC-SP/USP, é possível mencionar mais alguns exemplos,todos extraídos do Inquérito 18, constituído de um diálogo entre um in-formante e um documentador (DID).

Nesse diálogo, o informante de 31 anos, solteiro, advogado epaulistano é convidado a falar sobre “sua experiência de fazenda”. Em-penhado em recuperar suas lembranças, o informante vai localizando aépoca em que freqüentava a fazenda, as características da casa, do gado,da produção e dos trabalhos lá existentes, sendo interrompidointerativamente pelo documentador.

No decorrer da narrativa, motivada pela documentadora-interlo-cutora, o que se observa é a constância de expressões metalingüísticasque revelam não um simples cacoete da linguagem oral ou desse indiví-duo, mas o profundo envolvimento na situação de interlocução.

Considerando, como no trecho do Inquérito 333, não apenas otema solicitado pelo documentador, mas a situação especial de inte-ração, as expressões metalingüísticas e metaenunciativas vão dese-nhando o perfil desse falante culto, manifestado na preocupação comvários fatores: a maneira como os falantes “cultos” se expressam,uma vez que esse é o propósito da pesquisa, a preocupação com ooutro falar envolvido na interlocução, que é o da vivência na fazendae, ainda, a preocupação com o fato de que a documentadora não do-mina esse falar. O discurso do informante vai revelando seu propósi-to de administrar essa situação, colocando-se, cuidadosamente, como

Page 73: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

75

O discurso oral culto.

o falante culto que domina outro falar e é capaz de traduzi-lo para suainterlocutora.

O conjunto das expressões demonstra a atenção do falante voltadasobre a própria enunciação, uma vez que a interlocutora é a representantedos estudiosos da norma culta e o informante tem consciência de que éconsiderado um falante culto. Assim, no decorrer do diálogo, as expres-sões e frases metalingüísticas vão acentuando essa preocupação, centra-da basicamente na adequação vocabular, como se constata no levanta-mento que segue. No primeiro bloco, dispensou-se a indicação das li-nhas, uma vez que as expressões destacadas aparecem muitas vezes e emdiferentes pontos do texto.

Vamos dizer; quer dizer; como poderia chamar; como é que sediz; eu não sei bem como é que poderia chamar; como poderiam cha-mar; e tem um nome especial...; aquilo que chama...; é que as própriaspalavras já estão dizendo; como se diz; vamos dizer assim;

517 Inf. que eu:: não sei ... deve ter um

nome especial mas a gente costuma dizer...

521 Inf. tem uma palavra vamos dizer ... eh:: literária pra

dizer ordenha do gado ... mas isso é uma palavra que não se usa

527 Inf. “u/ usa-se entre pessoas muito cultas ...mas normalmente

ninguém diz por exemplo para o administrador da

fazenda... ah “como que está a ordenha do gado”;

nunca se fala ... e:: mesmo tirar leite...quando muito

até:: ... uma substan-tivação... da palavra vamos dizer...

tiração de leite;

621 Inf. ...agora tem um nome especial que eu não::

estou lembrando viu? ... é colostro eu acho...é;

Page 74: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

76

BRAIT, Beth. Imagens da norma culta, interação e constituição ....

642 Inf. eu acho que o queijo feito

de coalhada... tem o nome de requeijão né?;

679 Inf. a fêmea é:: chamada de égua né?...

680 Inf. o:: o cavalo enquanto pequeno é potro... potrinho... é

os nomes praticamente usados acho que são só esses é

potro e cavalo...

692 Inf. a gente chama de bezerro... depois de::... garrote...

quando é macho... o:: novilha quando é fêmea... e

depois é que se chama de touro ou de vaca...

733 Inf. que é o Santo Antônio como se diz...

parte de trás eu não sei... de nenhum nome

específico...

762 Inf. por uma::... por aquilo que

se chama barrigueira...

777 Inf. mas quando se quer distinguir...

o::... aquilo que... o ferro... que entra na boca do

cavalo... do restante do freio... então usa-se a palavra

cabeçada... a cabeçada por sua vez tem:: também algumas

partes... porque tem uma que vem... logo:: na frente

do::... da cabeça do cavalo que se chama::... cabeção...

depois tem uma que vai mais em cima da própria cabeça

do cavalo que é a testada... e além disso tem uma... um

outro courinho que sai... de cima... e passa por baixo

do... da cabeça... ah... próximo ao pescoço... que

também tem um nome ahn:: — é alguma

coisa como:: gargantilha mas não é gargantilha hoje é...”.

Page 75: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

77

O discurso oral culto.

Observações finais

Considerando, a partir dos fatores aqui sintetizados, que os tre-chos escolhidos para análise constituem seqüências textuais, ou seja, cadaum forma um “ bloco de trocas interligadas por um forte grau de coe-rência semântica e/ou pragmática” (ORECCHIONI, 1991:218) e que“a organização interna das seqüências varia em função de numerososfatores – tipo de interação e de situação interativa; objetivo, duração,circunstâncias do encontro; freqüência dos encontros entre as pessoasem interação; grau de conhecimento mútuo dos participantes, nature-za da relação interpessoal, etc” (ORECCHIONI, 1991:221), é possívelreconhecer a condição de homogeneidade textual e de heterogeneidadediscursiva e enunciativa aí instaladas.

E é essa uma das dimensões que serve de parâmetro para o reco-nhecimento da textualidade do discurso oral, destacando-se de formaespecial o papel das estratégias interacionais na constituição da unidadee da diversidade articuladas no gênero diálogo. Aqui, como elementoconstitutivo dessa dimensão, foi possível incluir a metalinguagem quemarca as formas de presença da relação dos conceitos de norma, do ima-ginário que cerca esses discursos, e que podem ser observados especial-mente em falantes considerados cultos, instruídos, integrantes do universodos que partilham conhecimentos lingüísticos privilegiados pela sociedadenum dado momento histórico.

Se o material do Projeto NURC-SP/USP ainda não possibilitou oconhecimento das especificidades da norma culta falada na cidade deSão Paulo, com certeza pode oferecer vasto material para o conhecimen-to das imagens da norma culta e de seus falantes, flagradas nas formaslingüísticas, enunciativas e discursivas presentes nos textos aí registradose no imaginário por eles revelados.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABRIC, J-C. (1987) Coopération, compétition et représentation sociales. Fribourg,Suisse, Édition Delval.

Page 76: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

78

BRAIT, Beth. Imagens da norma culta, interação e constituição ....

ALÉONG, Stanley (s/d) Normes linguistiques, normes sociales, une perspectiveanthropologique. In: BÉDART & MAURAIS (org.) La norme linguistique. Pa-ris, Le Robert. pp. 255-280.

BAKHTIN, Mikhail (1992) Estética da criação verbal. Trad. Maria E. G.G. Pereira.São Paulo, Martins Fontes (1. ed. Moscou, 1979).

BRAIT, Beth (1995) O processo interacional. In: PRETI, Dino (org.) Análise detextos orais. 2 ed. São Paulo, FFLCH/USP. p.189-214.

________. (1988) Guimarães Rosa na mira de Bakhtin: Riobaldo e Diadorim natelevisão. In: FARACO, C.A. et alii Uma introdução a Bakhtin. Curitiba, Hatier.p.73-84.

________.(1994) As vozes bakhtinianas e o diálogo inconcluso. In: BARROS &FIORIN (org.) Dialogismo, polifonia e intertextualidade. São Paulo, EDUSP.p. 11-27.

CASTILHO & PRETI (1986) A linguagem falada culta na cidade de São Paulo. SãoPaulo, T.A. Queiroz. Vol.1.

________. (1987) A linguagem falada culta na cidade de São Paulo. São Paulo, T.A.Queiroz/FAPESP. Vol.2.

FÁVERO, Leonor (1993) O tópico conversacional. In: PRETI, D. (org.) (1993, 1995)Análise de textos orais. São Paulo, FFLCH/USP. p. 33-54.

FRANÇOIS, Denise (1979) Da noção de norma em lingüística. In: MARTINET, J.(ORG.) Da teoria lingüística ao ensino da língua. Trad. Yara P. D. de Souza.Rio, Ao Livro Técnico. pp.87-97.

KERBRAT-ORECCHIONI, Catherine (1991) Hétérogénéité énonciative et conver-sation. In: PARRET, H. (dir.). Les sens et ses hétérogénéités. Paris, CNRS.p. 121-138.

KOCH, Ingedore Villaça (1992) A inter-ação pela linguagem. São Paulo, Contexto.PRETI & URBANO (org.) (1988) A linguagem falada culta na cidade de São Pau-

lo. São Paulo, T.A. Queiroz/FAPESP. Vol.3.PRETI, Dino (org.) (1993, 1995) Análise de textos orais. São Paulo, FFLCH/USP.VION, Robert (1992) La communication verbale: analyse des interactions. Paris,

Hachette.

Page 77: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

79

O discurso oral culto.

PURISMO NO DISCURSO ORAL CULTO

Marli Quadros Leite

Introdução

Neste artigo, examinamos o purismo lingüístico enquanto fenô-meno presente no discurso oral culto. Para tanto, tomamos três textos doarquivo NURC/SP – Núcleo USP, todos de Elocução Formal (EF), duasconferências e uma aula universitária. Além desses, analisamos uma en-trevista do Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, conce-dida, após pronunciamento de balanço do ano de 1995, sobre as ativida-des do governo, no dia 17/01/1996.

Nosso objetivo é mostrar que o purismo é um fenômeno lingüís-tico presente na língua, e, em específico, no discurso oral culto. O parâ-metro para verificação da ocorrência e característica do purismo nessetipo de discurso será a metalinguagem prescritiva.

Da análise do corpus, levantamos questões gramaticais coinci-dentes e divergentes da norma prescritiva, a fim de verificar o nível demanutenção da norma prescritiva, em termos de léxico e de gramática,nível em que analisamos os seguintes pontos: emprego de tempos ver-bais, verbos reflexivos e pronominais, regência nominal e verbal e com-posição do sujeito, pelo emprego de a gente e você. Os usos coincidentescom a norma prescritiva, mas não coincidentes com o uso efetivo da

Page 78: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

80

LEITE, Marli Quadros. Purismo no discurso oral culto.

língua, dentro desses temas analisados, são considerados puristas e osdivergentes, antipuristas.

1. Conceito de purismo

Quando falamos em purismo, a primeira idéia que nos ocorre é ado exagero gramatical e léxico, apuro desmedido na escolha da expres-são, uma atitude anacrônica. Comumente, pensa-se que, no Brasil, opurismo foi atitude característica da segunda metade do século XIX atéinício do século XX, aproximadamente 1920, e tem-se certeza de quehoje não existe mais tal tipo de comportamento lingüístico.

No entanto, o estudo do purismo como fenômeno lingüístico indi-ca que ele existe em todas as épocas. Em cada período, contudo, aparececom uma configuração diferente, o que é natural, pois decorre da con-cepção de língua e da atitude lingüística de cada momento. A propósitodisso, MALMBERG (1966: 218) escreve:

“O purismo e sua motivação teórica podem constituir, portanto, outroaspecto importante da lingüística moderna. Está condicionado natu-ralmente pelos aspectos sociológicos e pela teoria da comunicaçãolingüística; e resulta, por conseguinte, uma conseqüência lógica damudança introduzida por Saussure com sua insistência no plano dasincronia.”

Incorporando a sugestão do conceituado lingüista, passemos emrevista alguns pontos que envolvem a questão do purismo, até alcançar-mos a posição do problema em relação ao discurso oral culto contempo-râneo.

A pesquisa sobre o surgimento do purismo exige que voltemos aopassado. Os sofistas gregos criaram a Retórica, que tinha por objetivo,para Górgias (Górg. 422), “poder persuadir por meio de discursos osjuízes nos tribunais, os conselheiros no conselho, os membros da assem-bléia e de qualquer outra reunião pública”. Para Platão, era “a arte de

Page 79: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

81

O discurso oral culto.

guiar a alma por meio de raciocínios, não somente nos tribunais e assem-bléias populares, mas também nas conversações particulares”.

ARISTÓTELES (s.d.:184), no entanto, foi quem determinou afunção e o conceito de Retórica que predominaram no mundo durantemuitos séculos. Para esse pensador, a Retórica “é a faculdade de conside-rar em qualquer caso os meios de persuasão disponíveis”.

Aristóteles, na Retórica, lançou as bases da “prosa” e definiu aidéia de “pureza” da linguagem:

“A pureza é o fundamento do estilo e depende de cinco regras. A pri-meira é usar adequadamente os conectivos; a segunda, empregar ter-mos precisos; a terceira, evitar o uso de termos ambíguos; a quarta,empregar os gêneros diversos (masculino, feminino e neutro); a quin-ta, observar o sistema de número.” (ib.id.)

Esse foi o lançamento da pedra fundamental da questão. A partirdaí, o problema foi tratado por aqueles que trabalhavam com a Retóricae adotado de certo modo pelos gramáticos gregos e latinos, que aindaabordavam o tema pelo viés da arte da persuasão, da procura da melhorexpressão para levar o interlocutor ao convencimento, acerca do que in-teressava em cada discurso.

No mundo clássico latino, a pureza da linguagem estava relacio-nada à literatura, em especial ao texto ciceroniano. Os que desejassemusar o melhor latim deveriam imitar a linguagem de Cícero, o latim clás-sico, puro. A linguagem livre do povo, falada ou escrita, era o latimimpuro, vulgar. A transformação desse latim vulgar pelo povo das diver-sas regiões deu origem a diferentes línguas históricas, primeiramentetidas como “dialetos”, no sentido de língua inferior, rude, derivada deoutra principal e de prestígio. Assim se formaram os vernáculos: o fran-cês, o espanhol, o português, o italiano, o romeno, o catalão, o dálmata, oprovençal, o sardo, o reto-romano.

Durante séculos, desde o esfacelamento do império romano, a partirdo século V, esses vernáculos existiram como línguas vulgares, sem língua

Page 80: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

82

LEITE, Marli Quadros. Purismo no discurso oral culto.

literária. Segundo LAUSBERG (1974: 54), os mais antigos textos coe-rentes em língua românica aparecem na seguinte ordem cronológica: fran-cês, séc. IX; provençal séc. XI; italiano, séc. X; espanhol, português,reto-romano, séc. XII; catalão séc. XIII; romeno, que encontrou sua formadefinida no séc. XIX.1

Não foram poucas as tentativas de imprimir às línguas românicaso prestígio do latim. Vários autores italianos, espanhóis, franceses, por-tugueses e até de línguas não latinas, como o inglês, fizeram a descriçãode cada uma dessas línguas de acordo com a estrutura do latim. Comoinforma PADLEY (1983:70), foi o espanhol Nebrija que escreveu, em1492, a Gramatica castellana, “a primeira gramática humanista de umalíngua vulgar”, embora completamente baseada na gramática latina. Esse,no entanto, não foi o caminho acertado para a fixação da norma daslínguas românicas e, aos poucos, gramáticos e filólogos começaram aadotar outras posições.

Os estudos filológicos portugueses acompanharam a teoria da Lin-güística Comparativa, iniciada nas línguas românicas por Frederico Diezem 1836, com o lançamento de sua Gramática das Línguas Românicas.Em português, o primeiro a seguir a tendência da Lingüística Compara-tiva foi Adolfo Coelho. VASCONCELOS (1929: 886) acentua que, de-pois de Adolfo Coelho,

“(...) considerou-se, com rigor maior que dantes, a linguagem comoelemento de nacionalidade, e ao mesmo tempo como caráter étnico, enesse sentido opõe-se um dique à corrente de estrangeirismos.”

No entanto, de acordo com VILELA (1982), a norma purista éanterior a esse período. Sublinhe-se que se trata da pontualização histó-rica da norma purista e não do purismo. O purismo como fenômenolingüístico acompanha o desenvolvimento da língua e, portanto, surge

1 “A língua literária da Roménia (escrita até o séc. XIX, quse exclusiva com letras cirílicase agora com letras latinas) criou-se na Transilvânia durante a época da Reforma tão ricaem obras tipográficas” (ib.)

Page 81: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

83

O discurso oral culto.

em conjunto com ela. Já a norma purista, metalinguagem produzida so-bre certo uso lingüístico, decorre do purismo, que é atitude lingüísticapreservadora de uma norma, mas é fato diverso dele. Assim, para oportuguês, de acordo com o autor citado, a norma purista portuguesa estáprimeiramente documentada no Glossário das palavras e frases da línguafrancesa, que por descuido, ignorância ou necessidade se tem introduzi-do na locução portuguesa moderna; com juízo crítico nas que sãoadotáveis nela, do Cardeal Saraiva, publicado em 1816.

VILELA (1982) explica que, embora o dicionário do Cardeal Sa-raiva tenha sido publicado no século XIX, os dados lingüísticos neleapresentados são referentes ao séc. XVIII, já que um dicionário é elabo-rado a partir de um estado de língua anterior ao de sua publicação. Essefato, então, aponta que a norma purista do português remonta ao séculoXVIII.

Esse purismo do século XVIII nasceu do objetivo da época de

“preservar o ‘antigo e bom uso’, atender ao ‘gênio da língua’, libertara língua do refugado francesismo, defender a natural formosura ‘danossa linguagem’.” ( ib.)

Os princípios norteadores desse purismo eram baseados nos deQuintiliano, acerca da perfeição ou decadência das línguas (analogia ourazão, etimologia, antigüidade, autoridade e uso). Em linhas gerais, os prin-cípios nos quais o Cardeal Saraiva se baseou para elaborar o juízo críticosobre as palavras e expressões que julgou são quatro: a. boa origem: emprimeiro lugar vêm as palavras originárias do latim, em segundo, as dogrego; b. analogia: boa derivação, regularidade de acordo com os modelosprodutivos da língua ou como coerência de significação; c. expressividadeou harmonia: razões fonético-fonológicas (bem soantes), morfossintáticas(boa derivação, colocação, repetição de pronomes etc.), ou semânticas (ex-pressividade, harmonia, significação natural); d. extensão da aceitação,uso: uso dos barões e doutos. Doutos eram os instruídos na língua, os queconheciam os clássicos e eram escritores e críticos nas línguas clássicas, e,também, os escritores nacionais. (Cf. VILELA, op. cit.: 12-16)

Page 82: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

84

LEITE, Marli Quadros. Purismo no discurso oral culto.

Embora não se conheça um trabalho crítico ou científico específi-co sobre o purismo ou a norma purista do século XIX, pode-se dizer queo combate aos galicismos continuou em voga. O Romantismo trouxe onacionalismo que, lingüisticamente, caracterizou-se pelo combate aosestrangeirismos, valorização do vernáculo, e utilização da linguagem re-gionalista.

Os trabalhos filológicos atestam a existência desse purismo noséculo XIX. MOREL PINTO (1976), por exemplo, falando sobre o de-senrolar dos estudos lingüísticos portugueses no século XIX, registrouque o dicionário de Saraiva marcou época pelo zelo purista, gerado pelaleitura dos clássicos, tendo sido exemplo de intransigência e visão estrei-ta dos fatos da língua. Essa foi uma situação que contaminou espíritos egerou polêmicas que caracterizaram a Filologia brasileira e portuguesa.

No Brasil do século XIX, as polêmicas que giraram em torno dalinguagem de José de Alencar ilustram bem esse espírito da época. Alencarfoi acusado de praticar uma linguagem descuidada, cheia de neologis-mos e galicismos. Dessa polêmica participaram portugueses e brasilei-ros contra Alencar. Em verdade, o centro das atenções era Portugal e aprodução lingüística brasileira era toda voltada para lá. O que escapasseà norma clássica portuguesa era duramente criticado. Diga-se, ainda, queos brasileiros eram mais rígidos que os próprios portugueses, pois queri-am deixar patente sua erudição e provar não serem provincianos.

No final do século XIX e início do XX, o Brasil assistiu à polêmi-ca lingüística travada entre Rui Barbosa e Ernesto Carneiro Ribeiro, emtorno da redação do Projeto do Código Civil. Tendo o jurista ClóvisBevilaqua feito o Projeto do Código, a Câmara o enviou, preliminarmen-te, ao Professor baiano, Carneiro Ribeiro, para que este procedesse auma revisão da linguagem usada na redação dos dois mil artigos. TeveCarneiro Ribeiro quatro dias para fazer o trabalho. Escreveu setenta esete emendas ao projeto do Código, muitas das quais objetadas por RuiBarbosa. Isso levou Carneiro Ribeiro a elaborar um texto denominadoLigeiras observações sobre as emendas do Dr. Rui Barbosa, feitas àredação do Código Civil. Rui Barbosa, por sua vez, depois de estudar asLigeiras Observações, continuou discordando do antigo mestre e prepa-

Page 83: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

85

O discurso oral culto.

rou, então, a Réplica às correções do professor baiano. De posse da Ré-plica, Ernesto Carneiro Ribeiro, magoado com as afirmações do SenadorRui Barbosa, foi à Tréplica ao texto de Rui, tendo sido essa a últimapalavra sobre a redação do Código.

O purismo praticado nessa época no Brasil e, pode-se dizer, até àsvésperas do Modernismo, foi exatamente o mesmo iniciado no séculoXVIII. Somente a partir de 1922, tal situação começou a mudar quandoa força da bandeira modernista, a ruptura com o passado, promoveu umamudança no panorama lingüístico brasileiro, por propugnar a valoriza-ção da variante brasileira.

O impacto causado pela linguagem de Mário de Andrade, princi-palmente, e de outros modernistas como Manoel Bandeira e CarlosDrummond de Andrade, abriu espaço para que se praticasse uma lingua-gem menos artificial e mais próxima da linguagem comum brasileira. Osefeitos dessa abertura, no entanto, só se concretizaram efetivamente de-pois de algum tempo decorrido da revolução modernista. Em termos denorma prescritiva, por exemplo, apenas depois da década de 70 algunsdos usos modernistas foram abonados, conforme se pode depreender daanálise dos exemplos das gramáticas de BECHARA (1983) e CUNHA& CINTRA (1985), em confronto com exemplos de outras gramáticasmais antigas, como a de LIMA (1969). Muitos outros usos correntes nalíngua escrita do Brasil ainda são considerados incorretos.

Se a situação é essa em termos de língua escrita, em termos delíngua falada, então, é muito mais acentuada, já que há maior liberdadeem relação a usos “não autorizados”. A língua escrita, mesmo a padrão,praticada pela imprensa – e em todos os outros meios exceto os científi-cos e literários, que têm linguagem especial –, considerada bastante libe-ral, ainda é muito voltada para a norma prescritiva. A língua falada, porsua natureza efêmera, é mais livre da força dessa norma. Mesmo assim,não é difícil observarmos, principalmente no dialeto culto e registro for-mal, qualquer que seja o grau de formalidade, a força da norma prescritiva.Do mesmo modo, não é difícil observarmos, no léxico e na gramática davariante culta da língua, a presença de estruturas não autorizadas pelanorma prescritiva contemporânea. Há, assim, duas forças opostas, um

Page 84: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

86

LEITE, Marli Quadros. Purismo no discurso oral culto.

fluxo inovador e um refluxo conservador, trabalhando na construçãosincrônica do discurso.

Se reconhecemos essas forças presentes na elaboração do discur-so, podemos adotar dois caminhos para estudá-lo: 1º estudar a diversi-dade lingüística provocada pela força renovadora; 2º estudar a unidadelingüística provocada pela força conservadora. Neste trabalho, optamospelo segundo caminho, e localizamos aí o purismo lingüístico.

Examinando, então, o purismo como fenômeno inerente à línguae integrante da força conservadora, podemos dizer que ele é um recursopreservador de norma. Isso significa que há purismo referente a todos osdiscursos de norma implícita, seja o parâmetro para análise do grau deconservação a própria norma implícita, seja a norma explícita. Em rela-ção ao discurso oral culto, o purismo nasce do conflito entre a sua normaimplícita e a norma explícita. Como os falantes imaginam estar próxi-mos da norma prescritiva (cf. Barros, neste volume) lutam para conservá-la em suas falas. É, assim, possível verificar esse esforço aparente no fiodo discurso. Portanto, pode-se analisar o purismo manifestado nos se-guintes níveis:

1. No léxico – uso de palavras não desgastadas pela linguagemcomum;

2. Na gramática – preservação, tal como previstas na normaprescritiva, de estruturas morfossintáticas, já expostas à diver-sidade na linguagem comum.

Entendido o purismo dessa forma, desaparece o estigma que pesasobre ele, por estar relacionado a um período em que a concepção delíngua em vigor levou gramáticos e literatos à prática não do purismo,mas do terrorismo purista, como afirmou CUNHA (1986: 45). Portanto,podemos dizer que o purismo possui características que se coadunamcom a concepção de língua e atitude língüística predominante em cadaépoca.

Page 85: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

87

O discurso oral culto.

2. O discurso oral culto: purismo e antipurismo

As modalidades lingüísticas falada e escrita, embora diferentesentre si quanto ao tipo de enunciação, apresentam muitos pontos co-muns. O primeiro, e óbvio, é a identidade sistêmica, pois, apesar de dife-rentes, são modalidades da mesma língua. O segundo, e em maior grauquanto ao discurso oral culto, é a coincidência entre as normas implícitae explícita, em muitos pontos2. Analisaremos, a seguir, textos de falantescultos, produzidos em situação de formalidade, para mostrar a presençado purismo.

Podemos afirmar que, em relação à variedade brasileira do portugu-ês, não há norma descrita da língua falada ou da escrita. A propósito disso,bem o disseram CUNHA & CINTRA (1985: 8) quando afirmaram:

É justamente para chegarem a um conceito mais preciso de ‘correção’em cada idioma que os lingüistas atuais vêm tentando estabelecer mé-todos que possibilitem a descrição minuciosa de suas variedades cul-tas, seja na forma falada, seja na escrita. Sem investigações pacientes,sem métodos descritivos aperfeiçoados nunca alcançaremos determi-nar o que, no domínio da nossa língua ou de uma área dela, é de em-prego obrigatório, o que é facultativo, o que é tolerável, o que é gros-seiro, o que é inadmissível; ou, em termos radicais, o que é e o que nãoé correto.” (Grifamos)

Enquanto não há tal precisão dos estudos lingüísticos, toma-se anorma prescritiva portuguesa em vigor para todas as formas dialetais doportuguês (europeu, americano, africano e asiático), mas com discordân-cias localizadas em certos pontos, que levam os falantes, em muitas situ-ações, à desconfortável sensação de pensarem não saber a sua língua3.

2 Cf. Stanley Alèong (1983: 261)3 Referimo-nos em específico ao falante culto, ou seja, àquele versado em sua língua, que

conhece os escritores contemporâneos e que tem contato freqüente com a língua escrita.O controle das variáveis sociolingüísticas envolvidas no conceito de falante culto foirealizado pelo Projeto NURC/SP – Núcleo USP e, objetivamente, está fundado no nível

Page 86: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

88

LEITE, Marli Quadros. Purismo no discurso oral culto.

Não obstante isso, o estudo, o conhecimento da norma prescritiva contri-bui efetivamente para a unidade lingüística, o que pode ser comprovadopela análise do discurso oral de um falante do dialeto culto. Esse tipo deanálise mostra que o falante não se afasta muito do prescrito. Há muitasinterferências situacionais e pragmáticas, sentidas no fio do discurso,mas, mesmo assim, não é alarmante a divergência. É importante salien-tar que a luta entre a força conservadora, manifestada pelo uso de léxicoe estruturas não freqüentes no uso da língua, mas coincidentes com anorma prescritiva, e a inovadora, manifestada pelo uso de léxico e estru-turas não autorizadas pela norma prescritiva, é aparente no discurso oralculto porque há dualidade de uso em torno de um mesmo fato gramati-cal4. Em outras palavras, podemos dizer que há purismo quando se veri-ficam usos da norma prescritiva que constituem desvios em relação ànorma descritiva. Por outro lado, o antipurismo caracteriza-se pelos usosda norma descritiva que constituem desvios em relação à normaprescritiva. Nesse caso, há tensão de normas, e somente o uso reiterado,somado à autoridade dos que adotarem preferencialmente uma ou outraforma, decidirá pela consolidação de uma delas em situação de formali-dade, na língua falada, ou na língua escrita5.

de escolaridade que – em relação aos informantes que se dispuseram a gravar aulas uni-versitárias, entrevistas, diálogos e conferências – é sempre universitário. Todavia, sabe-mos que apenas a variável nível de escolaridade não é condição necessária e suficientepara a definição de falante culto. Se não se exigir objetividade de critério, pode-se dizerque o falante culto é aquele que se adapta a todas as situações de comunicação, variandoseu registro de acordo com as circunstâncias da comunicação. (Cf. PRETI, 1990)

4 Consideramos inovador o que se contrapõe a prescritivo, que é a configuração conserva-dora explícita da língua. COSERIU (1979:71) diz: “Uma inovação – deixando-se de ladoas possíveis mas muito raras criações ex nihilo – pode ser: a) alteração dum modelotradicional; b) seleção entre variantes e modos isofuncionais existentes na língua, c)criação sistemática (‘invenção’ de formas de acordo com as possibilidades do sistema);d) empréstimo de outra ‘língua’ (que pode ser total ou parcial e, em relação a seu modelo,pode implicar também ‘alteração’); e) economia funcional (negligência de distinções su-pérfluas no discurso).

5 A norma implícita é correspondente à norma descritiva, que é o uso objetivo da língua. Jáa norma explícita corresponde à norma prescritiva, que é o conjunto de regras extraídas

Page 87: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

89

O discurso oral culto.

Isso quer dizer que, em relação ao registro culto, a demonstraçãodo saber normativo prescritivo e sua manutenção constituem um dosfatores que caracterizam o purismo lingüístico. Se, como se sabe, opurismo era a tentativa de preservação do “antigo e bom português”,praticado pelos “barões doutos”, que eram os versados na língua e litera-tura nacionais e sabedores das línguas e literaturas clássicas, hoje há tam-bém um purismo praticado por “doutos”. No entanto, a configuração do“douto” contemporâneo, que é o sujeito capaz de praticar o discurso orale escrito culto formal, é muito diferente daquela dos séculos anteriores(Cf. BARROS, neste volume, para definição de locutor culto).

Com intuito de mostrar o conflito de forças conservadoras e reno-vadoras, atuantes no discurso oral culto contemporâneo, tomamos paraanálise o seguinte corpus:

a) Elocuções formais (EF), do PROJETO NURC/SP – NúcleoUSP;

• inquérito nº 124 – aula universitária sobre a influência dalíngua na personalidade do indivíduo.

• inquérito nº 153 – conferência sobre o cinema brasileiro, nadécada de trinta.

• inquérito nº 156 – conferência sobre a estética no Brasil, nadécada de trinta.

b) Entrevista do Presidente Fernando Henrique Cardoso, sobreproblemas sócio-político-econômicos brasileiros.

Além desses, os textos normativo-prescritivos tomados como pon-to de apoio foram o de Celso Cunha e Lindley Cintra, na Nova gramáticado português contemporâneo, 1985, e o de Evanildo Bechara, na Modernagramática do português, 1983. A investigação abrange o léxico e algunspontos gramaticais da língua. O critério de eleição dos pontos a serem

de textos literários de escritores de prestígio na língua, com o objetivo de levar os usuá-rios ao “bom uso” da língua.

Page 88: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

90

LEITE, Marli Quadros. Purismo no discurso oral culto.

analisados foi o da escolha de palavras e estruturas que apresentaram ten-são com a norma prescritiva, para, a partir daí, trabalhando com os pólosconvergente e divergente, poder-se esboçar uma conclusão sobre o assun-to. A seguir, destacaremos exemplos que caracterizam o uso conservador eo inovador em termos de léxico e gramática.

2.1 Quanto ao léxico

De modo geral, no corpus analisado não encontramos arcaísmos,latinismos e cultismos. As palavras e expressões usadas não oferecemdificuldade de compreensão ao falante comum, mesmo sendo os textosprodutos de discursos específicos para público especializado: duas con-ferências e uma aula universitária. Apenas a entrevista do PresidenteFernando Henrique Cardoso tem como destino o público em geral. Nãohouve, também, exageros de usos populares, embora em todos os textostenha havido palavras e expressões bem típicas desse registro.

2.1.1 Purismo

Mais uma vez fica confirmado ser o léxico o setor da língua quemais rapidamente se recicla. Nos textos analisados encontramos, em ter-mos absolutos, poucas palavras que podem ser consideradas restritas aodialeto culto. É bem verdade que não há possibilidade de se estabeleceruma linha demarcatória entre os dialetos culto e popular, já que as pes-soas, ao desempenharem seus papéis sociais, transitam por diferentescomunidades lingüísticas, levando e trazendo usos próprios dos seus gru-pos, que, naturalmente, terminam comuns a muitas comunidades6.

Mesmo assim, assinalamos algumas palavras que podem ser con-sideradas mais adequadas ao registro culto. Em primeiro lugar, um caso

6 Cf. texto de PRETI, neste volume.

Page 89: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

91

O discurso oral culto.

de prosódia: a pronúncia da palavra boêmia, com a acentuação na penúl-tima sílaba, exatamente como recomendada pela norma tradicional. Essa,inclusive, é uma das palavras arroladas por CUNHA & CINTRA(1985:58) no item Observações sobre a pronúncia culta.

No mesmo trecho, outro uso culto é a formação do grau superlati-vo absoluto sintético do adjetivo célebre, que faz celebérrimo, a partir daforma latina. Sobre isso dizem CUNHA & CINTRA (1985: 250-1): “Tam-bém os superlativos em -imo e -rimo representam simples formaçõeslatinas. Com exclusão de facílimo, dificílimo e paupérrimo (superlativosde fácil, difícil e pobre), que pertencem à linguagem coloquial, são todosde uso literário e um tanto precioso”. Entre os exemplos dados pelosgramáticos, figura o usado abaixo pelo informante:

Inf. ... a fita apresentava... éh desde Paraguaçu... que era um célebre cantor

cantor de Bem-te-vi... celebérrimo... em São Paulo... veterano das sere-

natas boêmias... e dos serões familiares ah paulistanos... apresentava

desde Paraguaçu até Zezé Lara... EF 153 - l. 502-507 7

Um caso de arcaísmo, relativo ao uso brasileiro, é o da palavracousa, registrado, no Brasil, na literatura, até, aproximadamente, o pri-meiro quartel do século vinte. BECHARA (1985: 61), no entanto, afirma“que o ditongo ou alterna, em numerosos vocábulos, com oi” e dá algunsexemplos como “calouro e caloiro, dourar e doirar”, e explica, em se-guida, que a primeira forma é a mais usada, a outra, a variante. Embora alição do gramático seja correta, pois só restritamente se diz doirar e qua-se nunca, ou nunca, caloiro, relativamente à forma cousa, pode-se dizer,ao contrário, que, contemporaneamente, são raros os registros de suarealização com o ditongo ou, sendo a forma corrente a realizada com oditongo oi. Entre inúmeras atualizações de coisa, ocorreu uma de cousa,que tomamos para confirmar a presença de mais um caso de uso conser-vador na língua. A seguir, o trecho:

7 Lê-se assim o código: Elocução Formal, inquérito 153, linhas 502 a 507. In: CASTILHO,A. T. de & PRETI, D. (1986)

Page 90: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

92

LEITE, Marli Quadros. Purismo no discurso oral culto.

Inf. ... escreveu que... os filmes americanos já fizeram muito pelo Brasil...

levaram a civilização... aos nossos sertões... nós poderíamos dizer hoje...

que a grande cousa... que os curtas-metragens fizeram... foi o levar... foi

levar o sertão... à nossa civilização... EF 156 - l. 696-702

Uma ocorrência bastante diferente das demais é a do uso do termoeventuar, criado pelo informante, segundo ele, a partir do decalque doinglês. Por paradoxal que pareça, esse é um exemplo de neologismo mar-cado, nesse texto, pelo conservadorismo. É bem verdade que o falanteteria disponível uma série de outros termos portugueses para imprimir osentido que estava buscando no momento da organização do discurso.Não se pode precisar, porém: 1. se lhe ocorreram outros termos, mas eleescolheu formar uma nova palavra para expressar o sentido exato de queprecisava, a fim de dar continuidade ao seu raciocínio; 2. ou, se não lhevieram à mente outros termos, e, então, recorreu à possibilidade, ofereci-da pelo sistema da língua, de formar uma palavra nova, nesse caso, apartir do nome evento, ou a partir, diretamente, do decalque do nomeinglês event, conforme declarou8. Resta explicar porque o exemplo temmarca de conservadorismo, mesmo sendo novo. Vimos claramente a pre-ocupação da informante em evidenciar que usou um termo não autoriza-do pelo dicionário português e, ainda, que o recém formado tinha “linha-gem”, por ser raro, mas no inglês. Por meio dessa metalinguagem cons-truiu a erudição de que precisava naquele momento. Foi conservadora,sendo inovadora. Vejamos a passagem:

Inf. como diz... ahn Whorf... “não se pode dizer que as coisas vão acontecer...

que elas aconteceram... ou que elas acontecem agora as coisas sempre...se E-VEN-TU-AM” ... ( ) ... - - eu procurei no Pequeno dicionário... da

língua portuguesa e não encontrei a palavra eventuar... e em inglês é

palavra rara eu vi lá... termo raro... mas ele diz para o hopi... EF 124 -

l.166 a 169

8 No Oxford Advanced Learner’s Dictionary não há registro do termo event como verbo.

Page 91: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

93

O discurso oral culto.

Conforme PRETI (1982: 29), embora seja difícil estabelecer dis-tinções nítidas entre o léxico da linguagem culta e o da popular, é possí-vel estabelecer entre ambos algumas diferenças, pois o daquela é maisvariado, mais preciso e com incidência de vocábulos técnicos. De acordocom esse raciocínio, o autor apresenta uma pequena lista de vocábulosmais próprios à linguagem culta e, outros, à linguagem popular. Dentreesses, arrola como mais comuns ao uso culto, por exemplo, tênue, emoposição à fraco, da popular, entre outros exemplifica: penumbra/som-bra, ausentar-se/sair, tendência/queda, conversa/papo, ociosidade/gandaia. Além disso, esclarece que, enquanto umas palavras adaptam-seexclusivamente a um ou outro dialeto, outras são de uso corrente emambos, o que força estabelecer um dialeto intermediário entre o culto e opopular, ao que denominou linguagem comum. Nos textos analisados, amaioria absoluta das palavras faz parte da linguagem comum e apenaspequena parte é de uso restrito ao dialeto culto. Mais adiante, veremosque há também certa quantidade de expressões típicas do dialeto po-pular, apesar de os textos serem oriundos de pessoas cultas, e colhidos deregistro formal. Nos exemplos seguintes, vemos que os falantes, em al-gumas oportunidades, preferiram termos não desgastados pelo uso coti-diano. Talvez, os motivos que os levam a isso sejam a necessidade deprecisão, ou a simples oportunidade de usar termos mais rebuscados,para sinalizar que conhecem a norma culta,ou, ainda, para imprimir maisexpressividade ao discurso. Alguns desses termos podem ser, inclusive,parte integrante do vocabulário ativo dos informantes. Sobre todas essaspossibilidades, podemos fazer inferências, mas não afirmações categóri-cas, porque não se fizeram estudos relativos aos seus objetivos e esco-lhas lingüísticas.

O primeiro exemplo traz a palavra devir, usada com o sentido devir a ser, transformar-se, brevemente parafraseada pelo “é a mudançacontínua”, expressão enunciada logo após o termo escolhido, para ex-pressar aquele sentido. Vejamos o texto:

Inf. ...o característico... de todo organismo de todo sistema vivo... é o contí-

nuo devir é a mudança... contínua... EF 124 - l. 550-552

Page 92: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

94

LEITE, Marli Quadros. Purismo no discurso oral culto.

Nos exemplos seguintes, os informantes usaram os termos semlhes fazer nenhuma paráfrase, o que indica estar o falante certo da com-preensão, por parte dos interlocutores, acerca do sentido de cada um deles.Em primeiro lugar, temos a palavra portentosa que o informante usa pararessaltar a importância da carreira de Lévi-Strauss. Essa escolha, nãosomente pelo inusitado no discurso oral, mas também pela sonoridade dapalavra, imprime expressividade, realmente, ao sentido de prodigiosidade,de maravilha de assombro que foi, e é, a carreira do ilustre cientista so-cial a que se referia.

Inf. nós vamos ver então... a atuação de dois professores... Jean (Moguet) e

Claude Lévi-Strauss... que tinha nessa ocasião vinte e sete anos e come-

çava no Brasil a sua portentosa carreira uni/universitária... EF 156 - l.

100-104

Outras palavras próprias do dialeto e registro cultos são usadaspelos informantes das Elocuções Formais (EF), nas quais encontramostodos os termos cultos detectados no corpus. Leiamos, a seguir, exem-plos em que há outras palavras que podem ser classificadas como cultas.

Inf. a pintura contemporânea se fixa... no cubismo... e é todo ele marcado...

pela idéia de que o cubismo foi um movimento paradoxal... na medida

em que... deu nascimento e... que na éh que tendo nascido e se desenvol-

vido sob o signo de do diVÓRcio entre a arte e o público... acabou pene-

trando de uma maneira insidiosa... a:: en/ nas formas que ele chama

mais pobres e mais utilitárias da expressão... EF 156 - l. 172-180

Inf. ... uma visão marxista mais... de fundo hegeliano... CHEIA de extraordi-

nária acuidade... de percepção...o seu ponto de referência é sempre a

pintura flamenga do século XVIII... EF 156 - l. 319 - 322

Inf. ... a atriz e diretora... ahn dos seus próprios filmes... a pesquisa ainda não

deslindou... a idá/ a identidade exata... dessa senhora tal cujas fotogra-

fia... ah realmente causam uma impressão grande... EF 153 - l. 279-283

Page 93: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

95

O discurso oral culto.

Inf. ... a personagem principal... encarnada por Cleo de Verberena... era... a

mulher assassinada... e que está na fita o tempo todo... muito viva bem

viva... nas reminiscências de todas as pessoas que tiveram contato com

ela... EF 153 - l. 385-389

Inf. ... os jornais cariocas registraram... com extraordinária freqüência... a

estupefação... causada por esses filmes... me impressionou notadamen-

te... uma:: uma série de artigos... do historiador e sociólogo Oliveira

Viana... para o Jornal do Comércio... o intelectual... conservador que ele

era... fica esTARRECIdo com o que vê... e clama aos céus... para... para

que se faça... alguma coisa... EF 156 - l. 686-694

Inf. mas antes da década de trinta se exaurir... aconteceu alguma coisa no

cinema brasileiro... EF 156 - l. 788-799

Verificamos que, curiosamente, não apareceu nenhum exemplode uso de termo culto no discurso do Presidente da República, analisa-do aqui. No discurso de Fernando Henrique Cardoso (FHC) aparece-ram apenas palavras e expressões comuns, de fácil alcance a qualquerusuário da língua portuguesa. Talvez o objetivo político do discursoseja o fator determinante de tal escolha. O discurso presidencial já está“pré-moldado” a uma fórmula que vem dando certo ao longo dos anos:vocabulário simples, linguagem comum, com algumas expressões po-pulares, elaborada a partir de uma sintaxe descomplicada, todaconstruída na ordem direta. Quanto à adaptação do discurso à situação,observa-se a utilização de um grau moderado de formalidade quantoao tom e postura de voz e corpo. Enfim, um discurso trajado à moda“esporte fino”, que não fere os ouvidos dos letrados e alcança o povode modo geral, a massa. É um bom exemplo de atualização da lingua-gem da mídia9.

9 Cf. texto de PRETI, neste volume.

Page 94: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

96

LEITE, Marli Quadros. Purismo no discurso oral culto.

2.1.2 Antipurismo

Se, com referência à utilização de termos cultos, foi-nos impossí-vel selecionar exemplos no discurso de Fernando Henrique, o mesmonão acontece em relação à presença de expressões populares. Os exem-plos listados abaixo ilustram como o Presidente insere naturalmente pa-lavras de baixo prestígio social num discurso formal. A formalidade éinerente a situações como esta em que o chefe da nação se dirige aopovo. Não bastasse isso, foi o primeiro pronunciamento do ano de 1996,quando fez o balanço da ação do governo, referente ao ano de 1995. Aentrevista concedida após o pronunciamento, que analisamos aqui, foidada aos jornalistas dos mais expressivos meios de comunicação do país.Todos esses fatores compõem um quadro de formalismo para o discurso.Nos demais textos, ao contrário, encontramos menos palavras e expres-sões típicas do dialeto popular, ou de registro informal.

Inicialmente, observemos que algumas palavras são comuns e pró-prias ao discurso informal. Inseridas no discurso formal, palavras comoas grifadas nos textos apresentados abaixo criam efeitos de sentidos di-versos, que exercem função pragmática importante. A utilização de chu-tando, por exemplo, pela informalidade, quebra o choque que o ouvintepoderia ter com a informação de que os conferencistas não têm plenodomínio dos dados a que se propuseram comentar. Então, a informalidadecriada pelo termo usado causa uma sensação de proximidade e cumplici-dade entre falante e ouvintes e parece tornar a informação irrelevante.Leiam-se os trechos:

FHC “então... digamos que no Brasil sejam 66 anos... eu estou chutando...

porque eu não sei de cor...” 6 §310

Inf. vocês pegam a literatura do Ocidente toda... Odisséia por exemplo a Eneida...

não é? há toda essa idéia de viagem... isso tem uma influência muito grande

eu creio... – eu poderia estar chutando aqui um pouco – EF 124 - l. 67 -71

10 Lê-se assim o código: pergunta nº 06, terceiro parágrafo (transcrição da entrevista, publi-cada pela Folha de São Paulo, no dia 17/01/1996.)

Page 95: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

97

O discurso oral culto.

Outras funções exercem as palavras mexe, comendo e choramin-gueira dos excertos abaixo. A polêmica e as dúvidas causadas pela refor-ma da Previdência, quanto ao problema das categorias profissionais queseriam mais atingidas no que se refere à perda de direitos em vigor atual-mente, fez o Presidente usar um termo que, empregado em sentido figu-rado e em referência a pessoas, é, preferencialmente, usado no discursoinformal. Também o emprego do verbo comer por alimentar-se, maisadequado a uma situação de formalidade como essa, desempenha funçãopragmática específica de aproximação com o povo, a massa assalariadaque luta para conseguir alimentação básica, ou seja, para “comer”. Nessetrecho, inclusive, o Presidente, usa uma debreagem de 2º grau, inventan-do um discurso direto da sua própria fala que cria um efeito de sentido deverdade por meio do seu discurso11 (Cf. FIORIN, 1989: 46). O contextoem que se encontram as palavras demonstram o que dissemos:

FHC “e a reforma da Previdência mexe com todo mundo...” 6 §2

FHC “e ir para a eleição com força... mostrando o que nós estamos fazendo...

‘olha... estão comendo melhor... teve avanço aqui... na agricultura resolve-

mos tal problema... a Previdência foi feita com acordo... salvamos o futuro

da Previdência... sua aposentadoria está garantida... você que é aposenta-

do não se preocupe... não ouça o murmurinho do pessoal que torce contra

o Brasil... vai estar garantida... o governo garantiu...’ acreditar e defender

com entusiasmo... os aliados percebendo isso... ganham as eleições” 10 §1

O emprego de choramingueira, por reclamação ou protesto, é maisum exemplo de como o Presidente utiliza o expediente da linguagem figu-rada popular (pelo menos nesse sentido) para convencer os ouvintes deque está seguro a respeito do que diz e de que o governo está certo. O efeitode sentido criado é a banalização do problema abordado, a fim de desarmaro entrevistador que foi bastante enfático e crítico na pergunta formulada12.

11 Projeção da instância da enunciação no enunciado, pelo discurso direto, nesse caso específico.12 A pergunta do jornalista foi a seguinte: “Boa tarde, Presidente. O sr. mesmo já admitiu

que houve erros na agricultura no primeiro ano do mandato. Já temos aí uma anunciada

Page 96: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

98

LEITE, Marli Quadros. Purismo no discurso oral culto.

FHC “...de modo que eu não acredito nessa choramingueira... em previsão de

catástrofe sempre” 9 §2

A utilização da expressão nada a ver no discurso culto confirma ouso, comum no Brasil, da regência ter a, que entra na estrutura completada expressão nada ter a ver, condenada outrora por ser galicismo, hojereduzida a nada a ver. Isso é o que nos diz NASCENTES (1944: 206).Vejamos os exemplos:

FHC “...ontem os sem-terra ocuparam três repartições do Ministério da Fa-

zenda... que não tinham nada a ver com o assunto...” 8a §2

As expressões grifadas nos trechos seguintes demonstram, defini-tivamente, os apelos à informalidade havidos em discursos de caráterformal. No primeiro trecho, o Presidente por meio da metáfora do tiro nopé reage ao (sob a sua ótica) pessimismo a respeito do sucesso da políticaagrícola do Brasil, fazendo a pergunta retórica sobre o porquê de os bra-sileiros estarem sempre se prejudicando, tirando suas próprias forças aonão acreditarem nos propósitos governamentais sobre a questão da agri-cultura.

FHC “se lá fora acredita... põe dinheiro aqui... porque que nós vamos estar

permanentemente dando tiro no pé? Vamos ver o problema e resolver...

com confiança” 9 §6

Outra metáfora popular usada foi leite de pato, para dizer que onegócio em pauta, o fato de o governo de São Paulo ter assumido a dí-vida do BANESPA, era fantasia. Dessa vez, no entanto, o falante se res-

redução de safra em torno de 10% e os recentes problemas climáticos devem piorar essasituação. Novamente o problema é com o Ministro ou o sr. já tem algum plano pararesolver a questão?” A referência do jornalista ao Ministro deve-se ao fato de ter, naresposta anterior, o Presidente ter afirmado que a nomeação do presidente do INCRA eraassunto do Ministro da Agricultura.

Page 97: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

99

O discurso oral culto.

guardou, tentou proteger a sua face, sua imagem, atrás da afirmação deser vulgar aquela expressão. Leiamos o texto:

FHC “coisa que... no passado... não era assim... não...no passado era ao que

se chamava vulgarmente de leite de pato... não foi leite de pato... não foi

leite de pato... nós vamos vender o que foi a parte do patrimônio que veio

para o governo federal...” 7 §4

No terceiro texto, o informante, um professor universitário, inter-rompe drasticamente a mensagem que vinha formulando, ao usar umaexpressão popular tão logo percebeu não ter segurança da informação quetentava passar. Desse modo, quebrou o clima de expectativa que poderiaestar sendo formado em torno da sua indecisão, enunciada pelo se não meengano... não sei se... A estratégia escolhida de “entregar a face”, violenta-mente como o fez, encerrou a dúvida, deixou confortáveis falante e ouvin-tes, já que o conteúdo se tornou irrelevante para o contexto:

Inf. é a epopéia de Gulgamesh que... foi escrita em língua síria... se não me

engano ou siberiana não sei em que diabo de língua foi escrita... e que

aliás até hoje se lê com agrado EF 124 - l. 52-56

O próximo texto traz a expressão saco de gatos, usada, pelo quese pode perceber no contexto, com objetivo de atingir o conteúdo propo-sicional formulado no momento, elaborando rápida e fortemente a idéiada heterogeneidade e desorganização da comissão a que se referia.

Inf. ... o setor do comércio cinematográfico... totalmente subordinado... aos

interesses da indústria americana de cinema... a comissão era um saco

de gatos... comerciantes de cinema.... produtores... educadores... jorna-

listas... EF 153 - l. 626-630

A análise do último texto mostra que nem tudo que é popularpode entrar explicitamente no discurso oral culto. Mesmo se protegido

Page 98: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

100

LEITE, Marli Quadros. Purismo no discurso oral culto.

por um bom objetivo. No trecho a seguir apresentado, vemos que asreticências escondem a palavra proibida no contexto, embora todos sou-bessem qual era ela. A utilização do popular no culto, ou do informal noformal causa a ruptura que cria o efeito de sentido desejado pelo locutor.Nesse caso, o efeito visado era o humorístico, e foi alcançado, o que podeser verificado no registro dos risos da platéia, como se pode ler no trechoa seguir apresentado:

Inf. em que aparecia então o bandeirante... ahn... como sempre... tal mas em

vez de non ducor duco não é?... ele dizia senhores membros da censura

vão a ... ((risos)) e chegou a fazer o filme tal... EF 153 - l. 729-733

A expressão interrogativa cadê, de uso corrente na linguagem co-mum informal do Brasil, aparece aqui, sem cerimônia, em um texto delinguagem culta formal. Pode-se até argumentar que o tipo de linguagemutilizada em aulas universitárias não é tão formal e, ainda, que esta é umasituação a ser considerada como de baixo grau de formalidade. É neces-sário ressaltar, no entanto, dois pontos em relação ao texto que ora anali-samos: primeiro, a aula foi gravada em 1972, quando havia maior aten-ção, do que hoje, pelo menos, a situações como essa; segundo, o locutorsabia estar sendo gravado, o que, em geral, faz elevar o grau de formali-dade da situação e da linguagem. Por isso, entendemos que a situaçãopode ser considerada formal, sem restrições. A expressão citada não constano texto das gramáticas de Celso Cunha & Lindley Cintra nem na deEvanildo Bechara, e é a seguinte:

Inf. cadê o segundo ano? tem alguém do segundo ano? EF 124 - l. 225

Como se pode perceber pelos exemplos arrolados, as expressõespopulares ou as comuns informais têm funções diversas e definidas den-tro de um texto culto formal e são usadas com objetivos claros. Dessemodo, pode-se afirmar que desempenham função ideacional, interpesso-al ou textual (Cf. HALLIDAY, 1976: 134), sendo a interpessoal maissaliente que as demais.

Page 99: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

101

O discurso oral culto.

2.2 Quanto à gramática

2.2.1 Modos e tempos verbais

Nos textos analisados observamos não haver grande variedade detempos e modos verbais. Entre os tempos simples predominam o pre-sente (também com valor de passado) e os pretéritos perfeito e imperfei-to do indicativo. São poucos o presente e o imperfeito do subjuntivo eraros os futuros simples, porque substituídos por perífrases. Tempos com-postos e voz passiva aparecem também em pequena quantidade.

A substituição do futuro simples do indicativo por perífrase é fatoantigo na língua e tem origem no latim. A explicação para isso apresenta-a MOREIRA (1906: 363-68) que diz: “Em latim, exprimia-se por meiode tempos do conjuntivo a idéia que nós designamos com o condicional(...). Mas ao lado dessa sintaxe do latim clássico surgiu outra no latimvulgar. Assim como de expressões amare habeo formadas com o presen-te do verbo habere resultou o futuro amarei, assim de outras expressõesformadas com o imperfeito d’aquele verbo, amare habebam, proveiooutra forma, amaria, a que se deu o nome de condicional por se empre-gar principalmente no discurso condicionado, mas que propriamente éapenas um futuro em pretérito, como se vê nos seguintes exemplos: ‘dizque virá’, ‘disse que viria’. Hoje na linguagem popular o condicional équase desconhecido. Diz-se sempre: ‘ele ia se o mandassem’ e não ‘eleiria’.”

Também sobre o futuro do presente, o autor diz que era freqüente-mente substituído pelo presente ou pela forma perifrástica, o que é umretorno à forma antiga: verbo no infinitivo + verbo haver conjugado (p.ex. ir + hei = irei), que era também uma perífrase.

2.2.1.1 Purismo

Em relação à utilização de verbos, o que vimos digno de notaforam alguns fatos que passaremos a analisar. Em primeiro lugar, verifi-

Page 100: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

102

LEITE, Marli Quadros. Purismo no discurso oral culto.

camos que o verbo haver impessoal existe, mas recebe a forte concorrên-cia do verbo ter, com o mesmo valor, tanto nos tempos simples quantonos compostos. O uso do ter será comentado no item 2.1.2. Vejam-se osseguintes exemplos:

FHC “então a gente tem que ser muito objetivo nessas coisas... não negar a

realidade ... há problemas... mas também não pode pensar que generali-

zando esse problemas se resolve as questões... não se resolve” 1a - § 6

Inf. quer dizer... há línguas semitas que têm uma outra estrutura uma estrutu-

ra em que há ahn.. formas vazias triliterais.... EF 124 - l. 358-360

Inf. é republicado o livro de Vicente Licínio Cardoso A Filosofia da Arte... que

havia se originado num curso de arte aos arquitetos... EF 124 - l. 34-37

Os futuros, embora poucos, são outra característica conservadorado discurso oral culto, já que, segundo dizem os gramáticos e filólogos,são relativamente raros na língua falada (Cf. CUNHA & CINTRA, 1985:448) e MOREIRA (1909: 363-68).

FHC “eu sou muito tranqüilo e confiante... gostaria que se plantasse mais...

vai-se plantar mais...” 9 §5

Inf. e eu acredito que é mais importante para nós pararmos um pouco na

meditação do sistema de Arte que ele estabeleceu... do que em pequenas

manifestações espoRÁ::dicas... que não terão... tanta importância poste-

rior... EF 156 - l. 18-26

2.2.1.2 Antipurismo

Depois de verificarmos a presença de algumas formas verbais nofuturo, vejamos o peso das perífrases da fala culta. Em primeiro lugar, há

Page 101: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

103

O discurso oral culto.

presença significativa da perífrase formada com o verbo ir + verbo prin-cipal, na acepção de futuro, como é visível nos trechos a seguir transcri-tos:

FHC “ a União vai financiar num prazo longo... numa taxa definida de juros...

o que imporá ao tesouro de São Paulo... uma restrição forte” 2 §1

Inf. esta a idéia principal de Licí/ de Vicente Licínio Cardoso que vai se trans-

formar... numa idéia:: bana::l para nós hoje em dia... EF 156 - l. 49-51

As perífrases formadas com outros verbos que não o ir aparecemem menor quantidade e, às vezes, trazem flexionados os dois verbos,como no passo seguinte:

Inf. em todo o caso... neste nível de análise... eu creio que nós podemos utili-

zarmos desta reflexão... para um grande número de grupos humanos...

EF 124 - l. 189-191

As perífrases com gerúndio também são abundantíssimas e apa-recem, predominantemente, na acepção de presente. Conforme vemosnos exemplos:

Inf. ...então ele... estabelece um ponto de ligação entre essa estética euro-

péia... e uma estética que nós podemos dizer brasileira... está se fazendo

na sombra... Lévi-Strauss... EF 156 - l. 137-40

FHC “veja... o governo não está lançando mão de política salarial para con-

ter o déficit público... 3a § 1

Finalmente, o mais renovador dos usos em termos de verbo: oemprego de ter por haver. MOREIRA (1922: 118 e180) comenta essefato, registrando (p. 118) que a troca de ter por haver é fato do português

Page 102: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

104

LEITE, Marli Quadros. Purismo no discurso oral culto.

popular do Brasil. Na página 180, registra que o mesmo fato ocorre noportuguês indo-europeu do Norte. Para esse uso, entretanto, o estudiosoda sintaxe popular portuguesa não deu nenhuma explicação, tendo-o re-gistrado, apenas, para comprovar a sua existência.

Em relação ao português brasileiro, essa estrutura verbal tambémnão é nova, pois é empregada na fala familiar ou no dialeto popular. Noentanto, no dialeto falado culto, é forma viva hoje e concorre com ohaver. Vejamos alguns exemplos:

FHC “e ir para a eleição com força... mostrando o que nós estamos fazendo...

‘olha... estão comendo melhor... teve avanço aqui... na agricultura resol-

vemos tal problema...” 10 §1

Inf. ...na última parte... das das aulas de terça-feira passada tinha muito pou-

ca gente... EF 124 - l. 3-4

Inf. só o segundo ano?... tem alguém do segundo ano?... EF 124 - l. 230

2.3 Regência verbal

2.3.1 Purismo

O campo da regência verbal, diferentemente do da concordância,oferece maior possibilidade de inovações dentro do discurso oral culto,pois aqui, é menor o número de casos em que há identidade do uso cultocom a norma prescritiva. Ainda assim, há identidades. Destacamos aregência do verbo de movimento ir seguido da preposição a, e não emcomo é mais comum no Brasil. Talvez isso indique não ter tido a estru-tura com em força suficiente para invadir a fala culta formal, o que a fazpermanecer ainda como fato típico do dialeto popular, ou do registroculto informal. O verbo obedecer foi usado também de acordo com aprescrição.

Page 103: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

105

O discurso oral culto.

Inf. O mito não é um acontecimento do passado... o mito é algo que aconte-

ceu... segundo... um esquema narrativo que pode obedecer a variações

mas há uma história no mito... EF 124 - l. 150-153

O verbo ter aparece igualmente regido pela preposição de e pelopronome que. Antigamente, já se rejeitou a expressão ter que, mas o usoa consagrou13. Como explica LIMA (1969: 377), houve um cruzamentosintático entre as formas ter + que + infinitivo transitivo, das orações dotipo “Tenho umas cartas que escrever”, e a ter + de + infinitivo intransitivo,ou transitivo, das orações do tipo “Temos de morrer ou Temos de escre-ver umas cartas”. Essas expressões, cruzadas, geraram uma nova: “Te-nho que escrever umas cartas”, em que o que é pronome relativo e umascartas é objeto direto. Essa é a única análise possível para essa novaconformação sintática da frase, pois não se pode considerar, jamais, oque como preposição. No nosso corpus há flutuação em torno das duasformas. Em um único segmento, por exemplo, atualizam-se as duas for-mas:

FHC “não tem de repor nada... os dos outros planos...espero que não se tenha

que se fazer novos planos... tenho certeza que não se fará...” 12c§ 3

2.3.2 Antipurismo

A regência verbal é um tema sobre o qual o uso tem atuado nosentido de alterar algumas configurações tradicionais da língua. Em muitoscasos, o uso tem consagrado a eliminação da preposição regente, deixan-do o complemento verbal ligado diretamente ao verbo; nesses casos, asignificação da oração é resgatada pelo contexto, já que desaparece o

13 Disse João Ribeiro: “Os usos tenho a fazer e tenho que fazer estão consagrados; é mais idio-mático dizer: Tenho que sair, tenho que andar etc., em vez de tenho a sair . Entretanto – tenhode sair e de andar – são expressões diversas e necessárias.” (Cf. FERNANDES, 1990: 567)

Page 104: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

106

LEITE, Marli Quadros. Purismo no discurso oral culto.

elemento diferenciador de acepções. É o que ocorre atualmente com overbo assistir, já de regência direta no sentido de presenciar, ver, acompa-nhar. Essa regência já tem acolhida hoje não só nos textos literários comotambém nos normativos gramaticais, apesar de ainda com ressalvas. CU-NHA & CINTRA (1985: 508), por exemplo, dizem: “Na linguagem colo-quial brasileira, o verbo constrói-se, em tal acepção de preferência comOBJETO DIRETO, e escritores modernos têm dado acolhida à regênciagramaticalmente condenada”. O trecho apresentado abaixo mostra que ouso de assistir com regência direta não ocorre apenas “na fala coloquialbrasileira”, mas já no discurso oral culto vai ganhando foro de cidade:

Inf. ele imagina um casal de jovens que vão assistir um filme americano mé-

dio... vêem lá um rapaz de cara limpa... EF 153 - l. 863-866

Outro caso de supressão da preposição ocorre com os verbos as-pirar, que já invadiu a fala culta na forma direta, e até mesmo a literatura,apesar das condenações que lhe imputam os gramáticos. Por isso, CU-NHA & CINTRA (1985: 508) ensinam, a propósito desse uso: “Advirta-se, porém, que embora invariavelmente condenado pelos gramáticos, oregime direto se insinua, vez por outra na pena de escritores brasileirosmodernos e contemporâneos.”

FHC “mas todo mundo naturalmente aspira ter mais e tudo isso... 12c §1

As diferenças do uso com a norma gramatical no que se refere àregência não dizem respeito apenas a supressões da preposição regime.O acréscimo de preposições onde primitivamente não existiam tambémé fato. Em nosso corpus verificamos isso em relação ao verbo implicar,tradicionalmente ligado ao objeto sem preposição, mas que aparece, con-temporaneamente, também na fala culta, com regência indireta, pela pre-posição em. Esse é um uso generalizado também na língua padrão escri-ta, como já registrou PIMENTEL PINTO (1986: 56-59). Abaixo estáum registro desse uso:

Page 105: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

107

O discurso oral culto.

FHC “esta medida implica num conjunto de medidas que são tomadas siste-

maticamente e estão sendo tomadas” 1b §1

A construção da regência do verbo chamar, com a preposição deacompanhando o predicativo, sempre provocou protestos de filólogos egramáticos. MOREIRA (1906: 371-2) explica muito bem a questão quan-do diz estar a origem de tudo no latim, língua em que para verbos comochamar, considerar, julgar havia dois acusativos: “um deles empregadocomo complemento direto e o outro referido a esse como seu nome pre-dicativo”. Diz ainda o autor que as línguas românicas mantiveram taisconstruções e por isso nenhuma delas era regida de preposição. No en-tanto, o fato de certos predicativos, com alguns desses verbos, seremregidos de preposição, tal como já sucedia em latim, consolidou estrutu-ras acompanhadas de preposição. Em referência ao verbo chamar,MOREIRA afirma não ser construção corrente em Portugal, nem na lín-gua popular nem na literária, embora o tenha sido no passado, fato quecomprova com um exemplo de Gil Vicente14. O filólogo português com-pleta sua informação dizendo: “Conserva ainda este modo de construir overbo chamar o português do Brasil, onde se diz: chamou-te de tolo;chamou-te de ladrão, ao passo que em Portugal apenas se poderá dizer:chamou-te tolo; chamou-te ladrão”. No Brasil, o modo quinhentista daregência perdurou durante muito tempo apenas na linguagem popular ouinformal culta. Contemporaneamente, a força do uso já a empurrou àlinguagem culta formal falada e à escrita padrão, e essa é a inovação.Está aqui a passagem que comprova o uso no discurso oral culto:

14 Se casasses com pàçãoQue grande graça seriaE minha consolação!Que te chame de ratinhaTinhosa cada meia hora,Inda que a alma me chora,Folgarei por vida minha,Pois engeitas quem t’adora. (Gil Vicente, vol. II, P.435 – Apud MOREIRA, op. cit.)

Page 106: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

108

LEITE, Marli Quadros. Purismo no discurso oral culto.

FHC “coisa que... no passado... não era assim... não...no passado era ao que

se chamava vulgarmente de leite de pato... não foi leite de pato... não foi

leite de pato... nós vamos vender o que foi a parte do patrimônio que veio

para o governo federal...” 7 § 4

A regência direta convive lado a lado com a indireta e constitui aforça conservadora, purista, da prescrição gramatical contemporânea.Leia-se o exemplo:

Inf. os índios sobem em certas árvores... por exemplo... certas formas de... ( ) ...

que chama-se... em português chamava-se boldo parece que é uma planta

de seiva açucarada... EF 124 - l. 285-288

2.4 Regência nominal

De modo geral, como já afirmou PIMENTEL PINTO (1986: 53),a regência nominal e a verbal são negligenciadas na língua padrão escri-ta. No entanto, no discurso oral culto não nos foi difícil encontrar usosacordes com a norma prescritiva, que vêm confirmar, mesmo sendo ins-tável a existência da força conservadora. Além disso, comprova que elaexiste e cumpre o seu papel de mantenedora da unidade lingüística. As-sim, pela flutuação em torno de certos usos, vemos que, quando o falanteconhece a norma eleita como a mais prestigiosa na comunidade da qualé membro ele a emprega, sempre que possível, colaborando para a suamanutenção. Adiante, por exemplo, observamos a permanência da re-gência nominal em alguns casos e sua ausência em outros.

2.4.1 Purismo

FHC “nesse ano já tenho informações de que o próprio setor de bens de capi-

tal... que sofreu no ano passado está se recuperando bem...” 1a §10

Page 107: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

109

O discurso oral culto.

FHC ‘nunca mais houve reclamação de que está atrasado o pagamento...” 4 § 2

2.4.2 Antipurismo

Inf. ... de tal forma que quando a gente entre numa igreja baiana tem a im-pressão que entrou numa gruta submarina... EF 156 - l. 547-549

2.5 Sujeito: a gente; você

2.5.1 Antipurismo

MOREIRA (1906: 343; 349 e 356) trata de um uso comum aoregistro popular e familiar do português europeu, que é o emprego daexpressão a gente, de valor pronominal, na função de sujeito. A explica-ção do filólogo para esse uso é que, correspondentemente ao francês on,o português usa a gente, e outras expressões, quando se tem em vistauma certa indeterminação do sujeito. Além disso, assinala que, como osubstantivo gente é coletivo, a concordância verbal pode acontecer nosingular ou no plural, se houver alguma distância entre o substantivo e overbo. Somente para confirmar o uso anterior da expressão na língua, oautor traz exemplos de Camões (embora esteja estudando sintaxe popu-lar).

No português do Brasil, verificamos que o uso da expressão agente não se restringe mais à fala popular ou familiar, mas já tem posiçãoassegurada no discurso oral culto. É claro que essa expressão convivecom a primitiva, nós, à qual é correspondente. Verificamos, porém, que aocorrência de a gente já é muito significativa nesse registro.

FHC “então a gente tem que ser muito objetivo nessas coisas... não negar a

realidade...” 1a §5

Page 108: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

110

LEITE, Marli Quadros. Purismo no discurso oral culto.

FHC “...não dá não é? a gente tem de ser sério na vida...” 4 §6

FHC “é preciso a gente ter humildade... eu tenho...” 11 §3

Inf. ... de tal forma que quando a gente entra numa igreja baiana tem a im-

pressão que entrou numa gruta submarina... EF 156 - l. 547-549

Inf. é incrível mas a gente i/ precisaria ir para antes de guerra de quatorze e

dezoito... EF 153 - l. 18-19

Outra expressão que atualmente concorre com a gente, quando ofalante quer criar o efeito de sentido de certa indeterminação do sujeito,ou quer mascarar uma 1ª pessoa do plural, é você. Em ambos os casos vê-se claramente que o sujeito usa uma debreagem enunciva, criando umefeito de sentido de distanciamento, para isentar-se de alguma responsa-bilidade que o enunciado naquela enunciação poderia implicar, ou paraafastar-se do contexto e aproximar o interlocutor, já que o primeiro sen-tido do pronome é a referência à pessoa com quem se fala:

FHC “aumenta... vem a pressão você aumenta e quem paga é o povo porque

não teve aumento real nenhum” 2c §2

FHC “esse tempo de contribuição significa 35 anos para o homem de contri-

buição... por quê? porque hoje... se você for ver... em média quanto tempo

a pessoa contribui... 6 §2

FHC “então você precisa ter fundos para pagar esse mais tempo para contri-

buir para ele continuar vivendo bem 6 §3

FHC “como é que você pode ser contra medidas que vão inviabilizar as apo-

sentadorias do futuro? como é que você pode ser contra um acordo que

garante até... no caso dos professores de ensino fundamental... a manu-

tenção de regras? por que vai ser contra? para ganhar? 6 §7

Page 109: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

111

O discurso oral culto.

Conclusão

Entendemos o purismo como um fenômeno lingüístico que atuacomo agente de preservação de norma, e, por isso, podemos afirmar,depois do exame do nosso corpus, que o discurso oral culto tem, real-mente, marcas puristas. É o que, esperamos, tenha ficado entendido de-pois da análise dos exemplos, em que há a manutenção da normaprescritiva, mesmo quando há forças inovadoras, antipuristas, atuandopara derrubá-la.

As forças conservadoras, como vimos, têm esteio na prescriçãogramatical, e as renovadoras, que vão de encontro a estas, têm váriasfontes. Registramos entre estas a manutenção de usos antigos do por-tuguês, como o emprego do verbo chamar regido pela prepoisção de,usado no período quinhentista e hoje desaparecido em Portugal, assimcomo o uso de metáforas populares, um expressivo recurso do discursoque alcança seu objetivo exatamente na ruptura da norma culta. Vimos,também, que inovações muitas vezes são de origem não determinadacientificamente, como, por exemplo, o emprego do verbo ter por haverna língua portuguesa do Brasil e o uso de você como indeterminador dosujeito; e, finalmente, observamos alguns desvios da tradição.

Paradoxalmente, ainda é preciso considerar que o fato de o portugu-ês do Brasil conservar aspectos lingüísticos da época antiga e clássica,modernamente desusados em Portugal e, conseqüentemente, banidos danorma prescritiva, causa conflito de norma, porque coloca em descompas-so a norma prescritiva e a objetiva, extraída do uso efetivo da língua. Por-tanto, o português do Brasil, em alguns pontos, está em desconformidadecom a prescrição exatamente por ser conservador, o que cria o fato esdrúxulode a nossa norma objetiva ser, em muitos pontos, conservadora em relaçãoà prescritiva moderna que, então, é inovadora. Assim, em alguns pontos danorma prescritiva, como por exemplo, no uso de a gente por nós, no usodas perífrases verbais e em outros casos vistos no corpo do trabalho, so-mos inovadores, porque somos conservadores. Esse é o fato que tem leva-do muitos pesquisadores ao engano de classificar como brasileirismosmuitos fatos portuguesíssimos, embora já abandonados em Portugal.

Page 110: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

112

LEITE, Marli Quadros. Purismo no discurso oral culto.

O que importa mesmo deixar claro, pois em consonância com onosso objetivo, é que, se há uma norma explícita culta, e os falantes seesforçam para estar em sintonia com ela, estando em desacordo com anorma descritiva, existe purismo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABBAGNANO, Nicola (1962) Dicionário de filosofia. Trad. coord. por Alfredo Bosi.2. ed. São Paulo, Mestre Jou.

ALÉONG, Stanley. (s/d) Normes, normes sociales, une perspective antropologique.In: BEDARD, Edith et MAURAIS, Jacques. La norme linguistique. Paris / Conseilde La Langue Française, Éditions le Robert.

ALI, Said (1930) Dificuldades da língua portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro, Francis-co Alves.

ARISTÓTELES (s/d) Arte Retórica e Arte Poética. Rio de Janeiro, Ediouro. (Textocedido pela Difusão Européia do Livro, publicado na coleção Clássicos Garnier).

CAMARA JR. (1975) História da lingüística. 2. ed. Petrópolis, Vozes.COSERIU, Eugenio (1979) Sincronia, diacronia e história. Rio de Janeiro, Presen-

ça/EDUSP.CUNHA, Celso & CINTRA, Lindley (1985) Nova gramática do português contem-

porâneo. Rio de Janeiro, Nova Fronteira.________. (1986) Língua portuguesa e realidade brasileira. Rio de Janeiro, Tempo

Brasileiro.________. (1986a) Conservação e inovação no português do Brasil. In: O eixo e a

roda. Belo Horizonte, (5). p. 199-230.FERNANDES, Francisco (1990) Dicionário de verbos e regimes. 37. ed. São Paulo,

Globo.FIORIN, José Luiz (1989) Elementos de Análise do Discurso. São Paulo, Contexto/

EDUSP.FRANÇOIS, Alexis (1973) La grammaire du purisme et l’académie française au

XVIIIe siècle. Genéve, Slatkine Reprints.FREI, Henri (1993) La grammaire des fautes. Genève-Paris, Slatkine Reprints.HALLIDAY, M. K. A. (1976) Estrutura e função da linguagem. In: LYONS, J. (org.)

Novos horizontes em lingüística. São Paulo, Cultrix.KIRSTEN, Malmkjæer (ed.) (1995) The Linguistics – encyclopedia. London/New

York, Routledge.

Page 111: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

113

O discurso oral culto.

LAUSBERG, Heinrich (1970) Elementos de retórica literária. 2. ed. Trad. R. M.Rosado Fernandes. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian.

LIMA, Carlos Henrique da Rocha (1969) Gramática normativa da língua portugue-sa. 14. ed. Rio de Janeiro, Briguiet.

MALMBERG, Bertil (1966) La lengua y el hombre: introducción a los problemasgenerales de la lingüística. Madrid, Ediciones ISTMO.

MOREIRA, Júlio (1906) Notas filológicas I – sintaxe popular. In: Revista Lusitana,vol. IX.

________. (1922) Estudos da língua portuguesa: subsídio para a sintaxe histórica epopular. Lisboa, Livraria Clássica.

MOREL PINTO, Rolando (1976) Cem anos de língua portuguesa no Brasil. Suple-mento do Centenário, O Estado de São Paulo.

NASCENTES, Antenor (1944) Dicionário de dúvidas e dificuldades do idioma na-cional. 2. ed. 1944. Rio de Janeiro, Editora Freitas Bastos.

PADLEY, G. A (1983) La norme dans la tradition des grammariens. In: BÉDARD,Édith e MAURAIS, Jaques. La Norme Linguistique. Québec / Conseil de la LangueFraçaise et Paris, Éditions le Robert. p. 69-104

PIMENTEL PINTO, Edith (1986) A língua escrita no Brasil. São Paulo, Ática.PRETI, Dino (1982) Sociolingüística: os níveis de fala. 4. ed. rev. e modificada. São

Paulo, Ed. Nacional.________. (1990) Mas afinal como falam (ou deveriam falar) as pessoas cultas? In:

Suplemento Cultural, O Estado de São Paulo, p. 4, Ano VII, 559, 22/09/1990.VASCONCELOS, J. Leite de (1929) Opúsculos. Coimbra, Imprensa da Universidade.

(vol.IV)VILELA, Mário (1982) A norma “purista” no século XVIII (com base num exem-

plo). Porto, Separata da Revista de História, vol. IV – Centro de História daUniversidade do Porto.

Page 112: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

115

O discurso oral culto.

A EXPRESSIVIDADE NA LÍNGUA FALADADE PESSOAS CULTAS

Hudinilson Urbano

1. Introdução

A linguagem falada não se limita a expressar idéias; também é, eainda mais, o eco da imaginação e da sensibilidade (BALLY, 1967:222).Na realidade, o expressivo precede o verbal cognitivo.

Em qualquer linha de estudos sobre língua falada, há de se reco-nhecer que a expressividade é um ingrediente da sua própria natureza,quer da linguagem culta ou popular, quer da linguagem formal ou infor-mal; naturalmente em graus, motivações e propósitos diferentes. Na línguaescrita ela é contingencial, embora freqüente, e é explorada como recur-so disponível, sobretudo na linguagem literária.

Pensamos, pois, que a língua falada é particularmente expressiva,tanto mais quanto seja natural e espontânea, sobretudo a linguagem daconversação.

Pretendemos examinar essa característica em um trecho de umD2 (Diálogo entre dois informantes) do Projeto NURC/SP, na expectati-va de surpreender os traços que cumprem essa tarefa.

Temos consciência das dificuldades de natureza intrínseca que en-frentaremos. Primeiro, porque os materiais do Projeto NURC, mesmo os

Page 113: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

116

URBANO, Hudinilson. A expressividade na língua falada de pessoas...

D2, estão longe de se revelarem boa amostra de linguagem espontânea enatural, ainda que seja o exemplo mais próximo dela dentro do Projeto.Na verdade, se se entender, com Bally (1951:285), por língua falada aexpressão espontânea de todos os pensamentos que se ligam de umaforma ou de outra à vida real, falta aos textos do NURC, de modo perma-nente, pelo simples condicionamento metodológico, o caráter de espon-taneidade. Segundo, porque a expressividade se manifesta não só pormeios estritamente lingüísticos como também por outros meios de natu-reza não lingüística ou apenas paralingüística, como por exemplo, porsignos situacionais. Mas, ainda assim, a expressividade merece ser ob-servada, sobretudo pela sua alta representatividade na língua oral, queficaria mutilada em seu conceito, se dela fosse abstraída essa caracterís-tica e propriedade. Não se pode apreender a complexidade da línguafalada na sua totalidade, se não se estudar, ou se não se fizer ao menosreferência a sua expressividade.

No “corpus” escolhido teremos, naturalmente, menos elementosde investigação e análise, mas o pouco que observarmos dará certamentemostra do que seja a expressividade num “corpus” ideal para esse estudoe análise e poderá abrir caminho para pesquisas profundas nesse sentido.

Finalmente, deixaremos claro que se fará aqui abstração de mui-tas outras características da linguagem em geral ou da língua falada emparticular, como a questão da argumentatividade – que explica muitasvezes o uso de recursos expressivos,1 por traduzirem aspectos vincula-dos a outros interesses de pesquisa.

2. Expressividade

A expressividade é uma importante qualidade da linguagem emgeral e da língua falada em particular. Liga-se à capacidade de os falantes –

1 Para aprofundamento no assunto, inclusive sobre o emprego de recursos expressivos,consultar KOCH, 1987.

Page 114: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

117

O discurso oral culto.

seus produtores – manifestarem suas emoções e de despertarem nos par-ceiros análogos sentimentos. Corresponde às funções que, na visão de Ballye de tantos outros, retomada por Mattoso Câmara, são objeto da Estilística.Aqui, pois, pode-se falar mais claramente num estudo e pesquisa de orien-tação estilística da conversação, conforme também o entendimento deManuel Criado de Val, outro especialista nos estudos de língua falada.

O presente estudo e pesquisa assumem, pois, muitas das posturasteóricas de Bally, Criado de Val, Mattoso Câmara, ainda Sapir, muitasdas quais exploradas por Nilce Sant’Anna Martins, cuja obra Introduçãoà Estilística se subtitula justamente “A expressividade na língua portu-guesa”. Incluímos, ainda, nossa antiga publicação de 1974, com o subtí-tulo “Elementos para um Estudo de Paralingüística”, em razão de muitospontos de convergência com questões aqui tratadas.

Nesses estudos, correm freqüentemente como sinônimos termoscomo afetividade, emotividade, sensibilidade, subjetividade e outros,e se pode dizer com Bally (1967:117) que “será expressivo todo fato delinguagem associado à emoção”. Há quem pretenda que não se devaconfundir expressividade com afetividade, superpondo-se ambas à men-sagem denotativa, mas constituindo funções isoladas (JOTA, 1976:335).Reunimos sob o tema “expressividade” as manifestações lingüísticas,paralingüísticas e extralingüísticas que cumprem mais diretamente asfunções emotiva e apelativa, ainda que rotuladas por outros termos. Narealidade “essas funções têm em comum não serem de fundo intelectivo,mas emocional” (MATTOSO CÂMARA, 1972:136). Aceitamos, comLemos Monteiro (1987:22), nas suas reflexões sobre “emotividade eexpressividade” que “a característica fundamental da expressividade re-side na ênfase, na força de persuadir ou transmitir os conteúdos deseja-dos, na capacidade apelativa, no poder de gerar elementos evocatóriosou conotações.”

A expressividade dificilmente tem autonomia em relação à finali-dade precípua da conversação, que é a de intercambiar mensagens comfins de comunicação. Todavia, sendo inerente à fala natural, coincidecom ou reforça a função representativa. Carreada na linguagem, utiliza-se de um verdadeiro equipamento expressivo muitas vezes socialmente

Page 115: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

118

URBANO, Hudinilson. A expressividade na língua falada de pessoas...

padronizado, daí, de apreensão pacífica pelos interlocutores. Mais oumenos nesse sentido, já adotávamos em 1974 o verbete de Borba(1971:112): “Paralingüística – ramo de estudos dedicados aos elementosque compõem a comunicação lingüística como os traços expressivos emgeral”. (grifo nosso)

Lembrando Coseriu e defendendo o Projeto NURC, Celso Cunhanão deixa de se referir à realização individual da fala que implica a origi-nalidade “expressiva” dos locutores (CUNHA, s/d:14). Mattoso Câmaraé bastante explícito, quando exemplifica o modo como a língua absorveuma carga afetiva que se infiltra em seus elementos e os transfigura:

“O adjetivo belo, por exemplo, tem uma significação intelectiva e en-cerra um julgamento acerca do ser a que é aplicado; traduz uma de-terminada representação desse ser (um bosque, digamos), distinta daque transmitiria denso, ou grande, ou verde. Até aí, estamos na línguaem senso estrito; mas dela transborda o ato lingüístico, que é a enuncia-ção do termo em dadas circunstâncias, porque nele se revela o entusi-asmo de quem assim nos fala ou ainda o seu esforço para nos fazerparticipar desse entusiasmo. O alcance representativo do termo se des-dobra num alcance expressivo (...)” (1977:14)

Enunciado em determinadas circunstâncias e em determinado con-texto, por exemplo Que bela festa, o adjetivo belo atende, pois, a umadupla função: de um lado, à função comunicativa de julgamento ou ava-liação da “festa”, de outro, principalmente intensificado pelo “que” e poruma entonação específica, à função fático-emotiva, ao produzir o envol-vimento do interlocutor e revelar o próprio entusiasmo do falante.

Para uma melhor compreensão do tema, dentro da perspectivaadotada aqui, incorporamos os argumentos de Criado de Val (1980:19 eseguintes) sobre a tensão coloquial:

“Na tensão se fundamentam várias características que são coinciden-tes com as determinadas pela outra grande finalidade da conversa-ção: intercambiar mensagens com fins de comunicação social”.

Page 116: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

119

O discurso oral culto.

Em seguida distingue três tipos de tensão: a informativa, a dialéti-ca e a afetiva, esclarecendo:

“A primeira atua dentro de um mínimo de intensidade, na mecânicasocial que regula o intercâmbio de mensagens com fins puramente in-formativos.”(...)

“A segunda atua sobre os componentes lógicos do diálogo ou de umpredomínio do conteúdo ideológico que cada interlocutor represen-ta”. (...)

“tensão ‘afetiva’ , que normalmente coincide e reforça as anteriores,tem seu próprio campo de origem nas causas emocionais, que na con-versação, como em termos gerais na fala, constituem nota constante edominante. Suas variantes são numerosíssimas”. (grifos nossos)

Nesse sentido, alinhamo-nos com o autor, quando diz: “Ajustificada prevenção da lingüística moderna diante da afetividade e di-ante da explicação subjetiva dos fenômenos da linguagem, é um obstá-culo que é preciso afastar. Não obstante, a tradução da afetividade emtermos de tensão ou energia, de difícil porém possível mensuração, per-mite o estudo científico”.

Ao referir-se acima à “enunciação de um termo em dadas circuns-tâncias”, Mattoso Câmara sugere a discussão da origem da emoção ou daexpressividade, bem como sua natureza e seus meios de expressão.

Nessa linha, Bally discute o nascimento da emoção, perguntando:1) a emoção nasce das palavras e dos torneios lingüísticos?, 2) a emoçãonasce da maneira pessoal de produzi-los? ou 3) a emoção nasce da situa-ção? Admitindo as três fontes – a terceira das quais sem qualquer caráterlingüístico – afirma que às três perguntas correspondem três concepçõesde expressividade, devendo-se ter o cuidado na determinação dessa distin-ção, com vistas à natureza dessa expressividade (BALLY, 1967:117).

Nessa direção, Sapir lembra que a expressividade normalmentese manifesta a partir de padrões socializados, mas também pode revelar-se num nível individual (SAPIR, 1969:63-78). No presente estudo, não

Page 117: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

120

URBANO, Hudinilson. A expressividade na língua falada de pessoas...

haverá preocupação – nem espaço – em se discutir expressividade decaráter social ou individual, tomando-se como princípio, porém, que háuma qualidade de emoção em cada enunciação e a própria emoção tam-bém difere em sua intensidade. Os recursos da expressividade serão le-vantados e analisados aqui independentemente de serem de produçãocriativa do indivíduo ou de obedecerem a padrões sociais.

3. Recursos de expressividade

Observada a expressividade como uma característica imanente eponderável da língua falada e em particular da conversação, consideramosna seqüência os recursos de expressividade e seus efeitos. Quem estuda alíngua falada não pode desconhecer o sistema expressivo dela, nem seusefeitos, nem desconsiderá-los. Ou, em termos de Criado de Val, não sepode desconhecer e desconsiderar os efeitos da “tensão afetiva” da conver-sação. Reconhece-se, ainda com o mesmo autor, que a tensão afetiva éuma característica e dificuldade na análise da língua falada e que toda ten-tativa de ordenar uma simples orientação estilística da conversação se des-faz ante a infinita gama das numerosíssimas variantes afetivas.

Esse sistema expressivo representa um conjunto de meios com osquais os falantes podem, à margem da linguagem comum da comunica-ção, manifestar de modo mais ou menos pessoal, embora servindo-senormalmente dos recursos socializados da língua, seus pensamentos, seusdesejos, seus atos de vontade.

A dificuldade de análise da expressividade decorre, além do mais,entre outras razões, do fato de que ela tem sua motivação nas caracterís-ticas psicológicas e sociais da língua falada. Os fatos expressivos estão,pois, ligados à expressão dos elementos subjetivos e afetivos e/ou à ex-pressão dos aspectos sociais. Nessa linha, pode-se entender a concepçãode afetividade como a capacidade de o falante exprimir, na linguagem,os sentimentos de simpatia, entusiasmo ou repulsa que lhe despertam asidéias enunciadas, bem como a capacidade de despertar nos ouvintes

Page 118: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

121

O discurso oral culto.

análogos sentimentos. O falante revela entusiasmo de um lado e, do ou-tro, esforço para fazer o ouvinte participar do seu entusiasmo. Graças aessas motivações, o falante exterioriza seus sentimentos e atua sobre oseu semelhante, por meio de recursos ou marcas que produzem reconhe-cidos efeitos expressivos.

Em tese, caberia distinguir, portanto, dois tipos de traços e efeitosexpressivos: os relacionados à expressão dos elementos subjetivos eafetivos e os vinculados à expressão dos aspectos interacionais. Em ou-tras palavras: os elementos ligados à subjetividade ou à pessoa do falantee os elementos ligados à intersubjetividade, isto é, ligados ao falante eseu interlocutor, típicos da conversação, onde domina a interação. Nessadistinção se poderia lembrar, para a expressão dos elementos afetivosligados à subjetividade, a entonação afetiva, as palavras e frasesexclamativas, a sintaxe afetiva, as intensificações etc.; e, para os elemen-tos ligados à expressão dos elementos relacionados à intersubjetividade,não só as exclamações e intensificações, mas também, e especificamen-te, atenuações, vocativos, repetições, fáticos etc. Trata-se, como se vê, dezonas complexas e de difícil demarcação, se é que se consegue.

Antes de descer, adiante, a um rol ilustrativo e explicativo de re-cursos expressivos, convém considerar aqui, de maneira sucinta, comBally, algumas características desses recursos. Eles são ao mesmo tempointelectuais e ilógicos: “intelectuais porque operam com as categoriaslógicas em que o espírito classifica as idéias, e ilógicos porque o peculiardo signo expressivo é trocar as categorias de tal maneira que justamenteaquela que a lógica exige se encontra disfarçada ou suprimida em pro-veito de outra categoria, com a qual está em conflito.” (BALLY, 1967:142).Mais adiante Bally insiste em que na base dos fatos expressivos está aidéia de jogo; diríamos, o trocadilho. Porém, adverte que esse ilogismonão é mais que aparente e o espírito não se deixa enganar, restabelecendoa ordem por um instante comprometida. Com efeito, todos reconhecemque uma frase como Hoje em dia todo mundo sabe dirigir carro nãodeve ser entendida literalmente; todos os usuários da linguagem sentemaí seu valor expressivo, consumado graças a uma expressão hiperbólicailógica dentro do contexto.

Page 119: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

122

URBANO, Hudinilson. A expressividade na língua falada de pessoas...

Outra característica dos signos expressivos é que eles estão prontospara o uso e não requerem uma atividade realmente criativa. São muitofreqüentes e mais ou menos inconscientes e automatizados, mas nem sem-pre produzem seus efeitos de modo infalível, numa mesma direção.

Finalmente, deles pode-se dizer ainda que não conservam indefi-nidamente sua virtude expressiva. Pouco a pouco perdem, com o tempoe o uso, sua energia e, como acontece com as figuras e metáforas, sãosubstituídos, revitalizados ou recuperados de alguma forma.

De modo geral, todos os materiais utilizados na língua falada pos-suem potencialidade expressiva. Podemos, portanto, classificá-los con-forme sua natureza, em a) elementos lingüísticos e b) elementos nãolingüísticos ou paralingüísticos. Entre os primeiros incluem-se, de umlado, os verbais ou segmentais, e do outro, os prosódicos que, por suavez, se subdividem em dois tipos: os suprassegmentais, como a entona-ção, a duração etc. e os co-segmentais, como a pausa, a ordem etc. Entreos não lingüísticos ou paralingüísticos incluem-se os elementos cinésicose os situacionais. Em termos de quadro sinótico, a configuração poderiase dar da seguinte maneira:

verbais: gírias, vocativos etc.

lingüísticos suprassegmentais:

RECURSOS entonação, acento etc.EXPRESSIVOS

prosódicos co-segmentais: pausas,

ordem etc.

não ling./paraling. cinésicos: gestos etc

situacionais

Não se fará um levantamento e estudo exaustivo desses recursos,pois isso não está nos limites e na idealização da presente obra como umtodo. Vamos nos limitar a um arrolamento rápido, comentando tangen-cialmente um ou outro, conforme sua importância específica para a lín-gua falada.

Page 120: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

123

O discurso oral culto.

Os elementos lingüísticos verbais são, em princípio, e normal-mente na sua origem, elementos de valor intelectual e não afetivo. Toda-via, com freqüência na linguagem de modo geral e na fala com maiorfreqüência, o alcance representativo ou mesmo gramatical dos termos sedesdobra num alcance expressivo. A expressividade atinge e altera, ain-da que minimamente, o valor lingüístico. A expressão espontânea nãosaberia ser essencialmente objetiva (BALLY, 1951:286). Associados ounão a outros elementos expressivos, sobretudo suprassegmentais, po-dem ser observados elementos e procedimentos de diversos níveis, como:gírias, vocativos, interjeições, palavras e frases exclamativas, onomato-péias, sinônimos expressivos, palavras e torneios com tonalidade e/ouressonância afetiva, formações prefixais ou sufixais afetivas, derivaçõesde efeito expressivo, eufemismos, comparações, metáforas, auto e hétero-repetições, auto e hétero-anáforas, citações de fala, perguntas retóricas,fórmulas de atenuação e polidez etc.

Entre esses elementos lingüísticos verbais ou procedimentos quedeles se utilizam, vamos destacar, para comentários rápidos, as repeti-ções, por se tratar de um fenômeno de larga recorrência na língua oral,constituindo-se mesmo fenômeno típico dessa modalidade quando setrata de certos tipos de repetição.

Os elementos prosódicos, tomados numa concepção mais oumenos ampla, são inerentes à expressão oral, não se podendo pensar, arigor, numa análise de língua falada sem levar em conta esses elementos.Exemplificam os traços prosódicos suprassegmentais o tom, o acento,a entonação, a duração; mais ainda, a silabação, as inflexões de voz, osalongamentos, o ritmo, a fluência etc. Incluem-se nos traços prosódicosco-segmentais – que às vezes se confundem com os anteriores – a pausa,a ordem, os deslocamentos etc.

Entre os traços prosódicos suprassegmentais, destacaremos o va-lor e a importância da entonação, incluindo nessas considerações os cha-mados acentos de insistência.2

2 Para ambos os termos (entonação e acento) remetemos o leitor para o nosso trabalho járeferido, onde foram comentadas largamente as concepções de entonação e acento e suasfunções, inclusive a função expressiva.

Page 121: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

124

URBANO, Hudinilson. A expressividade na língua falada de pessoas...

Acompanhando Bally, podemos dizer que um enunciado comoPaulo é muito bom, dito com entonação inexpressiva, neutra (dizer ento-nação “inexpressiva” é quase cometer um paradoxo), não é língua falada(BALLY, 1951:44). Já virou lugar comum afirmar que a entonação (tam-bém a mímica) é um comentário contínuo (e expressivo) que sublinha aspalavras num enunciado realizado. Mas esse lugar comum merece serretomado em virtude da força de sua verdade. Mais forte, conquantoóbvia, é a afirmação de Maldidier: “não há oral sem entonação”(MALDIDIER, 1986:62).

Tanto a entonação quanto o acento apresentam várias funções,entre as quais, a função opositiva, como no caso de uma curva ascenden-te na interrogação opondo à descendente na declaração, e a expressiva,como nos casos das entonações irônicas ou dos chamados acentos deinsistência, com ou sem deslocação, como em menTIra! ou MIserável!Atentemos ainda ao ilustrativo comentário de Gili Gaya a respeito:

“Quando a entonação contradiz o significado das palavras, nosso in-terlocutor se atém a ela com preferência: expressões insultantes, como“vadio”, “ladrão”, podem converter-se em carinhosas, segundo o tomcom que se pronunciem; palavras aduladoras, como ‘preciosidade’,‘rico’, podem adquirir sentido injurioso. A ironia se baseia de ordiná-rio em uma modificação tonal que dá a entender o contrário do que sediz. Há, pois, formas lógicas de expressão, refletidas pelas entonaçõesenunciativa e interrogativa, e junto a elas vivem, com pleno valor fono-lógico, formas especiais das entonações volitiva e emocional.” (GILIGAYA, 1966:57)

Em termos de elementos prosódicos co-segmentais, fazemos re-ferência, apenas por ora, lembrando Marcuschi, às pausas enfáticas, as-sim entendidas aquelas que têm valor de sinalizadoras do pensamento,reforçando-o ou chamando a atenção (MARCUSCHI, 1986:64).

Quanto aos elementos não lingüísticos ou paralingüísticos ciné-sicos, mencionamos os gestos e traços fisionômicos, levando-se em con-ta sua função não só significativa, quando eles podem até substituir as

Page 122: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

125

O discurso oral culto.

frases, como também e, principalmente, a expressiva, quando reforçamo discurso.

Os gestos se explicam pelo fato de nas conversações espontâneasos interlocutores estarem normalmente face a face. Fazem, pois, parte daestrutura e organização desse tipo de evento.

Tratando-se de elementos visuais, devem fazer parte normalmen-te dos estudos específicos de comunicação visual. Associados às pala-vras, vale a pena serem lembrados, não só na sua função precisadora daspalavras, como também na função enfatizadora da mensagem.

Uma preocupação com particularizações leva os estudiosos a es-pecificar inúmeros traços gestuais e fisionômicos, até o muxoxo que seproduz com os lábios sem articulação de som propriamente dito.

Finalmente, lembrando que “a fala é a língua em ação, a línguaatualizada”, há que se levar em conta toda a realidade extralingüísticaonde mergulha o discurso, ou seja, a situação, e em função da qual asmensagens podem ser compreendidas. Se o papel da situação na comu-nicação da mensagem já é bastante estudado e pacífico, não parece ser,porém, o papel que ela desempenha na transmissão do pensamentoemotivo, sem a intervenção dos procedimentos lingüísticos. Uma forteemoção (estética) se pode expressar com palavras tíbias; basta que oobjeto de nossa admiração esteja presente (BALLY, 1967:119). É o casoda frase que formulamos e comentamos páginas atrás: Que bela festa!,pronunciada com surpreendente espontaneidade em presença do anfi-trião que acaba de nos receber.

4. Corpus

O inquérito tomado como “corpus” (D2/SP-333; CASTILHO ePRETI, 1987:234-264) refere-se a um diálogo entre dois informantes,duas mulheres de 60 anos cada: uma jornalista e outra escritora,intermediadas pela documentadora, na realidade, uma interlocutora nãoespontânea, cuja tarefa era, sobretudo, suscitar temas. Nesse sentido, o

Page 123: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

126

URBANO, Hudinilson. A expressividade na língua falada de pessoas...

inquérito corresponde a um diálogo “induzido”, em oposição ao total-mente “espontâneo”, de que fala Criado de Val. É colóquio induzidoaquele no qual um dos interlocutores não é espontâneo, já que se trata narealidade de um entrevistador. Esse tipo de conversação acaba sendo umevento “mascarado”, que faz com que a tensão coloquial entre os interlo-cutores perca a naturalidade – e, em particular a tensão afetiva, diminuí-da, porque um deles – a documentadora – atua com intenção premedita-da. Diminuem, por isso, as variações tensivas em relação a uma conver-sação espontânea e tanto as pausas quanto as intensificações polêmicas,normais na conversação natural, são mais reduzidas.

No caso do presente inquérito, é muito reduzida e pouco inibidoraa participação da documentadora. Em 57 minutos de gravação, ela fezapenas 12 pequenas intervenções (em média, pouco mais de uma linhacada, sendo 11 perguntas e um comentário). Portanto, pouco interferem eprejudicam o problemático grau de espontaneidade dessa conversa pla-nejada.

As informantes conversam sobre cinema, TV, rádio e teatro. Tra-ta-se de duas pessoas não só cultas, mas sobretudo lingüisticamente pre-paradas, que fazem da própria linguagem escrita seu instrumento de tra-balho. Nota-se seu natural desempenho lingüístico culto, com vocabulá-rio, sintaxe e dicção cuidada. Mas são pessoas desinibidas, traquejadas e,graças ainda ao seu grau de intimidade, bastante espontâneas e naturais,condições suficientes para permitir, excepcionalmente, uma conversa maisou menos solta, entusiasmada e muito interativa, com muitas interrup-ções, sobreposições, segmentos colaborativos, sombreamentos3 e liber-dade de participação, num diálogo em princípio simétrico, mas que re-gistra também longos turnos, na sua grande maioria por parte da infor-mante jornalista. No geral, a participação da jornalista, na realidade, foimuito superior à da escritora, numa proporção de 75% mais ou menos do

3 Sombreamento – produção de um segmento por um locutor, repetindo igual segmento dolocutor anterior, mas com uma diferença mínima de tempo:L2 (...) o esse e o erre exagerados dos cariocasL1 | dos cariocas (l.55-56).

Page 124: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

127

O discurso oral culto.

diálogo, não em razão de qualquer tipo de inibição da escritora, mas,possivelmente, pelo maior conhecimento sobre os temas abordados e,talvez também, por uma personalidade mais dominante em termos inte-racionais, e até, por uma questão de perfil profissional. Entretanto, o mo-mento de maior vivacidade e manifestação de expressividade talvez te-nha sido aquele que contou com maior participação da escritora, muitointeressada e entusiasmada em expor e defender seu ponto de vista noassunto sobre um programa de auditório de televisão: o quadro “Cinde-rela”.4

O momento começa com uma pergunta da documentadora sobreo programa Sílvio Santos, à qual a jornalista, como faz normalmente,toma a iniciativa de responder. A escritora (L2) procura interromper vá-rias vezes a jornalista, sem êxito, porém, até que, mesmo sem conseguirdiscorrer como e sobre o que pretende, chega ao menos a introduzir otópico (ou subtópico), manifestando-se, porém, poucas vezes, mas comveemência e expressividade.

O trecho em questão corresponde às linhas 1068 a 1157 do Inqué-rito:

1068 Doc e problemas como o Sílvio Santos como vocês entendem?

L1 o problema do Sílvio Santos é um problema MUIto difícil

1070 de se SEN-ten-ciar ((rindo)) sobre ele como aliás é difícil de

sentenciar sobre tudo... e Ele especialmente porQUE... ((m/m 1 seg))

tem que se ter ali a medida do homem... a medida do: : : ((m/m 1seg))

do industrial - - que ele já é um industrial em grande

escala - - a medida do comerciante... a do homem de

4 Tratava-se de um quadro dentro do programa de auditório do animador Silvio Santos, emque algumas meninas pobres concorriam entre si, sendo uma delas selecionada para re-presentar, por alguns momentos, o papel de Cinderela, com direito a príncipe e a umagrande quantidade de presentes.

Page 125: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

128

URBANO, Hudinilson. A expressividade na língua falada de pessoas...

1075 negócios... e do profissional de TV... e do empreSÁrio

(( ralentando nas três últimas sílabas))

de TV... sobre esse aspecto do empresário de TV... todas

as pessoas que trabalham com o Sílvio Santos os artistas

e tudo... todas as pessoas testemunham que ele é um: :

um dos... meLHOres empresários do mundo... que ele

1080 paga na hora paga muito bem... e é MUITO BOM é um: :

((quase silabando))

sob (qualquer) ponto de vista...

L2 | ele é uma boa pessoa...

Apenas eu lamento que não haja... ( )

L1 | sob o ponto de vista... não deixa eu

1085 dizer...

L2 acaba...

L1 deixa eu termiNAR: :

L2 depois eu tenho ( )

L1 sob eu lamento muitas coisas mas eu estou expondo

1090 o que se diz dele... sob o ponto de vista patronal ele seria

...estaria muitos ( ) acima do que o: : ... a maioria

maioria... dos empreSÁrios de televisão... então seria

o lado bom dele... agora... o lado discutível... es: : CApa

((em falsete))

à televisão... que é aquele lamenTÁvel LAdo do Baú que

((quase silabando))

1095 de certo era isso que você ia...

L2 não...

L1 fundamenTAR...

L2 não... não é o Baú... não

L1 do Baú da Felicidade

Page 126: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

129

O discurso oral culto.

1100 L2 | não

L1 que ele com isso... ele se agiganta

L2 | o Baú ele é honesto

L1 não eu não acho que seja honesto...

L2 ( ) mais ou menos... do

1105 L1 ele está tiRANdo do pu/ do povo antes de dar qualquer coisa

L2 é mas...

L1 ele está tirando do povo

L2 é ele tira dinheiro

1110 L1 isso

L2 mas parece éh...

L1 para a economia popular eu acho

L2 \ tenho ouvido dizer que não é...

L1 não não não isso é terrível ((os três “não” em fala muito rápida))

1115 L2 | não não é isso não me interessa aí

nesse ponto a economia popular não interessa tanto...

o que me revolta profundamente é o programa Cinderela

L1 ah bom ( )

L2 | aquele programa aquilo é abaixo da crítica...

1120 ((superposição de vozes incompreensíveis)) eu não posso

compreender como é que as autoridades... como é que o

Ministério da Educação não não interveio não interveio ainda

ainda

L1 não ( )

1125 L2 porque aquilo é uma coisa que não tem não tem: : não tem classificação...

L1 não aquilo é premiar a desgraça e é uma coisa há pouco tempo...

L2 | é uma coisa horrível é a exposição da desgraça

1130 L1 HÁ pouco tempo eu escrevi: : isso que a: : que

Page 127: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

130

URBANO, Hudinilson. A expressividade na língua falada de pessoas...

todos os vitoriosos são alegres... têm aquele sorriso

de vitória a miss... que ganhou o lugar de miss... tem

a junto com a faixa tem aquele sorriso de dentes lindos

não é?... é o sorriso da vitória... a estrela que ganha um

1135 troféu tem o sorriso da vitória... as únicas vitoriosas

tristes que eu conheço que CHOram... são as Cinderelas

do Sílvio Santos... porque quando elas põem

aquele manto coitadas elas SAbem que foram

escolhidas porque são as mais pobres né? as

1140 MAIS miseráveis né?

L2 | mais miseráveis... além do mais...

L1 | as que

tem mais pobreza

L2 | ficam as outras duas ali... aquela recebendo TUdo e as

1145 outras duas ali não recebendo nada... e TOdas as outras

miLHAres de crianças... também tendo o mesmo

sentimento de frustração... quer dizer isto É/

CRI-MI-NO-so não há outra expressão...

L1 é

1150 L2 isto é um crime ((em tom baixo e descendente))

L1 eu acho criminoso sobretudo...

L2 | é um crime contra a inFÂNcia e devia...

L1 eu acho criminoso... sobretudo

L2 | merecer uma atitude do governo

1155 L1 | éh esse

ex-POR à desgraça esta falta de respeito para com a ((em decrescendo))

criatura humana... (...)

Page 128: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

131

O discurso oral culto.

5. Análise do trecho “cinderela”

Vamos analisar alguns segmentos do inquérito referido, tomandopor base o trecho acima que nos pareceu um dos mais expressivos noinquérito todo. Mesmo assim, sobressaem nele momentos de maiorexpressividade. A gravação originalmente transcrita e publicada foi aquiretranscrita mais fielmente, sendo inseridas a duração de algumas pausase rápidas descrições de valor já interpretativo, que ajudam a compreen-são da análise e compensam eventuais lacunas analíticas.

Pretendemos fazer uma análise linear, tendo em vista a economiade estudo. De fato, uma análise vertical, hierárquica e classificatória,rastreando o trecho todo para a análise isolada de cada tipo de recursoexpressivo demandaria muitas retomadas, muitas idas e vindas no texto,em virtude da alta concentração – quando não, coocorrência – de fenô-menos diferentes nos mesmos trechos. Em outras palavras, pretendemosobservar e analisar em determinadas seqüências, quanto possível e con-juntamente, todos os fenômenos – e respectivos tipos – sinalizadores deexpressividade, evitando-se, desse modo, o retorno freqüente ao mesmotrecho.

A documentadora propõe como tópico a figura do apresentadorde TV Sílvio Santos. Todavia faz a proposta já de maneira provocativa,colocando tal figura como “problema” (1068)5. Dentro do contexto6 daconversa, a palavra selecionada realmente revestiu o tópico deproblematicidade, recebida esta como tal por L1, que, na sua respostafrisa a palavra “problema”, repetindo-a duas vezes (1069): primeiro,como tópico, ponto de apoio ou de partida da mensagem (o problema doSílvio Santos) e depois, como comentário desse tópico (é um problemaMUIto difícil de se SEN-ten-ciar) (1069-70). Para que o comentário de

5 O(s) número(s) entre parênteses corresponde(m) ao(s) número(s) das linhas do texto trans-crito.

6 Colocamos normalmente em negrito os termos ou expressões que aqui são entendidascomo fatores, recursos e/ou procedimentos expressivos, ou que de alguma forma os re-presentam. Isto permite ressaltá-los, além de ajudar a explicitar e ampliar a tipologia doquadro sinótico do item 3. RECURSOS DE EXPRESSIVIDADE.

Page 129: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

132

URBANO, Hudinilson. A expressividade na língua falada de pessoas...

L1 manifestasse de maneira expressiva a sua complexa idéia de jul-gamento, ela o enriqueceu de traços lingüísticos verbais e prosódicos;os primeiros, recursos normais da língua em geral, os segundos, re-cursos especificamente normais da fala. Os verbais, representadospelo advérbio de intensidade “muito” e pelo termo “sentenciar”, designificativo valor, na medida em que o “problema” é tratado comoum caso de julgamento e sentença, de cuja área jurídica o termo “sen-tenciar” revela expressivo efeito evocativo; os prosódicos, reveladosnos acentos de insistência sobre o próprio advérbio “muito” (MUIto),intensificando-o ainda mais, e sobre a própria palavra “sentenciar”,aqui mais expressiva ainda pela antecipação de sua sílaba tônica (SEN-ten-ciar). Por outro lado, outros traços prosódicos expressivoscoocorrentes na palavra são a silabação e o riso, que a audição dagravação claramente revela. Antecipação do acento, silabação e risorevelam expressivamente uma emoção exaltada – como que fora decontrole – sinalizada pelas micro pausas entre sílabas, e franca, peloriso liberado. Há que se supor ainda, em coocorrência com o riso, aexpressão do traço fisionômico7, de grande efeito expressivo eapelativo, de vez que se tem em conta que as emoções são contagiantes,tanto mais quanto forem exteriorizadas visualmente.

Na seqüência (1072-76), L1 se utiliza de verdadeiros recursosretóricos8, alguns típicos de uma argumentação característica da oralida-de. Para justificar a dificuldade para “sentenciar”, L1 começa arrolandoos fatos complicadores para esse julgamento e o faz utilizando de estru-turas verbais e prosódicas repetidas. Com efeito, L1 assevera que : temque se ter ali

7 Considerando-se a ausência de gravação em vídeo, a conjectura se impõe e é válida esegura.

8 O termo (retóricos) é aqui utilizado, à semelhança de Koch (1987:164), como sinônimode “estilístico” na Retórica, entendida esta primariamente como uma “técnica de argu-mentação” (Martins, 1989:18). Por outro lado, destaca-se, com Guiraud (1970:17), oaspecto expressivo do estilo, ou seja, “o seu rendimento expressivo, “o colorido”, própriopara convencer o ouvinte, agradá-lo, manter vivo seu interesse, impressionar-lhe a imagi-nação mediante formas vivas, pitorescas e estéticas”

Page 130: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

133

O discurso oral culto.

a medida do homem... (1072) 9

a medida do:: do industrial — (1072-3)

a medida do comerciante... (1074)

a (= = =) do homem de negócios ... (1074-5) 10

e ( = = = = ) do profissional de TV... (1075)

e ( = = = = ) do empreSÁrio de TV... ((ralentando)) (1075-6)

Observem-se os paralelismos morfológicos, sintáticos e semân-ticos, com força argumentativa, dos segmentos, que formam dois gru-pos: nos três primeiros segmentos temos três sintagmas simples inte-grais, formados, cada um, de locução prepositiva mais nome; nos trêsúltimos, a locução prepositiva sofre elipse parcial, ficando a massa sono-ra dos segmentos reduzida na parte inicial, mas contrabalanceada na par-te final pela entrada de novos sintagmas preposicionais, a saber: de negó-cios, de TV, de TV, inclusive mantendo o mesmo esquema acentual.

Suprassegmentalmente aos paralelismos morfológicos, sintáticose semânticos, a audição da fita permite perceber paralelismos rítmicos,a começar pela própria dimensão muito semelhante dos segmentos (de 7a 10 sílabas), passando pelos acentos tônicos (sempre dois em cada seg-mento) e, sobretudo, pelos acentos tônicos intensificados no último vo-cábulo de cada segmento. Essa acentuação (ritmicamente intensificada)determina curvas entonacionais ascendentes nos vocábulos finais, que,por sua vez, detêm valor significativo especial dentro dos segmentossemanticamente considerados (homem, industrial, comerciante, negóci-os, profissional e empreSÁrio). A maior intensidade (coocorrente comuma espécie de falsete, que se percebe auditivamente na voz de L1) euma velocidade “ralentada” nas três sílabas finais recaem sobre o últimodos segmentos, o que enfatiza o fechamento da lista argumentativa.

9 A sílaba em negrito objetiva chamar a atenção para a sua intensidade tônica gramatical.10 Os sinais = = = entre parênteses representam as sílabas dos elementos elípticos (“medida

/ a medida”), constatados a partir dos padrões das estruturas anteriores repetidas; poroutro lado, o “a” inicial deste segmento foi mais sugerido do que ouvido com clareza oupropriamente articulado.

Page 131: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

134

URBANO, Hudinilson. A expressividade na língua falada de pessoas...

Na seqüência (1076-80), L1 escolhe o perfil de “empresário”– jádestacado pela sua posição final dentro da lista (recurso da ordem) epelo acento segmental mais saliente, acima comentado – para ressaltar aqualidade positiva de Sílvio Santos nessa atividade: ele paga na horapaga muito bem... e é MUITO BOM (1079-80). A qualidade é manifesta-da naturalmente pelo sentido das próprias palavras. Todavia, traços ex-pressivos emolduram esses segmentos. Chamemos de segmentos A e B:

A: ele paga na hora paga muito bem

B: e é MUITO BOM

O segmento A, que contém doze sílabas, é pronunciado mais oumenos em dois segundos, tanto quanto o segmento B, que tem apenasquatro sílabas. Como se percebe, a emissão do segmento A é muito maisrápida (velocidade) do que a emissão do segmento B. Ocorre que o seg-mento B é emitido quase silabadamente e num tom mais saliente emrelação ao segmento A, o que parece favorecer a emissão pausada, maislenta e, portanto, mais expressiva. Por outro lado, novamente se observacerto paralelismo morfológico, sintático e semântico nas duas partes quecompõem o segmento A, o que favorece, graças à estrutura repetida, oritmo rápido e marcado desse segmento, enfatizando-se o conteúdonele expresso.

Além da repetição de estruturas, ressalta mais uma vez a repeti-ção próxima de termos chaves. Com efeito, a reiteração ritmada do ver-bo “paga” acentua seu conteúdo referencial como qualidade positiva doempresário.

No campo das figuras, o trecho sob análise registra um comentá-rio hiperbólico, que, na conceituação de Mattoso Câmara (1964:182), éum exagero da significação lingüística para fim de expressividade (gri-fo nosso), de configuração simples e popular (ele é um:: um dos...meLHOres empresários do mundo – 1inha 1078-9), moldado na fórmulaele é o maior do mundo. Naturalmente expressivo como toda figura, afórmula, porém, já perdeu bastante do seu vigor, em virtude de sua sim-

Page 132: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

135

O discurso oral culto.

plicidade semântica e estrutural e da grande recorrência e automatismode uso. Isto pode explicar a ênfase na palavra “melhores” por meio deuma intensidade compensatória (meLHOres).

Em qualquer texto falado, a pausa desempenha ênfase, ao lado defunções sintáticas ou relativas a atitude, como a hesitação. Isto ocorre,por exemplo, quando se situa em posição anômala, como entre umdeterminante e seu determinado (como acontece no segmento recém co-mentado: um dos... meLHOres empresários do mundo) ou depois deuma conjunção. Outro caso em que também se tornam expressivas éaquele em que ocorrem várias pausas em pontos estratégicos e paralelos,enfatizando segmentos argumentativos. O trecho que vai da 1inha 1071a 1076, em parte já comentado, exemplifica um e outro caso:

e Ele especificamente porQUE... ((m/m 1 seg))

tem que se ter ali ((pausas))

a medida do homem ...

a medida do: : : do industrial - -

a medida do comerciante ...

a do homem de negócios ...

e do profissional de TV ...

e do empreSÁrio de TV ...

No primeiro caso ocorre após o “porque” (1071) uma pausa derazoável duração ou duração anormal ((m/m 1 seg)), provocando umnotável silêncio, tanto mais que a sílaba final do “porque” foi emitidanum tom intenso ou anormal: porQUE. No caso, percebe-se tambémalguma hesitação na procura do argumento.

No segundo caso, ocorrem repetidas pausas entre os segmentos quecontêm a premissa argumentativa de L1. As pausas ao final de cada seg-mento, coocorrendo com os outros elementos já comentados, acentuamsobremaneira as estruturas sintático-prosódicas paralelas e o efeito retóricoda argumentação, logo, uma argumentação prosodicamente expressiva.

Page 133: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

136

URBANO, Hudinilson. A expressividade na língua falada de pessoas...

Nas linhas 1082-3, após um comentário de concordância polida(ele é uma boa pessoa – linha 1083), L2 faz a primeira tentativa semêxito para introduzir seu ponto de vista restritivo à figura e ao comporta-mento de Sílvio Santos: Apenas eu lamento que não haja (1083), segun-do a fórmula “sim mas...”, que Marcuschi (1986:72) entende como pre-fácio de disjunção ou alinhamento. Toda a intervenção é feita emsobreposição, lutando ambos os interlocutores pela manutenção da pala-vra. Observem-se, nesse sentido, não só nessas linhas mas nas subse-qüentes, o tom mais saliente na primeira sílaba de “apenas”, as saliênciassonoras e as frases metadiscursivas deixa eu dizer (1084-5), deixa eutermiNAR: : (1087). Há nesse jogo interacional, não só a negociação davez, mas também a preocupação com a preservação da face com o “aca-ba” (1086), autorizando a vez, ou com o eu eu lamento muitas coisasmas eu estou expondo o que se diz dele (1089-90) – mais uma vez con-forme a fórmula “sim mas...”– em que L1 retoma, em digressãoentonacional e semântica, inclusive o mesmo verbo “lamento” de L2.Agora, porém, o prefácio é mais fiel à formula, uma vez que é o próprio“mas” da fórmula “sim mas” que é usado.

Todos esses recursos ou estratégias (sobreposição de vozes, inten-sificação de tonalidades, marcadores prefaciadores, negociação de vez,preservação da face etc.) dizem respeito, a rigor, à organização interacionalda conversação. Todavia, tudo isso deixa reflexo na pronúncia total dasfrases e torna, de alguma forma especial, expressivo – ou mais expressi-vo – o intercâmbio. Cremos que se pode falar aí numa expressividade decaráter pragmático. Entretanto, também, deve ficar claro que intensifi-cações sonoras como as reveladas em Apenas (1083) e termiNAR: : (1087)são de natureza diferente das que acompanham MUIto (1069), SEN-ten-ciar (1070) ou es: : CApa (1093); aquelas visam a permitir a tomada oua manutenção do turno, estas, a intensificar ou chamar a atenção para osentido das palavras.

Comentários semelhantes podem ser feitos em relação a outrosfenômenos. As repetições, por exemplo, têm freqüentemente motiva-ções e funções variadas. Consideremos as linhas 1081 (sob (qualquer)ponto de vista), 1084 (sob o ponto de vista...), 1089 (sob) e 1090 (sob o

Page 134: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

137

O discurso oral culto.

ponto de vista patronal...). Aqui as repetições têm as seguintes explica-ções: na linha 1081, L1 estava introduzindo uma perspectiva argumenta-tiva sob (qualquer) ponto de vista, quando sofreu sobreposição e inter-rupção; na linha 1084, L1 tentou retomar, mas o segmento ficou trunca-do em decorrência da reparação pragmática não, deixa eu dizer, feitapela própria L1; na linha 1089 pela segunda vez, L1 pretende retomar amesma introdução, interrompendo-se, porém, mais uma vez e logo noinício, agora para a inserção da digressão já referida (eu eu lamento mui-tas coisas mas eu estou expondo o que se diz dele, linhas 1089-90). Daí anecessidade de uma terceira e definitiva retomada, o que acontece nalinha 1090: sob o ponto de vista patronal (...), conseguindo L1 finalmen-te completar sua perspectiva argumentativa. Essas repetições têm, pois,uma função textual estruturadora e não expressiva.

Já nas linhas 1095 (não), 1098 (não... não é o Baú... não) 1100(não), onde os “não” são produzidos mais ou menos alternativamente,ou na linha 1114 (não não não é isso), onde eles são contíguos e pronun-ciados de maneira mais rápida, ou nas linhas 1115-6 (não não é isso nãome interessa aí nesse ponto a economia popular não interessa tanto...),ou ainda nas linhas 1125-6 (porque aquilo é uma coisa que não tem nãotem: : não tem classificação), a repetição do “não” ou a dele mais ossegmentos que ele encabeça frisam agressivamente o sentido e/ou reve-lam a irritação do falante, particularmente no caso do último exemplo.

Finalmente, o trecho compreendido entre as linhas 1141 e 1155 éum pico de expressividade. Nele, além de vários recursos expressivoscomo os dos tipos já referidos (acentos de insistência: TUdo, TOdas,miLHAres, criANças, CRI-MI-NOso, inFÂNcia, ex-POR; silabações: CRI-MI-NOso, ex-POR; etc.), pode-se observar um instante de silêncio alta-mente expressivo (criANças ((1 seg)) também tendo o mesmo sentimen-to de frustração... – linhas 1146-7), dentro de uma frase constituída depalavras já de conteúdo afetivo. O silêncio funciona como um pedido ousugestão de reflexão sobre a expressão miLHAres de CriANças, dentrode um contexto lingüístico que termina com um comentário conclusivomuito forte: isto é CRI-MI-NOso não há outra expressão (1147-8), comconteúdo hiperbólico, onde se destaca o avaliativo CRI-MI-NOso, pro-

Page 135: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

138

URBANO, Hudinilson. A expressividade na língua falada de pessoas...

ferido com articulação martelada, “estreitada” e anasalada, lembrandochoro. A massa sonora do termo é por si só altamente expressiva, com-posta que é de quatro sílabas, das quais as duas primeiras contêm doisestridentes “i” e as duas últimas dois graves e surdos “o”. A idéia é tãopertinente dentro do quadro desenhado pelos interlocutores que elesconsensualmente lhe atribuem alto grau de importância e representativi-dade, na medida em que repetem a palavra, simples ou derivada, cincovezes em oito segundos.

6. Comentários finais

A hipótese, consensualmente reconhecida, assumida desde o iní-cio no presente estudo, é a de que a linguagem é sempre expressiva,embora em graus e naturezas diferentes, conforme se manifeste por meioda língua escrita ou falada, por meio da fala formal ou informal (sobretu-do da conversação espontânea) ou por meio de pessoa lingüisticamenteculta ou inculta.

Não se previa nos objetivos, evidentemente, fazer todas essasconstatações dentro dos limites do presente trabalho. O “corpus” esco-lhido teve o propósito de favorecer a observação num texto com lingua-gem e situação bem próximas de um texto falado espontâneo.

A partir desse “corpus”, assim caracterizado, pudemos examinarvários fenômenos reveladores da expressividade, conceituada no pre-sente trabalho como a capacidade de os falantes manifestarem suas emo-ções e de despertarem nos parceiros sentimentos análogos, os quais oanalista pôde captar, analisar e denunciar.

O caminho percorrido permitiu observar e constatar claramenteque a expressividade não é só uma característica intrínseca da línguafalada, mas sobretudo que a linguagem possui, em coocorrência com seuobjetivo comunicacional cognitivo, a função inseparável de comunicar aprópria vida.

Page 136: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

139

O discurso oral culto.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BALLY, Charles (1951) El lenguaje y la vida. 5. ed. Buenos Aires, Losada.________. (1967) Traité de Stylistique Française. 3. ed. Paris, Klincksieck,BORBA, Francisco da Silva (1971) Pequeno Vocabulário de Lingüística Moderna.

São Paulo, Nacional/EDUSP.CASTILHO, A. T. e PRETTI, D. (orgs.) (1987) A linguagem falada culta na cidade

de São Paulo: materiais para seu estudo. v.II – Diálogos entre dois informantes.São Paulo, T. A. Queiroz/FAPESP.

CUNHA, Celso (s/d) “O Projeto NURC e a questão da norma culta brasileira”, mimeo.CRIADO DE VAL, Manuel (1980) Estructura General del Coloquio. Madrid, Soc.

Gen. Esp. de Libreria.GILI GAYA, Samuel (1966) Elementos de Fonética General. 5. ed. Madrid, Gredos.GUIRAUD, Pierre (1970) A estilística. São Paulo, Mestre Jou.JOTA, Zélio dos Santos (1976) Dicionário de Lingüística. Rio de Janeiro, Presença.KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça (1987) Argumentação e linguagem. 2. ed. São

Paulo, Cortez.MALDIDIER, D. et al. (março 1986) “Analyse de discours, nouveaux parcours”.

Langage 81, Paris, Larousse.MARCUSCHI, Luiz Antonio (1986) Análise da conversação. São Paulo, Ática.________. “Citação de Falas na interação verbal como edição idealizada”, mimeo.MARTINS, Nilce Sant’anna (1989) Introdução à Estilística – A expressividade na

língua portuguesa. São Paulo, T.A. Queiroz.MATTOSO CÂMARA JR., J. (1977) Contribuição à Estilística Portuguesa. 3. ed.

Rio de Janeiro, Ao Livro Técnico.________. (1972) Dispersos. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas.________. (1964) Dicionário de Filologia e Gramática. 2. ed. Rio de Janeiro/São

Paulo, J. OZON – Editor.MONTEIRO, José Lemos (1987) Fundamentos da estilística. Fortaleza, Secretaria

de Cultura e Desporto.SAPIR, Edward (1969) Lingüística como Ciência. Rio de Janeiro, Acadêmica.URBANO, H (1974) “À margem de ‘A margem de dupla articulação’ de Martinet.

Elementos para um estudo de paralingüística”. Língua e Literatura V.3, São Pau-lo, FFLCH.

Page 137: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

141

O discurso oral culto.

PROCESSOS DE FORMULAÇÃO DO TEXTOFALADO: A CORREÇÃO E A HESITAÇÃO

NAS ELOCUÇÕES FORMAIS

Leonor Lopes Fávero

1. Introdução

Este trabalho investiga dois processos de formulação do texto fa-lado – a correção e a hesitação – como subsídio para que possam serexplicitados os mecanismos de construção desse tipo de texto.

Os textos analisados pertencem aos inquéritos 338, 377 e 153 doProjeto NURC/SP, transcritos em Castilho e Preti (1986), do tipo Elocu-ção Formal, isto é, aulas, conferências, produzidas por informantes cul-tos em atitude formal, numa situação comunicativa marcadamente didá-tica, favorecendo uma linguagem tensa, em diálogo assimétrico, querdizer, “em que um dos participantes tem o direito de iniciar, orientar,dirigir e concluir a interação e exerce pressão sobre o(s) outro(s)participante(s)” (MARCUSCHI, 1986: 16).

Ao produzir um enunciado, o locutor realiza uma atividade inten-cional: formular um texto não é só planejá-lo, mas também realizá-lo(ANTOS, 1982: 92) e o esforço de formular se manifesta por marcas queesse locutor deixa no texto e que funcionam como pistas para que seu

Page 138: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

142

FÁVERO, Leonor Lopes. Processos de formulação do texto...

interlocutor possa compreendê-lo; assim, a produção de um texto nuncase realiza na perspectiva de um dos interlocutores, mas é ação e intera-ção.

Essa concepção permite a divisão das atividades de formulação,considerando-se dois aspectos:

a) quando não há evidência de “problemas” de processamento elinearização (ANTOS, id).

b) quando há evidência de “problemas” de processamento elinearização que devem ser resolvidos. Essa atividades sãoconstituídas por hesitações, correções, alguns tipos de repeti-ção, denominados por GÜLICH e KOTSCHI (1987) derefrasagens (quando há repetição de uma estrutura léxico-gra-matical) e paráfrases. Como já disse, serão aqui examinadassituações em que se evidencia a existência de “problemas” outurbulências, na denominação de Marcuschi (op.cit.: 30), es-pecificamente, as correções e as hesitações.

Considerem-se os exemplos:

(1) Inf. a gente quer saber agora... quais as razões que faz... que fazem com

que... ah... (estou) meio preocupado (com o gravador)... éh... faz fa-zem... éh::...

(SP EF 338, ls 10-11, p. 34)

(2) Loc. existe uma demanda de moeda por motivo... precaução... es/esses dois

tipos de demanda de moeda já... já.

(SP EF 338, ls 30-31, p. 34)

(3) as fa:: ses da inteligência estão aí no caso a inteligência... ela estaria... liga::

da a to:: do o desenvolvimento do indivíduo ela (ia ia) estar JUN:: to... ela

é TOdo e desempenho do indivíduo ela não é simplesmente o uso do inte-

Page 139: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

143

O discurso oral culto.

lecto... mas ela é:: éh:: tudo TOda a realização do indivíduo em qual-quer momento...

(SP EF 377, ls 337-342, p.30

(4) Loc. pessoas a... demandarem moeda a procurarem moeda.

(SP EF 338, ls 14-15, p.34)

Em (1), o locutor depara-se com um problema captado após suaformulação, isto é, ele é textualmente manifestado e dá-se, então, suareformulação que apresenta um aspecto retrospectivo – trata-se de umacorreção.

Em (2), o locutor, seguindo o curso normal da formulação, encon-tra um problema: achar a palavra adequada para dar seqüência ao turno:hesita e encontra: esses dois tipos – trata-se de uma hesitação.

Em (3), o locutor sintetiza dizendo ser a inteligência toda a reali-zação do indivíduo em qualquer momento, criando uma paráfrase.

Em (4), há uma relação de sinonímia, efetivando uma refrasagem.Esses exemplos revelam o que já foi apontado por KOCH e

OSTERREICHER (1990: 60), de que provavelmente todas as línguas pos-suem elementos que permitem introduzir, no interior do discurso, o pro-cesso de formulação; no caso da correção, como já disse, essa formulaçãotem caráter retrospectivo (só posso corrigir algo que já foi expresso) e noda hesitação, caráter prospectivo.

A correção e a hesitação desempenham importante papel na cons-trução do texto, como bem mostra o número de correções e hesitaçõesencontradas no corpus, embora se trate de aulas e conferências em que,apesar de face-a-face, admitem formalismos, com pouca intimidade en-tre os falantes.

Page 140: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

144

FÁVERO, Leonor Lopes. Processos de formulação do texto...

Tabela 11

Ocorrências de correções no corpus

Textos Ocorrências

EF 338 13

EF 377 07

EF 153 03

Tabela 2

Ocorrências de hesitações no corpus

Textos Ocorrências

EF 338 488

EF 377 386

EF 153 157

Efetuar-se-á, agora, a análise pormenorizada de cada um dos fe-nômenos que constituem objeto de estudo deste trabalho.

2. Problemas retrospectivos: a correção

2.1 Conceituação e características

Corrigir é produzir um enunciado (enunciado reformulador = ER)que reformula um anterior (enunciado fonte = EF) considerado “errado”aos olhos de um dos interlocutores.

Em:

1 Apresenta-se aqui o número de ocorrências contadas em bloco e não em separado, comoo número de marcadores, de palavras funcionais, de fragmentos léxicos, etc.

Page 141: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

145

O discurso oral culto.

(5) uma Outra forma de:: de(se) estudar a inteligência... seria mais uma frase

de... de:: evolução da inteligência... FA:: ses da inteligência...

(SP EF 377, al 333-35, p.30)

o falante anula sua formulação quando diz

FA:: ses da inteligência...

o mesmo ocorre em:

(6) dois tipos de oferta de moeda e nós vimos que existem... dois agentes que

oferecem... criam moeda... são... é o banco comercial isto é os bancoscomerciais e o Banco... Central... certo?

O falante, na busca de precisão, anula explicitamente sua formu-lação, quando diz

isto é os bancos comerciais e o Banco... Central...

assim, o enunciado x é reformulado por um enunciado y, para assegurara intercompreensão que, segundo GÜLICH e KOTSCHI (op.cit.), é oprincipal motivo da correção, embora não seja o único

x y = xRy (R = relação semântica)

R

A correção é, então, um claro processo de formulação retrospecti-va:

problemas de reformulação ® EF ® reformulações

retrospectiva ¬ correção ¬ ER

Page 142: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

146

FÁVERO, Leonor Lopes. Processos de formulação do texto...

Como se pôde observar no corpus, muitas vezes são tênues oslimites entre paráfrase e correção e certos casos, como já apontaramvários estudiosos (por ex., BARROS, 1993), podem ser consideradostanto correções, como paráfrases, ocorrendo uma neutralização.

Gülich e Kotschi também consideram difícil a delimitação entreparáfrase e correção, porque na correção o “erro” não é necessariamenteerro mas assim considerado e, como tal, substituído por um outro.

Resulta, então, que a correção apresenta a mesma estrutura básicada paráfrase:

EF ® ER

A paráfrase e a refrasagem têm também a função de garantir a inter-compreensão, porém, elas se diferenciam pela natureza da relação semân-tica (R) que liga o enunciado reformulador (y) ao enunciado fonte (x) epelos marcadores de reformulação2 (GÜLICH e KOTSCHI, op.cit.: 43).

Na paráfrase, como apontam esses autores, a relação é de equiva-lência semântica, na refrasagem de sinonímia denotativa e na correção,de contraste, no sentido que lhes dá a semântica estrutural (veja-se, porex., LYONS, 1977).

Esta é também a opinião de GAULMYN (1987: 86-7) que, aoreunir as refrasagens na categoria das repetições, afirma “ser problemáti-co o limite entre as repetições e as paráfrases. Incluímos nelas, os casosem que as mesmas palavras reaparecem, mas podendo aí ocorrer redu-ção, expansão, reordenação, e, nas paráfrases, os casos que comportamuma substituição sinonímia, uma explicação ou uma ilustração”.

Além disso, merece ser incluído o aspecto interacional, pois, emmuitos casos, ele se coloca como elemento norteador para que se efetivea reformulação.

2 Dadas as limitações de um trabalho desta natureza, não será aqui examinada a questãodos marcadores quer de correção, quer de hesitação. Para os marcadores de correção,remeto o leitor ao trabalho de FÁVERO, ANDRADE e AQUINO (1996).

Page 143: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

147

O discurso oral culto.

No exemplo (1), o locutor emprega faz e logo em seguida reformulaseu enunciado efetuando uma correção: fazem. Observa-se uma preocu-pação com a norma culta, visto estar ciente de quem são seus interlo-cutores (aula universitária). O enfoque é, então, interacional, já que, aoreformular seu enunciado, preserva sua imagem. A reformulação talveznão ocorresse se fosse uma conversação entre falantes que se utilizassemde outras variantes da língua; para eles não haveria contraste semântico,mas, sim, neutralização.

SACKS, SCHEGLOFF e JEFFERSON (1974) consideram a cor-reção um mecanismo que repara infrações a regras conversacionais, mas,como se pode ver, propõe-se, aqui, uma forma mais ampla de se ver oproblema, já que se considera sua função na construção do sentido dotexto.

2.2 Operacionalização

FÁVERO, ANDRADE e AQUINO (op.cit.), examinando a cor-reção em diferentes tipos de inquérito do Projeto NURC, encontraram:

a) autocorreções auto-iniciadas;

b) autocorreções heteroiniciadas;

c) heterocorreções auto-iniciadas.

No corpus selecionado (elocuções formais), por sua própria nature-za, foram encontradas somente autocorreções auto-iniciadas e que ocorre-ram na mesma frase, porque o locutor tem pressa em corrigir-se, isto é, elenão quer perder a oportunidade de reformular seu enunciado (SCHEGLOFF,1979), o que acaba por provocar um número significativo de oraçõestruncadas. A razão dessa “pressa” talvez seja a de preservar a auto-ima-gem.

A não existência, no corpus, de autocorreções heteroiniciadas ede heterocorreções auto-iniciadas pode ser atribuída a várias causas; des-taco, dentre elas, a tentativa de preservação da face do outro.

Page 144: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

148

FÁVERO, Leonor Lopes. Processos de formulação do texto...

Observem-se agora os exemplos:

(7) L1 aquele seu amigo::: Luís que está estuda:: ndo economia

L2 não não é economia...

L1 ah é... é direito... então ele estava dizendo que... a profissão exige

dedicação (conversação espontânea).

(8) L1 estava na biblioteca procurando um livro... a Eneida de Horácio...

não... não...

L2 de Vergílio

L1 sim... sim de Vergílio (conversação espontânea).

O exemplo (7) mostra claramente uma autocorreção heteroiniciadae o (8), uma heterocorreção auto-iniciada, em que o falante inicia a corre-ção que é efetivada pelo interlocutor e confirmada no terceiro turno, quan-do o falante que produziu a inadequação retoma a palavra, aceitando areformulação feita por seu interlocutor3.

2.3 Tipos

CHAROLLES (1987: 118 ss.) propõe dois tipos de correção, con-firmados pelo exame do corpus e pelas análises realizadas por Fávero,Andrade e Aquino (op.cit.): a infirmação (do lat. infirmare = anular,revogar) e a retificação (do lat. rectificare = que segue sempre na mesmadireção).

Vejam-se os exemplos:

(9) ... determinadas tarefas que vão exigir::... certos aptidões:: certas outras

tarefas... né?

SP EF, 377 ls 119 e 120, p.25

3 Quando há sobreposição de vozes não se considera correção, porque, falando os interlo-cutores simultaneamente, torna-se impossível dizer que houve uma correção.

Page 145: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

149

O discurso oral culto.

(10) podemos verificar em que medida o indivíduo pode... realizar (determinadas funções)... assumir (certas funções)...

SP EF, 377 ls 122-124, p.26

No exemplo (9), o locutor anula certos aptidões e anuncia expli-citamente certas outras tarefas; há, portanto, uma anulação do enunci-ado-fonte. Temos uma infirmação.

Já no exemplo (10), o locutor corrige parcialmente o enunciado-fonte, substituindo realizar por assumir. Temos uma retificação.

É necessário agora examinar-se as correções encontradas, consi-derando-se os aspectos lingüístico e enunciativo4.

I. Lingüísticos

a) fonético-fonológico: em que se observa uma correção de pro-núncia ou articulação:

(11) ... voltou a reinar a ordem e nosso pergado em nosso mercado cinemato-

gráfico...

SP EF 153, ls. 574-75, p. 103

Este foi o caso menos encontrado no corpus; explica-se pelo fatode ser ele constituído de gravações de aulas e conferências, com falantes denível universitário, que conhecem a “boa pronúncia”, pouco “errando”.

b) lexical: em que a seleção léxica não era a pretendida e há umasubstituição:

4 A divisão entre aspectos lingüístico e enunciativo tem caráter didático, já que, na cons-trução do texto, esses aspectos estão interligados.

Page 146: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

150

FÁVERO, Leonor Lopes. Processos de formulação do texto...

(12) (...)... e nós vimos que existem dois tipos de oferta de moeda... dois agentes

que oferecem... criam moeda...

SP EF 338, ls 1-3, p.34

c) morfossintático: – quando a concordância, e regência etc. sãomal formuladas:

(1) a gente quer saber agora... quais as razões que faz... que fazem com que...

ah... (estou) meio preocupado (com o gravador)... éh... faz fazem... éh::...

SP EF 338, ls 10-11, p. 34

II. Enunciativos

A formulação não é a que se pretendia, então reformula-se, impri-mindo-se ao mesmo tempo um caráter de maior subjetividade ao enun-ciado:

(13) ... em que os cinemas não estavam... aparelhados ou muito mal apare-lhados coisas improvisadas...

SP EF 153, ls. 133-35, p.93

2.4 Funções

As correções apresentam a função geral de caráter interacional,relacionando-se à busca de cooperação, intercompreensão e ao estabele-cimento de relações de envolvimento entre os interlocutores.

Por tratar-se de elocuções formais (aulas, conferências) não seencontrou no corpus correção por interferência de interlocutor (cf. item2.2 deste trabalho); assim se apresenta aqui um exemplo de conversaçãoespontânea:

Page 147: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

151

O discurso oral culto.

(14) L1 fui pela Av. Ibirapuera até o aeroporto::... não não...

L2 Rubem Berta

L1 sim... sim Rubem Berta

Ao corrigir seu interlocutor, L2 encontra uma possibilidade departicipar, evidenciando a correção, envolvimento, atenção e interesse.

A função interacional pode, por exemplo, orientar o foco de aten-ção para elementos específicos como:

a) o tópico, precisando o interlocutor o conteúdo da mensagem:

(15) é sempre a pintura flamenga do século dezoito... a pintura... diz ele...

holandesa dá-nos no século... no no... perdão... a pintura holandesa do

século dezessete...

SP EF 156, ls 321-325 p. 79

b) os interlocutores e as relações entre eles; relaciona-se à posiçãosocial ou à preservação da auto-imagem.

Nos exemplos (1), (5) e (15), o locutor busca, pela correção, evi-denciar sua posição de professor universitário, adequando sua fala aoregistro sociolingüístico do “bem falar”, ao mesmo tempo em que preci-sa o conteúdo da mensagem.

3. Problemas prospectivos: a hesitação

3.1 Conceituação e características

Como já disse no item 2 deste trabalho, a hesitação se dá em situa-ções em que se evidencia a existência de “problemas” e seu estudo sejustifica pelo fato de que, mais do que evidenciar a existência de proble-

Page 148: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

152

FÁVERO, Leonor Lopes. Processos de formulação do texto...

mas, isto é, de disfunções, ela “é parte das manifestações da competênciacomunicativa em contextos interativos” (MARCUSCHI, 1995: 1).

Observem-se os fragmentos:

(2) existe uma demanda de moeda por motivo... pre-cau-ção... es/esses doistipos de demanda de... moeda já...

SP, EF 338 ls 29-31, p. 34

(16) ... uma curva assim... éh contí:: nua... de acumulação:: de conhecimen:: tos

simplesmente... sem éh... sem QUE:: des... sem SAL:: tos... quer dizer é

contínua... então no modelo funcionalista...

SP EF 377, ls. 355-59, p.31

(17) Menotti tinha... o maior interesse em vincular... o seu nome a um empre-endimento dessa na/natureza... no prólogo do fi / do filme lia-se... numa

luta entre irmãos... não há vencedores nem vencidos...

SP EF 153, ls 446-50, p.100

Nestes exemplos, o locutor, seguindo o curso normal de sua for-mulação, depara-se com um problema de formulação (achar o termo ade-quado), hesita, às vezes gagueja e encontra esse termo:

2.a. es/esses dois tipos de demanda de...

16.a. sem que:: des: sem SAL:: tos -

17.a. ... o seu nome a um empreendimento dessa na/natureza...

Trata-se de hesitação que tem sempre um caráter prospectivo:

Page 149: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

153

O discurso oral culto.

problema de formulação

hesitação ® prospectiva

Casos como estes confirmam o que já apontaram KOCH eOSTERREICHER (op.cit.): a hesitação está presente em todas as lín-guas, que têm meios de introduzir no discurso o processo de formulação,quando há dificuldades na prospectiva.

Assim, ela está relacionada não ao que se fala, mas ao como se fala(PETRIE, 1987) e constitui uma evidência de que a fala é uma atividadeadministrada passo a passo e que planejamento e verbalização simultâneostêm conseqüências no controle do fluxo informacional; a fala vai mos-trando, ao contrário da escrita, seus próprios processos de criação.

CHAFE (1985: 18) também afirma que a hesitação constitui uma“evidência de que a fala não é matéria de regurgitação de materiais jáestocados na mente em forma lingüística, mas é um ato criativo relacio-nando dois meios, pensamento e linguagem, que não são isomórficos,mas que requerem ajustes e reajustes mútuos”.

Deve-se ressaltar que a hesitação não pode ser considerada ummecanismo de formulação textual, como o são a correção, a refrasagem,a repetição e a paráfrase porque constitui indício de “dificuldade de pro-cessamento cognitivo/verbal localizado na estrutura sintagmática”(MARCUSCHI, 1995); ela revela as estratégias adotadas pelos falantespara resolver os problemas que surgem no processamento que é, ao mes-mo tempo, de forma e conteúdo.

Difere da correção porque esta, como já disse, representa umasolução a um dado problema de formulação retrospectiva enquanto ahesitação se dá na prospectiva e “não pode ser tida como proposta desolução para algum problema de formulação, mas sim como indício deuma não solução” (id.).

Um outro ponto que permite a distinção entre hesitação e correçãoé o que diz respeito ao estágio de desenvolvimento da formulação/refor-

Page 150: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

154

FÁVERO, Leonor Lopes. Processos de formulação do texto...

mulação textual. Nos casos de ocorrência de hesitação, detecta-se umainterrupção no fluxo informacional, devido a uma má seleção futurade um ou mais termos do enunciado, resultando um enunciado ainda nãoconcluído do ponto de vista da organização sintagmática. Por outro lado,nos casos de ocorrência de correção, ela se instaura, num ponto em queuma má seleção já se efetivou, o enunciado já poderia ser consideradoconcluído do ponto de vista sintagmático, mas é necessário reformulá-lo,por motivos já expostos neste trabalho.

Desse modo, casos como os dos exemplos (2), (16) e (17) sãoaqui considerados hesitações e não correções como o fazem alguns lin-güistas.

3.2 Tipos

Como foi feito para as correções, examinar-se-ão os tipos de hesi-tação encontrados, considerando-se os aspectos lingüístico e enunciativo.

I. Lingüístico

a) fonético-fonológico: são as pausas, preenchidas por marcado-res de hesitação, como ah (exs. 18 e 1), eh (ex. 1) e alongamentos vocálicos(exs. 18-19 e 1)5

(18) então veja bem... ahn:: os testes têm como objetivo...

SP EF 377, l. 25, p.23

5 Freqüentemente tem-se, numa hesitação, a ocorrência de dois ou mais elementos, porexemplo, em (1) há marcador de hesitação (éh) com alongamento.

Page 151: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

155

O discurso oral culto.

(19) é claro que isso é extremamente discutido... então em Psicologia há mode-

los::... que::

SP EF 377, ls 31-2, p.23

(1) quais as razões que faz... que fazem com que... ah... (estou) meio preocupa-

do (com o gravador) éh... faz fazem... éh::: ah quais as razões.

SP EF 338, ls 10-13, p.34

b) morfossintáticos – são as palavras iniciadas e cortadas, comrepetição de unidades menores, os truncamentos de orações (segundoMarcuschi os anacolutos e as aposiopeses) e os falsos começos:

(20) pra:: se verificar em que em que ponto aonde estaria aí... a/o erro certo?

SP EF 377, ls 134-5, p.26

(21) o cinema brasileiro... na década de trinta... o cinema brasileiro foi quase

sempre... um cinema MARGINAL.

SP EF 153, ls 2-3, p.90

Neste exemplo, há um truncamento oracional, o falante abandona(na década de trinta...) e repete o sintagma nominal (o cinema brasileiro).

c) lexical – dá-se, ainda segundo Marcuschi, através dos marca-dores conversacionais hesitativos (exs. 22 e 23) e das repetições hesitativas(exs. 24 e 25) que são repetições julgadas semanticamente não significa-tivas:

(22) então veja bem... ahn:: os testes têm como objetivo... verificar a situação

real... do do indivíduo...

SP EF 377, ls 25-6, p.23

Page 152: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

156

FÁVERO, Leonor Lopes. Processos de formulação do texto...

(23) isto já é um fatorzi:: nho:: negati:: vo... éh:: difí:: cil que::... éh:: pertuba

assim a::...

SP EF 377, ls 235-36, p.28

(24) então ele (está querendo discutir...) ALTO (mais de base de::) e não de:: de

argumentação::...

SP EF 377, ls 392-94, p 32

(25) ah com isto já... já começou a provocar atrapalhações.

SP EF 153, ls 116-7, p.92

II. Enunciativos

A formulação não é encontrada, hesita-se dando ao texto maiorsubjetividade:

(26) no Brasil ele deixou dois artigos... ou três ou quatro... eu não me lembro...estou me lembrando agora de dois...

SP EF 156, ls 272-4, p.78

3.3 Funções (Papéis)

Para MARCUSCHI (id.), no caso da hesitação parece melhor fa-lar-se em papéis do que em funções, já que o termo função pode dar aidéia de que a hesitação é “algo que o falante emprega com consciência ecom algum objetivo”; além disso, ela não é uma estratégia de formula-ção, mas um sinal da existência de problemas.

A hesitação exerce o papel geral de busca de intercompreensão ecooperação.

Page 153: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

157

O discurso oral culto.

No corpus encontrou-se hesitação exercendo o papel específicode mantenedora ou entregadora do turno, introdutora, mantenedora e fi-nalizadora do tópico e introdutora de digressão.

No ex. (27), o informante hesita, permitindo que o locutor aciden-tal tome o turno:

(27) Inf. você já está saltando sobre o aspecto lingüístico para chegar nas conse-

qüências não é?... mas...

Loc. acidental eles não têm passado nem futuro

Já em (1), o informante interrompe sua formulação, hesita e fazuma digressão:

(1) Inf. a gente quer saber agora... quais as razões que faz... que fazem com

que... ah... (estou) meio preocupado (com o gravador)... éh... faz

fazem...

4. Conclusão

Este trabalho procurou investigar, por meio de inquéritos do Pro-jeto NURC-SP, mais especificamente de Elocuções Formais, dois pro-cessos de constituição do texto falado, a correção e a hesitação, mostran-do como o texto é o meio de que dispomos para a observação de suacomposição.

A correção foi mostrada como uma estratégia de formulação, quan-do o falante encontra “problemas” na retrospectiva e deve resolvê-los.Apresentou-se sua função geral – interacional – relacionada à busca decooperação, intercompreensão e ao estabelecimento de relações de en-volvimento entre os interlocutores, e os tipos encontrados.

Page 154: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

158

FÁVERO, Leonor Lopes. Processos de formulação do texto...

A hesitação foi mostrada como evidenciadora de problemas naprospectiva e como “parte das manifestações da competência comunica-tiva em contextos interativos” (MARCUSCHI, 1993). Acentuou-se quea hesitação não é um mecanismo de formulação textual como a correção,porque ela constitui um indício de dificuldades. Puderam ser examina-dos também seu papel interacional e os tipos encontrados.

A pesquisa mostrou claramente ainda o quanto há ainda a pensare a pesquisar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANTOS, G. (1982) Grundlagen einer Theorie des Formulierens. Tübigen, MaxNiemeyer.

BARROS, D.L.P (1993) Procedimentos de reformulação: a correção. In: PRETI, D.(org.) Análise de Textos Orais. São Paulo, FFLCH-USP, p.129-156.

CASTILHO, A.T. e PRETI, D. (orgs.) (1986) A linguagem falada culta na cidade deSão Paulo: Elocuções formais. São Paulo, T.A. Queiroz/FAPESP, vol. I.

CHAFE, W. (1985) Linguistic difference produced by differences between speakingand writing. In: OLSON, D.R.; TORRANCE, N. e HILLYARD, A. (eds.) Literacy,Language and Learning. Cambridge, Cambridge University Press.

CHAROLLES, M. (1987) Spécialisation des marqueurs et spécificité des operationsde réformulation, de dénomination e de réctification. In: BANGE, P. (org.) L’analysedes interactions verbales. La Dame de Caluire: une consultation. Actes du Colloquetenu à L’Université Lyon 2, 13 a 15 dez. 1985, Berna, p. 99-112.

FÁVERO, L.L.; ANDRADE, M.L.C.V. e AQUINO, Z.G.O. (1996) Estratégias deConstrução do Texto Falado: a Correção. In: KATO, M. A. (org.) Gramática doPortuguês Falado. Vol. VI.

GAULMYN, M.M. (1987) Actes de réformulation et processus de réformulation. In:BANGE, P. (org.) L’analyse des interactions verbales. La Dame de Caluire: uneconsultation. Actes du Colloque tenu à L’Université Lyon 2, 13 a 15 dez. 1985,Berna, p. 83-98.

GÜLICH, E. e KOTSCHI, T. (1987) Les actes de réformulation dans la consultation.La Dame de Caluire. In: BANGE, P. (org.) L’analyse des interactions verbales. LaDame de Caluire: une consultation. Actes du Colloque tenu à L’Université Lyon 2,13 a 15 dez. 1985, Berna.

KOCH, P. e OSTERREICHER, W. (1990) Gesprochene Sprache in der Romania:Französisch, Italienisch, Spanisch. Tübigen, Niemeyer.

Page 155: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

159

O discurso oral culto.

LYONS, J. (1977) Semantics. Cambridge. Cambridge University Press.MARCUSCHI, L.A. (1986) Análise da conversação. São Paulo, Ática.________. (1983) O tratamento da oralidade no ensino de língua. Programa de Pós-

Graduação em Letras e Lingüística, Universidade Federal de Pernambuco, Recife.________. (1995) A Hesitação. InéditoSACKS, H., SCHEGLOFF, E.E. e JEFFERSON, G. (1974) A simplest systematics for

the organization of turn-talking for conservation. Language, 50: 696-735.SCHEGLOFF, E.E . (1979) The Relevance of Repair to Syntax-For-Conversation.

GIVÓN, T. (ed.)

Page 156: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

161

O discurso oral culto.

MARCAS DO DISCURSO DE DIVULGAÇÃONA LINGUAGEM FALADA CULTA

Ieda Maria Alves

Introdução

Os inquéritos Elocuções Formais (EF) do Projeto NURC caracte-rizam-se por reproduzirem uma aula ou uma conferência e, por essa ra-zão, veiculam uma terminologia, própria do tecnoleto relativo a cadaárea ou subárea analisada.

Com base em Rousseau (1995: 82), podemos definir os tecnoletoscomo “um subsistema lingüístico utilizado em um campo de experiênciaparticular, que se caracteriza pelo emprego de uma terminologia especí-fica e por outros meios lingüísticos como o estilo e a fraseologia” 1. Con-seqüentemente, se os tecnoletos apresentam muitas características pró-prias do léxico geral, dispõem também de recursos específicos.

De maneira análoga à linguagem simbólica, e contrariamente àlíngua comum ou geral, domínio de todos os falantes da língua, umtecnoleto é usado e compreendido por um grupo restrito de especialistas,

1 Esse conceito é freqüentemente denominado língua de especialidade, forma decalcadano francês langue de spécialité. Como essa designação tem sido muito criticada pelo usoimpróprio do termo língua, ela tende, por isso, a ser substituída por tecnoleto.

Page 157: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

162

ALVES, Ieda Maria. Marcas do discurso de divulgação na linguagem...

que o empregam para comunicarem-se no âmbito de uma atividade pro-fissional (cf. KOCOUREK, 1991:40-1)2.

Tendo em vista o ideal de uma comunicação mais eficaz entre osusuários de uma determinada atividade, o tecnoleto visa à precisão se-mântica, à sistematização conceitual, à neutralidade emotiva, à econo-mia formal e semântica. Ele tende, por isso, a definir suas unidades lexi-cais, denominadas termos, a controlar a homonímia e a polissemia, aevitar a sinonímia, a neutralizar a emotividade, a subjetividade.

Diferentemente da linguagem simbólica e da língua comum, umtecnoleto possui um conjunto lexical bastante amplo, o que lhe permitedenominar o mundo cognitivo da técnica ou ciência a que corresponde.O conjunto lexical constitui, assim, o aspecto cognitivo e lingüístico maismarcante do tecnoleto.

Todas essas características de um tecnoleto tornam a terminologiauma disciplina normativa, impositiva mesmo. Esse caráter normativo,no entanto, visa somente a assegurar que o processo da comunicação,entre especialistas ou usuários de uma determinada área, não seja pertur-bado por elementos subjetivos e emotivos. Assim, num tecnoleto a cadaconceito deve corresponder, idealmente, um único termo, de caráter sem-pre denotativo.

Por outro lado, pesquisadores de uma determinada área conhe-cem diferentes situações de comunicação. Na verdade, a comunicaçãode cunho técnico-científico conhece variadas possibilidades de intercâm-bio: entre pesquisadores do mesmo grupo, de grupos ou organismos dis-tintos, de línguas diferentes, de especialidades conexas, e entre especia-listas e não-especialistas. Essa comunicação serve-se também de dife-rentes veículos, de caráter oral e escrito: livros e artigos, comunicaçõesem congressos, seminários, conferências, aulas, revistas não-especiali-zadas.

2 De acordo com o Vocabulaire systématique de la terminologie (Boutin-Quesnel etalii: 21), língua comum ou língua geral designa a “parte do sistema linguístico compre-endida e utilizada pela maioria dos falantes de uma comunidade lingüística”.

Page 158: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

163

O discurso oral culto.

Considerando, assim, as diferentes situações de comunicação, osdistintos tipos de emissor e de receptor e os variados veículos de difusãode uma mensagem técnico-científica, Loffler-Laurian (1983: 9-14) apre-senta uma tipologia do discurso das ciências e das técnicas em que esseselementos são analisados. A Autora, com base na modalidade escrita deuma língua, classifica os textos técnicos e científicos em diferentes tiposde discurso: discurso científico especializado, discurso de semidivul-gação científica, discurso científico pedagógico, discurso acadêmico,discursos científicos oficiais.

No discurso científico especializado, tanto o emissor como oreceptor são especialistas da mesma área. O veículo utilizado, nesse caso,é constituído por revistas especializadas. Já no discurso de semidivul-gação científica, o emissor é também um especialista que, no entanto, sedirige a um público que tem, sobre o assunto analisado, um conhecimen-to apenas superficial. As revistas que divulgam esse tipo de discurso nãosão propriamente especializadas, pois tratam de diversos assuntos. Essesveículos servem igualmente de suporte para o discurso de divulgaçãocientífica, em que o emissor é representado por um jornalista profissio-nal, que, embora muitas vezes especializado em uma área, não costumaefetuar pesquisas nessa área. Em tal tipo de discurso, o receptor faz partedo “grande público”, que procura informações rápidas e fáceis sobre umdeterminado assunto. O elemento didático é levado em conta na caracte-rização do discurso científico pedagógico, em que um professor publi-ca textos dirigidos a estudantes de nível universitário. Loffler-Laurianconsidera ainda o discurso acadêmico (teses, dissertações), em que umestudante de pós-graduação redige um texto destinado a um grupo deespecialistas, e o discurso científico oficial, representado por um pes-quisador (ou por um grupo de pesquisadores) que redige relatórios diri-gidos a instâncias oficiais, em geral de cunho acadêmico.

Seguindo essa tipologia apresentada pela Autora, e adaptando-a àlíngua falada e aos inquéritos EF do Projeto NURC, consideramos queas aulas e as conferências constantes desses inquéritos correspondem,respectivamente, ao discurso científico pedagógico e ao discurso desemidivulgação científica.

Page 159: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

164

ALVES, Ieda Maria. Marcas do discurso de divulgação na linguagem...

Neste trabalho, analisamos uma conferência, que corresponde aoinquérito 156 do Projeto NURC/SP, de tipo Elocução Formal. Trata-se,pois, de um texto de semidivulgação científica, segundo Loffler-Laurian,ou, de maneira mais genérica, seguindo Authier (1982: 34), de um textode divulgação. Apoiando-se em vários autores que trataram do discursode divulgação técnico-científica, Authier caracteriza-o como uma ativi-dade de difusão de conhecimentos científicos já produzidos e que circu-lam no interior de uma comunidade restrita. A difusão desses conheci-mentos efetua-se sempre fora da instituição escola-universidade e visaapenas a fornecer informações para um público não-especializado, pormeio de procedimentos como a tradução, o resumo ou as diferentes for-mas de adaptação de um texto-fonte para um outro texto (idem: 35)3.

No inquérito analisado, que reproduz uma conferência sobre Es-tética, abordamos um aspecto bastante relevante nos textos técnicos ecientíficos de divulgação, aspecto esse em que se pode verificar o cruza-mento dos caminhos da sintaxe e da semântica: o enunciado definitório.

Enfocamos, assim, a definição no âmbito do fenômeno da divul-gação, ou seja, procuramos verificar os enunciados definitórios que per-mitem efetuar a passagem do conhecimento da conferencista para o doreceptor, o público presente à conferência.

3 Conceito polissêmico, divulgação conhece uma outra acepção, vinculada ao fenômenoneológico, que consiste na passagem de um termo para o vocabulário da língua comumou para os distintos níveis lexicais intermediários que correspondem aos graus de divul-gação das ciências e das técnicas (Lino, 1989). O conceito de divulgação não se confun-de com o de banalização, introduzido por Galisson. Segundo esse Autor, uma linguagembanalizada constitui uma outra linguagem, baseada em uma linguagem técnica, com afinalidade de assegurar uma difusão maior às informações concernentes ao domínio deexperiência coberto pela linguagem técnica em questão. “Assim, a linguagem banalizadado futebol coloca à disposição de milhões de indivíduos informações que lhes seriaminacessíveis se fossem formuladas na linguagem especializada dos técnicos do futebol.”(Galisson, 1978: 9). Cabe ainda acrescentar que, como o equivalente francês referente adivulgação é o termo vulgarisation, a forma traduzida vulgarização é por vezes empre-gada em textos escritos em língua portuguesa. Preferimos, no entanto, adotar o termodivulgação por estar o mesmo já difundido no português do Brasil, como por exemplo nosintagma nominal artigo de divulgação.

Page 160: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

165

O discurso oral culto.

Definição e divulgação técnico-científica

A informante do inquérito analisado, uma “mulher de 56 anos,casada, professora universitária...” (CASTILHO e PRETI, 1986: 72),trata, em sua conferência, de “Estética no Brasil, na década de 30”. Abor-da, pois, o conceito de Estética e também a atuação de três professoresfranceses da Universidade de São Paulo que, durante o período analisa-do, tiveram influência sobre o desenvolvimento das artes no Brasil: Lévi-Strauss, Jean Moguet e Roger Bastide.

Ao ministrar sua conferência, a informante vai construindo seutexto, ou seja, dá forma e organização lingüística a suas idéias, comuni-cando-as ao público presente à conferência; desenvolve, assim, ativida-des de formulação. À medida que formula novamente enunciados jáformulados, para explicitar seu texto, a informante desenvolve ativida-des metaformulativas, denominadas atividades de reformulação (Hilgert,1993: 10-3). A reformulação, nesse caso, constitui uma auto-reformula-ção, efetuada pelo próprio emissor da mensagem, a conferencista.

A informante vai, assim, construindo formulações e reformula-ções, com o objetivo de divulgar suas idéias sobre Estética. Nessa cons-tante passagem de uma a outra atividade, ela enuncia definições, que,igualmente, refletem um duplo movimento: do termo para o conceito,numa perspectiva semasiológica, ou deste para aquele, numa abordagemonomasiológica. Desse modo, observamos que o termo ora é inicial-mente formulado, ora sofre o processo da reformulação.

Desse duplo movimento, do termo para o conceito, ou do concei-to em direção ao termo, podemos depreender cinco categorias de enun-ciados definitórios (cf. LOFFLER-LAURIAN, op. cit.: 14-9), que se ca-racterizam pelos seguintes aspectos: a denominação de um objeto aoqual o termo se refere; o emprego de um enunciado equivalente; a indi-cação das características do objeto; a descrição dos constituintes do obje-to; a exposição das funções do objeto.

No inquérito analisado, os enunciados definitórios dos termos re-lativos à Estética constituem, sobretudo, reformulações do ponto de vista

Page 161: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

166

ALVES, Ieda Maria. Marcas do discurso de divulgação na linguagem...

semasiológico: a informante primeiramente introduz o termo, para, emseguida, defini-lo.

Dentre as cinco categorias de enunciados definitórios acima men-cionadas, a categoria da equivalência é a mais freqüentemente utilizadapela conferencista. Assim, diferentemente do discurso científico espe-cializado, em que a sinonímia tende a ser reduzida e a precisão concei-tual entre o termo e a sua respectiva definição costuma ser observada,constata-se no discurso de divulgação o estabelecimento de uma sinoní-mia referencial por meio da equivalência entre termo e enunciado refor-mulador. Traço característico do discurso de divulgação, esse enunciadoemprega unidades lexicais dotadas de significados mais vagos e, portan-to, menos precisos, correspondentes a referentes mais variados do que odo termo definido (cf. Mortureux, 1982: 53). Alguns exemplos:

“pintura é o reflexo...da sociedade” (l. 311-2);

“do barroco baiano por exemplo que é um ba/barroco sobrecarrega-do... um pouco indiano ... ahn: :extremamente :::rico ...coberto de ouro”(l.544-7);

“o cubismo foi um movimento paradoxal /.../ isto é...foi uma aventuraestética que acabou modificando totalmente a visão do homem...nãoapenas a visão do esteta...mas a visão do homem da rua...do homemcomum...porque penetrou na sua vida...de todo dia” (l. 174-84).

Nesses exemplos, a equivalência entre termo e conceito é esta-belecida por meio do verbo ser, o verbo típico da definição por equiva-lência, que mostra uma relação equivalente entre o termo e o seu respec-tivo enunciado reformulador:

pintura / reflexo da sociedade;

barroco baiano / barroco sobrecarregado, coberto de ouro;

cubismo / movimento paradoxal, aventura estética.

Page 162: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

167

O discurso oral culto.

Outros verbos, como consistir, constituir, exprimir, represen-tar, considerar como, entre outros, exercem igualmente a função deestabelecer uma equivalência. Desse modo, no contexto abaixo, o enun-ciado reformulador explica o que representam os quadros do pintor VanGogh:

“os quadros de Van Gogh...representam construções focalizadas sobreum ponto de fuga...no horizonte...são profundidades batidas pela chu-va ou varridas por uma luz sem alegria” (l. 408-412).

Em alguns contextos, o enunciado reformulador pode apresentar,primeiramente, uma definição por equivalência de caráter negativo, ouseja, a conferencista apresenta o que o objeto não é, para, em seguida,expor o que ele representa. Observa-se esse fato nos exemplos seguintes,em que são definidos os termos artista e impressionismo:

“o artista é aquele que...sabe ver...não a imagem prática e vulgar...quetem a sua representação no mundo...mas o equilíbrio interno dos volu-mes e das formas” (l. 223-6);

“o impressionismo exprimia para ele um movimento de espíritooposto...não de uma relação harmoniosa com o ar/com a natureza...masde uma relação em crise...de uma grande incapacidade de pensar asidéias gerais da natureza...na medida em que o pintor mergulhava noparticular no imprevisto no fugidio /.../ então para ele o impressionismofoi antes de tudo um movimento DEsespera::do...no sentidode...que...tenTAva fixar...o que não tinha possibilidade de serfixado...tentava reter aquilo que estava desaparecendo que era a natu-reza natural...a natureza exterior ao homem...tentava reter o instante...queé impossível da gente...reter” (l. 345-67).

Outras categorias de enunciados definitórios também transparecemno inquérito analisado.

Assim, discorrendo sobre o título de sua conferência, a informan-te apresenta uma definição do termo Estética em que o enunciado

Page 163: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

168

ALVES, Ieda Maria. Marcas do discurso de divulgação na linguagem...

reformulador caracteriza-se por agrupar as diversas partes – Arquitetura,Pintura, Artes Plásticas, Literatura – que são abrangidas por esse termo.Temos, nesse caso, uma definição por análise:

“a estética abran::ge:: enfim a::arquitetura:: as artes plásticas em gerala arquitetura e pintura...e:: e pode eventualmente entrar pelo campo daliteratura” (l. 12-4).

Em outro trecho do inquérito 156, a conferencista apresenta umadefinição de pintura holandesa do século XVII em que é realçada a fun-ção exercida pela pintura nesse período. Utiliza-se, portanto, de uma de-finição por função, em que são expostos o uso, a função e a finalidade doobjeto. Desse modo, constatamos que a pintura holandesa do século XVIIrepresenta uma pintura patriótica, uma pintura que retrata a luta do povoholandês para a construção da pátria:

“a pintura holandesa do século dezessete...a pintura holandesa...dizele...dá-nos no século dezessete...uma lição...de unidade...uma dezenade temas...e de estilos...a paisagem por exemplo...põe em relevo as idéiasgerais...da natureza holandesa /.../ o esforço extraordinário deadaptação...de um povo às condições naturais em vista de construir umhabitat” (l. 324-37);

“uma pintura objetiva...patriótica...como uma pintura pensa::da e re-modelada pelo homem...uma pintura que mostrava uma pai/paisagemque tendo SIdo repensada pelo homem...que tinha sido...trabalhada pelohomem” (l. 338-43).

Outra categoria de definição é utilizada no contexto abaixo. Ob-serva-se que a informante denomina o barroco brasileiro de rococó, em-pregando, assim, a categoria da definição por denominação, em que osverbos chamar, denominar, designar, entre outros, estabelecem umaligação entre o enunciado formulado e o reformulado:

“preferia não chamar o barroco brasileiro de barroco...ele chamava...sobretudo o barroco de Minas de rococó” (l. 540-2).

Page 164: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

169

O discurso oral culto.

Esse último exemplo apresenta uma característica que o distinguedos exemplos anteriores, em que os enunciados reformuladores são apre-sentados do ponto de vista semasiológico. A conferencista refere-se, ini-cialmente, ao barroco brasileiro para, em seguida, denominá-lo rococó.Dessa forma o enunciado reformulador, que corresponde a uma denomi-nação, representa uma reformulação do ponto de vista onomasiológico.

A junção entre formulações e reformulações é, algumas vezes,efetuada por meio de marcadores – isto é, ou seja, quer dizer – que, naverdade, representam traços do trabalho metalingüístico de reformula-ção. A esse respeito, diz-nos com razão Rey-Debove (1978: 260-1) que alíngua falada recorre com freqüência ao uso do comentário metalingüís-tico, que explicita a mensagem. Esse recurso é particularmente produ-tivo no discurso de divulgação, pois contribui para efetuar a passagem doconhecimento do especialista, ou suas opiniões, para o leigo ou o apren-diz:

“o cubismo foi um movimento paradoxal /.../ isto é...foi uma aventuraestética...que acabou modificando totalmente a visão do homem...nãoapenas a visão do esteta...mas a visão do homem da rua...do homemcomum...porque...penetrou na sua vida...de todo dia...não através dosquadros mas...da arte aplicada e da arte...éh e de uma e da arte tipográ-fica e dos cartazes...dos objetos feitos em série” (l. 174-87);

“e...através de todos os estudos que ele estava fazendo sobre o folCLOR/adotava uma posição muito ROMÂNtica em face da arte popular...istoé...de que o povo é criador...de que o povo é criador original” (l. 706-10).

Considerações finais

Este breve estudo a respeito dos enunciados definitórios empre-gados em um texto de divulgação, a conferência referente ao inquéritoEF 156 do NURC/SP, permite-nos reiterar a existência de uma relação,

Page 165: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

170

ALVES, Ieda Maria. Marcas do discurso de divulgação na linguagem...

já delineada por Loffler-Laurian (op. cit.: 19-20), entre discurso científi-co e tipos de definição.

No inquérito analisado, a conferencista utiliza-se de definiçõespor equivalência, sobretudo, mas também de definições por análise, porfunção e por denominação. A definição por caracterização, que empregaadjetivações nominais (adjetivos e orações adjetivas) e ainda advérbios emodalizadores, não está representada no inquérito. Estas constataçõescoincidem com a análise de outros discursos de divulgação, em que adefinição por caracterização não é registrada e, com bastante freqüência,observa-se a definição por equivalência (cf. LOFFLER-LAURIAN, op.cit.: 20 e 1994: 111; MORTUREUX, op.cit.: 53-4).

O inquérito estudado revela ainda um outro traço do discurso dedivulgação, que se caracteriza pela interação que o emissor estabelececom o receptor. Assim, ao construir seu texto, em vários momentos aconferencista une-se ao público por meio do nós:

“a estética...que nós desentranhamos deste pequeno artigo de Lévi-Strauss” (l. 246-7);

“se nós formos ler esses dois artigos com atenção...nós descobriremosque o que Jean (Noguet) procura na pintura” (l. 304-6);

“as manifestações artísticas que nós encontramos no povo e que toma-mos como de origem popular” (l. 722-4).

A conferencista distancia-se, portanto, dos pesquisadores, os pro-fessores franceses representados pelo pronome ele:

“o que ele /Lévi-Srauss/ procura na pintura” (l. 312-3);

“ele /Jean Moguet/ lembra...que os quadros de Van Gogh...representamconstruções focalizadas sobre um ponto de fuga” (l. 408-10);

“a IN-fluência que ele /Roger Bastide/ exerceu no Brasil...é umainfluência...inigualável” (l. 502-4).

Na verdade, como bem observa Bruneaux (1984: 14), os cientis-tas parecem necessitar de um contato cada vez maior com o mundo exte-

Page 166: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

171

O discurso oral culto.

rior e, por isso, reformulam seus conhecimentos de diferentes formas(aulas, conferências, artigos em revistas não-especializadas...) por meiodo processo da divulgação.

Concluindo este estudo, podemos afirmar que formulação e refor-mulação estão sempre presentes no desenvolvimento das ciências e dastécnicas, e no respectivo discurso dos cientistas, já que esse desenvol-vimento supõe uma anterioridade. A herança preexiste, sempre, a qual-quer progresso. De maneira análoga, a denominação de um novo concei-to, o termo neológico, apóia-se igualmente em elementos lingüísticospreexistentes: assim, a formulação é sempre, de uma certa forma, umareformulação (cf. LOFFLER-LAURIAN, 1984: 111).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AUTHIER, Jacqueline (1982) La mise en scène de la communication dans des discoursde vulgarisation scientifique. Langue Française, 53. p. 334-47.

BOUTIN-QUESNEL, Rachel et alii (1985) Vocabulaire systématique de la terminologie.Québec, Office da la Langue Française.

BRUNEAUX, Michel et alii (1984) Avant-propos. Français technique et scientifique àre-formuler... Langue Française, 64. p. 3-16.

CASTILHO, Ataliba T. de e PRETI, Dino (org.) (1986) A linguagem falada culta nacidade de São Paulo. São Paulo, T. A. Queiroz.

GALISSON, Robert (1978) Recherches de lexicologie descriptive: la banalisationlexicale. Paris, Fernand Nathan.

HILGERT, José Gaston (1983) Procedimentos de reformulação: a paráfrase. In: PRETI,D. (org.) Análise de textos orais. São Paulo, FFLCH-USP. p. 103-27.

KOCOUREK, Rostilav (1991) La langue française de la technique et de la science. 2èéd. Wiesbaden, Oscar Brandstetter Verlag.

LINO, Maria Teresa Rijo (1989) Língua portuguesa, língua das ciências e das técnicas.Comunicação apresentada no Colóquio Internacional “Língua Portuguesa – QueFuturo?” Lisboa. 9 p.

LOFFLER-LAURIAN, Anne Marie (1994) Les définitions dans la vulgarisationscientifique (presse, musées). In: CANDEL, Danielle (org.) Français scientifiqueet technique et dictionnaire de langue. Paris, Didier Erudition. p. 93-112.

________. (1983) Typologie des discours scientifiques: deux approches. Etudes deLinguistique Appliquée, 51. p. 8-20.

Page 167: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

172

ALVES, Ieda Maria. Marcas do discurso de divulgação na linguagem...

________. (1984) Vulgarisation scientifique: formulation, reformulation, traduction.Langue Française, 64. 109-24.

MORTUREUX, Marie-Françoise (1982) Paraphrase et métalangage dans le dialoguede vulgarisation. Langue Française, 53. p. 48-61.

REY-DEBOVE, Josette (1978) Le métalangage. Paris, Le Robert.ROUSSEAU, Louis-Jean (1995) Principes méthodologiques du travail terminologique

au sein du Réseau de terminologie Realiter. Terminologies Nouvelles, 14. p. 82-4.

Page 168: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

173

O discurso oral culto.

PRESERVAÇÃO DA FACE E MANIFESTAÇÃODE OPINIÕES: UM CASO DE JOGO DUPLO

Paulo de Tarso Galembeck

Introdução

Nos diálogos e nas demais formas de interação face-a-face (entre-vistas, aulas, palestras), o falante acha-se em posição vulnerável, já queexpõe publicamente sua auto-imagem (face). Dessa forma, ele corre orisco de exibir o que deseja ver resguardado e deixar de colocar em evi-dência o que tem a intenção de mostrar. Por esse motivo, o falante adotaprocedimentos que lhe permitem controlar a construção dessa auto-ima-gem.

Esse trabalho discute os mecanismos de preservação da face emfragmentos opinativos ou judicativos extraídos de inquéritos representa-tivos da fala culta de São Paulo. Trata-se dos diálogos entre dois infor-mantes – D2 no 062, 333, 343 e 360, publicados em Castilho e Preti(1987)1.

1 Um dos exemplos citados foi extraído do Inq. 255 (Projeto NURC/SP); esse exemplo foiextraído de Rosa (1992).

Page 169: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

174

GALEMBECK, Paulo de Tarso. Preservação da face e manifestação de...

1. O conceito de face

O conceito de face foi inicialmente estabelecido por Goffman(1970), a partir do quadro geral de interação face-a-face, no qual sãorealizados os textos falados. Segundo o citado A., o fato de alguém entrarem contato com outros constitui uma ruptura de um equilíbrio social pré-existente e, assim, representa uma ameaça virtual à auto-imagem públicaconstruída pelos participantes do ato conversacional. Goffman denomi-na face a expressão social do eu individual; o mesmo A. designa porprocessos de representação (face-work) os procedimentos destinadosa neutralizar as ameaças (reais ou potenciais) à face dos interlocutores oua restaurar a face dos mesmos.

As idéias de Goffman foram complementadas e aprofundadas porBrown e Levinson (1978), que estabeleceram a distinção entre face posi-tiva (aquilo que o interlocutor exibe para obter aprovação ou reconheci-mento) e face negativa (“território” que o interlocutor deseja preservarou ver preservado).

As circunstâncias particulares em que se desenvolvem os diálo-gos fazem com que neles a preservação da face seja uma necessidadeconstante. Como não há previsibilidade quanto às ações a serem desen-volvidas pelo(s) outro(s) interlocutor(es), o falante adota mecanismosque assegurem o resguardo do que não deseja ver exibido e coloquemem evidência aquilo que desejam ver exibido. A necessidade de preser-vação da face torna-se particularmente relevante em determinadas situa-ções, nas quais o falante se expõe de forma direta: pedidos, atendimentode pedidos ou recusa em fazê-lo, perguntas diretas e indiretas, respostas,manifestação de opiniões. Cabe acrescentar que a preservação da facedeve ser necessariamente considerada em relação ao quadro geral dainteração, e não como uma atitude isolada do falante. É o que se verificano exemplo a seguir: o falante formula uma pergunta que diz respeito àvida profissional do seu interlocutor. Essa pergunta representa, implici-tamente, uma “invasão do território” do interlocutor, por isso o locutorprocura mitigar os efeitos dessa invasão pelo emprego de um procedi-mento de atenuação, o emprego do futuro do pretérito:

Page 170: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

175

O discurso oral culto.

(Ex. 01) L2 eu:: eu lhe perguntaria aí dentro desse problema [o horário de

trabalho de L1]... você não... possui uma... um controle... diga-

mos assim... em cima de você você deve produzir tanto num dia...

ou... existe isso ou digamos um dia de chuva está um dia horrível

para trabalhar um dia que você está indisposto você poderia pegar

voltar para sua casa entrar num cinema distrair um pouco enten-

de?... que (que você) você poderia fazer isso? (NURC/SP, 062, l.

251-258)

No caso da manifestação de opiniões, verifica-se uma dupla atitu-de por parte dos locutores: por vezes eles se distanciam dos conceitosemitidos (como forma de evidenciar que esses conceitos não são inte-gralmente assumidos), mas, em outras situações, os locutores mostramque assumem – ainda que parcialmente – os juízos expostos. Essaduplicidade de atitudes corresponde a uma das atitudes mais evidentesdo texto conversacional: dada a dinâmica desse tipo de texto, e o fato deele constituir necessariamente um trabalho cooperativo, o falante envol-ve-se diretamente na sua construção, mas, em certos momentos, sente anecessidade de mostrar um prudente afastamento.

A seqüência do trabalho apresenta os procedimentos lingüísticosque ilustram essa duplicidade de atitudes.

2.Procedimentos para marcar o distanciamento dolocutor

Nos textos conversacionais, o emprego dos procedimentos emquestão se torna particularmente relevante, pois os interlocutores sabemque a manifestação direta de opiniões pode torná-los vulneráveis a críti-cas e opiniões contrárias. É importante, por isso, promover o apagamen-to das marcas da enunciação (ROSA, 1992: 40), o que é obtido com ouso de certos recursos gramaticais utilizados para a expressão da impes-soalidade (é possível que, parece que, é provável) e da indeterminação

Page 171: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

176

GALEMBECK, Paulo de Tarso. Preservação da face e manifestação de...

do sujeito (dizem, falam, diz-se), e, também, com o emprego dos mar-cadores de rejeição (não sei, se não me engano).

2.1 Recursos para indicar a impessoalidade ou a inde-terminação do sujeito

Vejam-se exemplos dos processos de indeterminação do sujeito:

(Ex. 02) (L1 e L2 estão a discorrer acerca das respectivas rotinas diárias de

trabalho.)

L1 dizem né? — você vê — dentro da profissão do vendedor... a

coisa mais difícil é você manter realmente o indivíduo... éh Oito

horas em contato direto com os clientes... uma coisa realmente

difícil...

(NURC/SP, 062, l. 231-234)

(Ex. 03) (L1 trata da atuação profissional do marido, procurador do

Estado e professor de Direito.)

L1 e:: ele leciona nas FMU

L2 ahn ahn

L1 ele::... é especialista em Direito Administrativo...

L2 ahn ahn

L1 certo?

[

L2 ( )

L1 e::: e deu-se muito bem no magistério ... ele se realiza sabe? fica

feliz da vida.. em poder transmitir... o que ele sabe... e os proces-

sos também... que ele... recebe ou... e eu não eu sou leiga eu não

entendo... mas... pelo que a gente... ouve falar são muito bem es-

tudados... tem pareceres muito bem dados... não é? ele se dedica

Page 172: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

177

O discurso oral culto.

MUItíssimo a... tanto à... carreira de procurador como de profes-

sor (tá?)...

(NURC/SP, 360, l. 1175-1189).

Os assuntos dos exemplos anteriores são polêmicos (o horário detrabalho do vendedor e a defesa da classe dos procuradores), por isso oslocutores empregam certas expressões que denotam resguardo ou afasta-mento em relação aos conceitos emitidos: dizem, pelo que a gente ouvefalar. São recursos de indeterminação do sujeito, pelos quais se efetua odeslocamento do campo meramente pessoal, individual, para o âmbitodo senso comum.

Em exemplos semelhantes aos anteriores, verifica-se, no nível doenunciado, uma distinção entre as figuras do locutor (o sujeito falante,que produz os enunciados) e do enunciador (aquele que manifesta a opi-nião, que organiza o ponto de vista e as atitudes) (Ducrot (1978: 192 ess). Os locutores sinalizam, de modo explícito, que as opiniões omitidasnão são suas e que não há propriamente um responsável por elas, já queo enunciador representa o senso comum, quer dizer, uma pluralidade devozes indistintas. O emprego dos procedimentos de indeterminação dosujeito constitui, por isso mesmo, um recurso que assinala um afasta-mento acentuado do falante em relação às idéias emitidas. Já o uso dosprocedimentos de impessoalidade (parece que, é possível, é provável, ébom) marca o afastamento em grau menor, já que neles está implícita aidéia de apreciação e julgamento.

(Ex. 04) L1 bom nós estávamos só só retomando::... você estava falando so-

bre... sobre o problema do

Doc.(o ensino)

L2 ah sobre o problema da:: dos métodos de ensino atualmente en-

tende?

L1 uhn uhn

L2 parece que ( ) está havendo agora uma maior participação do

aluno entende? está havendo aquele... de fato o trabalho em grupo

Page 173: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

178

GALEMBECK, Paulo de Tarso. Preservação da face e manifestação de...

porque::... é o que eu noto principalmente:: quando eu vejo aí... eu

dou uma passada aí na faculdade aí eu converso com a... nossa

colega aí que... que faz o curso de História... ela me diz... os pro-

fessores jogam os temas então... eles têm cinco horas de aula so-

bre determinado tema então é preparar o tema é discutir o tema

levantar os problemas (...)

(NURC/SP, 062, l. 420-434)

(Ex. 05) (L1 e L2 discutem a reação dos lemingues que, quando a popula-

ção aumenta, praticam o suicídio coletivo, jogando-se no mar).

L1 (...) seria interessante se alguém fizesse experiências diferentes

com os lemingues para ver se... não tem mar o que faria:: ... sei lá

alguma:: mudan::ça de de de esquema ... como reagiria.

(NURC/SP, 343, l. 1627-1630)

As expressões sublinhadas (parece que, seria interessante) indi-cam a divisão entre os planos do locutor e do enunciador. Essa divisão,porém, não é tão acentuada como no caso do sujeito indeterminado, jáque – como se viu – nelas está latente a idéia de julgamento ou aprecia-ção. Em outros termos, o falante sinaliza que assume, ainda que parcial-mente, as idéias expostas.

2.2 Marcadores de rejeição

Os marcadores de rejeição apresentam uma antecipação do locutor,com a finalidade de limitar ou neutralizar possíveis reações desfavoráveisou interpretações contrárias ou prejudiciais por parte do interlocutor.

Os marcadores de rejeição encontrados no corpus corresponden-te às frases fixas (que eu saiba, não sei se..., se não estou enganado eoutras semelhantes), as quais geralmente funcionam como prefaciadoresde unidades discursivas:

Page 174: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

179

O discurso oral culto.

(Ex: 06) L2 esse negócio de lei de zoneamento não está funcionando?

L1 não que eu saiba não::... não é tão... não é tão... tão forte

essa lei não não consegue... moldar a cidade

(NURC/SP, 343, l. 82-84)

(Ex: 07) L1 sinceramente:: ... não consegui... não consegui entender... fui

sentei com a maior boa vontade para poder entender participar

[da peça “Rico amor selvagem”] ... mas não consegui ... pelo con-

trário acho que aquele dia fui até meio agredido lá (sabe) (...)

(NURC/SP, 062, l. 1369-1372)

(Ex: 08) L2 (...) as máquinas que:: não têm barulho ... elas são mais mágicas de

uma certa forma do que ... assim começo de de:: revolução industri-

al né? aquelas máquinas barulhentas e tal e mesmo atualmente ...

o:: barulho de trânsito a polui/ a poluição ... auditiva ... acho que

tem uma função de tranqüilizar ... eu não sei se a analogia estácerta mas outro dia eu pensei né? (que você) o silêncio na ... na

selva ... é sinal de perigo né? a hora que ... pára tudo qualquer baru-

lho de passarinho e tal é que está havendo algum perigo por perto ...

se você pensar assim numa hora em que você não ouça mais baru-

lho na cidade ... acho que tem a mesma equivalência

(NURC/SP, 343, l. 789-800)

Os três exemplos anteriores tratam de temas que podem suscitarpolêmicas (a lei do zoneamento urbano de São Paulo; a controvertidapeça “Rico amor selvagem”; a analogia entre a selva e a sociedade indus-trial), por isso os falantes adotam uma atitude defensiva, para prevenir-sede reações desfavoráveis do seu interlocutor. Essa atitude defensiva éassinalada pelo emprego dos marcadores assinalados.

Os marcadores de rejeição exercem um papel relevante no desen-volvimento da interação, à medida que resguardam o falante de possíveisobjeções ou críticas por parte dos demais interlocutores. Nesse caso, não

Page 175: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

180

GALEMBECK, Paulo de Tarso. Preservação da face e manifestação de...

se verifica a polifonia (com a cisão entre os planos do locutor ou doenunciador), mas há a indicação explícita de que os falantes não assu-mem os conceitos emitidos.

2.3 Emprego associado dos procedimentos de impes-soalidade ou indeterminação e dos marcadores derejeição

(Ex. 09) (L1 e L2 discutem o ingresso na carreira de procurador do

Estado)

L2 porque diSSEram não sei se é mesmo ... que enquanto existe um

projeto nosso... e::: provavelmente ele deve ter falado com você

L1 enquanto houver concursados::

L2 não

L1 vão sendo chamados

(NURC/SP, 360, l. 513-518)

(Ex.10) (L1 e L2 discutem a existência de cursos paralelos aos de Econo-

mia e Administração.)

L1 eu não sei eu ouvi parece que o:: eh:: curso Objetivo né? está

lançando um um... curso de::

L2 existe uma Faculdade Interamericana aí que lançou... dois ou três

anos... seriam...cursos vagos... entende né? (...)

(NURC/SP, 062, l. 372-376)

Nos dois exemplos citados, a atitude de afastamento do locutor(indicada pelas expressões disseram e parece que) é reforçada pelosmarcadores de rejeição não sei se é mesmo e não sei eu ouvi. Essasexpressões manifestam dúvida ou incerteza e, ao utilizá-las, o locutorreitera que não assume o que vai ser dito.

Page 176: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

181

O discurso oral culto.

Esse mesmo efeito é obtido com o emprego conjunto do futuro dopretérito e de marcadores de indeterminação (dizem que):

(Ex:11) (L1 trata do clima da cidade de São Paulo)

L1 (...) havia assim uma área de vegetação muito grande aqui nas

redondezas de São Paulo... então isso:: realmente:: cooperava

assim para aquele:: famoso sereno né? ... São Paulo da garoa São

Paulo é terra boa...

L2 São Paulo da garoa

[

L1 mas éh você vê o fato né?... realmente foram acabando com essas

reservas aí... vegetais

[

L2 mas é o progresso né?

L1 é seria o progresso que está chegando? dizem que é o progresso...

dizem né? sei lá

(NURC/SP, 062, l. 63-71)

3.Procedimentos que marcam o envolvimento dolocutor

São discutidos, neste item, os procedimentos que assinalam que olocutor incorpora os conceitos emitidos, ou seja, que ele assume (aindaque parcialmente) as próprias opiniões: os marcadores de opinião, a alu-são a terceiros (polifonia), os “hedges” e as paráfrases. Em textos con-versacionais, o emprego desses elementos é mais freqüente que os mar-cadores de afastamento, fato que se explica pela necessidade de cadainterlocutor marcar a própria presença (auto-envolvimento) nas situa-ções de interação face-a-face.

Page 177: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

182

GALEMBECK, Paulo de Tarso. Preservação da face e manifestação de...

3.1 Marcadores de opinião

Os marcadores de opinião são representados por duas classes deelementos gramaticais: os verbos de opinião, geralmente utilizados naprimeira pessoa do singular (acho, creio, suponho, vejo, noto e simila-res) e certas expressões adverbiais (na minha opinião, no que me dizrespeito e similares). Cada uma dessas classes será considerada separa-damente.

O emprego de verbos que prefaciam ou introduzem a opinião dofalante representa uma indicação de que ele assume integralmente a pró-pria opinião. É o que se verifica nos exemplos a seguir:

(Ex.12) (L1 e L2 tratam da lei do zoneamento urbano de São Paulo e

falam que, devido à especulação imobiliária, ela está sendo des-

respeitada.)

L1 (tem isso) porque envolve interesses econômicos muito FORtes

muito grandes... que dobram essa lei ... certo? dum... dum... dum

governo para o outro... muda a lei de zoneamento... eu não vejofuncionar... e mesmo assim seria uma restrição de... desenvol-

vimento... errado mas já está um montão de coisa errada certo?...

muito bairro::... residencial com muita indústria dentro... princi-

palmente bairro pobre né? ... para consertar isso::: não dá... a lei

teria que ser... éh:: retroativa sei lá atuar sobre o que já existe

L2 uhn uhn...

L1 (Né? então) eu Acho que ela não está conseguindo nem atuar

sobre o que vai existir... em termos ela vai existir... em termos ela

existe

[

L2 EH:::

L1 ela está lá mas:: não funciona... porque

[

L2 eu vejo

Page 178: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

183

O discurso oral culto.

L1 acho que a economia é mais forte do que a lei... ainda...

L2 é meio incontrolável né? e acho que::... acho que esse negócio se

repete ou acaba se repetindo em qualquer cidade que... atinge um

certo tamanho (...)

(NURC/SP, 343, l. 87-106)

(Ex.13) (L1 e L2 tratam das falhas de pronúncia de certos locutores e

artistas do rádio e da televisão.)

L2 e... mas eu noto que agora... sobretudo na nossa família que nós

temos muita preocupação... da da linguagem simples e da lingua-

gem::... correta

[

L1 exata

L2 é... exata... nós ficamos um pouco chocados com o esse e o erre

exagerados dos cariocas (...) que são mesmo um preciosismo inú-

til né?

(NURC/SP, 333, l. 51-56)

Nos exemplos anteriores, os informantes tratam de temas polêmi-cos (a lei do zoneamento; a pronúncia tida por correta), e empregamverbos de valor epistêmico (vejo, acho, noto) para mostrar que assu-mem os conceitos emitidos, a respeito dos quais manifestam certeza econvicção. Há casos, porém, que esses mesmos verbos vêm acompanha-dos de certas expressões que denotam incerteza ou imprecisão:

(Ex.14) (As duas informantes tratam da escolha profissional)

L2 a minha [vocação] eu acho... eu não tenho certeza para julgar

mas eu acho que foi incutida... meu pai foi o um::... era mili-

tar:: mas a vocação dele era ter sido... advogado... ele vivia dizen-

do isso (...) porque de jeito nenhum ele falou “você vai fazer isso”...

mas eu acho que ele falava tanto tanto tanto e eu o admirava mui-

to... eu tenho a impressão que foi... por causa disto embora a mi-

Page 179: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

184

GALEMBECK, Paulo de Tarso. Preservação da face e manifestação de...

nha meta fosse Itamarati (...)

(NURC/SP, 360, l. 1513-1520)

(Ex.15) (Os informantes discutem as conseqüências da especialização pro-

fissional.)

L2 o teu conhecimento especializado não dá para ... só atinge uma

área muito limitada e não dá... ah eu não sei... acho que:: eu...

sabe... aí eu acho que o... não mudou muita coisa... se você pen-

sar... assim numa época em que... por exemplo... o trabalho era

bem artesanal... então você tinha o sapateiro... o:: ((tosse))

(cocheiro) não sei quê não sei quê né? ... acho que a especializa-

ção veio com... coma diferenciação humana (...)

(NURC/SP, 343, l. 933-942)

No ex. 14, o informante manifesta falta de certeza ou convicção,mediante o emprego da expressão eu não tenho certeza para julgar; jáno ex. 15, o efeito de dúvida ou incerteza é obtido com o emprego daexpressão eu não sei e dos sinais que indicam hesitação ou planejamentoverbal: sabe, pausas (indicadas pelas reticências), alongamentos (que::).

O mesmo efeito de dúvida ou falta de convicção é obtido com aposposição da expressão de valor epistêmico, ou seja, nos casos que essaexpressão não está colocada na testa do enunciado:

(Ex.16) (O assunto do fragmento é o intercâmbio de programas de rádio e

televisão com outros países latino-americanos.)

L1 então ((pigarreou)) Gabriela eu acho ( ) também... parece que já

está sendo negociada... como foi O Bem Amado... eh isso euacho muito bom

(NURC/SP, 333, l. 513-516)

(Ex: 17) Doc.você falou em:: carreira... boa para a mulher né?

L2 ahn ahn

Doc.: que tipo da carreira... fora essa... seriam digamos conveniente...

Page 180: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

185

O discurso oral culto.

L2 olha ah o ti/ o ti/ ah especificamente o tipo de carreira ah eu achoque isso seria qual/ qualquer uma ( ) quer dizer:: o o :: lado... de

ciências mais human/ ah de o lado humano o ou de::... ciências

exatas (...)

(NURC/SP, 360, l. 646-653)

Nos exemplos 16 e 17, as expressões eu acho e acho que não sesituam na margem esquerda da unidade discursiva2 – posição mais fre-qüente –, mas no núcleo das unidades, já que os termos Gabriela e o tipode carreira estão deslocados para o início do enunciado. A posposiçãodos verbos epistêmicos é também um sinal de dúvida ou falta de convic-ção, ou melhor, com ela o locutor deixa claro que se trata de uma opiniãomarcadamente pessoal, mas que não assume inteira responsabilidade arespeito dessa opinião.

Além dos verbos de valor epistêmico, a opinião pode ser indicadapor certas locuções adverbiais que assinalam, genericamente, que se tra-ta de uma opinião marcadamente pessoal (pessoalmente, para mim, eupor mim, na minha opinião, naquilo que me diz respeito). Veja-se oexemplo a seguir, citado por Rosa (1992: 47)

(Ex: 18) Doc. (...) então nós gostaríamos que o professor C falasse

sobre o problema do correio...

L1 bom... ahn... é eu::... não sei até que ponto posso responder emtermos pessoais ou posso analisar assim... como uma problemá-

tica... ahn nacional... naquilo que me diz respeito... eu não tenho

GRANdes queixas a fazer... ao correio...

(NURC/SP, 255, l. 767-773)

2 CASTILHO (1989) define unidade discursiva como “um segmento do texto caracteriza-do semanticamente por preservar a propriedade de coerência temática da unidade maior,atendo-se como arranjo temático secundário ao processo informativo de um subtema, eformalmente por se compor de um núcleo e de duas margens, sendo facultativa a figura-ção destas”.

Page 181: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

186

GALEMBECK, Paulo de Tarso. Preservação da face e manifestação de...

O mesmo se verifica no exemplo a seguir:

(Ex.19) (L1 e L2 conversam a respeito da felicidade do homem e de

sua adaptação à sociedade.)

L1 então você tem que abstrair desse aspecto [os problemas indivi-

duais de cada pessoa] porque você pode ter ambos os ca::sos...

você tem que pegar na média esquecendo esse aspecto particular

L2 é mas aí:: é o tal negócio eu não me preocupo muito com a mé-

dia... pra mim interessa:: o:: indivíduo né?... salvação individual

(NURC/SP, 343, l. 565-570)

3.2 Marcadores “hedges”

O conceito de “hedge” tem sido formulado de forma diferenciadapelos diversos autores consultados. Neste trabalho, adota-se a definiçãoproposta por Brown e Levinson (1978), segundo os quais “hedges” sãoos marcadores que, de qualquer forma, modificam o valor ilocutório deum enunciado. Entre seus marcadores, interessam, como marcas de opi-nião, sobretudo os que atuam como atenuadores, modificando a forçaassertiva dos enunciados, como os “hedges” que sinalizam atividades deplanejamento verbal (assim, quer dizer, digamos, vamos dizer) e osque exprimem incerteza (Rosa, 1992: 48 e ss).

3.2.1 “Hedges” de planejamento verbal

O emprego desses marcadores provoca, no ouvinte, um efeito dedúvida ou imprecisão:

(Ex.20) (As informantes tratam da escolha da Dra Ana Cândida da Cunha

Ferraz para o cargo de procurador-chefe do Estado.)

L2 é eu soube (...) que [essa indicação] também provocou uns certos

ciúmes ahn ahn ahn isso eu soube não eu vi... lá eu senti... umcerto ciúmes ter:: ter sido escolhido uma mulher

Page 182: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

187

O discurso oral culto.

L1 é:: isso é demais (lá)

[

L2 isso realmente provocou éh ciúmes entre os ho-mens éh:: quer dizer eles acharam assim no começo::... ainda maisporque ela não é... ela não entrou na carreira por concurso (...)

(NURC/SP, 360, l. 777-786)

(Ex: 21) L1 (...) MESMO o pequeno empresário já Pode... não diria em ter-mos de um computador grande mas ele pode ter umminicomputador... mas tudo vai em virtude da da necessidade queele vai sentir...

L2 e:: haveria necessidade... dentro digamos desse na manu/ na::...no funcionamento desse minicomputador... um elemento técnicoou pe/ precisaria ser um engenheiro?

(NURC/SP, 062, l. 1071-1079)

Esses marcadores ocupam, geralmente, uma posição parentéticanas unidades discursivas.

3.2.2 “Hedges” que denotam incerteza

Trata-se das expressões talvez, quem sabe, sei lá, não sei e asse-melhadas, as quais diminuem a força ilocutória dos enunciados opinati-vos e, assim, fazem com que o locutor não se veja tão comprometidocom os juízos emitidos:

(Ex.22) (A informante estabelece uma analogia entre a cidade e os seres

humanos.)

L1 (...) eu faço analogia como indivíduo... e::... o:::... o elemento que

forma cidade os vários seres humanos com :: sei lá parte do corpo

do indivíduo né? (...)

(NURC/SP, 343, l. 196-199)

Page 183: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

188

GALEMBECK, Paulo de Tarso. Preservação da face e manifestação de...

(Ex.23) (O assunto do fragmento são os transportes.)

L1 (...) nós temos uma linha... coitadinha não sei se dá parachamar ela de metrô...)

(NURC/SP, 343, l. 399-400)

(Ex.24) (O informante trata dos ajustes e desajustes do ser humano nasociedade moderna.)

L2 você pode inclusive dizer que o nível geral de... sei lá de ansieda-

de das pessoas vai aumentar... eu acho provável isso (...) ou talveznão porque... as... as pessoas estão procurando coisas novas né?(...)

(NURC/SP, 343, l. 1189-1195)

Da mesma forma que os “hedges” de planejamento verbal, os“hedges” de incerteza ou imprecisão ocupam uma posição parentéticanos enunciados.

Os marcadores “hedges” de ambos os tipos funcionam como ele-mentos de atenuação do valor ilocutório dos enunciados, pois provocamno ouvinte um efeito de dúvida, imprecisão ou incerteza e, assim dimi-nuem a “responsabilidade” do locutor com relação aos conceitos emiti-dos. Por isso mesmo, esses marcadores cumprem um papel análogo aoque é exercido pelos marcadores de rejeição, e previnem eventuais rea-ções desfavoráveis, preservando, assim, a face do falante.

3.3 Alusão a terceiros

A alusão a terceiros constitui um caso de polifonia, pois o usodesse procedimento implica uma divisão entre os papéis de locutor e deenunciador. No entanto, a alusão a terceiros diverge do outro caso depolifonia considerado neste trabalho (os procedimentos de indetermina-ção do sujeito), já que os informantes utilizam-na para conferir às suas

Page 184: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

189

O discurso oral culto.

palavras maior fidedignidade ou valor de verdade. Isso significa que ofalante incorpora as palavras das pessoas que cita e as emprega paraobter crédito ou aprovação. Vejam-se alguns exemplos:

(Ex.25) (As informantes discutem a preservação de traços da linguagem

arcaica na linguagem atual.)

L2 o emprego do vós

L1 é...

L2 também aliás que até algum... até o:: acho que o fim do século

passado... éh mamãe sempre como:: contava que elas tinham

umas amigas que eram sempre carinhosas eram uma velhi-nhas

muito simpáticas então eles se vi/ iam visitá-las ... e almoçavam

com elas e diziam “comei” batatin::nha”...

L1 comei? ((riu))

[

L2 “comei batatinha” quer dizer ofereciam as coisas assim... nessa

nessa... nessa linguagem usavam ainda normalmente essa lingua-

gem isso não é... começo do século não é?

(NURC/SP, 333, l. 260-272)

(Ex.26) (As informantes discutem alguns problemas da cidade de São Pau-

lo.)

L2 éh São Paulo acho assim uma vez o Franck sabe aquele que... que

é arquiteto?

L1 uhn

L2 ele estava falando que a topografia da cidade é muito bonita... e

eu inclusive gosto né? cheio de... montes e:; né? colinas tal mas

que é muito mal aproveitado (...)

(NURC/SP, 343, l. 65-70)

Nos dois exemplos anteriores, a busca de fidedignidade é verificadanão só pela alusão a outras pessoas (a mãe da informante, o arquitetoFranck), mas também porque os locutores fornecem dados que permi-

Page 185: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

190

GALEMBECK, Paulo de Tarso. Preservação da face e manifestação de...

tem contextualizar as informações veiculadas. Assim, no ex. 25, a infor-mante relata que a expressão “comei batatinha” era proferida em umalmoço oferecido por “duas velhinhas muito simpáticas”; no ex. 26, men-ciona-se a profissão da pessoa citada, como forma de enfatizar que setrata de um conceito digno de crédito.

Deve-se ressalvar que nem sempre a alusão a palavras de terceirosconstitui sinal de busca de crédito ou de aprovação. No exemplo a seguir, opróprio locutor coloca em dúvida as palavras da pessoa a que ele se refere:

(Ex: 27) L2 você vê o:: o:: o Altair Lima ele e... arriscou está certo... ele

arriscou ele... pôs tudo:: segundo declarações dele não sei senão demagógicas ou não ele pôs... tudo que ele tinha na monta-

gem da peça Hair (...)

(NURC/SP, 062, l. 1290-1293)

O locutor alude a Altair Lima, pessoa bastante conhecida no meioteatral, mas emprega a expressão “segundo declarações dele não sei sesão demagógicas ou não” como forma de ressalvar que não atribui valorde verdade pleno pelas informações veiculadas.

No exemplo a seguir, o locutor alude ao “homem do tempo”, masindica que não confia nas informações que ele transmite:

(Ex: 28) L2 você vê o homem do tempo... você ouve aí o homem do tempo...

pá pá... fala isso aquilo... não deu nada daquilo ele chega à noite...

“frente fria (constratou)” não sei o que e deu ((ruído)) bateu vol-

tou não vem nada daquilo

(NURC/SP, 062, l. 92-96)

Nos dois últimos exemplos, os informantes manifestam falta deconfiança ou de certeza nas palavras das pessoas às quais se referem.Isso significa que os exs. 25 e 26 podem ser apostos aos exs. 27 e 28: nosdois primeiros o locutor concorda com as palavras da pessoa a que aludee, assim, incorpora-as em benefício da própria argumentação. Já nos exs.

Page 186: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

191

O discurso oral culto.

25 e 26, esse fato não se verifica, pois os informantes ressalvam ou con-testam as pessoas às quais aludem. Seria o caso de colocar os exemplos27 e 28 entre os casos de distanciamento do locutor? Não, com certeza,pois o informante não concorda com as palavras da pessoa que cita, mas,ainda assim, utiliza-as para reforçar ou reiterar suas próprias idéias. Emoutros termos, não se verifica nesses exemplos o afastamento encontra-do nas ocorrências de indeterminação ou impessoalidade.

3.4 Paráfrases

Hilgert (1993: 112 e ss) menciona dois processos ou atividades dereformulação textual: a paráfrase e a correção, ambos caracterizados porapresentar um enunciado de origem e um enunciado reformulador. Adiferença entre ambos decorre da relação entre esses enunciados: na pa-ráfrase há uma relação de equivalência semântica entre eles, ao passoque na correção verifica-se o contraste semântico entre esses enuncia-dos.

Como na paráfrase ocorre uma relação de equivalência semântica(total ou parcial) entre dois enunciados, ela é empregada para reiterar oureforçar os pontos de vista ou conceitos expostos. É o que pode ser veri-ficado nos exemplos a seguir:

(Ex.29) (L2 discorre acerca da escolha da escola para o filho.)

L21 (...) ele não eu pus em uma escola ele não gostou daquela... aí eu

achei que realmente a escola não preenchia tudo... que eu gostaria

(que) preenchesse então eu tirei... aí eu procurei bastante escolhe/

foi escolhida a que eles estão... como sendo na opinião de muita

gente uma das melhores et cetera et cetera... tudo que tinha... pe-

guei todos os requisitos... fiz ((risos))... estudei bem fiz um estudo

certinho para ver qual era a melhor e foi determinado... foi visto

que aquela era a melhor... então foi posto quer dizer não foi umaescolha...

Page 187: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

192

GALEMBECK, Paulo de Tarso. Preservação da face e manifestação de...

L1 sem::

L2 assim sem base

L1 ( )

L2 foi bem pensada bem escolhida (...)

(NURC/SP, 360, l. 389-403)

Em um trecho não reproduzido no exemplo anterior, a informanteL2 diz que o filho não gosta de acordar cedo, e L1 pergunta se não seriaútil mudá-lo de período escolar. L2 então cita as razões que a levaram aoptar por aquela escola e conclui sua exposição com a paráfrase “querdizer não foi uma escolha... assim sem base foi bem pensada bem esco-lhida”. Essa paráfrase tem valor resumitivo e, por meio dela, a informan-te reforça o seu papel de mãe, a sua responsabilidade para com o filho.Em outros termos, a informante L2 previne-se de outras objeções e, as-sim, preserva a própria face.

(Ex.30) (As informantes discorrem acerca da pronúncia das artistas.)

L1 (...) agora os ou/ o Juca de Oliveira ele fala feito um caipira do

interior do Estado... você reparou? é uma pronúncia absolutamente

caipira...

L2 mas ( ) ele carrega

L1 do interior do Estado

L2 mas é vo/ voluntária né?

L1 não... não é voluntária não... é difícil você repara... como é difí-

cil... para o Juca [de Oliveira] interpretar determinados papéis...

se bem que os produtores já viram já perceberam então eleele está sempre adequado ao papel de homem... ele faz muitona televisão um homem rural... então está bem... mas ele tem

uma pronúncia bem acaipirada... do interior do Estado de São

Paulo... então não é uma questão de de formação da Escola de

Arte Dramática onde as pronúncias já estão ... “jogos já estão fei-

tos” como se diz... isso seria de curso primá::rio (...)

(NURC/SP, 333, l. 160-176)

Page 188: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

193

O discurso oral culto.

No exemplo anterior a informante diz que, por causa da pronúncia“caipira”, é difícil para Juca de Oliveira interpretar determinados papéis,mas logo faz a ressalva “se bem que... papel de homem”. Essa ressalva éreforçada pela paráfrase “ele faz muito na televisão um homem rural...então está bem” e, com ela, a informante reitera que não nega o valorartístico de Juca de Oliveira e, assim, resguarda-se de possíveis objeções.

De modo geral, as paráfrases que têm interesse como procedi-mentos de preservação da fase são realizadas pelo mesmo interlocutorque produziu o enunciado de origem (auto-paráfrases) e vêm imediata-mente após esse enunciado (paráfrases adjacentes).

Comentários conclusivos

Foi visto, no decorrer da exposição, que os falantes assumem ati-tudes diversas para a preservação da face. Por vezes, eles procuram to-mar uma atitude de defesa e resguardo, procurando evidenciar que asopiniões não são suas ou, então, que eles não assumem os conceitosemitidos. Em outros casos, verifica-se uma atitude oposta: os falantesevidenciam que incorporam – ainda que com ressalvas – os conceitos eopiniões. Essa duplicidade de atitudes (distanciamento x envolvimento)é característica do texto conversacional e só pode ser explicada porquenessa modalidade de texto não há previsibilidade quanto às ações e rea-ções do outro interlocutor.

Além disso, verifica-se que os procedimentos de preservação daface são de natureza variada: elementos gramaticais (processos de inde-terminação do sujeito e de indicação de impessoalidade; verbos de opi-nião), elementos próprios da língua falada (“hedges”, marcadores de re-jeição), elementos de reformulação textual (paráfrase). Apesar disso, es-ses elementos têm o mesmo papel, qual seja, atuar como marcas queassinalam os diferentes modos de participação dos interlocutores na cons-trução do diálogo. Por isso mesmo, o papel desses elementos decorre doquadro geral da interação e só dentro dele pode ser compreendido.

Page 189: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

194

GALEMBECK, Paulo de Tarso. Preservação da face e manifestação de...

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BROWN, P. e LEVINSON, S.C. (1978) Politeness: some universals in language use.2. ed. Cambridge, Cambridge U. Press.

CASTILHO, A.T. (1989) Para o estudo das unidades discursivas no português falado.In: (org.) Português falado culto no Brasil. Campinas, Ed. da UNICAMP.

________. e PRETI, D. (1987) A linguagem falada culta na cidade de São Paulo:materiais para o seu estudo. V. II – diálogos entre dois informantes. São Paulo,T.A. Queiroz, FAPESP.

DUCROT, O. (1984) Esboço de uma teoria polifônica da enunciação. In: ____. Odizer e o dito. Rev.téc. da trad. de E.Guimarães. Campinas, Pontes Editores.

GOFFMAN, E. (1970) Ritual de la interacción. Buenos Aires, Tiempo Contemporaneo.HILGERT, J.G. (1993) Procedimentos de reformulação: a paráfrase. In: PRETI, D. (org.)

Análise de textos orais. São Paulo, FFLCHUSP.ROSA, M.M. (1992) Marcadores de atenuação. São Paulo, Contexto. (série “repen-

sando a língua portuguesa”).

Page 190: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

195

O discurso oral culto.

CONSIDERAÇÕES SOBRE A UTILIZAÇÃO DENOVAS TECNOLOGIAS NA ANÁLISE DO

LÉXICO DO PORTUGUÊS FALADO CULTODE SÃO PAULO

Zilda Maria Zapparoli

La lexicologie est la voie royale que mène au coeur des textes de manièresûre, mais toujours discrète, dosant savamment les informationsquantitatives et qualitatives, n’éclipsant jamais le texte. Bien aucontraire, elle en révèle la mystérieuse trame qui cache en son sein lesecret de la vie, celle du texte et celle du poète, étroitement enlacées.1

André Camlong

Introdução

Este capítulo insere-se no âmbito dos trabalhos sobre língua por-tuguesa falada que vimos realizando há alguns anos, através da aplicação

1 A lexicologia é a via régia que leva ao coração dos textos de maneira segura, mas sem-pre discreta, dosando sabiamente informações quantitativas e qualitativas, sem jamais

eclipsar o texto. Bem ao contrário, ela revela sua trama misteriosa que oculta em seu

seio o segredo da vida, a do texto e a do poeta, estreitamente enlaçadas.

Page 191: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

196

ZAPPAROLI, Zilda Maria. Considerações sobre a utilização de novas...

de técnicas computacionais que possibilitem a interação homem/máqui-na nas etapas de armazenamento, processamento e recuperação qualitati-va e quantitativa de informações lingüísticas.

São indiscutíveis as vantagens da utilização do computador noarmazenamento, processamento e recuperação de informações, sobretu-do em tarefas em que se manipulam grandes volumes de dados. E aqui seenquadram os estudos com o material do Projeto NURC/SP. A pesquisaà base de textos informatizados facilita e otimiza a busca, organização eanálise dos dados lingüísticos, tornando, por consegüinte, mais fácil, rá-pido e seguro o acesso ao material de análise.

Visando à informatização dos materiais de estudo do ProjetoNURC/SP, a fim de tornar acessível aos pesquisadores do Projeto umaamostragem, em suporte eletrônico, das entrevistas gravadas, geramos oCorpus informatizado do Projeto NURC/SP, constituído do conjunto deinquéritos dos três volumes publicados: Elocuções formais (vol. I, 1986),Diálogos entre dois informantes (vol. II, 1987) e Diálogos entre infor-mante e documentador (vol. III, 1988).2

Para a constituição desse acervo informatizado respeitaram-se to-das as informações relevantes concernentes a variáveis extralingüísticascontroladas na seleção dos informantes que forneceram material lingüís-tico para análise (cidade, sexo, faixa etária, tipo de locutor) e a variáveislingüísticas relativas ao contexto da enunciação e às especificidades dalíngua falada (tipo de inquérito, áreas semânticas, tipo de segmento, tur-no, marcadores, truncamento, sobreposição de vozes, hesitação, repeti-ção formal).3

Como o objetivo é não só gerar bases de dados textuais, mas tam-bém manipular os dados armazenados com diferentes objetivos de análi-

2 Esse trabalho desenvolveu-se no Centro de Informática da FFLCH-USP, em colaboraçãocom Alessandra Sallum, enquanto bolsista de Iniciação Científica do CNPq.

3 Está sendo providenciada, também, a transcrição do corpus mínimo oral do Projeto parasuporte em laser (CD-ROM), de forma a permitir, através da utilização de técnicas demultimídia, a recuperação simultânea de voz e texto, bem como a disponibilização, paraacesso público, das bases textuais geradas através de redes de comunicação (ex.: Internet).

Page 192: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

197

O discurso oral culto.

se, de forma a não trabalhar simplesmente com dados, mas com informa-ções, ou seja, com dados selecionados e organizados para um fim deter-minado, uma atenção especial foi dada à identificação de linguagens e deprogramas especiais de tratamento de textos.

Após levantamento e análise de produtos que permitem a pesqui-sa de texto auxiliada por microcomputador, optamos pelos seguintes pro-gramas:

a) para Macintosh: programa STABLEX, versão 2.0, desenvol-vido por André Camlong e Thierry Beltran no Laboratório deInteligência Artificial, Universidade de Toulouse II;

b) para PC: programa WordCruncher, desenvolvido pela ElectronicText Corporation, Provo, UT.

O corpus informatizado permite a sua manipulação automáticapara diferentes finalidades de análise.4

Este artigo é parte de um projeto maior que vimos desenvolvendocom André Camlong sobre a análise lexical e a estrutura discursiva doportuguês falado culto de São Paulo, a partir de um estudo nos três volu-mes de inquéritos. Esse projeto-conjunto inclui a publicação de um dici-onário de freqüência do português falado culto de São Paulo com parâ-metros estatísticos para cada entrada léxica.

1. O corpus

Dadas as limitações impostas pelas dimensões de um artigo, utili-zando o método de análise de textos desenvolvido por André Camlong,restringimo-nos a tecer, aqui, considerações sobre a descrição e análiseestatístico-descritiva do vocabulário dos nove inquéritos que compõem

4 A manipulação do corpus informatizado para Macintosh tem sido feita através de umtrabalho-conjunto com André Camlong, Universidade de Toulouse II, e a do corpus paraPC, com Leland McCleary, FFLCH-USP.

Page 193: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

198

ZAPPAROLI, Zilda Maria. Considerações sobre a utilização de novas...

o volume de Diálogos entre informante e documentador, com temas,faixas etárias, sexo e tempo de gravação diversificados:

– DID/018 – “A casa, o terreno, vegetais, agricultura, animais,gado”, 1ª faixa etária, masculino, 45 minutos.

– DID/161 – “Teatro, televisão, rádio, cinema, vestuário”, 1ª fai-xa etária, masculino, 65 minutos.

– DID/251 – “Profissão e ofícios”, 1ª faixa etária, feminino, 40minutos.

– DID/137 – “A cidade, o comércio”, 2ª faixa etária, masculino,40 minutos.

– DID/208 – “Família, saúde”, 2ª faixa etária, masculino, 40 mi-nutos.

– DID/234 – “Cinema, televisão, rádio, teatro”, 2ª faixa etária,feminino, 40 minutos.

– DID/235 – “Alimentação”, 2ª faixa etária, feminino, 40 minu-tos.

– DID/250 – “Dinheiro, banco, finanças, bolsa”, 3ª faixa etária,masculino, 40 minutos.

– DID/242 – “Instituições: o ensino, a igreja”, 3ª faixa etária,feminino, 40 minutos.

2. O método de análise

O método de análise de textos desenvolvido por André Camlongno Centre de Recherches Ibériques Contemporaines (CRIC) da Univer-sidade de Toulouse II apresenta-se como inovador na medida em que,utilizando técnicas computacionais de última geração, integra fundamen-tos lingüísticos, matemáticos e estatísticos. Trata-se, pois, de um métodoque põe ferramentas informáticas, estatíscas, matemáticas e gráficas aserviço da descrição e análise de léxicos, textos e discursos, algumasvezes corroborando, outras corrigindo e orientando nossa leitura do texto.

Page 194: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

199

O discurso oral culto.

A utilização de ferramentas de análise de textos estatístico-descri-tivas e, portanto, da técnica informática, matemática e estatística relacio-nada à análise lingüística, oferece ao pesquisador maior confiabilidadeàs análises dos dados de suas pesquisas.

A descrição do vocabulário dos Diálogos entre informante e do-cumentador está, portanto, pautada por um método descritivo, objetivo eindutivo de análise, que pressupõe trabalho em um ambiente de tecnologiasde ponta da informática, mediante a utilização do programa STABLEX.

“Por être ‘scientifique’, toute analyse doit être objective, descriptiveet mesurée; pour être universalle, elle doit nécessairement entrer dansla logique du raisonnement inductif. Or, il est bien entendu qu’il nepeut y avoir de scientifique et d’universel qui ne soit ni objectif, nidescriptif, ni inductif”.5

(CAMLONG, 1996: 6)

Conforme esclarece André Camlong, os dados não são meramen-te quantitativos, mas quanti-qualitativos, dada a filosofia do método apli-cado pelo STABLEX: cada valor numérico reflete o vocabulário corres-pondente e, portanto, o texto de referência. Em outras palavras: o texto éo ponto de partida, a base de todo o processamento. Os dados quantitati-vos e os dados qualitativos são de natureza diferente, mas ligados intima-mente: o número representa uma realidade lingüística em que o vocá-bulo existe no e pelo texto e o texto, no e pelo vocábulo. Há uma comu-nicacão constante entre as duas informações, a textual (qualitativa) e anumérica (quantitativa): a estatística ajuda-nos a penetrar no universolingüístico e a descrevê-lo de modo mais exato. O cálculo algébrico e adescrição estatística dão a conhecer para fazer reconhecer: põem em re-levo as linhas constitutivas do raciocínio e do discurso, destacando-asnitidamente.

5 “Para ser ‘científica’, toda análise deve ser objetiva, descritiva e medida; para ser uni-

versal, ela deve necessariamente entrar na lógica do raciocínio indutivo. Ora, é pontopacífico que nada pode haver de científico e de universal que não seja nem objetivo, nem

descritivo, nem indutivo”.

Page 195: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

200

ZAPPAROLI, Zilda Maria. Considerações sobre a utilização de novas...

3. O Programa STABLEX

O tratamento informático do vocabulário dos diálogos entre in-formante e documentador foi efetudado por André Camlong mediante oemprego do programa STABLEX – programa, para Macintosh, deindexação, tratamento estatístico, extração de seqüências e concordânci-as, lematização, criação automática de dicionários.

Há outros programas disponíveis que são indexadores, produzemconcordâncias e servem para a busca textual: permitem a indexação daspalavras de um texto (ou seja, a identificação de sua localização no texto),a recuperação por listagens em forma de concordâncias ( o conjunto deocorrências de cada palavra, em ordem alfabética, com seu contexto ime-diato e sua localização). Possibilitam, também, a pesquisa de grupos depalavras (com o uso de coringas e expressões lógicas, é possível a buscade palavras que guardam alguma relação). Com recursos de ordenação(à direita, à esquerda, inversa), recuperam-se padrões de colocações. Osprogramas ainda permitem um tratamento quantitativo dos dados.

Pelo conhecimento que temos de diferentes programas de análisee tratamento de textos, consideramos que o STABLEX responde, de formamais completa e satisfatória, às necessidades do pesquisador cujo objetode trabalho é o texto, por associar os recursos de um sistema de recupera-ção de textos aos de um gerenciador de banco de dados, de forma afacilitar o gerenciamento de informações, e por ser compatível com pro-gramas disponíveis para Processamento de Textos, Banco de Dados, Pla-nilha Eletrônica e Editoração, tais como Word, EXCEL, Hypercard.

O STABLEX compõe-se de quatro módulos complementares:

a) TurboSTAB – realização de léxicos: levantamento exaustivodo vocabulário e elaboração automática de dois léxicos, umem que os vocábulos são classificados por ordem alfabética eoutro, por ordem de freqüência decrescente, acompanhados desuas ocorrências no corpus e nas variáveis do corpus;

b) TABLE – preparo de dados para a análise estatística: confecçãoautomática de Tabelas de Distribuição de Freqüências – TDF

Page 196: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

201

O discurso oral culto.

(fornecem o “status” da população lexical), sistematicamenteconvertidas em Tabelas de Desvios Reduzidos – TDR (põemem evidência o conjunto dos traços característicos da distri-buição);

c) EXTRACTION – levantamento de seqüências: extração auto-mática das seqüências textuais ou das concordâncias relativasa cada vocábulo ou radical, respeitando-se a ordem de ocor-rência no texto;

d) HYPERDICO – manipulação e consulta de dicionários: cria-ção automática dos dicionários desejados, com a possibilidadede enriquecê-los e manipulá-los à vontade.

A análise quantitativa de textos – ponto de partida para a análisequalitativa – é fornecida pelos dois primeiros módulos e por programasde análise estatística que aceitam arquivos no formato ASCII.

O desenvolvimento completo das operações com um perfeito en-cadeamento dos módulos permite a análise lexical de um texto e a con-fecção de dicionários.

4. O STABLEX na análise do léxico do portuguêsfalado culto de São Paulo

A análise aqui feita baseia-se nas diretrizes contidas nos docu-mentos D1 NURC – Plano geral do estudo e Estudo do vocabuláriode D1 (D 018), relativos aos Diálogos entre Informante e Documen-tador e elaborados por André Camlong a partir do processamentodos dados do Corpus informatizado do Projeto NURC/SP peloSTABLEX.6

6 O discurso do informante e o do documentador foram considerados no processamento eanálise dos dados que compõem este artigo.

Page 197: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

202

ZAPPAROLI, Zilda Maria. Considerações sobre a utilização de novas...

4.1 Dos textos diálogos entre informante e documenta-dor aos vocabulários de freqüências

As Tabelas de Distribuição das Freqüências (TDF) fornecem ostatus da população submetida ao tratamento. Trata-se de uma operaçãoque consiste no levantamento automático exaustivo dos vocábulos dosnove diálogos entre informante e documentador – T1, T2, T3...T9 (con-sideradas as nove variáveis) –, em que, respeitada a distribuição entre asvariáveis, os vocábulos são classificados por ordem alfabética e por or-dem decrescente de freqüência.

Esse tratamento é precedido por um trabalho manual de recompo-sição dos sintagmas (locuções, nomes próprios, numerais) nos textos,com o traço de união, a fim de evitar-se o seu esfacelamento. Por exem-plo: Belo-Horizonte, gado-de-corte, fundo-de-garantia, mil-novecentos-e-três, fim-de-semana, dia-a-dia.

A título de exemplificação, apresentamos uma pequena amostrados dois vocabulários gerados em tabelas de distribuição de freqüênciasa partir dos nove inquéritos de Diálogos entre Informante e Documenta-dor que foram utilizados para a análise dos dados, visto que, dada a suaextensão, torna-se inviável a sua apresentação integral:

– vocabulário classificado por ordem alfabética: os vocábulossão classificados por ordem alfabética, com sua freqüência de ocorrênciaglobal e por variável.

Vocabulário Total T1 T2 T3 T4 T5 T6 T7 T8 T9

a 1363 172 192 169 156 182 79 166 142 105

à 102 6 26 12 7 8 11 12 17 3

aba 1 1 0 0 0 0 0 0 0 0

abacaxi 7 0 0 6 0 0 1 0 0 0

abafa 1 1 0 0 0 0 0 0 0 0

abanar 1 1 0 0 0 0 0 0 0 0

Page 198: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

203

O discurso oral culto.

abandonada 2 0 0 0 2 0 0 0 0 0

abandonando 1 0 0 1 0 0 0 0 0 0

aberta 1 0 0 1 0 0 0 0 0 0

aborreceu 1 0 0 0 1 0 0 0 0 0

aborreço 1 0 0 0 0 0 0 1 0 0

aborto 2 0 0 0 2 0 0 0 0 0

abrangente 1 0 0 0 0 0 1 0 0 0

abre 3 0 1 1 0 0 0 0 1 0

abrir 4 0 0 0 0 0 0 0 4 0

abriu 1 0 0 0 0 0 0 1 0 0

absoluta 1 0 0 1 0 0 0 0 0 0

absolutamente 5 0 1 0 2 0 0 1 1 0

absoluto 1 0 0 0 1 0 0 0 0 0

absolutos 1 0 0 0 0 0 0 0 1 0

– vocabulário classificado por ordem decrescente de fre-qüência: registra, em ordem decrescente, a freqüência de ocorrênciado vocábulo no total do corpus e a sua distribuição pelos nove inqué-ritos.

Vocabulário Total T1 T2 T3 T4 T5 T6 T7 T8 T9

que 2296 265 230 317 177 359 183 257 195 313

o 1649 341 110 275 142 246 80 126 201 128

de 1591 188 235 219 175 171 156 175 145 127

a 1363 172 192 169 156 182 79 166 142 105

e 1211 229 151 152 155 96 112 136 82 98

não 1127 144 90 168 89 151 134 171 86 94

Page 199: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

204

ZAPPAROLI, Zilda Maria. Considerações sobre a utilização de novas...

eu 1061 46 180 64 66 239 88 184 62 132

é 1040 243 94 126 44 113 98 139 96 87

um 660 84 47 123 64 67 53 60 59 103

uma 601 76 83 104 48 45 50 94 51 50

em 574 51 144 80 65 47 57 41 61 28

do 476 66 69 106 33 51 29 36 49 37

se 474 119 39 88 36 32 28 41 64 27

então 398 57 52 60 41 18 69 27 35 39

mais 397 43 49 64 32 71 33 24 27 54

da 366 30 46 83 49 30 19 39 26 44

no 364 47 54 76 45 42 10 26 40 24

mas 345 51 33 48 40 38 18 65 28 24

com 327 46 36 48 43 16 47 40 32 19

você 327 0 11 86 19 31 109 6 21 44

Embora a observação desses dados não ofereça informação relati-va ao valor dos vocábulos nos nove inquéritos, visto a sua diferença deextensão, a classificação freqüencial põe em relevo: o vocabulário gra-matical nas altas freqüências (que, o, de, a, e, não, eu, etc.), seguido pelovocabulário nocional em que se destaca o temático (teatro, filme, cine-ma, peça, etc.).

4.2 Descrição estatística: das Tabelas de Distribuição deFreqüências (TDF) às Tabelas de Desvios Reduzidos(TDR)

Como já salientado, a observação dos dados fornecidos pelos vo-cabulários apresentados anteriormente não fornece nenhuma informa-ção relativa à sua importância nos nove inquéritos.

Page 200: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

205

O discurso oral culto.

As TDF (cálculo aritmético) dão, apenas, o status da populaçãolexical recenseada, o que não é suficiente para uma descrição científicado corpus, uma vez que os valores nelas apresentados retratam, simples-mente, a distribuição dos vocábulos pelas variáveis (neste caso, pelosnove inquéritos). Esses dados brutos não permitem formular nenhumahipótese, nem fazer nenhuma comparação, em virtude da diferença deextensão de cada texto. A estatística descritiva fornece os meios científi-cos para uma avaliação objetiva dos valores apresentados nas TDF, trans-formando-as em TDR (cálculo algébrico), em que todos os elementossão medidos com a mesma unidade, a do desvio-padrão.

“ (...) convient-il de dire que la statistique n´est pas une fin en soi,mais un moyen d’interpréter la description d´une population à par-tir du recensement des éléments dans des tableaux. C’est un outild’analyse permettant de décrire une observation et d’en tester lesvariables par rapport à des modèles théoriques de variation.L’interprétation des résultats quant à la portée qualitative n’estpas du ressort de la statistique. Son rôle s’arrête à la description dela qualité des distributions de la population”.7

(CAMLONG, 1991:40)

Sendo o cálculo algébrico (efetuado automaticamente peloSTABLEX a partir do cálculo das probabilidades) um excelente meio derepresentação e de comparação, a Tabela dos Desvios Reduzidos forneceo valor centrado e reduzido de cada variável (de cada texto = inquérito) ede cada item (= de cada vocábulo).

A TDR apresenta-se sob forma de matriz. No plano vertical, éformada pelas colunas relativas às nove variáveis classificadas por or-

7 “ (...) convém dizer que a estatística não é um fim em si, mas um meio de interpretar adescrição de uma amostragem a partir do levantamento dos elementos. É uma ferramen-

ta de análise que permite descrever uma observação e de testar suas variáveis em rela-

ção a modelos teóricos de variação. A interpretação dos resultados no tangente ao trata-mento qualitativo não é da alçada da estatística. Seu papel se esgota na descrição da

qualidade das distribuições da amostragem.”

Page 201: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

206

ZAPPAROLI, Zilda Maria. Considerações sobre a utilização de novas...

dem crescente de numeração (T1, T2...T9). Na primeira coluna, totalizam-se os valores dos desvios reduzidos na linha (ou das 9 variáveis). Nofinal, numa última linha, totalizam-se os valores dos desvios reduzidosde cada variável. Enquanto as leituras verticais, coluna por coluna, refe-rem-se à especificidade de cada variável a partir de uma descrição doconjunto, as leituras horizontais, linha por linha, dizem respeito à com-paração entre as variáveis, permitindo a comparação das diferenças oudas preferências de emprego de elementos ou de grupos de elementos deum texto a outro e, a partir daí, a obtenção de uma visão estilística.

A visão combinada dos dois eixos – vertical e horizontal – forneceos traços comuns e os traços distintivos entre os textos que integram ocorpus.

A estatística é essencialmente um instrumento de medida contras-tiva em que o todo se define em relação à parte e a parte em relação aotodo.

Citamos, como exemplo, os 188 de na primeira célula do primei-ro inquérito. Acusa-se um desvio reduzido negativo de –2,02, o que sig-nifica que o emprego da preposição de é deficitária no DID/018 em rela-ção ao emprego que tem nos nove inquéritos.

Pelas limitações de tamanho de um artigo, torna-se impossívelreproduzir, integralmente, aqui, a TDR para os nove inquéritos, razãopela qual se apresentam, a seguir, apenas os resultados por ela forneci-dos.

TABELA 4.2 – Resultados fornecidos pela TDR

T1 T2 T3 T4 T5 T6 T7 T8 T9

∑(z)= 4,811 3,993 15,189 -11,287 25,348 -13,999 -7,677 -23,304 0,732

z = 0,032 0,027 0,101 -0,075 0,169 -0,093 -0,051 -0,155 0,005

z 2= 0,001 0,001 0,010 0,006 0,029 0,009 0,003 0,024 0,000

Page 202: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

207

O discurso oral culto.

O teste de normalidade é fornecido pelo c2 de Fisher, que é a somados desvios reduzidos das nove variáveis em estudo. Para calcular-se o c2,primeiro é calculada a soma dos desvios reduzidos (Z) para cada variável,dividindo-se a soma pelo número de linhas e, depois, é calculado o quadra-do, para ser feita a soma das nove variáveis. Todos esses cálculos são auto-maticamente efetuados pelos programas utilizados através do STABLEX.

4.3 Das Tabelas de Desvios Reduzidos a consideraçõessobre a análise do léxico do português falado cultode São Paulo

A significação da distribuição das Tabelas de Desvios Reduzidosé fornecida pelas tabelas de significação do χ2 estabelecidas por Pearsone Owen. A partir delas, observa-se que se trata de um corpus equilibrado,homogêneo, visto que a distribuição atinge um grau de normalidade talque o χ2 é perfeitamente centrado. O χ2 vale 0,082 com 9 g.d.l. (graus deliberdade correspondendo às 9 variáveis). Para 9 g.d.l., a tabela de Fisherdá o valor de 1,735 para uma probabilidade de 99,5%. Resulta, pois, quea distribuição das 9 variáveis é mais do que centrada e normalizada jáque há ainda uma variação de 21 para 1 dentro dessa margem de 99,5%.É essa concentração em torno da média que exprime o gráfico seguinteelaborado a partir do z médio de cada variável:.

Figura 4.3(a) – Normalidade da distribuição

Page 203: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

208

ZAPPAROLI, Zilda Maria. Considerações sobre a utilização de novas...

O gráfico põe em evidência as características da distribuição per-feitamente centrada, conforme a qualidade de cada uma: 4 negativas (T4,T6, T7, T8) e 5 positivas (T1, T2, T3, T5, T9), oscilando entre – 0,150 e+ 0,170. Nenhum desses valores, enquanto representação do desvio re-duzido, aproxima-se de 1,735, o valor global do χ2 .

Reportando-nos a Eugenio Coseriu, em sua visão tripartida da lin-guagem – Sistema/Norma/Falar Concreto –, podemos dizer que essescálculos permitem determinar a norma lexical da amostra considerada.Trata-se da norma lexical descritiva da população considerada, normaúnica, geral, que a descrição estatística permite abstrair dos atos lingüís-ticos concretos, fundamentada, portanto, nas freqüências observáveisdesses atos.

Ou seja, o falante repete “formas sociais determinadas e mais oumenos constantes”, “realiza concretamente em seu falar moldes, estrutu-ras da língua de sua comunidade”, o que, na norma, “implica a elimina-ção de tudo aquilo que no falar é aspecto totalmente inédito, varianteindividual, ocasional ou momentânea, só se conservando os aspectoscomuns que se comprovam nos atos lingüísticos considerados e em seusmodelos”. Para Coseriu, “A norma é, com efeito, um sistema de realiza-ções obrigadas, de imposições sociais e culturais, e varia segundo a co-munidade” (COSERIU, 1979: 72-74).

Ao lado desse vocabulário comum, registram-se traços variáveisem função da temática do inquérito.

A existência de uma coerência interna e de uma dispersão, ouseja, de um vocabulário normal (= comum, standard) entre inquéritos detemas diferentes, leva-nos a concluir que as posições descritivista eprescritivista, embora distintas, não são totalmente antagônicas, visto quea coerência interna, atestada no falar culto dos paulistanos pelas freqüên-cias observáveis dos vocábulos, pode explicar-se, entre outros fatores,pela tradição escolar (traço comum aos informantes) e comprova que oprescritivismo tende a estandardizar a língua. Em outros termos, a atitu-de descritiva revelada pela estatística descritiva apóia-se numa atitudeprescritiva oriunda da tradição escolar.

Page 204: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

209

O discurso oral culto.

A determinação da norma descritiva (norma implícita) reflete aexistência, na fala, de um discurso da norma explícita (no sentido que lheé atribuído por Stanley Aléong), única para a escrita e para a fala.8 Isto é,há “une pensée ou une vision du langage selon laquelle on peut classerles faits linguistiques selon des catégories de bon, mauvais, correct, pur,fautif, standard, etc. (...) le discours de la norme est, par définition,impératif, autoritaire et arbitraire”. 9 (ALÉONG, s.d.:270, grifo nosso).Em outros termos, os falantes cultos paulistanos são fiéis aos contratoslingüísticos e sociais firmados pelos membros da comunidade de nívelsuperior de que são parte.

Conforme os valores das Tabelas de Desvios Reduzidos, desta-cam-se variedades do vocabulário, com determinação do peso e do espa-ço ocupados por cada um, que caracterizam a estrutura lexical das variá-veis:

Figura 4.3(b) – Variedades de vocabulário (apud CAMLONG, 1996:127)

a) vocabulário preferencial (cujo Z > +1,96 ou +2): resultante deuma leitura vertical da TDR, é aquele cujo peso lexical positi-vo é altamente significativo. É característico de cada inquérito.Trata-se, pois, de um vocabulário de emprego significativa-mente excedente, ou seja, objeto de uma escolha privilegiada,sendo particularmente representativo da estrutura do discurso;

8 Ver, a propósito, observações de Diana Luz Pessoa de Barros em capítulo desta obra.9 “um conceito ou uma visão de linguagem de acordo com a qual podemos classificar os

fatos lingüísticos segundo as categorias de bom, mau, correto, puro, errado, standard,etc (...) o discurso da norma é, por definição, imperativo, autoritário e arbitrário.”

Page 205: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

210

ZAPPAROLI, Zilda Maria. Considerações sobre a utilização de novas...

b) vocabulário diferencial (cujo Z < -1,96 ou -2): resultante deuma leitura vertical da TDR, é aquele cujo peso lexical negati-vo é altamente significativo. É um vocabulário de empregosignificativamente deficitário, ou seja, objeto de um abando-no, ou de uma rejeição. Como o preferencial, é um vocabulá-rio característico de cada inquérito, ligado às palavras-chave e,portanto, à temática do texto;

c) vocabulário básico, comum, vulgar, ou banalizado (cujo Z tendepara zero), determinado por uma prática de leitura horizontalda TDR, portanto, leitura contrastiva. Trata-se do vocabuláriopróprio do corpus, imagem dos empregos correntes da amos-tra considerada, formando a base do discurso: palavras grama-ticais e nocionais fundamentais que servem de suporte para aconstrução do texto. É sobretudo o valor algébrico de que éafetado que lhe confere o caráter de básico: o lugar nos limitesdo intervalo de confiança, isto é, compreendido entre -1,96 e +1,96 (ou entre + 2). Podem-se distinguir:

– vocabulário básico fundamental, ou vocabulário restritamentebásico (-1 < Z < +1): é aquele cujo peso lexical está centradoem torno da média, sendo indispensável à formação do texto eà delimitação mais específica da zona centrada do vocabuláriocomum ao corpus, ou seja, da zona de forte concentração dosvocábulos do tronco comum que gravitam em torno da médiareduzida a zero;

– vocabulário básico com tendência positiva (+1 < Z < +2): éaquele cujo peso lexical tende a diferenciá-lo positivamente;

– vocabulário básico com tendência negativa (-2 < Z < -1): éaquele cujo peso lexical tende a diferenciá-lo negativamente;

d) vocabulário particular, próprio, distintivo, ou exclusivo: é aqueleque é próprio da variável analisada (essencialmente temático)

Page 206: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

211

O discurso oral culto.

e que, portanto, não figura nas outras. O vocabulário particularnão pode ser confundido com os hapax (vocábulos que ocor-rem uma única vez no texto e no corpus ), o que equivaleriaconfundir peso com freqüência. Lembramos que as varieda-des de vocabulários dizem respeito ao peso ocupado pelo vo-cábulo no corpus, a partir das TDR, e não à sua freqüência. Oshapax representam a maior parte do vocabulário particular,porém não a sua totalidade. Os nomes próprios, por exemplo,são, ao mesmo tempo, exclusivos e repetitivos. Por outro lado,os hapax podem entrar, também, no vocabulário diferencial,comum e preferencial;

e) vocabulário de exclusão, ou rejeitado: é aquele que é inexistentena variável considerada;

f) vocabulário específico: é um vocabulário temático de síntese,que obedece a critérios de reagrupamento segundo uma avali-ação temática particular. A lematização é um procedimento deredução ou de síntese parcial do léxico “qui tend à réduire leséléments lexicaux à un seul vecteur centré sur une racinethématique (le lemme) ou à regrouper les différentes flexionsd’un mot autour d’un mot-clef ou d’un vocable-vedette”.10

(CAMLONG, 1966:133).

As variedades de vocabulários arroladas acima permitem-nos des-tacar as temáticas e as gramáticas específicas nas zonas preferenciais,assim como o léxico representativo da expressão comum, o suporte datemática. Do mesmo modo, destaca-se o suporte gramatical básico. Re-correndo-se ao vocabulário específico fundado na lematização, podem-se focalizar aspectos considerados globalmente. Assim, pode-se avaliar

10 “que tende a reduzir os elementos lexicais a um só vetor centrado numa raiz temática (o

lema) ou a reagrupar as diferentes flexões de uma palavra em torno de uma palavra-chave ou de um vocábulo em destaque.”

Page 207: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

212

ZAPPAROLI, Zilda Maria. Considerações sobre a utilização de novas...

o peso efetivo dos verbos auxiliares ou modalizadores do discurso, comoser, estar, ter, haver, dizer, poder, querer, saber… Mais ainda, é possívelfocalizar blocos mais importantes, medindo-se o peso exaustivo de cer-tos aspectos semânticos, como, por exemplo, o da vista, reunindo nãoapenas os elementos verbais, mas também os nocionais (ver, olhar, per-ceber, enxergar… mais olho, vista, observação…), conforme o ponto devista analisado. Mais do que a medição global, essa técnica permite des-tacar nitidamente as perspectivas discursivas, já que fornece o peso exatodos tempos e dos modos verbais relativos a cada variável.

A seguir, tecemos considerações sobre o estudo do vocabulário daprimeira variável – inquérito DID/018 –, conforme o setor determinadopelo peso dos itens, abordando o vocabulário preferencial e o vocabulá-rio básico.

Dada a impossibilidade de apresentação integral das listas dessesvocabulários, reproduzimos os gráficos representativos de sua distribui-ção em que se implantaram os vocábulos mais significativos quanto aorelevo ocupado. Tecem-se considerações a partir da análise desses gráfi-cos, bem como das listas exaustivas aqui não relacionadas.

4.4 Estudo do vocabulário do DID/01811

4.4.1 Vocabulário preferencial

A temática desta primeira variável, perfeitamente definida no ca-beçalho da entrevista, é: “A casa, o terreno, vegetais, agricultura, ani-mais, gado”.

Observemos a temática que se destaca do léxico.

Reúne-se, aqui, o vocabulário preferencial (diferenças ou prefe-rências de emprego de vocábulos de um inquérito a outro), que oferece

11 A transcrição integral da entrevista consta em PRETI; URBANO, 1988: 17-37.

Page 208: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

213

O discurso oral culto.

uma visão das características estilísticas. Conforme se observou, a cargasemântica dos elementos deve ser considerada conforme o peso dadopelo valor do desvio reduzido que acompanha cada item. Assim, há umadiferença fundamental entre a palavra gado afetada de um z = +14,51 e apalavra animal afetada de um z = +5,63. A primeira é utilizada 33 vezes,enquanto a segunda apenas 7 vezes. Mas isso é ainda relativo, já quegado é uma palavra exclusiva, empregada 33 vezes aqui e apenas aqui,enquanto animal é uma palavra empregada aqui 7 vezes sobre um totalde 9 vezes. Para facilitar a leitura, destacam-se, em negrito, as palavrasdo vocabulário particular (ou exclusivo).

Para a temática do gado e da agricultura, reuniram-se, de um lado,os animais, depois os vegetais, a seguir os produtos e, para terminar, asferramentas agrícolas:

– termos ligados aos animais: gado, cavalo, bezerro, vaca, bur-ro, gado de corte, gado de leite, boi, cavalos, touro, animal,alazão, besta, garanhão, zebu, animais, burros, cria, égua,potro, bezerros, éguas, eqüinos, novilha…;

– termos ligados aos vegetais: milho, café, espiga, grão, arroz,casca, culturas, palha, algodão, pasto, plantar, colheita, co-lhido, fubá, madeira, planta, sabugo, capim, caroço, galho,grãos, paiol, pampa, sementeira, sulco, feijão;

– termos ligados aos produtos: em que a palavra leite ocupa umlugar destacado: leite, queijo, coalhada, couro, pano, pelego,requeijão, farinha, tecido, em que também podem figurar: água,sal, ordenha…;

– termos ligados às ferramentas: arreio, fazenda, roda, arado,freio, manga-larga, estribo, terreiro, saco, curral, elétrica, es-tábulo, iluminação, balde, chicote, enxada, enxadão, garganti-lha, latão, (litros), manta, moinho, trator, bota, eixo, fechadu-ras, intrumentos, rédeas, sela, argola, barracão, botina…;

– termos genéricos: terra, culturas, cavaleiro, colheita, colonos,fêmea, água, mamar, manso, vendia, cultura, raça, luz, metal,

Page 209: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

214

ZAPPAROLI, Zilda Maria. Considerações sobre a utilização de novas...

pedra, administrador, administradores, aguada, aparelhinho,armazenado, barrigueira, carga, cria, raças…

Os seguintes termos, que figuram no cabeçalho da listagem, refle-tem claramente a temática: leite, milho, gado, cavalo, arreio, bezerro,fazenda, em que o cavalo ocupa um lugar privilegiado e o leite, umapreocupação importante.

A configuração do vocabulário preferencial pode ser observadaglobalmente no gráfico seguinte:

0,00

2,00

4,00

6,00

8,00

10,00

12,00

14,00

16,00

18,00

0 50 100 150 200 250 300 350

leite

milho

gadocavalo

café

espigadocumentador

arreio vamos informantebezerroé

odizer

vaca arroz burro

fazenda

grão

setem

arado coalhada freio gado de leite…

eelebom

comopra

agorauhn

jáou

essapreciso

Figura 4.4.1 – Ecografia do vocabulário preferencial

A representação do vocabulário preferencial resulta do peso dadopelo desvio reduzido que se estende do valor superior +17,55 (com apalavra leite de freqüência 52) até o valor inferior-limite +1,98 (com apalavra preciso de freqüência 3).

Page 210: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

215

O discurso oral culto.

Remetendo-se para a lista exaustiva, podem-se destacar todos oselementos e classificá-los conforme a necessidade da análise.

Para tecer considerações sobre os vocábulos gramaticais, destaca-mos a conjunção enquanto, já que figura apenas nesta variável:

– Inf. e é como vamos dizer um triângulo... enquanto que o enxadão... (l. 94-

95)

– Inf. e vamos dizer é:: é inteiro... enquanto que o boi ele é:: castrado (l. 494-

495)

– Inf. é bem mais rústico... e:: muito mais bravo também... enquanto que:: o

gado... de leite... (l. 498-499)

No emprego do enquanto, observa-se uma marca de expressão doinformante, que acaba contaminando o documentador, como se pode vercom o seguinte exemplo:

– Doc. e a vaca enquanto está tirando o leite ela... está mansa não precisa fazer

nada com ela ou (l. 567-8).

O emprego preponderante da preposição pra mostra o caráter fa-lado da entrevista, reforçado por ô, uhn, ou ainda pelo “et cetera”, ou,ainda, pela procura de precisão com o até.

Page 211: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

216

ZAPPAROLI, Zilda Maria. Considerações sobre a utilização de novas...

Figura 4.4.2.1 – Vocabulário básico fundamental centrado em torno do zero

O gráfico permite fixar a imagem da distribuição desse vocabulá-rio. A qualidade dos vocábulos é uma indicação da natureza do vocabu-lário de tendência essencialmente gramatical. Pode-se resumir global-mente a situação da gramática que aí se destaca:

– os verbos: pode, sei, há, está, fazer – afetados dum z positivo –e estou, vai, têm, deve, ficar, sair, havia, vai, conhece – afeta-dos dum z negativo;

– os artigos e pronomes: dos, tudo, do, eles, aqueles, isso, algu-mas, ninguém – na parte positiva – e outras, pelo, na, no, nenhu-ma, um, uma, alguns, muitos, sua, numa – na parte negativa;

-1,00

-0,80

-0,60

-0,40

-0,20

0,00

0,20

0,40

0,60

0,80

1,00

0 50 100 150

nãoumaum

vai

pode

sempre

sei

ahmas

então

com

do

coisa

assim

fazerisso

senhor

tudo

estáàs

grandediferença

nessa

hoje

nano

sairficarsuamuitadeve

têmestou

primeiro

nenhuma

aliás

4.4.2 Vocabulário básico

4.4.2.1 Vocabulário básico fundamental

Page 212: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

217

O discurso oral culto.

– os advérbios: praticamente, naturalmente, hoje e, com um lu-gar notável para a negação, nada, não e sem.

4.4.2.2 Vocabulário básico com tendência positiva

A observação da imagem representativa da distribuição preferen-cial permite focalizar melhor os elementos.

Figura 4.4.2.2 – Vocabulário básico com tendência positiva

Destacam-se os seguintes elementos:

– dentro dos verbos: descrever, falava, levar (de freq. 2), ser (defreq. 26), aproveitavam, aproveitar, cobrir… (de freq. 1);

0,00

0,20

0,40

0,60

0,80

1,00

1,20

1,40

1,60

1,80

2,00

0 10 20 30 40 50

por

seroutro

mesmoaí

quer

elatipos diferentes

me

tinhanum

utilidade

normalmente

Page 213: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

218

ZAPPAROLI, Zilda Maria. Considerações sobre a utilização de novas...

– dentro dos substantivos: máquina, lugar, árvores, conclusão,cor, essencial, hábito, máquinas… (de freq. 1 geralmente eraramente de freq. 2 ou mais);

– dentro dos adjetivos: baixo, alto, larga, largas…;

– dentro dos elementos gramaticais: a par dos vocábulos de altafreqüência, embora de peso semântico reduzido, como a pre-posição por no início da lista, ou os indefinidos outro, mes-mo…, figuram elementos mais modestos, quer dizer de baixafreqüência, como cujo, daquelas, naquilo, aí, alguma, ela, me,num.

4.4.2.3 Vocabulário básico com tendência negativa

A representação gráfica da distribuição preferencial permite sem-pre a focalização visual da configuração dos elementos:

-9,00

-8,00

-7,00

-6,00

-5,00

-4,00

-3,00

-2,00

-1,00

0,00

0 50 100 150 200 250 300

eu

foi

nós

em

que

de

aquandoné

maisparaos

sãoacho

Figura 4.4.2.3 – Vocabulário básico com tendência negativa e vocabulário diferencial

Page 214: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

219

O discurso oral culto.

A implantação dos elementos no gráfico já é em si representativanão apenas da distribuição, mas também da qualidade dos vocábulosdesleixados e, portanto, da não-orientação do discurso por compensa-ção. Os dois elementos mais rejeitados são o pronome pessoal da primei-ra pessoa eu e o verbo ser no pretérito perfeito foi. Mais do que insistir nanão-orientação para a primeira pessoa ou para o pretérito, vale insistir nadireção dada ao discurso totalmente orientado para a descrição no imper-feito ou no presente.

A conjunção temporal quando tem nada ou pouco a ver nessediscurso relatando a vida agrícola na zona de Campinas.

Voltando a atenção para os elementos de baixa freqüência, desta-cam-se:

– os substantivos: casa, cidade, gente, trabalho, negócio…;

– os verbos: acho, são, estão, estava, comer, ver…;

– os advérbios: muito, melhor, tanto, mais…;

– e as palavras gramaticais consideradas globalmente: em, por-que, onde, para…

Considerações finais

Tendo em vista a extensão e a finalidade deste tipo de texto, bus-camos dar, aqui, mostras das possibilidades de exploração do corpusmediante a utilização de novas tecnologias na análise de textos, procu-rando demonstrar que a técnica lexicográfica auxiliada por computadorrepresenta uma interface útil entre o homem e a máquina, especialmenteem se tratando de um sistema desenvolvido especialmente para aplica-ções lingüísticas, como é o caso do STABLEX, que faz mais do quesimplesmente acelerar e facilitar o trabalho de edição de dicionários: for-nece, de forma confiável e segura, porque embasada por métodos e crité-rios científicos, indicadores para uma análise das características temáti-

Page 215: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

220

ZAPPAROLI, Zilda Maria. Considerações sobre a utilização de novas...

cas e da estrutura argumentativa do discurso, algumas vezes, reforçando,outras orientando hipóteses prévias.

No que diz respeito ao estudo do vocabulário do DID/018, a per-tinência do método de análise aplicado permite verificar que o informan-te desenvolveu parcialmente a temática que lhe foi proposta e que apare-ce definida no cabeçalho da entrevista: “A casa, o terreno, vegetais, agri-cultura, animais, gado”.

A temática que se destaca do léxico revela que o discurso do in-formante privilegia “vegetais, agricultura, animais, gado”, enquanto que“casa” e “terreno” integram o vocabulário básico com tendência negati-va.

Essa correção da temática proposta é perfeitamente justificada pelovocabulário particular.12

A análise quanti-qualitativa do vocabulário particular dá relevo,no início da lista, à temática agrícola que figura no cabeçalho da listapreferencial: milho (40), gado (33), espiga (18), arreio (17), bezerro (14),grão (14) ...

Os principais campos semânticos que se intrincam nessa lista, re-lacionados a seguir, destacam a configuração piramidal da temática geraldo discurso:

– campo semântico do gado: gado (33), gado de corte (8), gadode leite (7). No meio da entrevista, aparece um trecho importante em queo informante define a economia do gado, explicando os ciclos da carne edo leite:

– Doc.escuta e na parte de gado... que que poderia contar pra gente?

– Inf. bom na parte de gado... há::... há dois tipos vamos dizer fundamentais

de cultura de gado... há gado de corte e gado de leite... aqui em Campi-

nas o gado era gado de leite... e lá em:: Barretos era gado de corte... a::

12 Lembramos que as palavras particulares estão assinaladas em negrito nas consideraçõesfeitas sobre o vocabulário preferencial, no item 4.4.1.

Page 216: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

221

O discurso oral culto.

– Doc.pode dizer a distinção de um e de outro que nós não sabemos

– Inf. ((riu)) o gado de leite natu/ como di/ a:: é que também as próprias

palavras já estão dizendo né?

– Doc. sim

– Inf. o gado de leite é pra produção de leite... e o gado de corte é pra carne...

– Doc. e tem diferença isso na criação?

– Inf. tem... tem uma diferença vamos dizer grande... porque o gado de leite

ele é muito mais delicado... como::... o animal é um animal mais sensí-

vel vamos dizer... e precisa ser tratado... ele é:: praticamente::...

estabulado todos os dias... quer dizer todos os... todos os dias... se tira o

leite... então é um é um gado manso pra tratar... e que precisa de trata-

mento... e são raças também:: especiais... holandesa... ahn::... holande-

sa vamos dizer a ra/ a raça... base... pro gado de leite... agora há ou-

tras... como:: jersey... suíço... caracu... que costuma se misturar... na

verdade o gado é mestiço... mas a base essencial do gado de leite... é o::

holandês... e depois o gado-de-corte não é o... tem características va-

mos dizer... opostas... a do gado de leite... então... ele não precisa ser...

muito bem tratado... ele pode ser largado no pasto... ahn:: vamos dizer

duas semanas sem... voltar pro estábulo... o:: também lá em Barretos

nem se costumava tirar leite das das vacas... que haviam dado cria...

então:: o próprio leite que ela... vamos dizer produzia... era consumido

pelo bezerro... e... por ninguém mais... inclu/ inclusive então é pouco

leite... depois... os próprios bezerros nem sempre ficavam no estábulo...

a:: às vezes... ficava assim uma duas semanas depois já ía pro pasto

com a mãe... e::... que seria separado quando estivesse um pouco maior

(l. 442-481).

– campo semântico do cavalo: cavalo (33), cavalos (5), cavaleiro(4). Este campo amplia-se, quando completado pelos seus colaterais: burro(9), burros (2), alazão (3), garanhão (3), égua (2), éguas (1), jumentos(1). O informante emprega o termo genérico para falar da raça em si emais especialmente do Manga-larga:

– Inf. o Manga-larga é um tipo de cavalo... não muito grande.. (l. 657).

Page 217: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

222

ZAPPAROLI, Zilda Maria. Considerações sobre a utilização de novas...

– campo semântico da plantação: plantava (7), plantar (6), plan-ta (5), plantação (2), plantava-se (1). Este campo é relativo, principal-mente, à plantação de milho, mas também de eucaliptos e de algodão:

– Doc.e costuma plantar alguma coisa no meio do café?

– Inf. não é parece que não é muito útil... não é muito:: economicamente não

é muita:: vantagem... agora:: houve uma época em que usava-se:: plan-

tar... ah às vezes até:: milho por exemplo no meio do café mas não é

vantagem

– Doc.tem um nome esse tipo de:: de... plantação de ( )? (l. 128-134).

– campo semântico da cultura:, cultura (11), culturas (6), culti-vava (2), cultiva (1). Foi o ponto de partida da entrevista:

– Inf. a a parte acidentada é uma parte vamos dizer de morraria... e justamen-

te servia pro gado... enquanto que a parte plana servia pra::... pra cul-

turas em geral

– Doc. e o que que se cultivava na fazenda?

– Inf. bom... ahn:: até hoje se cultiva apenas eu hoje eu estou afastado do::...

do habitat... ((riu)) mas:: cultivava milho... cana-de-açúcar... e:: cultu-

ras que:: quer dizer não eram constantes culturas anuais... que se reno-

vavam... por exemplo algodão... e::... depois plantava-se também às vezes

eucaliptos... aí aí mais tempo já não é cultura anual né?... mas ta/ mas

também corta e renova transforma em pasto... (l. 35-46).

– campo semântico da colheita do café: colheita (4), colhido (4),colhe (3), colher (3), colhe-se (2), colhendo (1), colhia (1):

– Doc. e como é que se colhe... o café por exemplo o senhor se lembra?

– Inf. bom... o:: era colhido tudo manualmente... mas nessa época então:: de::

colheita... até as mulheres passavam a:: a ajudar... porque a colheita teria

que ser feita dentro de uma certa época... então é preciso mais gente pra

colher... e::... é... costumava-se colocar embaixo do pé de café uma espé-

cie de:: lona... uma esteira... e a::... e depois vai-se pa/... passando a mão no

galho... e caindo os grãos... depois colhe-se tudo (l. 147-156).

Page 218: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

223

O discurso oral culto.

– 9 campo semântico de secar: seco (5), secado (1), secador(1), secagem (1), secando (1), secar (1), secos (1) – esses termos refe-rem-se essencialmente ao trabalho do café e do milho:

– Inf. bom inclusive o grão do café também precisa ser secado... então precisa

colocar no terreiro... e:: deixar secar no sol... hoje tem secador também

(l. 171-173).

Diante dos muitos recursos que o programa oferece não tratadosnesta rápida visão, mencionamos a análise exaustiva de seqüências e deconcordâncias (o conjunto das ocorrências de um vocábulo em seus con-textos no corpus), possível a partir dos dados fornecidos pela EXTRACTION,terceiro módulo do STABLEX, que permite acompanhar a trajetória dovocábulo ao longo do texto, em função da construção do discurso. Assim,a partir dos resultados da análise estatística descritiva, aborda-se a análiselexical e pratica-se a extração de seqüências textuais de acordo com dife-rentes finalidades de estudo.

Cabe assinalar, ainda, que o armazenamento lexical estruturado,em forma, portanto, de uma Base de Dados, possibilita a obtenção, deforma simples, rápida e segura, entre outros recursos possíveis de suamanipulação automática, de: dicionários do português falado culto deSão Paulo, mais amplos ou mais restritos, em suporte informático (porexemplo, CD-ROM), ou em suporte de papel; informações lexicais paraa elaboração de manuais e gramáticas do português falado; informaçõespara a construção de programas informáticos educativos, destinados aoensino do português como língua materna, ou como segunda língua; ex-tração de seqüências textuais em função de interesses específicos.

É na avaliação dos resultados que entra o papel do lingüista, cujasensibilidade não é substituída por máquinas ou técnicas, mesmo as maisaperfeiçoadas.

Page 219: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

224

ZAPPAROLI, Zilda Maria. Considerações sobre a utilização de novas...

Referências bibliográficas

ALÉONG, Stanley (s/d) Normes linguistiques, normes sociales, une perspectiveanthropologique. In: BÉDARD, Édith; MAURAIS, Jacques (orgs.) La normelinguistique. Paris, Conseil de la Langue Française.

CAMLONG, André (1986) Le vocabulaire du sonnet portugais. Les trois premierssiècles d’histoire. Paris-Lisbonne, Gulbenkian.

________. (1996) Méthode d’analyse lexicale textuelle et discursive. Paris, C.R.I.C. &OPHRYS.

________. (1996) Plano geral do estudo e Estudo do vocabulário de D1 (D 018).TOULOUSE (Documentos encaminhados a mim por André Camlong, referentes àdescrição da metodologia da análise lexical dos diálogos entre informante e docu-mentador e à interpretação dos dados, e ao estudo do vocabulário do DID/018).

________. (1991) STABLEX pratique. Toulouse, Teknea.________. (1978) Traitement informatique du vocabulaire. Toulouse, Caravelle nº 30.________. ; BELTRAN, Thierry (1991) STABLEX. Manuel d’utilisation. Toulouse. A.P.I.________. ; CAMLONG, Claudie (1995) Les dieux sont morts. Reflexions sur la

génétique du discours. Paris, C.R.I.C. & OPHRYS.COSERIU, Eugenio (1979) Teoria da linguagem e lingüística geral. Trad. de Agosti-

nho Dias Carneiro. Rio de Janeiro, Presença.FRANÇOIS, Denise (1979 ) A noção de norma em lingüística. Atitude descritiva. Ati-

tude prescritiva. In: MARTINET, Jeanne. Da teoria lingüística ao ensino da língua.Rio de Janeiro, Ao Livro Técnico S/A.

PRETTI, Dino; URBANO, Hudinilson (org.) (1988) A linguagem falada culta na cida-de de São Paulo. Entrevistas (Diálogos entre informante e documentador). SãoPaulo, T.A. Queiroz/FAPESP.

Page 220: preti, dino (org) - o discurso oral culto(1).pdf

7

O discurso oral culto, p. 5-6, 1999.

Divulgação Humanitas Livraria – FFLCH/USP

Mancha 10,8 x 17,8 cm

Formato 13,8 x 21 cm

Montagem Charles de Oliveira e Marcelo Domingues

Tipologia Times New Roman e FolhaMyriad

Papel miolo: off-set branco 75 g/m2

capa: cartão branco 180 g/m2

Impressão da capa azul bronze

Impressão e acabamento Seção Gráfica – FFLCH/USP

Número de páginas 226

Tiragem 1000 exemplares

Ficha técnica