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TraduçãoFrancisco Paiva Boléo
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Título original: Th e First World War – A Complete History
Copyright © 1994 by Martin Gilbert (Unlimited)
Tradução para a língua portuguesa © 2017, Casa da Palavra/LeYa, Francisco Paiva Boléo
Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610, de 19.2.1998.
É proibida a reprodução total ou parcial sem a expressa anuência da editora.
Copidesque
Elisa Nogueira
Beatriz Sarlo
Revisão
Eduardo Carneiro
Juliana Alvim
Capa
Sérgio Campante
Fotos de capa
Time Life Pictures/Mansell/Th e LIFE Picture Collection/Getty Images
Diagramação
Futura
Todos os direitos reservados à
EDITORA CASA DA PALAVRA
Avenida Calógeras, 6 | sala 701
20030-070 — Rio de Janeiro — RJ
www.leya.com.br
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO.SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.
G393p Gilbert, Martin, 1936-2015 A primeira guerra mundial: os 1.590 dias que transformaram o mundo /
Martin Gilbert ; ilustração Tim Aspden ; tradução Francisco Paiva Boléo. – Rio de Janeiro : Casa da Palavra, 2017.
il.
Tradução de: Th e fi rst world war: a complete history Inclui índice ISBN 978-85-441-0603-7
1. Guerra Mundial, 1914-1918. I. Título.
17-42849 CDD: 940.3 CDU: 94(100)”1914/1918”
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“A corrida não é para os ágeis nem a batalha é para os bravos (…)
Todos estão à mercê das circunstâncias e da sorte.”
Eclesiástico, 9,11
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Sumário
Prefácio à nova edição ................................................................................................................. 09
Introdução .................................................................................................................................... 11
1. Prelúdio da guerra ...............................................................................................21
2. “Louco de alegria” | 28 de junho a 4 de agosto de 1914 .............................................40
3. Primeiros combates | Agosto a setembro de 1914 ......................................................64
4. De Mons ao Marne | Agosto a setembro de 1914 ........................................................89
5. Escavar: O início da guerra de trincheiras | Setembro a outubro de 1914 ......119
6. A caminho do primeiro Natal: “lama, lodo e vermes” |
Novembro a dezembro de 1914 ....................................................................................... 146
7. Impasse e procura de soluções | Janeiro a março de 1915 ....................................178
8. Desembarques em Galípoli | Abril a maio de 1915 ................................................206
9. A Entente em perigo | Maio a junho de 1915 ............................................................216
10. As Potências Centrais em ascensão | Junho a setembro de 1915 ........................244
11. A Entente continua a fracassar | Setembro a dezembro de 1915 .........................270
12. “Esta guerra terminará em Verdun” | Janeiro a abril de 1916 .............................306
13. “A Europa está louca. O mundo está louco.” | Abril a junho de 1916 ..............332
14. A Batalha do Somme: “Será um holocausto sangrento” |
Julho a agosto de 1916 ....................................................................................................... 350
15. Guerra em todas as frentes | Agosto a dezembro de 1916 .....................................382
16. Intensificação da guerra | Novembro de 1916 a junho de 1917 ............................407
17. Guerra, deserção e amotinações | Abril a julho de 1917 ......................................437
18. Impasse no Ocidente, agitação no Oriente | Julho a setembro de 1917 ..........461
19. Batalha de Passchendaele; revolução na Rússia |
Setembro a novembro de 1917 ..........................................................................................487
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20. Os termos da guerra e da paz | Novembro a dezembro de 1917 ..........................503
21. As Potências Centrais à beira do triunfo | Janeiro a março de 1918 .................526
22. A última grande investida alemã | Março a abril de 1918 ....................................542
23. “A batalha, a batalha, nada mais importa” | Abril a junho de 1918 .................555
24. Contra-ataque aliado | Junho a agosto de 1918 ........................................................574
25. Mudança da maré | Agosto a setembro de 1918 ........................................................603
26. Colapso das Potências Centrais | Outubro a novembro de 1918 .........................628
27. O armistício final | 9 a 11 de novembro de 1918.......................................................658
28. Construção da paz e memórias ....................................................................... 668
29. “… em memória dessa grande companhia” .................................................. 694
Bibliografia ...................................................................................................................................719
Notas .............................................................................................................................................735
Índice remissivo ...........................................................................................................................779
Mapas ............................................................................................................................................799
Agradecimentos ...........................................................................................................................829
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Prefácio à nova edição
A Primeira Guerra Mundial acabou há noventa anos. Em 11 de novembro
de 2008 – Dia do Armistício – apenas três veteranos britânicos que combateram
nesta guerra ainda estavam vivos, o mais jovem deles com 106 anos.
Como aluno do ensino médio, entre o final da década de 1940 e o início
da década de 1950, três de meus mestres tinham lutado na Primeira Guerra
Mundial. Na universidade, diversos professores fizeram o mesmo. Em 1960,
quando comecei minhas pesquisas históricas, conheci muitos veteranos de
guerra: marinheiros, soldados e aviadores. O marechal de campo Montgomery
e o marechal de campo Alexander, que lutaram nas trincheiras do front oci-
dental, incentivaram-me em meu trabalho, assim como o almirante Richard
Bell Davies, que conquistou a Cruz Vitória em Galípoli.
Entre os livros de minha autoria, em que narrei aspectos da história dessa
“guerra para acabar com todas as guerras”, incluem-se Atlas of the First World
War e The Somme: The Heroism and Horror of War. Em minhas viagens, visitei
os campos de batalha do front ocidental, da Palestina, do norte da Itália e dos
Balcãs. Li as inscrições nos memoriais dedicados à Primeira Guerra Mundial
em Gaza e Jerusalém, em Galípoli e no Canal de Suez, em Nova Deli, em Ypres
e Vimy, em Somme e Compiègne, em Roma e Berlim, e nos museus de guerra
em Bruxelas, Belgrado, Ottawa e Kansas City.
Memórias de guerra, biografias, romances, peças e filmes permitiram que as
gerações seguintes se familiarizassem com suas múltiplas facetas. Não obstante
a segunda “Grande Guerra” que a seguiu, e as guerras subsequentes que conti-
nuaram a assolar a humanidade até o fim do século XX e além, as imagens e os
ecos da Primeira Guerra Mundial continuam a se impor à consciência popular,
assim como seus diversos feitos de valor em terra, mar e ar. Mesmo noventa
anos após o fim da Primeira Guerra Mundial, os fazendeiros e os construtores
continuam a descobrir cartuchos enferrujados e estruturas destruídas.
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A PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL10
Esta nova edição é oferecida a uma geração para quem a Primeira Guerra
Mundial é pouco mais do que história, ainda que seus pais e avós tenham luta-
do nela. Também vive em artigos de jornais e revistas, livros, sites de Internet,
museus, monumentos, cemitérios de guerra e excursões em campos de batalha,
que são uma lembrança permanente daqueles quatro anos, agora ocorridos há
mais de noventa anos. Durante aqueles quatro anos, muito do mundo “civili-
zado” – pelo melhor, pior e mais obscuro dos motivos – enlouqueceu, e mais
de 8,6 milhões de homens – inúmeros no final de adolescência e na faixa dos
vinte e poucos anos – morreram nos campos de batalha.
Martin Gilbert
11 de novembro de 2008
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Introdução
Na Primeira Guerra Mundial morreram mais de 9 milhões de soldados
da Infantaria, da Marinha e da Força Aérea. Calcula-se que morreram também
5 milhões de civis em consequência da ocupação, de bombardeios, fome e
doenças. O assassinato em massa de armênios em 1915 e a epidemia de gripe
que teve início enquanto ainda decorria a guerra foram dois fatores que provo-
caram enorme destruição. A emigração de sérvios em finais de 1915 constituiu
outro episódio cruel em que civis pereceram em grande número, assim como
o bloqueio naval aliado à Alemanha , que teve como resultado a morte de mais
de 750 mil civis alemães.
Entre 1914 e 1918, desenrolaram-se duas guerras muito diferentes. A primeira
foi uma guerra de tropas de Infantaria, Marinha e Força Aérea, de marinheiros
da Marinha Mercante e de populações civis sob ocupação, em que o sofrimento
individual e a angústia atingiram uma escala enorme, em particular nas trin-
cheiras da linha de frente. A segunda foi uma guerra de gabinetes de guerra e
de soberanos, de propagandistas e idealistas, repleta de ambições e ideais polí-
ticos e territoriais, que determinaram o futuro dos impérios, nações e povos,
de modo tão contundente quanto no campo de batalha. Houve momentos,
particularmente em 1917 e 1918, em que a combinação da guerra dos exércitos
com a guerra das ideologias conduziu à revolução, à capitulação e à emergência
de novas forças nacionais e políticas. A guerra alterou o mapa e o destino da
Europa da mesma forma que cauterizou sua pele e deixou marcas na sua alma.
Quando cursei a escola primária, logo depois da Segunda Guerra Mundial ,
eu estava bem consciente da Primeira Guerra Mundial , apesar de ter terminado
27 anos antes. O porteiro da escola, sr. Johnson, que tinha estado na Infantaria
da Marinha britânica, era um veterano do ataque naval a Zeebrugge em 1918,
e dizia-se que tinha sido recomendado para a atribuição de uma condecora-
ção de valor. O reitor, Geoffrey Bell , tinha recebido a Cruz Militar na frente
ocidental , apesar de perante os alunos demonstrar um espírito pacifista. Um
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A PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL12
dos meus primeiros professores de história, A. P. White , tinha também com-
batido nas trincheiras e costumava andar para lá e para cá na sala de aula, com
uma vassoura apoiada no ombro, enquanto entoava canções militares. Quando
comecei a trabalhar neste livro, foram publicadas suas cartas enviadas das trin-
cheiras, que revelavam grande sofrimento e sensibilidade. O irmão mais velho
do meu pai, meu tio Irving, tinha lutado no Somme . Sua experiência o tinha
aterrorizado, e nós, os garotos da família, havíamos sido advertidos para não
lhe fazermos perguntas sobre esse assunto. Ele morreu enquanto eu escrevia
este livro, aos 93 anos.
Na época em que prestei serviço militar, em 1954 e 1955, a Primeira Guerra
Mundial era uma recordação sempre presente. O Regimento de Infantaria em
que fiz minha recruta, o Wiltshires, tinha perdido um batalhão em Reutel, no
saliente de Ypres , quando morreram mil homens em outubro de 1914, e os
poucos sobreviventes foram feitos prisioneiros. Outro batalhão foi praticamente
chacinado, em poucos minutos, nas encostas de Chunuk Bair , na península de
Galípoli , em 1915. Um terceiro batalhão foi encurralado pela artilharia naval
alemã na frente de Salonica em 1917. Durante minhas pesquisas acadêmicas,
qualquer que fosse o assunto em que estivesse trabalhando, fosse o império
britânico na Índia na virada do século ou o estabelecimento do domínio sovié-
tico na Ucrânia na década de 1920, a Primeira Guerra Mundial continuava a
impregnar minhas pesquisas. Meu supervisor de história da Índia, C. C. Davies ,
tinha sido ferido na frente ocidental , e esse ferimento ainda o incomodava.
Meu trabalho em geografia histórica no início da década de 1960 levou-me ao
apartamento de Arnold Toynbee , em Londres . Na mísula da chaminé da lareira
havia fotografias de meia dúzia de jovens em uniforme. Perguntei-lhe quem
eram eles. Disse-me que eram seus melhores amigos na universidade antes de
1914. Todos tinham morrido nas trincheiras.
Ao longo de várias décadas, minhas viagens levaram-me a muitas zonas de
guerra e a locais associados ao combate. Em 1953, encorajado por um dos meus
professores de história, Alan Palmer , andei por várias regiões onde os memoriais
da guerra me fizeram ver as diferentes perspectivas do conflito. Também fui
a Viena , onde o Hofburg e a Ballhausplatz me fizeram recordar tanto o velho
imperador como seus ministros das Relações Exteriores; a Liubliana , que como
Laibach foi uma das cidades cuja população eslava conseguiu tornar-se inde-
pendente da Áustria e cujos soldados se irritaram com a obrigação de manter o
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13INTRODUÇÃO
império dos Habsburgos ; e a Veneza , ameaçada em 1917 pela chegada iminente
do Exército austríaco.
Em junho de 1957, em Saraievo , estive no preciso local onde Gavrilo Prin-
cip disparou o tiro fatal em junho de 1914. Mais tarde, ainda sob o regime
comunista na Iugoslávia, Princip seria aclamado como um dos precursores da
independência nacional. Num bloco de cimento foram gravadas duas pega-
das, que comemoram o ato que mergulhou a Europa num conflito que durou
quatro anos. Em Belgrado , ainda em 1957, olhei, por sobre o rio, para o local
de onde os austríacos tinham bombardeado a capital da Sérvia no primeiro dia
de guerra. Uma década depois, fui com meu pai à frente ocidental : estivemos
em Arras, a leste da qual os cemitérios militares são os últimos vestígios das
batalhas de 1917 e 1918, e a Ypres, onde todas as noites, às 20 horas, ouvimos
o toque de silêncio, tocado na Porta de Menin por dois membros do Corpo de
Bombeiros de Ypres.
Ao som das cornetas, sob o vasto arco da Porta de Menin , o tráfego parava.
Esse trabalho era em parte custeado por um legado de Rudyard Kipling , cujo
filho tinha morrido em Ypres. Nas paredes e colunas da porta monumental
estão gravados os nomes de 54.896 soldados britânicos mortos no saliente
de Ypres entre outubro de 1914 e meados de agosto de 1917, que não têm
sepultura. Estão conservadas em pedra as marcas de tiros da batalha que se
desenrolou ali durante a Segunda Guerra Mundial . Os últimos pedreiros ainda
estavam trabalhando na gravação dos nomes de 1914-1918 quando chegaram
os exércitos alemães, como conquistadores, em maio de 1940. Os pedreiros
foram repatriados para a Inglaterra .
Partindo da Porta de Menin , meu pai e eu caminhamos até o saliente, com
mapas das trincheiras na mão, lendo, no local de cada batalha, os aconteci-
mentos descritos nos vários volumes da história oficial, do general Edmond ,
as cartas e recordações de soldados e as poesias. Ficamos em silêncio, como
todos os visitantes, no memorial de Tyne Cot , em Passchendaele , onde estão
gravados os nomes de 34.888 soldados mortos no saliente entre meados de
agosto de 1917 e o final da guerra, em novembro de 1918, dos quais não foram
encontrados traços suficientes para uma identificação para sepultamento. No
cemitério em frente ao memorial há mais de 11 mil sepulturas com nomes. Nem
mesmo o gramado aparado, as flores cuidadosamente tratadas e as árvores com
50 anos de idade podem fazer esquecer o chocante impacto de tantos nomes
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A PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL14
e tantas sepulturas. Não longe, em Menin , que esteve em poder dos alemães
durante toda a guerra, exceto um mês, visitamos o cemitério militar, onde estão
sepultados 48.049 soldados alemães.
Quinze anos depois da minha visita ao local onde foi assassinado o arquidu-
que Franz Ferdinand , em Saraievo , onde se pode dizer que a Primeira Guerra
Mundial teve início, dirigi-me a uma clareira no bosque, perto de Rethondes ,
na França , para ver uma réplica do vagão de trem no qual os alemães assinaram
o armistício em novembro de 1918. Hitler insistiu em receber a rendição da
França, em junho de 1940, no mesmo vagão. Há relações entre as duas guerras
que nos trazem à lembrança que decorreram apenas 21 anos entre elas. Muitos
daqueles que lutaram nas trincheiras na Primeira Guerra Mundial foram líderes
na Segunda Guerra Mundial , como Hitler, Churchill e De Gaulle , ou coman-
dantes, à semelhança de Rommel , Zhukov , Montgomery e Gamelin . Outros,
como Ho Chi Minh , que se voluntariou para servir com os franceses como
ordenança vietnamita na Primeira Guerra Mundial, e Harold Macmillan , que
combateu e foi ferido na frente ocidental , destacaram-se depois da Segunda
Guerra Mundial.
Em 1957, visitei as zonas de batalha na fronteira russo-turca e as povoações
em que centenas de milhares de armênios foram massacrados no primeiro
ano da guerra. Dez anos depois, estive no cemitério militar de Gaza , onde as
lápides, propositadamente baixas devido à possibilidade de tremores de terra,
recordam a morte de milhares de soldados que pereceram num dos mais ferozes
confrontos anglo-turcos. Estive no local, nas imediações de Jerusalém, onde
dois soldados britânicos, que andavam à procura de ovos no início de uma
manhã, viram aproximar-se um grupo de dignitários, que incluía sacerdotes,
imames e rabinos, que lhes ofereceram, em vez de alimentos, a rendição da
Cidade Santa . Com início em 1969, fiz viagens durante três anos consecutivos
à península de Galípoli , lendo em voz alta trechos da história oficial da guerra,
em dois volumes, de Aspinall-Oglander , e também outras obras em muitas das
praias onde se fizeram desembarques, em barrancos e em colinas. O contraste
entre sua beleza e sua tranquilidade atuais e o conhecimento das lutas e do
sofrimento que existiram ali em 1915 nunca deixou de me perseguir.
Durante meu trabalho sobre Winston Churchill , li também em voz alta, nos
pátios das fazendas onde ele as escreveu, as cartas diárias destinadas à sua
mulher, enviadas das trincheiras na frente ocidental , nas quais ele reconhecia
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15INTRODUÇÃO
o sofrimento daqueles que não poderiam regressar, como ele pôde, seis meses
depois, ao conforto da vida civil em Londres . Oito anos antes do início da guerra
em 1914, numa carta particular para sua mulher, escrita durante as manobras
do Exército alemão em Würzburg , para as quais ele tinha sido convidado pelo
Kaiser , Churchill escreveu: “Por mais que a guerra me atraia e minha mente se
fascine com suas situações tremendas, sinto mais profundamente, de ano para
ano — e posso medir esse sentimento aqui, rodeado de armas —, quão vil e
perversa loucura e barbárie é tudo isso.”
Em 1991, poucos meses depois da queda da Cortina de Ferro , eu estava na
Ucrânia recentemente independente, onde andei pelos quartéis austríacos na
antiga cidade fronteiriça de Brody , sobre os quais o Exército russo marchou
com tanta confiança em 1914, durante seu triunfo inicial, e da qual foi expulso
menos de um ano depois. Apesar de decisão de Lênin e dos bolcheviques de
retirarem-se da guerra em março de 1918, a luta na frente oriental continuou,
principalmente na forma de guerra civil e depois como guerra russo-polonesa,
que durou dois anos a mais do que no ocidente. Na estrada de Brody a Lviv ,
passei pela grande estátua de bronze cujo cavaleiro aponta (ou apontava, antes
de ter sido retirado tudo o que era comunista) triunfantemente para Varsóvia .
Esse significativo monumento comemorava a tentativa bolchevique de invadir
a Polônia em 1920. À semelhança dos seus compatriotas russos, que tinham
se esforçado, seis anos antes, por reter a Polônia, os bolcheviques lutaram e
morreram em vão. Estive em Varsóvia várias vezes ao longo dos anos, visitando
o Monumento ao Soldado Desconhecido , que comemora não um soldado des-
conhecido da guerra de 1914-1918, como acontece na abadia de Westminster
ou sob o Arco do Triunfo , mas uma vítima desconhecida da Guerra Russo-
-Polonesa de 1920.
Durante quatro décadas, muitos militares falaram comigo acerca das suas
experiências em todas as frentes. Eu mesmo, quando era um jovem soldado,
em 1954 e 1955, estive na casa de veteranos de guerra, onde viviam e morriam
os poucos sobreviventes das trincheiras. No decurso das minhas pesquisas
históricas, que tiveram início em 1960, falei com muitos militares de Infantaria,
Marinha e Força Aérea de todos os exércitos beligerantes. Suas recordações e
as cartas e os documentos que conservaram constituíram uma janela aberta
para o passado. Também tive o encorajamento pessoal de um dos historiadores
da Primeira Guerra Mundial , Sir John Wheeler-Bennett , e de três dos meus
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A PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL16
superiores quando estive no Merton College , em Oxford, como pesquisador, em
1962: Alistair Hardy , Hugo Dyson e Michael Polanyi . Os três tinham conhecido
os lados mais nobres e mais terríveis daquela guerra distante; Hardy e Dyson
como soldados na frente ocidental e Polanyi como oficial-médico no Exército
austro-húngaro.
Durante meu trabalho sobre Churchill , estive com o general Savory , de 80
anos de idade, que tinha prestado serviço em Galípoli e que me convidou a
passar um dedo por um orifício no seu crânio, causado por uma bala turca.
Depois de Galípoli, serviu na Mesopotâmia e na Sibéria . Um aviador, Richard
Bell Davies , que também tinha lutado em Galípoli, onde lhe foi atribuída a Cruz
Vitória , tirou da carteira um pedaço de papel higiênico do tempo da guerra
onde estava impresso um retrato do Kaiser alemão com as palavras “Limpe
sua bunda em mim”.
Dois outros soldados que serviram na frente ocidental desde as primeiras
semanas influenciaram-se com sua amizade e seus escritos. Um foi o pintor
francês Paul Maze , Medalha por Distinção em Serviço , Medalha de Mérito com
barra e Cruz de Guerra , que se mudou para a Inglaterra depois da Primeira
Guerra Mundial e que conseguiu escapar da França quando os alemães entraram
em Paris em junho de 1940. Maze serviu na frente ocidental como perito de
reconhecimento durante quatro anos e foi testemunha das principais ofensivas
britânicas. O outro soldado foi o político britânico e comandante de brigada
Sir Edward Louis Spears , Cruz Militar , que entrou para o Parlamento depois
da Segunda Guerra Mundial e conduziu o general De Gaulle à Inglaterra em
junho de 1940. Tanto Maze como Spears conseguiram, nos seus livros e nas
suas palestras sobre a Primeira Guerra Mundial, traçar um retrato em palavras
das ações e dos ambientes em Flandres , das esperanças dos soldados e dos
perigos dessa viagem de quatro anos, desde a declaração de guerra em 1914
até o armistício em 1918.
Em 3 de setembro de 1976, um dia que recordo muito bem, almocei com
Anthony Eden (então conde de Avon) em sua casa em Wiltshire. Ele falou sobre
episódios da Segunda Guerra Mundial , cujo início ocorrera precisamente 37
anos antes, na qual seu filho de 27 anos, Simon, piloto da Força Aérea britânica,
foi morto em combate, na Birmânia, em junho de 1945. Falamos sobre a decisão
britânica de ir em ajuda à Grécia em 1941, sobre os perigos de um colapso da
Rússia e sobre uma paz separada nazi-soviética em 1942.
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17INTRODUÇÃO
Em nossa conversa, houve muitos ecos da Primeira Guerra Mundial , incluin-
do a decisão britânica de ajudar a Sérvia em 1915 (através do mesmo porto,
Salonica , por onde a Grécia recebeu ajuda em 1941) e o impacto da retirada
russa da guerra em 1917. Uma das memórias mais vívidas de Eden foi terem-
-lhe dito, enquanto estava nas trincheiras da frente ocidental , em 1916, que
seu irmão Nicholas tinha sido morto em combate na Batalha da Jutlândia .
Nicholas Eden , encarregado de uma torreta do Indefatigable, tinha apenas 16
anos quando morreu.
Harold Macmillan também me auxiliou no meu trabalho sobre Churchill ,
por meio de correspondência e conversas na casa dele e na minha, mas foi só
quando escrevi este livro que soube que sua escrita insegura, seus apertos de
mão pouco firmes e sua forma arrastada de andar eram resultados de ferimentos
sofridos em combate em 1916.
Em minhas viagens, descobri que não há área na Europa sem memoriais
e monumentos à Primeira Guerra Mundial . Cidades como Varsóvia , Lille ,
Bruxelas e Belgrado conheceram bem os rigores da ocupação em duas guerras
mundiais. De Praga , Budapeste , Berlim , Viena , Constantinopla , Atenas , Paris ,
Roma , Londres , Nova York , Cidade do Cabo e Bombaim saíram tropas que se
deslocaram para zonas de guerra, e aqueles que regressaram, depois do choque
e do prolongamento da batalha, encontraram cidades, pelo menos na Europa,
onde a privação e a mágoa tinham substituído o efêmero entusiasmo anterior.
Em todas essas cidades há monumentos que recordam as perdas.
Enquanto viajava, estudei textos e iconografia dos memoriais de guerra espa-
lhados por todos os lados. Esses memoriais testemunham todas as formas de
destruição, desde sepulturas individuais de soldados e civis até monumentos que
recordam a morte de mais de 500 mil cavalos nas zonas de guerra e de outros 15
mil que morreram afogados a caminho da guerra. Esses memoriais constituem
uma recordação crua, muitas vezes bela e por vezes grotesca, da destruição.
Suas inaugurações, como sucedeu com o memorial canadense das colinas de
Vimy em 1936, prolongaram o impacto da retrospecção. Mesmo depois da
Segunda Guerra Mundial , eram os veteranos condecorados na Primeira Guerra
Mundial que provocavam maior impacto nos desfiles do Dia do Armistício . Em
Bolonha-sobre-o-Mar, em 1974, assisti ao desfile de antigos soldados de ambas
as guerras, conduzidos por um encurvado sobrevivente da Batalha do Marne ,
sessenta anos antes, a quem foi atribuído um lugar de destaque à frente do desfile.
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A PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL18
As batalhas constituíram o enquadramento e o relato diário da guerra, mas
amotinações, greves e revolução ecoaram no rastro dos homens em combate, da
mesma forma que o trabalho de milhões de pessoas em fábricas e em batalhões
de trabalho. O gás de mostarda era um perigo a mais para os combatentes. Os
submarinos enviaram milhares de marinheiros mercantes, militares e civis para
sepulturas anônimas. Bombardeios aéreos acrescentaram uma dimensão civil
ao terror. Por trás das linhas, milhões de cidadãos sofreram fome e privações.
Minhas pesquisas levaram-me a vários livros nos quais a Primeira Guerra
Mundial ocupa um lugar importante, entre os quais Sir Horace Rumbold : Por-
trait of a Diplomat [Sir Horace Rumbold : Retrato de um diplomata], que trata
do impacto da guerra pela perspectiva de um diplomata britânico em Berlim ;
os terceiro e quarto volumes da biografia de Churchill , em que constam a luta
no estreito de Dardanelos e na frente ocidental e a guerra de munições; e o The
Atlas of the First World War [O Atlas da Primeira Guerra Mundial], que cobre
todas as frentes e todos os aspectos do conflito. O impacto da guerra nas aspi-
rações judaicas e árabes no Oriente Médio foi objeto de três capítulos de Exile
and Return: The Struggle for a Jewish Homeland [Exílio e retorno: a luta por uma
pátria judaica]. O impacto da guerra nos três tratados de paz e os anos entre-
guerras foram objeto de cartas e documentos que publiquei, em 1964, em Britain
and Germany Between the Wars [Grã-Bretanha e Alemanha no entreguerras].
No mesmo ano, pouco depois de ter entregado a uma agência de datilogra-
fia o manuscrito do meu livro The European Powers 1900-1945 [As potências
europeias 1900-1945], a diretora da agência, sra. Wawerka, quis encontrar-se
comigo. No livro, eu tinha atribuído à Áustria parte da responsabilidade pelo
início da guerra em 1914, o que a desconcertou e magoou. Ela tinha nascido
e estudado em Viena ; como judia, tinha sido forçada a abandonar a Áustria
em 1938, mas sabia que o país era inocente de qualquer responsabilidade nos
acontecimentos de 1914. A culpa devia ser atribuída (e eu deveria ter dito isso
no manuscrito) aos sérvios e aos russos.
O episódio teve um grande impacto em mim, como teve também a descrição
que a sra. Wawerka fez da fome desesperada que houve em Viena durante a
guerra e da injustiça, segundo o ponto de vista dela, dos acordos do pós-guerra
que desmantelaram o império dos Habsburgos .
Para alguns, foi uma guerra para castigar e punir. Para outros, tornou-se a
guerra que acabaria com todas as guerras. O nome que recebeu por algum
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19INTRODUÇÃO
tempo, Grande Guerra , indicava sua escala sem precedentes. Contudo, foi
seguida por uma segunda guerra ainda mais destrutiva e por outras guerras
“menores” por todo o mundo. Em janeiro de 1994, calculava-se que decorriam
32 guerras espalhadas pelo planeta. A Primeira Guerra Mundial continua a
ter seu lugar na discussão desses conflitos modernos. Em dezembro de 1993,
enquanto escrevia este livro, um jornalista da televisão britânica, ao comentar a
ausência de uma trégua de Natal nos conflitos na Bósnia , reportou, tendo uma
trincheira como fundo: “Em torno de Vitez , o sistema de trincheiras recorda a
Primeira Guerra Mundial, onde nem a lama falta.” A trincheira mostrada não
era particularmente lamacenta e não estava alagada nem sob fogo de artilharia,
mas as imagens da Primeira Guerra Mundial mantiveram-se durante oitenta
anos, ao longo de várias gerações. Um período de tempo relativamente curto,
uma guerra que durou quatro anos e três meses, inspirou, confundiu e pertur-
bou todo o século.
Algumas mudanças políticas que a Primeira Guerra Mundial criou foram
tão destrutivas como a própria guerra, tanto no que diz respeito à vida como
à liberdade, e perpetuaram tiranias durante mais de meio século. Algumas
altera ções de fronteiras na Primeira Guerra Mundial, com a intenção de corrigir
erros antigos, ainda são causas de disputas e de conflitos.
Em 1923, na introdução ao seu livro The Irish Guards in the Great War [A
Guarda Irlandesa na Grande Guerra ], Rudyard Kipling escreveu: “O que mais
surpreende o compilador destes dados é que se possa retirar qualquer dado
concreto da voragem da guerra.” Desde os primeiros tiros, há oitenta anos,
vários autores fizeram pesquisas tanto sobre fatos principais como sobre os
mais obscuros episódios da guerra e também sobre seus pontos mais enigmáti-
cos. Este livro é uma tentativa de transmitir minhas próprias pesquisas, meus
sentimentos e minhas perspectivas sobre um acontecimento que, à semelhança
do Holocausto em anos posteriores, deixou uma marca indelével no mundo
ocidental. É também uma tentativa de descrever, num quadro de comandantes,
estratégias e grandes números, a história de indivíduos.
Se a cada um dos 9 milhões de militares mortos na Primeira Guerra Mundial
fosse dedicada uma página, a recordação dos seus feitos e sofrimentos, das suas
esperanças em tempo de guerra, da sua vida e dos seus amores anteriores ao
conflito ocuparia 20 mil livros com as dimensões deste. O sofrimento individual
não é uma coisa que possa ser contada facilmente numa história geral, ainda
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que alguns historiadores o tentem fazer. Em 3 de dezembro de 1993, fiquei sur-
preendido com três pequenas frases numa crítica de Meir Ronnen a dois livros
sobre a Primeira Guerra Mundial. A crítica foi publicada no Jerusalem Post ,
onde Ronnen escreveu: “Milhões morreram e sofreram na lama de Flandres
entre 1914 e 1918. Quem se lembra deles? Mesmo aqueles que têm seu nome
em sepulturas são agora soldados desconhecidos.”
Nenhum livro pode por si restabelecer esse equilíbrio, apesar de alguns bons
autores terem tentado fazê-lo; entre eles, mais recentemente, Lyn Macdonald , na
Inglaterra , e Stephanie Audouin-Rouzeau, na França (um dos livros da crítica
de Meir Ronnen ; o outro livro é uma biografia do poeta Isaac Rosenberg , morto
em combate em 1º de abril de 1918). Neste livro, tentei incorporar o sofrimento
dos indivíduos à narrativa de uma guerra em seu sentido mais amplo.
Martin Gilbert
Merton College, Oxford
20 de junho de 1994
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1
Prelúdio da guerra
Uma guerra entre as grandes potências foi muito falada na primeira déca-
da do século XX por políticos, escritores, romancistas e filósofos, e, no entanto,
a natureza de uma guerra europeia, em oposição aos aventureirismos coloniais,
era mal compreendida. O que se conhecia eram as rápidas incursões por forças
superiores contra antagonistas distantes e fracos, metralhadoras contra lanças
ou armamentos navais contra canhões antiquados. Por mais assustadores que
esses conflitos pudessem ser, o público em geral não pressentia nada tão terrível.
Por que temer uma guerra na Europa? Pouco antes do início da guerra, em
1914, um coronel francês, que era adolescente quando a Alemanha invadiu a
França em 1870, ouviu um grupo de jovens oficiais brindarem à perspectiva da
guerra e escarnecerem da possibilidade de um conflito, mas os risos cessaram
abruptamente quando ele lhes perguntou: “Vocês acham que a guerra é sempre
divertida, toujours drôle?” Chamava-se Henri-Philippe Pétain . Dois anos depois,
em Verdun , foi testemunha de uma das piores chacinas militares do século XX.
Os militares franceses cujas risadas Pétain fez cessar abruptamente eram her-
deiros de uma tradição de inimizade franco-germânica que culminara mais de
quarenta anos antes, em 11 de maio de 1871, quando o chanceler alemão, Otto
von Bismarck , assinou, no Hotel Swan, em Frankfurt , o acordo que transferia
a Alsácia e grande parte da Lorena para a Alemanha . Nesse dia, na cidade de
Metz, ocupada pelos alemães, as armas dispararam em celebração do triunfo. Na
sala de aula do colégio jesuíta francês de Saint-Clément , o historiador britâni-
co Basil Liddell Hart escreveu em 1931: “A mensagem das armas não precisa
de intérprete. Os meninos deram um salto. O superintendente, mais sóbrio,
gritou ‘Mes enfants!’ e, depois, incapaz de dizer mais qualquer coisa, baixou a
cabeça e uniu as mãos numa prece. A memória daquele terrível momento não
se apagou das mentes dos estudantes.” Um desses estudantes era Ferdinand
Foch , de 19 anos, que lamentava a derrota ter sucedido antes que ele mesmo
pudesse ser enviado para o campo de batalha.
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Nem todos na recém-unificada Alemanha ficaram satisfeitos com a vitória
sobre a França , já que outras ambições estavam em ebulição à medida que o
império ganhava força industrial. Aspirações a uma expansão colonial, a um
poder naval no mínimo à altura do poderio da Grã-Bretanha , à influência
no mundo muçulmano da Ásia e a um lugar dominante nos conselhos da
Europa intensificavam a sensação germânica de inferioridade. A Alemanha,
unida apenas em 1870, tinha chegado tarde demais, assim parecia, à corrida
por poder e influência, por império e respeito. A necessidade de mais guerra
e de um avassalador poder militar essencial para vencê-la é a conclusão que
se pode tirar do livro Germany and the Next War [A Alemanha e a próxima
guerra], publicado por um oficial de cavalaria alemã reformado, Friedrich von
Bernhardi , em 1912. Bernhardi tinha entrado como conquistador em Paris
em 1870. Nesse livro, ele enfatiza a necessidade de a Alemanha fazer a guerra
ou perder a luta pelo poder mundial. “A lei natural, em que se baseiam todas
as leis da natureza, é a lei da luta pela existência”, escreveu ele. A guerra era
uma “necessidade biológica”. Soldados alemães quarenta anos mais novos
do que ele em breve testariam essa confiante teoria no campo de batalha e
morreriam ao fazê-lo.
A guerra de 1870 foi a última guerra do século XIX entre potências euro-
peias. Três mil soldados morreram em ambos os lados na Batalha de Sedan . Na
disputa civil que se seguiu na França , mais de 25 mil apoiadores da Comuna
foram executados em Paris . Por meio desses exemplos, é evidente que as guerras
tinham custos em vidas humanas e que seus resultados eram imprevisíveis e
tantas vezes atrozes. Depois de 1870, os impérios germânico, francês, belga e
britânico viveram uma saga de guerra, derrotas e chacinas no ultramar. O filho
de Napoleão III , o príncipe imperial, esteve entre as centenas de soldados britâ-
nicos mortos em 1879 pelos zulus durante e depois da Batalha de Isandlwana .
Em 1894, o tenente-coronel Joffre conduziu uma coluna francesa através do
Saara para conquistar Timbuktu . Na virada do século, um coronel alemão,
Erich von Falkenhayn , ganhou a reputação de cruel durante uma expedição
internacional para esmagar o Levante dos Boxers na China , ocasião em que o
Kaiser Wilhelm II comparou as tropas germânicas aos hunos, cunhando assim
uma frase que viria a ser usada contra eles: “À semelhança dos hunos, que há
mil anos, sob a liderança de Átila, ganharam reputação pelo modo virtuoso
como vivem na tradição histórica, também o nome da Alemanha tornou-se
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conhecido de tal forma na China que nenhum chinês se atreverá jamais a olhar
com desprezo para um alemão.”1
Essas guerras, muitas vezes distantes, mas sempre sangrentas, foram um aviso
para aqueles que se deram ao trabalho de ouvir. Em 1896, o poeta e classicista
britânico A. E. Housman expressou a crueldade da guerra em seu poema “A
Shropshire Lad” [“Um sujeito de Shropshire”]:
On the idle hill of summer,
Sleepy with the flow of streams,
Far I hear the steady drummer
Drumming like a noise in dreams.
Far and near and low and louder
On the roads of earth go by,
Dear to friends and food for powder,
Soldiers marching, all to die.
East and west on fields forgotten
Bleach the bones of comrades slain,
Lovely lads and dead and rotten;
None that go return again.
Far the calling bugles hollo,
High the screaming fife replies,
Gay the files of scarlet follow:
Woman bore me, I will rise.2
As advertências de Housman tiveram eco cinco anos depois, na Câmara dos
Comuns , por intermédio de Winston Churchill , então com 26 anos, jovem
membro do Partido Conservador no Parlamento. Após experiências de luta na
Índia , no Sudão e na Guerra dos Bôeres , Churchill ouviu, quando regressou a
Londres , pedidos para a criação de um exército capaz de enfrentar um inimigo
europeu. “Fico frequentemente admirado ao ver com que compostura e fluência
membros desta câmara, e até ministros, falam de uma guerra europeia”, declarou
ele em 13 de maio de 1901, três meses depois de ter ingressado no Parlamento,
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A PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL24
e sublinhou, para reforçar seu ponto de vista, que se no passado as guerras
tinham sido feitas “por reduzidos exércitos regulares de soldados profissio-
nais”, no futuro, quando “poderosas populações forem impelidas umas contra
as outras”, uma guerra europeia só poderia terminar “na ruína dos vencidos,
num prejuízo comercial pouco menos que fatal e na exaustão dos vencedores”.
A democracia, advertiu Churchill , seria “mais vingativa” do que os antigos
tribunais e gabinetes: “As guerras entre povos serão mais terríveis do que as
guerras entre reis.” Dez anos depois, em 9 de agosto de 1911, enquanto crescia a
febre de uma guerra alemã contra a Grã-Bretanha e a França devido à exigência
alemã de um porto na costa atlântica de Marrocos , o dirigente social-democrata
alemão August Bebel avisou o Reichstag de que uma guerra europeia podia
conduzir à revolução. Riram dele, apelidando-o de alarmista, e um parlamentar
disse: “As coisas melhoram depois de qualquer guerra!”
As rivalidades que fomentam as guerras não podem ser suavizadas pela lógica
de um sentimento pacifista. Na primeira década do século XX, houve muitas
rivalidades e muitos ressentimentos nas nações para as quais a paz, o comércio,
a indústria e o aumento da prosperidade nacional pareciam ser as verdadeiras
necessidades, os desafios e as oportunidades. Na França , a perda de territórios
anexados pela Alemanha em 1871 causou ressentimentos durante quatro déca-
das. O conselho dado pelo patriota francês Léon Gambetta , que disse “Pensem
sempre nela, mas nunca falem sobre ela”, ecoou nos ouvidos dos franceses. O
pano negro que cobria a estátua de Strasbourg na Place de la Concorde foi um
lembrete visual constante da perda de duas províncias orientais. O guia de Paris
escrito por Karl Baedeker e publicado em Leipzig em 1900 fazia o seguinte
comentário sobre a estátua coberta: “Strasbourg está quase sempre coberta
de crepes e grinaldas de luto para marcar a perda da Alsácia .” Por seu lado, a
Alemanha tinha muitas ambições territoriais, em particular para além de sua
fronteira oriental. Desprezando a Rússia , os alemães pretendiam anexar as
províncias ocidentais polonesas do império russo e alargar a influência alemã
à Polônia Central, à Lituânia e à costa do Báltico. Era como se o império de
Wilhelm II restaurasse o equilíbrio de forças que começou a quebrar-se com
Pedro, o Grande duzentos anos antes e, quarenta anos depois da sua morte,
com Catarina, a Grande .
A Rússia de Nicolau II também tinha suas ambições, em particular nos Bálcãs ,
como a campeã eslava de um país eslavo, a Sérvia , que lutava continuamente
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para alargar suas fronteiras e chegar ao mar. A Rússia também se via como
defensora das raças eslavas sob domínio austríaco. Ao longo da fronteira da
Rússia com a Áustria -Hungria , viviam três minorias eslavas, de quem a Rússia
era a grande defensora: ucranianos, rutenos e poloneses.
Governada por Franz Joseph desde 1848, a Áustria -Hungria pretendia manter
sua vasta estrutura imperial buscando um equilíbrio entre suas muitas minorias.
Em 1867, numa tentativa de reduzir as exigências conflituosas de alemães e
magiares, Franz Joseph foi nomeado imperador da Áustria e rei da Hungria.
Na metade austríaca dessa monarquia dual tinha sido estabelecido um com-
plexo sistema parlamentar, cujo objetivo era dar a cada minoria um lugar na
legislatura.3 Porém, mesmo o desejo dos Habsburgos de não mudar nada, de
não mexer em nada, chocou-se com o desejo de domar o irritante e sempre
crescente (pelo menos assim parecia) Estado sérvio, que enfadava o governo
austríaco no sul.
Na Grã-Bretanha , romancistas e colunistas, bem como almirantes e parla-
mentares, refletiam os receios britânicos de uma supremacia naval germânica,
inflados, no princípio do verão de 1914, por notícias da abertura iminente
do canal de Kiel , que permitiria aos navios alemães movimentarem-se com
segurança e rapidez desde o mar Báltico até o mar do Norte . O sentimento
antigermânico era um tema comum na imprensa popular. Houve também
repetidos apelos ao governo liberal para que implantasse a conscrição militar e
não ficasse dependente, na eventualidade uma guerra, de um pequeno exército
profissional. O gabinete liberal resistiu a esses apelos.
Os sistemas de alianças europeus refletiam os receios de todos os estados.
As duas Potências Centrais, a Alemanha e a Áustria -Hungria , estavam ligadas
por laços tanto sentimentais como formais. O mesmo acontecia, desde 1892,
com a França e a Rússia , com as quais a Grã-Bretanha tinha feito acordos para
a redução de conflitos. A Grã-Bretanha e a França, mesmo que não aliadas
por meio de um tratado, tinham assinado a Entente Cordiale , em 1904, para
resolver suas disputas no Egito e no Marrocos e faziam consultas mútuas sobre
assuntos militares desde 1906. Esses acordos e hábitos criaram o que passou a
ser conhecido por Tríplice Entente , formada por Grã-Bretanha, França e Rússia,
que deu às Potências Centrais a sensação de estarem cercadas. O Kaiser alemão,
Wilhelm II , era particularmente sensível a isso. Seu sonho era que a Alemanha
fosse respeitada, temida e admirada. Neto da rainha Vitória , ressentia-se da
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aparente superioridade do seu filho, Edward VII , e do seu neto, George V , os
reis-imperadores que governavam o subcontinente indiano com suas centenas
de milhões de súditos.
Em seu palácio em Potsdam , Wilhelm II estava rodeado pela memória e
pelo cerimonial do seu antecessor, Friedrich Wilhelm I , fundador do Exérci-
to prussiano. “Até hoje, muitos soldados, em especial os homens escolhidos
nos regimentos de guarda, são os elementos mais característicos nas ruas da
cidade”, comentou Karl Baedeker em 1912. Também havia na cidade uma
estátua equestre de Wilhelm I, inaugurada por Wilhelm II em 1900, com a
deusa da vitória sentada em frente ao pedestal. A entidade, que no tempo dos
romanos tinha sido a principal divindade dos césares, foi embelezada com a
estátua do príncipe quando jovem oficial em Bar-sur-Aube, em 1814, durante
a guerra contra Napoleão , e com elementos da entrada triunfal dos alemães
em Paris em 1871.
Era irônico que Potsdam , símbolo do poder militar germânico e vitrine
imperial, mencionada pela primeira vez no século X, fosse, nas palavras de
Baedeker , “de antiga origem eslava”. Nenhum eslavo reclamava então Potsdam,
mas os russos se encontrariam ali com os aliados ocidentais, em 1945, como
vencedores, ocupantes e pacificadores. O mapa da Europa pós-1900, com suas
fronteiras bem marcadas, muitas inalteradas desde 1815, outras alteradas apenas
em 1871, disfarçava poderosas forças de descontentamento, muitas com uma
origem étnica.
A Sérvia , sem acesso ao mar desde sua primeira independência, várias déca-
das antes, como primeiro estado eslavo dos tempos modernos, desejava um
acesso ao Adriático, mas foi bloqueada pela Áustria , que tinha anexado a antiga
província turca da Bósnia -Herzegovina em 1908. Essa união não só desafiava
o Tratado de Berlim de 1878, de que a Grã-Bretanha tinha sido signatária,
como completava o controle austríaco de quase quinhentos quilômetros de
costa adriática. A Bósnia podia também servir como base militar, se surgisse
a necessidade ou a oportunidade para um ataque austríaco à Sérvia.
Cada minoria dentro da Áustria -Hungria buscava ligar-se a um estado
vizinho, como Sérvia , Itália ou Romênia , ou, no caso dos tchecos, eslovacos,
eslovenos e croatas, conseguir alguma forma de autonomia e até aceder a um
Estado independente. Os poloneses, sob domínio germânico, austro-húngaro
e russo, nunca tinham perdido a esperança de independência, que Napoleão
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havia estimulado, mas que sucessivos Kaisers, czares e imperadores tinham
reprimido durante um século.
O perigo que as ambições dos eslavos representavam para a Áustria -Hungria
foi explicado, em 14 de dezembro de 1912, numa carta do chefe do Estado-Maior
austríaco, barão Conrad von Hötzendorf , ao herdeiro forçado do império dos
Habsburgos , o sobrinho do imperador e arquiduque Franz Ferdinand . “A uni-
ficação da raça eslava do sul é um dos mais poderosos movimentos nacionais,
que não pode ser ignorado nem contido”, disse Conrad a Franz Ferdinand. “A
única questão reside em saber se esse processo se dará dentro das fronteiras da
monarquia — ou seja, à custa da independência da Sérvia — ou sob a liderança
da Sérvia, à custa da monarquia.” Se a Sérvia fosse líder da unificação eslava,
seria à custa, para a Áustria, de todas as suas províncias eslavas e, portanto, de
quase toda a sua linha costeira. A perda de território e prestígio “relegaria a
monarquia ao estatuto de pequena potência”, explicou Conrad .
Os receios em relação a conflitos e os desejos de muitos Estados e povos
não criaram uma guerra europeia, mas serviram como diversos detonadores
que esperavam ser ativados se fosse iniciada uma guerra entre dois Estados.
O conflito seria uma irresistível oportunidade para satisfazer desejos lon-
gamente acalentados ou para vingar ódios bem nutridos. A Alemanha , tão
forte industrialmente e tão confiante militarmente, desconfiava da estreita
aliança entre seus vizinhos a leste e a oeste, a França e a Rússia . Como con-
trapeso, voltou-se para seu vizinho ao sul, a Áustria -Hungria , um parceiro
em dificuldade, por mais complicado que fosse ou dividido que estivesse. A
Alemanha também tinha atraído a Itália para sua órbita, em 1882, criando
a Tríplice Aliança .
A visita do Kaiser ao sultão Abdul Hamid em Constantinopla , em 1898, e sua
flamejante peregrinação a Jerusalém, onde dignitários das três fés monoteístas
ergueram arcos festivos para que ele passasse a cavalo por baixo, indicaram ao
império turco-otomano, e a todo o mundo muçulmano, que podiam considerar
a Alemanha uma potência amiga. Em 1914, havia três impressionantes edifícios
de pedra erguidos no topo do monte das Oliveiras, sobrepujando o mar Morto:
a igreja russa da Ascensão, símbolo do interesse de São Petersburgo no Oriente
desde 1888; a casa particular de um inglês, Sir John Gray Hill , adquirida nessa
primavera pelos sionistas que nela queriam instalar uma universidade judaica,
símbolo de nascentes aspirações nacionalistas; e o sanatório Augusta-Victoria,
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construído em 1909, chamado assim em honra à irmã do Kaiser, um monu-
mento da confiante afirmação dos interesses e ambições germânicos.
Em 1907, a Grã-Bretanha havia assinado um acordo com a Rússia , tendo
como principal objetivo a resolução de antigas disputas anglo-russas na longín-
qua Pérsia e no Afeganistão , mas o documento pareceu à Alemanha ser mais
uma prova do fechamento do círculo à sua volta. Como sinal de suas próprias
ambições no Oriente, a Alemanha avançava, desde 1899, com sua linha férrea
Berlim -Bagdá, utilizando Constantinopla como fronteira entre a Europa e a
Ásia. O barco que levava viajantes, mercadorias e vagões de trem da estação
de Sirkeci, na margem europeia do Bósforo, para a estação de Haydar Paxá , na
margem asiática, também era um símbolo do empreendimento alemão.
Os alemães faziam planos para que a linha férrea seguisse através da Turquia
asiática até os portos de Gaza , no Mediterrâneo, de Ácaba , no mar Vermelho ,
e de Baçorá, no golfo Pérsico . Um ramal que continuaria para leste, a partir
de Bagdá, chegaria até os campos petrolíferos da Pérsia , num desafio direto à
influência que a Grã-Bretanha e a Rússia tinham estabelecido sobre essa região
sete anos antes. Em 1906, numa tentativa de contrariar a construção de um
possível terminal ferroviário alemão em Ácaba, a Grã-Bretanha, então a potên-
cia ocupante no Egito , anexou aos seus territórios a zona oriental do deserto
do Sinai, que pertencia à Turquia. Isso permitiria que armamentos britânicos
fossem transportados rapidamente do Egito para a pequena baía de Taba, a
partir de onde poderiam ser usados para bombardear o terminal ferroviário
e as instalações portuárias em Ácaba se esses locais fossem utilizados pelos
alemães contra os interesses britânicos.
Os receios germânicos de ficarem cercados baseavam-se em graduais ações
conjuntas e em acordos e conversações entre França , Rússia e Grã-Bretanha . Em
janeiro de 1909, um antigo chefe do Estado-Maior alemão, Alfred von Schlieffen ,
que se aposentara quatro anos antes, publicou um artigo sobre a futura guerra
em que chamava a atenção para Grã-Bretanha, França, Rússia e até Itália :
Há um empenho para que essas potências se unam num ataque coordenado contra
as Potências Centrais. No momento certo, as pontes levadiças serão baixadas,
as portas serão abertas e exércitos de milhões de homens entrarão livremente,
pilhando e destruindo tudo através dos Vosges, do Meuse, do Neman, do Bug e
mesmo do Isonzo e dos Alpes tiroleses. O perigo parece ser gigantesco.
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29PRELÚDIO DA GUERRA
Ao ler esse artigo em voz alta aos seus generais, o Kaiser comentou: “Bravo!”
Em 1911, cinco anos após os britânicos terem garantido sua capacidade de
destruir pelo menos um dos terminais da estrada de ferro Berlim -Bagdá, domi-
nada pelos alemães, a Grã-Bretanha e a França atuaram em conjunto para
evitar que os alemães estabelecessem um porto em Agadir, na costa atlântica
do Marrocos . Quando uma canhoneira alemã chegou ao porto, os britânicos
ameaçaram com hostilidades caso não abandonassem o porto. A ameaça foi
eficaz, mas criou um rancor substancial.
A opinião pública não estava necessariamente alinhada com os fatos. Os
comerciantes britânicos podiam utilizar a linha férrea Berlim -Bagdá tal como
os comerciantes alemães e houve oito diretores franceses na administração da
ferrovia para onze diretores alemães. Ainda assim, a ideia de cerca de 3 mil
quilômetros de trilhos alemães atravessando a Europa, a Anatólia e as províncias
árabes do império otomano era preocupante e até ameaçadora para a Grã-
-Bretanha , que tinha interesses particulares no golfo Pérsico e no oceano Índico.
Ao longo da linha férrea, apenas a Sérvia , através da qual corriam apenas
280 quilômetros, não pertencia à esfera de influência e alianças da Alemanha .
Para a Alemanha, os impérios francês e britânico eram uma fonte de invejo-
sa indignação, apesar de as possessões ultramarinas alemãs incluírem vastas
regiões na África e grandes extensões no oceano Pacífico, nas quais não havia
qualquer estabelecimento particularmente ativo ou exploração. Para a Alema-
nha, as possessões imperiais eram mais símbolos de poder do que mostras de
desenvolvimento significativo de empreendimentos e de prosperidade nacional.
Outra causa para os atritos anglo-germânicos, exacerbada por nacionalismos
em ambos os lados do mar do Norte , era o desejo do Kaiser de equiparar-se à
Grã-Bretanha em poderio naval, mesmo que as possessões ultramarinas alemãs
não exigissem uma Marinha à escala britânica. Em 1912, uma lei naval alemã,
a quarta em doze anos, acresceu 15 mil oficiais e homens à já substancial força
naval. O primeiro lorde do Almirantado4 britânico, Winston Churchill , sugeriu
uma pausa mútua na expansão naval de ambos os países, mas sua sugestão foi
rejeitada pela Alemanha . Seu argumento de que uma Marinha poderosa era
uma necessidade para os britânicos, mas um “luxo” para os alemães, apesar
de ser essencialmente verdadeiro, devido à Índia e a outras responsabilidades
imperiais disseminadas, ofendeu os alemães, que se consideravam no mesmo
patamar que os britânicos e sentiram que se esperava que adotassem uma
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posição de inferioridade. Por outro lado, os britânicos, com receio do sempre
crescente poderio naval alemão no mar do Norte, acolheram com satisfação a
expansão naval russa: em 12 de maio de 1914, o gabinete britânico notou com
aprovação que “o vasto incremento da armada russa no Báltico deve necessa-
riamente facilitar nossa posição em relação à Alemanha em águas territoriais”.
A vitória sérvia contra a Turquia na Primeira Guerra dos Bálcãs , em 1912, foi
um revés para a Alemanha . O sucesso militar e territorial desse pequeno Estado
eslavo ameaçou não só a predominância austríaca nos Bálcãs , mas também o
desejo alemão de ser a potência predominante na Turquia. A perda do território
turco na Europa, em proveito da Sérvia , foi uma vitória para o sentimento russo.
Os russos, como grandes defensores dos eslavos e governantes das províncias
polonesas e bálticas adjacentes à Alemanha, estimularam a animosidade alemã.
O conceito de diferença racial entre teutônicos e eslavos estava presente, mas
não parecia que algum mal resultaria desse conflito. Em 8 de dezembro de
1912, numa conversa com o chefe do Estado-Maior, conde Moltke , com o chefe
do Estado-Maior da Marinha, almirante Müller , e o secretário de Estado da
Marinha, almirante Tirpitz , o Kaiser disse-lhes, como Müller registrou em seu
diário: “A Áustria deve ter uma ação vigorosa contra os eslavos estrangeiros
(sérvios) ou perderá seu poder sobre os sérvios na monarquia austro-húngara.
Se a Rússia vier em apoio dos sérvios, a guerra pode ser inevitável para nós.”
A armada alemã “deve considerar uma guerra contra a Grã-Bretanha ”, acres-
centou o Kaiser.
Durante esse encontro, Moltke sugeriu que “a aceitação popular de uma
guerra contra a Rússia , conforme sublinhado pelo Kaiser , precisaria ser mais
bem-trabalhada”. O Kaiser concordou com a ideia de que os jornais deveriam
começar a “esclarecer o povo germânico”, pois era “do mais alto interesse” para
a Alemanha que uma guerra desse sequência ao conflito austro-sérvio. De
acordo com instruções dadas pelo almirante Müller ao chanceler, Theobald
von Bethmann-Hollweg , que não estivera presente no encontro: “O povo não
deve estar numa posição em que se interrogue no início de uma grande guerra
europeia sobre os motivos pelos quais a Alemanha lutará. A população deve
acostumar-se previamente à ideia dessa guerra.”5
Moltke compreendia e preocupava-se com a questão da preparação do público
para aceitar a guerra. No início de 1913, foi tão longe quanto Bethmann-Hollweg
e chegou a advertir seus homólogos austríacos para que não entrassem em
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guerra contra a Sérvia , apesar do desejo sérvio de ocupar a Albânia . Moltke
estava convencido, conforme contou ao general Conrad von Hötzendorf , chefe
do Estado-Maior austríaco, em 10 de fevereiro de 1913, de que “uma guerra
na Europa virá mais cedo ou mais tarde, e nela estará em causa a luta entre o
mundo germânico e o mundo eslavo” e de que “é dever de todos os Estados que
defendem os ideais e a cultura germânicos se prepararem para essa contingên-
cia”. Essa guerra, contudo, “necessita de um povo entusiasmado e preparado
para fazer sacrifícios”. Esse tempo ainda não tinha chegado.
Em junho de 1913, Churchill repetiu, numa conversa particular com o adido
naval alemão em Londres , capitão E. von Müller , sua sugestão de fazer uma
pausa na expansão naval de ambos os lados. Müller, que não gostava dos britâ-
nicos e que não queria que o Ministério das Relações Exteriores britânico em
Berlim nem o Kaiser aceitassem a sugestão conciliatória de Churchill, pediu a
opinião do almirante Tirpitz . Tirpitz aconselhou-o a reportar a conversa com
Churchill de modo tão resumido quanto possível, dando assim a impressão de
que Churchill desejava apenas atrasar a expansão naval germânica por recear
que a Grã-Bretanha não conseguisse manter sua superioridade naval. Assim, a
iniciativa de Churchill foi distorcida de tal forma que iria influenciar a opinião
do Kaiser. Quase um ano depois, o ministro alemão das Relações Exteriores,
Gottlieb von Jagow , faria uma queixa ao embaixador alemão em Londres: “É
muito desagradável e tendenciosa a forma como seu adido naval dá informações.
O senhor poderia refreá-lo um pouco mais? Essas constantes afrontas e calúnias
sobre a política britânica são extraordinariamente perturbadoras, em especial
porque são utilizadas nas altas esferas como um argumento contra mim.”
A crescente força alemã era visível. Na primavera de 1913, a Infantaria, que
um ano antes tinha sido aumentada para 544 mil homens, aumentara mais
ainda, para 661 mil homens. Em outubro, o chanceler alemão apresentou os
aumentos no Exército com as palavras: “Uma coisa é indubitável: se houver
uma conflagração de Slaventum contra Germanentum, será para nós uma des-
vantagem que a posição de equilíbrio de forças até agora ocupada pela Turquia
europeia passe a ser preenchida pelos Estados eslavos.”
Na sequência das guerras dos Bálcãs , não foi a Alemanha , mas sua vizinha e
aliada, a Áustria , que defendeu a necessidade de Germanentum contra Slaven-
tum. Como resultado da pressão austríaca, a Turquia concordou com a criação
de uma Albânia independente, cortando o acesso da Sérvia ao mar Adriático.
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Ao mesmo tempo, a Grécia , governada por um rei que era casado com a irmã do
Kaiser , negou à Sérvia acesso ao mar Egeu ao anexar a região costeira da Trácia.
As diferentes nações envolvidas sentiram-se lesadas, insatisfeitas, ameaçadas
ou confiantes. Os jornais estimulavam as sensações de perigo e de privação. Os
governos falaram em racismo, patriotismo e proezas militares. Enquanto os
desertos e os pântanos de continentes distantes pareciam oferecer perspectivas
de expansão, a competição entre potências rivais transformava uma simples via
férrea, que atravessa um deserto, numa provocação. Nenhuma rivalidade por
si só ou região disputada causou a guerra, e, no entanto, todas as rivalidades
e regiões disputadas criaram e aceleraram os sentimentos e as oportunidades
que tornaram a guerra imaginável, possível e, por fim, desejável. “Estou farto
de guerra, de clamores pela guerra e de armamentos”, disse Bethmann-Hollweg
a um amigo num momento de irritação em junho de 1913. “Está na hora de as
grandes nações se acalmarem e ocuparem-se com questões pacíficas ou haverá
uma explosão que ninguém deseja e que virá em detrimento de todos.”
Ganância territorial e conquistas bem-sucedidas desempenharam seu papel
na permanente ideia de uma guerra desejável. Depois da vitória sobre a Tur-
quia , em 1912, a Itália anexou a vasta província da Líbia , no norte da África ,
que era turca. Um ano depois, a Bulgária , tendo derrotado também os turcos,
conseguiu uma saída para o mar Egeu , com acesso ao Mediterrâneo. A Sérvia ,
sem acesso ao mar, considerando que o domínio austríaco sobre a Bósnia e
a costa da Dalmácia era uma tentativa deliberada para negar-lhe o acesso
ao mar Adriático, ocupou a Albânia durante a Segunda Guerra dos Bálcãs .
Assim, a Sérvia adquiriu, momentaneamente, uma considerável linha na costa
do Adriático.
O centésimo aniversário de uma das maiores vitórias militares alemãs, a
derrota de Napoleão em Leipzig pela Prússia , Áustria e Suécia , na Batalha das
Nações , foi celebrado em outubro de 1913.6 Para comemorar esse triunfo, o
Kaiser inaugurou um monumento à vitória, numa cerimônia preparada para
enfatizar as tradicionais e históricas proezas militares da Alemanha . Entre
os presentes na cerimônia estava o chefe do Estado-Maior austríaco, general
Conrad , a quem o Kaiser expressou seu apoio em qualquer ação destinada a
obrigar a Sérvia a sair da Albânia . “Estou ao seu lado nesse ponto”, confiden-
ciou o Kaiser. As outras potências não estavam preparadas. “Dentro de poucos
dias, os senhores devem estar em Belgrado . Sempre defendi a paz, mas existem
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limites. Li muito acerca da guerra e sei o que significa, mas quando uma grande
potência já não pode apenas olhar, a espada deve ser desembainhada.”
A ocupação da Albânia pela Sérvia foi um triunfo efêmero. Em 18 de outu-
bro de 1913, o governo austríaco enviou um ultimato a Belgrado , exigindo a
evacuação da Albânia num prazo de oito dias. Os sérvios cumpriram a ordem.
Nesse dia, o diplomata britânico Eyre Crowe , com veracidade e certa presciên-
cia, apontou: “A Áustria saiu do concerto das potências para tentar chegar
sozinha a uma solução para uma questão até então tratada como concernen-
te a todas as potências.” No dia seguinte, o ministro alemão provisório das
Relações Exteriores, dr. Alfred Zimmermann, disse ao embaixador britânico
em Berlim , Sir Edward Goschen , que havia ficado surpreso com o fato de o
imperador da Áustria ter adotado uma política que, sob certas circunstâncias,
poderia conduzir a sérias consequências, mas ele o havia feito, e isso deixou
bem claro que conselhos de moderação a Viena por parte da Alemanha esta-
vam fora de questão.
Nessas últimas palavras estão as sementes de uma guerra europeia. Após
o ultimato da Áustria , o Kaiser enviou um telegrama de felicitações tanto ao
imperador Franz Joseph como ao seu herdeiro forçado, o arquiduque Franz
Ferdinand . Essa aprovação germânica, comentou Eyre Crowe no final de outu-
bro de 1913, “confirma a impressão de que a Alemanha , fazendo de conta que
desaprovava e lamentava a atitude austríaca, havia, na verdade, encorajado seu
aliado”. Notou-se, na Áustria, que nenhum jornal russo sugeriu que a Rússia
tomasse uma atitude em favor da Sérvia , o que poderia conduzir a um conflito
entre a Rússia e a Áustria.
A Áustria -Hungria dava claros indícios externos de firmeza e confiança. “É
difícil pensar sem a Áustria”, dissera Bismarck em 1888. “Um estado como a
Áustria não desaparece”, completou ele. Em 2 de dezembro de 1913, foi cele-
brada, em Viena , uma missa solene para assinalar o 65º aniversário da subida
ao trono do imperador Franz Joseph . Nenhum soberano europeu mantivera
sua autoridade real durante tanto tempo, mas Franz Joseph não podia refrear
as aspirações nacionalistas de seu povo nem evitar que fatores externos encora-
jassem tais aspirações. De todas as principais potências, a Rússia era a que mais
ativamente agitava os ânimos. Em 19 de janeiro de 1914, o governador austría-
co da Galícia reportou ao Ministério do Interior em Viena: “Recentemente, a
agitação do partido russófilo (…) avivou-se (…). A contínua russificação da
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Galícia, ajudada pelos ortodoxos, exige maior atenção por parte dos oficiais
administrativos se forem capazes de combatê-la.”
Nos primeiros meses de 1914, na constante busca por fontes de combustível,
essenciais para manter os mais modernos navios de guerra em funcionamento,
a Grã-Bretanha adiantou-se aos alemães ao negociar uma cota predominante
nos campos petrolíferos da Pérsia , para onde os construtores da via férrea alemã
haviam voltado suas obras. Porém, na mesma época, como responsável pela
Marinha Real, Winston Churchill , que por duas vezes propusera uma pausa
anglo-germânica na construção naval, sugeriu aos seus colegas seniores7 do
gabinete que fossem organizadas conversações secretas com seu homólogo ale-
mão, almirante Tirpitz . Seu objetivo era acabar com “a perniciosa concentração
de armadas em águas domésticas”, explicou Churchill. O ministro britânico das
Relações Exteriores, Sir Edward Grey , rejeitou essa sugestão, argumentando que,
se houvesse um vazamento de informação, “circulariam os piores relatórios e
seríamos obrigados a dar constantes explicações a embaixadores e ao Ministério
das Relações Exteriores e a desmentir à imprensa coisas que seriam atribuídas
a nós”. Prevaleceu a posição do veterano Grey .
Apesar da recusa de negociações anglo-germânicas, a guerra parecia ser
improvável na primavera e no verão de 1914. As disputas entre estados sobe-
ranos podiam ser apresentadas para resolução ao Tribunal Internacional de
Haia , estabelecido em 1900 e símbolo da determinação do mundo civilizado
em não se ver envolvido em conflitos destrutivos mútuos. Socialistas espalha-
dos por toda a Europa denunciaram o próprio conceito de guerra e tentaram
persuadir a classe trabalhadora a recusar-se a tomar parte nos entusiasmos de
guerra capitalistas. Banqueiros e investidores, assim como a aristocracia rural
com quem estavam em competição, sentiam-se parte de um agrupamento
internacional mais vasto, que, quer por meio de ações comerciais ou de uniões
matrimoniais, não tinha nada a ganhar com a guerra, mas tinha muito a perder.
Foram feitos acordos que transformaram rivalidades em cooperação: em 13 de
agosto de 1913, os britânicos e os germânicos tinham negociado secretamente
a criação de esferas de influência nas possessões africanas portuguesas na Áfri-
ca . O acordo, destinado a um eventual controle anglo-germânico de Angola e
Moçambique, teve início em 20 de outubro de 1913, dois dias depois do ultimato
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austríaco à Sérvia . Parecia não haver razão para que uma crise nos Bálcãs ,
mesmo sendo iniciada por uma potência europeia tão próxima da Alemanha ,
inibisse as relações anglo-germânicas.
A nível político, um escritor britânico, Norman Angell , no seu livro A grande
ilusão, argumentou que a guerra traria extraordinárias perdas econômicas e
financeiras mesmo a uma potência vencedora. Sua advertência, publicada ini-
cialmente em 1909, foi traduzida para francês, alemão, italiano e russo, havendo
mais de dez edições em língua inglesa já em 1913. Angell enfatizava que as
grandes nações industrializadas, sendo elas Grã-Bretanha , Estados Unidos ,
Alemanha e França , estavam “perdendo o impulso psicológico para a guerra,
tal como perdemos o impulso psicológico para matar nossos vizinhos com base
em diferenças religiosas”. “Como poderia ser de outro modo?”, perguntava ele.
“Como pode a vida moderna, com sua esmagadora proporção de atividades
industriais e sua infinitesimal proporção de equipamento militar, manter vivos
os instintos associados a guerras em vez daqueles que se relacionam com a paz?”
Até mesmo os junkers8 prussianos “tornam-se menos energúmenos, passando
a ser mais científicos”.
Angell não estava sozinho ao apontar que as potências cujas rivalidades tor-
naram suas populações tão desejosas de guerra estavam também estreitamente
ligadas por interdependências industriais e relacionadas ao mercado livre. Em
junho de 1914, foi uma companhia de investidores britânicos e germânicos
que conseguiu direitos exclusivos de exploração de petróleo na Mesopotâmia .
Navios de todas as nações europeias transportavam nos seus porões produtos
de campos petrolíferos e saídos de fábricas de outras nações. Automóveis e
caminhões alemães, franceses, britânicos e russos, que na eventualidade de
uma guerra transportariam tropas e mantimentos, funcionavam graças a gera-
dores da marca Bosch, feitos exclusivamente na Alemanha e importados por
fabricantes de veículos em todos os países europeus. Se houvesse guerra e tal
abastecimento fosse interrompido, essa pequena, mas crucial peça teria de ser
reinventada e produzida desde o início.
A acetona, solvente usado na manufatura da cordite, componente explosivo
dos projéteis, é outro exemplo da interdependência entre os Estados europeus.
A substância era quase totalmente produzida por destilação de madeira, e a
Alemanha e a Áustria eram dois entre os principais países exportadores de
madeira, sendo os outros o Canadá e os Estados Unidos . Uma tonelada de
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acetona requeria pelo menos oito toneladas de madeira de bétula, faia ou bordo.
Todas as florestas britânicas juntas não poderiam fornecer o mínimo de cem
toneladas necessárias todos os anos na eventualidade de uma guerra, portan-
to a madeira importada era um componente essencial da capacidade bélica.
Seis meses depois do início da guerra, as necessidades britânicas de acetona
sintética tornaram-se urgentes, dando à ciência um papel primordial, mas o
processo de produção sintético só foi completamente instalado em fevereiro
de 1916. Uma área totalmente monopolizada pela Alemanha era a manufatura
de binóculos. Em agosto de 1915, a Grã-Bretanha seria obrigada a recorrer a
um intermediário suíço para adquirir 32 mil pares de binóculos alemães para
uso na frente ocidental .
Não apenas a interdependência comercial e o aumento de viagens e turismo
desde o início do século, mas também o fato de que quase todos os chefes de
Estado europeus estavam relacionados uns com os outros pelo matrimônio,
criaram vínculos que pareciam inquebráveis. O Kaiser alemão e seu primo por
casamento, o czar russo, trocavam regularmente correspondência amigável,
dirigindo-se um ao outro, em inglês, como “Willie” e “Nicky”. A correspondên-
cia entre eles nunca revelou excessos ou inimizade, mas a contínua constituição
de exércitos e armadas, o desenvolvimento de novos conhecimentos de guerra
aérea e as rivalidades nacionais entre as potências europeias continham ger-
mes que não podiam ser mascarados por cartas amigáveis, comércio livre ou
senso comum.
Nos primeiros meses de 1914, os russos zangaram-se quando o Kaiser enviou
um oficial superior alemão, o general Otto Liman von Sanders , à Turquia como
consultor militar do Exército otomano. Em 12 de maio de 1914, em Carlsbad, o
chefe do Estado-Maior alemão, conde Moltke , disse ao seu homólogo austría-
co, barão Conrad , que qualquer atraso na guerra com a Rússia “significa uma
redução das nossas possibilidades; não podemos competir com os russos em
número”. Oito dias mais tarde, ao viajar de carro de Potsdam para Berlim , Moltke
disse ao secretário de Estado alemão, Gottlieb von Jagow , que receava que a
Rússia chegasse, em dois ou três anos, ao seu máximo poder em armamentos
de guerra, e que a Alemanha não tinha alternativa que não fosse “desencadear uma
guerra preventiva de modo a derrotar o inimigo enquanto há uma possibilidade
de vencer”. Durante a viagem, Moltke aconselhou a Jagow que orientasse sua
política “para a mais ínfima provocação de guerra”.
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Em 29 de maio, em Berlim , o coronel House , emissário do líder norte-ame-
ricano Woodrow Wilson , escreveu ao presidente: “A situação é extraordinária.
O militarismo anda à solta. A não ser que alguém que atue em seu nome traga
um novo entendimento, mais cedo ou mais tarde haverá um terrível cataclis-
mo.” Ninguém parecia conseguir esse acordo. “Há demasiado ódio, demasiadas
invejas”, avisou House . “Quando a Grã-Bretanha consentir, a França e a Rússia
irão lançar-se sobre a Alemanha e a Áustria . A Grã-Bretanha não quer que a
Alemanha fique totalmente destruída, pois assim terá de enfrentar sozinha
sua antiga inimiga, a Rússia, mas não terá escolha se a Alemanha continuar
insistindo em aumentar constantemente seu poder naval.” Ao chegar a Londres ,
House disse ao ministro britânico das Relações Exteriores que, em Berlim, “o
ar parece estar cheio de ruídos de armas, em prontidão para o ataque”.
Enquanto o coronel House escrevia e dizia essas palavras premonitórias,
a Grã-Bretanha e a Alemanha negociavam o Acordo da Ferrovia de Bagdá ,
acertando a partilha de oportunidades econômicas e buscando evitar conflitos
territoriais na Ásia Menor. Porém, os benefícios econômicos da paz não eram
os únicos sendo argumentados nesse verão. No começo de junho, o chanceler
alemão, Bethmann-Hollweg , disse ao ministro bávaro em Berlim , conde Hugo
von Lerchenfeld , que alguns círculos alemães esperavam que a guerra levasse a
uma melhoria na situação interna no país, seguindo “numa direção conserva-
dora”. Contudo, Bethmann-Hollweg pensava que “uma guerra mundial, com
suas consequências incalculáveis, pode fortalecer o tremendo poder da social-
-democracia, pois prega a paz, e derrubar mais de um trono”.
Em 11 de junho, na Caen Wood House , num dos mais elegantes subúr-
bios da parte norte de Londres , uma orquestra trazida especialmente de Viena
apresentou-se num espetacular jantar e baile. O anfitrião era o grão-duque
Michael, tetraneto de Catarina, a Grande , e primo de segundo grau do czar .
Os convidados eram aristocratas e nobres da Europa, com destaque para o rei
George V e a rainha Mary . Os convidados e os músicos não tinham motivo
para sentirem outra coisa que não fosse comodidade e bem-estar. No entanto,
no meio da calma e da satisfação, espreitavam terríveis perturbações.
Para os eslavos da Áustria -Hungria e para os sérvios em seu reino indepen-
dente, a Rússia czarista, governada pelo primo do grão-duque, era um patrono
bem-vindo. Em maio de 1914, um destacado membro tcheco do Parlamento
austríaco, dr. Karel Kramar , tinha enviado a um amigo russo suas opiniões
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sobre “uma confederação eslava dirigida de São Petersburgo ”, que seria criada
depois da guerra entre a Rússia e a Áustria, assim que o império dos Habsburgos
entrasse em colapso durante a guerra.
Havia um sentimento de instabilidade por toda a vasta estrutura austro-
-húngara. O chefe da monarquia dual, o imperador da Áustria e rei da Hungria,
Franz Joseph , tinha 83 anos de idade, e dizia-se que ao seu sobrinho e herdeiro,
o arquiduque Franz Ferdinand , desagradava sobremaneira a predominância
húngara em seu reino, de tal modo que tinha planos para subdividir o império
a ponto de que a metade húngara deixasse de ser exclusivamente húngara,
dando aos sérvios e aos croatas uma autonomia muito maior. Na primavera
de 1914, o arquiduque tinha em mente um futuro “Parlamento do Povo” para
a Hungria, que reduziria substancialmente a influência húngara, acrescendo o
poder das várias minorias não húngaras, incluindo os eslovacos e os croatas.
Em 12 de junho de 1914, o Kaiser passou um fim de semana em Konopischt,
perto de Praga , com Franz Ferdinand . Foi um momento de relaxamento e caça.
O principal tópico para conversações sérias era a recente afeição do Kaiser pelo
primeiro-ministro húngaro, conde István Tisza , cuja influência desagradava a
Franz Ferdinand. O Kaiser e o herdeiro discutiram também a visita, nesse mes-
mo fim de semana, do czar russo à família real romena em Constança , no mar
Negro. O arquiduque teria perguntado ao Kaiser, brevemente, se a Alemanha
continuava desejando, como ele tinha dado a entender durante a crise albanesa,
oito meses antes, dar apoio à Áustria -Hungria na destruição dos “vespeiros”
sérvios, a partir dos quais, ao menos para a Áustria, o sentimento antiaustríaco
era instigado na Bósnia -Herzegovina. O Kaiser respondeu que a Áustria devia
agir antes que a situação piorasse, pondo em dúvida que houvesse razões para
recear uma intervenção russa em apoio à Sérvia , pois o Exército russo ainda
não estava preparado para a guerra. A ação austríaca contra a Sérvia, ao menos
assim parecia, teria o apoio total da Alemanha.
O Kaiser partiu de Konopischt para seu palácio em Potsdam . Nove dias depois,
estava em Kiel para a regata anual, passando uma semana entre corridas, bailes
e divertimento. Apesar de o recém-aberto canal de Kiel representar uma ameaça
germânica à Grã-Bretanha , uma esquadra de navios de guerra britânicos foi
apresentada como convidada de honra, ancorando quatro couraçados e três
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cruzadores ao lado da Esquadra de Alto-Mar alemã. Oficiais e marinheiros de
ambas as armadas trocaram entusiásticas saudações enquanto passeavam pelos
navios, apreciando a pompa. Também estiveram juntos no enterro de um piloto
britânico morto num acidente aéreo durante as festividades.
A bordo do seu iate de corrida, o Meteor V, o Kaiser foi o centro do esplen-
dor da regata. Em 26 de junho, com seu uniforme de almirante da esquadra
britânica, subiu a bordo do couraçado King George V. Tecnicamente, ele era o
mais graduado oficial da Marinha Real ali presente. Durante a visita, houve um
incidente absurdo: o conselheiro da embaixada britânica em Berlim , Sir Horace
Rumbold , tinha propositadamente vestido um casaco e posto um chapéu alto.
O almirante da esquadra decidiu que o diplomata não estava convenientemen-
te vestido. Apontando para o chapéu alto, disse a ele: “Se eu voltar a ver esse
chapéu, sou capaz de esmagá-lo. Não se usam chapéus altos a bordo de navios.”
Na noite de 27 de junho, o comandante da esquadra britânica foi o anfitrião de
uma recepção, a bordo do King George V, para os oficiais germânicos. Rumbold
recordou, poucas semanas depois, como, enquanto decorria a regata, “notava-se
a grande cordialidade que havia entre os alemães e nossos marinheiros”. No
dia seguinte, 28 de junho, houve uma corrida de iates, seguida com o mesmo
entusiasmo tanto por espectadores alemães como britânicos. O próprio Kaiser
participava da corrida em seu iate Meteor, mas, enquanto estava na baía de Kiel ,
uma lancha trouxe-lhe um telegrama, que foi colocado numa caixa de cigarros e
lançado a bordo do iate. O Kaiser leu a mensagem, que dizia que o arquiduque
Franz Ferdinand , seu anfitrião em Konopischt duas semanas antes e herdeiro
dos Habsburgos , tinha sido assassinado na capital da Bósnia , Saraievo , junta-
mente com sua mulher. A corrida foi cancelada e todas as festividades foram
encerradas. O Kaiser regressou apressadamente ao seu palácio em Potsdam .
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