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Destaque SIM, MATEI QUATRO PESSOAS E DEFENDO... ...A EUTANÁSIA Dois amigos, uma tia e um doente. Apesar de tudo, este médico diz que fez muito mais pela vida. Por Lucília Galha PRIMEIRA PESSOA. A HISTÓRIA DE UM MÉDICO PORTUGUÊS

PRIMEIRA PESSOA. A HISTÓRIA DE UM MÉDICO PORTUGUÊS …

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SIM, MATEI QUATROPESSOAS E DEFENDO...

...A EUTANÁSIA

Dois amigos, uma tia e um doente. Apesar de tudo, este médico diz que fez muito mais pela vida. Por Lucília Galha

PRIMEIRA PESSOA. A HISTÓRIA DE UM MÉDICO PORTUGUÊS

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Não a ajudei a morrer, matei-a. Éessa a palavra. Não me despedicom dois beijos, nem lhe passei amão pela cabeça, não queria que setornasse mais emocional do que jáera. Nem eu, nem ela. Foi de umafrieza extraordinária… e de uma co-

ragem. “Então, vamos a isto”, disse-me. Bebeu umaúltima cervejinha, fumou o último charro e deitou-secomo se fosse dormir e acordar no dia seguinte.

Antes de começar, perguntei-lhe uma última vez setinha a certeza e pedi-lhe para ser ela a abrir o soro.O medicamento é dado por via endovenosa, de ma-neira que é preciso apanhar uma veia. Primeiro, pus osoro para manter a veia e logo a seguir dei-lhe umainjecção com um hipnótico usado para anestesias rá-pidas. Estava sentado na cama, do lado esquerdodela. Levantei-me para olhar para o electrocardiógra-fo. Pedi-lhe para contar até 10 ao contrário. “10, 9, 8,7…”, adormeceu. Abanei-a, não acordou. Avancei coma substância que a mataria. Um minuto depois, come-cei a ver alterações no electrocardiograma e, por fim,uma linha recta. São alguns minutos até o coraçãoparar, talvez uns cinco. Quando o tronco cerebral éatingido pela falta de circulação há uma reacção re-flexa, que não é sentida pela pessoa, e o corpo ficaem posição fetal. Na mesma altura, também faz umbarulho como se se estivesse a contrair. Uma amiga,que também estava presente, pôs-lhe o braço por tráse aconchegou-a. É uma questão de segundos, depoiso corpo relaxa.

A seguir, chorei. É uma descarga brutal, irreprimível.Tem um lado recompensador, por a ter ajudado eevitado que viesse a ter um sofrimento tramado, mastambém é violento saber que estou a matar uma pes-soa. Sobretudo uma amiga. Não é fácil, é muito difícil.Não dormi nessa noite e durante mais de dois mesestive sonhos com a imagem da morte dela. Falei mui-tas vezes com a amiga, questionámos o momento, arectidão dos nossos actos… Mas nunca me arrependi.Evitei o sofrimento certo de uma pessoa de quem eugostava e que me pediu para a ajudar. Era inexorável.Senti que era meu dever, principalmente por ser ami-go dela, mas não só. Não podia ser cobarde a vidatoda, caramba.

Se defendo que a morte assistida deve ser despena-lizada em Portugal, como médico não tenho o direitode dizer ao doente: “Olha desenrasca-te.” Devo auxi-liá-lo, sobretudo neste momento. A Marta tinha 52anos e era uma amiga de infância. As nossas famíliaspassavam férias em conjunto, numa altura em que aviagem ainda era feita de carroça e demorava um diainteiro. Um dia apareceu-me no consultório com umaradiografia, olhei e percebi logo que era uma neopla-sia. Fez uns exames e confirmou-se: cancro do pul-mão. Os tratamentos de quimioterapia e radioterapianão resultaram e começaram a aparecer-lhe metásta-ses no cérebro. A certa altura começou com perturba-ções de equilíbrio.

“Estou a sofrer, quero morrer, ajudas-me?”, pergun-tou-me um dia, no consultório. Fiquei apreensivo masacabei por aceder. Ela tinha razões para querer mor-rer: as expectativas de vida de um cancro daqueleseram de um ano; já tinham passado seis meses. De-pois do desequilíbrio começaria com dores de cabeçaintensas, ficaria cega e deixaria de ouvir, poderia en-trar em coma profundo e ficar numa existência vege-tativa. A perspectiva era morrer dali a três ou quatromeses, com muito sofrimento.

Repor a vida a uma pessoa Combinámos que seria em casa dela e que teria dearranjar alguém de confiança para assistir: precisavade uma pessoa que me ajudasse, se fosse preciso, etambém de acompanhamento moral. Durante os 15dias entre o pedido e a morte perguntei-lhe várias Q

EVITEI O SOFRIMENTO

CERTO DEUMA PESSOADE QUEM EU

GOSTAVA E QUE ME

PEDIU PARAA AJUDAR

Movimento peladespenalização

A 14 de Novembro, umgrupo de cidadãos criou

um movimento parapressionar o Governo aregulamentar a prática

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vezes se não queria voltar atrás. Não mudou deideias. Aconteceu num dia à noite, por volta das 23h.É mais sossegado para entrar e sair de casa sem servisto. Precisava de levar uma série de equipamentos,entre eles um electrocardiógrafo, o estetoscópio, oaparelho para medir a tensão e a medicação (soro fi-siológico, um indutor do sono e uma substância deuso hospitalar, que usada em grandes quantidades,provoca uma paragem do tronco cerebral por falta deirrigação sanguínea). Estava nervoso, mas a mão nãome tremeu como aconteceria mais tarde.

Fui eu que atestei o óbito, umas horas depois. Com-binámos previamente o que diríamos à família: queela tinha começado com umas dores de cabeça, metinha ligado para ir vê-la, e que quando cheguei já ti-nha morrido. A polícia só seria chamada se a famílialigasse ao INEM, caso contrário era só contactar aagência funerária.

Já passaram 15, talvez 20 anos. A experiência mu-dou-me: percebi que era capaz de o fazer e isso fez--me sentir mais capacitado. Na altura, já tinha recebi-do pedidos de outras pessoas, que não me foi possívelajudar, mesmo quando tinha a convicção de que o

pedido era razoável. Fiquei sempre com a impressãode que não fiz tudo por elas.

A primeira vez que pensei em eutanásia foi há maisde 30 anos, na sequência da morte do meu pai. Teveuma aterosclerose cerebral [um estreitamento dasartérias que pode reduzir significativamente o forne-cimento de sangue a órgãos vitais como o coração eo cérebro] e esteve acamado quase dois anos. A pio-rar, a degradar-se, a ter alucinações e discursos in-coerentes. Só dizia disparates: “Ó filho, o que estás aía fazer na Suécia?” Nos momentos de lucidez pedia-me um cigarro, eu punha-lho na boca e ele dava umbafo. Todos os dias, quando ia vê-lo, pensava: “Por-que é que ainda está vivo?” Já não existia, já não ti-nha cabeça. Não tive coragem para fazer nada… hojeteria. Sim, hoje teria. Isso passou-me pela cabeçamuitas vezes.

O meu pai era um médico brilhante. Era reconheci-do e conhecido porque era bom. Eu fui interno dele,na fase de policlínica em que passamos por váriosserviços. Acompanhar as visitas dele aos doentes eraum hino à Medicina: sentava-se em todas as camas eestava ali o tempo que fosse necessário para escla-

Q

Q

NÃO TIVECORAGEM

PARA AJUDAR

O MEU PAI A MORRER.HOJE TERIA.

ISSO PASSOU-ME

PELA CABEÇA

“Se os mortosfalassem, há muito

que a morte assistida

estava despe-nalizada” JOÃO SEMEDO

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A seguir especializei-me e fiz todo o percurso nopúblico até chegar a um cargo de direcção. Trabalheino mesmo sítio durante 34 anos. Era completamenteviciado no trabalho, dava-me muito gozo. Nem pen-sava em horas extraordinárias, fazia consulta até às18h quando na altura nem havia essa obrigatoriedade.Mal dava conta da minha vida pessoal mas, apesardisso, acho que fui um pai cuidadoso, que segui deperto os meus três filhos embora não tenha tido umconvívio permanente com eles. Isso nunca me apo-quentou. Antes de tudo, era médico, tinha as minhasresponsabilidades profissionais.

O poder de decidir o que nos acontece Neste aspecto, era parecido com o meu pai: uma pes-soa cuidadosa, com uma visão holística dos doentes.Não fazia consultas de 10 minutos, tipo caixa de pre-vidência. A certa altura implementaram aos médicosas consultas de 15 minutos, 30 para uma primeiraconsulta. Recusei-me logo a fazê-lo. Para ver umdoente pela primeira vez demoro uma hora; numasegunda consulta, o mínimo dos mínimos são 30 mi-nutos. Na minha perspectiva é preciso dar lugar aodoente para se expandir, mesmo que não seja parafalar da doença. Quando vou ao médico, é importantea forma como sou abordado, a abertura que aquele

recer todas as dúvidas, com uma qualidade ímpar.Não sei dizer se foi ele que me influenciou porque sócomecei a pensar em Medicina já no liceu. Primeiro,quis ser polícia sinaleiro, depois pintor, a seguir arqui-tecto e por último engenheiro electrónico. Foi quandopassei para o antigo 5º ano [agora 9º ano], e tive deescolher uma área, que optei pela alínea f, que davaacesso à Medicina. Tinha gostado muito das CiênciasNaturais, de cortar bichinhos e ver como eram pordentro, fiquei conquistado.

Em 1974, depois de ir à tropa, já tinha feito o primeiroano de internato geral, comecei a trabalhar numa clíni-ca privada. Ali é que a chama se acendeu. Lembro-mede um caso determinante: um homem, de 40 anos, queentrou esquelético, com uma anemia gravíssima, cheiode escaras e comatoso. Começámos a tratá-lo, ao fimde uma semana melhorou, ao fim de um mês sarou. É oque se chama repor a vida a uma pessoa, não é? Issomexe muito, intervir para prolongar a vida e consegui-lo de forma artificial. Os sete anos que estive nessa clí-nica foram decisivos. Fui aliciado por essa sensação derestabelecer a vida. É uma coisa espectacular porqueenvolve um sentimento de autocapacidade e algumpoder. Há qualquer coisa de transcendente, que nãoconsigo bem definir. Diria que a sensação mais pareci-da é talvez um orgasmo. É bom, muito bom.

A SENSAÇÃODE REPOR AVIDA A UMA

PESSOA É PA-RECIDA COMUM ORGAS-MO. É BOM,MUITO BOM

Q

Q

Associaçõesright-to-die

Espanha, França,Inglaterra e Itália

(onde a práticanão está

despenalizada)têm associações

deste género

“Criminalizaruma decisãodestas é cruel

e mostra falta de

compaixãopor aquelesque sofremde forma

indescritível” ALEXANDRE

QUINTANILHA

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Sartre e o manual de Filosofia do liceu. A argumenta-ção do meu professor de Religião e Moral também meparecia completamente idiota. Foi um escândaloquando deixei de ir à missa.

A minha convicção é que temos o poder de decidiraquilo que nos acontece, desde que não interfira coma liberdade ou com os direitos dos outros. Daí a posi-ção sobre a morte assistida: de quem é a minha vida?Se eu não acredito em Deus, porque é que ele ou oEstado hão-de mandar em mim?

A morte também nunca me inquietou. Estava nosexto ano do liceu quando assisti à morte da minhaavó materna. Ela já estava muito velhinha, acamou,esteve assim dois ou três dias e depois morreu. Lem-bro-me perfeitamente de ter visto os olhos dela revi-rarem. Marcou-me porque nunca tinha visto. O meupai, a minha mãe e os meus avós morreram todos emcasa. Será que as pessoas têm medo da morte oumedo de morrer? Penso que algumas, tal como eu,apenas de morrer. Há mortes horrorosas...

Ao fim de alguns anos a trabalhar na especialidade, aver doentes sujeitos a mortes desnecessariamente so-fridas, pus-me a pensar no sentido da vida. Estávamosno fim dos anos 70, início dos 80. Na Holanda e naBélgica [onde a eutanásia e o suicídio assistido estãodespenalizados desde 2002], ainda a discussão sobrea morte assistida estava no plano teórico. Em Portugalsó se falava do assunto em meios muito restritos.

Eu sempre tive uma veia de revolucionário, é uma

profissional me dá, o olhar, o interesse que tem poraquilo que estou a explicar. São aspectos essenciais,além da ciência.

Não acredito em Deus, sou completamente ateu.Creio que quando morremos, acaba tudo, somos ma-téria tal como os cães, os gatos, os cavalos e tudo oque é vivo. Mas a minha família, à excepção do meupai, era extremamente católica. Por isso, andei numaescola religiosa. Todas as manhãs, antes de irmospara as aulas, cantávamos a Nossa Senhora. À horade sair, reuníamo-nos novamente e era a mesmacantiga. Aquilo obviamente entrava na cabeça dascrianças. Por volta dos 14 anos, deu-se-me a volta.Comecei a ler sobre a teoria do Big Bang, [Jean-Paul]

SE EU NÃOACREDITOEM DEUS,PORQUE É

QUE ELE OUO ESTADOHÃO-DEMANDAR EM MIM?

Q

dico, obviamente só para casos em que seja justifica-do, e salvaguardando o direito à objecção de cons-ciência. Dirão os detractores que isso vai contra o ju-ramento de Hipócrates, mas o mesmo código tam-bém diz que se deve aliviar o sofrimento do doente.Ora se uma pessoa me diz que já não pode mais, eque a única maneira de lhe aliviar o sofrimento émorrer, eu como médico é que decido?

Abreviar o sofrimento de um amigo Há cerca de 10 anos, pratiquei novamente a eutanásiaa um dos meus melhores amigos, daqueles que sãomanos, carne com carne. O Miguel também era médi-co, amigo do liceu, um gajo bonito e inteligentíssimoque gostava de ter a casa cheia de convidados. Estavanuma situação desesperada: farto de viver com dores,sem uma perna, praticamente todo paralisado, cominternamentos sucessivos com infecções respirató-rias. Precisava de ajuda para tudo: para se deitar, le-vantar, ir à casa de banho, comer. Custava-me vê-loassim, bolas, se custava… Aos 40 anos foi-lhe dia-gnosticada esclerose múltipla. Desde o aparecimentodos sintomas até à sua morte passaram uns 18 anos.Na fase final, a degradação física foi-se tornando

questão de consciência: acho que a morte assistida éum direito que nos assiste. Considero também que éuma cobardia fugir à eutanásia e obrigar as pessoas arecorrerem ao suicídio. Conceptualmente, perceboque a pessoa prefira que alguém a mate sem sofri-mento do que ser ela própria a fazê-lo. Por isso, achoque a eutanásia devia fazer parte dos deveres do mé-

CONSIDEROUMA COBAR-DIA FUGIR À

EUTANÁSIA EOBRIGAR ASPESSOAS ARECORRE-

REM AO SUICÍDIO Q

O que diz a lei? O Código Penal condena a prática da morte assistida, auto e hetero-administrada. O artigo134, que diz respeito ao homicídio a pedido davítima (eutanásia), pressupõe uma pena deprisão até três anos; no artigo 135, sobre o in-citamento ou ajuda ao suicídio (suicídio assisti-do), a pena é idêntica e pode ser agravada atécinco anos se a pessoa a quem se presta ajudafor menor ou não estiver em plena posse dassuas faculdades.

E o Código Deontológico dos Médicos?Diz que a estes profissionais de saúde “é ve-dada a ajuda ao suicídio, a eutanásia e adistanásia” (artigo 57). Mas também que “omédico deve respeitar a dignidade do doenteno momento do fim da vida” (artigo 57), “res-peitar as opções religiosas, filosóficas ou ideo-lógicas do doente” (artigo 51) e “suavizar o so-frimento” (artigo 31).

Uma prática fora da lei O código dos médicos pressupõe o respeitopela dignidade dos doentes

Eutanásia e suicídio assistido A eutanásia pressupõeque um médico ponha

fim à vida de uma pessoa, na sequência

de um pedido; no suicídio, é a própria

pessoa que provoca a sua morte

Cuidados paliativos

Podem coexistir com a morte assistida. Na

Bélgica, as pessoas re-cebem estes cuidadose quando decidem que

querem antecipar asua morte, ajudam-na

“Em causaestá o

inalienáveldireito ao

livre arbítrioem situações

extremas,quando

o exercíciodesse direitodepende de

outros” JOSÉ JÚDICE

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AF_CUF_INOV_Sab_205x137_GK.pdf 1 12:34

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to. O Miguel adormeceu mas, ao fim de 30 minutos, oelectrocardiograma ainda não revelava qualqueranomalia. Em vez de o coração parar, ele acordou.Sentia-se tão mal que o tivemos de levar para o hos-pital. Em casa só poderia sofrer mais. Disse aos mé-dicos que o assistiram que ele tinha tomado uma sé-rie de comprimidos, não sabia quantos, e que lhe ti-nha dado cloreto de potássio – uma forma de com-bater o efeito tóxico do outro medicamento. Salvei-lhe a vida, ao contrário do que era suposto. No hos-pital fizeram-lhe uma lavagem ao estômago e ficouinternado. Por estar tão frágil fisicamente, acaboupor desenvolver uma pneumonia grave e ficou hos-pitalizado mais de três meses.

O tempo de internamento só veio reforçar as suasconvicções. Viver fazia-lhe cada vez menos sentido e não conseguiria dar termo à vida sozinho. Quandoteve alta, pediu-me novamente para o ajudar a mor-rer. Nesse domingo, lembro-me que foi no dia do almoço de Natal das clínicas onde trabalhava, asse-gurámo-nos de que correria tudo bem: conseguimosque um colega de confiança lhe picasse a veia e me-tesse uma cânula. Eu fiz o resto. Antes de começar,conversámos sobre futebol, dissemos algumas pia-das do género “vemo-nos numa próxima!” e, por fim,disse-lhe que iria sentir muito a falta dele.

Diria que, por um lado, foi mais violento aqueleprocesso de tentativas e falhanços mas, por outro,quando acabou, foi um alívio. Finalmente tinha sidocomo ele queria.

O momento em que percebi que tinha de parar Consigo perceber pessoalmente o sofrimento, não fazsentido viver só por viver… Três anos depois da mortedo Miguel apareceu-me um cancro no pulmão. Desco-bri em 2008, enquanto estava a decorrer o campeona-to europeu de futebol. Como sou maluco por futebol,meto sempre férias para assistir aos jogos todos. Nessaaltura, comecei a sentir febre, todos os dias tinha 37,5de temperatura, às vezes 38. Não tinha mais sintomas.Esperei que o campeonato acabasse para ir ver o queera. Análises, radiografia, TAC… Estava lá: um nóduloabaixo da carina [bifurcação da traqueia nos doisbrônquios principais]. Tive de ser logo operado, nãodava para perceber o que era o nódulo, podia ser umaneoplasia ou outra coisa. Abriram-me o tórax, fizeramuma biopsia e o diagnóstico confirmou-se.

Como é para um médico ter cancro? É tão difícilpara nós como para outra pessoa. Embora nós ande-mos mais à frente, sabemos o que vai acontecer, nãoacalentamos falsas esperanças. Pedi o prognóstico:“25% ao fim de cinco anos”, disse-me o oncologista.“De morte?” Perguntei. “Não, de vida.” Já passaramsete anos. Pelos vistos, faço parte desses 25%.

Fiz quimioterapia durante três meses, de três em trêssemanas, e depois radioterapia. Mas continuei semprea trabalhar. O dia a seguir à quimioterapia era o pior,não conseguia fazer nada por causa das dores. Tam-bém me caiu o cabelo e as pestanas, mas até achei

mais rápida. Não me pediu logo a mim para o ma-tar, andou à procura entre outros amigos médicos,mas ninguém quis ajudá-lo. “Tens de ser tu”, disse-me a certa altura. Já estava à espera, mas gostava que não tivesse sido assim.

Antes de ficar doente, já era um defensor da despe-nalização da morte assistida. E mesmo na pior fase dasua vida reiterava o seu pedido de forma muito cons-ciente. Era o único que sabia o que verdadeiramentetinha acontecido com a Marta.

Num domingo à noite, o único dia em que o seu em-pregado não estava, fui ter a casa dele acompanhadopor outro amigo em comum, que o Miguel fez questãoque estivesse presente. A sua mulher também assistiu.Nestas alturas, curiosamente, uma pessoa tem umapresença de espírito que lhe dá para fazer as coisasmais disparatadas. Antes de o picar, disse-lhe: “Que-res que desinfecte?” Como se isso fosse importantenaquela situação. Porém, quando chegou a hora, nãoconsegui apanhar-lhe a veia. A mão tremia-me tan-to… não tinha acontecido da primeira vez. Mas estaamizade era mais forte. Fiz várias tentativas e nada.Senti-me terrível. Pedi-lhe desculpa pelo falhanço eacabámos por combinar outro dia, duas ou três sema-nas mais tarde, para tentar novamente. Confesso quenesse intervalo pensei muitas vezes em desistir…

Mas não o fiz. Da segunda vez pensámos numa al-ternativa: se não conseguisse picar-lhe a veia, ele to-maria duas caixas de um medicamento para o cora-ção, extremamente tóxico quando tomado em gran-des doses. Seria uma tentativa de suicídio, e não deeutanásia. Correu tudo mal: nem eu consegui, nem adose de comprimidos, supostamente mortal, fez efei-

PERCEBOPESSOAL-MENTE O

SOFRIMEN-TO, NÃO FAZ

SENTIDO VIVER SÓ

POR VIVER

Q

Testamentovital

Não é o mesmoque morte assisti-da. São os cuida-dos de saúde que

deseja ou não receber, numa

situação em quenão consiga comunicar

“O direito de escolher,

em plenaconsciência,terminar umprocesso de

doença irreversível

e de sofrimento, é motivação

bastantepara

reconhecer a morte

assistida nalegislação

portuguesa” FRANCISCO LOUÇÃ

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vida, caramba, 40 anos de actividade profissional. Reformei-me em 2010 e há quatro anos que nem

uma análise faço. Fiquei farto dos exames, das análi-ses, da fisioterapia. Não faço a mínima ideia se o tu-mor ainda aqui está, nem me adianta saber. A insufi-ciência respiratória já chega para diminuir a minha ex-pectativa de vida, não preciso do cancro. Uma das coi-sas que mais me custa é tomar banho, preciso de ajudasobretudo para limpar os pés e as pernas, e tenho deficar apoiado no lavatório uns 15 minutos até recupe-rar o fôlego. Confesso que já nem tomo banho todos osdias, sinto-me incapaz. Depois, a cabeça também jánão funciona da mesma maneira, talvez pela falta deoxigénio, faltam-me os termos quando escrevo.

Não acredito que sobreviva mais do que um ano. Omeu corpo não vai aguentar e eu não sei se aguento osacrifício de viver. Todas as manhãs faço oxigénio eàs vezes também ao longo do dia. Pontualmente,tomo um comprimido de cortisona para a falta de ar.A noção de morte a breve prazo não me assusta, nemperco tempo a pensar nisso. Para quê?

Depois do Miguel antecipei a morte a mais duas pes-soas. A terceira foi uma tia, irmã do meu pai, quemorreu com 95 anos. A tia era a pessoa querida da

que me ficava bem. A radioterapia foi mais difícil: to-dos os dias, às 8h da manhã, durante 10 minutos.Lixou-me por completo os pulmões. Eu já tinha bron-quite crónica, fumo desde os 15 anos. Comecei por 10cigarros, hoje fumo um maço e meio. Nunca parei, nemmesmo durante os tratamentos, embora tenha feito al-gumas tentativas honestas… mas não consegui. Fiqueicom uma fibrose pulmonar, a juntar ao que já tinha.Deu-me cabo da vida, hoje não consigo fazer nada. Sópara dar uns passos do quarto até à sala fico cansado.Até falar me cansa, começo a ficar nervoso e não consi-go coordenar a respiração com as palavras. É horrível.

Além dos pulmões, a radioterapia também me afec-tou a coluna, estou completamente marreco. Ainda fizduas tentativas para a consertar mas não resultaram.Na segunda vez tive uma embolia pulmonar e fiqueinos cuidados intensivos. Estava a decorrer o Campeo-nato do Mundo e ainda assisti a um jogo de Portugalinternado. Recordo-me perfeitamente do momentoem que percebi que tinha de parar. Estava a passar vi-sita, já andava com muita dificuldade e tinha de mesentar com frequência, com dores na coluna. Nesse diapassei pelo primeiro quarto, fui ao segundo e já nãoaguentei mais... Chorei sim, foi horroroso, era a minha

A NOÇÃO DE MORTE A

BREVE PRAZONÃO ME AS-SUSTA, NEMPERCO TEM-PO A PENSAR

NISSO

Q

Q

“Aqueles queprecisam de

ajuda para sesuicidar nãopedem maisdo que um

direito. Umademocracia

laica nãopode autori-zar a fé a di-

tar a formula-ção das leis”

MARIA FILOMENA MÓNICA

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sofrer mais e tão prolongadamente. Tinha 50 anos eera diabético desde a adolescência. Por causa dadoença amputaram-lhe as duas pernas, ao nível daraiz da coxa, perdeu também dois ou três dedos deuma mão e quatro da outra. Era totalmente depen-dente para os gestos mais elementares, como alimen-tar-se, vestir-se, lavar-se, satisfazer as necessidadesbásicas e administrar a insulina, e tinha escaras pro-fundas, sempre infectadas. A diabetes era de tão difí-cil controlo, que fazia episódios de coma. Era difícilultrapassar a violência daquele estado.

Já o seguia há uns meses quando me expressou avontade de morrer. Poderia fazê-lo sozinho, se sus-pendesse todos os tratamentos, mas envolveria umsofrimento atroz: mais episódios de coma, náuseas evómitos, fortes dores de cabeça, contracções muscu-lares, profundo mal-estar generalizado, hemorragias,falta de ar. Morreria, no máximo, em três semanas.Por isso, no mesmo dia em que assinou a alta, ajudei--o a morrer. Não quis mais nada, a não ser a presençada mulher – acho que as pessoas nestas alturas nãoquerem nada, querem é morrer –, agradeceu-me e euabreviei o seu sofrimento.

Ajudei mais pessoas a viver do que a morrer O acto em si nunca se banaliza. Claro que o envolvi-mento emocional também pesa, mas nunca deixa deser uma herança pesada. Não há dilema: ter uma pes-soa de quem gosto perto de mim a sofrer? Isso é con-dená-la. Todas as pessoas que me pediram ajuda es-tavam em profundo sofrimento, sem esperança devida que valesse a pena viver. Mantê-las vivas, issosim seria uma maldade horrorosa. Admito: se tivessetido coragem, teria começado a praticar eutanásiamais cedo. Vi tanto sofrimento inútil…

Reclamo para mim aquilo que dei a estas pessoas: apossibilidade de escolher. Planeei a minha morte logoa seguir a ser operado. A falta de ar é uma coisa horrí-vel. Sabe aquela sensação de que todo o ar do mundonão chega? De quem se vê embrulhado numa grandeonda sem conseguir chegar à superfície? É a total im-potência para fazer seja o que for. Disso sim tenhomedo. Como tenho esta insuficiência respiratória, dasduas, uma: ou fico comatoso e agradeço que medêem morfina para acelerar o processo, e então tenhouma morte santa; ou será com a mesma substânciacom que pratiquei eutanásia. Tenho um colega, aquem já pedi, que me vai ajudar.

As despedidas são difíceis, e esta, a definitiva, deveser complicadíssima. A única coisa que gostava de fa-zer era dar um beijinho aos meus filhos. Não queroque estejam presentes, mas faço questão que saibamcomo o pai morreu. De resto fiz tudo, gozei a vida queme fartei, vou de barriguinha cheia. E acho que hojeainda vale a pena viver. Apesar de ter ajudado estasquatro pessoas a morrer, sei que ajudei muito mais a viver. Muito mais.” W

Nota: todos os nomes usados são fictícios

família, se fosse católico diria que era uma santapessoa, embora fosse malandra e gostasse de coscu-vilhices. Ia tendo as suas coisinhas, mas era saudável.

O sítio onde se deve morrerSempre me expressou a vontade dela: se precisasse,não queria prolongar sofrimentos. Na fase final, teveuma série de problemas seguidos. Nem tive oportuni-dade de me despedir. Primeiro, foi uma pneumoniaforte, depois fez um enfarte do miocárdio e a seguiruma trombose cerebral. Ficou paralisada de um ladoe comatosa. O seu estado era irreversível e, com oconsenso de toda a família, dei-lhe uma ajudinhacom morfina. Diria que, neste caso, o termo antecipara morte se aplicou mesmo. Morreu em casa, nuncaquis ir para o hospital, e penso que é o sítio onde to-das as pessoas deveriam morrer…

A quarta pessoa foi um doente, talvez aquele que vi

ADMITO: SE TIVESSE

TIDO CORA-GEM, TERIACOMEÇADOA PRATICAREUTANÁSIAMAIS CEDO

Q

Salvaguardas Nos países onde a prá-tica é permitida, só seconsideram os pedi-

dos de doentes termi-nais ou em grande so-

frimento; é precisoque este pedido sejapersistente e espaça-do no tempo e é sem-

pre consultado ummédico independente