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Trechos sobre o Problema da Longitude, do livro “A História da Astronomia - Heather Couper e Nigel Henbest” A noite de 22 de outubro de 1707 apresentava-se enevoada e tempestuosa. Através da bruma assomavam 18 navios de guerra britânicos, liderados pelo Association, a grande nau capitânia do almirante sir Cloudesley Shovell. Ele enfrentava dificuldades para levar a sua frota para casa para a invernagem depois de uma campanha no Mediterrâneo Shovell acreditava que se encontravam bem a oeste da Britânia: um curso para o nordeste os levaria em segurança até o meio do Canal da Mancha. No entanto, às 19h30, o vigia do Association subitamente avistou ondas de arrebentação à frente. Antes que Shovell pudesse fazer algo, o navio estava sobre os recifes. O almirante ordenou que as armas fossem disparadas para advertir o restante da frota. No entanto, era tarde demais para o Associaton e três outros navios. Quando tocavam as ilhas Scilly, o tributo mortal no turbilhão daquela noite chegou a mais de 2 mil marinheiros – incluindo o próprio sir Cloudesley Shovell. O público britânico enfureceu-se. Como a frota poderia estar tão distante do seu curso? Alguns métodos criativos foram apresentados para ajudar os navios a encontrar o caminho em alto-mar. Por exemplo, dois eminentes matemáticos sugeriram que se ancorassem navios ao longo de todas as rotas comerciais do mundo, disparando morteiros ao mesmo tempo. Em 1714, o Parlamento precisava tomar providências. Tipicamente, nomeou um quadro de especialistas. Esse quadro incluía dois astrônomos de temperamentos tão diferentes quanto eram igualmente admirados – o reservado sir Isaac Newton e o exuberante Edmond Halley.

Problema Da Longitude

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Este texto aborda as diversas vicissitudes enfrentas para se definir a longitude durantes os séculos XVI e XVI. Tratava-se de um problema cuja solução determinaria os rumos da navegação astronômica, praticada ainda nos dias atuais.

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Trechos sobre o Problema da Longitude, do livro “A História da Astronomia - Heather Couper e Nigel Henbest”

A noite de 22 de outubro de 1707 apresentava-se enevoada e tempestuosa. Através da bruma assomavam 18 navios de guerra britânicos, liderados pelo Association, a grande nau capitânia do almirante sir Cloudesley Shovell. Ele enfrentava dificuldades para levar a sua frota para casa para a invernagem depois de uma campanha no Mediterrâneo

Shovell acreditava que se encontravam bem a oeste da Britânia: um curso para o nordeste os levaria em segurança até o meio do Canal da Mancha. No entanto, às 19h30, o vigia do Association subitamente avistou ondas de arrebentação à frente. Antes que Shovell pudesse fazer algo, o navio estava sobre os recifes. O almirante ordenou que as armas fossem disparadas para advertir o restante da frota.

No entanto, era tarde demais para o Associaton e três outros navios. Quando tocavam as ilhas Scilly, o tributo mortal no turbilhão daquela noite chegou a mais de 2 mil marinheiros – incluindo o próprio sir Cloudesley Shovell.

O público britânico enfureceu-se. Como a frota poderia estar tão distante do seu curso? Alguns métodos criativos foram apresentados para ajudar os navios a encontrar o caminho em alto-mar. Por exemplo, dois eminentes matemáticos sugeriram que se ancorassem navios ao longo de todas as rotas comerciais do mundo, disparando morteiros ao mesmo tempo.

Em 1714, o Parlamento precisava tomar providências. Tipicamente, nomeou um quadro de especialistas. Esse quadro incluía dois astrônomos de temperamentos tão diferentes quanto eram igualmente admirados – o reservado sir Isaac Newton e o exuberante Edmond Halley.

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Newton e Halley participavam do grupo porque a astronomia era o segredo para navegar ao redor do planeta Terra. Você pode localizar a sua posição ao norte ou ao sul do Equador simplesmente verificando a altura da estrela polar à noite, conforme os navegadores sabem desde antes do alvorecer da história. Na época de Shovell, os navegadores também tinham tabelas da posição do Sol para qualquer data do ano, e também era fácil medir a altura do Sol ao meio-dia. Isso lhes fornecia a sua latitude.

No entanto, a longitude – a sua posição a leste ou a oeste – era outra questão completamente diferente. Não existe essa coisa de “estrela polar” nessas direções: tudo no céu parece girar, do leste para o oeste, uma vez que a Terra dá uma volta sobre si mesma a cada 24 horas.

O tempo é o seu melhor amigo nesse caso. Se for meio-dia onde você se encontra, e você souber que são 6 horas da tarde em Londres, então você deve estar a um quarto do caminho ao redor da Terra a contar de Londres – na longitude de Nova Orleans ou das ilhas Galápagos1.

Hoje em dia, é fácil descobrir a hora na Inglaterra – basta ver na internet. No entanto, sir Cloudesley Shovell, é claro, não podia fazer isso. Do Association, ele podia calcular o seu próprio horário, mas ainda assim precisava saber que horas eram em Londres.

Na reunião, Isaac Newton leu as notas que havia preparado, comparando quatro diferentes métodos de encontrar a longitude, e sentou-se. Apesar de toda a erudição de Newton, a comissão não entendeu o que o grande homem estava realmente recomendando. Depois de algumas discussões, porém, o Parlamento ofereceu o Prêmio da Longitude: a tremenda soma de 20 mil libras esterlinas a quem encontrasse um meio de calcular a longitude no mar.

[...]

O jovem monarca, Carlos II, recentemente2 conquistara uma esposa francesa, Louise de Kérouaille, a quem ele elevou para tornar-se a duquesa de Portsmouth. (Por meio de seu filho, o duque de Richmond, Louise é uma ancestral distante das duas esposas do atual príncipe Charles – a princesa Diana de Gales e Camila, duquesa da Cornualha.)

Na época, o povo inglês temia que Louise estivesse espionando para o seu país de origem. E também se preocupava com o problema da perda de navios no mar: a tragédia de sir Cloudesley Shovell ainda perdura no futuro, mas o papel britânico como a superpotência naval do mundo dependia da navegação em segurança nos oceanos.

Essas duas questões uniram-se de modo bastante inesperado. Um francês próximo a Louise, um astrônomo amador chamado St. Pierre, segredou-lhe que sabia como resolver o problema da longitude. Louise, por sua vez, segredou o assunto ao rei. Em dezembro de 1674, Carlos II reagiu designando uma comissão real.

Essa comissão incluía Robert Hooke e Christopher Wren; mas a arma secreta deles era um jovem astrônomo chamado John Flamsteed. Nascido em Derbyshire, as observações de Flamsteed

1 [Nota do CCD] Na verdade, nas condições dadas, apenas um dos lugares é possível! Qual?2 Aqui o texto volta à 1671.

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haviam impressionado grandemente a Royal Society. Então ele persuadiu o rei de que a Inglaterra precisava de um Observatório Real onde os astrônomos pudessem resolver o problema da longitude.

Exatamente naquele dia, Carlos designou Flamsteed como seu “observador astronômico” -, a quem hoje chamamos de astrônomo real. Wren sugeriu que o observatório fosse construído no local de uma torre em ruínas, a vários quilômetros a leste de Londres, no parque de Greenwich.

Carlos II, porém, não gostava muito de sustentar financeiramente as suas idéias. O observatório foi pago com a venda de pólvora velha, ao passo que os materiais foram reciclados de construções reais em demolição. Flamsteed ficou insatisfeito com o salário de 100 libras por ano; e também teria de pagar por todos os seus telescópios e outros equipamentos astronômicos.

Apesar disso tudo, Flamsteed tinha um trabalho invejável. E se esforçou para produzir resultados. O que um navegador no mar precisava, Flamsteed sabia, era um meio de observar o céu e deduzir a hora em sua terra. Em outras palavras, um relógio celestial.

Galileu sugerira usar as luas de Júpiter, que giravam constantemente ao redor do planeta gigante como quatro ponteiros de um relógio. Em princípio, era uma ótima ideia. Na França, Giovanni Cassini usara as luas de Júpiter para calcular a longitude em uma pesquisa importante sobe o país, a qual reduziu a área substancialmente. O rei Luís XIV não gostou muito, resmungando: “Os meus astrônomos tiram-me mais territórios do que meus inimigos”.

No entanto, era impossível avistar Júpiter com clareza através de um telescópio no balanço do mar. Flamsteed precisava de outro cronômetro no céu. E voltou os olhos para a Lua.

Todos os meses, a Lua gira igualmente no céu. É possível pensar na Lua como o ponteiro de um grande relógio

Embora doentio na juventude, John Flamsteed, o primeiro astrônomo real, viveu até os 73 anos de idade, e produziu o mais preciso catálogo estelar da sua época. Flamsteed também fez o primeiro avistamento conhecido do planeta Urano, em 1690 - mas o catalogou como estrela.

cósmico, movendo-se contra o pano de fundo das estrelas. Calculando meticulosamente a posição da Lua, é possível determinar a hora. Essa era a base da ideia de St. Pierre, embora fosse necessário muito mais trabalho do que ele imaginava.

Antes de qualquer coisa, as marcações sobre o mostrador cósmico não são todas cuidadosamente espaçadas como as marcas dos minutos na face de um relógio: as estrelas estão espalhadas por toda a parte. Usando seus telescópios, Flamsteed teria de calcular a posição das estrelas com muito maior exatidão do que o grande astrônomo de um século antes, Tycho Brahe.

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Além disso, a Lua não é um cronômetro muito bom: ela não se desloca a uma velocidade constante no céu. Flamsteed sabia que precisaria calcular também os movimentos da Lua. E, para os navegadores usarem a Lua, ele precisaria prever sua posição no futuro. Isso era um desafio. Na época, ninguém sabia por que a Lua se desloca no céu, portanto, não existia uma teoria decente que permitisse calcular a sua posição futura.

No entanto, Flamsteed era determinado e obstinado. Ele passou os quarenta anos seguintes observando sistematicamente o firmamento em todas as noites claras, muito embora na juventude tivesse uma constituição frágil.

[…]

Durante o seu furor, sir Cloudesley perdeu a frota e a vida. Durante as investigações, Newton – que então deixara Cambridge e era diretor da Casa de Fundição em Londres – considerou quatro alternativas. A sugestão de navios ancorados disparando morteiros era evidentemente ridícula. Usar as luas de Júpiter – conforme o francês fizera em terra – era impossível no mar. Construir um relógio de pêndulo que funcionasse entre as oscilações do oceano parecia inexequível. A ideia de usar a Lua – o incentivo original para a criação do Observatório de Greenwich – estava a meio caminho, com o catálogo estelar de Flamsteed. No entanto, ninguém ainda conhecia satisfatoriamente os movimentos da Lua.

A oportunidade surgiu quando Flamsteed morreu, em 1719. Halley foi designado como o segundo astrônomo real -, muito embora estivesse então com 63 anos de idade. Ele sabia que seriam necessários dezoito anos para acompanhar todos os complexos movimentos da Lua no céu, mas encarou a tarefa com prazer.

Em 1730, Halley recebeu a visita de um relojoeiro de Yorkshire. John Harrison afirmava que poderia construir um relógio que marcaria as horas no mar. Em vez de usar um pêndulo, o seu primeiro cronômetro – um relógio de navegação – tinha dois braços com pesos que oscilavam para frente e para trás, presos entre si por molas. Ele foi testado em uma viagem a Lisboa, em 1736. O cronômetro teve um bom desempenho, provando que Isaac Newton (então falecido) estava errado.

Esse magnífico relógio foi o primeiro instrumento capaz de indicar a hora com precisão a bordo de um navio. Em vez de um pêndulo, ele tem dois pesos – ligados por molas- que oscilam para trás e para frente. John Harrison levou sete anos para construir seu relógio, atualmente chamado H1, cuja eficácia se confirmou em uma viagem de teste a Lisboa.

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Mas Harrison queria fazer melhor.

Uma corrida – ainda que em passo de tartaruga- foi então deflagrada entre o cronômetro e a Lua. Halley continuou as suas observações da Lua até morrer, em 1742 – na sua poltrona predileta no Observatório de Greenwich, com uma taça de vinho tinto na mão. Do outro lado, na Alemenha, um astrônomo chamado Tobias Mayer usou algumas técnicas matemáticas novas com base na teoria da gravidade de Newton, juntamente com as posições de Greenwich, para publicar uma tabela em que a Lua poderia ser localizada no ano seguinte.

Finalmente, todos os ingredientes haviam sido reunidos. Agora os navegadores podiam determinar a sua longitude usando a Lua, como Louise de Kérouaille havia segredado ao rei Carlos II mais de oitenta anos antes.

No entanto, Harrison não ficara parado. Seu cronômetro final, porém, levou trinta anos para ser aperfeiçoado. Com a aparência de um relógio de bolso avantajado, ele funcionou perfeitamente durante uma viagem a Barbados. Mesmo assim, o governo não entregaria de imediato a recompensa devida em dinheiro. Harrison – então com 80 anos de idade – só recebeu o prêmio depois de apelar diretamente ao rei. Parece que Jorge III teria respondido: “Por Deus, Harrison, cuidarei para que seja ressarcido!”

No final do século XVIII, a astronomia tinha solucionado duas das questões que haviam sido da maior gravidade uma centena de anos antes: como se localizar nas viagens ao redor do planeta; e como os planetas se mantêm nas órbitas ao redor do Sol.

As duas vias se encontraram nas viagens do famoso explorador, o comandante James Cook. Em suas jornadas ao redor do globo, Cook usou ambos os métodos de navegação observando o “ponteiro” celestial da Lua e acompanhando o tiquetaquear de uma réplica do cronômetro de Harrison a bordo do seu navio sempre oscilante.

Na primeira viagem de Cook, de 1768 a 1771, ele mapeou a costa da Nova Zelândia e reivindicou a posse da Austrália em nome da Coroa Britânica. Muito embora estivesse a meio caminho da volta ao mundo, Cook foi capaz de calcular a sua posição muito melhor do que o infeliz sir Cloudesley Shovell apenas duas gerações antes.