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1 PRODUÇÃO DO CARNAVAL EM ESCOLAS DE SAMBA: TRAÇO DA ECONOMIA DA CULTURA EM FLORIANÓPOLIS COM REFLEXOS NA ESCALA URBANA Hoyêdo Nunes Lins (UFSC E-mail: [email protected]) Kamilly dos Santos Ribeiro (UFSC E-mail: [email protected]) Área 7 Desenvolvimento Regional e Urbano Resumo A economia da cultura representa área de pesquisa e formulação de políticas que adquiriu vulto no Brasil recentemente, refletindo tendência mais antiga em outros países. O carnaval, devido à sua presença histórica, à direção assumida pelos festejos principalmente nas grandes cidades onde a produção do desfile de escolas de samba virou atividade que se desdobra por meses a cada ano , ao envolvimento de grandes contingentes em numerosas comunidades, geralmente de menor renda, e à mobilização de volumosos e diversificados recursos, constitui importante elemento da economia da cultura no país. O estudo se ocupa dessa temática focalizando um assunto específico: o processo produtivo do desfile de carnaval de uma escola de samba de Florianópolis, a Protegidos da Princesa, a mais antiga das agremiações do gênero nessa cidade. Em grande parte, o texto representa registro de iniciativa cujo maior destaque foi uma pesquisa direta junto à instituição no segundo semestre de 2014. São descritas em detalhe as várias etapas da chamada cadeia produtiva do carnaval da Protegidos e são abordados alguns reflexos socioeconômicos da preparação do seu desfile, que ocupa praticamente todo o segundo semestre de cada ano nas comunidades implicadas (pertencentes ao Maciço do Morro da Cruz, próximo ao centro da cidade). Palavras chaves: Economia da cultura, escolas de samba, cadeia produtiva, Florianópolis “Batuque é um privilégio Ninguém aprende samba no colégio” (Noel Rosa) 1 1 Introdução O tema deste artigo inscreve-se em área de estudos acadêmicos e proposição de políticas que, segundo parece, ganha terreno no Brasil: a economia da cultura. O foco é bem específico, como convém a texto com limitação de tamanho. De perfil exploratório, o trabalho privilegia um aspecto da economia da cultura com inquestionável destaque no país, a produção do carnaval. E não se trata da festa em termos gerais, mas da sua manifestação em escolas de samba, capturado que foi o carnaval, ao menos nas maiores cidades, pela lógica da competição (em grandiosos desfiles) e pela comunicação de massa. A atenção recai na Protegidos da Princesa, a mais antiga das escolas de samba em atividade no carnaval de Florianópolis, incrustada em comunidades do chamado Maciço do Morro da Cruz, que ladeia o centro urbano. O objetivo é mostrar como se dá, no âmbito dessa instituição, a produção do evento que representa o clímax do percurso cumprido por meses a 1 Versos de Noel Rosa no samba Feitio de Oração, composto em parceria com Vadico em 1932.

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PRODUÇÃO DO CARNAVAL EM ESCOLAS DE SAMBA: TRAÇO DA ECONOMIA

DA CULTURA EM FLORIANÓPOLIS COM REFLEXOS NA ESCALA URBANA

Hoyêdo Nunes Lins (UFSC – E-mail: [email protected])

Kamilly dos Santos Ribeiro (UFSC – E-mail: [email protected])

Área 7 – Desenvolvimento Regional e Urbano

Resumo

A economia da cultura representa área de pesquisa e formulação de políticas que adquiriu

vulto no Brasil recentemente, refletindo tendência mais antiga em outros países. O carnaval,

devido à sua presença histórica, à direção assumida pelos festejos principalmente nas grandes

cidades – onde a produção do desfile de escolas de samba virou atividade que se desdobra por

meses a cada ano –, ao envolvimento de grandes contingentes em numerosas comunidades,

geralmente de menor renda, e à mobilização de volumosos e diversificados recursos, constitui

importante elemento da economia da cultura no país. O estudo se ocupa dessa temática

focalizando um assunto específico: o processo produtivo do desfile de carnaval de uma escola

de samba de Florianópolis, a Protegidos da Princesa, a mais antiga das agremiações do gênero

nessa cidade. Em grande parte, o texto representa registro de iniciativa cujo maior destaque

foi uma pesquisa direta junto à instituição no segundo semestre de 2014. São descritas em

detalhe as várias etapas da chamada cadeia produtiva do carnaval da Protegidos e são

abordados alguns reflexos socioeconômicos da preparação do seu desfile, que ocupa

praticamente todo o segundo semestre de cada ano nas comunidades implicadas (pertencentes

ao Maciço do Morro da Cruz, próximo ao centro da cidade).

Palavras chaves: Economia da cultura, escolas de samba, cadeia produtiva, Florianópolis

“Batuque é um privilégio

Ninguém aprende samba no colégio”

(Noel Rosa)1

1 Introdução

O tema deste artigo inscreve-se em área de estudos acadêmicos e proposição de

políticas que, segundo parece, ganha terreno no Brasil: a economia da cultura. O foco é bem

específico, como convém a texto com limitação de tamanho. De perfil exploratório, o trabalho

privilegia um aspecto da economia da cultura com inquestionável destaque no país, a

produção do carnaval. E não se trata da festa em termos gerais, mas da sua manifestação em

escolas de samba, capturado que foi o carnaval, ao menos nas maiores cidades, pela lógica da

competição (em grandiosos desfiles) e pela comunicação de massa.

A atenção recai na Protegidos da Princesa, a mais antiga das escolas de samba em

atividade no carnaval de Florianópolis, incrustada em comunidades do chamado Maciço do

Morro da Cruz, que ladeia o centro urbano. O objetivo é mostrar como se dá, no âmbito dessa

instituição, a produção do evento que representa o clímax do percurso cumprido por meses a

1 Versos de Noel Rosa no samba Feitio de Oração, composto em parceria com Vadico em 1932.

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cada ano: o desfile oficial das escolas de samba do grupo especial em Florianópolis.

Apresentar aspectos centrais desse processo produtivo também significa tangenciar a

problemática dos reflexos socioeconômicos nas comunidades envolvidas, uma questão

realçada no artigo. Por esse ângulo, o estudo se aproxima do debate sobre o desenvolvimento

na escala local, mormente em meio urbano.

Baseado em pesquisa direta, com visitas às instalações da Protegidos da Princesa (cujo

barracão fica no bairro do Itacorubi, embora a principal comunidade envolvida diga respeito

ao Morro do Mocotó), no segundo semestre de 2014, que resultaram em manuseio de

documentos disponibilizados e em entrevistas, o artigo possui três seções além desta

introdução e das considerações finais. Na próxima parte discorre-se sobre a economia da

cultura, tanto em termos gerais quanto com uma dupla especificação: de um lado, os vínculos

entre atividades culturais e ambiente urbano; de outro, a presença do carnaval na economia da

cultura no Brasil. Depois se fala da produção do carnaval como aspecto da economia da

cultura, utilizando a noção de cadeia produtiva. Em seguida, descreve-se com detalhes a

produção do carnaval da Protegidos da Princesa, em narrativa completamente instruída pela

pesquisa de campo. Por último, também refletindo os ensinamentos da pesquisa direta,

aborda-se a questão das interações e dos reflexos socioeconômicos da produção desse

carnaval.

2 Economia da cultura: aspectos gerais, ambiente urbano e o espaço do carnaval

A expressão “economia da cultura” designa campo de pesquisa, ressoando em

formulação de políticas, voltado às atividades ligadas à produção e circulação e ao consumo

de produtos e serviços culturais, incluindo a gestão das correspondentes iniciativas (ROUET,

1998). Sua emergência, refletindo-se em elaborações teóricas relevantes, é relativamente

recente, não autorizando visão retrospectiva até muito antes da década de 1960, algo que o

escasso interesse histórico da teoria econômica pelo setor e também as condições de contexto

ajudam a explicar (TOLILA, 2007).

2.1 Contornos gerais e uma problemática específica da economia da cultura

Na segunda metade do século XX, pela importância crescente das atividades culturais

na economia de diferentes países e regiões – como se observa especialmente nos Estados

Unidos (REIS, 2007a), mas também, por exemplo, no Canadá (LESSA, 2002) –, esse campo

ganhou envergadura a ponto de ensejar a criação, naquele país, de uma associação e de um

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periódico acadêmico de circulação internacional2. Esse percurso expressou o dinamismo

econômico de parte daquele período, designado “era dourada” do capitalismo por alguns

autores (MARGLIN, SCHOR, 1990), que estimulou as “indústrias culturais” e fixou nos

produtos culturais o rótulo de mercadoria (JAMESON, 1997).

Mas a referida área não se apresenta imune a dificuldades de natureza teórica. Um dos

aspectos é a complexidade, perceptível em tentativas de sistematização do conhecimento

acumulado (BENHAMOU, 2007), incluindo as controvérsias quanto à delimitação.

Sobre questões ligadas à teorização, é útil o teor da citação a seguir:

Num nível mais geral, para além da teorização em termos estritamente econômicos, vale

evocar, como ilustração da amplitude e da complexidade da temática, a ideia segundo a qual

os objetos (mercadorias, serviços) em torno dos quais gira parte importante das interações

sociais têm dimensões ou significados distintos. Pode-se reconhecer, de um lado, uma

dimensão (ou significação) econômica propriamente dita, sem obstáculos (ao menos

teoricamente falando) à quantificação (riquezas geradas, contingentes empregados, impostos

recolhidos). Mas existe igualmente uma dimensão (ou significação) simbólica, relacionada a

desejos e valores, especificamente valores culturais, que espelham (e se traduzem em)

atitudes, práticas e aspectos intelectuais e morais da vida. Refratária à quantificação, essa

outra dimensão tem a ver, como propõem alguns, com o “capital cultural” [...] (LINS, 2011, p.

234).

Sobre a problemática da delimitação da área, que remete a questões conceituais, é

importante salientar

[...] que economia da cultura não é exatamente a mesma coisa que economia criativa, uma

expressão de uso também frequente na literatura e considerada em iniciativas de política. Essa

duplicidade constitui, em si, assunto para debate, mas vale assinalar que referir à segunda

normalmente envolve considerar direitos de propriedade intelectual, principalmente direitos

autorais. Vários setores ou segmentos teriam lugar nessa designação [...] (LINS, 2011, p. 235).

De fato, a chamada economia criativa engloba segmentos e atividades como

desenvolvimento de software, propaganda, moda, design, arquitetura e mesmo artesanato,

alguns dos quais, exibindo componentes culturais, lograram atingir nas últimas décadas uma

grande vitalidade econômica. Mas a articulação com a economia da cultura não é integral,

pois nesta a dimensão simbólica cumpre importante papel, ao lado da dimensão econômica3.

A economia da cultura relaciona-se, conforme assinalado por Reis (2007b, S.p.),

[...] aos produtos e serviços que têm, ao mesmo tempo, potencial econômico e valor simbólico

(mensagem, identidade, valores). Encaixam-se nesse critério, por exemplo, o artesanato, as

indústrias culturais, o turismo cultural, o patrimônio cultural, a moda, o design, os

equipamentos culturais (teatros, cinemas, museus etc.)

Importante eixo de pesquisa e formulação de políticas em torno da economia da

cultura refere-se à concentração geográfica de atividades de produção e comercialização de

2 Trata-se da Association for Cultural Economics, surgida nos anos 1970, tornada Association for Cultural

Economics International em 1993. O periódico chama-se Journal of Cultural Economics. 3 Um útil esforço de clarificação do sentido dessas modalidades é o artigo de Friques (2013).

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objetos e serviços culturais, notadamente em ambientes urbanos. As iniciativas tanto

analíticas como de promoção consideram que possui mão dupla, quanto aos reflexos e

impulsos, a relação entre economia da cultura e realidades urbanas.

De um lado, a aglomeração dessas atividades, quer dizer, sua condição socioespacial,

inseparável da atmosfera urbana e mesmo regional, é vista como vetor que contribui para o

desenvolvimento da economia da cultura, haja vista os benefícios das externalidades,

economias de aglomeração e interações. De outro lado, o fortalecimento da produção e

comercialização de objetos e serviços culturais tende a favorecer e impulsionar, pelas

diferentes oportunidades (ocupação, renda) que propicia, a recuperação de ambientes

sobretudo urbanos carentes de vitalidade.

As denominações, sugeridas pelas experiências em diferentes países, e as escalas de

observação são variadas. Assim, Santagata (2002) e Mizzau e Montanari (2008) falam em

distritos culturais, que podem ter a escala de uma região ou de um ambiente urbano (e

também rural), com intensas relações de vizinhança, geralmente povoados de

empreendimentos de natureza cultural (micro e pequenas empresas, ateliers) e instituições

vinculadas.

Grande parte das abordagens contempla situações em espaços intraurbanos.

Montgomery (2003, p. 293), por exemplo, estuda o que chama de quarteirões culturais,

salientando as iniciativas de política voltadas à promoção das respectivas atividades: “[...]

quarteirões culturais são frequentemente vistos como parte de uma estratégia maior de

integração entre o desenvolvimento cultural e o econômico. Isso aparece vinculado, em geral,

ao redesenvolvimento ou regeneração de uma área urbana central selecionada [...]. Sentido

semelhante aparece em Stern e Seifert (2010), que empregam a expressão clusters culturais

para discutir a revitalização dos vínculos sociais ao nível das relações de vizinhança.

A mais divulgada experiência de promoção nesses termos diz respeito a Londres, cujas

iniciativas parecem ter sido precursoras. Nesse caso, a ênfase recaiu, até onde se pode

perceber, na economia criativa, pela importância dada aos direitos de propriedade.

Os instrumentos da experiência londrina incluíram desde esquemas específicos de

financiamento até a instalação de “bairros criativos”, idealizados para que artistas e criadores

em geral pudessem dispor de espaços para suas atividades em situação de

proximidade/contiguidade. O alvo, via de regra, foram áreas centrais decadentes, com imóveis

restaurados pelo poder público e disponibilizados, com aluguéis a preços módicos, até o

momento em que os empreendimentos conseguissem subsistir por conta própria. A ideia era

que, atingido esse estágio, ocorresse a transferência e a cessão dos lugares para outros

empreendimentos, em contínua sucessão (LINS, 2011, p. 238).

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Mas a experiência londrina é só uma entre muitas, seja na Grã-Bretanha (TAYLOR,

2004) ou em outros países (MONTGOMERY, 2004). A motivação tem claramente a ver com

os acenos e possibilidades para a socioeconomia local, resultantes da concentração espacial de

atividades de produção de bens e serviços culturais (e artísticos) e daquelas situadas a

montante e a jusante das primeiras, como destacam Markusen e King (2003) e Markusen,

Schrock e Cameron (2004).

2.2 Um olhar sobre economia da cultura no Brasil e o lugar do carnaval

No Brasil, só nos últimos anos o campo da economia da cultura logrou atrair alguma

atenção em termos governamentais e também acadêmicos, não obstante a diversidade

sociocultural do país e o imenso potencial que isso representa em vários sentidos. Iniciativa

institucional importante para ampliar e aprimorar o conhecimento sobre a produção cultural

brasileira tomou a forma do documento intitulado Sistema de Informações e Indicadores

Culturais 2003-2005 (SISTEMA, 2007), fruto de cruzamentos de classificações de atividades

utilizadas em diferentes órgãos (como o IBGE).

Aquele esforço institucional não se limitou a esse documento. Dois outros foram

produzidos, no mesmo sistema de parceria, o mais recente publicado no segundo semestre de

2013 (SISTEMA, 2013).

Entre as informações disponibilizadas está a identificação das atividades integrantes

do setor cultural e o rol das profissões e ocupações consideradas pelo Sistema como de

natureza tipicamente cultural, na indústria de transformação, no comércio e nos serviços.

Emerge dos dados um amplo e profundamente diversificado setor cultural no país. Os

números sobre o peso dessa economia, quanto às empresas (majoritariamente de menor porte)

e ao pessoal ocupado, encorpam a percepção sobre o que significa a cultura no Brasil, apesar

das variações entre os três grandes setores da economia.

O reconhecimento institucional da importância desse setor para o país, tendo em vista

os sinais relativamente à geração de postos de trabalho e de renda, representando avanços em

termos de inclusão social, transparece na atuação do Banco Nacional de Desenvolvimento

Econômico e Social (BNDES). O maior destaque é, talvez, o Programa BNDES para o

Desenvolvimento da Economia da Cultura (BNDES Procult), destinado ao financiamento de

projetos e planos de negócios de empresas que operam no setor (BNDES, S.d.).

O carnaval é uma expressão da cultura e os processos e atividades que concorrem para

a sua realização perfilam-se como integrantes da economia da cultura. O carnaval expressa a

cultura porque, de origens historicamente muito remotas e presença mais que milenar ao

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longo da aventura humana no planeta (COLAÇO, 1988), sendo incorporado no século XV

pelo calendário da igreja católica como festa de fartura e desvarios logo antes da Quaresma

(SEBE, 1986), sua manifestação é bastante diversa e reflete as condições socioculturais dos

ambientes (países, regiões) onde ocorre. No Brasil, o perfil europeu do carnaval (introduzido

pelos portugueses) foi adaptado aos trópicos com elementos indígenas e africanos. Estes

afetaram especialmente a música, tornando-se o samba o ritmo por excelência, em evolução

(passando pelo maxixe) desde o lundu trazido da África pelos escravos (SODRÉ, 1998).

Três períodos básicos são identificados por Queiroz (1992) na história do carnaval no

Brasil. O primeiro refere-se ao “entrudo” (entrada), trazido pelos portugueses, com

brincadeiras e comportamentos que beiravam a agressão (banhos de água fria, ataques com

ovos podres), vedado aos escravos e proibido na metade do século XIX (TRAMONTE,

1996). O segundo período, relativo ao “grande carnaval”, registrou incidência principalmente

urbana e o envolvimento de camadas médias e, sobretudo, abastadas da população, aptas a

gastar com vestimentas caras. Mas, aos poucos, a crescente participação de afrodescendentes

e outros contingentes populares fez emergir e se consolidar o “pequeno carnaval” ou

“carnaval popular”, sem empecilhos à participação de quem quer que fosse.

Nessa terceira fase, surgem no Rio de Janeiro, nos anos 1920, as escolas de samba,

“[...] sociedades civis de cultura e lazer, sem finalidades lucrativas”(QUEIROZ, 1992, p. 74).

Criadas em ambientes comunitários e populares, essas agremiações converteram-se ao longo

do tempo em prática cultural com importantes reflexos nas relações socioeconômicas e

políticas protagonizadas no seu entorno. A essas instituições, em primeiro lugar, faz

referência a expressão “mundo do samba”, evidenciando a preponderância dessa modalidade

musical no ritmo e na coreografia do carnaval (LEOPOLDI, 1978).

Com o início dos desfiles das escolas de samba, na metade da década de 1930,

deflagrou-se a trajetória do evento que posteriormente ganharia o (ambicioso e apoteótico)

epíteto de “maior espetáculo da Terra”. A concorrência, a rivalidade e o simbolismo que

permeiam a preparação e realização desses desfiles, assim como os vários interesses em jogo,

tornaram a produção do carnaval em cada escola de samba um feixe grande, complexo,

diversificado e oneroso de atividades.

É a produção desses desfiles que, talvez antes de tudo, autoriza referir ao carnaval

brasileiro com o uso da expressão “economia da cultura”. Mas cabe no escopo desta,

igualmente, a miríade de atividades associadas às diversas maneiras de festejar o carnaval e de

fazê-lo acontecer, fora da “institucionalidade” das escolas de samba e com presença em todas

as latitudes do país.

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3 Produção do carnaval em escolas de samba: aspecto da economia da cultura no Brasil

O estudo do aspecto da economia da cultura representado pelo carnaval, especialmente

no âmbito de escolas de samba que, como no Rio de Janeiro, participam de desfiles com

sentido de competição, encontra na ideia de cadeia produtiva um suporte analiticamente útil4.

Por cadeia produtiva, como assinalam Dantas, Kertsnetzky e Prochnik (2002), entende-se a

sucessão de etapas interligadas, com transformação e transferência de insumos, até a

disponibilização de um produto. Divisão do trabalho, conjugação de competências e recursos

diversos e interações de diferentes tipos, abrangências e intensidades, são elementos dessas

cadeias.

Tanto quanto as articulações produtivas (e envolvendo igualmente serviços)

registradas em quaisquer setores, a preparação dos desfiles das escolas de samba pode ser

considerada à luz da problemática das cadeias produtivas porque tal procedimento não

representa outra coisa senão um conjunto de atividades sequenciadas que têm como finalidade

última a apresentação oficial. O movimento como um todo pode ser descrito como um “[...]

processo cujo desenrolar, etapa por etapa, da pré-produção ao consumo, leva a um produto

final, que é consumido por milhares de pessoas ao vivo e milhões de telespectadores no país e

no mundo” (PRESTES FILHO, 2009a, p. 20).

Uma descrição detalhada da cadeia produtiva da economia do carnaval em escolas de

samba do Rio de Janeiro pode ser encontrada em Prestes Filho (2009b). Uma apresentação

mais sintética, privilegiando somente aspectos gerais dos grandes elos dessa cadeia, é

oferecida em Prestes Filho (2012).

Na abordagem mais minuciosa (PRESTES FILHO, 2009b), um leque abrangente de

segmentos e atividades é considerado, para além dos relativos às escolas de samba do grupo

principal naquela cidade. O autor refere ao desfile das escolas de samba do grupo especial,

com as atividades (direta e indiretamente) ligadas à “fabricação” e divulgação do seu “produto

carnaval”, mas também aos desfiles das escolas do grupo de acesso e dos blocos e bandas;

alude aos direitos de propriedade intelectual e da personalidade (como os de imagem);

menciona as políticas públicas de investimentos em infraestrutura e incentivo/fomento; fala da

produção de vestimentas, calçados e adereços, sem a qual os desfiles simplesmente não

podem ocorrer; discorre sobre as esferas comerciais, incluindo a exportação; e evoca diversas

atividades de cunho social, cultural e profissional.

4 Esse não é o único ângulo explorado na literatura sobre o assunto. Matos e Britto (2014) utilizam ferramentas

analíticas de corte neo-schumpeteriano e falam em “sistema produtivo e inovativo do carnaval carioca”. Tendo

em vista os objetivos deste artigo, optou-se pelo enfoque de cadeias produtivas.

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Tudo isso significa envolvimento, com estímulo e dinamização, de diversos

profissionais e empresas e, sobretudo, de comunidades, geralmente de baixa renda. No que

toca às escolas de samba, o centro de gravidade é o chamado barracão, espaço onde se

estruturam, organizam e executam diferentes funções e de onde emanam impulsos com

diferentes “conteúdos” e alcances. Todas as atividades de “fabricação” do entretenimento que

o desfile das escolas significa podem ser analiticamente condensadas, na opinião de Prestes

Filho (2009b), em quatro grandes grupos ou elos de uma cadeia produtiva.

O primeiro desses grupos ou elos diz respeito à pré-produção, envolvendo

concepção/criação e incluindo enredo, samba enredo, fantasias e adereços e

também carros alegóricos; nessa etapa são definidos os insumos, conforme as

determinações da concepção/criação.

O segundo grupo engloba a produção propriamente dita, com transformação dos

insumos – adquiridos segundo as diretrizes recebidas da fase anterior – em

“objetos carnavalescos” (fantasias, adereços, alegorias, carros alegóricos); trata-se

de feixe de procedimentos realizados no espaço do barracão, em ambientes de

atelier e de oficina, e que mobilizam volumosos recursos financeiros e numerosas

pessoas em diferentes funções.

O terceiro grande elo é o da distribuição do produto representado pelo

entretenimento, quer dizer, o seu encaminhamento ao mercado com vistas ao

consumo; os meios de comunicação, nas suas distintas vertentes, desempenham

importante papel no processo de distribuição.

O consumo, que se constitui no quarto grande passo, ocorre no desfile oficial,

incidindo em aspectos tangíveis – o desfile em si, o samba apresentado, o

esplendor das fantasias e alegorias – e intangíveis – o simbolismo da escola, com

seu nome, sua origem e sua história, com os incrustados laços comunitários e de

vizinhança; mas o consumo também se apresenta em situações intermediárias ou

“intersticiais”, como nos ensaios das escolas em seus barracões.

Pertencem à órbita da economia do carnaval as incontáveis atividades, de maior ou

menor tamanho e sofisticação e de diferentes naturezas, que giram em torno desse

entretenimento e de sua produção. As escolas de samba não visam, propriamente, lucrar com

os desfiles, e mesmo a recompensa das que vencem a disputa não permite falar em objetivos

financeiros. Essas instituições despendem recursos, e em grande quantidade, com o propósito

principal, não parece equivocado asseverar, de permanecerem como “contadoras de histórias”

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nos desfiles e de bem representar suas comunidades de origem, por mais que o sentido

mercadológico tenha se apoderado do carnaval em muitos ambientes e circunstâncias.

Entretanto, a “fabricação” do carnaval representa elevados ganhos para os setores,

segmentos e atividades que formam a tessitura da cadeia produtiva, direta e indiretamente.

Isso é evidente, sobretudo, nas interações a montante na cadeia, com fornecedores diversos de

bens e serviços. Mas também ganham o setor de turismo (o aparato receptivo, com hotéis,

restaurantes e assemelhados, e o segmento de viagens, entre outros serviços), a indústria

editorial e gráfica, os setores audiovisual e fonográfico (transmissão por TV, divulgação por

CDs e DVDs), a indústria de instrumentos musicais (notadamente de percussão) e o ramo de

bebidas, para ficar só no que é mais notório.

Os reflexos são abrangentes e variados. No Rio de Janeiro, Prestes Filho (2009b)

estimou que o carnaval de 2006 traduziu-se no engajamento de milhares de trabalhadores

(algo entre 450 e 500 mil) nas diversas atividades e funções envolvidas, direta e

indiretamente. A “indústria” desse carnaval teria gerado um faturamento total, derivado dos

gastos realizados por pessoas, empresas, associações e órgãos públicos, de quase R$ 700

milhões, tendo cerca de 40% desse montante sido canalizado às remunerações dos

trabalhadores implicados.

Em escala de país, a movimentação financeira associada ao carnaval certamente atinge

a escala de bilhões de reais, considerando-se os grandes centros de realização dessa festa (Rio

de Janeiro, São Paulo, Recife, Salvador) e também as cidades menores (como Florianópolis).

Em todas, a produção e realização do carnaval, especialmente em escolas de samba, mas

também em diversas outras modalidades de manifestação, representam dinamização da

economia e oportunidades em termos de ocupação e renda. Na Bahia, por exemplo, Salvador

à frente, o carnaval, tornado um evento afro-elétrico-empresarial no dizer de Miguez e Loiola

(2011, p. 286), “[...] configurou-se como um mercado que extrapolou os limites da festa

carnavalesca propriamente dita”.

4 Produzindo carnaval em Florianópolis: a Escola de Samba Protegidos da Princesa

Aborda-se a produção do carnaval como aspecto da economia da cultura em

Florianópolis observando os procedimentos da Escola de Samba Protegidos da Princesa –

doravante designada Protegidos –, uma entre várias agremiações desse tipo que participam

dos desfiles oficiais do carnaval na cidade. Influenciou essa escolha o fato de se tratar da mais

antiga instituição do gênero em Florianópolis, embora as manifestações carnavalescas locais,

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como em outras latitudes brasileiras, remontem muito no tempo e apresentem diferentes

formas de expressão (CABRAL, 1972; COLAÇO, 1988; RAMOS, 1997; TRAMONTE;

1995).

A fundação da Protegidos ocorreu em 1948, com nome que homenageia a Princesa

Isabel, signatária da Lei Áurea em 13 de maio de 1988, o instrumento que aboliu a

escravatura no país. Essa escola de samba teve reconhecida a sua utilidade pública pela Lei

Municipal n. 777, publicada no Diário Oficial n. 8.134, de 13/09/1966. Atualmente, sua

designação formal é Grêmio Cultural Esportivo e Recreativo Protegidos da Princesa.

Em linha com os registros sobre estudos desse tipo em outras realidades locais no país,

notadamente o Rio de Janeiro – que tem no desfile das escolas de samba o evento mais

cintilante do seu carnaval –, falar em produção do carnaval no âmbito da Protegidos implica

referir a uma verdadeira rede de atividades e funções, protagonizadas por diversos tipos de

agentes, que admite referência como cadeia produtiva. Seus vários elos formam uma

considerável engrenagem, com clara divisão do trabalho e com desdobramento espacial que,

além das imediações do centro de gravidade das correspondentes atividades, alcança outros

ambientes, alguns bem distantes.

O espaço imediato, onde as relações em torno do carnaval envolvem práticas

cotidianas e interações do tipo face a face, mergulhadas em ambiente comunitário, refere-se

ao Maciço do Morro da Cruz ou Maciço Central de Florianópolis. Trata-se de conjunto de

morros, com orientação nordeste-sudoeste, que separa o triângulo central da cidade – em

ponta que se projeta na direção do continente, na porção centro ocidental da Ilha de Santa

Catarina – de bairros como Trindade, Itacorubi e Saco dos Limões.

Nesses morros o processo de ocupação foi desencadeado no começo do século XX e

produziu ao longo do tempo crescentes manchas de habitações muito precárias, ocupadas por

contingentes de baixa renda e designadas pela retórica oficial como Áreas de Interesse Social

(LINS, 2001). A comunidade do Morro do Mocotó, situada na face ocidental do referido

maciço, é a que mais sobressai no envolvimento com a Protegidos.

Pode-se falar sobre a cadeia produtiva do carnaval da Protegidos nos termos utilizados

por Prestes Filho (2009a,b) sobre as escolas de samba do Rio de Janeiro, em que o autor

salienta o aspecto de sequência de atividades, com transformação sucessiva e transferência de

insumos entre os elos. Cabe comentar que dizer “sequência” não significa referir a processo

em que as atividades se sucedem completamente, sem superposições temporais e/ou

produtivas. Paralelismos e concomitâncias crivam a preparação do carnaval na escola de

samba, sem que o sentido de encadeamento fique ausente.

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4.1 Providências iniciais: enredo, samba enredo e pré-produção

Segundo se observou na pesquisa de campo que subsidiou este estudo, o (por assim

dizer) ponto de partida na “fabricação” do carnaval da Protegidos diz respeito à escolha do

enredo, quer dizer, do tema que caracterizará a evolução da escola durante o desfile. Trata-se,

numa palavra, da “narrativa” protagonizada pela agremiação perante o público.

A diretoria administrativa da escola responde por essa tarefa, da qual dependem todas

as atividades enfeixadas na cadeia produtiva do seu carnaval. Conforme as informações

recolhidas na pesquisa, a própria organização do desfile, querendo isto referir inclusive à

disposição das várias alas da escola na passarela, é condicionada pelo enredo. Pode-se dizer,

portanto, que sua escolha constitui o “marco zero” da preparação/produção do carnaval.

Definido o enredo, têm início duas atividades distintas, embora conectadas. Uma

relaciona-se à etapa da pré-produção do carnaval. A outra diz respeito à seleção do samba

enredo.

A pré-produção inclui, em primeiro lugar, as funções de criação/concepção de

fantasias, adereços e carros alegóricos. Para as fantasias e adereços, é necessário, antes de

tudo, que o carnavalesco da escola – responsável pela criação com base no enredo – desenhe

todos os moldes, que são elaborados no próprio barracão. Os moldes são desenhados, um para

cada ala da escola, e passam a compor um “livro” que registra a concepção integral do

carnavalesco quanto ao desfile idealizado.

Uma cópia desse documento é entregue ao setor responsável pelas compras dos

materiais necessários à produção das fantasias e adereços. Tais aquisições ocorrem, de fato,

nessa fase inicial. Diferentes mercados são objeto dessas iniciativas, conforme os materiais

demandados. Uma relação obtida junto à Protegidos fornece uma ideia sobre a abrangência

setorial e geográfica das compras:

Borracha e plástico, geralmente comprados em São Paulo (mas nem sempre a

escola utiliza tais materiais)

Acetato, isopor e espuma, de utilização frequente e intensa, obtidos no mercado da

Grande Florianópolis, mais especificamente no município de São José;

Vestuário e calçados, comprados em Florianópolis ou, no caso de

indisponibilidade local, em São Paulo; observe-se que se compram calçados

somente para as alas e os quesitos principais, a saber, a comissão de frente, o casal

formado pelo mestre sala e pela porta bandeira, a bateria e, eventualmente, a ala

das crianças;

12

Madeira, utilizada especialmente nas bases dos carros alegóricos, adquirida na área

de Florianópolis;

Tecidos e outros artigos e artefatos têxteis, na maioria para a produção de fantasias

e adereços; a compra (para cerca de 80% das necessidades) é feita em conhecida

loja do Rio de Janeiro que oferece vários tipos de artigos para o carnaval,

constituindo-se, a rigor, num dos maiores fornecedores desses produtos na

América Latina; essa loja nem sempre pratica o melhor preço, mas a variedade, a

qualidade e a facilidade de crédito acabam por torná-la mais atraente do que

concorrentes em São Paulo; recorre-se ao segundo mercado só para acessórios não

encontrados no Rio de Janeiro, especificamente alguns produtos de origem

chinesa; os 20% restantes do que é empregado nas fantasias e adereços provêm de

São Paulo ou mesmo da área de Florianópolis, pois nem sempre o custo da viagem

compensa o deslocamento;

Produtos da metalurgia, adquiridos integralmente no município de Biguaçu, na

Grande Florianópolis;

Tintas, compradas na sua totalidade em Florianópolis;

Eletroeletrônicos, equipamentos e máquinas, obtidos junto ao comércio da Grande

Florianópolis ou no próprio município sede, em lojas que praticam os menores

preços.

Ao mesmo tempo realiza-se a seleção do samba enredo, o que geralmente ocorre na

primeira semana de outubro. A escolha ocorre meio de concurso do qual participam vários

sambas, e o vencedor é objeto de gravação no Rio de Janeiro, onde os recursos de

equipamentos e instrumentos musicais, entre outros, permitem realizar essa tarefa com o

necessário nível de adequação e profissionalismo.

A definição do samba é uma etapa especialmente estratégica na produção do carnaval.

De fato, é necessário levar em conta, além da óbvia vinculação com a “narrativa” a ser

executada pela escola, também a duração do desfile: uma hora e quinze minutos, querendo

isto dizer que o samba será cantado cerca de trinta vezes na passarela. Se o samba for muito

complexo e difícil de ser cantado, dificilmente agradará ao público, que certamente não

“reagirá” na forma de um envolvimento entusiasmado.

Pode acontecer igualmente de o samba favorecer bastante um aspecto da escola –

como a bateria, por exemplo –, sem contrapartida, ou até com comprometimento, em outros

setores, como a comissão de frente. Assimetrias desse tipo devem ser evitadas a todo custo,

13

pois tendem a significar prejuízo para a harmonia do desfile e, por conseguinte, representar

riscos na avaliação dos jurados5.

4.2 A produção propriamente dita do carnaval

A fase seguinte da preparação do carnaval diz respeito à produção propriamente dita.

As matérias primas e os insumos, adquiridos na etapa anterior, são recebidos e conferidos no

barracão da escola, e tem início o conjunto de atividades pelas quais esses materiais tomam a

forma de fantasias, adereços e carros alegóricos, de acordo com as indicações originárias do

processo de concepção/criação.

Os moldes das fantasias, sistematizados no “livro” anteriormente referido, são

enviados para empresa em São Paulo que disponibiliza o arame utilizado na estrutura de

sustentação das vestimentas e adereços. Mas a preparação dessa estrutura exige,

primeiramente, a montagem de um modelo piloto, que é enviado à escola para avaliação por

parte do carnavalesco. Quando aprovado, esse modelo dá lugar à produção do conjunto de

estruturas na quantidade especificada.

Uma cópia do mencionado “livro” de moldes é entregue à costureira responsável pelos

cortes das fantasias. Geralmente a escola contrata cerca de cinco costureiras para a preparação

das fantasias, ficando um delas responsável pela tarefa de cortar todo o conjunto, de todas as

alas. Executa-se inicialmente um modelo de corte que representa uma fantasia piloto, em

conformidade com o “livro” de moldes. O carnavalesco examina e, com a sua aprovação,

efetua-se o corte de todas as fantasias de cada ala. A abordagem é caso a caso, isto é, ala a ala,

cujo número total é dezenove.

Ocorre de outras costureiras serem contratadas para cortar fantasias de segmentos

menores da escola, em geral correspondentes aos quesitos de julgamento durante o desfile.

Assim, acontece de uma costureira específica fazer serviços em menor quantidade e somente

para certas alas ou funções no desfile, como para os mestres de bateria e o departamento

feminino da escola, entre outros grupos. Outra costureira pode se encarregar só do corte das

indumentárias do mestre sala e da porta bandeira. E uma terceira, engajada com atribuição

igualmente bem definida, acaba implicada apenas no corte da vestimenta da comissão de

frente. Em outras palavras, ao lado do grupo principal de costureiras, atuam profissionais em

produção de pequena escala, conforme as necessidades pontuais da agremiação.

5 Cabe assinalar que são avaliados os seguintes quesitos nos desfiles das escolas de samba: comissão de frente,

enredo, samba enredo, evolução, harmonia, alegoria e adereços, figurino, casal do mestre sala e porta bandeira e

bateria.

14

Observe-se que, quando prontas, as estruturas de arame assinaladas anteriormente são

enviadas às “aderecistas”, que as recebem em suas próprias residências. Essas profissionais

formavam, no período em que se realizou a pesquisa de campo, equipe de dezessete pessoas

cujo trabalho é decorar as estruturas de arame com os adereços escolhidos pelo carnavalesco e

com pedaços de tecidos cortados pelas costureiras.

Assim como as “aderecistas”, também as costureiras trabalham em seus próprios

domicílios, distribuídos na Grande Florianópolis, em comunidades de baixa renda. No

município de Florianópolis, esses locais de moradia dizem respeito, além da já indicada

comunidade do Morro do Mocotó, também ao Monte Verde (localidade ao norte do centro de

Florianópolis, próxima à rodovia SC-401, nas imediações do bairro Saco Grande) e à Serrinha

(na face oriental do Maciço do Morro da Cruz ou Maciço Central de Florianópolis).

Outro aspecto é que, segundo informado, as fantasias referentes aos quesitos pelos

quais a escola será avaliada na passarela, assim como as fantasias das alas, são

disponibilizadas aos integrantes somente no dia do desfile. O motivo é claro: como se trata de

uma competição, há que preservar o sigilo, o que impõe evitar vazamentos, através de fotos

ou informações antecipadas, que representem risco de cópias e, de uma maneira geral, possam

comprometer o atendimento da exigência (pelo regulamento do desfile) de ineditismo.

Com respeito aos carros alegóricos, outro importante elemento do desfile, o processo

de preparação do carnaval é distinto. A especificidade tem a ver, por um lado, com a grande

necessidade de espaço. Em virtude do tamanho (sobretudo em altura) das estruturas, a

construção tem lugar integralmente no barracão da escola.

Mas esses procedimentos também implicam os serviços de equipe especializada com

origem muito distante da comunidade local e mesmo de Santa Catarina. De acordo com a

pesquisa de campo, a Protegidos utiliza a competência e a experiência de profissionais do

município de Parintins, no estado do Amazonas (na fronteira com o estado do Pará), local

amplamente conhecido por abrigar um dos mais divulgados e concorridos festivais folclóricos

do Brasil. Trata-se do Festival Folclórico de Parintins, centrado nos bois bumbás (boi

Caprichoso versus boi Garantido), realizado no último final de semana de junho. Soldadores,

escultores, serralheiros e decoradores integram a equipe de Parintins que atua na produção dos

carros alegóricos da Protegidos.

O cronograma cumpre um papel essencial na dinâmica produtiva do carnaval. A

informação obtida sobre o assunto, durante a pesquisa, é que não é possível ultrapassar

outubro nas atividades de pré-produção e início da produção. Caso contrário, a evolução da

15

escola no desfile de carnaval pode ficar sob risco, haja vista a quantidade de providências e

detalhes a serem encaminhados e equacionados.

O processo como um todo, pelos depoimentos registrados, leva mais ou menos cinco

meses a contar do momento em que o carnavalesco inicia a elaboração dos desenhos das

fantasias e adereços, com base no enredo escolhido. Daí em diante, semana após semana,

vive-se o frenesi da produção do carnaval, numa sequência incessante e vertiginosa até a data

do desfile.

4.3 Distribuição e consumo do “produto carnaval”

A distribuição diz respeito não às fantasias e aos adereços, que são disponibilizados

somente às vésperas do desfile, como se falou, por razões de proteção e preservação do

ineditismo. O que é distribuído são os outros materiais que a escola produz ou faz produzir

com vistas à obtenção de recursos financeiros. O leque inclui camisetas oficiais da Protegidos,

em que aparecem estampadas referências ao enredo a ser apresentado no desfile, assim como

CDs e DVDs, entre outros artigos oferecidos à compra pelo público interessado.

Certos tipos de material são também (até majoritariamente) doados, segundo

informação registrada em entrevista com o presidente da escola de samba. O motivo tem a ver

com estratégia de marketing desenhada para promover a instituição. Esse procedimento é

bastante comum entre as escolas de samba, de uma maneira geral, pelo que foi possível captar

durante a pesquisa de campo.

Não somente elementos tangíveis integram o conjunto de objetos distribuídos.

Também o direito de imagem – envolvendo o próprio nome da escola, que se torna, assim,

passível de referência/publicação em páginas na internet, revistas e jornais – pertence a esse

domínio de tarefas da cadeia produtiva do carnaval. A utilização desses elementos, como o

nome da escola e os sinais que a evocam, depende, naturalmente, de autorização.

Papel central desempenhado nesse processo relaciona-se ao envolvimento da Liga das

Escolas de Samba de Florianópolis (LIESF). Realmente, é essa entidade que coordena as

tarefas enfeixadas na divulgação, por meio de contratos individuais firmados com as escolas.

Tal instituição funciona como “membrana” entre órgãos importantes da ossatura do carnaval:

as escolas de samba, de um lado, e os meios de comunicação em geral, de outro. É a LIESF

que negocia os termos e celebra contratos com os vários canais de comunicação, um tipo de

função especialmente importante no que concerne à transmissão televisionada do desfile6.

6 Uma ideia sobre as atividades da LIESF pode ser obtida no site da entidade: http://liesf.blogspot.com.br/

16

Essa transmissão permite, ao lado do comparecimento do público à Passarela do

Samba Nego Quirido (local em Florianópolis, no aterro da Baía Sul, onde as escolas de samba

se apresentam, sendo os ingressos – com diferentes categorias – vendidos pela internet e em

lojas da cidade)7, a concretização da etapa final do ciclo inteiro de preparação (ou produção)

do carnaval: o “consumo” do desfile. É para esse ato derradeiro que se enlaçam e se

encadeiam tarefas, decisões, viagens e trabalhos, envolvendo numerosas pessoas,

representando gastos e mobilizando esferas diversas, durante quase meio ano.

Mas ocorre consumo do samba e da agitação típica do carnaval também antes do

clímax representado pelo desfile oficial. Refere-se aqui aos ensaios para o desfile, necessários

para que ajustes sejam providenciados e para que o samba seja “inoculado” nos integrantes. E

não é somente dos integrantes que se trata, pois esses ensaios – que não implicam,

obviamente, o uso de fantasias sendo confeccionadas e de adereços sendo montados – podem

ser abertos ao público externo interessado. A Protegidos tem realizado esses ensaios tanto no

seu próprio barracão como em outros locais, como praças e outros espaços utilizados para

esse fim em comum acordo com a administração da cidade.

Informou-se nas entrevistas realizadas durante a pesquisa de campo que a Protegidos

reduziu a quantidade de ensaios abertos nos últimos anos. Em média, esse número não tem

sido maior que três. O motivo básico é que a vinculada arrecadação de recursos, que ocorre

nos ensaios realizados no barracão, não é suficiente para bancar o próprio evento específico,

quanto mais para contribuir efetivamente ao financiamento do carnaval da escola. Assim,

recentemente, a Protegidos limitou a prática ao processo de escolha do samba enredo (o que

significa dois eventos) e, quando a escola vence o concurso do desfile oficial, à chamada

“Feijoada da Campeã”, para comemorar o título. Também acontecem algumas projeções

extramuros da escola na forma de participação do Grupo Show (alguns ritmistas e passistas) e

de segmento da bateria em festas (aniversários, formaturas, casamentos), assunto do qual se

falará posteriormente.

* * *

Uma estilização da cadeia produtiva da Protegidos da Princesa, considerando as

informações levantadas na pesquisa de campo e apresentadas nesta seção, pode ter os

contornos apresentados na Figura 1. Embora se trate de uma cadeia, o que pressupõe

7 O nome dessa passarela homenageia um sambista histórico de Florianópolis, sendo “Quirido” uma corruptela

de “Querido” que registra o modo local de falar. A designação é oficial, usada na Prefeitura Municipal de

Florianópolis: http://www.pmf.sc.gov.br/entidades/turismo/index.php?cms=passarela+nego+quirido&menu=0

17

sequência – claro que com superposições – de etapas e atividades, optou-se por desenhar uma

estrutura circular que tem como centro o enredo.

Figura 1 – Cadeia produtiva do carnaval da Escola de Samba Protegidos da Princesa:

uma estilização com destaque para a definição do enredo

Fonte: elaboração própria com base nas informações coletadas na pesquisa de campo

A escolha do enredo é o ponto de partida, representando o acontecimento que faz todo

o resto entrar em funcionamento, sequencialmente – em cadeia, justamente. Mas, sendo o

enredo o centro de gravidade, seu papel nessa estrutura merece ser colocado em destaque. No

fundo, ainda que isto possa soar exagerado por causa da intensa agregação que acontece nas

atividades encadeadas, é o enredo, num certo sentido, que se pré-produz, produz, distribui,

comercializa e consome.

5 Interações e reflexos socioeconômicos locais na produção do carnaval

Produzir carnaval em escolas de samba é tarefa onerosa não só em tempo, mas

também, e sobretudo, em dinheiro. A visão geral propiciada anteriormente não permite dúvida

sobre isso, tantos são os materiais necessários e os serviços profissionais mobilizados. Assim,

em pesquisa sobre o assunto, indagar sobre os recursos necessários à colocação da escola na

avenida, para o desfile que representa o ponto culminante de um esforço de meses, é iniciativa

natural e incontornável.

18

Colocada a integrantes da diretoria da Protegidos a pergunta sobre a origem dos

recursos financeiros, obteve-se a informação de que várias são as instituições e agentes que

contribuem. O Governo do Estado de Santa Catarina e a Prefeitura Municipal de Florianópolis

perfilam-se com destaque como fontes principais.

Também ocorre auxílio de patrocinadores, na forma de empresas privadas, algo nem

sempre assegurado e que tampouco representa ajuda financeira em todas as ocasiões. Quando

acontece patrocínio nesses termos, costuma ser formada uma parceria escorada em acordo

sobre a venda das fantasias. Esta, assinale-se, é geralmente realizada pela disponibilidade em

página na internet destinada à aquisição on line e também de forma direta na secretaria da

escola de samba, instalada no próprio barracão.

Na parceria, o patrocinador propõe-se a participar da comercialização das fantasias

destinadas a esse fim, quer dizer, das que não são encaminhadas à doação. A doação,

esclareça-se, costuma beneficiar pessoas que ajudaram a escola voluntariamente, em qualquer

tipo de serviço que tenha representado necessidade nesse sentido, desde tarefas muito gerais

até a contagem das fantasias e adereços no controle final para o desfile. Porém, segundo

informado, a doação só ocorre nas vezes em que a escola não consegue atingir o número

mínimo de integrantes para o desfile. Esse patamar, pelo regulamento do concurso,

corresponde a 1.500 integrantes. A Protegidos tem desfilado com cerca de 2.000 integrantes.

Os ganhos tendem a ser recíprocos nesse tipo de arranjo, pois o patrocinador logra ser

referido no desfile, o que representa exposição com formato de marketing, e a escola tem

diminuídas as chances de não conseguir vender, ela própria, as fantasias produzidas. Pelo que

se conseguiu apurar, a Protegidos considera tratar-se de um importante auxílio, ainda que sem

tradução em disponibilidade financeira direta.

Cabe indicar que as vendas das fantasias tendem a espelhar a conjuntura sobretudo

econômica da cidade, o que também inclui a maior ou menor presença de turistas, entre outros

aspectos. Essa restrição ilustra uma relação aparentemente geral entre cultura e economia,

conforme sublinhado por Florissi e Waldemar (2007), pela qual a situação da segunda (no

país, na região, na cidade) determina o peso da primeira (na forma de dispêndios, por

exemplo) no dia a dia das pessoas, mesmo que estas atribuam importância aos produtos e

serviços culturais e encontrem nestes uma fonte de grande satisfação.

O custo do carnaval da Protegidos, considerando a experiência do último desfile (em

março de 2014), atinge mais ou menos R$ 1,4 milhão. Aproximadamente metade desse

montante refere-se às despesas com mão de obra e a outra metade é dirigida aos gastos com o

material necessário à produção (fantasias, adereços, carros alegóricos). Deve-se sublinhar que

19

o custo total depende do tema – traduzido no enredo – escolhido pela escola para a narrativa

que tem lugar durante o desfile. Alguns assuntos exigem bem menos do que a apontada

quantia de R$ 1,4 milhão. Outros, implicando fantasias mais luxuosas e elaboradas, requerem

muito mais. Também em relação a isso revela-se o caráter estratégico da escolha do enredo.

Aspecto importante do debate sobre economia da cultura, como campo de reflexão que

exibe pontos de contato com a questão do desenvolvimento na escala local, incluindo a

problemática das políticas de promoção, tem a ver com a geração de oportunidades de

trabalho nas correspondentes atividades. Assim, merece destaque a informação, obtida na

pesquisa de campo, de que a produção do carnaval da Protegidos representa a mobilização

direta de 140 trabalhadores em média, com alguma variação ao longo dos anos e, certamente,

também nos meses em que se dá a preparação do desfile, nas várias etapas da cadeia

produtiva.

A Tabela 1 apresenta os postos de trabalho vinculados à produção do carnaval dessa

escola, nas diversas funções necessárias ao processo. A distribuição refere-se à preparação do

carnaval de 2014, do mesmo modo que o dimensionamento do custo antes referido. Mas, pelo

que se levantou, a estrutura pouco se altera entre os vários carnavais da escola.

A categoria mais numerosa é a dos empurradores de carros alegóricos durante o

desfile. Porém a respectiva tarefa corresponde a um único momento na cronologia da

produção do carnaval: o desfile em si. A segunda modalidade em número é a das

“aderecistas”, cujo trabalho desenrola-se no tempo. Depois aparecem os trabalhadores da

equipe proveniente do município amazônico de Parintins, composta por soldadores,

serralheiros, decoradores e escultores, responsável pela construção dos carros alegóricos.

Também representam números expressivos as funções de diretor de bateria e de intérprete do

samba, cujo envolvimento é constante, até pelas exigências em termos de ensaios, podendo-se

dizer o mesmo sobre os casais de mestre sala e porta bandeira. As costureiras, como

informado, totalizam cinco profissionais engajadas de forma direta, embora costumem ser

formados vínculos de terceirização, não computados nesta visão geral. Todas essas funções

são remuneradas.

Ao lado desses profissionais, atuam igualmente ocupantes de postos de trabalho

voluntários. O número atinge perto de trinta pessoas, que de forma espontânea e voluntária se

articulam antes do desfile para contar e conferir as fantasias no barracão. Essa é uma atividade

de pura manifestação de apreço pela escola de samba, reflexo do entendimento da sua

importância (de cunho cultural e outros) para a comunidade e para a trajetória desta.

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Tabela 1 – Número e natureza dos postos de trabalhos ligados à produção do carnaval

na Escola de Samba Protegidos da Princesa – situação do carnaval de março de 2014

Funções/Setor

Nº de

trabalha-

dores

“Aderecistas” 17

Administrativo 3

Auxiliar de serviços gerais 3

Carnavalesco 1

Casais de mestre sala e porta bandeira 6

Contador 1

Coordenador carros alegóricos 1

Coordenador das “aderecistas” 1

Costureiras 5

Diretores de bateria 8

Empurradores de carros na avenida 60

Equipe de Parintins - carros alegóricos (soldadores, serralheiros, decoradores, escultores) 15

Intérpretes (cantores) 8

Iluminação dos carros na avenida 5

Músicos (cavaquinho, violão) 4

Transportador de materiais e produtos 2

Total 140

Fonte: elaboração própria com base nas informações disponibilizadas pela diretoria administrativa da Escola de

Samba Protegidos da Princesa

Informações como essas sugerem os reflexos econômicos e sociais que a produção de

uma festa como o carnaval há de provocar no plano da sociedade local. Esse é o caso, mais

especificamente, nas várias comunidades que, direta e intensamente envolvidas, nutrem

relações de vizinhança ou proximidade e, possivelmente, compartilham aspirações e cultuam

valores mais ou menos comuns, ligados, por exemplo, à própria história da localidade.

A Protegidos é somente uma das escolas que participam do carnaval “oficial” de

Florianópolis. As outras são, pela programação do carnaval de 2015: Embaixada Copa Lord,

Consulado, Unidos da Coloninha, União da Ilha da Magia e Dascuia, esta a mais nova

incorporação ao chamado “grupo especial”. Em todas, o segundo semestre de cada ano é

período de febris atividades de preparação, com o que isso significa em mobilização de

recursos e de pessoas, como permite entrever a relatada experiência da Protegidos.

Há igualmente escolas de samba que compõem o chamado “grupo de acesso”, com

desfile em data específica8, cujo carnaval é igualmente produzido na órbita comunitária,

envolvendo atividades de natureza semelhante – não obstante a escala muito menor – à

8 Página na internet de um guia de entretenimento em Florianópolis registra seis escolas nessa condição:

http://www.guiafloripa.com.br/sites/carnaval/2014/programacao-de-carnaval-2014-em-florianopolis.php3

21

registrada na pesquisa sobre a Protegidos. E, naturalmente, existem numerosos blocos de

sujos, de maior ou menor tamanho, e grupos de amigos e/ou formados por relações de

vizinhança, em diferentes ambientes da cidade, que igualmente fazem fabricar fantasias e

adereços e compram instrumentos musicais não raramente de segunda mão e recuperados por

mão de obra profissional.

Em suma, em ambientes urbanos que cultivam a vivência coletiva do carnaval, nos

moldes do que ocorre em Florianópolis (e, obviamente, também no Rio de Janeiro, entre

outros lugares), dizer carnaval corresponde a referir a um importante segmento da economia

da cultura. Significa, da mesma forma, tangenciar a temática da dinamização econômica local,

mesmo que grande parte dos insumos e matérias primas que entram na produção do carnaval

das escolas de samba, como se observou na Protegidos, tenha origem (muito) distante.

Os múltiplos serviços envolvidos nas atividades da cadeia produtiva do carnaval, nas

suas várias etapas, reverberam localmente, na órbita da cidade e, mais especificamente, no

seio das comunidades. Portanto, falar em “possível contribuição ao desenvolvimento local”, a

respeito do assunto, não parece manifestação despropositada ou mesmo exagerada.

Mas é importante olhar além da dimensão mais tangível desse processo. Pelo menos

na Protegidos, fabricar o carnaval e protagonizar o evento que é a culminação de duradouro e

extenuante esforço – o desfile – são atividades com sentido de, nas palavras do presidente da

escola em entrevista realizada durante a pesquisa de campo, resgate da autoestima das

comunidades envolvidas. Há, com efeito, muito de simbolismo nessa relação com o carnaval.

O envolvimento das comunidades aparece, claro, na participação no próprio desfile,

nas várias maneiras pelas quais isso pode acontecer. Mostra-se também no engajamento à

produção material do festejo, querendo isto referir, com grande destaque, às atividades de

costureiras e “aderecistas”, por exemplo. Mas tomar parte nessa dinâmica significa mais do

que auxiliar na preparação de um evento que tem na pressão do calendário uma fonte de

irrecusável excitação e agitação. A leitura (entusiasmada) do presidente é que cada carnaval

dá sequência a um projeto de escola de samba marcado pelo gradualismo nas suas conquistas.

Essas conquistas exibem diversas dimensões, tendo o destaque, na entrevista, recaído

nas de cunho cultural, artística e social. Assim, o desfile oficial do carnaval, embora

represente o ápice de trajetórias anuais com duração de pelo menos meio ano, não esgota o

“sentido” da Protegidos, segundo sublinhado. O mais importante papel da escola é, foi dito

com ênfase, promover a inclusão sociocultural dos seus integrantes, quer dizer, da(s)

comunidade(s) que representa(m) a sua base social.

22

Esse propósito permeia conjunto de atividades desenvolvidas permanentemente no

âmbito da agremiação. A escolinha de mestre sala e porta bandeira, frequentada por muitos

jovens aspirantes a tais posições na escola de samba ou simplesmente interessados em

aprender a dança, com suas evoluções, funciona em sintonia com tal princípio.

Pode-se dizer o mesmo com respeito ao Grupo Show da Protegidos, criado em 2005.

Formado por ritmistas jovens e por representantes da chamada corte da escola, incluindo

rainha de bateria, cidadão e cidadã samba e casal de mestre sala e porta bandeira, e de

composição flexível, o grupo faz apresentações em eventos públicos, festas de casamento e

bailes de formatura, entre outros, divulgando a agremiação e ajudando a “enraizá-la” ainda

mais na atmosfera da cidade. O critério de juventude para a definição dos participantes mira

simultaneamente a renovação dos contingentes envolvidos e a continuidade das interações

comunitárias em torno da escola, e, ao mesmo tempo, opera como instrumento de inclusão

social para os jovens.

É importante destacar também o departamento feminino da Protegidos. Criado há

décadas, representa fonte de contínua ajuda em funções cotidianas, como ilustrado pela

preparação de refeições para os que se engajam na produção do carnaval durante a escalada de

tarefas que culminam no desfile. Esse departamento também promove a escola ao participar

de eventos que possam resultar em melhorias para as comunidades implicadas,

especificamente as do Maciço do Morro da Cruz, mais particularmente no Morro do Mocotó.

O “enraizamento” da Protegidos no ambiente sociocultural local atinge, do mesmo

modo, as atividades da ala dos compositores. Atuando continuamente, na criação voltada ao

desfile e também produzindo obras variadas de samba, esse segmento da escola tem composto

sambas para blocos de rua e até contribuído musicalmente para campanhas publicitárias.

Cabe uma menção especial à velha guarda da escola, reduto de preservação da história

e tradição da Protegidos. Sua existência foi formalizada em fevereiro de 2005 – com a

denominação Galeria da Velha Guarda –, o que favoreceu a execução de projetos enfeixados

no seu Programa de Ação Social. As correspondentes atividades envolvem participação direta

e indireta em vários eventos na cidade e intercâmbio sociocultural em diversas frentes,

especialmente com entidades do Rio de Janeiro. As ações incluem com destaque encontros

com comunidades do Morro do Mocotó e Morro da Queimada e visitas a instituições de saúde

e de abrigo a idosos e carentes.

Possuindo um grupo musical próprio, a Velha Guarda também faz apresentações do

gênero em acontecimentos beneficentes, objetivando, por exemplo, arrecadar fundos para

edificar prédio para pacientes infantis e juvenis portadores de câncer e para abrigar seus

23

familiares, oriundos do interior de Santa Catarina. A Velha Guarda igualmente comparece

dessa maneira em datas comemorativas (Páscoa, Dia das Crianças, Natal) e nas integrantes do

calendário turístico estadual, como as festas de outubro, no Vale do Itajaí (Oktoberfest,

Fenarreco) e em Florianópolis (Festa Nacional da Ostra).

6 Considerações finais

A economia da cultura ganha terreno acadêmico e, em vários sentidos e instâncias,

também institucional no Brasil. O carnaval perfila-se como importante – certamente um dos

mais importantes – elemento dessa economia no país. É assim em escala nacional, com realce

para as escolas de samba e outras agremiações (como os grandes blocos, em várias regiões)

que arregimentam numerosos participantes e mobilizam vultosas quantias. É assim em

Florianópolis, onde o modelo do “carnaval espetáculo”, adotado por osmose da experiência

carioca, representa “fabricação” do entretenimento carnavalesco que se estende por meses,

canaliza muito dinheiro e trabalho e tem como ápice o desfile, na culminância do calendário

oficial do festejo.

O estudo específico sobre a escola de samba Protegidos da Princesa, desenhado e

executado à luz da noção de cadeia produtiva, mostra o modus operandi nas etapas que

conduzem à oferta do produto final. Graças à pesquisa direta que se pôde efetuar, aspectos

importantes são ressaltados e informações que permitem uma boa ideia sobre as implicações

das atividades realizadas são oferecidas. A inescapável conclusão é que a Protegidos, e isto

pode ser estendido às demais escolas que integram o carnaval de Florianópolis, é um

importante agente da economia da cultura nessa cidade e na sua região.

Os reflexos socioeconômicos e culturais, principalmente em escala comunitária, e o

interesse – que provavelmente se manifesta nas outras escolas e suas respectivas comunidades

– também em aspectos intangíveis e de cunho simbólico, como o resgate da autoestima

(frisado pelo presidente da Protegidos), autorizam associar – postula-se aqui – a problemática

da produção e realização do carnaval, nos moldes explorados no artigo, ao debate sobre o

desenvolvimento em nível local, no plano da cidade.

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Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal de Santa Catarina.