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SOCIOLOGIA  y E m  A perd a da aur éol a, dos  Peq uenos  poemas em prosa , Baudelaire descreve o poeta, apressado, a saltitar por entre poças de lama. De repente, sua aura cai numa delas, mas ele nem se preocupa em pegá-la de volta, confessando seu alívio a um passante: “Posso enm me entregar à devassidão, como qualquer mortal. A dignidade me entedia. Eis-me aqui, igualzinho a você, como vê!”. Assim, o antigo “bebedor de quintessências” e “comedor de ambrosia” percebe que precisa deixar, de bom grado, a sua aura na “lama” para viver os novos tempos. “No Brasil do século XIX já se percebe um diálogo inicial entre ‘alta’ e ‘baixa’ cultura, catalisado pelo crescimento da imprensa. Anal, sem produtos comerciais como os jornais, fruto de uma indústria cultural nascente, não have- ria espaço para guras como Machado de Assis, Lima Barreto ou João do Rio. Por um paradoxo, foi um movimento na ‘baixa’ cultura que provo- cou a criação de obras de ‘alta’ literatura”, diz a  Pesquisa FAPESP o sociólogo Sergio Miceli, da Universidade de São Paulo (USP). Segundo o pesquisador, deixar a aura na “lama” e desenvolver a produção artística em veículos sem “ambrosias e quintessências” passou a ser característica do desenvolvimento da cultura bra- sileira. “A nossa cultura é resultado dessa com- plexa interação entre elementos ‘intelectuais’, ‘elevados’, e as mídias da indústria cultural. É uma relação tensa: às vezes mais harmoniosa; em outras, em litígio aberto. Essa relação entre ‘alta’ e ‘baixa’ cultura é típica do Brasil. Na Argentina, por exemplo, o peso da indústria cultural é mui- to menor e sua inuência demorou a mexer com a sociedade”, conta Miceli. Para entender esse dilema numa perspectiva inovadora, o sociólo- go reuniu um grupo de pesquisadores no proje- to Formação do campo intelectual e da indústria cultural no Brasil contemporâneo. “Entendemos que uma verdadeira história crítica da cultura brasileira deve revelar as liga- ções entre surtos estratégicos da produção cul- tural erudita e a expansão de setores dinâmicos da indústria cultural, em geral vista, de maneira equivocada, como mero reduto de vulgarização da criação erudita, totalmente apartada da cul- tura elaborada”, fala. Segundo Miceli, a cultura nacional percorre uma via de mão dupla. “De um lado, temos intelectuais e artistas moldando rumos e linguagens das mídias de cada tempo histórico. Ao mesmo tempo, as transformações da indústria cultural vão impondo feições e sig- nicados ao trabalho desses criadores”, analisa. O que o projeto traz de novo é a discussão sobre como a cultura letrada se articula com a indústria cultural, misturando o polo erudito às mídias co- merciais. “Historicamente, nossa cultura resultou do elo indissociável entre projetos intelectuais e artísticos e as condições estruturais que propi- ciaram a viabilização desses projetos.” O grupo de Miceli quis romper a barreira ana- lítica interposta entre as culturas popular e eru- dita para ressaltar seus pontos de inexão , as li- nhas de continuidade, o constante combate entre preconceitos defensivos, as mediações feitas por empresas e lideranças, e os uxos de linguagem, ideias, modelos, autores e obras. “Assim, é possí- vel perceber os intercâmbios e as brigas em que operam intelectuais, escritores e artistas, expostos às circunstâncias históricas e aos condicionan- tes das mídias e dos veículos em que circulam e são recepcionados os seus trabalhos criativos”, arma o sociólogo. Para dar conta desse painel, foram reunidas pesquisas que, à primeira vista, pouco têm a ver umas com as outras. Tudo serviu para compreen- der a sutileza dessa interação: da ligação entre Lima Barreto e o jornalismo à crítica disparatada contra Paulo Coelho, passando pelas modi cações Produções intelectuais e indústria cultural dialogam entre tapas e beijos Carlos Haag Uma arte feita de tensões       I       L       U       S       T       R       A       Ç        Õ       E       S     D     A     N     I     E     L     B     U     E     N     O 118 z OUTUBRO DE 2012

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E

m  A perda da auréola, dos Pequenos poemas em prosa, Baudelaire descreve

o poeta, apressado, a saltitar por entrepoças de lama. De repente, sua aura cainuma delas, mas ele nem se preocupa

em pegá-la de volta, confessando seu alívio a umpassante: “Posso enfim me entregar à devassidão,como qualquer mortal. A dignidade me entedia.Eis-me aqui, igualzinho a você, como vê!”. Assim,o antigo “bebedor de quintessências” e “comedorde ambrosia” percebe que precisa deixar, de bomgrado, a sua aura na “lama” para viver os novostempos. “No Brasil do século XIX já se percebeum diálogo inicial entre ‘alta’ e ‘baixa’ cultura,catalisado pelo crescimento da imprensa. Afinal,sem produtos comerciais como os jornais, frutode uma indústria cultural nascente, não have-ria espaço para figuras como Machado de Assis,Lima Barreto ou João do Rio. Por um paradoxo,foi um movimento na ‘baixa’ cultura que provo-cou a criação de obras de ‘alta’ literatura”, diz a Pesquisa FAPESP o sociólogo Sergio Miceli, daUniversidade de São Paulo (USP).

Segundo o pesquisador, deixar a aura na “lama”e desenvolver a produção artística em veículossem “ambrosias e quintessências” passou a sercaracterística do desenvolvimento da cultura bra-

sileira. “A nossa cultura é resultado dessa com-plexa interação entre elementos ‘intelectuais’,‘elevados’, e as mídias da indústria cultural. Éuma relação tensa: às vezes mais harmoniosa; emoutras, em litígio aberto. Essa relação entre ‘alta’e ‘baixa’ cultura é típica do Brasil. Na Argentina,por exemplo, o peso da indústria cultural é mui-to menor e sua influência demorou a mexer coma sociedade”, conta Miceli. Para entender essedilema numa perspectiva inovadora, o sociólo-go reuniu um grupo de pesquisadores no proje-to Formação do campo intelectual e da indústriacultural no Brasil contemporâneo.

“Entendemos que uma verdadeira históriacrítica da cultura brasileira deve revelar as liga-

ções entre surtos estratégicos da produção cul-tural erudita e a expansão de setores dinâmicosda indústria cultural, em geral vista, de maneiraequivocada, como mero reduto de vulgarizaçãoda criação erudita, totalmente apartada da cul-tura elaborada”, fala. Segundo Miceli, a culturanacional percorre uma via de mão dupla. “Deum lado, temos intelectuais e artistas moldandorumos e linguagens das mídias de cada tempohistórico. Ao mesmo tempo, as transformaçõesda indústria cultural vão impondo feições e sig-nificados ao trabalho desses criadores”, analisa.O que o projeto traz de novo é a discussão sobre

como a cultura letrada se articula com a indústriacultural, misturando o polo erudito às mídias co-merciais. “Historicamente, nossa cultura resultoudo elo indissociável entre projetos intelectuais eartísticos e as condições estruturais que propi-ciaram a viabilização desses projetos.”

O grupo de Miceli quis romper a barreira ana-lítica interposta entre as culturas popular e eru-dita para ressaltar seus pontos de inflexão, as li-nhas de continuidade, o constante combate entrepreconceitos defensivos, as mediações feitas porempresas e lideranças, e os fluxos de linguagem,

ideias, modelos, autores e obras. “Assim, é possí-vel perceber os intercâmbios e as brigas em queoperam intelectuais, escritores e artistas, expostosàs circunstâncias históricas e aos condicionan-tes das mídias e dos veículos em que circulam esão recepcionados os seus trabalhos criativos”,afirma o sociólogo.

Para dar conta desse painel, foram reunidaspesquisas que, à primeira vista, pouco têm a verumas com as outras. Tudo serviu para compreen-der a sutileza dessa interação: da ligação entreLima Barreto e o jornalismo à crítica disparatadacontra Paulo Coelho, passando pelas modificações

Produções intelectuais e indústria cultural dialogam entre tapas e beijos

Carlos Haag

Uma arte feita de tensões

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118 z  OUTUBRO DE 2012

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PESQUISA FAPESP 200 z  121

ral, e não nas ciências sociais, que sediscutiram pela primeira vez as trans-formações ocorridas no país com o fimda ordem agrária e o surgimento de umasociedade urbano-industrial lastreada

na riqueza do trabalho imigrante. Nooutro extremo temático e temporal, ofenômeno da interação entre culturas serepete no sucesso do escritor Paulo Coe-lho e nas análises de que ele é “vítima”.“Com ele, o livro vira uma mercadoriade alta rentabilidade. Além disso, comoautor e celebridade internacional, eleembaralha as fronteiras entre culturapopular e erudita. Coelho é reveladordas trocas entre o erudito e o comer-cial, também por conta das críticas querecebe sobre o status de legitimidade

a que faria jus”, conta o sociólogo daUSP Fernando Pinheiro Filho. Para opesquisador, o escritor popular é umexemplar da manipulação de materiaisexpressivos híbridos. “Vindos de matriz

erudita, eles são reciclados pela mídiacomercial, apropriados pela versão fic-cional do entretenimento e, curiosamen-te, convertidos em matéria de reflexãopara intelectuais acadêmicos”, observa.A grande ironia para Fernando são osesforços infrutíferos de críticos reno-mados para “desmascarar” Coelho. “Oproblema é que tentam fazer isso comum instrumental erudito inadequado, bom para um Machado de Assis, masque nada tem a ver com as propostas doescritor ou suas aspirações literárias.”

O mesmo equívoco pode ser observadonas análises “intelectuais” de filmes comtemáticas centradas na violência das fa-velas. “Numa favela projetamos O invasor, de Beto Brant, e a série televisiva Antônia.O entusiasmo dos críticos pelo filme deBrant não teve eco na comunidade, que seviu mais bem representada por Antônia.Isso porque a audiência de periferia as-

sistiu aos filmes com lentes de populaçãoresidente”, diz a socióloga Esther Ham- burger, da USP. “Em vez de ver o filme deBrant como crítica à elite paulista, comofazem os intelectuais, reclamaram de maisuma detração da periferia, cujas melhoriaseram ignoradas no filme.”

PAUTA 

Os jornais voltam aos holofotes do pro- jeto com o sociólogo Alexandre Berga-mo, da Universidade Estadual Paulista

(Unesp), que analisa a imprensa dos “fi-lhos da pauta”. “É como a geração maisnova, dos anos 1980, fruto dos cursosuniversitários, foi chamada pelos jor-nalistas mais velhos. O embate nesseproduto pioneiro da nossa indústriacultural mostra o que mudou nas re-dações ao longo desse tempo, com a re-invenção da notícia e da reportagem,agora vistas como elementos cruciaisda originalidade e da autoimagem”, ob-serva Alexandre. Nesse movimento, opesquisador observou a gradativa perdade autoridade do repórter provocadapela crescente divisão do trabalho jor-nalístico. “O jornalismo, antes ‘trabalhointelectual’, agora é definido pelo quetem de ‘técnico’”, explica. Para Alexan-dre, as posições propriamente “intelec-tuais” são, cada vez mais, as definidasem função da autoridade e autonomiaobtidas na academia, distante das pres-sões e da linguagem (técnica) que, iro-nicamente, marcam as posições mais burocráticas e de menor prestígio do

 jornalismo, fechando o ciclo iniciadonos tempos de Lima Barreto. A razãoestá com o poeta de Baudelaire: “Numlugar em que a morte chega a galope detodos os lados, achei melhor perder asinsígnias do que uns ossos”. n

Projeto

Formação do campo intelectual e daindústria cultural no Brasil contemporâneo –nº 2008/55377-3. Modalidade: Projeto Temático.Coordenador: Sergio Miceli Pessoa de Barros –USP. Investimento:R$ 549.453,60 (FAPESP).