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Prof. Dr. Vahan Agopyan · de outro jeito, ou que te lança para um questionamento mais profundo. Alguns caminham pelo sítio da tolerância pelo tempo, pela dor, pela

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Prof. Dr. Vahan AgopyanReitor

Prof. Dr. Antonio Carlos HernandesVice-Reitor

Profª Drª Maria Aparecida de Andrade Moreira MachadoPró-Reitora de Cultura e Extensão Universitária

Prof. Dr. Américo Ceiki SakamotoPrefeito do Campus USP de Ribeirão Preto

Profª Drª Cláudia Souza PassadorVice-Prefeita do Campus USP de Ribeirão Preto

Eduardo Cesar BenedictoChefe da Divisão de Atendimento a Comunidade

Camila de Carvalho MicheluttiChefe da Seção de Atividades Culturais

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULOPRÓ-REITORIA DE CULTURA E EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA

PREFEITURA DO CAMPUS USP DE RIBEIRÃO PRETODIVISÃO DE ATENDIMENTO A COMUNIDADE

SEÇÃO DE ATIVIDADES CULTURAIS

Produção Seção de Atividades Culturais

Coordenação do programa Lelo Guazzelli

Seleção de originais André Bordini e Renata Cortez

Preparação, projeto gráfico e supervisão Valnei Andrade | Eis Estúdio

SEÇÃO DE ATIVIDADES CULTURAIS • DVATCOM • PUSP-RP • USPPrefeitura do Campus USP de Ribeirão PretoRua Pedreira de Freitas, casa 04 – T (16) 3315.353014040-900 Ribeirão Preto, SP

[email protected] @atividadesculturais.usp.rpwww.prefeiturarp.usp.br/cultura

Seção de Atividades Culturais / 2018

Aurélio M. C. Guazzelli (Lelo)Camila de Carvalho MicheluttiCarlos de Araújo ArantesIvani Moreno CardosoJoana Darc VassaloLélis Camilo CavalieriNelson Luiz de AssisOsmar Donizetti Moreira da SilvaSandra Regina Arcanjo de Carvalho Melo

Volume 24 – 2018 / ISSN 1516-0513 • Poeta de Gaveta é uma publicação anual de textos de poesia e prosa produzidos por alunos, docentes e funcionários dos campi do interior da USP, com etapas de inscrição e seleção. É editada pela Seção de Atividades Culturais da Prefeitura do Campus USP de Ribeirão Preto — PUSP-RP. Os textos publicados são de inteira responsabilidade de seus autores.

De tudo...

A diversidade da formação acadêmica — culturas familiares, étnicas, econômicas e regionais — que a universidade contém é sempre vasta. E esses diferentes olhares tecem uma infinidade de ideias fantásticas. Não é raro apreciar um volume da série Poeta de Gaveta e se deparar com um texto inusitado. Às vezes é só “o simples” colocado de forma diferente. Outros almejam uma elaboração complexa, que nos faz ver o cotidiano de outro jeito, ou que te lança para um questionamento mais profundo.

Alguns caminham pelo sítio da tolerância pelo tempo, pela dor, pela construção da vida, pela natureza. Outros evocam deuses, santos, aber-rações ou qualquer ser. A sorte ou a falta dela. A força ou a fraqueza. O humano ou o des-humano.

A palavra pode ser doce, amarga, forte, compreensiva, entre muitas outras características; tolerante. Somos esse humano que se desumaniza para ter que se reinventar, percorrendo um mundo que ele deforma para ter que reformar.

Apesar de parecerem muitas, uma única vida segue a diante — tole-rante.

Boa leitura a todos!

Lelo Guazzelli — Organizador

Apresentação

#24

por André Bordini e Renata Cortez

Selecionar os textos deste livro foi uma tarefa difícil. Os critérios fo-ram baseados principalmente na identificação de autoria, ou seja, naquilo que foge dos clichês e dos padrões mais próprios da tradição. Nesse sentido, buscamos nos trabalhos o que nos encantava e surpreendia.

Um bom texto não é apenas aquele que apresenta um conteúdo rele-vante, é necessário que ele diga a que veio também por meio da forma, da experimentação simbólica da escritura, do modo de dizer ou silenciar o que se propõe.

Articulando esses aspectos, chegamos aos selecionados que consti-tuem esta obra, feita com tanto apuro, partindo de uma ideia generosa e necessária: tirar da gaveta e do armário textos e autores, muitas vezes anônimos, trazendo a lume seus talentos.

Num tempo de tantos compartilhamentos e fragmentações, são sem-pre interessantes iniciativas que reúnem arte, literatura e leitores dispos-tos a desvelar o novo pelas palavras.

Que este projeto esteja sempre se reinventando.

Comissão de seleção

André Bordini é graduado em Psicologia e Ciências Sociais e Jurídicas pela UNESP. Ex-professor de Redação e Interpretação de Texto nos cursos pré-vestibulares dos grupos SEB, COC e Objetivo. Atualmente é psicólogo e psicoterapeuta, especialista em Análi-se Existencial pelo IFEN — Instituto de Psicologia Fenomenológica do Rio de Janeiro; professor convidado dos Cursos de Residência Médica do Hospital São Francisco, do Programa de pós-graduação — lato e stricto sensu — do Hospital da Beneficência Por-tuguesa, e em Saúde mental da Unaerp; e coordenador do Curso de Especialização em Psicologia Clínica Fenomenológico-existencial do Instituto PSICOLOG, de Ribeirão Preto, em parceria com a UNIFEG. Autor de Ruínas da Vila Antiga (Editora Atlas), entre outros.

Renata Cortez possui graduação em Letras pelo Centro Universitário Barão de Mauá (1991), graduação em Pedagogia pelo Centro Universitário Barão de Mauá (1994), Espe-cialização em Linguística e Língua Portuguesa pelo Centro Universitário Barão de Mauá (1997) e Mestrado em Educação pelo Centro Universitário Moura Lacerda (2007). Atual-mente é doutoranda em Linguística no Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Trabalha como professora no Ensino Fun-damental do Liceu Albert Sabin e no Ensino Superior do Centro Universitário Barão de Mauá, nas áreas de Língua Portuguesa e Linguística. Em 2015, lançou o livro de crônicas Meu face, minha face.

11 entre nós, silêncio ¬ ADONAI TAKESHI ISHIMOTO

12 16º retrato de apolônia ¬ ANANDA SANTOS CRUZ

13 água ardente ¬ BRITES-NETO

15 aneurisma ¬ CARLOS HENRI

16 dê lírio aos vinte anos ¬ FABIO MOURA CAVALCANTE

18 aliteração órfã ¬ GABRIEL LEVA

20 a poesia é filha sem mãe ¬ GABRIEL LEVA

23 vinte e quatro horas ¬ ISABELLE MIRANDA

24 desvario ¬ LIVIA PORTO ZOCCO

25 trem ¬ LOURENÇO SBRAGIA

26 exvisceralização ¬ LUIS FELIPE VISCONDE

31 exercícios de abismo [mosaico insólito] ¬ MANOEL ANTÔNIO DOS SANTOS

34 os sobrenomes ¬ MANOEL ANTÔNIO DOS SANTOS

37 distração ¬ NATALIA RIBEIRO

38 nostalgias ¬ NATALIA RIBEIRO

39 o livro de família ¬ OTÁVIO TEDESCO

42 verso na caverna ¬ OTÁVIO TEDESCO

43 no palco ¬ OTÁVIO TEDESCO

44 mariana ¬ RAFAEL BALDAM

45 mundo digital ¬ SAIMON DOMENEGHETI

46 por isso eu escrevo ¬ SAIMON DOMENEGHETI

48 classificado ¬ SARAH PASSOS

49 vocês ¬ VÍTOR CAMPOS

50 desgraça na vila ¬ W.G.

51 meias enroladas ¬ B.G.

Sumário

55 pra não dizer que não falei das margaridas ¬ FABIO M. CAVALCANTE

60 caminhando... ¬ FERNANDA PAPA

61 antagônicos ¬ JESSICA MAMEDE

69 em nome do pai ¬ JESSICA MAMEDE

74 diário de um doutorado: o mundo acadêmico ¬ MELINA VAZ

79 academias ¬ OSAME KINOUCHI

91 à beira ¬ RAFAEL BALDAM

93 dourados horizontes solitários ¬ RONIE CHARLES

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entre nós, silêncio

Entre nós há silênciomas não só entre nós.Há silêncio entre os nós dessa redeque sustenta cada um de nósUm silêncio que não é ruimÉ um silêncio poéticoSilêncio pesadoSilêncio encorpadoAtravessa corpoAtravessa palavra(me) Atravessa...

E enquanto atravessasinto seu beijosinto seu toquesinto o que é possívelO possível do seu silêncioO possível entre nós

Entre nós, entãosilênciopossívelEntre nós, entãopoesia

AD

ONA

I TA

KE

SHI

ISH

IMOT

O

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16º retrato de apolônia

Quando estiver defronte ao ser desconhecidoQue habita as areias derretidas em prata,Quanto tempo restará?

Se os rostos foram consumidos pelas máscarasSobrando apenas cores, veias e pupilasPara expurgar toda maldita dor em águaQuanto tempo até obter resposta?Quanto tempo até olhos desconhecidosAparecerem do outro lado deste inútil pedaço de vidro?Eu olho o espelho e algo me encara de volta.

Esta janela engradada por mucosasÉ o verdadeiro cárcere e seu único capatazDesvela a gênese dos desesperos de encontrar-se [em existênciaOs exórdios das súplicas a entes indulgentesEscancara a solidão absoluta,Relances de ratos correndoPelos corredores vazios do outro ladoOnde o anel-anzol me aguarda em agonia.

Banhos longos e esperançasSão fadados a terminarEm espelhos esfumaçados A

NA

ND

A S

AN

TOS

CRU

Z

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água ardente

Minha girgolina feiticeira,Água-bruta do meu desatino,Guampa maldita e desalmada,Imaculada maria-branca monjopina.

Engasga-gato do pobre cachorro-homem,Bagaceira, boresca e caiana,Calibrina cândida, minha cotreia,Aninha, dona-branca, moça-branca,Minha jura, não-sei-quê.

Meu elixir, minha gramática, meu espírito,Patrícia perigosa, meu porongo, minha piloia,Pura, purinha, quebra-goela do reservado,Quebra-munheca do mal-amado,Remédio retrós de sete-virtudes.

Três-martelos que castigam meu pensamento,Capote-de-pobre, meu cobertor de alegria,Assovio-de-cobra, viperina e venenosa,Águas-de-setembro que correm o ano todo,Arrebenta-peito que na tristeza é meu-consolo.

Abrideira dengosa de portas fechadas,Bicha danada das sorridentes prosas, B

RIT

ES-

NE

TO

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Birita borbulhante que o pranto espalha,Azougue goró da expedita Januária.

Sumo-da-cana com suor-de-alambique,Dindinha, sinhazinha, filha-de-senhor-de-engenho,Água-benta, água-de-briga, água-de-cana,Brasileira alma que ufana este povo silvícola,Que é pobre, que é caboclo, mas tem espírito nacionalista.

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aneurisma

Acordei acometido por ideiasparoxísticas noturnas levanteipra respirar um benzodiazepínicoe perdi a consciência empensamentos arrítmicos de umaneurisma cerebral que meexplodiu até os anéis de Saturnoonde aprendi sobre os cogumelosazuis capazes de superara matrix baseada em evidênciase nos salvar do destino isquêmicode robôs trombóticos.

CAR

LOS

HE

NR

I

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dê lírio aos vinte anos

Àqueles que já não amam,E mais, aos infelizes que não sentem,A todos, pobres deles,Ofereço estas reles consonâncias,Porque para si mentem.

I. A qualquer um que não ama

Dê lírio aos vinte anos,Que floresce os amores a murchar.E detenha o martírio,Então junte tudo e atire-o, em palavras:Dê lira em “vim te amar”.

II. A mim, que dissona

Dum covil quiçá acheiSaudoso e confortável sentimento,Que me torna um ser vilDe quem pouco me sorriu, envenenando,Dolorido acalento.

III. A você, que veio à tona

Querido amigo meu, FAB

IO M

OUR

A C

AVA

LCA

NTE

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Mesmo que ainda diga a dor faz parte,Eu carrego-o comigo,No meu peito aflito e sigo, pois sóEu sei o peso de amar-te.

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aliteração órfã

Perdi meu pai.

Tem gente que se acha velho demaispara ser pai, por isso, promete,morro sozinho, mas não quero ser pai,se eu for pai agora, no meu auge, nos cinquenta,quando meu filho tiver trinta,eu terei somente a morte.

Mas a verdade é que, dá para perder o pai antes disso.Dá pra perder o pai com qualquer idade.

Eu, por exemplo, perdi meu pai.Um dia, em casa, ele chegou bêbado,Porém, ele ainda estava vivo.

Outro dia, eu estava mais velho.Ele ainda respirava.Mas eu não o encontrei.

Prometendo se mudar,ele entrou em um quarto, em casa,e sumiu.

Perdi meu pai por causa do ódio e do rancor. GA

BR

IEL

LEVA

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Perdi meu pai por causa do pai dele. Perdi meu pai que preguiçosamente dormenum quarto ao lado do meumas não está ali parado, jaz perdido.Enterrado numa dessas curvas compridas da vida.

Dá para demitir um pai assim.Você promove uma revolução, bota ele para fora — não da casa —,a casa é dele, as paredes, as telhas e o concreto.Mas das fibras, do sangue, do amor. Das coisas que constroem sua casa.

Perdi meu pai numa esquina aqui perto,ele virou e sumiu, do meu peito, do meu coração.Virou, e adeus. Saiu do meu espaço.Agora meu pai e eu envelhecemos aqui dentro,separados no mesmo lugar.Mas pai, você perdeu,perdeu seu filho, suas promessas, seus prelúdios.E agora? Eu e você enchemos a boca de Prozac.

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a poesia é filha sem mãe

É sexta-feira, chove.

Minha escrivaninha está bagunçada e

minhas mãos estão sujas de tinta.

Já faz uma semana que não arrumo as coisas.

Desde que fiz delas mesa de cirurgia.

Desde que, em cima dessa escrivaninha,

realizei um parto.

Meu bisturi foi a caneta e meus lençóis, o papel.

Dei luz, das profundezas da minha mente,

a uma pequena carta de amor.

Ela era infantil, ingênua e pura.

No entanto, ínfima.

Assim que nasceu, a pobrezinha

foi rejeitada pela mãe e,

como eu, abandonada a esmo.

Todas as cartas de amor têm vida curta.

A minha não durou dois dias.

Nasceu, chegou às mãos de minha amada

e foi para o lixo, jogada fora.

Desde o ocorrido, não abro mais minhas janelas GA

BR

IEL

LEVA

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e nem tive coragem para lavar

minhas mãos.

Escrevi uma carta de amor, mas o meu amor não leu.

— Não foi parto, agora eu sei, foi aborto —

Não bastasse vê-la jogar minha criança fora

com desdém, com ódio,

sou obrigado também a jogar todos os meus poemas

na lata do lixo

esses que são meus fetos, meus sonhos natimortos.

Veja bem, no lixo, onde nada tem valor.

— E então, o que farei? —

— Eu me desesperarei, claro, por seu futuro não

vindouro. —

Dei luz a tantos filhos parciais que jamais se

desenvolverão.

Em poemas, gerei, formei e reformei

seus olhos, sua boca, sua pele,

seu sorriso e seus cabelos.

Tentei montar uma imagem dela

em pequenas partes eternas,

mas agora essas partes estão todas órfãs, pois,

ela se foi, e eu,

não podendo montar mais imagem alguma,

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tendo sido revirada minha carne,revelei-me um monstro.

Nada é mais doloroso para as crianças do que a rejeição.E minhas jovens linhas estão todas borradas. Elas choraram porque foram paridas para uma pessoa melhor do que eu.E mesmo essa pessoa, as abandonou.

Sou apenas um homem, um obstetra de estrofes, assim sendo, sou um genitor rejeitado.Da minha partenogênese poética, me restaram somente filhos mortos.Sou pai de muitos órfãos que nunca tiveram ou terão mãe.Meus poemas são restos de vidas condenadas a não se completarem.Mas, o pior de tudo, é a minha mente que, mesmo depois de aberta e ferida, ainda está prenha.

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vinte e quatro horas

A solidão todo diaAbre minha porta e entraSem perguntar se deveriaChega na sala, senta

Pega o controle, liga a TVPõe o pé em cima da mesaUsa e abusa sem perceberPrimeiro come a sobremesa

Abre a geladeira, pega tudoNão me deixa nem a águaGrito “não!”, mas pareço mudo

Vai embora e só deixa a mágoaPra n’outro dia, ser a mesma palhaçada:Entrar vazia, deixar-me sem nada

ISA

BE

LLE

MIR

AN

DA

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desvario

Peito oco.No estômago, o soco.Mãos vazias na água fria,Olhos que seguem a luz que varia.No prato, a comida esfria.Do copo, o líquido resvala,E enche a talha onde se lava a alma.

Do cabedal de desvariosSentimentos mornos emanam.Aquecendo os que não amam,Em seus próprios casarios.

E plantam-se flores,Que presenteiam amores.E para o mal, colhe-se o mel.

Entretenimentos diáriosNesse humano intervaloEntre o início e o fim.

LIV

IA P

ORTO

ZOC

CO

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trem

Um tremtoda noite passa

(Vago nesta cama astronauta)De que cor deve serPrata?Da janela

Lua paira(Brisa)BrilhaDe alumínio ou de lata?Quando buzinaO som

captaQuando atravessaA audição

raptaDa LuaDo ouvidoDo trajeto(O ar que finda)Fica em alguma órbitaUm trem

toda noite passa passandoUma incógnita

LOU

RE

NÇO

SB

RA

GIA

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exvisceralização

De pronto arrancaram olhos meusnem a faca nem a unhafoi segundo que cruzaramcom pestanas repuxadas desansei

curiosas pelo perguntarse era eu quem pensasse que fosseEra.Fui.Não mais sou.

Vi quem ésbreve verdadeenxerguei franca bondadededuzi certo receio.Sem olhos e sem mais ser,fui-me.Sentei-me cego surdo certo que sangue inda sairianum futuro breve soltode um passado tão contente

E sem olhos vi semblanteansioso de sansei LU

IS F

ELI

PE V

ISCO

ND

E

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que pouco ressabiado virava rosto em soslaioe espiavasobre cinco samambaiaso sem olhos que encaravasorrateiroo sisudo samurai

Num sovio sem ciúmesibilei sufocadona certeza de um sorrisoque anuncia o espetáculo:senhoras e senhorassua soberana rainha solar.

Com passadas largas fundas

vastas quanto vossa vida

vi você cruzar o tempo

Com a nuca pro passado

e os olhos no presente

cego vi braços abertos

que envolveram o oriente

E no encontro do quimono

com jaleco acinturado

o beijo breve

demorado

que em segundo mal contadoacelera o miocárdio

Sai — JáDa — quiQue — roNão — verFi — caPra — LáNão-deuVi — jáVi — jáVI — jávi-jávi-jávi-já

Exxxxxxxxpiraaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa

Tummmmm

táaaaaa

Tummmmm

táaaaaa

Tummmmm

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táaaaaa

Tummmmm

Tá bem

tô bem

vivi

e vi

quando dedos enlaçadosafastados do anteontemlevando pedaços montebaço fígado intestino.

Se afastarame no poentesenti olhosmui contentesque se alegramfrente a xícara

do café que dividiramborra água nada e póque soprado em brisa friaqual fantasma do passado

queimou deixou dilaceradocada ponta da narina.

Ver não vi que cego estavamas em menteconstruíacada fato e alegriaque em conversapartilhavam

Num repente eu me colocoem visita ao mês passadominha figura ao teu lado

Cá estamos!três perdidossoja carne sashiminum banquete temperadosentimentos marinadosem nostálgica alegria

Ver não vi,que olhos não tinhamas a vozdele saía

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em conversa à hiraganase expressava em ternurade quem cuida apoia ama

E do teu sorriso ternoaspirei ácida vidaque abrasa azinhavrafura pleuramata almacorta sangraabcedida

De pedaços ensanguidosdestrinchado ao chão jogadocadáver vilipendiadonuma última sinapseque se deu em reaverem carvão parede escritolembrou jáque evoluídoé amar após perder

E no oco que restavanum vazio

incompletosem saber errado ou certopus me a me remontar-me

Olhos dentro da barrigatimo e língua a tiracolointestinos torcicoloe de pé me olhei no espelho

Mistura esfarrapadade retalhoscosturadaora homem ora mulher.Que de si não entendiamas que entre passos tristestão de lágrimas molhadosárduo duro amargadospulava leiras de alegria.

Ali sentadocubo mágicoembaralhado voltar viavocê entre quatro estranhos

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filho pai mãe nova família

Em segundo intermináveltal qual vida de orozimbosentiu pela veia vidaque espalhava e queimavasupurava tudo a cinzas

Entendia pois agoranão sem lágrimas e calosque amar é ter certeza de que o outro é feliz

E dessa veredabrevericaseis lições que agora fica

Igreja não faz boa genteOrar não te torna crenteNessa vida nada se controlaAme agora brinca choraRia o hoje faça vez que o Amanhã, cumpadi, é hipótese [universo do talvez.

de saída eu lhe peço

logun aranoi edé

voevençavá emboraviva vasta vida agoraQue aqui não fiques mais!Tucano não se prende em jaulario bravo indomadoatroz

Mas por favor,ligue-me amanhãque ainda é muito bom [ouvir tua voz.

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exercícios de abismo [mosaico insólito]

1) a salvo de nossos remorsos

guiando-se apenas pelo instintoos refugiados caminham às cegaspelo insípido labirinto

2) outubro atordoado

o torturado repele a intimidade infame forjada por seu algoz— cassada a vozouço seus ganidosna beira do abismo

3) um catálogo de deformidades físicas eu poderia beber tua urina

queimar tua mobíliaapascentar a fúriade tua matéria escura

4) o que permanece (biografia da chuva)

sob a pele da penumbra o velho índio poderia lançar um grito de horrore acender borboletas M

AN

OEL

AN

TÔN

IO D

OS S

AN

TOS

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5) decantação da noite

espantalho sonâmbulo de lábios trêmulosdeflagra a noiteentre os dentes

6) memória mutilada

porque tenho medo de esquecer a dorrisco com a ponta da faca um círculo em minha pele e nele guardo em segredo o teu nome

7) adolescência

nos alongamentos da tarde as crianças brincam com seus velocípedesmuito antes de se iniciarem nos caminhos da queda

8) metamorfose inelutável

pássaro esvaído de seus hábitosexaurido, o dia arrasta em sua cauda o comboio de anjos desfigurados

9) o rastro do alferes

do enforcadoa raiz amarga pressente os derradeiros passosda derrocada iminente

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10) a hélice dos peixes

intangíveis exercícios de abismoausculto inescrutáveis desígniosna pele do domingo

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os sobrenomes

Conforta-te lembrar que teus ancestrais tiveram

[vida longa e próspera

e que se especializaram na arte da sobrevivência

Séculos de manipulação agora te separam das

[demandas do sangue

Nascidos em berço de outro

os donatários te legaram bem mais do que as

[faiscantes joias de família

cínicas dentaduras e abotoadura de ouro

(saldos da espoliação de esplêndidos tesouros)

guardadas meticulosamente para adornar-te o esquife

Garimpeiros e posseiros sonâmbulos

afiaram o gume do desmando

massacraram a cosmologia dos indígenas

escravizaram africanos indóceis

porque para eles era imperativo tratar

[a ferro a insubmissão

e passar o arado sobre os ossos dos mortos

A manutenção do domínio absoluto

é terra a ser lavrada a cada dia

com as mãos religiosamente nuas MA

NOE

L A

NTÔ

NIO

DOS

SA

NTO

S

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No encanecido pátio da fazenda

teu tataravô mandava passar a bala

os insurretos que deixaram de ser crentes

teu bisavô (sorriso ainda intacto na moldura da sala)

arrancava os bagos dos escravos forros

teu avô fuzilava friamente

colonos indisciplinados debaixo do sol inclemente

teu pai te ordenava engolir

o último soluço da tarde

Geração após geração

aprendeste as artimanhas do ofício

não mais que os atos de intimidação

não menos que os atos de contrição

das mulheres que guardavam o resguardo

banhando-se com toalhinhas de renda branca

nas noites de plenilúnio

A tudo assististe impassível

com teu olhar aparvalhado

em algum ponto de sua trajetória

Tua estirpe ainda não avistara aquela linha de sombra

infectando o horizonte árido

a dança do germe de quebranto nos genes do

[último patriarca

Agora a tarde desaba com um baque seco

na cumeeira do paiol

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e te dilacera enquanto segues cegotateando no escuro a lavoura de errosAtormentados pelos fantasmas dos que morreram ávidos por justiçahipnotizados antepassados vítimas de emboscadas e epidemias

Na UTI em decúbito recebes as últimas visitasdas testemunhas de seu torpor de morfinafidalgos falidos das capitanias do sangueherdeiros do espanto e inquilinos da porfiaEm silêncio sorves tua última conquistae te regozijas com o soldo dos pusilânimesConsola-te saber que deixaste seguidoresque darão continuidade ao legado da dinastia

Findas em teu leito de morte a sina das vidas provisóriasde teus cinco sobrenomescom tua envergadura corroídano azinhavre do brasão de cobrecom a febre breve da vidana aragem encarniçada das glebas

no ermooremos

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distração

Todas as coisasdistraem-se.

Uma caneta repousadana mesapor exemploé mais do que uma canetaesquecidana mesapor alguém distraído;é uma canetapor si sódistraída,mergulhada em seusdevaneios não-lineares.

NAT

ALI

A R

IBE

IRO

DA

CON

CEIÇ

ÃO

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nostalgias

há infinitos

que me escapam

ideias genuínasverdades místicasrespostas ininteligíveisa perguntas não feitas

tudo issome fogecomo sonhoimediatamente esquecidoao despertar

forço a memóriamas o pressentimentodo intuídoé etéreo

permanecea impressãoprimordialde que a alma

nasceu de outrosúteros N

ATA

LIA

RIB

EIR

O D

A C

ONCE

IÇÃ

O

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o livro de família

Quando Maria se via,Havia um universoEm cada fotografia,Um nó em cada linha.

Quando se via Maria,Havia um vácuo.E, de fato, vazia,Ela avançava um passo.

Então a menina rodavaNas entrelinhas das palavras.Eram pilares de páginasBrancas como a espuma salgada.

E nela se abriam as sílabas mínimasVirando a velha esquina,~~~~Ondas~~~~Percorrendo a espinhaE o pescoço de Maria.

Também uma lágrima caíaEntre letras negras e vazias,Mas que determinavam a sinaQue cada foto do álbum tinha. OT

ÁV

IO T

ED

ESC

O

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No retrato, ela cantava,Sonhava fórmulas mágicas,Infantilmente se amavaEm uma única e adolescente palavra.

Maria, em família, se explicavaE escorria fácil feito água.Um ditado a ditavaE sua antiguidade era intocada.

Eis a família que a salvaraNessa roda de ondas vagas.Mas em noites de reza brava,A mesa de Maria ainda girava.

Então ali ela jantava, ria e se via.Juntava cacos do espelho frioQue sempre lhe afastou do fioEntre o que é real e o que é vazio.

Pois, na sala escura de memórias,A secura dessa históriaSe encheu de vida e de poesiaNo coração fino de Maria.

A menina toda era, sim, uma família,Mas que não se tocava,Nem trocava uma palavra.A menina, inteira, nunca se via.

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Ai, realidade fugidiaDa dor de se saber sozinha,Em um velho livro de fotografiasNa confusão ainda jovem da vidaDa órfã que era Maria!

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verso na caverna

Um verso que seja ternoE escuro, de anseio puroComo o primeiro poemaDo primeiro poeta.

Nas paredes, a mesma dorE talvez a mesma dúvida.O pleno silêncio da noiteBatendo nas costas duras.

O poeta rima sob o açoiteDe gerações de velhos livros.Mas quer a novidade da luzDos primeiros olhos azuis,

Do sentir ancestral, inspirandoUma efemeridade que seja eterna,Como o nascer do poetaPara o seu novíssimo poema.

Estrofe avessa ao moderno,Pedra da idade do ferro,Que, sem por que, (con)versaCom a folha, com o céu,

E com o silêncio da caverna. OTÁ

VIO

TE

DE

SCO

43

OTÁ

VIO

TE

DE

SCO

no palco

Ter uma simples missãoPara executar num palcoNunca é fácil e indolorComo seria em solidão.

Subir no palco é implodir,É sempre sentir vertigensE olhar para cada presenteComo um dependente de ti.

Falar no palco é explodirEm cada palavra outras mil.Executar ao vivo uma obraEvoca a beleza mais sutil.

Mais fácil seria executar,Como um carrasco, pessoas.Mas, por ser artista,Somente sacrifico três coisas:

O palco, o tempo e a mim.Apenas a isso pode recorrerQuem prefere morrer a matar.Ser artista é assim:

Hipotético salvador de alguns,E concreto carrasco de si.Nesse mar de solidãoQue é se encontrar aqui.

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mariana

De vestido desbotadoAtravessa a praça,Os sapatos costurados à mão.O centro da cidadeEstava no lugar errado.

Levava uma mala cheia,Das palavras ditas às caladasDas imagens vistas às esquecidas.Serena, como aquela noite,De passos certos, como ontem.

De terno bem cortado,Calçando sapatos lustrados,Aproximou-se sorrateiro.Sua polidez atropelou,À força tomouCom brutalidade educada.Deixou-a sem palavras,Rasgou as fotografias tiradas.Levou, destruiu, enterrou, eternizouSua indiferença marrom.

Ela, no lugar erradoErrou por ser ela. R

AFA

EL

BA

LDA

M

Ele comprou a razão,Assinou sua isenção.

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mundo digital

Estas linhas que abaixo destas palavras estão,São a monotonia da vida.Estas letras que estás a ler agoraSão o refúgio.Viver é essa constante e recomeçávelRepetição,Com pequenas rupturas para queNão surtemos.Mas nem isso é verdade,Pois estás a ler numa telaQue não tem linhas.Bem-vindo ao mundo digital,Onde todos somos apenas letras,Jamais linhas.Tudo é líquido Tudo escorreE se vai Tudo acaba logoComo esse poema E euE você Nós partiremosE seremos EsquecidosNão existe mais E

SAIM

ON D

Antes que você notasseAcabou

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por isso eu escrevo

SabeNessa vida euPerdi muita coisaPerdi objetosPerdi desejosPorémMinha maior perdaFoi a dos sentimentosE da vidaTambém.Não ferrei sóCom a minhaVidaSei que estragueiAlgumas outras por aíE isso tudoÉ bem triste.Um diaVocê está deitadoSoltando suspirosOu ouvindoAquela músicaQue você amaNo outroVocê ferrou com tudo

E está sozinhoNo quarto.Mais do queNuncaSinto queVou surtarQuando achoEu mesmoInsuportável.Sempre digoQue não façoParte de umaRealidadeNem dessaNem daquelaE de tanto negarAs realidades vãoAcabandoE eu terei de me conformar [comA que restarOu eu possoNão participarDe nenhumaComo sempre fiz. SA

IMON

D

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E que desgraça

De amarga

Realidade

Onde existir

Não basta

Não devo ter

Jeito pra isso

Se alguém tiver

Tido paciência

E lido

Tudo isso

Parabéns

Pois eu não

Leria

Essas coisas

Chatas e comuns.

Eu lembro

De tantos eventos

Que participei

E não lembro

Do significado;

Eu lembro

De desenvolver

Sentimentos

E

Ao mesmo tempo

Vê-los morrer

Bem lentamente

Em mimSem saber como Me ajudarNem como reagir.Eu vi quem souMorrendoPorque precisoMudarPara me adaptarConhecer pessoasE pessoasGostarem de mimMas quem gostarDe mimNão gostaPois já nãoVenho a serQuem fuiE quem gostavaNão me suportouE nem euSuporto.Por issoEuEscrevo.

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classificado

Procuro um amorQue ainda não foi inventado.

E por ser somente ideia,Pode ter sal, doce, granulado.

Visto que ideia não tem som,Pode ser pop, rock, remixado.

E por ser somente ideia,Pode ser rijo, liso ou flanelado.

Visto que ideia não ter cor,Pode ser azul, preto, malhado.

Procuro um amorQue ainda não foi inventado.

Visto que ideia não tem dor,Pode ser louco e apaixonado.

Se virdes um desses pelas ruas,Responda a este classificado.

SAR

AH

PA

SSOS

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vocês

VocêVocê e elaVocê e ela acharamVocê e ela acharam que iriaVocê e ela acharam que iria durarVocê e ela acharam que iria durar para sempreVocê e ela acharam que iria durar, pararamVocê e ela acharam que iria, duraramVocê e ela acharam, iraVocê e ela, acharamVocê e elaVocê

VÍT

OR C

AM

POS

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desgraça na vila

Havia uma moça na vila,De cima a baixo corria,O tempo para ela não existia,Era algo fictício, inversão de gente desocupada,O que existia mesmo era um inimigo a desviá-la [de suas tarefas.

Certa vez terminou suas tarefas rápido demais,Sobrou-lhe tempo... Bicho esquisito que trazia [a galope a espera,— O que é esperar? — Perguntava-se ela,De não conhecer essa coisa, enlouqueceu.

Ajoelhada no chão erguia clamores aos livros,Pedaços de vida guardados na estante,Mas eles não respondiam,Apenas deixavam seu prazer mais distante, e veio a agonia,Agonia essa a espera lhe trouxe como amiga.

Não havia para onde correr, E ali padecia,De repente passou a amar a espera,Passou a esperar por tudo, até que certo dia...Desgraça, a moça esperou demais...

W.G

.

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meias enroladas

She had a pink elephant. He had a blue a shirt. Who said love has one color, then?

O vento soprava, a folha mexia, o cavalo anda-va, o casal sorria. Lá em cima as nuvens brincavam de pique-pega, e o sol, de pique-esconde. Cá embaixo, as crianças faziam o mesmo: corriam e pulavam e brinca-vam e gritavam, suas vozes enchendo o ar de infância. Tão pura, tão bela.

Um menino, um desses que estavam aí pulando e brincando, sentou-se à beira da fonte, a água respin-gando em sua nuca já molhada de suor. O rostinho co-rado brilhava quando o sol resolvia sair, e ele franzia o nariz e mostrava os dentes (e todas as ‘janelinhas’ e ‘porteirinhas’ que a idade permitia) quando olhava para frente e o amigo lá de cima ofuscava sua visão. Não devia ter mais de seis ou sete anos, creio eu. Não era muito mais velho do que eu era quando via passa-rinhos na rua e refreava (com pouco sucesso) minha vontade de espantá-los, só para vê-los voar.

Os cabelos do menino eram curtos e castanhos, da mesma cor dos olhinhos que brilhavam quando viam o vendedor de ‘nuvens coloridas’ passando logo à frente. Estava eu pronto a me levantar e trocar umas poucas moedas só para vê-lo tocar um pedacinho do céu em forma de doce, mas me contive: ele não preci-saria mais daquilo. B

.G.

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Sentou-se ao lado do menino uma garota não muito di-ferente dele. Ousaria dizer que esta não passava de seis prima-veras, mas exibia o mesmo sorriso esburacado que seu compa-nheiro de fonte. Os cabelos estavam menos suados que os do menino, e eram pouco mais escuros e pouco mais longos. O rosto? Corado igual.

Vestia ela um vestidinho branco com florezinhas amarelas, que pareciam sinal de primavera a quem a visse. Os pezinhos mal tocavam o chão de pedra, e eram calçados por sapatinhos brancos e meias brancas também. Ela trazia na mão um elefante de pelúcia rosa, que mesmo cansado de todas as brincadeiras sem fim, exibia seu sorriso costurado (com sardinhas de ambos os lados!) e seu olhar engraçado.

O elefante quase lavou a pontinha da tromba quando ela levou a mão ao ouvido do menino e disse algo engraçado, os pezinhos balançando no ar. O menino, surpreso, esticou as pró-prias perninhas e pôs-se a olhar as meias que subiam da suas botinas marrons. Você pode estar se perguntando: ‘short, meias e botinas?’, é uma combinação estranha, de fato. Mas este não foi o primeiro a se vestir assim que conheci.

O garoto manteve as perninhas esticadas enquanto a me-nina apontava o que a trouxera até ele, com boas gargalhadas: suas meinhas estavam enroladas! Se fosse possível, eu diria que o rosto do menino ficou mais corado ainda, e eu podia sentir no meu o calor que se passava por trás de todo aquele rubor.

Levantei-me e fui jogar uma moeda à fonte. Não podia, por nada, perder aquele momento onde meu amigo de longa data estava para nascer. Enquanto eu caminhava, o menino olha-va para a garota que saltitando se afastava. Ao perceber sua au-sência, ele mais do que depressa se ajoelhou e pôs-se a arrumar

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a meinha enrolada. Primeiro na perna direita (a boa de chutar bola, como ele dizia) e depois na esquerda.

A tarde caía e as mães levavam suas crianças para casa. No dia seguinte algo interessante aconteceu: esse mesmo garoto se sentou sobre a mesma pedra que cercava a fonte e ficou a esperar, olhando para os lados, franzindo o nariz quando o sol batia-lhe nos olhos e balançando as perninhas. Não pude deixar de notar suas meias: estavam impecavelmente alinhadas. Mas ela não apareceu.

Ela não apareceu no dia seguinte e nem na semana seguin-te, e o rosto do menino começara a ficar corado não por correr daqui para lá, mas por ficar o dia todo, sob o sol, esperando sua companheira de fonte voltar. Em vão. Comecei a me preocupar.

Pelo meio da segunda semana de espera do garoto, resolvi intervir: levantei-me e peguei algumas moedas, mas não joguei-as à fonte. Entreguei-as na mão do garoto e disse-lhe para com-prar um pedacinho do céu, para que a espera fosse mais doce. Não sei se ele me havia entendido, mas voltei ao banco: dever cumprido!

De fato, o pequeno menino não entendera o que eu quis dizer: foi ao homem que vendia as ‘nuvens coloridas’ e trocou as moedas num saquinho. Fiquei-me perguntando o que seria aqui-lo. O menino voltou, sentou na mesma pedra e abriu o pacote. Enfiou os dedinhos magrinhos lá dentro e tirou de dentro uns grãos pouco grandes e escuros. Colocou um na boca e aprovou o sabor, mas não comeu mais. Lambeu a ponta dos dedos e es-fregou-os na manga da camiseta azul.

O menino se levantou e começou a espalhar, em volta da fonte e perto dos bancos, cada um daqueles grãozinhos. Passou por mim com um sorriso de porteiras e colocou um dos grãos

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sob meus pés. Foi então que percebi o que eram.

Voltou-se e se sentou na mesma pedra, agora cercada de grãozinhos pouco grandes e escuros. Seu semblante, outrora apagado, agora exibia uma sensação de certeza. Não havia como isso falhar, era o que pensamento que passava em sua mente infantil.

E, de fato, ele estava certo.

Minutos depois passou por mim um clarão com flores amarelas, um próprio sinal da primavera que se aproximava! Se-guido de perto por algo rosa e felpudo que balançava, conforme a menina saltitava. O menino abriu seu melhor sorriso, as perni-nhas balançando de entusiasmo.

Peguei minha última moeda e levei-a à fonte: este era meu último pagamento para presenciar o que estava para acontecer. Dei passos vagarosos e observei a cena toda:

— Eu sabia que você viria! — Dizia o menino, sorriso no rosto, brilho nos olhos.

— Ah, é? E como? — Desafiou a garota, querendo saber.

— Eu ouvi dizer que elefantes amam amendoim. — Ex-plicou o menino, pegando um dos grãozinhos escuros que os rodeavam. — E o seu tem um nariz bem grandão! Eu sabia que ele ia achar...

Não contive meu sorriso. Lancei minha última moeda à fonte e fiz meu desejo: que seja verdadeiro! Saí de perto, mas não antes de notar as meinhas da menina.

Estavam enroladas.

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FAB

IO M

OUR

A C

AVA

LCA

NTE

pra não dizer que não falei das margaridas

Sentada numa das muitas colinas próximas da al-deia em que morava, a menina via a fumaça que emer-gia das chaminés das casas, indicando que o dia estava se encerrando. O céu estava alaranjado, o que tornava a visão muito mais agradável, na opinião dela, e o que significava que muito em breve sua mãe se zangaria caso ela não chegasse para o jantar antes de escurecer. Havia tranquilidade em sua expressão, pois tudo aquilo em sua volta era belo. E fazia parte dela. O relevo ver-dejante era corpo e o cânone dos pássaros era alma.

Assobio ecoante. Explosão.

E como na morte, corpo e alma se desencontra-ram perpetuamente.

///

Nas ruínas do vilarejo devastado, entre as cons-truções destruídas e as vidas perdidas sobre o chão, se fez uma frágil trilha de terra. Sua existência é um provável resquício de uma estrada que não resistiu aos balaços provindos do horizonte e sua permanência é quase tão incerta quanto o destino das almas alforria-das com a explosão. Qualquer corrente de vento que passava por entre a catástrofe mudava seus limites e abalava a tênue distinção entre caminho e vestígio do caos. Sua instabilidade muito se assemelhava às per-nas anêmicas da criança que caminhava sobre o trajeto

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efêmero e transitório, que bambeavam também junto do vento. Suas pegadas oscilantes vinham de um morro coberto de vegeta-ção morta e cinzas.

Não se sabe mais dizer se era uma menina ou um menino, pois suas vestimentas estavam indistinguíveis de trapo queima-do, servindo apenas para cobrir suas vergonhas. O cabelo todo chamuscado não apresentava forma definida, e o que restou dele não dizia nem que se tratava de uma menina nem de um meni-no, pois ali, naquele lugarejo, elas mantinham os cabelos com-pridos até abaixo dos ombros; e eles, curtos com um penteado comum. Pouca importância tinham agora os fios queimados em sua cabeça, não havia outra distinção entre as crianças que não fosse as de corpos inertes e... ela.

Os passos caminhavam perdidos, mas com um objetivo certo. Eles eram os mesmos que ela faria normalmente em al-guns minutos para ir jantar em companhia da família se não ti-vessem todos sido bombardeados. É claro que agora seus passos estavam mais lentos, porque existia neles, além da evidente dor física, uma hesitação: ela não sabia se queria mesmo chegar a sua casa e encontrar o que já sabia que encontraria. Resolveu seguir.

Sentiu as pernas doerem e quase caiu. Ela deveria continu-ar até encontrar sua família e por isso persistiu mais um pouco. Dizem que uma dor mais intensa tende a atenuar outra menos intensa quando elas ocorrem simultaneamente. Talvez seja por isso que, quando imaginou seus pais e irmãos naquele cenário, ela tenha se esquecido do padecimento que estavam suas per-nas, mesmo estas suplicando por um descanso.

Além das pernas, havia dor em quase todas as partes do corpo que ela sabia nomear, as mais sensíveis estavam queima-

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das e as mais expostas apresentavam arranhões e chagas. Ain-da faltavam uns bons metros para chegar aonde costumava ficar o seu lar, e onde provavelmente estariam seus entes queridos, quando a brisa novamente trouxe dor para ela. Não na forma de poeira para suas feridas ou de impulso para suas pernas, mas de uma delicada margarida arrastando pelo chão.

Ela veio girando suavemente da direção a qual a menina estava indo. Era uma margarida feita à mão com algum tecido leve, mas ainda inacabada. A mãe da menina que a fez, e ela era apenas mais um dos belíssimos trabalhos artesanais que a mu-lher comercializava informalmente no vilarejo, para ajudar no sustento da casa. Ver aquilo foi suficiente para enfraquecê-la ain-da mais, e por isso ela pensou que talvez não fosse forte o bas-tante para ver a sua família agora.

Então, suas pernas cambalearam mais uma vez e a dor não a permitiu mais se manter em pé. O solo revestido de poeira foi o que seus braços feridos encontraram ao cair, sua boca se abriu e seus olhos se fecharam, ia chorar. Um ruído seco semelhante ao pio de um filhote de pássaro foi a única expressão que conseguiu manifestar, no entanto. Não saíam lágrimas dos seus olhos, estas são um luxo para quem sofre com tamanha intensidade, pois são libertadoras.

Juntou forças e abriu novamente os olhos: viu a obra ina-cabada da mãe diante de si. Não havia vida nela mais do que em tudo que a rodeava, evidentemente, pois se tratava de uma flor de tecido. Porém, lembrou-se de todo o procedimento da habi-lidosa artesã que cortava os tecidos com formatos já definidos, engomava e esquentava nos moldes para dar forma às flores. Só depois pintava, dando, finalmente, vida a elas. No caso, a menina estava diante de um exemplar que não havia sido pintado e tal-vez por isso parecesse tão vazio. Logo imaginou vários modelos

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deixados por sua mãe em cima da mesa da cozinha só esperando esfriar para poderem ser coloridos. Por conta disso, nessa noite eles jantariam juntos na sala, o que era a melhor parte da mãe utilizar a cozinha como ateliê, na opinião dela.

Não era justo. Nada daquilo era, na verdade. Mas não era justo que sua mãe não tivesse tido a oportunidade de finalizar aquela margarida, pensou ela. Sentiu a ardência em suas pernas aumentar e as segurou com força para ver se a dor parava. De nada adiantou isso senão para lhe dar uma boa ideia. Olhou para as pernas que continuavam imóveis no chão e para a pequena flor descolorida, em seguida levou o dedo indicador que aper-tava as coxas até ela e acariciou pétala a pétala, suavemente. Ela suspirou, e sua respiração foi ficando cada vez mais fraca... era como se a vitalidade dela estivesse sendo passada por meio do dedo ao tecido, pois após o gesto, este se tornou inteiro escar-late.

Todo o restante de vida que ela deixou na obra de sua mãe foi absorvido rapidamente pelo tecido, e ela viu com satisfação cada fibra deste ser preenchida de uma cor bem mais atrativa. No entanto, ela cedeu vitalidade demais para a pequena flor e, por conta disso, surgiu um acúmulo na extremidade da pétala mais inferior, onde se formou uma gota vermelha. Infelizmente, essa gota foi aumentando e, com ela, as pétalas foram desbotando, como se não quisessem a oportunidade de serem vivas diante daquele cenário.

O acúmulo se desgrudou da pétala e caiu no chão, mas não o manchou mais do que já estava manchado, foi apenas um pingo insignificante diante de uma poça avermelhada. Todo o esforço em transferir vida à flor pareceu inútil agora, pois aquilo era só mais uma gota na imensidão que já havia desperdiçado pelas pernas feridas. Entretanto, não significava mais vida, era

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apenas plasma, plaquetas e hemácias. Todos eles perdidos. Aqui-lo agora só significava a vida sendo perdida prematuramente e aos poucos.

Ela deu mais uma olhada na flor descolorida a sua frente, o único elo que conseguiu alcançar da família. Ela fora fraca, não chegou ao menos a se despedir de maneira digna deles, pois se-quer os encontrou. Com o resto de força que tinha, trouxe o or-namento junto de si e o apertou próximo ao peito, o local onde sentiu a última de suas dores e o último de seus alívios.

Antes de fechar os olhos, uma lágrima escorreu. Estava livre.

///

Não há pintura ou fotografia sobre ela. Não há versos de um poema grandioso para ela. Não há um legado deixado por ela. Se ao menos a flor em seu poder desabrochasse...

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FER

NA

ND

A P

APA

caminhando...

Caminhando pela Avenida Brasil, lamentava o fato de o Jardim Botânico estar fechado e o quão cha-to era o intenso tráfego por ali — leitores desavisados irão supor que se trata de solo carioca.

Em um acesso de “devir”, comecei a correr. Per-cebi que a Lua estava em minha direção e, de repen-te, eu estava no meu quarto. Relia a contracapa de O Homem e seus Símbolos. Jung usa carros dobrando a esquina como uma analogia de lembranças guardadas no inconsciente. Olhei bem para cima. Queria tirar al-guma coisa daquela pelota luminosa enroscada num tufo de nuvens. Com desdém, ela sumiu.

Fiquei me perguntando se não faria mais sentido traçar a analogia do inconsciente e suas memórias com a Lua, ao invés do carro em movimento. Ela depende do Sol para aparecer. Ocasionalmente é até confundida com ele. Nem sempre é possível vê-la por inteiro. Mas ela está sempre lá.

Disso tudo me restou apenas um questionamen-to: ou a psicanálise é uma filosofia extremamente refi-nada ou um delírio extremamente engenhoso.

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antagônicos

O grande relógio tique-taqueava na estação de localização incerta. Seu ponteiro maior acusava o nú-mero onze; o menor, em poucos instantes, indicaria o número dez. O tempo, com sua certeza de progresso e sua fantasia reconfortante de retrocesso, alimentava a estação movimentada, na qual se encontravam duas plataformas cujos trens gritavam e soltavam sua fúria fumarenta.

Em uma das plataformas, o trem que somente rumava à esquerda permitia unicamente a entrada de seus passageiros. O trem que caminhava apenas à direi-ta, por sua vez, consentia a seus indivíduos a saída para a estação, deixando-os a mercê da sorte — caso, assim desejassem acreditar nela —, fazendo-os seguir seus próprios passos e criarem suas próprias histórias.

O trem que embarcava tinha como maquinista um homem trajado de terno negro. Sua pele era tão pálida quanto a neve, e seu olhar tão rígido quanto o gelo. Suas expressões eram limitadas e seus gestos, meticulosos. Chamavam-no de Morte, embora outros nomes fossem atribuídos a tal criatura.

O trem de desembarque, por outro lado, era co-mandado por uma mulher de semblante gentil e astuto. Seu olhar era esperto e levava consigo um caráter que podia ser duvidoso e traiçoeiro. Não era má, tampouco boa. Era, na verdade, o equilíbrio perfeito de todos os

JESS

ICA

MA

ME

DE

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sentimentos humanos. Vida era seu nome; Começo e Recomeço eram suas divindades.

No meio da multidão desamparada, Morte cumprimentou Vida sutilmente com um leve inclinar de cabeça. Ela retribuiu o gesto, sorrindo para seu oponente, aproximando-se para iniciar uma discussão.

— Morte, como estás?

— Não precisas ser tão convencional, minha cara. Sabes muito bem o quanto as cerimônias factícias de saudações são cansativas a mim.

— Na verdade, meu caro — rebateu Vida. — Tu tendes a cansar-te por qualquer coisa, seja ela convencional ou não.

— Talvez — assentiu o outro, sem demonstrar arrepen-dimento. — Mas deves concordar que o convencional é a tua artificialidade, não a minha.

— Preciso de um pouco de artificialidade para manter-me, sabes muito bem disso.

— Sempre com um toque otimista, não é, minha querida? — riu discretamente Morte. — O quão enfadonho isto te pare-ce?

— Não tanto quanto esta nossa conversa, posso garantir.

Morte revelou um meio sorriso sarcástico, divertindo-se, o quanto lhe era possível, com o diálogo prescindível.

— Lembra-te que tu começaste com ela — controverteu.

— E arrependo-me amargamente, como de costume.

— São comuns a ti os arrependimentos, não são? — Morte fitava Vida com uma das sobrancelhas erguidas. Pousou o braço direito sobre o esquerdo, batendo o indicador em seu queixo

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pontudo. — Pois eu, posso dizer, vanglorio-me por não saber o que é este sentimento pueril.

— E teria, por acaso, algum sentimento, senhor? — pro-vocou Vida.

— Poucos.

— Nenhum.

Vida riu secamente, depositando um olhar frio à Morte.

— Não sabes nada sobre os sentimentos — continuou. — Tu tiras-me do mundo sem compaixão. Não há piedade em ti. Não importa a idade que eu atribua, tu, como um demônio sedento por sangue, arranca-me pela raiz, não se importando com os buracos e as feridas deixadas por tua miserável presen-ça. Tu és o diabólico ceifador; o brutal escarnecedor de minha existência.

— Bem, senhora — suspirou Morte. — Tu disseste o que desejavas. Quanto a isto, não ousarei refutá-la, de forma alguma. Pelo contrário. Julgo-me tão insensível quanto tu disseste a meu respeito. Todavia, minha querida, esqueceste de que também não és a flor mais bela e mais cheirosa deste campo. Tu, assim como eu, tens o dom da crueldade em tuas entranhas, apenas esperando a hora certa de dar o xeque-mate neste grande tabu-leiro de xadrez.

— Como ousas? — contestou Vida. — Semelhas-me a ti? Que comparação mais incabível. Eu sou o ar da salvação e da glória. Tu és o odor de enxofre que me infesta e repugna-me. Não sou como tu, meu querido. Sou teu oposto; o bem que fal-tas em ti.

— Que bonito. Emociona-me com as tuas nada modestas palavras — retrucou o Ceifador. — Impressiona-me o fato de não

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ficar corada com tamanha indecência verbal.

— O que insinuas?

— Não insinuo. Afirmo.

— E o que afirmas?

— O óbvio. Afirmo que és tão cruel quanto eu. É verdade que tiro o teu brilho, mas tu, muitas vezes, és uma megera com quem a tem. Às vezes tua tirania é o caminho certo para me pro-

curarem e terem êxito na busca.

— Eu dou o livre-arbítrio, coisa que tu não fazes. Não sou nenhuma criatura perversa. São as circunstâncias e os rumos atribuídos a mim os responsáveis pelos infortúnios. A maldade simplesmente aparece, porém, senhor, não sou a semente deste

floral de caos.

— Esquiva-te da verdade como um gato foge d’água — iro-

nizou Morte. — As circunstâncias são relevantes, mas não me convences de tua falta de participação neste esquema sujo e ca-lamitoso.

— Estou farta de tuas argumentações pobres! Aceite teu cargo, meu caro. Não podes fugir de tua função e do peso que

ela causa-te nas costas.

— É mais fácil fugir do assunto, isso é verdade. Quanto

ao meu cargo, engana-te sobre o peso que ele, segundo tuas re-flexões, podem me causar. Não tenho queixas de meu trabalho. Faço-o como deve ser feito. Ponto final.

— Como vês, és um maligno mesmo — triunfou Vida. — Se o cargo não te é extenuante, significa que gostas de exter-minar a beleza que ofereço...

— Ou a fealdade — interrompeu Morte. — Depende mui-

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to do contexto de cada um. E o trabalho, este pouco importa se é agradável a mim ou não. Os sentimentos são inconsequentes. Faço o que fui destinado a fazer, simples assim. Não sou como tu que ficas a rotular tudo ao teu redor. Há coisas que não precisam ser romantizadas com explicações chulas.

Vida, mergulhada em seus pensamentos mais profundos, sentia-se derrotada com a confusão que aquela conversa lhe cau-sava. Ela não podia negar que Morte possuía bons e fortes argu-mentos defensivos. Todavia, não podia deixá-lo vencer. Seu orgu-lho sairia ferido, e isso ela não suportaria. Além disso, acreditava veementemente em sua santidade e, por conseguinte, na falta de escrúpulos de seu opositor. Ela era o bem. Consequentemente, ele era o mal.

Morte, por sua vez, não se corroía; tampouco se pertur-bava com pensamentos danosos, muito menos com o diálogo oferecido por sua colega, cuja teimosia destinava à adversidade. Este aborrecimento era irrelevante e insignificante à Morte, o qual, não vendo fundamento à rivalidade, não se permitia preo-cupar-se com os caprichos de Vida. Ele sabia que ela era vaidosa e obstinada. Não tentaria mudar algo tão sublime em um ser tão excepcional.

— Sabes quantos me procuraram hoje? — prosseguiu Morte, impassível. — Foram tantos que os números são despre-zíveis. Tiraram-te através de saltos de pontes, esmagamento por desastre de trens, envenenamentos, disparos melodramáticos por armas de fogo, pulsos sangrentos por cortes irreversíveis. São tantas as formas de acharem-me. Parece que, por conta da ânsia de conhecerem-me, a criatividade não tem limites. E sabes por que me procuram, minha querida? — insistiu. — Porque não a suportam mais. Desculpe-me a insensibilidade. A verdade é um docinho bonito, porém seu gosto é de fel.

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— Basta! Não cansas de tentar me abalar? Não suportas o fato de que estou certa e de que precisam mais de mim do que de ti? Isto não é óbvio? Tu és o único a abster-te da verdade com gosto de fel. Em nenhum momento dedicou-te à arte da humil-dade para revelar-te como de fato és.

— Humildade, ela diz! — apontou Morte. — Tu não co-nheces o significado desta palavra, mas tenta, hipocritamente, ensinar-me tal proeza. De fato, esta característica não me con-vém. Não sou e nunca serei humilde. Não venhas com tuas falsas modéstias e tuas frases ensaiadas. Vomitas injúrias. És cheia de jogos elaborados para culpar-me unicamente pelos atos infelizes, quando, na verdade, és tão pretensiosa quanto eu; tens tua par-cela de culpa neste grande mercado. Contudo, ao contrário de ti, não nego o que sou e os desprazeres que levo. Também não nego não sentir remorso algum. Os atos foram executados; não há chances de olhar para trás e lamentar-me pelo que já aconte-ceu. Tu, por outro lado, és dissimulada e, por sentir o peso das causas, tentas desviar-te, colocado toda a responsabilidade sobre os meus ombros, saindo como a heroína desta história cretina. Podes enganar a muitos, mas a mim, criatura ardilosa, não enga-narás. Tua falsa generosidade enoja-me.

— Ofendes-me com palavras afiadas como adagas, expon-do-me ao ridículo ao tentar desmoronar-me.

— O drama é a tua arte, não é?

— Não. O drama não é a minha arte, querido. Sou a dama das oportunidades e das realizações...

— ... dos desesperos e das tragédias — completou Morte com um riso nasalado.

— Cansei de tuas ofensas. Não importa o que eu fale, tu sempre tentarás apedrejar-me com afrontas.

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— Lembra-te: tu começaste tudo.

— Sim, comecei este circo de horrores. Farei o favor a nós dois de interromper, antes que os insultos piorem e a pouca ami-zade que temos fique mais abalada do que é de costume.

— Lisonjeia-me com tua amizade, senhora — ironizou. — Lembrar-me-ei deste nosso laço futuramente.

Vida mirou Morte com reprovação. O sujeito era irritante-mente inteligente, e esta arma poderosa deixava Vida com receio e uma ponta de inveja. Não apenas a inteligência de Morte era invejável. Sua astúcia e capacidade à indiferença eram memorá-veis. Vida desejava ser mais apática às circunstâncias. Quem sabe, assim, realizaria sua tarefa melhor. Morte tinha sempre grandes progressos com seu trabalho, enquanto ela, Vida, frustrava-se com os muitos desfechos inexplicáveis e espantosos.

Vida depositou o último olhar à Morte antes de voltar a seu trem. Virou-se e começou a caminhar, mas deteve-se quando Morte fez sua última observação:

— Não fiques brava comigo, querida. O que disse foi para mostrar-te que somos iguais, tu querendo ou não. Eu, assim como tu, faço o bem e o mal. Não somos perfeitos. Somos sim-ples instrumentos que a Natureza criou. Nem mesmo a lenda do Imortal seria capaz de atingir a perfeição.

Morte, de um jeito zombeteiro, observou Vida, a qual ain-da lhe dava as costas.

— Confesse, minha senhora: tu sabes que estou certo, não sabes? Confesse que também é a causadora das desventuras.

Vida deu um meio sorriso divertido. Lentamente, voltou a fitar Morte, o qual, com braços cruzados, mirava-a com pronti-dão. Vida inclinou a cabeça levemente para o lado direito e, com

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a arrogância que lhe caía tão bem, respondeu:

— Jamais.

Desta forma, Vida e Morte despediram-se, retornando às suas funções rotineiras que não lhes permitiam folgas.

Os apitos dos trens soaram e, assim, com as máquinas em funcionamento a todo vapor, cada um rumou a seu destino, fos-se ele o começo ou final da jornada.

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em nome do pai

Sentada no banco, as perninhas balançando no ar, a menina olhava com curiosidade o local que, a seus olhinhos grandes de criança, parecia um daqueles ce-nários macabros de filme de terror. Os vitrais coloridos não amenizavam. O ambiente era escuro, com vários bancos de madeira pesada alinhados pela arquitetura ecoante. À frente, a imagem de um homem seminu pregado em uma cruz. Era perturbador encará-lo. Sa-bia quem era, pois sua mãe já havia contado a histó-ria do homem que morrera para salvar os pecados do mundo.

Os Natais e as Páscoas, a garotinha decorou, eram para comemorar, respectivamente, o nascimento e a ressurreição daquele homem cujo nome era igual ao do padeiro que trabalhava próximo à sua casa. Por um bom tempo, pensou que o padeiro fosse o Jesus que as pessoas tanto comentavam, principalmente aos domingos, na missa. Afinal, disseram que ele tinha res-suscitado e, pela explicação de sua mãe, ressuscitar sig-nificava ressurgir, reviver. Mas Jesus, o padeiro, não era o Jesus, filho de Deus.

Na igreja, sentadinha no banco como sua mãe havia pedido, observou com mais detalhe à sua volta. Como era sombrio! Em um canto, a estátua de uma mulher coberta dos pés à cabeça a deixou desconforta-da — não tanto quanto Jesus machucado na cruz. Era a

JESS

ICA

MA

ME

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mãe dele. Parecia triste, mas a menininha entendia: não devia ser fácil ver um filho morrer, ainda mais daquela forma tão violenta. Do outro lado, a imagem do santo padroeiro da igreja com as mãos ensanguentadas. Perto do santo, uma espécie de caixão de vidro — como o da Branca de Neve — abrigava o corpo falso de Jesus mais ensanguentado do que as mãos do santinho. Seus pés e suas mãos eram os que mais estavam machucados.

A menina sentiu um calafrio. Não gostava de estar ali, por mais que sua mãe dissesse que era o lugar mais seguro do mundo. A mulher deixou a filha ali aos cuidados de Deus e do padre, enquanto ela visitava sua mãe enferma no hospital que ficava próximo à igreja. Não conseguiu deixar a criança em casa porquanto a emergência fora de última hora. Mas também não queria levá-la ao hospital consigo, pois não achava apropriado para uma menininha de sete anos. Além disso, não faria bem à garotinha ver sua avó tão debilitada.

Desta forma, a menina ficou no banco da igreja por um bom tempo, mirando Jesus, Maria e o santo, todos tão debili-tados quanto sua avó. Ficou sozinha, fitando tudo o que podia, várias e várias vezes.

De súbito, um homem surgiu de trás do altar, atravessan-do uma cortina cor de vinho que ocultava o interior da sacristia. A garotinha olhou-o com espanto; assustara-se com sua chegada repentina e com seu semblante disfarçado de anjo. Trajava uma calça preta e uma camiseta branca, de mangas longas. A mãe dis-sera que era o padre, o responsável pelas missas dos domingos. Era o porta-voz de Deus, responsável pela propagação dos ensi-namentos divinos.

Aproximou-se lentamente da garota, deixando seus sapa-tos pretos fazerem barulho no piso frio da igreja, permitindo que

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o eco persistisse no silêncio. Sentou-se e fez-lhe companhia no banco de madeira. Ela o olhou intrigada. Ele continuou a sorrir, sem que o gesto fosse recíproco.

— Sua mãe ainda não chegou, meu anjo? — perguntou, em tom forçado.

— Não — respondeu baixinho.

— Acho que ela vai demorar.

Deu-se a liberdade para passar a mão nos cachos da garoti-nha. Ela não conseguia mais encará-lo, desviando seu olhar para o outro lado. O padre continuou ali, afagando o cabelo da meni-na, descendo sua mão em direção ao pescoço macio e, depois, massageou a bochecha dela por um bom tempo.

— Você é tão bonitinha, sabia? — sussurrou.

A menina não sabia o que fazer. Desejava que sua mãe vol-tasse e fosse embora o quanto antes daquele lugar soturno, com aquele sujeito estranho.

Da bochecha, o padre passou a acariciar a perna da garoti-nha. Ela usava um vestidinho amarelo e ele permitiu-se levantá-lo um pouco. Desta vez, não usava a leveza nas mãos como há pouco tempo. Afagava com mais intensidade, quase deixando a marca de seus dedos gordos.

Ela o encarou assustada. Seu coraçãozinho parecia um li-quidificador em seu peito. Ele continuava com aquele sorriso que o desmascarou: do anjo, podia-se ver o diabo.

— Você gosta de doces, querida?

Ela balançou a cabeça, positivamente.

— Você quer alguns doces? — perguntou, sorrateiramen-te. — Tenho muitos doces gostosos na minha casa. Você quer?

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— Onde é a sua casa? — questionou a menina, com os olhinhos arregalados.

— Fica nos fundos da igreja, lá fora — disse em voz bran-da. — Quer ir buscar uns docinhos comigo?

A menina hesitou, a princípio, porém o padre continuou insistindo, sempre de maneira gentil. Então, ele levantou-se do banco e ofereceu-lhe a mão. Ela a aceitou, assim, os dois percor-reram o corredor, deixando o barulho de seus sapatos no ar.

O padre mostrou a porta que dava ao pátio da igreja e, logo adiante, a casa paroquial podia ser avistada. A menininha continuava a segurar a mão do homem, embora não tivesse mui-ta certeza se aquilo era uma boa ideia.

Saíram, cruzando o pátio em direção à pequena casa do padre. Ele a mirou e, enquanto caminhavam, alertou-a:

— Promete uma coisa? — indagou, obrigando-a a concor-dar. — O que acontecer lá dentro não deve ser contado a nin-guém, entendeu? Nem mesmo à sua mãe. Promete?

Insegura, a garotinha apenas aceitou, dizendo em voz bai-xinha:

— Prometo.

— Ótimo! — sorriu o padre. — E mesmo se você contar, nin-guém vai acreditar em você. Você quer ser chamada de mentirosa?

— Não — murmurou ela.

Assim, chegaram à porta da casa paroquial. O padre fez a menina entrar primeiro, depois logo a seguiu, sem antes dei-xar de observar cada canto do pátio, certificando-se da ausência de testemunhas. Vendo que ninguém estava por perto, fechou a porta e, lá dentro, trancou-a com três giros de chave.

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Na igreja, Jesus continuava crucificado e deprimido, mas tinha um aspecto mais lamentável e angustiante. Maria parecia mais triste, quase chorosa. O santo de mãos machucadas não podia lavá-las.

A igreja repousava no silêncio; um silêncio perturbador e dolorido. A tranquilidade que pairava sobre a arquitetura do local era falsa. Aquela não era a casa de Deus.

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diário de um doutorado: o mundo acadêmico

O Doutorado é uma entidade quase material, com cara de esperança. Ele também tem cara de di-ploma (mas é muito mais que isso!). O Doutorado vive num mundo chamado Acadêmico. O Mundo Acadêmi-co é formado essencialmente de gases: são muitos egos inflados que formam a maior parte de sua composição. Muitos dizem que o Mundo Acadêmico é uma bolha. Logo, não há dúvidas sobre a sua natureza gasosa. Este fato prevê a presença de algumas coisas que, definitiva-mente, não cheiram bem. Não se sabe exatamente se o Mundo Acadêmico existe dentro do Mundo Real, ou se seus gases são tão nobres que fizeram com que o Mun-do Acadêmico se volatilizasse para fora do Mundo Real. Mas não se enganem, a despeito de ser formado por gases, o Mundo Acadêmico é, várias vezes, sufocante.

A maior parte da população do Mundo Acadê-mico é formada pela Graduação. Durante muito tem-po, a diferença entre a população de Graduações e de Mestrados e Doutorados era muito grande. Mas, todo mundo sabe que pressão é um fator importante quan-do se trata de gases, por isso, ao tudo indica, parece que foram pressões externas que fizeram surgir mais Mestrados e mais Doutorados.

Das três entidades que habitam o Mundo Aca-dêmico, as Graduações são as que, normalmente, têm a aparência mais jovial, e são, no geral, elas que têm a M

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maior expectativa de vida dos três. Mestrados e, especialmente, Doutorados têm uma aparência mais polida, mais sóbria, mais cansada também. É muita cobrança de “postura adequada” so-bre os Doutorados, mas, geralmente, todos eles têm é dores nas costas.

Cada Doutorado tem seu próprio nome, e há famílias in-teiras de Doutorados. Geralmente, a apresentação completa de um Doutorado é assim: Doutorado em Abobrinhas pelo Progra-ma de Pós-Graduação em Chongas da Universidade Não Sei das Quantas — UNSQ. E certamente, numa ocasião de apresen-tação formal, o Doutorado estará vestido de seu título. Há títulos curtos. Mas esses são para os Doutorados mais ousados ou para os mais simples. Há títulos bem compridos. Há quem diga que tais títulos mostram coisas demais, que têm partes do Doutorado não deveriam aparecer logo de cara, no título. Enfim, há muito moralismo no Mundo Acadêmico, e um Doutorado pode ser jul-gado se ele estiver tanto com um título longo ou com um curto, tudo dependerá da moda em voga. É certo dizer que há tendên-cias entre os Doutorados, especialmente aqueles de Humanas, para o uso de títulos bem compridos. Mas é isso, a moda é feita de tendências, a certeza é a de que todos repararão no título, e muitos nunca irão olhar além disso.

A moda do Mundo Acadêmico, como pode se esperar, afe-ta a todos, mas são os Doutorados os mais cobrados para serem elegantes. Ai de um Doutorado que não siga todas as regras da moda do Mundo Acadêmico! Sobre a moda, pode-se dizer que Doutorados ficam muito elegantes com objetivos claros, inde-pendente da estação do ano! Sempre claros! E também com boa escrita (que são cada vez mais difíceis de serem encontradas por aí). Todo mundo tem falado que a qualidade da escrita caiu mui-to no Mundo Acadêmico, quando uma boa escrita é encontrada,

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tem um custo altíssimo, não é à toa que tem muito Doutorado por aí andando com uma escrita péssima! Acessórios como ta-

belas, gráficos, figuras, notas de rodapé, anexos e apêndices às vezes fazem toda a diferença e disfarçam bem uma escrita, assim,

meia boca.

Os Doutorados se sustentam por meio de artigos. A com-

posição de seus corpos é cerca de 70% de artigos. Não é à toa que a maior parte da alimentação dos Doutorados está baseada em uma combinação balanceada de livros e artigos. Livros são consumidos, no geral, em uma proporção menor, uma vez que a digestão dos livros é, geralmente, mais pesada. Alguns livros,

especialmente aqueles feitos por franceses, demoram anos para serem digeridos, há muitas palavras e coisas neles. Assim como em outros mundos, no Mundo Acadêmico a culinária francesa também é excepcional!

Livros e artigos são feitos de conhecimento. Desta forma, os Doutorados produzem conhecimento para sobreviver. Essa é praticamente a atividade diária dos Doutorados, sua principal

atividade. Conhecimento é a principal moeda de troca que man-tém a economia do Mundo Acadêmico. Existem muitos tipos de

conhecimento. O mercado oscila entre qual será mais valorizado. Isso tem mudado muito com o tempo. Parece que, atualmente, para um conhecimento ser valorizado ele tem que ser chamado

de Ciência. Há muitos anos ser Filosofia era o que agregava valor para o conhecimento. Mas o que se fala e se discute por todo

o Mundo Acadêmico é que, em função dessa oscilação do mer-cado, muitos defendem veementemente que sua produção de conhecimento trata-se de ciência, quando, na verdade, nem é. É

um mercado acirradíssimo, pois mesmo sendo Ciência há conhe-cimentos que são mais valorizados que outros...

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A matéria-prima dos conhecimentos são os dados. Os da-dos existem por toda parte, e também são de naturezas mui-to distintas entre si. “Laboratórios” é como a comunidade aca-dêmica chama os locais de produção de dados. Boa parte dos Doutorados trabalha nos laboratórios. Eles usam fenômenos e produzem dados. Alguns laboratórios produzem dados caríssi-mos, advindos de fenômenos raros, que quando artesanalmente tratados são fonte de nobre conhecimento, nem sempre acessí-vel para toda a comunidade acadêmica. Outros laboratórios, cuja fonte são fenômenos regulares, produzem dados bem consisten-tes, que originarão o conhecimento que será matéria-prima de grande parte dos livros e artigos que alimentarão a população do mundo acadêmico. Existem ainda laboratórios de produção em massa. Não produzem dados bons, mas não chegam a ser ruins, são dados assim meio sem sabor, que produzem um tipo de conhecimento bem insípido, nada de grande valor para o Mundo Acadêmico, mas fazem volume e movimentam a econo-mia. Outros Doutorados ainda, e muitos Mestrados, produzem toneladas de conhecimento barato, que circula livremente entre feiras, congressos, jornadas, encontros e afins. Muitos no Mundo Acadêmico podem negar, mas conhecimento barato é de fácil acesso! As Graduações são as principais consumidoras.

Em função desta economia sem limites, o Mundo Acadê-mico está em crise e tem sofrido fortes problemas ambientais. Parece que as condições climáticas do Mundo Real afetam dire-tamente o Mundo Acadêmico. E, ao que tudo indica, no Mundo Real, o clima não está nada bom. Muitos Doutorados não têm resistido a um ambiente tão devastado. Não conseguem digerir bem os artigos e livros que consomem e acabam, muitas vezes, desnutridos. A expectativa de vida de um Doutorado caiu mundo nas últimas décadas. Em algumas regiões chega-se ao absurdo de

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três anos de vida apenas! Com tantas baixas entre a principal fai-xa da população economicamente ativa, há uma tensão constan-te e um temor iminente de que o Mundo Acadêmico não resista a tanta pressão e acabe, em algum momento, explodindo. E não dizem mesmo que gases com barulho anunciam merda? Resta saber que merda tudo isso vai dar...

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academias

Seu nome foi indicado para ocupar uma Cadei-ra Acadêmica Imortal (CAI) em nossa Academia, Pa-trono Etevaldo Lourival Siqueira Brito. Se for do seu interesse, aguardamos uma minibiografia no Word com foto. Posse 15 de outubro, às 20 horas, em Ribei-rão Preto, SP, em sessão solene com jantar, shows e outros. Valor do jantar por pessoa RN$ 150,00 (even-to fechado, compre conosco seus convites). Cobramos apenas taxa da chancela (pelerine, medalha e diplo-ma) de RN$ 500,00.

Cordialmente, Valdomira, secretária-geral, Aca-demia Luminescente de Letras (ALL).

Este era o conteúdo de um surpreendente q-mail que recebi. Ele continha um link para a página da ALL. Nela descobri que a Academia Luminescente de Letras foi fundada pela quasi-comendadora e quasi-graduada em gastronomia Mirnallice Junqueira em Araraquara, SP. Mirnallice era a autora de um livro de poemas (au-topublicado) e um livro infantil (autopublicado).

Bom, eu sou natural de Araraquara, SP, e fiquei divagando que, sim, talvez eu devesse apoiar as ativida-des culturais de minha cidade, em particular na área de Literatura onde, como todos sabem, tenho me destaca-do mundialmente. E, sem dúvida, ocupar uma CAI-ALL seria muito bom, porém pensei com meus botões: eu OS

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não deveria ser um acadêmico honoris causa, gratuito? Afinal, a Academia teria então a honra de contar em seus quadros com o equivalente ao Paulo Coelho da ficção científica!

Assim, escrevi o seguinte:

Prezada Valdomira, vai anexo a minibiografia com foto, que infelizmente ocupa um terabyte. Pretendo levar minha noi-va ao jantar, de modo que calculo que o gasto total seja de RN$ 800,00. Indago sobre quanto ficariam os custos depois de vocês analisarem minha biografia.

Recebi a resposta cinco minutos depois:

Prezado ilustríssimo escritor. Sua biografia é impressio-nante e sua produção literária certamente luminescente. Com tais parâmetros, acreditamos que você seja um candidato para uma de nossas cadeiras de Membro Eterno Titular Nobre Oni-presente Plus-Ultra (METNOPU). Neste caso, a chancela custará RN$ 3.000,00 dado que o pelerine virá com fios de ouro e a sobremesa do jantar poderá ser repetida.

Valdomira, secretária-geral, Academia Luminescente de Letras (ALL).

Bom, não foi exatamente o tipo de proposta que esperava. Mas, agora, o assunto me fascinava, pois, não sei se por descuido ou autossabotagem, devo confessar que nunca fui membro de nenhuma academia de letras. Que falha a minha! E qual foi a mi-nha surpresa quando, alguns minutos depois, recebi a seguinte proposta:

Honorável escritor B.B.J.: Ficamos sabendo por fontes fi-dedignas de que a Academia Luminescente de Letras esteve son-dando sua disponibilidade em pertencer aos seus quadros. Ora, lhe devemos informar, a bem da verdade, que a Academia Lu-

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minescente não produz luz alguma, nem em termos físicos nem em termos culturais. Para evitar que um tão grande e famoso escritor seja cooptado por tais manobras pseudo-acadêmicas, viemos lhe oferecer nossa Cadeira Acadêmica Transcendente Mega-Imortal (CATMI) Patrono Etevaldo Lourival Siqueira Brito Filho. Se aceitar, basta nos enviar a chancela de RN$ 1.000,00 (não precisa enviar a minibiografia com foto, já a temos em nossas mãos).

Valdirene, secretária-geral da Academia Fosforescente de Letras (AFOL), em nome de nossa suprema presidenta quasi-graduada em Letras Mirtillo Junqueira.

OK, OK, a coisa estava melhorando. A chancela baixou RN$ 2.000,00, embora a Academia Fosforescente não tenha informa-do se haveria jantar ou mesmo sobremesa. Eu já estava tentado a me inscrever na AFOL (preciso descobrir quem foi Etevaldo Lou-rival Siqueira Brito e seu filho) quando um novo q-mail chegou!

Grandíssimo e pluripotente escritor B.B.J.: Soubemos há poucos minutos que sua senhoria quase foi enredado nessas perversas maquinações da ALL e AFOL. Não confie em tais pseu-do-academias! Queremos lhe oferecer uma Cadeira Acadêmica Titular Supra-Imortal Omega Blaster Pokémon Lendário (CAT-SIOBPL), patrono Etevaldo Lourival Siqueira Brito Neto. Para tanto, basta nos enviar a chancela de RN$ 990,00 (jantar de diplomação e sobremesa dupla incluída). Aguardando sua ma-nifestação,

Valderleia, secretária-geral da Academia Fluorescente de Letras (AFLL), em nome de nossa magnífica presidenta quasi-graduada em Ciências da Informação, Monallice Junqueira.

Realmente, tudo isto era um grande mistério. E nenhuma das academias me ofereceu ingresso grátis, como eu merecia.

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Mas a existência de tantas academias similares me parecia muito intrigante. Então, em um lampejo de gênio, percebi o que estava acontecendo: eu, B.B.J., estava entrando em contato com reali-dades alternativas do Multiverso!

ooOoo

Como todos sabemos, vivemos em uma brana situada ao lado de infinitas branas do Multiverso. Cada universo-brana está situado de forma paralela a milímetros um do outro, em uma direção ortogonal ao quadri-espaço.

Uma analogia melhor é a biblioteca de Babel de Borges. Só que nos universos-brana, cada livro teria um número enor-me (porém finito) de vizinhos que diferem por apenas um bit. Ou melhor, diferiam por um bit no início de seu Big Bang, mas como a dinâmica de cada universo é caótica, aquele pequeno bit de diferença é amplificado exponencialmente ao longo do tem-po: os universos vizinhos vão ficando cada vez mais diferentes.

Isso ficou bem claro quando recebi os q-mails das acade-mias: não apareceu (até agora) nenhuma academia com apenas uma letra diferente no nome de outra academia. Nada de Acade-mias Luminescentte ou Lumminescente surgiram. Na verdade, as branas acabam diferindo muito: aparentemente, apenas três universos têm Academias de Letras em Araraquara, SP. E todas elas me queriam como membro vitalício.

Obviamente, eu deveria escolher ou a Academia que re-side em meu próprio universo ou a academia mais barata. Infe-lizmente, uma rápida consulta ao q-Google pelo meu q-celular informou que neste universo não existe nenhuma academia de

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letras em Araraquara, SP, luminescente ou não. Ou seja, eu teria que viajar para outro universo se quisesse me tornar membro de uma academia de letras.

Bom, isso pode ser um incômodo, mas não é exatamente um problema. O Doutor (quem?) poderia me levar para lá usan-do o Berço-Tardis. Assim, contatei, via q-WhatsApp, meu filho, o Doutor (em física de Branas) Raphael.

ooOoo

Fazia algum tempo (se tempo tem sentido para quem viaja no Berço) que eu não me encontrava com Raphael. Combina-mos cozinhar um Dahl em um jantar no apartamento de Rita (ela não quis fazer na minha mansão porque disse que eu era muito bagunceiro e nem meu mordomo e baby-sitter Alfred dava conta do recado). Enquanto ela servia os pratos (notei que os talhe-res estavam nanometricamente paralelos), contei-lhes sobre os q-mails das academias e perguntei:

— Rapha, seria possível que as três academias estejam hoje aqui em Terra-44?

— Transporte interdimensional de matéria é possível, mas muito custoso. Como você bem sabe pelo funcionamento do Berço, pois envolve violações das leis de conservação de energia, momentum e momento angular…

— Sim, eu sei disso! Mas…

— Pai, você não tem evidência de que as academias este-jam fisicamente aqui. Os q-mails poderiam estar sendo emitidos por Ansibles com teleporte quântico. Ou seja, cria-se uma men-sagem de lá para cá usando-se apenas correlações quânticas, sem

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transporte de matéria.

— Ou as academias são fake e tudo é uma pegadinha para tirar dinheiro dos desavisados… — observou Rita.

— Hum, usando a Navalha de Occan, creio que mensa-gens interdimensionais via Ansibles quânticos parecem ser mais críveis do que pegadinhas, dado que os neurochips tornaram todo mundo honesto e impedem mentiras… Prejudicar outros de forma consciente é impossível.

— Talvez algumas pessoas não usem o neurochip — espe-culou Rita.

— Meu bem — respondi tentando não ser condescenden-te — os neurochips são implantados ainda nos fetos, visando implementar as Três Leis de Asimov. E não podem ser retirados sem que a pessoa morra. Não creio que…

— Bom, sempre existe algum jeito de violar as Três Leis — ela disse piscando um olho.

— Daqui a pouco você vai dizer que Deus existe…

— Amor, — retrucou Rita — foi você mesmo que provou, em termos de cosmologia de Multiverso, que Deus existe!

— Não, não… Eu apenas provei que um Criador finito, não onipotente nem onisciente, o Demiurgo, existe!

— Ah, eu tinha esquecido — disse Rita fazendo uma ca-reta.

— Ou seja, essa hipótese sua de cibercriminosos, que nunca foram observados, é bem menos provável do que Ansibles quânticos, que todos conhecemos. Eu acho que as academias existem! Um cálculo Bayesiano mostra isso.

— Não, você quer que elas existam, para ter uma cadeira

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de Pokémon Lendário… isso é wishful thinking — replicou ela sorrindo.

— Rita, disse Raphael, que até ali se mantivera em silêncio (ele é muito tímido). Ansibles são possíveis e comuns, eliminar neurochips nunca foi feito…

— OK, OK — desistiu Rita. Então, supondo que as aca-demias existam, o que elas querem do seu pai? RN$ 1000,00 é muito pouco para tanto trabalho!

— São RN$ 990,00, corrigi eu. Bom, eu não sei, mas pre-tendo descobrir. E tirei minha última dúvida com Raphael: OK, eles têm um Ansible, mas eu não. Como é que minhas respostas aos q-mails chegam lá?

— As correlações quânticas são bidirecionais, pai. O seu q-mail está agora em um estado de emaranhamento quântico com os q-mails deles…

— Mas o q-Gmail não está na q-Nuvem?

— Sim, o que eu quis dizer é que agora as duas q-Nu-vens estão emaranhadas, completou Raphael. Lembremos que o GOOGLE domina todo o Multiverso conhecido, de modo que eles tem q-Gmails lá também.

— Se é assim, então eu sei o que fazer! — disse satisfeito enquanto servia a última taça de vinho a todos.

ooOoo

Foram três q-mails:

Prezada Valdomira, muito me interessei pela sua oferta. Entretanto, a AFOL e a AFLL ofereceram-me descontos recente-

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mente. Consulto sobre a possibilidade de a ALL baixar o preço do pelerine. Cordialmente, B.B.J.

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Prezada Valdirene, muito me interessei pela sua oferta. Entretanto, a ALL e a AFLL ofereceram-me descontos recente-mente. Consulto sobre a possibilidade de a AFOL baixar o preço do jantar e da medalha. Cordialmente, B.B.J.

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Prezada Valderleia, muito me interessei pela sua oferta. Entretanto, a ALL e a AFOL ofereceram-me descontos recente-mente. Consulto sobre a possibilidade de a AFLL baixar o preço do diploma e da sobremesa. Cordialmente, B.B.J.

Então fiquei à espera das respostas que vieram, simultane-amente, depois de três minutos:

/

Honorável escritor, nossa excelente presidenta conside-rou seu caso como muito especial, de modo que oferecemos todo o pacote, com uma sobremesa extra, por apenas RN$ 996,00. Valdomira, ALL.

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Honorabilíssimo escritor, nossa excelentíssima presiden-ta considerou seu caso como especialíssimo, de modo que ofere-cemos todo o pacote, com uma sobremesa e um sorvete MacDo-nalds extra, por apenas RN$ 997,00. Valdirene, AFOL.

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Honorabilissíssimo escritor, nossa excelentissíssima pre-sidenta considerou seu caso como especialissíssimo, de modo que oferecemos todo o pacote, com uma sobremesa, um sorvete

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MacDonalds e um pirulito Chup-Chup com chiclete dentro, por apenas RN$ 998,00. Valderleia, AFLL.

Meu plano falhou! Para manter minha honestidade in-telectual e coerência moral (ou seja, obrigado a agir assim por causa do neurochip), eu deveria aceitar a oferta da ALL, justo a academia que eu não queria! Mas então pensei em uma saída: se um sorvete e um pirulito valessem mais que RN$ 2,00, então o neurochip me deixaria escolher a AFLL sem violar as Três Leis. Rapidamente fiz uma busca no q-Google em meu q-celular. E então tive uma das maiores surpresas de minha vida:

Preço de sorvete MacDonalds (o mesmo para todos os universos): RN$ 1,50. Preço de pirulito Chup-Chup com chiclete dentro, em promoção em todos os universos: RN$ 0,49.

Maldita promoção do pirulito! Assim eu nunca poderia me filiar à AFLL!

Eu estava entrando em desespero, mas meu cérebro, com seu QI 160, não parava de funcionar. Horas de intensa concen-tração geraram um dos planos mais brilhantes de minha carreira. Peguei o q-celular e liguei para meu mordomo e contador:

— Alfred, quanto tenho em aplicações que podem ser res-gatadas hoje?

— Um minuto, patrão!… OK, sim, RN$ 3.141.592,65.

— Resgate tudo agora e aplique em ações da Pirulitos Chup-Chup.

— Mas patrão, a Chup-Chup está em decadência! Suas ações estão baixando no mercado…

— Alfred, não discuta! Eu sei o que estou fazendo.

— Certo, patrão, um segundo… está feito.

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— OK. E a caverna, está limpa?

— Sim, patrão, deu muito trabalho por causa das fezes dos morcegos, mas agora está tudo bem.

— Bom, então chame o Doutor...

— Doutor... quem?

— Alfred, meu filho Raphael, claro! Peça para ele estacio-nar o Berço dentro da caverna.

— Sim, senhor, como deseja.

— Ótimo, sincronizemos nossos q-relógios! Chegarei na mansão às 19h19min19s.

Desliguei e acionei o q-App da bolsa de valores, buscando a série temporal das ações da Pirulitos Chup-Chup. Já era possí-vel ver o efeito de meus investimentos. As ações haviam parado de cair e agora começavam uma leve ascensão. Enquanto espe-rava um efeito maior, tirei do meu piruliteiro um Chup-Chup sabor tutti-frutti. Levei algumas horas para consumi-lo. Acionei, então, outro q-App em busca de notícias econômicas e encontrei a manchete tão esperada:

— Depois de alta inesperada em suas ações, empresa de Pirulitos Chup-Chup cancela promoção de vendas. Agora seus pirulitos serão vendidos pelo preço normal de RN$ 0,50.

Eu havia vencido! Liguei para Rita pedindo-lhe que se aprontasse para me acompanhar no jantar de diplomação da AFLL. Ela estava reticente (resmungou sobre “programa de ín-dio” ou algo assim). Mas, então, prometi que limparia todos os dias a caixa de areia de sua gatinha Marília Gabriela daquele dia em diante. E alinharia sempre os tapetinhos da entrada, da co-zinha e do banheiro de seu apartamento! Também organizaria os controles remotos da TV por ordem de tamanho. Com essa

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promessa final, ela cedeu.

Antes de sair, notei que agora as ações da Chup-Chup já haviam decuplicado de valor. Claro, a demanda que eu criei in-dicou para as pessoas que as ações iriam valorizar e uma bola de neve se criou, mais gente comprando, mais as ações se valori-zando, em um círculo virtuoso. No caminho de casa, liguei para meu mordomo e operador Alfred a fim de vender minhas ações na alta. Meu lucro foi estupendo!

Raphael estava nos esperando na caverna subterrânea da mansão. Entramos os três no Berço, Rita em um vestido longo azul-turquesa e com o colar de brilhantes raros que lhe comprei para a ocasião, eu em um novo smoking que me custou RN$ 100.000,00. Raphael manipulou algumas telas virtuais, o wormhole começou a se formar com flashs laranjas e azuis e, em um segundo, estávamos na frente do hotel onde ocorreria o jantar da AFLL, que descobri se localizar em Terra-39.

Mas, como Rita previra, foi uma noite chatíssima. O discur-so da presidenta da AFLL foi longo, incoerente e com mais ad-jetivos do que verbos ou substantivos. O pelerine era muito pe-queno para mim, o diploma veio rasgado numa borda e o banho de ouro da medalha de latão era muito fino e veio todo riscado. A diplomação foi extenuante (havia mais de trezentas pessoas na fila), a comida estava fria, o vinho era de segunda linha. Não provei a sobremesa (não gosto de doce de casca de laranja) e o sorvete estava derretido. Observei que o pirulito estava com o prazo de validade vencido.

Mas tudo valeu a pena quando recebi meu Pokémon Len-dário! Fui para casa satisfeito e, naquela noite, por causa dele, ti-vemos um ótimo sexo. Entretanto, não posso dizer que a opera-ção foi totalmente um sucesso. Depois de minha venda, as ações

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da Chup-Chup despencaram e a empresa faliu, levando muitos acionistas junto (houve alguns suicídios). Fui processado por manipulação do mercado de ações e tive que pagar uma multa do dobro de meus lucros. Como eu prejudiquei muitas pessoas (e alguns andróides) violando as Três Leis, recebi prisão domici-liar com reeducação neural por um ano, com sessões diárias de reconfiguração sináptica por eletrochoque.

E só então percebi que minha estratégia não havia sido necessária. Bastava que eu contabilizasse, no preço do pacote da AFLL, o valor do Pokémon Lendário que meu neurochip per-mitiria sua escolha, sem necessidade do fatídico investimento na Bolsa.

Mas isso não é o pior, pois prisão domiciliar em minha mansão não é assim uma grande punição. O problema é que, para ficarmos juntos, Rita finalmente decidiu morar comigo. As-sim, a verdadeira punição é limpar todo dia a caixa de areia de Marília Gabriela e alinhar os controles e tapetinhos toda hora, sob o olhar rigoroso de Rita, em uma mansão com oito TVs, qua-tro cozinhas, dez entradas e dezoito banheiros…

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à beira

À beira da calçada, as casas estão dispostas lado a lado, de frente para a rua. As alvenarias silenciam suas vozes, assim como a porta fechada, tanto quanto a ja-nela trancada. São barreiras. São propriedades priva-das, inacessíveis.

À beira do céu, os apartamentos se empilham, suas fachadas voltadas para as quatro direções. A dis-tância do chão, a distância do vizinho, a conversa a distância no elevador. São propriedades ilhadas, ina-cessíveis.

À beira da vista, os gestores planejam e agem. Seus ternos e gravatas são de chumbo, não permitem qualquer troca com o ar; suas canetas são ágeis, mais rápidas que a voz do cidadão. São propriedades invisí-veis, inacessíveis.

À beira do atraso, os carros perseguem algum lu-gar; para chegar, para estacionar, para sair. Estão sem-pre a caminho, nunca estão presentes. São proprieda-des voláteis, inacessíveis.

À beira da cidade, os barracos se organizam numa lógica desprovida de padrão, orgânica. Os tapu-mes, os papelões, o chão de terra deixam escapar as vozes, os corpos, as almas; fatalmente expõem seu in-terior e, por isso, se protegem. São propriedades pre-cárias, inacessíveis.

À beira da felicidade, as pessoas andam pela rua, RA

FAE

L B

ALD

AM

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cada uma com seu plano, ou mesmo sem um. A pele é mais gros-sa que qualquer parede, impede toda fuga. Então, se esquivam, e quando dois caminhos se cruzam acidentalmente, o barulho do choque é de concreto contra concreto. São propriedades enclau-suradas, inacessíveis.

À beira da liberdade, construímo-nos como construímos nossas cidades: pele espessa de concreto, janelas muradas, com uma porta — trancada — e a chave escondida sob algum tapete.

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dourados horizontes solitários

No refluxo do esgotado tempo, a história mas-tigada e reengolida das instáveis certezas reavidas de

nossa reatividade indigesta…

Os males de sempre com outros nomes! Um fal-

so olhar assim desengonçado… um horizonte de fato turvo, as misturas impregnadas do confuso da Babel moderna, instalada na mente apática e mentirosa, fal-seante…

Um zumbido estridente da máquina desastrosa e de má conduta lançando nos ares seu veneno… aspi-rado e digerido pelas faces do cansaço entardecidas... toda frágil e parca verdade comprometida!

Cozida assim al dente por sua cumplicidade an-drógina. A ânsia contida desta vontade bulímica de vo-mitar o mundo pelas ventas!

Assim repleta da resoluta vida, a alma esvaziada se deita no leito na mais profunda plenitude da morte.

Expressando sua deriva na impropriedade das desco-nexas palavras somente ditas na virtualidade e nos so-

nhos… castrado de sua liberdade criativa, no beco da gritaria permitida, um esboço letárgico desenhado em grafite em forma de poesia, seu marfim arrancado sem

anestesia…

A servidão executada no minimalismo aberrante

das fachadas espetaculares do logro cínico. RON

IE C

HA

RLE

S

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Auferindo sua domesticação desmistificada.

Descontando do Bruto, resta o Líquido resultante dos de-sejos banidos esse joio varrido para debaixo do tapete, fruto do descenso da lucidez, de nosso delirante disparate, o inquestioná-vel contrassenso da derrocada de nosso tempo!

Controlado tempo! Entre um segundo e outro, entre uma travada e um avanço paulatino, subindo e descendo o pescoço, o jato de bílis contido… cadente, morno, sem ternura... tudo resumido a um contrato que o ácido facilmente desfaz, levando consigo por nada, tudo para o que não havia preço… Vendidas a essência… sim, teu âmago, teu cerne, a totalidade de ti no mer-cado desta zombaria até o último dos teus dias!

Que te deixam sempre cada vez mais rápido. E a rapina pousada na colina, sem pressa espera tua ossada, quiçá repleta dos tecidos de tua quimera, jamais vivida e que anda contigo neste vale das sombras, onde o sol solitário sem a sua presença aquece inutilmente o horizonte… e de tanta luz… te cega!

ADONAI TAKESHI ISHIMOTO

Ribeirão Preto » A – FFCLRP / Ciência da Informação e da Documentação e Biblioteconomia

ANANDA SANTOS CRUZ

Ribeirão Preto » A – FFCLRP – Ciência da Informação e da Documentação e Biblioteconomia

B.G.[Bruno Belmonte Martinelli Gomes]https://www.facebook.com/Quadrado-culos/

Ribeirão Preto » PG — FMRP

BRITES-NETO[José Brites-Neto][email protected]

Piracicaba » PG — ESALQ

CARLOS HENRI[Carlos Henri Gomes Filho]http://acordeiloucooufoiomundoqueen-sandeceu.blogspot.com.br/

Ribeirão Preto » A — FMRP / Medicina

FABIO MOURA CAVALCANTE

Lorena » A – EEL / Engenharia Bioquímica

FERNANDA PAPA[Fernanda Papa Buoso]

Ribeirão Preto » A – FFCLRP / Psicologia

GABRIEL LEVA[Gabriel Leva França Maciel]

Ribeirão Preto » A – FFCLRP / Psicologia

ISABELLE MIRANDA[Isabelle Cristina Costa de Miranda]https://da-janeladomeuquarto.tumblr.com/

Ribeirão Preto » A — FFCLRP / Pedagogia

JESSICA MAMEDE[Jessica Ribeiro Mamede]

Ribeirão Preto » A – FFCLRP / Ciência da Informação e da Documentação e Biblioteconomia

LIVIA PORTO ZOCCOhttp://liviaportozoccoescritora.com.br/

Ribeirão Preto » F – PUSP-RP

LOURENÇO SBRAGIA

Ribeirão Preto » D – FMRP / Divisão de Cirurgia Pediátrica do Departamento de Cirurgia e Anatomia

24 autores A — AlunoD — DocenteF — FuncionárioPG — Pós-Graduação

LUIS FELIPE VISCONDE[Luis Felipe Silva Visconde][email protected]

Ribeirão Preto » A – FMRP / Medicina

MANOEL ANTÔNIO DOS [email protected]

Ribeirão Preto » D — Departamento de Psicologia / FFCLRP

MELINA VAZ[Aline Melina Vaz]

Ribeirão Preto » PG – FFCLRP

NATALIA RIBEIRO[Natalia Ribeiro da Conceição]São Carlos » A — EESC / Engenharia Ambiental

OSAME KINOUCHI[Osame Kinouchi Filho][email protected]

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OTÁVIO TEDESCO[José Otávio Silva Tedesco][email protected]

Lorena » A – EEL / Engenharia Química

RAFAEL [email protected] www.entrequadros.wordpress.com e www.praticasurbanastxt.wordpress.com

São Carlos » PG / IAU

RONIE CHARLES[Ronie Charles Ferreira de Andrade][email protected]

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SAIMON D[Saimon Domenegheti]http://saimondome.blogspot.com.br/

Lorena » A – EEL / Engenharia Química

SARAH PASSOS[Sarah Passos Vieira da Costa][email protected]

Ribeirão Preto » PG – FFCLRP

VÍTOR CAMPOS[Vítor Ferreira Campos]

Ribeirão Preto » PG – FFCLRP

W.G.[Wigna Gabriella da Silva Alves]

Ribeirão Preto » A – FMRP / Nutrição

Programa Poeta de Gaveta / Edição 24

Inscrições realizadas no período de 1º de abril a 22 de junho de 2017.

Total de 62 participantes com 154 trabalhos inscritos.

Bauru • 2 p — 5 t/inscritosLorena • 5 p — 13 t/inscritos

Piracicaba • 6 p — 15 t/inscritosPirassununga • 1 p — 3 t/inscritos

Ribeirão Preto • 43 p — 103 t/inscritosSantos • 1 p — 3 t/inscritos

São Carlos • 4 p — 12 t/inscritos

—Impressão e acabamento

Gráfica CS EIRELIRua Alberto Peters, 537, Jardim PetrópolisPresidente Prudente, SP • Cep 19060-310

T (18) [email protected]

—Este livro foi composto nas tipografias

BellGothic + Georgia (títulos), Garamond + Univers (textos/créditos).Papel capa Supremo 300g / Papel miolo Polen Soft 85g.

Tiragem: 800 exemplares.Impresso em agosto de 2018. Distribuição gratuita.

Proibida a reprodução sem prévia autorização.