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Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagemlinguagem.unisul.br/paginas/ensino/pos/linguagem/linguagem-em... · Risas y fútbol: un ensayo sobre las pasiones en la media

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ISSN 1982-4017 (eletrônica)

Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem

Universidade do Sul de Santa Catarina

Tubarão – SC

v. 16, n. 3, p. 369-616, set./dez. 2016

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Dados Postais/Mailing Address

Revista Linguagem em (Dis)curso

Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem – Unisul

A/C: Comissão Editorial

Avenida José Acácio Moreira, 787

88.704-900 – Tubarão, Santa Catarina, Brasil

Fone: (55) (48) 3621-3000 - Fax: (55) (48) 3621-3036

E-mail: [email protected]

Site: http://linguagem.unisul.br/paginas/ensino/pos/linguagem/linguagem-em-discurso/index.htm

Ficha Catalográfica

Linguagem em (Dis)curso/Universidade do Sul de Santa Catarina. - v. 1, n. 1 (2000) - Palhoça: Ed. Unisul, 2000 -

Quadrimestral

ISSN 1518-7632; 1982-4017

1. Linguagem - Periódicos. I. Universidade do Sul de

Santa Catarina.

CDD 405

Elaborada pela Biblioteca Universitária da Unisul

Indexação/Indexation

Os textos publicados na revista são indexados em: SciElo Brasil; EBSCO Publishing; LLBA - Linguistics & Language

Behavior Abstracts (Cambridge Scientific Abstracts); MLA International Bibliography (Modern Language

Association); Linguistics Abstracts (Blackwell Publishing); Ulrich’s Periodicals Directory; Directory of Open Access

Journals (DOAJ); Clase (Universidad Nacional Autónoma de México); Latindex; Journalseek (Germanics); Dialnet

(Universidad de La Rioja); Social and Human Sciences Online Periodicals (Unesco); GeoDados (Universidade

Estadual de Maringá); OASIS (Ibict); Portal de Periódicos (CAPES); Portal para Periódicos de Livre Acesso na Internet

(Ministério da Ciência e Tecnologia, Brasil).

The journal and its contents are indexed in: SciElo Brasil; EBSCO Publishing; LLBA - Linguistics & Language

Behavior Abstracts (Cambridge Scientific Abstracts); MLA International Bibliography (Modern Language

Association); Linguistics Abstracts (Blackwell Publishing); Ulrich’s Periodicals Directory; Directory of Open Access

Journals (DOAJ); Clase (Universidad Nacional Autónoma de México); Latindex; Journalseek (Germanics); Dialnet

(Universidad de La Rioja); Social and Human Sciences Online Periodicals (Unesco); GeoDados (Universidade

Estadual de Maringá); OASIS (Ibict); Portal de Periódicos (CAPES, Brazil); and Portal para Periódicos de Livre Acesso

na Internet (Ministry of Science and Technology, Brazil).

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Reitor

Sebastião Salésio Herdt

Vice-Reitor

Mauri Luiz Heerdt

Chefe de Gabinete

Willian Corrêa Máximo

Secretária Geral da Unisul

Mirian Maria de Medeiros

Pró-Reitor de Ensino, Pesquisa e Extensão

Mauri Luiz Heerdt

Pró-Reitor de Operações e Serviços Acadêmicos

Valter Alves Schmitz Neto

Pró-Reitor de Desenvolvimento Institucional

Luciano Rodrigues Marcelino

Assessor de Promoção e Inteligência Competitiva

Ildo Silva

Assessor Jurídico

Lester Marcantonio Camargo

Diretor do Campus Universitário de Tubarão

Heitor Wensing Júnior

Diretor do Campus Universitário da Grande Florianópolis

Hércules Nunes de Araújo

Diretor do Campus Universitário Unisul Virtual

Fabiano Ceretta

Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem

Fábio José Rauen (Coordenador)

Nádia Régia Maffi Neckel (Coordenadora Adjunta)

Av. José Acácio Moreira, 787

88704-900 – Tubarão - SC

Fone: (55) (48) 3621-3000 – Fax: (55) (48) 3621-3036

Sítio: www.unisul.br

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Editores/Editors

Fábio José Rauen (Universidade do Sul de Santa Catarina, Tubarão, Brasil)

Maria Marta Furlanetto (Universidade do Sul de Santa Catarina, Tubarão, Brasil)

Silvânia Siebert – Editora Associada (Universidade do Sul de Santa Catarina, Tubarão, Brasil)

Secretária Executiva/Executive Secretary

Patrícia de Souza de Amorim Silveira (Universidade do Sul de Santa Catarina, Tubarão, Brasil)

Comitê Editorial/Editorial Committee

Adair Bonini (Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil)

Andréia da Silva Daltoé (Universidade do Sul de Santa Catarina, Tubarão, Brasil)

Carmen Rosa Caldas-Coulthard (University of Birmingham, Birmingham, Inglaterra)

Débora de Carvalho Figueiredo (Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil)

Freda Indursky (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil)

Maurício Eugênio Maliska (Universidade do Sul de Santa Catarina, Tubarão, Brasil)

Sandro Braga (Universidade Federal de Santa Catarina, Tubarão, Brasil)

Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva (Univ. Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil)

Conselho Consultivo/Advisory Board

Alba Maria Perfeito (Universidade Estadual de Londrina, Londrina, Brasil)

Aleksandra Piasecka-Till (Universidade Federal do Paraná, Curitiba, Brasil)

Alessandra Baldo (Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, Brasil)

Ana Cristina Ostermann (Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, Brasil)

Ana Cristina Pelosi (Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, Brasil)

Ana Elisa Ribeiro (Centro Federal de Educação Tecnológica, Belo Horizonte, Brasil)

Ana Zandwais (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil)

Anna Christina Bentes da Silva (Universidade Estadual de Campinas, Campinas, Brasil)

Anna Flora Brunelli (Universidade Estadual Paulista, São José do Rio Preto, Brasil)

Angela Paiva Dionísio (Universidade Federal do Pernambuco, Recife, Brasil)

Antônio Carlos Soares Martins (Instituto Fed. do Norte de Minas Gerais, Montes Claros, Brasil)

Aparecida Feola Sella (Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Cascavel, Brasil)

Belmira Rita da Costa Magalhães (Universidade Federal de Alagoas, Maceió, Brasil)

Bethania Sampaio Corrêa Mariani (Universidade Federal Fluminense, Niterói, Brasil)

Cleide Inês Wittke (Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, Brasil)

Conceição Aparecida Kindermann (Universidade do Sul de Santa Catarina, Tubarão, Brasil)

Cristina Teixeira Vieira de Melo (Universidade Federal de Pernambuco, Recife, Brasil)

Dánie Marcelo de Jesus (Universidade Federal do Mato Grosso, Rondonópolis, Brasil)

Danielle Barbosa Lins de Almeida (Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, Brasil)

Désirée Motta-Roth (Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, Brasil)

Elisa Guimarães Pinto (Universidade Presiteriana Mackenzie, São Paulo, Brasil)

Enio Clark de Oliveira (Texas Christian University – TCU, Fort Worth, Texas, United States)

Eric Duarte Ferreira (Universidade Federal Fronteira Sul, Chapecó, Brasil)

Eulália Vera Lúcia Fraga Leurquin (Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, Brasil)

Fernanda Mussalim (Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, Brasil)

Gisele de Carvalho (Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil)

Heloísa Pedroso de Moraes Feltes (Universidade de Caxias do Sul, Caxias do Sul, Brasil)

Heronides Maurílio de Melo Moura (Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil)

João Carlos Cattelan (Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Cascavel, Brasil)

José Luiz Vila Real Gonçalves (Universidade Federal de Ouro Preto, Ouro Preto, Brasil)

Júlio César Araújo (Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, Brasil)

Leila Barbara (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, Brasil)

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Lilian Cristine Hübner (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, p. Alegre, Brasil)

Luiz Paulo da Moita Lopes (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil)

Manoel Luiz Gonçalves Corrêa (Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil)

Marci Fileti Martins (Universidade Federal de Rondônia, Guajará-Mirim, Brasil)

Maria Antónia Coutinho (Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, Portugal)

Maria Cecília de Miranda Nogueira Coelho (Univ. Federal de Minas Gerais, B. Horizonte, Brasil)

Maria da Conceição Fonseca-Silva (Univ. Est. do Sudoeste da Bahia, Vitória da Conquista, Brasil)

Maria de Fátima Silva Amarante (Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, Brasil)

Maria Elias Soares (Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, Brasil)

Maria Ester Moritz (Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil)

Maria Inês Ghilardi Lucena (Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, Brasil)

Maria Izabel Santos Magalhães (Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, Brasil)

Maria Otilia Ninin (Universidade Paulista, Santana de Parnaíba, Brasil)

Mariléia Silva dos Reis (Universidade Federal de Sergipe, Itabaiana, Brasil)

Marly de Bari Matos (Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil)

Maurício Eugênio Maliska (Universidade do Sul de Santa Catarina, Tubarão, Brasil)

Mônica Magalhães Cavalcante (Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, Brasil)

Mônica Santos de Souza Melo (Universidade Federal de Viçosa, Viçosa, Brasil)

Nicolás Bermúdez (Universidad de Buenos Aires/Universidad Nacional del Arte, Buenos Aires, Argentina)

Nívea Rohling (Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Curitiba, Brasil)

Nukácia Meyre Silva Araújo (Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, Brasil)

Onici Claro Flôres (Universidade de Santa Cruz do Sul, Santa Cruz do Sul, Brasil)

Orlando Vian Jr. (Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, Brasil)

Patrícia da Silva Meneghel (Universidade do Sul de Santa Catarina, Tubarão, Brasil)

Pedro de Moraes Garcez (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil)

Pedro de Souza (Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil)

Renilson Menegassi (Universidade Estadual de Maringá, Maringá, Brasil)

Ricardo Moutinho (Universidade de Macau, Macau, China)

Roberto Leiser Baronas (Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, Brasil)

Rossana de Felippe Böhlke (Fundação Universidade do Rio Grande, Rio Grande, Brasil)

Sandro Braga (Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil)

Sebastião Lourenço dos Santos (Universidade Estadual de Ponta Grossa, Ponta Grossa, Brasil)

Sílvia Ines C. C. de Vasconcelos (Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil)

Silvânia Siebert (Universidade do Sul de Santa Catarina, Tubarão, Brasil)

Simone Padilha (Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, Brasil)

Solange Leda Gallo (Universidade do Sul de Santa Catarina, Palhoça, Brasil)

Sônia Maria de Oliveira Pimenta (Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil)

Susana Borneo Funck (Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil)

Telma Nunes Gimenez (Universidade Estadual de Londrina, Londrina, Brasil)

Vanessa Wendhausen Lima (Universidade do Sul de Santa Catarina, Tubarão, Brasil)

Vera Lúcia Lopes Cristovão (Universidade Estadual de Londrina, Londrina, Brasil)

Vilson José Leffa (Universidade Católica de Pelotas, Pelotas, Brasil)

Wander Emediato (Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil)

Equipe Técnica/Technical Team

Tradução e revisão/Translation and Revision

Editores (português); Elita de Medeiros (inglês e espanhol)

Bolsista/Trainee

Rosane Lemos Barreto

Diagramação/Layout

Fábio José Rauen

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SUMÁRIO/CONTENTS

EDIÇÃO CORRENTE/CURRENT EDITION

Apresentação/Presentation 379

Artigos de Pesquisa/Research Articles

O racismo nos anúncios de emprego do século XX

The racism in job advertisements in the 20th century

El racismo en anuncios de trabajo del siglo XX

Kelly Cristina de Oliveira

Sonia Maria de Oliveira Pimenta 381

“Do you need to know the person to donate?”

Facebook strategies in brazilian blood donation campaigns: a multimodal analysis

“Para doar sangue você precisa conhecer a pessoa?”Estratégias de polidez

em campanhas brasileiras de doação de sangue: uma análise multimodal

“¿Necesita conocer a la persona para donar?”Estrategias de Facebook

en las campañas de donación de sangre en Brasil: un análisis multimodal

Luzia Schalkoski Dias

Angela Mari Gusso 401

Risos e futebol: um ensaio sobre as paixões na mídia esportiva

Laughters and soccer: an essay on the passions in sports media

Risas y fútbol: un ensayo sobre las pasiones en la media deportiva

Rony Petterson Gomes do Vale 421

O Acre não existe? Nas desnotícias, não

Does not Acre exist? In unnews, it does not

¿Acre no existe? En desnoticias, no

Ana Cristina Carmelino

Karine Silveira 433

A constituição da subjetividade no discurso do idoso sobre si

The constitution of subjectivity in elderly discourse about himself/herself

La constitución de la subjetividad en el discurso del mayor sobre si mismo

Adélli Bortolon Bazza 449

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Dos discursos do Papa Francisco à produção e circulação de pequenas frases:

a construção do Papa heterodoxo

From Pope Francis’speeches to the production and circulation of small phrases:

the construction of the heterodox Pope

De los discursos de Papa Francisco hasta la producción

y circulación de pequeñas frases: la construcción del Papa heterodoxo

Marilena Inácio de Souza 465

Sujeito do ensino e articulações de poder: consenso de verdades na Educação

Subject of teaching and power articulations: consensus of truth in Education

Sujeto de enseñanza y articulaciones de poder: consenso de verdades en la Educación

Antonio Genário Pinheiro dos Santos

Maria Eliza Freitas do Nascimento 489

O flaming (ou violência verbal em mídia digital) e suas funções na esfera pública

Flaming (or verbal violence in digital media) and its functions in the public sphere

El flaming (o violencia verbal en media digital) y sus funciones en la esfera pública

Anna Elizabeth Balocco 503

DOSSIÊ: COGNIÇÃO E NTERFACES COM EDUCAÇÃO,

SAÚDE/NEUROCIÊNCIAS E SOCIEDADE

DOSSIER: COGNITION AND INTERFACES: EDUCATION,

TECHNOLOGY, HEALTH/NEUROSCIENCE AND SOCIETY

Apresentação/Presentation 523

Artigos de Pesquisa/Research Articles

Da análise semântica do discurso à ação educativa –

um mapa da crise da sala de aula

From the semantic discourse analysis to educational action –

a classroom crisis map

Del análisis semántico del discurso hasta la acción educativa –

un mapeo de la crisis de la sala de aula

Neusa Salim Miranda

Luciene Fernandes Loures 525

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Convergências entre Semântica de Frames e Lexicografia

Similarities between Frame Semantics and Lexicography

Convergencias entre Semántica de Frames y Lexicografía

Rove Chishman 547

Cognição e sociedade: um olhar sob a óptica da Linguística Cognitiva

Cognition and society: a view from the perspective of Cognitive Linguistics

Cognición y sociedad: una mirada bajo el punto de vista de la Lingüística Cognitiva

Solange Coelho Vereza 561

Das relações entre linguagem, cognição e interação –

algumas implicações para o campo da saúde

Relationships between language, cognition and interaction –

some implications for the Health field

De las relaciones entre lenguaje, cognición e interacción –

algunas implicaciones para el campo de la Salud

Edwiges Maria Morato 575

Minding your manners: linguistic relativity in motion

Olhando seus modos: a relatividade linguística em movimento

Mirando a sus modos: la relatividad lingüística en movimiento

Michele I. Feist 591

Como o milagre da leitura é possível? Investigando processos biológicos

e culturais da emergência de sentidos durante a leitura

How is the miracle of reading possible? Investigating biological

and cultural processes of emergent meaning while reading

¿Cómo el milagro de la lectura es posible? Investigando procesos biológicos

y culturales de la emergencia de sentidos durante la lectura

Rosângela Gabriel 603

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FURLANETTO, Maria Marta; RAUEN Fábio José; SIEBERT, Silvânia (Eds.). Apresentação. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 16, n. 3, p. 379-380, set./dez. 2016.

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DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1982-4017-1603AP-0000

APRESENTAÇÃO/PRESENTATION

Um clássico da biologia, divulgado em 1976 – The selfish gene –, de autoria de

Richard Dawkins1, serve-nos de inspiração para tratar do fundamento de não poucos

trabalhos que investigam as práticas sociais humanas, aí incluída relevantemente a

linguagem humana em suas características culturais, desdobradas em uma miríade de

temáticas: racismo, humor, violência, poder, cognição, interação..., em todos os campos

discursivos, pela memória.

Como as espécies surgem e evoluem? Com seu evidente bom humor, Dawkins crê

que a pergunta fatal de um alienígena que chegasse à Terra e tentasse avaliar nossa

civilização seria: “Eles já descobriram a evolução?” E desde esse início até o final da

obra, o autor consegue, com uma linguagem informal (divulgação científica) e

explorando as possibilidades da metáfora, explicar a função e o alcance dos genes como

replicadores biológicos, indo além, a partir daí, ao que diz respeito, analogamente, às

Ciências Sociais: as unidades replicadoras de transmissão social – os memes.

É no capítulo 11 que Dawkins trata disso explicitamente: Memes: os novos

replicadores. “Cultura” é a palavra-chave para sintetizar a outra face da moeda da vida

humana2 – que, biologicamente, corresponde ao que Dawkins chama “máquina de

sobrevivência” (dos seres vivos): transmissão genética/transmissão cultural (DAWKINS,

2007, p. 325). A linguagem verbal e todas as formas culturais demonstram exatamente o

que seja a evolução cultural.

E por aí começa-se a perceber o papel da memória.

O replicador cultural, que levaria a outra modalidade de evolução, diz Dawkins,

“está bem diante de nós”, embora ainda esteja na fase de infância. É para essa unidade

que o autor busca um nome. “Mimeme” é a primeira sugestão, a partir do grego (mimese,

imitação), que ele abrevia para “meme” (ou mema, se lhe dermos feição portuguesa). A

forma guarda proximidade com “memória”, que é do que se trata, afinal – meme,

memória, mesmo, repetição, identidade, paráfrase...

Há todo um espectro do que se pode apontar como memético em suas funções no

solo da cultura: palavras, expressões, comportamentos, religiões, ideias, tendências

(liberdade, igualdade, fraternidade, teorias da conspiração, boatos, ditados, aforismos,

slogans, canções). É possível falar aqui, movendo-nos no campo da ética, até mesmo em

plágio e autoplágio. E podemos nos mover para uma designação que abraça todos esses

campos: ideologia.

Analogamente ao que sucede com os genes, que se propagam passando de corpo

para corpo no jogo da herança (reprodução), memes se propagam de cérebro para cérebro,

promovendo a repetição (DAWKINS, 2007, p. 330), o que constitui aquilo que, no campo

da linguagem, pode ser designado como “paráfrase”. A memória – cognitiva, coletiva,

1 O gene egoísta. São Paulo: Companhia das Letras, [1976] 2007. 2 Embora, como garante o autor, a transmissão cultural não seja privilégio da espécie humana.

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FURLANETTO, Maria Marta; RAUEN Fábio José; SIEBERT, Silvânia (Eds.). Apresentação. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 16, n. 3, p. 379-380, set./dez. 2016.

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discursiva, imagética, sonora, tátil, gustativa) – guarda essas marcas, na consciência ou

na inconsciência. Torna estável, ainda que o esquecimento, o deslocamento ou a

renovação se processem de tempos em tempos. Com efeito: como expressa Dawkins,

replicadores culturais não têm a mesma estabilidade/fidelidade de cópia dos genes. Em

algum grau, aliás, o deslocamento é a regra – movimento de dispersão, deslocamento,

atravessamento.

A fecundidade e a durabilidade dos memes dependem de vários fatores. Dawkins

explica que a primeira característica é mais importante que a segunda. Ideias científicas,

por exemplo, dependem do grau de aceitação junto aos cientistas; o grau de impacto delas

pode ser calculado pelo número de referências feitas a elas onde possam aparecer (livros,

periódicos, divulgação em geral) (p. 333).

Nos textos que escrevemos – e os que divulgamos nesta edição são exemplos disso

– o trabalho da memória, com todos os ingredientes adiantados sobre o movimento da

cultura, com seus temas e desdobramentos, manifestam, em algum sentido e em algum

grau, as características e processos do funcionamento da memória, do imaginário, da

ideologia, com a imbricação dessas unidades culturais – os memes –, amplas ou partidas

em elementos menores, atuando entre a repetição e a diferença, renovando-se em graus

variados.

Esperamos que esta exposição sintética possa ser um elemento coadjuvante para a

leitura dos textos aqui publicados.

Maria Marta Furlanetto

Fábio José Rauen

Silvânia Siebert

Editores

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OLIVEIRA, Kelly Cristina de; PIMENTA, Sonia Maria de Oliveira. O racismo nos anúncios de emprego do século XX. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 16, n. 3, p. 381-399, set./dez. 2016.

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DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1982-4017-160301-4615

O RACISMO NOS ANÚNCIOS DE EMPREGO DO SÉCULO XX

Kelly Cristina de Oliveira*

Universidade de São Paulo

Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas

Departamento de Filologia e Língua Portuguesa

São Paulo, São Paulo, Brasil

Sonia Maria de Oliveira Pimenta**

Universidade Federal de Minas Gerais

Faculdade de Letras

Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil

Resumo: Neste artigo, verifica-se como a publicação de anúncios de emprego com

exigências fenotípicas e critérios comportamentais contribuiu para agravar a desigualdade

social e econômica entre brancos e não brancos no Estado de São Paulo, início do século

XX. O corpus é formado por 20 anúncios de oferta e procura de empregos dos jornais

Correio Paulistano e O Estado de S.Paulo, ambos influentes na sociedade paulistana. Essa

escolha se justifica devido ao caráter documental inerente a esse gênero discursivo. Para a

análise, utiliza-se o arcabouço teórico da Análise Crítica do Discurso (ACD) desenvolvida

por Fairclough (2003; 2008), e os estudos de racismo por van Dijk (2010). Nessa

perspectiva, o gênero é tomado como modo de ação, uma das representações que Fairclough

atribui ao discurso. Este foi entendido como elemento de práticas sociais, e analisado dentro

de um contexto sociopolítico e ideológico da sociedade em que os textos foram produzidos.

Palavras-chave: Análise Crítica do Discurso. Ideologia. Racismo. Anúncio de emprego.

Jornal.

1 INTRODUÇÃO

O Brasil foi o último país na América a extinguir a escravidão, oficialmente em

1888. Antes disso, leis como a Lei Eusébio de Queirós, 1850, a Lei do Ventre Livre, 1871,

e a Lei dos Sexagenários, 1885, e várias rebeliões já haviam diminuído e onerado essa

prática. O surgimento de uma classe de trabalhadores livres era urgente para um país que

buscava crescimento e reconhecimento internacional. Para isso, era preciso desvencilhar-

se dos resquícios da Monarquia, “civilizar” os operários e tonar-se, de fato, uma

República.

* Doutora em Filologia e Língua Portuguesa. Pós-doutoranda. Bolsista CAPES. E-mail:

[email protected] ** Doutora em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem. Professora Doutora Associada do Programa

de Pós-Graduação em Estudos linguísticos, UFMG. E-mail: [email protected]

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OLIVEIRA, Kelly Cristina de; PIMENTA, Sonia Maria de Oliveira. O racismo nos anúncios de emprego do século XX. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 16, n. 3, p. 381-399, set./dez. 2016.

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Esses fatos, no entanto, não garantiriam direitos fundamentais para que os ex-

escravos fossem reconhecidos como cidadãos, principalmente em São Paulo; eles se

viram numa sociedade sem nenhuma legislação que proibisse a segregação étnico-racial,

ou que provesse alguma política social econômica para integrá-los ao novo “Estado de

coisas”, como apontam Silva e Rosemberg (2008, p. 75).

Os não escravos ficaram à margem do processo de civilização, pois muitos foram

expulsos das antigas moradas e tiveram que morar em favelas, ficando expostos a doenças

como sífilis, lepra, tuberculose e esquistossomose. Além disso, foram substituídos por

mão de obra europeia (principalmente em São Paulo) e negados em novos postos de

emprego. Seu status modificou de escravo-trabalhador para “trabalhador-escravo; órfão

de direitos [escravo] e estigmatizado por 350 anos de escravismo”, como relata Santos

(2000, p. 58).

O país abria as portas para os imigrantes europeus, especialmente para os que

aportavam em São Paulo, ex-Província, que crescia econômica e industrialmente.

Entretanto, a chegada desses imigrantes não servia apenas para sanar as necessidades de

mão de obra emergente, em nome do “progresso”, mas, principalmente, para pôr em

prática a política de branqueamento de raças. Ao chegar, muitos serviços que antes eram

prestados por ex-escravos passaram a ser executados por brancos europeus, nem sempre

porque estes eram mais especializados que aqueles, mas porque os europeus traziam na

pele a esperança do patronato paulista de formar uma nação forte, livre de vícios da

escravidão, mais ativa e não preguiçosa. Tais pensamentos eram advindos de estereótipos

negativos acerca dos afrodescendentes, resultando em preconceitos1, e perdurados por

décadas após a abolição, solidificando, dessa forma, o racismo2 no Brasil.

Os jornais tinham papel fundamental nesse processo, porque contribuíram para

disseminar essas crenças discriminatórias. Inicialmente citavam os negros em anúncios

de venda e troca como se fossem mercadorias. Depois, os negros eram descritos em

pequenas notas que revelavam suas fugas. Eles também constavam na seção de

ocorrências policiais, quando eram envolvidos em brigas, assassinatos e outras

“rebeldias”, como verdadeiras “feras”. Em editoriais, por exemplo, era comum encontrar

conteúdos relativos à sua inferioridade, como o descrito pelo Correio Paulistano de 1892:

“O negro só sabia ser sensual, idiota, sem a menor idéia de religião, de outra vida moral

e nem sequer de justiça humana. Dançar no domingo, embriagar-se, era sua única

atividade [...]”.

1 De acordo com Mazzara (1999, p.16), o preconceito é “a tendência de pensar (e atuar) de forma

desfavorável frente a um grupo. Agora podemos acrescentar que tal disposição desfavorável repousa sobre

a convicção de que esse grupo ou categoria possui traços bastante homogêneos que são considerados

negativos. Nesse sentido, o estereótipo pode ser considerado como núcleo cognitivo do preconceito”.

Nossa tradução para: “Definido el prejuicio como la tendência a pensar (y actuar) de forma desfavorable

frente a un grupo. Podemos ahora agregar que tal disposición desfavorable se apoya en la conviccion de

que ese grupo o categoria posee em forma bastante homogenea los rasgos que se consideran negativos. En

este sentido, como se ha dicho el estereotipo puede considerarse el nucleo cognitivo del prejuicio”. 2 O termo racismo é entendido como “um complexo sistema social de dominação, fundamentado étnica ou

“racialmente”, e sua consequente desigualdade [...]. O sistema de racismo é composto por um subsistema

social e um cognitivo. O subsistema social é constituído por práticas sociais de discriminação no

(micro)nível local, e por relações de abuso de poder por grupos, organizações e instituições dominantes em

um (macro)nível de análise [...]” (VAN DIJK, 2010, p. 134).

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OLIVEIRA, Kelly Cristina de; PIMENTA, Sonia Maria de Oliveira. O racismo nos anúncios de emprego do século XX. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 16, n. 3, p. 381-399, set./dez. 2016.

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Na verdade, o que pode ser observado é que muitos comportamentos tidos como

“rebeldes” estavam relacionados à tentativa de resistência aos castigos físicos, à

resistência ao processo de escravidão e resistência à imposição de práticas culturais dos

brancos e nacionais. Sodré (2004, p. 210-211) relata que era comum que os negros

negassem “os valores do mundo ‘branco’, assumindo, muitas vezes, um estilo de vida

alternativo, expressado pela prática de resistência cultural (samba, capoeira, macumba e

malandragem) [...]”.

Acerca dos estereótipos que faziam parte do imaginário da elite paulistana, Moura

(2004, p. 63) elencou os principais, dividindo-os em duas partes: o que o negro

simbolizaria e o que o europeu branco simbolizaria, conforme reproduzido a seguir:

Quadro 1 – Simbologia do Negro e do Imigrante para os paulistanos, segundo estudos de Moura (2004, p. 63)

Negro simbolizaria Imigrante branco europeu simbolizaria

Atraso Progresso e desenvolvimento

Barbárie Cultura

Passado Futuro

Devassidão Moral

Escravidão Liberdade

Primitivismo e selvageria Civilização

Africanização ou enegrecimento Clareamento da raça ou branqueamento

Esses estereótipos eram disseminados por meio de diversas práticas sociais e

discursivas, apontando como a dimensão cognitiva do racismo foi capaz de afetar as

crenças de toda a sociedade, influenciando condições mentais específicas (estereótipos,

preconceitos, crenças, ideologias) acerca do que simbolizava o negro e do que

simbolizava o imigrante.

Possivelmente influenciados por essas simbologias e também por acreditarem estar

pondo em funcionamento a ideia de progresso e de civilização, muitos comerciantes e

industriais usavam esses estereótipos como critérios de contratação de mão de obra. Os

negros não eram considerados, portanto, aptos para preencher todos os setores

econômicos que estavam em desenvolvimento, apenas os braçais, os mais precários, os

menos dinâmicos, ou seja, aqueles que lhes davam menos visibilidade social e, por fim,

os que tinham menos contato com o público. Ficavam, dessa forma, expostos às práticas

de exclusão social e econômica e, a mais dolorosa delas, ao racismo.

2 ABORDAGEM TEÓRICA E METODOLOGIA

Para analisarmos o racismo nos anúncios de emprego no jornal Correio Paulistano,

utilizaremos o arcabouço teórico da Análise Crítica do Discurso desenvolvida por

Fairclough, visto que permite analisar como a linguagem, numa relação dialética com a

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vida social, trabalha ideologicamente no estabelecimento, na (re)produção e na mudança

nas relações desiguais de poder.

Chouliaraki e Fairclough (1999, p. 19), baseados nos estudos do realismo crítico,

entendem a vida social como um sistema aberto, não previsível, dividido nas seguintes

dimensões: estruturas sociais, práticas sociais e eventos. Qualquer operação dessas

dimensões envolve a operação de vários mecanismos, numa rede bem complexa, e

envolve a agência humana, numa relação de dualidade: as práticas sociais dependem das

ações humanas para existirem e a agência humana se realiza por meio das práticas sociais.

As estruturas sociais são entidades mais abstratas, mais rígidas, tais como a

estrutura econômica, a classe social, a classe racial, a língua e etc.. O que torna possível

a existência, a permanência e a possível mudança dessas estruturas, segundo Chouliaraki

e Fairclough (1999, p.21), são as práticas sociais. Estas são modos habituais vinculados

ao tempo e espaço, praticados pelos agentes sujeitos que aplicam recursos (materiais ou

simbólicos) para agir no mundo. Essas práticas, de estabilidade relativa, constituem as

diversas atividades sociais, políticas, econômicas, culturais e cotidianas dos sujeitos, tais

como aulas, negociações, consultas médicas, casamentos etc..

De acordo com Fairclough (2003, p. 23), são as estruturas sociais que definem um

potencial, ou seja, “um conjunto de possibilidades” ou de coerções de ações que podem

concretizar-se, por intermédio das práticas sociais, em eventos sociais (discursivos e não

discursivos). Textos fazem parte desses eventos sociais e, porque estão vinculados às

práticas e às estruturas sociais, são capazes de gerar poderes causais nas pessoas,

mudando suas maneiras de pensar, suas crenças e suas atitudes.

Fairclough (2003, p. 25), baseado em Giddens (2003), afirma que cada prática

social é uma articulação3 dos diversos tipos de elementos sociais que estão associados às

diversas áreas da vida social. A prática social medeia a estrutura social e eventos sociais,

como pode ser visto no esquema 1, a seguir:

Esquema 1 – Estrutura social e evento social

Estrutura Social Práticas Sociais

Eventos Sociais

Quando as estruturas são mais conservadoras, tendem a se perpetuar por mais tempo

e espaço, por meio das diversas práticas sociais. Por outro lado, quando são mais

modernas, tendem a se modificar com mais facilidade, também por meio dessas práticas.

As práticas sociais são operadas pela agência dos sujeitos e por suas ações sociais. Os

3 “O princípio articulatório, como define Laclau, visa à condensação de diferentes ideologias de classes (e

não classistas como o nacionalismo e o populismo) antagônicas entre si, mas que são unificadas por uma

contradição antagônica, e sobredeterminante na formação social, que é a contradição povo em oposição ao

bloco no poder. É a partir dessa condensação desses elementos dispersos em diversas ideologias que Laclau

considera a possibilidade da formação de uma hegemonia. [...] Um dos aspectos mais significativos nessa

análise de Laclau é o papel das tradições populares como um dos elementos ideológicos dessa articulação”

(MOTTA; SERRA, 2014, p.138).

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sujeitos agem e interagem por meio dos gêneros (relação social), acionam suas crenças e

atitudes (fenômeno mental) e interagem com o mundo material (atividade material). As

estruturas podem, portanto, sofrer alterações pelas ações coletivas desses sujeitos e, ao

mesmo tempo, podem modificá-los, segundo Giddens (2003, p. 29).

Apesar de as estruturas sociais, práticas sociais e eventos comporem as relações

externas ao discurso, são de extrema importância para compor um estudo que prime pela

relação dialética entre sociedade e discurso, como propõe Fairclough (2003). Em nossa

análise, podemos esquematizar esse conceito da seguinte forma:

Esquema 2 – Estrutura social atrelada a nossa pesquisa

Essas práticas sociais são organizadas e reguladas por um elemento ordenador

denominado ordem do discurso. Nessa ordem, encontram-se “gênero, discurso e estilo

que constituem as relações interdiscursivas”. O gênero é entendido como modo de

agir/interagir e funciona como meio de governança, na sustentação da estrutura

institucional da sociedade contemporânea. Cada vez que há mudança na articulação das

práticas sociais, os gêneros também se transformam, se rearranjam, gerando novos

gêneros. Eles podem sofrer pressões sociais para continuarem estáveis ou podem sofrer

transformações mais rápidas, quando há pressão para uma nova ordem social

(FAIRCLOUGH, 2003, p. 66). Existe, nos gêneros, portando, um objetivo

transformacional.

É nesse sentido, portanto, que o gênero anúncio de emprego (parte de um evento

social discursivo) é entendido, como instrumento de ação/interação discursiva dos seus

sujeitos agentes (empregadores). Devido às pressões políticas e econômicas, deixou de

atender a um sistema escravocrata, passando a servir a um sistema industrial em ascensão;

não encontramos mais “aluga-se ou vende-se um escravo” depois do período de

escravidão, mas anúncios de “precisa-se” de alguém para trabalhar. Vimos, nesse caso,

uma rearticulação do gênero de compra e venda de escravos para anúncios de emprego,

cuja função passa a ser de contratação de mão de obra remunerada e, além disso, meio de

ação da elite para “civilizá-los”.

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Já o estilo está relacionado a modos de ser, de se identificar discursivamente (a si

mesmo e a outros), ou seja, à identidade (FAIRCLOUGH, 2003, p. 26). Quando alguém

se apresenta como médico, como engenheiro, como carpinteiro, apresenta-se com a

identidade atribuída a essas profissões, por exemplo.

Por fim, o discurso, parte irredutível da vida social, é empregado em dois sentidos:

Como substantivo abstrato, refere-se a linguagens e outros tipos de semioses, como

elemento irredutível da vida social, e é grafado com “D” maiúsculo. Como substantivo

concreto, é modo particular de representar aspectos do mundo, grafando-se com “d”

“minúsculo. Todas essas três formas – gêneros (ações), estilos (identificações) e

discursos (representações) – compõem o sentido do texto e são entendidas como

representações do discurso. O discurso, quando incorpora significações (semiose) que

contribuem para a estruturação e manutenção de poder, adquire um sentido negativo e,

por isso, o conceito ideológico também toma essa concepção negativa4. Entretanto, afirma

o autor, nem todo discurso é ideológico (negativo), pelo menos, não na mesma escala

(FAIRCLOUGH, 2003, p. 91).

O autor entende ideologia como modo de significar ou construir a realidade, que

abrange o mundo físico, as representações mentais e as representações e identidades

sociais dos sujeitos. Essas significações/construções atingem diversas dimensões e atuam

na produção, manutenção, reprodução e/ou transformação das relações de poder, de

dominação e de exploração. A ideologia pode ser legitimada por meio das ações sociais

e “inculcada” nas identidades sociais, por meio da linguagem, de várias formas e em

diversos níveis (FAIRCLOUGH, 2008, p. 87-91; FAIRCLOUGH, 2003, p. 9).

Entretanto, a ideologia pode ser transcendida pelos sujeitos agentes, quando

conseguem ativar sua capacidade de reflexão e ação por meio das diversas práticas

discursivas e sociais, resultando na alteração das relações de dominação, entendida como

hegemonia. Segundo Gramsci (1971, p.12), a hegemonia é mais efetiva quando praticada

por um grupo dominante de posição privilegiada, que usa uma forma de poder intelectual,

a fim de obter consentimento do grupo dominado, como se lê a seguir:

O “espontâneo” consentimento dado pela grande massa da população para a direção geral

imposta à vida social pelo grupo essencialmente dominante (e.g., por meio de seus

intelectuais que atuam como agentes ou adjuntos) é “historicamente” causado pelo prestígio

(e consequente confiança) de que o grupo dominante se serve, por causa da sua posição e

função no mundo da produção.5

4 Thompson (2011, p. 72-74) elaborou uma tabela didática, contendo algumas concepções que o termo

“ideologia” adquiriu, segundo a perspectiva de Destutt de Tracy, Lenin, Lukács, Mannheim, Napoleão e

Marx. O autor (2011, p. 72-74) dividiu essas concepções em dois tipos gerais: concepções neutras e

concepções críticas. Nas primeiras, a ideologia não serve a interesses de grupos particulares. Trata-se de

um aspecto da vida social e pode ser utilizada para alcançar a vitória de qualquer combatente, desde que

este tenha habilidades e recursos necessários para obtê-la e utilizá-la. Nesse sentido, a ideologia não precisa

ser, necessariamente, combatida ou eliminada. Nas segundas, a ideologia é classificada, de acordo com

critérios de negatividade, tais como engano, ilusão e poder de alcance parcial. Pode ainda estar relacionada

à sustentação de relações de dominação e a interesses de classes dominantes. É justamente esta concepção

negativa que é a adotada por Fairclough (2003; 2008). 5 Nossa tradução para: “The 'spontaneous' consent given by the great masses of the population to the general

direction imposed on social life by the dominant fundamental group [i.e, through their intellectuals who act

as their agents or deputies]; this consent is 'historically' caused by the prestige (and consequent confidence)

which the dominant group enjoys because of its position and function in the world of production”.

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Baseado em Gramsci, Fairclough (2008, p. 92) relata que, quando uma das classes

é definida economicamente como fundamental, devido a sua aliança com outras forças

sociais, temos a forma de hegemonia. Entretanto, esse poder é parcial com durabilidade

limitada. Isso ocorre porque as hegemonias (re)produzidas podem ser refutadas e

modificadas, quando há lutas hegemônicas contra as desigualdades produzidas nesses

setores, de diferentes níveis e domínios6. Há uma luta constante, porque o poder, como

um todo, nunca é alcançado na sua totalidade. Constroem-se, rompem-se e mantêm-se

novas alianças, novas integrações, envolvendo os interesses da sociedade – heterogênea,

antagônica e dinâmica –, a fim de transformar as ideologias passadas em novas lutas de

classes. Há, de fato, uma tensão nesse conceito de articulação de poder, que exige sempre

novas lutas de classes, conforme novas demandas sociais vão surgindo.

Por causa dessa possibilidade de mudança hegemônica é que a ACD, de Fairclough,

entende os sujeitos como agentes sociais, porque são parcialmente afetados pelas

estruturas, mas isso não os impede de, quando ativadas suas potencialidades, serem

capazes de ter autorreflexão para agir socialmente e transformar as relações de poder.

Dessa forma, o agente social é capaz de agir sobre o mundo e sobre os outros, dentro de

uma liberdade relativa. Em suas ações, usam os gêneros, que funcionam como

dispositivos de poder, capazes de controlar o que combina com o que e em que ordem,

incluindo qual configuração e ordenação de discursos é a mais adequada

(CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999, p. 144-145).

É preciso considerar ainda em quais relações sociais os participantes do discurso

estão inseridos e, a partir daí, verificar quais as possíveis ações estão sendo praticadas por

meio dos gêneros, e em que circunstâncias, visto que há uma cadeia de gêneros que

“contribuem para possibilidades de ações que transcendem diferenças no tempo e no

espaço”, articulam eventos sociais nas suas diferentes práticas e facilitam a ação à

distância, ou seja, o exercício do poder (CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999, p. 31).

Observamos que o leitor, em contato com anúncios de emprego, estava também

diante de ações que iam além de mediar as necessidades de contratação de mão de obra,

isto é, estava diante de normas de conduta discriminatórias exigidas por determinada

classe social: a dos patrões. O anúncio de emprego consolidava comportamentos morais

ao exigir, por exemplo, critérios relacionados à “boa” conduta, conduta do branco

“civilizado”, em vez de exigir critérios profissionais que os colocassem em igualdade de

competição. Esses comportamentos funcionavam como reguladores da sociedade,

advindos das estruturas mais rígidas e concretizados nas práticas sociais, nesse caso,

contratação de mão de obra, em forma de eventos sociais, anúncios e contratos de

emprego.

6 É essa possibilidade de mudança hegemônica que explica a criação de Leis, no século seguinte, que

coíbem práticas discriminatórias, bem como anúncios de emprego, no presente século, contendo essas

práticas. O jornal O Estado de S.Paulo, por exemplo, reserva um anúncio alertando os anunciantes que “De

acordo com o artigo 5 da CF/88 art.373 A da CLT, não é permitido anúncio de emprego no qual haja

referência quanto ao sexo, idade, cor, situação familiar, ou qualquer palavra que possa a ser interpretada

como fator discriminatório, salvo quando a natureza da atividade, pública e notoriamente, assim o exigir.”

(O ESTADO DE S.PAULO, 2015, p.5).

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O preconceito se torna mais evidente nos setores trabalhistas, como aponta Barbosa

(2004, p. 125), principalmente quando se adota critérios subjetivos para selecionar

pessoas: “a adoção de critérios subjetivos no momento das entrevistas, com caráter

eliminatório, e outros tipos de exame seletivo eram métodos refinados que derrotavam os

negros na disputa por um emprego”. Nossa investigação centra-se, portanto, em escolhas

lexicais que compunham esses eventos sociais, gênero anúncios de emprego, feitas por

uma elite paulistana (patronato) que, por meio de seus critérios subjetivos, baseados em

critérios morais de uma classe, discriminava as minorias (proletariado não branco).

Neste artigo, são analisados 20 anúncios de emprego, sendo 5 de pessoas se

oferecendo, ou sendo oferecidas7, e 15 de empregadores que procuravam mão de obra.

Esses anúncios foram retirados dos jornais Correio Paulistano e O Estado de S.Paulo,

ambos influentes na sociedade paulistana, disponíveis no acervo Hemeroteca Digital, on

line. Foram selecionados aqueles que continham critérios subjetivos relacionados às

questões étnicas e comportamentais, tais como cor, origem estrangeira, aparência e

boa conduta, nos períodos de 1903 a 1939. Esse período foi escolhido como parte de

pós-doutoramento, supervisionado pela professora Dra. Sônia Maria de Oliveira Pimenta,

dando continuidade a uma pesquisa diacrônica de doutorado realizada por Oliveira

(2012), que analisou anúncios de emprego no jornal Correio Paulistano de 1854 a 1900.

3 A FORMAÇÃO DE UMA REPÚBLICA “LIMPA”

A República, proclamada em 1889, ficou marcada, segundo os autores Silva e

Rosemberg (2008, p.77) por um “sistema de classificação racial, baseado na aparência

resultante de apreensão simultânea de traços físicos (cor da pele, traços da face, cabelos,

condições socioeconômica e região de residência) [...])”. A prática de usar essa

classificação não era restrita apenas a finalidades de pesquisas demográficas, mas fazia

parte de um discurso difundido no século anterior, perpetuando, por meio de diversas

literaturas e pesquisas que pregavam, a superioridade de uma raça (brancos) sobre outra

(não brancos).

A cultura da superioridade de raça era disseminada também por meio dos jornais,

através de diversas publicações. A influência dos jornais, revistas e periódicos para a

formação de uma identidade brasileira era inquestionável, como afirma Cruz (2000, p.

165): “Na reflexão letrada daquele período, a imprensa começa a ser entendida não só

como instrumento de articulação e discussão das posições de interesses das elites, mas

também, e principalmente, como veículo de formação cultural e moral do povo.”

Essa prática não ficou apenas impressa nos censos demográficos, livros, jornais,

mas tomou corpo, principalmente, no processo de industrialização e expansão de São

Paulo. Barbosa (2004, p.131) relata que “no pós-abolição, não se instaurou, plenamente,

a livre concorrência no mercado de mão de obra em São Paulo e o racismo à paulista se

constituiu em um dos principais elementos de imperfeições desse mercado”.

7 Pode ser que algum tutor/protetor pudesse ter escrito o anúncio, pois oferece-se, naquele período, traz à

tona dois possíveis sentidos: o de alguém que se oferece como candidato, e o de alguém que é oferecido

por um terceiro.

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Em anúncios de emprego, o critério de cor era um requisito comum para selecionar

o candidato ideal a ocupar determinada vaga. Entretanto, ao exigir vagas com tal critério,

os empregadores promoviam não apenas um processo seletivo injusto, já que a maioria

dos brasileiros era composta por negros trazidos da África, índios e miscigenados, mas,

principalmente, a desigualdade econômica entre brancos e não brancos, a dificuldade de

ascensão social dos não brancos e a disseminação da discriminação racial.

Não podemos afirmar que todas essas ações eram planejadas, nem mesmo que os

efeitos de sentido gerados eram automáticos, mas faziam parte de modelos mentais

amplamente divulgados no período e que, quando compartilhados socialmente, uniam-se

a uma rede de outros modelos e práticas sociais, instaurando-se como preconceitos e

ideologias racistas.

Van Dijk (2010, p. 134-135) afirma que “práticas [de discriminação] também

possuem uma base mental que consistem em modelos tendenciosos de interações e

eventos étnicos, que por sua vez encontram-se enraizados em preconceitos e ideologias

racistas”, principalmente quando emergem das elites. Estas estão entendidas como

simbólicas e estão presentes em várias esferas sociais, políticas, religiosas, corporativas,

midiáticas, educacionais, entre outras, atuando por meio do discurso, nas ações rotineiras

do cotidiano, como nos debates, nas entrevistas, nas notícias jornalísticas e etc. Não

estamos tratando, portanto, da manipulação feita por meio da força física ou de modo

impositivo, mas da manipulação consentida e, muitas vezes, reproduzida pelos próprios

manipulados.

A discriminação racial do século XIX e XX, em São Paulo, ocorria não apenas de

modo direto ao se preferir brancos a negros, nos anúncios de emprego, mas quando a elite

simbólica (patronato) determinava quais valores morais e comportamentais eram os mais

“adequados” para compor o quadro de empregados. Promovia-se uma segregação racial

a distância, feita, portanto, por meio desses gêneros e, posteriormente, por outros critérios

de seleção para efetivar a contratação.

4 ANÁLISE DO CORPUS: ANÚNCIOS PARA BRANCOS E A INFLUÊNCIA

DAS ELITES SIMBÓLICAS NA FORMAÇÃO DO CIDADÃO “CIVILIZADO”

A comunicação de massa mais comum no início do século XX ainda era o jornal

impresso. O Correio Paulistano era um jornal de distribuição diária, fundado em 1854,

que continuava influente na sociedade paulistana, mesmo após a criação de várias revistas

e periódicos. Outro de maior relevância foi o jornal republicano A província de S.Paulo,

em 1875, que, em 1890, circulava com o novo título O Estado de S.Paulo. Assim como

o Correio Paulistano, enfrentou problemas financeiros e quase deixou de existir, mas

conseguiu superá-los e se destacar na imprensa paulista.

Esses jornais, e outros não analisados neste artigo, contribuíram para a manutenção

e criação de uma mentalidade coletiva mais adequada aos padrões da elite. Van Dijk

(2010, p. 73) ressalta o quão influentes podem ser os meios de comunicação de massa

para a formação da opinião pública, principalmente quando conseguem atingir um maior

número de leitores: “Não há dúvida de que, dentre todas as formas de texto impresso, as

dos meios de comunicação de massa são as mais penetrantes, se não as mais influentes, a

se julgar pelo poder baseado no número de receptores”.

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Fairclough (2003, p. 8; 30), compartilha da mesma opinião e relata que em longo

prazo, e nunca de forma automática, os textos podem produzir efeitos causais (biológicos,

físicos, mentais), sociais, políticos e materiais nas pessoas, alterando mudanças em seus

saberes, suas crenças, suas atitudes, seus valores, suas identidades, suas ações, e assim

por diante.

Deve-se levar em conta também que nossa memória discursiva é alimentada

gradualmente pelo discurso – elemento da prática discursiva, socialmente construído,

repleto de representações sociais, crenças compartilhadas, estratégias e experiências

pessoais. Esse controle só pode ser alterado quando as potencialidades dos sujeitos

puderem ser ativadas, ou seja, quando conseguirem tomar consciência de algum processo

de submissão ou de opressão a que estão submetidos e, assim, produzirem resistência.

Com o fim da escravidão, o desejo de formar uma nação diferente da do Império

era intenso. A República brasileira do início do século XX ecoava a prática de racismo

tão presente no século anterior, por meio de seus jornais e periódicos diários. Era por

meio de diversos gêneros, inclusive o de anúncios de emprego, que a cor de pele branca

era tida como sinônimo de civilidade, bom comportamento, inteligência, bom gosto etc.

Na esfera econômica, essa predileção também era visível nos anúncios de ofertas

de mão de obra. A cor é mencionada como qualidade de mão de obra, o que reforça a

prática de haver seleção subjetiva, não apenas objetiva e profissional, como deveria

acontecer. A seguir os anúncios que utilizaram esse critério:

(1) Cozinheira – Offerece-se uma brasi-/leira, branca, do trivial, para casa/ de família; rua

11 de agosto, n.70, na-/tiga do Quartel

Correio Paulistano, 3 de junho de 1912

(2) Ama//Offerece-se uma/ branca com leite de 15/ dias do primeiro filho,/ limpa e

carinhosa para tra-/tar a rua Vergueiro n. 208.

Estado de S.Paulo, 29 de março de 1916

(3) Auxiliar de Escriptorio// Offerece-se, branco, 19/ annos, dactylographo e por-/tuguez

correcto.// Av. Brig. Luiz Antonio,/ 1209, Phone 7-6119

Estado de S.Paulo, 06 de dezembro de 1939

Essa seria uma forma de perceber como as elites simbólicas8 influenciam nas

representações mentais, nesse caso, negativamente, porque suas práticas discriminatórias

contra as minorias eram naturalizadas por décadas. O que observamos nesses anúncios de

1912, 1916 e 1939 é que os prováveis candidatos reproduziam esse sistema de seleção

por critério de cor, porque se ofereciam com esse mesmo critério, perpetuando, assim, as

desvantagens sociais e econômicas entre os possíveis candidatos não brancos.

Van Dijk (2010, p.135) relata que o racismo não nasce com o homem, mas é

“aprendido” e legitimado por meio do discurso:

8 Van Dijk define elites simbólicas como “aquelas elites que literalmente têm tudo ‘a dizer’ na sociedade,

assim como suas instituições e organizações” (VAN DIJK, 2010, p.134). Seus membros, afirma o autor,

podem ser os professores, jornalistas, acadêmicos, políticos, escritores, etc. (VAN DIJK, 2010, p. 237).

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OLIVEIRA, Kelly Cristina de; PIMENTA, Sonia Maria de Oliveira. O racismo nos anúncios de emprego do século XX. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 16, n. 3, p. 381-399, set./dez. 2016.

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As ideologias e os preconceitos éticos não são inatos e não se desenvolvem espontaneamente

na interação étnica. Eles são adquiridos e aprendidos, e isso naturalmente ocorre através da

comunicação, ou seja, através da escrita e da fala. E vice-versa: essas representações mentais

do racismo são tipicamente expressas, formuladas, defendidas e legitimadas no discurso e

podem assim ser reproduzidas e compartilhadas dentro do grupo dominante. Esse é

essencialmente o modo como o racismo é ‘aprendido’ na sociedade.

A definição de racismo não é tão simples e vai além da ideia da ideologia racista.

De acordo com van Dijk (2010, p.134), trata-se de um sistema social bem complexo de

dominação, que envolve fundamentações éticas e questões de desigualdade, além de ser

composto por um subsistema social e cognitivo. Esse subsistema envolve práticas sociais

de discriminação no nível micro (local) e macro (grupos, organizações, instituições

dominantes). Estes últimos mantêm relações de abuso discursivo de poder praticado pelas

elites simbólicas, isto é, mantêm relações de dominação. O autor (2010, p. 234) esclarece

que a manipulação é um fenômeno social, porque a interação e abuso de poder ocorrem

entre grupos e atores sociais (VAN DIJK, 2010, p. 236) por causa da posição social que

ocupam, e é também um fenômeno cognitivo porque exerce influência nas mentes das

pessoas, por meio da escrita, fala ou imagens.

Por fim, a manipulação “implica o exercício de uma forma de influência

‘deslegitimada’ por meio do discurso: os manipuladores fazem os outros acreditarem ou

fazerem coisas que são do interesse do manipulador, e contra os interesses dos

manipulados [...]” (VAN DIJK, p. 234). O autor acredita que isso ocorre porque os que

são manipulados “são incapazes de entender as intenções reais ou de perceber todas as

consequências das crenças e ações defendidas pelo manipulador. A manipulação não é

totalizante e não opera da mesma forma, dependendo muito do contexto; alguns podem

ser mais ou menos manipulados em graus e circunstâncias diferentes, estado e mente

(VAN DIJK, p. 235).

Os estudos de Bastide e Fernandes (2008, p. 191) relatam certa falta de consciência

entre os afrodescendentes de baixa classe, que, conformados à situação de inferioridade

em relação ao branco, comparavam sua ausência de recursos econômicos e instrução com

a dos pobres brancos, não percebendo que estavam diante de uma questão de racismo:

eles aceitavam que “preto foi feito para trabalhos brutos, isso [frequentar escolas] não

adianta nada” (BASTIDE; FERNANDES, 2008, p.192). Havia, de fato, uma aceitação da

própria sorte, advinda, provavelmente, do Cristianismo ou mesmo dos tempos de

escravidão que os impediam de ver o problema racial: “aceitação da própria sorte, porque

está escrito, por toda a eternidade nas leis divinas: ‘Se Deus quiser...’ O hábito da

docilidade, de fazer exatamente o que o branco espera do negro, impede que se veja o

lado moral do problema [...]” (BASTIDE; FERNANDES, 2008, p.192). Eles também

negavam a existência do preconceito racial no Brasil, como pode ser visto num inquérito

feito pelos autores a seguir:

Por conseguinte, o problema da cor não se apresenta para ele com a mesma intensidade, e o

ressentimento contra o branco, quando se revela, permanece cuidadosamente localizado. Para

a mulher, por exemplo, contra os patrões que preferem empregar brancas como domésticas

para os serviços ‘finos’ . Para o homem, na concorrência sexual, ou contra o imigrante,

recém-chegado, que pode prejudicá-lo no mercado de trabalho. De modo que muitos pretos

dessa classe consideram, nas respostas ao nosso inquérito, que o Brasil não tem preconceito

de cor. (BASTIDE; FERNANDES, 2008, p.191)

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OLIVEIRA, Kelly Cristina de; PIMENTA, Sonia Maria de Oliveira. O racismo nos anúncios de emprego do século XX. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 16, n. 3, p. 381-399, set./dez. 2016.

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Nesses inquéritos podemos observar como a dominação de uma classe social,

branca, conseguia influenciar a massa da população através do consentimento, sem usar

a força. Entretanto, para a Análise Crítica do Discurso (ACD), proposta por Fairclough,

essa dominação não é permanente ou mesmo atingida na sua totalidade, o que faz com

que haja uma luta hegemônica, e é exatamente isso que irá caracterizar o conceito de

hegemonia: a sua instabilidade.

Tanto a hegemonia quanto a luta hegemônica, relatam Resende e Ramalho (2006,

p. 44), são constitutivas das práticas discursivas, nas relações verbais originadas da

dialética entre discurso e sociedade – “hegemonias são produzidas, reproduzidas,

contestadas e transformadas no discurso”. Conforme a sociedade se transforma, e

modifica sua relação nos seus diversos domínios, a hegemonia também se relativiza,

podendo articular-se ou desarticular-se dessas ações sociais. Para que isso ocorra, é

preciso que haja uma reflexividade crítica. As autoras (p. 45) esclarecem que tal conceito

é bem caro para a ACD, “pois reflexibilidade sugere que toda prática tem um elemento

discursivo, não apenas porque envolve, em grau variado, o uso da linguagem, mas

também porque construções discursivas sobre práticas são também parte dessas práticas”.

Bastide e Fernandes (2008, p. 196) afirmam que foi somente após a primeira guerra

mundial (1914-1918) que os negros se conscientizaram lentamente de sua condição, ao

perceber, por exemplo, que imigrantes recém-chegados, pobres como eles, conseguiram

ascensão social, enquanto os negros continuavam na mesma situação. Colaboraram

também, para esse processo de conscientização, os movimentos dos partidos socialistas e

comunistas unidos ao movimento modernista, que destacou a estética africana, fazendo

com que os negros sentissem orgulho de suas próprias origens. Antes disso, os autores

descrevem os negros como submissos à condição de exclusão na sociedade dos “brancos”.

Acreditamos que esse processo de conscientização não era suficiente, ou talvez que

fosse não plenamente estimulado para que esses negros pudessem vencer o preconceito

dos brancos, pois continuavam marginalizados e voltavam a ser estigmatizados como

“vagabundos”, pois os brancos não os empregavam, como Barbosa (2004, p.110) sugere:

“o determinante para o dramático destino dos negros na sociedade de classes não foi sua

desaptidão para o exercício das profissões, mas o ‘prefere-se branco’ do patronato”. Os

anúncios abaixo confirmam essa preferência:

(4) Creada – Precisa-se de uma, branca, com boas referências para arrumar/ quartos e que

entenda também de costu/ra: rua Visconde de Rio Branco, n.3

Correio Paulistano, 21 de Setembro de 1911

(5) Precisa-se com urgência/ de uma cozinheira para/ família pequena. Paga-se bem. Prefere-

se branca. Trata-/se á rua General Ozório, n.132

O Estado de S.Paulo, 25 de outubro de 1912

(6) Precisa-se com urgência/ de uma criada para ser-/viços de uma família pe-/quena. Prefere-

se branca

O Estado de S.Paulo, 25 de outubro de 1912

(7) PRECISA-SE de uma boa co-/sinheira para ir para o in-/terior. Prefere-se branca./Tratar

á rua Riberio de Lima n./80.

O Estado de S.Paulo, 12 de maio de 1919

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OLIVEIRA, Kelly Cristina de; PIMENTA, Sonia Maria de Oliveira. O racismo nos anúncios de emprego do século XX. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 16, n. 3, p. 381-399, set./dez. 2016.

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Não apenas declarar preferência a brancos colocava a competição desigual dos

desempregados, mas também preferir estrangeiros europeus, pois era uma forma

mascarada de praticar a discriminação racial. É nítido que tais critérios não visavam à

capacidade ou ao preparo profissional dos candidatos, como amplamente discutido em

Oliveira (2012). Nos anúncios 8 a 12, é possível ver a preferência por europeu para

profissões diversas:

(8) Precisa-se a rua do Ypiran/ga de uma criada para ar/rumar quartos prefere-se// alemã ou

hespanhola.

Correio Paulistano, 25 de março, 1903

(9) Cozinheira – Precisa-se e prefere-se/ portugueza, que durma fóra; trata-/se á rua

Visconde do Rio Branco, n.88.

Correio Paulistano, 12 de outubro de 1911

(10) GOVERNANTA ou dama de/ companhia, precisa-se para/ acompanhar o tratamento de

/uma senhoria e auxiliar nos ar-/ranjos de casa; prefere-se estran-/geira, Avenida

Hygienopolis, 30.

O Estado de S.Paulo, 23 de março de 1915

(11) GOVERNANTA– Precisa-se/ de uma moça, para tomar com-/ta de 4 crianças e

lecionar;/prefere-se franceza. Para tratar/ das [ ] ás [ ] da manhan ou das / [ ] ás 8 da noite.

Avenida Paulis-/ta n. [ ]

O Estado de S.Paulo, 25 de março de 1915

(12) PADEIRO// Precisa-se de um que seja pratico/e faça o serviço de fermento e ven/dedor.

Prefere-se de nacionalidade/ alemã. Informações com Candido/ Bueno Alvarenga, em villa

Para/guassu , sul de Minas.

Correio Paulistano, 7 de fevereiro de 1920

Barbosa (2004, p.118-119) relata que era prática comum dos empregadores

estrangeiros preferirem empregar seus compatriotas em suas empresas. Essa “tradição”

era muito prejudicial aos afrodescendentes, mestiços e mesmo nacionais brasileiros, já

que 64% das firmas pertenciam aos estrangeiros, de acordo com o senso de 1920 feito em

São Paulo. Desse total, 75% pertenciam a italianos. Ao serem os brancos preteridos pela

cor, alcançavam status social privilegiado, muitas vezes chegando ao patronato, e

repetiam as ações de seus antigos empregadores, operando, dessa forma, um círculo

vicioso de exclusão e de preconceito.

Somadas aos critérios de cor e origem estrangeira estavam as exigências

comportamentais, que aumentavam a desigualdade entre brancos e negros, pois estavam

relacionadas a estereótipos que se atribuíam aos negros, perdurados por décadas após a

abolição. Dessa forma, exigia-se nos anúncios de emprego que o candidato tivesse um

comportamento servil, disciplinado, fiel às ordens do patrão, fiel ao progresso paulista.

Essa mentalidade não era só de quem anunciava a vaga, mas também daqueles que a

procuravam, como podemos observar nos anúncios a seguir:

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(13) PRECISA-SE de uma empre/gada seria para o serviço/ de uma casa de duas pes-/soas

na rua Muller, 4C

Correio Paulistano, 22 de março de 1904

(14) Offerece-se uma moça de nacionalida-/de brasileira de comportamento se-/ria e fiel,

ordenado 50$000, prefere-se no/ bairro da Santa Iphigenia; Trata-se a rua Sete de Abril, n.55

Correio Paulistano, 2 de outubro de 1911

(15) Cozinheira – Offerece-se uma, dando/ boas referencias de sua conducta:/ rua

Carvalho, 24

Correio Paulistano, 29 de março de 1912

O anúncio 13 procura por empregada séria, em 1904. Observamos que o mesmo

critério de conduta é usado em 14, que destaca ser também fiel, qualidade mais valorizada

pelos patrões, e em 15 por moças que se oferecem para trabalhar. É válido entender que

o comportamento sério naquele período poderia estar relacionado a não intimidade com

os homens, a não abertura a gracejos, pois trabalhar fora significava, para a sociedade,

estar exposta à perdição, sem a tutela dos familiares. O processo disciplinador para as

mulheres era mais repressivo, pois era preciso cuidar do seu comportamento moral e

sexual, visto que ficavam expostas às “barbáries” dos espaços públicos, principalmente

na cidade, e poderiam ter sua moral e honra atacadas pelos trabalhadores (imigrantes ou

brasileiros), como relata Perrot (2007, p.136):

A cidade, representada como a perdição das moças e das mulheres, lhes permite, com

frequência, libertar-se de tutelas familiares pesadas, de um horizonte de aldeia sem futuro.

Conseguem modestas ascensões sociais, escapam a uniões arranjadas para realizarem

casamentos por amor. A cidade é o risco, a aventura, mas também a ampliação do destino, a

salvação.

Outra forma de preferir brancos era usar o critério da boa aparência. A esse respeito,

Damasceno (2000, p.191) esclarece:

[...] a associação de todas as categorias raciais deságua na supremacia da “boa aparência”,

oferecendo subsídios para a compreensão desta expressão não como algo dado, natural, mas

como produto da combinação de valores que, externos ao mercado de trabalho, são dentro

dele reconstruídos. Assim, neste concerto entre os que oferecem emprego e os que procuram,

a invenção das regras de etiqueta racial aprimora-se lentamente, e é sobretudo nos anúncios

[...] que a combinação da “cor” com a “boa aparência” vai aos poucos sendo substituída pela

segunda expressão como uma metáfora englobadora da condição racial.

A boa aparência não estava desassociada do pensamento da época sobre o que

representava o europeu e o que representava o não europeu. A boa aparência estava

relacionada a cheiro, a cabelo, a asseio do homem branco. Os que não tinham essa boa

aparência deveriam se adaptar ou ficavam excluídos. Pinho (2004, p.11) relata que a

aparência corporal também estava associada à personalidade. Os corpos dos negros foram

associados com as trevas, com a escuridão, como se a cor da pele revelasse a da alma;

eles eram associados à sujeira, ao mau cheiro, eram considerados feios. O padrão

dominante de beleza era o do europeu.

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Pinho (2004, p.11) afirma também que o mercado de trabalho foi um dos espaços

mais marcantes de atuação do racismo no Brasil e cita a fala de um jovem negro – tirada

de uma de suas entrevistas feitas em 1999 e 2000, com pessoas integrantes de blocos afro

Ilê, Aiyê e Olodum – sobre o pai que não conseguiu emprego por causa da cor:

Agora, também, tem o racismo no trabalho. Meu pai, quando foi procurar emprego, o homem

disse que não queria ele porque não tinha mais vaga. Aí logo entrou um homem branco e ele

disse que tinha vaga. Aí quando meu pai reclamou ele disse que não tinha vaga para preto.

O autor assevera que usar critério de boa aparência era uma forma de “controlar” a

ameaça ou o medo ou mesmo a repugnância diretamente associada ao corpo do negro

(PINHO, 2004, p.17). Em nossos anúncios, encontramos critérios de boa aparência ou

físico agradável em:

(16) MOCINHA – Precisa-se de uma/ de boa apparencia para auxiliar de dentista. Rua

Boa/Vista, 11, primeiro andar.

O Estado de S.Paulo, 26 de junho de 1914

(17) VENDEDOR de presuntos e/salames – Precisa-se de um/ vendedor para estes artigos,/

nesta praça. Precisa ser pessoa/ habilitada e de boa apparencia/ e que traga referencias de

casas/ commerciaes. Continental Products/ Company. Alameda Cleveland, 44.

O Estado de S.Paulo, 30 de outubro de 1915

(18) PROFESSOR// PRECISA-SE de um bom/ professor para ensinar portuguez, francez, al-

/gebra, geometria, historia natu-/ral, physica e chimica e historia/ universal a um ‘mocinho

de 14/ anos, que ouve mal, porém,/ muito inteligente e bem edu-/cado.// O professor deve ter

um phy-/sico agradável, boa dicção e bom/ methodo de ensino.// Paga-se 300$000 mensaes

para leccionar 3 horas e meia diárias.// É provável conseguir-se, além/ dos 300$000 um

auxílio de/ 100$000 para leccionar em um/ estabelecimento publico.// Offertas, fotografia e

do/cumentos de identidade diri-/gir a /M.K.// Caixa n.[] – Itajahy.// Santa Catharina.

Correio Paulistano, 19 de abril de 1920

(19) DACTYLOGRAPHIA// Moça de boa apparencia procura colocação./ Cartas, por

favor, aos cuidados deste jornal/ a – K5

Estado de S.Paulo, 3 de junho de 1939

(20) BALCÃO// Precisa-se de um com/ bastante prática de balcão,/ que seja inteligente e de/

boa aparência.// Casa Alicator. Rua do// Arouche, 195

Estado de S.Paulo, 1 de junho de 1938

Esses anúncios deixam claro que a estética era um critério subjetivo, desigual,

excludente e discriminatório, porque estava associado a estigmas e preconceitos advindos

de uma sociedade em formação, que adotava políticas para embranquecer e “civilizar” a

classe trabalhadora. Tratava-se de um método punitivo contra os que não possuíam a

aparência desejável e que, portanto, não puderam ser avaliados pela sua capacidade

profissional, ficando à margem do processo de “civilização”.

Nesse sentido, os anúncios de emprego não eram apenas mediadores de um

processo seletivo justo, mas serviam como instrumentos de poder de uma classe

(patronato) sobre a outra (empregados não brancos). Como não havia nenhuma lei que

punisse a discriminação racial ou que entendesse esses critérios como discriminação

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racial, esses discursos eram naturalizados e divulgados diariamente nos jornais de maior

circulação, que colaboravam para (re)produzir modelos mentais e comportamentais por

décadas. Giddens (2003, p. 30) relata que essa reificação das relações sociais, ou forma

de ‘naturalização’ discursiva, seria uma das principais dimensões da ideologia na vida

social. É nesse processo que se pode observar formas mais comuns de naturalização

ideológica.

Entretanto, essa naturalização não ocupa tempo e espaço permanente, por causa da

dualidade existente nas estruturas sociais que interpelam o sujeito e, ao mesmo tempo,

podem ser modificadas por ele, num fluxo contínuo. Giddens (2003, p. 39) relata que a

estrutura é constituída por um conjunto de regras e recursos implicados de modo recursivo

na reprodução social. Ela permite que as práticas sociais sejam reproduzidas em

dimensões variadas de tempo e espaço, mas também permite haver produção, criação,

pelos agentes competentes e reflexivos. Há, portanto, intersecções contínuas entre ações

dos agentes e suas práticas nos sistemas sociais e, conforme esses sistemas são alterados,

altera-se também a estrutura.

É o que ocorreu em 1951, quando essas práticas passaram a ser condenadas,

alterando a ordem institucional9, ou seja, um dos componentes constituintes da dimensão

social, que reordena e reorganiza a sociedade. A Lei 1390/51, Lei Afonso Arinos, foi

criada para punir casos explícitos de discriminação racial em empresas, escolas e serviços

públicos. Entretanto, as punições não eram rigorosas, tornando-a ineficiente. Quase 40

anos depois, em 1989 uma nova Lei 7716/89, Lei Caó, é criada para punir o racismo como

crime inafiançável (OLIVEIRA, 2012, p. 98).

O fato de essas leis existirem não significa que práticas racistas deixaram de existir.

Apesar de as leis auxiliarem a criar uma consciência de novas regras sociais, tendo um

caráter punitivo mais prático que teórico, e passarem a reger as práticas cotidianas, elas

não impedem que discursos e atos racistas existam de modo mascarado. No caso de nosso

estudo, estava por trás da “boa aparência”, critério esse admitido como algo natural,

normal na sociedade.

O estudo nos anúncios de emprego na perspectiva da ACD auxilia, portanto, na

revelação dessas práticas, nas diversas manifestações semióticas, e propõe engajamento

dos sujeitos, ou seja, ações que visem a modificar essas relações desiguais de poder e a

promover justiça e igualdade social.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O sujeito é capaz de tecer textos e, ao fazer isso, não faz escolhas lexicais de modo

aleatório, tampouco dá aos signos sentidos aleatórios, pois há nesse processo de tessitura

e de produção de sentidos motivações sociais: “Os signos são socialmente motivados, isto

é, [...] há razões sociais para combinar significantes particulares a significados

particulares” (FAIRCLOUGH, 2003, p.102). Assim, ao estudar as escolhas lexicais,

9 Uma das três dimensões relacionadas por Giddens (2003, p. 36) que compõe a estrutura do sistema social.

As outras duas são: Estrutura, composta por significação, dominação e legitimação, e Domínio Teórico,

constituído de Teoria da decodificação, Teoria da Alocação de Recursos e Teoria de regulação Normativa.

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numa perspectiva que abarca a relação dialógica entre linguagem e sociedade, estamos

lidando com relações complexas que envolvem sujeitos agentes e suas ações, poder,

ideologia, práticas sociais, identidades e representações que ultrapassam o âmbito

linguístico. Textos causam efeitos sociais, políticos, cognitivos, morais e materiais nas

pessoas, por isso envolvem estudos inter e transdisciplinares. Estamos lidando, portanto,

com uma perspectiva que entende que o discurso é, ao mesmo tempo, estruturado e

estruturante das relações sociais.

Investigar anúncios de emprego numa perspectiva crítica social envolveu, portanto,

um olhar para questões que envolvem a sociedade, considerando, assim: o domínio

político, políticas de branqueamento de raça, de patronato que investe contra os não

brancos; o domínio econômico: a ascensão social de uma classe em detrimento da outra;

o domínio cultural: as crenças sobre a superioridade moral de uma classe sobre a outra;

entre outros domínios que permeavam o século XX.

Ainda sobre as escolhas lexicais, Fairclough assevera que elas podem materializar

efeitos ideológicos e marcas hegemônicas, pois ao analisar os possíveis sentidos das

palavras, estamos diante de uma “disputa dentro de lutas mais amplas: quero sugerir que

as estruturações particulares das relações entre as palavras e das relações entre os sentidos

de uma palavra são formas de hegemonia” (FAIRCLOUGH, 2003, p.105).

Entendemos que a ideologia de raça era um discurso naturalizado e bem complexo,

por isso foi preciso investigar como essas escolhas lexicais, que constituíam os anúncios,

envolviam ações assimétricas de poder, que favoreciam uma classe (branca) em

detrimento da outra (não branca), e serviam para “legitimar discursos ideológicos, ou seja,

maneiras particulares de ação e relação” (FAIRCLOUGH, 2003, p.61).

Van Dijk (2008, p.17-18) esclarece que as práticas discriminatórias não nascem

com o homem, mas são modelos mentais (representações cognitivas de nossas

experiências) compartilhados socialmente e orientados negativamente acerca de Nós

sobre Eles. Por não serem inatas ao ser humano, essas práticas são adquiridas e

aprendidas, num processo de normatização e concretizadas por meio de eventos sociais,

amplamente disseminados pelos meios de comunicação em forma de gêneros discursivos.

Entretanto, o autor deixa claro que os textos “não têm um efeito automático sobre as

opiniões dos leitores [...] mas sob condições especiais, essa influência pode ser

penetrante” (VAN DIJK, 2008, p.19).

A criação de leis que coíbem essas práticas foi fundamental para que os jornais

também modificassem o modo como circulavam os discursos. Por não serem permanentes

e poderem, como afirma Fairclough (2003, p. 3) ser recriadas/reestabelecidas nos modos

de agir socialmente, as ideologias possuem certa durabilidade e estabilidade. Como novas

formas de dominação foram recriadas, substituindo “precisa-se de branco” por “precisa-

se de alguém com boa aparência”, foi preciso revê-las e punir os jornais que permitissem

tais publicações. Isso só ocorreu em 1989, com o Decreto-Lei nº 7.716/89, que definia os

crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, bem como a pena de dois a cinco

anos de prisão para quem, em anúncios ou em formas de recrutamento de trabalhadores,

exigir critérios de aparência próprios de raça ou etnia (OLIVEIRA, 2012, p. 99).

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OLIVEIRA, Kelly Cristina de; PIMENTA, Sonia Maria de Oliveira. O racismo nos anúncios de emprego do século XX. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 16, n. 3, p. 381-399, set./dez. 2016.

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Recebido em: 11/12/15. Aprovado em: 19/07/16.

Title: The racism in job advertisements in the 20th century

Authors: Kelly Cristina de Oliveira; Sonia Maria de Oliveira Pimenta

Abstract: In this article, we verified the ways in which phenotypical and behavioral criteria

have contributed to worsen social and economic inequality between white and non-white

people in the State of São Paulo, in the beginning of the 20th century. Our corpus comprises

20 advertisements, offer and demand for jobs in the newspapers Correio Paulistano and O

Estado de S.Paulo, both of great influence in São Paulo’s society. This choice may be justified

in terms of the documental characteristics inherent to this discursive genre. In our analysis,

we have used as our theoretical presuppositions Fairclough’s Critical Discourse Analysis –

CDA (2003; 2008), as well as Van Dijk’s studies (2010) on racism. In this perspective, genre

is considered as a mode of action, one of the representations that Fairclough confers to

discourse. It was comprehended as an element of social practices, and analyzed in a

sociopolitical and ideological context in which the texts were produced.

Keywords: Critical Discourse Analysis. Ideology. Racism. Job advertisement. Newspaper.

Título: El racismo en anuncios de trabajo del siglo XX

Autores: Kelly Cristina de Oliveira; Sonia Maria de Oliveira Pimenta

Resumen: En este artículo se verifica como la publicación de anuncios de trabajo con

exigencias fenotípicas y criterios comportamentales han contribuido para tornar más grave

la desigualdad social y económica entre blancos y no blancos en Estado de São Paulo, inicio

del siglo XX. El corpus es formado por 20 anuncios de oferta y procura de trabajo de los

periódicos Correio Paulistano y O Estado de S.Paulo, ambos influentes en la sociedad de

São Paulo. Esa elección es justificada por el carácter documental inherente a ese género

discursivo. Para el análisis se utiliza la estructura teórica del Análisis Crítica del Discurso

(ACD) desarrollada por Fairclough (2003; 2008), y los estudios de racismo por van Dijk

(2010). En esa perspectiva, el género es tomado como modo de acción, una de las

representaciones que Fairclough atribuye al discurso. Este fue entendido como elemento de

prácticas sociales, y analizado dentro de un contexto sociopolítico e ideológico de la

sociedad en que los textos fueron producidos.

Palabras-clave: Análisis Crítico del Discurso. Ideologia. Racismo. Anuncio de trabajo.

Periódico.

Este texto está licenciado com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.

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DIAS, Luzia Schalkoski; GUSSO, Angela Mari. “Do you need to know the person to donate?” Facework strategies in Brazilian blood donation campaigns: a multimodal analysis. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 16, n. 3, p. 401-419, set./dez. 2016.

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DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1982-4017-160302-0116

“DO YOU NEED TO KNOW THE PERSON TO DONATE?”

FACEWORK STRATEGIES IN BRAZILIAN BLOOD DONATION

CAMPAIGNS: A MULTIMODAL ANALYSIS

Luzia Schalkoski Dias*

Angela Mari Gusso**

Pontifícia Universidade Católica do Paraná

Escola de Educação e Humanidades

Curso de Letras

Abstract: The study intends to point out the analytic potential which the interrelation between

the Politeness Theory (BROWN; LEVINSON, 1987) and the semiotic approach of the

Grammar of Visual Design (KRESS; VAN LEEUWEN, 2006) can provide to the analysis of

politeness strategies used in the advertising of public communication. We carried out a

qualitative analysis of two advertising pieces in blood donation campaigns conducted by the

Brazilian Ministry of Health. The textual genres analyzed, a poster and a folder, are

characterized by their semiotic multimodality; therefore, resources are used together to

produce social meanings in tune with the interests and motivations of the producers. It was

highlighted by the data analysis that, as the positive politeness strategies are used by the

advertisers to try to get close to the addressees, the visual language is also handled according

to certain standards, in order to capture the attention of the targeted public. The corpus

suggests that the visual structures reinforce the verbal strategies used to intensify the

atmosphere of closeness between those involved in the interaction situation.

Keywords: Multimodality. Politeness strategy. Advertising. Blood donation.

1 INTRODUCTION

The technological advances in the production of written and visual communication

during the last decade have had significant impact in the forms of social communicative

interaction, expanding the ways of producing and broadcasting information in

contemporary society.

Thus, as argued by Dias and Gusso (2015), people have been required to have new

reading and writing abilities in connection with the new technologies. No longer is the

mastery of reading printed texts enough, as people now need to interact with a number of

multimodal texts conveyed by printed, analogic and digital media.

* Associate Professor of Portuguese and Linguistics at the Pontifical Catholic University of Paraná, PUCPR,

Brazil. PhD in Linguistics, Pragmatics, at Federal University of Paraná, UFPR, Brazil. Member of

Language and Culture Research Group (UFPR/CNPq). E-mail: [email protected] ** Associate Professor of Portuguese and Linguistics at the Pontifical Catholic University of Paraná,

PUCPR, Brazil. PhD in Linguistics at Federal University of Paraná, UFPR, Brazil. E-mail:

[email protected]

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DIAS, Luzia Schalkoski; GUSSO, Angela Mari. “Do you need to know the person to donate?” Facework strategies in Brazilian blood donation campaigns: a multimodal analysis. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 16, n. 3, p. 401-419, set./dez. 2016.

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Marcuschi (2005, p. 19) highlights that the textual genres are narrowly connected

to social practices, cognitive aspects, interests, power relations, technologies, discursive

activities and culture. This transformation can be observed in the texts produced in the

discursive field of advertising, object of this study.

Often, different advertising genres have attracted the attention of researchers

(ESCRIBAÑO, 2006; DEL SAZ-RUBIO, 2000, 2011; PALACIOS; SENA, 2010;

PISHGHADAM; NAVARI, 2012, among others) that have studied pragmatic-discursive

aspects, including those regarding linguistic politeness. However, traditionally, such

studies have emphasized verbal texts, with little regard to non-verbal elements that are

often the hallmark of such genres. In this respect, the work of Pennock-Speck and del

Saz-Rubio (2013) is almost an exception.

With regard to studies of politeness, the fact that gestures can also work as

indicators of (im)politeness in some cultures shows the necessity for studies in this area

to go beyond verbal (im)politeness in discourse. Other than that, multimodal genres, such

as advertising, generally have a variety of non-verbal elements that are interrelated with

the verbal message; therefore, their consideration can enrich the study of linguistic

politeness. In this sense, it has been argued that “The concepts that have been used to

describe the structure of language as a resource and the ´footing´ of talk can also be

applied multimodally” (VAN LEEUWEN, 2004, p. 18).

In order to widen the scope of the analysis beyond the verbal dimension, we propose

to combine the theoretical framework of Brown and Levinson’s politeness model (1987)

and the semiotic approach of Grammar of Visual Design, by Kress and van Leewen

(2006), with the objective of analyzing two advertising pieces of blood donation

advertised by the Brazilian Ministry of Health. We do not disregard the discretions about

some aspects with reference to Brown and Levinson’s (henceforth B&L) model of

politeness, such as the consideration that its strategic and instrumental view of verbal

interaction could be less than realistic when applied in everyday communication (EELEN,

2001) or the questioning of the universality of politeness strategies (MATSUMOTO,

1988; IDE, 1989). However, as it is claimed by Pennock-Speck and del Saz-Rubio (2013,

p. 39), in the context of advertising “most of the objections which have been raised

regarding the B&L approach either do not apply or can actually be construed as

advantages”. Therefore, we adhere to the argument of these authors that “even though

B&L’s strategic and instrumental view of verbal interaction may be unrealistic when it

comes to ordinary conversation (…), it seems ideally suited to the premeditated discourse

found in advertising copy”.

Keeping in mind these considerations, our main purpose in this article is to point

out the analytic potential that the interrelation between Politeness Theory and the

Grammar of Visual Design can provide to the analysis of face management strategies

utilized in advertising pieces from campaigns of Brazilian blood donation. Therefore, this

work analyses how verbal and non-verbal resources are articulated to project, preserve,

or reinforce the faces of the advertiser and the targeted public.

In section 2, we introduce the main theoretical notions that form the basis of our

analysis. In section 3, we describe the corpus and explain the methodology used. In

section 4, we develop the analysis of the data and results. In section 5 we present our

conclusions.

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2 THEORETICAL FRAMEWORK

2.1 BROWN AND LENVINSON’S POLITENESS THEORY

AND THE ADVERTISING DISCOURSE

The studies on linguistic politeness gained notoriety in the field of pragmatics from

B&L’s theoretic formulations. They observed that most speech acts produced in everyday

conversations do not happen as efficiently as suggested by the Gricean Maxims. Thus,

they suppose that the concern in giving some attention to two basic desires of human

beings – the desire of being appreciated by others, and the desire of not having one’s

actions prevented by others – would be a strong motive for speakers of different languages

not to follow such maxims. In this perspective, politeness would explain the deviation of

rational efficiency in the interactions, being expressed precisely by this deviation (B&L,

1987, p. 4). This communication model conceives linguistic politeness as a phenomenon

centered in the metaphorical notion of face, initially elaborated by Goffman (1967). This

notion of face, according to B&L (p. 62), has two sides: the negative and the positive

faces. The negative face is seen as the desire of any person neither having his/her actions

prevented nor suffering impositions, which means having their territory respected by

others. The positive face refers to the human desire of being accepted by others, and of

having their desires shared by at least some people. Thus, these authors propose that the

linguistic politeness strategies used by speakers are directed to the safeguarding of these

faces of the interlocutors. In this sense, such verbal procedures have been considered

facework strategies.

B&L (1987) classify some acts (both verbal and non-verbal) as intrinsically

threatening to the negative and/or positive face of both the speaker (S) and the hearer (H),

or the advertiser and the reader in the case of advertising pieces. Such Face Threatening

Acts (FTAs) call for redressive action in the form of politeness strategies (B&L, 1987, p.

24). This model proposes that at the very moment of social interaction, speakers rationally

assess the seriousness of the FTA on the basis of three independent and culturally

determined variables – the social distance (D) and social power (P) existing between S

and H, and the ranking of imposition (R) of the act itself. Any rational S will thus seek

either to avoid any FTAs in his or her interactions with H, or to employ some strategies

to minimize the threat that may arise during these interactions. B&L present five

hierarchically ordered strategies depending on the amount of facework required: first, S

must decide whether to carry out the FTA or not. If she or he decides to go ahead, then

the FTA can be done on record or off-record. If the FTA is done on record, it can be

performed without redressive action, or baldly (Donate your blood!). On-record FTAs

with redressive action can take two forms depending on the aspect of face being

emphasized: negative (Would you please donate your blood?) or positive (Donate your

blood, buddy).

Positive politeness strategies (PPS), as approach-based strategies, include the

compliments, the seeking of agreement, joking, claiming reflexivity of goals, claiming

reciprocity, and uttering expressions of sympathy and cooperation. Negative politeness

strategies (NPS) aim at the avoidance of imposing upon the addressee through mitigating

devices. Off-record politeness strategies (ORPS) help speakers indirectly con¬vey

certain assumptions and thus avoid the potential responsibility that might be resultant

from using more direct strategies. Table 1 presents the main strategies found in our data.

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Table 1 – Politeness Strategies identified in the analyzed data

Main Positive Politeness Strategies: Positive Politeness Sub-strategies (PPS)

a. Claim common ground PPS2 Exaggerate

PPS4 Use in-group identity markers

PPS7 Presuppose, assert, raise common ground

b. Convey that S and H are co-operators

PPS11 Be optimistic

PPS13 Give or ask for reasons

Main Off-record Strategies: Off-Record Politeness Sub-strategies (ORPS)

a. Invite conversational implicature, via hints

triggered by violation of Gricean Maxims

ORPS2 Give association clues

ORPS5 Overstate

ORPS9 Use metaphors

ORPS10 Use rhetorical questions

b. Be vague or ambiguous

ORPS11 Be ambiguous

ORPS15 Be incomplete, use ellipsis

Main Negative Politeness Strategy:

Negative Politeness Sub-strategy (NPS)

a. Communicate S’s want not to impinge on H NPS7 Impersonalize S and H: Avoid the pronouns ‘I’ and ‘you’

When referring to the discursive activity of advertising, Palacios and Sena (2010)

note that one of the main points of anchorage between the concept of face, the concept of

politeness, and advertising discourse settings is the premise that, during the construction

process of the utterance, the advertisers are always aware of the referential universe of

the target group. According to del Saz Rubio (2000, p. 43), in mediated interaction, in

which the discursive activity of advertising is inserted, the need to avoid confrontation

and make the interlocutor feel comfortable and involved is apparent. In that sense, the

function of positive politeness in advertising discourse has a dual nature, as “it is a

mechanism at the service of emphasis” while trying to mitigate its own illocutionary

force.

In the advertising context in general, politeness not only provides the attenuation of

threats to the faces, but also seeks to exalt the advertised product, either by association

with certain well-regarded environments or by the construction of a markedly positive

face of the consumer (ESCRIBAÑO, 2006). In the case of blood donation campaigns, the

object of analysis in this article, as there is no product to be consumed, we consider that

what is sought is the exaltation of the act of voluntarily donating blood itself and,

consequently, there is a tendency to emphasize the positive face of likely donors. Thus,

on the use of language in this context, politeness acquires a key role in the construction

of utterances.

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2.2 SEMIOTIC APPROACH OF THE GRAMMAR OF VISUAL DESIGN

With the purpose of identifying the regularities of visual structures in the western

world, Kress and van Leeuwen (2006) have proposed a new way of analyzing images

from the assumption that their elements combine syntagmatically, as happens with verbal

resources. The tool developed by them – The Grammar of Visual Design – provides

parameters to investigate how the elements of a multimodal representation combine to

form a coherent whole. The proposal is supported by the perspective of Social Semiotics,

according to which the language is conceived as part of the social and cultural context

and needs to be analyzed in conjunction with other modes of representation involved in

the text production. In this sense, verbal language is always built by multiple modes; the

very physical space where the written texts are conveyed is a way of meaning

(SCOLLON; LEVINE, 2004).

Here, we give a brief discussion of the Grammar of Visual Design – GVD –

(KRESS; VAN LEEUWEN, 2006), as its categories will be used in this study with the

objective of uncovering discursive opacities, the underlying intentions of the texts that

combine verbal signs with imagery, since, according to del Saz Rubio (2011), the images

appeal to a more emotional than analytical part of the addressee.

Adapting the metafunctions (ideational, interactional and thematic) of verbal

language, postulated by the Systemic Functional Linguistics (HALLIDAY, 1994) for the

analysis of the visual semiotic mode, Kress and van Leeuwen (2006) propose that for

creating meanings, three articulated semiotic functions must be considered

(representational, interactive and compositional), which we will summarize next, since

such categories will be at the basis of our analysis.

The representational function focuses in several relationships among the

represented participants (RPs), which can be people, objects, places, geometrical forms,

etc. In terms of representing world experiences, the images can take the form of a

narrative structure – an action unfolds visually, indicated by a vector that links the

elements of the composition – or a conceptual structure – the actor is not involved in any

activity, and there are (consequently) no vectors; the participant is then represented by

his/her structure or meaning.

Regarding the interactive function, it is considered that the understanding of inter-

active meanings is related to the way they are performed on the images. Kress and van

Leeuwen (2006) identify a number of factors responsible for establishing such meanings:

a) contact – in the offer image, there is no direct eye contact between the

interactive participant (IP)1 and represented participant (RP), and the RPs are

exposed as objects of contemplation; in the demand image, the RP challenges

the viewer in the sense that it (the demand image) expresses a contact, even if

imaginary;

1 This term refers to the image reader or viewer.

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b) social distance (framing) – the participants can be represented as closer to the

observer or as more distant , according to the degree of the plane opening used

by the producer of the image;

c) attitude (angle/perspective) – pictures taken in frontal or oblique angles suggest,

respectively, involvement and detachment of the producer of the image. The

power relations between RP and IP are coded according to how “vertical” the

angle is. Thus, RPs photographed with low angle hold the power, but if focused

with high angle, it is the advertiser and the observer of the image who will

exercise the power. In those cases in which the image is at eye-level the power

relation is symmetrical among the participants.

In the interactional level, Kress and van Leeuwen note the issue of the messages’

reliability and state that “the realization of modality in images is much more complex and

finely graded than the realization of modality in language” (2006, p. 163), as the latter is

achieved by means of linguistic resources such as modal verbs or adjectives that express

valuation. An image may appear more or less real according to certain modality cues that

it gives. The parameters of modality identified by the authors relate to saturation,

differentiation and modulation of colors, lack of background or background thoroughly

detailed, representation on a scale that goes from obscuring to reproducing details, lack

of depth or its maximum reproduction, lighting, and brightness.

The compositional function, in turn, refers to how the representational and

interactive elements join to form a meaningful whole. The integration between the

compositional elements ensures the construction of the textuality. This condition is linked

to the relation of elements with the world they represent and where they are inserted, of

the elements among themselves, and with the reader as well. Three systems are

responsible for integrating these meanings of the compositions:

a) information value – although the arrangement of visual elements in the text

probably is unconscious, there is an association of regular meanings to parts of

the visual space: i) the elements placed to the left are the Given – something the

readers presumably already know; the messaged supposed as New, usually is

positioned to the right; ii) the upper part of the space, named Ideal, is reserved

to what is emotional and object of desire – destined to the essence of

information; the lower half is reserved to the Real element, which represents

more concrete information, taken as true; iii) a participant is in the center when

is considered to be “core information”, so that other elements must be

understood in relation to it;

b) salience – this system integrates the RPs giving them different degrees of

prominence, as a result of interrelated factors, such as size, contrast of tones and

colors, and image resolution;

c) framing – the presence of dividing lines, discontinuity of color and contour, and

spaces among the elements are some strategies employed to indicate that the

participants of the composition must be considered separately. On the other

hand, the absence of typographic features for separation and the use of same

colors and shapes in more than one element suggest the possibility of

establishing a connection between them.

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Although a brief presentation of visual grammar was made here, it is possible to

glimpse its potential in the sense of providing subsidies for a more critical analysis of the

imagery, considering a particular form of conveyance and reception that characterizes

them in social systems.

2.3 ADVERTISING GENRES CHARACTERIZATION: POSTER AND FOLDER

The poster and the folder are multimodal genres widely used by advertising

professionals with the purpose of, among other things, conveying advertising campaigns;

these are dynamic texts of broad social circulation in various media, printed or digital. In

these textual genres, image and word are closely related and “all resources used in the

construction of textual genres have a rhetorical function in the construction of the

meanings of texts” (DIONÍSIO, 2005, p. 159). To characterize these genres, the linguistic

and textual, social and pragmatic dimensions will be considered, since, as argued by

Marcuschi (2005), the methodology for textual analysis cannot take into account only the

form, but also the functionality and the compositional structure because it is a complex

phenomenon involving multiple aspects: linguistic, discursive, historical, and pragmatic,

among others.

The advertising poster emerged in the nineteenth century closely related to art,

initially with the purpose of announcing commercial and industrial products, but came to

be used in the dissemination of cultural, social and political issues (RABAÇA;

BARBOSA, 1995). It constitutes one of the most frequent means of publicity, being an

economic and easy way of either just divulging information or also appealing for

involvement or participation, as is the case of the posters in the blood donation campaigns.

It is an ephemeral medium, usually produced in large paper sizes so that different people

can read it simultaneously. For this reason, it is often displayed in places that people walk

by. It is characterized by containing a striking verbal message of quick reading; therefore,

its content needs to be clear and suggestive; in this sense, style, size and color of the letters

are also given special attention. The image, in turn, is large with colors related to the

theme that contrasts with the background of the poster intending to create a highly

appealing effect.

As with the poster, the word folder designates both the textual genre and its

medium. This genre appeared in the media and advertising industry as a device for

marketing and advertising professionals with the objective, among others, to serve for the

execution of advertising campaigns (KARWOSKI, 2005). This type of advertisement

circulates in printed-paper with, at least, one fold and illustrations; the cover features the

main appeal; inside there is a detailing of what was advertised, and the last page usually

contains the means of contact with the advertiser. The amount of information conveyed

in the genre is relatively large; therefore, a reasonable place and some amount of time are

necessary to read it. In folders, verbal and non-verbal signs are merged. However, the

latter gain predominance and special emphasis on compositional structure. More

specifically, the folders of health services are characterized by the presence of persuasive

imagery and verbal resources, quantitative data, and guidelines on health and quality of

life. The text formatting and the layout of verbal language associated to the image are

forms to express the content, directing the reader to the construction of the meaning.

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3 CORPUS OF RESEARCH AND METHODOLOGY

The blood donation campaigns promoted by the Brazilian Ministry of Health

(BMH) in the last few years are in agreement with the World Health Organization’s

(WHO) objective that all countries obtain all their blood supplies from voluntary unpaid

donors by 2020. Although the need for blood is universal, there is a marked difference in

the level of access to safe blood between high- and low-income countries (WHO, 2014.

p. 1).

We analyzed a poster and a folder from two blood donation campaigns promoted

by the BMH between 2013 and 2014. These campaigns are embedded in a sort of

communication that has been denominated public communication (ZÉMOR, 2005;

BRANDÃO, 2009; KOÇOUSKI, 2013) or, more specifically, public health

communication (BERNHARDT, 2004). Here we will use the concept of public

communication campaigns as purposive attempts to inform or influence behaviors in

large audiences within a specified time period by means of an organized set of

communication activities and featuring an array of mediated messages in various chan-

nels usually to produce noncommercial benefits to individuals and society (RICE;

ATKIN, 2009; ATKIN; RICE, 2013).

In June 2013, the BMH released the campaign No matter who it’s for, be a donor

(Seja para quem for, seja doador). It was directed towards young people between the

ages of 16 and 29, seeking to reinforce the idea that it is not necessary to be close to

someone who needs blood to raise awareness to the cause, and therefore, it presented

examples of participation of people involved in real cases (PORTAL PLANALTO, 2013;

BRASIL, 2014). From this campaign, a poster will be analyzed. In 2014, the same slogan

was maintained to reinforce that concept and a new set of advertising pieces was released.

The folder analyzed belongs to this last campaign. The criteria used to choose both

campaigns was the fact that they have higher amounts of advertising materials, as well as

greater diversity of genres, since the intention is to investigate the politeness strategies in

diverse genres.

In an attempt to achieve the objectives proposed in this article (cf. section 1), a

qualitative analysis of the selected advertisements will be developed in the next section.

Aiming to ensure greater clarity in identifying the contribution of each theoretical

approach, GVD and politeness theory, the pieces were analyzed in two stages: first, the

non-verbal aspects are discussed and, in a different subsection, the verbal aspects are

taken into account.

Regarding non-verbal aspects, the advertisement pieces were analyzed taking into

account the relationship amidst the three semiotic functions proposed by Kress and van

Leeuwen (2006), presented in 2.2. In turn, the analyses of the verbal aspects are grounded

on the postulates of Brown and Levinson (1987) on politeness strategies.

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4 ANALYSIS AND RESULTS FROM A MULTIMODAL APPROACH

4.1 ANALYSIS OF THE POSTER

In order to respect the chronological sequence of release of each blood donation

campaign, we started with the analysis of the poster, which was aired in 2013.

Figure 1 – Poster of blood donation campaign, 2013

Source: https://fenafal.files.wordpress.com/2013/06/cartaz_olivio_foto_nova.jpg

4.1.1 NON-VERBAL ASPECTS

In the poster (figure 1), verbal and non-verbal elements are not separated by

boundary lines, and both participate in the production of meanings. The scene suggests

that the RP is going through a difficult health problem and counts on the reader's

solidarity. The RP's facial expression, personal data and the utterance “Done: now you

know Olívio” join the request marked in the red background, in contrast with the

prevailing black and the text elements in white.

Here we have a conceptual structure since in the scene no action takes place, as the

RP (Olívio) displays a static behavior. Moreover, there is no vector (a hallmark of

narrative structures) in the scene.

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It is from the six constituents of the figure around the human image – called

symbolic attributes by GDV – that the reader can assign meanings to the RP. In this case,

he is seen as a representative of all Brazilians who need blood donations to survive.

From the perspective of interactive function, this is an image of request, since the

RP looks straight into the observer's eyes, establishing contact, even if imaginary. This

straight gaze induces the reader to accept the request in a verbal mode, as well: No matter

who it’s for, be a donor. The producer or author of the advertising piece employs the gaze

to touch, by visual appeal, the IP in her/his emotions; moreover, the staring is an invitation

to the reader to take part in the visual scene, promoting complicity between RP and IP.

The new information is placed on the upper right, which is conventionally reserved

for emotional material, and for objects of desire.

The character gained maximum projection by the use of several strategies: the

closed plane and angle of the photograph, the white color of his clothing in contrast with

the black background, lighting and brightness on the right side of his face, exactly where

the information about his need to receive a blood notation is placed. These strategies have

the objective of generating a sensation of trust and empathy on the IP, prompting her/him

to engage in the campaign.

The overall funeral tones, together with the countenance of suffering of the RP,

transmit a sensation of empathy. The darkness represented by the black background may

overwhelm the only bright spot of hope in the face of the main character if the request

does not produce the desired result.

4.1.2 VERBAL ASPECTS

In this section, we analyze the verbal strategies employed in the poster, which are

translated in the following.

Figure 1 – Text – Poster

1

2

Tenho 46 anos. Sou bombeiro. Adoro natação. Gosto de música romântica. Meu

prato preferido: arroz e feijão. Tenho doença falciforme [PPS13] e preciso de sua

doação de sangue.

I am 46 years old. I am a firefighter. I love swimming. I like romantic music. My

favorite dish: rice and beans. I have sickle-cell disease and need your blood

donation.

3 Para doar sangue, você precisa conhecer a pessoa? [ORPS10]. Pronto, agora

você já conhece o Olívio.

Do you need to know the person to donate blood? Well, now you know Olívio.

4 Assim como ele, milhares de pessoas precisam de doação de sangue.

Just like him, thousands of people need a blood donation.

5 Seja para quem for, seja doador. Procure o hemocentro mais próximo. [ORPS15,

ORPS2]

No matter whom it is for, be a donor. Look for the nearest blood bank and donate.

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One can say that the fact that utterances 1 and 2 present the discourse of a Brazilian

citizen (Olívio) who depends on blood donations, with which many Brazilians will

identify themselves, consists of a discursive strategy of positive politeness [PPS7], to the

extent that it places the main character close to the reader.

The reader proximity effect elapses, in addition to non-verbal resources used in the

composition of the image, from the information that Olívio reveals about himself to get

the reader familiar with him – his age, profession, musical and culinary taste – since blood

donation is a more common practice among known people.

In utterance 3, on the upper right portion of the poster, the author makes a rhetorical

question, that is, a question that leaves its answer implicated (B&L, 1987, p. 223). This

constitutes an off-record politeness strategy [ORPS10], allowing him to perform the FTA

and, at the same time, attenuate the imposition on the negative face of the target public.

We believe that trough this rhetorical question (“Do you need to know the person to

donate blood?”), the advertiser threatens the negative face of potential donors, but in a

hidden way, by implying that, since they have already known Olívio, there is no reason

not to be sympathetic with the many Olívios that need blood transfusions.

At last, the campaign slogan is introduced on the right bottom , with the use of off-

record strategies [ORPS15, ORPS2], that is, without mentioning the object of the

donation, but giving a clue through the use of the expression “blood bank”, helping the

reader to deduce the information.

4.2 ANALYSIS OF THE FOLDER

As mentioned above, a folder is a publicity piece printed on paper with at least one

fold, and illustrations. On the cover a folder presents the main message, while in the

internal pages the message is detailed. Usually, the advertiser’s contact information can

be found on the folder’s back. Similarly to what happens to the textual genre poster, in a

folder there is a mix of verbal and non-verbal elements, with special emphasis given to

the latter in the composition of the piece.

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Figure 2 – Folder of the blood donation campaign, 2014

Source: http://portalarquivos.saude.gov.br/campanhas/2014/Doacao_de_Sangue/MS_DOACAO_DE_SANGUE

_FOLDER_A5.jpg

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4.2.1 NON-VERBAL ASPECTS

In putting the folder together, the verbal language along with its typesetting and

formatting, in association with the photographs, constitute content-expression forms, and

guide the reader towards construction of the meaning. In the folder’s front (side 1), the

scene suggests a couple restarting life: a house to be dwelled, under reformation, without

furniture or curtains. The reader or observer can see, through the window, blue sky and

trees, which gives the impression of an agreeable place, in which a healthy and happy life

can be lived.

The displayed elements are composing a narrative structure, since an action is un-

folding symbolized by a vector linking those elements. In the picture, the vector is the

brush with gray paint held by one of the RPs and relates him to the blood bag. It is an

image of offer, since there is no direct eye contact among the interactive and the

represented participants: the RPs are exposed as objects beheld, and the folder readers do

not necessarily feel compelled to manifest a reaction or to take a particular action.

The long-distance photograph places the represented characters and the scene at an

equally large social distance from the reader. The fact that the couple was photographed

in full body (in open plane) confers an impersonal character between themselves and the

reader, prompting the reader to contemplate the scene only.

The red color links the RP to the campaign's slogan and with an appeal for the

reader to donate, displayed on the right, inside a bag whose content fills it only to half

capacity. On the red background suggesting blood, there is a verbal message whose

content calls on the target public to engage in the campaign. The slogan – No matter who

it’s for, be a donor – has gained emphasis due to the font size used in it. The verbal appeal

also combines fonts of different sizes, putting emphasis on the expressions blood dona-

tions, grow, and your hands. That information is placed in the right half of the picture,

which is the place where usually new information for the reader is put. The gray color of

the paint in the can, brush and trays is responsible for linking the blood bag on side 1, the

bag placed on side 2, and the directions given to the readers.

On side 2 of the folder, as on side 1, the verbal and non-verbal elements are

amalgamated to produce their meanings. It also presents a narrative structure, since,

visually, an action unfolds denoted by a vector linking the elements of the composition:

the brush with gray paint in the hands of the main character – he is identified as Alex

Carvalho, someone who has received in the past a blood donation – connects the scene to

current needs, that is, the current shortages in blood banks. Moreover, it relates the scene

to directions on how to donate blood. In this case, we have an image of demand, since the

PR (Alex Carvalho) seems to look straight to the observer, thereby creating an

engagement, even if imaginary, between them. The impression is that the Actor

challenges the reader to establish contact.

The choice of a front angle photograph at the eye-line height (and hence character

and reader standing eye-to-eye) give the impression of proximity and equality of power

between them. The framing of the character in middle plane puts him at a social distance

that gives the observer a sensation of intimacy with the scene and the RP.

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Analyzing the position occupied by the RP's in the composition, one notes that the

main character, the kernel of the information, occupies the central place, while the

elements on the margin are connected to him. On his left side, there are the pieces of

information already given, and therefore a familiar content. On the right, the elements

provide the new content, to which most attention must be given.

On the upper part, general information (the ideal) is placed. Opposed to it, the

bottom is reserved for the element of reality, that is, the character Alex Carvalho, who

did in fact undergo a surgery and needed a blood transfusion. The main character is given

emphasis also by his shirt's color, related to the blood bag to his left, and in contrast with

the white background: the red color establishes continuity among the elements, which it

represents.

The brush, with gray paint, is a vector linking Alex Carvalho to the readers: he is

the one giving instructions, because of his own previous experience with the theme.

4.2.2 VERBAL ASPECTS

Considering the verbal aspects, the left side on the folder´s front contains the main

call, which in this genre, has the function of arousing the reader's curiosity and leads him

or her to know more about other parts of the text:

Seja para quem for, seja doador [ORPS15]. Procure o hemocentro mais próximo

[ORPS2].

No matter who it’s for, be a donor. Look for the nearest blood bank.

In our case, the speech act of calling the reader to donate blood, in spite of the

buzzwords utilized, is performed off-record. This type of act, according to B&L (1987),

would threaten the negative face of the reader. Based on this idea, the use of off-record

politeness strategies allows the speaker to do the FTA without taking responsibility for it.

Leaving it to the reader to decide how to interpret the act; in this way, by not making the

object of donation explicit, the utterance of the call employs the ORPS15 strategy since,

by mentioning the expression “blood bank”, it gives the reader a clue so that he or she

can fill in the information.

As noted in the previous section when we dealt with the non-verbal aspects that

contribute to putting together the meanings of the advertising piece, the supposedly new

information to the reader is displayed on the upper right side of the folder:

Os transplantes de órgãos cresceram 84%.

As cirurgias cresceram 619%.

E os atendimentos de urgência cresceram 627%.

*De 2003 a 2013

Organ transplants have increased 84%.

Surgeries have increased 619%.

Emergency treatments have increased 627%.

*From 2003 to 2013

As doações de sangue também precisam crescer

[NPS7]. Esse gesto está em suas mãos [ORPS11].

Blood donations also need to increase.

This action is in your hands.

The statistical data presented function as arguments to reinforce the slogan's call. It

is interesting to note the syntactic parallelism obtained by repeating the syntactic structure

(nominal phrase + verb to increase + statistical information) when presenting the data. It

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is worth remembering that the repetition of words, structures and ideas, in particular in

written discourse, is a powerful rhetorical resource. It produces argumentative effects that

go beyond style, and they are used for persuading the reader (KOCH; ELIAS, 2011a;

JOHNSTONE, 1987). Therefore, the recurrent appearance of the verb to increase

emphasized in the text calls attention to the need of an increase in blood donations, in

what seems to add strength to the persuasive effect of the indirect request that is found

(impersonally) in: “Blood donations also need to be increased”. This is an instance of the

NPS7 strategy, which, according to B&L, expresses the speaker’s concern that the

hearer’s wishes are not imposed.

The text ends with an off-record appeal conveyed by the metonymy “This action is

in your hands”. Although B&L do not mention metonymy as a covered politeness

strategy, cognitive approaches argue that this figure of speech, like the metaphor, is

conceptual in nature (LAKOFF, 1987, p. 288). Based on this argument, we will include

the metonymy as part of ORPS9, in B&L categorization. Moreover, it is interesting to

note that “metonymies based on body parts provide a good resource to understand human

states, behavior and actions in terms of what is familiar and well-understood” (AL-

ADAILEH; ABBADI, 2012, p. 73). Such resource has been used productively in

communication in general and in particular by advertising. Therefore, in the utterance

“This action is in your hands”, the metonymy consists in using “hands” to refer to the

person as a whole. In Brazilian Portuguese, to say (metonymically) that “an action X is

in somebody's hand” means that action X depends on that person. This latter meaning is

well accepted by convention in this language, and is therefore clear to native speakers.

Indeed, B&L (1987, p. 212) had already warned about this point when they observed that

“many of the classic off-record strategies [...] are very often actually on record when used,

because the clues to their interpretation [...] add up to only one really viable interpretation

in the context”.

The statistical data already given above are repeated on the left side of part 2 of the

folder, along with the following utterances:

Essas conquistas só foram possíveis graças aos doadores de sangue [PPS2]. O que parece

ser um simples gesto de solidariedade, na verdade, é uma ação que pode salvar milhares de

pessoas em todo o país [PPS11] [PPS13]. Por isso, entre nessa campanha. E se você [PPS4]

já é doador, continue doando sempre. O Brasil inteiro agradece a sua participação.

These achievements were only possible thanks to blood donors. What seems to be a simple

act of solidarity is actually an action that can save thousands of people all over the country.

So be a part of this campaign. If you are already a donor, keep donating. All of Brazil thanks

your participation.

Alex Carvalho passou por uma cirurgia e precisou de uma transfusão de sangue.

Alex Carvalho went through surgery and needed a blood transfusion.

Right after, their use is reiterated, and statistical data are labeled by the

nominalization “these achievements”. Within the scope of textual linguistics, it has been

considered that referencing consists in “construction and reconstruction of discourse

objects” (KOCH; ELIAS, 2011b, p. 123). In this way, replacing the processes introduced

in the three previous declarations (Organ transplants have increased 84%; surgeries have

increased 619%; emergency treatments have increased 627%) by the nominal phrase

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“these achievements” is evidence of reconstruction of those discursive objects. Such

recategorization may work as a strategy aimed at keeping a positive face, especially of

those readers who are already blood donators, as the utterance carries an implicit approval

and acknowledgment of them [PPS2].

We believe that the consideration that blood donation “is an action that can save

thousands of people all over the country” projects an optimistic image of the advertiser

[PPS11], [ORPS5], while at the same time expressing a good reason for new donators to

join the effort [PPS13], followed by the invitation: “So be a part of this campaign”.

In the utterance “And if you already are a donor, keep donating”, there is for the

first time a direct reference to the reader by means of the pronoun in the second person

você (“you”). As it has been already mentioned, in Brazilian Portuguese this pronoun is

related to equality of power and with proximity [PPS4] among those involved in an

interaction.

Finally, in “All of Brazil thanks your participation”, we have again the use of

strategies PPS11 (be optimistic) and ORPS5 (exaggerate the importance), since the

anticipated thanks may project the advertiser confidence that those who are already

donors will keep contributing. Because the expression “All of Brazil” has the meaning,

through association, of “thousands of people all over the country”, it appears to us be

possible to assume that the positive face projected in the thanks would be that of the

Brazilian population itself.

5 CONCLUDING COMMENTS

When it comes to texts that combine different semiosis, in which image and verbal

signs come together, we cannot disregard one language in favor of the other. In the same

way that verbal language offers many possibilities to produce a text, non-verbal signs are

also organized according to social and discursive conditions. In other words, images are

manipulated to obtain the desired effects: the omission or clarification of certain details

when producing images is not random, but directly related to ideological implications, as

explained by Kress and van Leeuwen (2006). This happens because the authors of the

images are part of a cultural and social space, and so their values, beliefs, aspirations and

frustrations permeate the way their compositions are planned.

Undeniably, the analysis of the advertising pieces presented in this study

demonstrates a strong relationship of complementarity between verbal and non-verbal

elements. In both texts, the way their arrangements were planned – plane and angle used

in photography, the look of the portrayed participants – gives to the observer (the

interactive participant) the feeling of intimacy with both the scene and the represented

participant, prompting her or him to engage in the campaign. Working together, the non-

verbal resources and verbal facework strategies, especially those focusing on the positive

face wants, contribute to create an environment of closeness between those involved in

the interactional circumstances. All of that becomes a persuasion strategy.

The prevalence of positive politeness strategies in our data corroborates the findings

of Dias and Gusso (2015) and is similar to the results found by Pennock-Speck and del

Saz-Rubio (2013) in their analysis of a corpus of television campaigns in Great Britain.

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These results suggest that the advertising agencies would be deliberately employing PPS's

as “a kind of social accelerator” (B&L, 1987, p. 103). Through their use, the advertiser

shows his desire of, somehow, move closer to the audience (in the case of television

advertisements) or to the reader (in the case of printed publicity such as folders and

posters). In this way, the use of positive politeness strategies emphasizes the group

identity and seeks to create an optimistic atmosphere that at the same time redresses the

intrusion of the advertiser into the reader's freedom of action, making her or him feel more

at ease.

Our analysis, by means of the tools offered from the Grammar of Visual Design,

showed that, indeed, in the advertising community the manipulation of visual language is

a resource used as a persuasion strategy, formulated with the intention of both seducing

the reader and catching his or her attention, given that the textual genres of advertising

have this purpose.

To conclude, we want to strengthen the argument that for the critical analysis of

multisemiotic texts, it is essential to give due value to visual elements. Therefore, one

cannot ignore that the description and interpretation of the compositional aspects of the

image are worthy of the same attention given to the verbal elements.

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DIAS, Luzia Schalkoski; GUSSO, Angela Mari. “Do you need to know the person to donate?” Facework strategies in Brazilian blood donation campaigns: a multimodal analysis. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 16, n. 3, p. 401-419, set./dez. 2016.

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Recebido em: 07/01/16. Aprovado em: 24/07/16.

Título: “Para doar sangue, você precisa conhecer a pessoa?” Estratégias de polidez em

campanhas brasileiras de doação de sangue: uma análise multimodal

Autoras: Luzia Schalkoski Dias; Angela Mari Gusso

Resumo: Neste estudo, busca-se evidenciar o potencial analítico que a inter-relação entre a

Teoria da Polidez (BROWN; LEVINSON, 1987) e a abordagem semiótica da Gramática do

Design Visual (KRESS; VAN LEEUWEN, 2006) pode oferecer para a análise de estratégias

de polidez usadas em peças publicitárias de comunicação pública. Realiza-se uma análise

qualitativa de duas peças publicitárias de campanhas de doação de sangue promovidas pelo

Ministério da Saúde brasileiro. Os gêneros textuais analisados, um pôster e um folder,

caracterizam-se pela multimodalidade semiótica; assim, recursos verbais e não verbais são

articulados para a produção dos significados sociais pretendidos. A análise evidenciou que,

assim como as estratégias de polidez positiva são usadas pelos anunciantes para buscar uma

aproximação com o público-alvo, a linguagem visual também é manipulada segundo

determinados padrões, de forma a capturar a atenção dos interlocutores e seduzi-los. O

corpus sugere que as estruturas visuais reforçam as estratégias verbais utilizadas para

intensificar a atmosfera de proximidade entre os envolvidos na situação de interação.

Palavras-chave: Multimodalidade. Estratégia de polidez. Publicidade. Doação de sangue.

Título: “Para donar sangre, ¿usted necesita conocer la persona?” Estrategias de cortesía

en campañas brasileñas de donación de sangre: un análisis multimodal

Resumen: En este estudio se busca evidenciar el potencial analítico que la inter-relación

entre la Teoría de la Cortesía (BROWN; LEVINSON, 1987) y el abordaje semiótica de la

Gramática del Diseño Visual (KRESS; VAN LEEUWEN, 2006) puede ofrecer para el análisis

de estrategias de cortesía usadas en piezas publicitarias de comunicación pública. Se realiza

un análisis cualitativa de dos piezas publicitarias de campañas de donación de sangre

promovidas por el Ministerio de la Salud brasileño. Los géneros textuales analizados, un

póster y un fólder, se caracterizan por la multimodalidad semiótica. Así, recursos verbales

y no verbales son articulados para la producción de los significados sociales pretendidos.

El análisis he evidenciado que, así como las estrategias de cortesía positiva son usadas por

ellos anunciantes para buscar una aproximación con o público-objetivo, el lenguaje visual

también es manipulado segundo determinados estándares, de manera a capturar la atención

de los interlocutores y seducirlos. El corpus sugiere que las estructuras visuales refuerzan

las estrategias verbales utilizadas para intensificar la atmosfera de proximidad entre los

involucrados en la situación de interacción.

Palabras-clave: Multimodalidad. Estrategia de cortesía. Publicidad. Donación de sangre.

Este texto está licenciado com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.

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VALE, Rony Petterson Gomes do. Risos e futebol: um ensaio sobre as paixões na mídia esportiva. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 16, n. 3, p. 421-432, set./dez. 2016.

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DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1982-4017-160303-0716

RISOS E FUTEBOL: UM ENSAIO

SOBRE AS PAIXÕES NA MÍDIA ESPORTIVA*

Rony Petterson Gomes do Vale**

Universidade Federal de Viçosa

Departamento de Letras

Viçosa, MG, Brasil

Resumo: O presente ensaio é resultado das discussões teóricas iniciais que fundamentam

nossas pesquisas sobre a interface entre futebol e discurso humorístico. Neste texto,

procuramos desenvolver uma reflexão a respeito de uma tipologia do riso em quadrinhos de

humor (neste ensaio, mais especificamente a charge), nos quais o futebol é o tema central.

Mesmo admitindo que a rivalidade entre as equipes adversárias proporcione – na maioria

dos casos – o desencadeamento de um riso de escárnio ou de um riso malvado, nossa

proposta visa a evidenciar, pelo viés da Análise do Discurso, a presença de efeitos de sentido

próximos de outras espécies de riso como o alegre e o bom, como postula Propp no seu

Comicidade e Riso.

Palavras-chave: Estratégia discursiva. Riso. Futebol.

1 INTRODUÇÃO

“Que Beleza!” diz o locutor Milton Leite do canal SPORTV quando um jogador

comete uma asneira – e, ultimamente, no futebol brasileiro, o que mais acontece são

asneiras! Do fiasco da participação da seleção na copa do mundo de 2014 aos disparates

de ações legais influenciando a história dos clubes nacionais, aos erros grosseiros de

arbitragem e aos desmandos e à corrupção explícita da CBF, tudo parece – por mais

paradoxal que seja – fonte para o riso (e também para o choro) no futebol tupiniquim.

Com isso em mente, este ensaio se envereda por dois caminhos: o primeiro discute como

certas paixões envolvem o esporte mais querido pela maioria dos brasileiros; já o segundo

procura evidenciar como as formas e formas reduzida do riso (p. ex.: humor, ironia,

tirada, paródia, piada etc. – cf. VALE, 2013, p. 111 et seq.) podem ser percebidas na

mídia esportiva. Destarte, mesmo admitindo que a rivalidade entre as equipes adversárias

proporcione – na maioria dos casos – o desencadeamento de um riso de escárnio ou de

um riso malvado, nossa proposta visa perscrutar a presença de efeitos de sentido próximos

de outras espécies de riso como, por exemplo, o riso alegre e o riso bom.

* O presente ensaio é uma versão revista e ampliada de texto “Por uma caracterização do riso nos quadrinho

de humor e futebol”, apresentado como comunicação oral no II Simpósio nacional sobre linguagem

humorística: focalizando quadrinhos, da UFES. Além disso, esse ensaio lança as bases filosóficas, teóricas

e metodológicas de nosso projeto de pesquisa de Iniciação Científica “Futebol, humor e discurso: por uma

caracterização do riso na mídia esportiva impressa” desenvolvido no período de 2015-2016, na UFV.

** Doutor em Linguística do Texto e do Discurso. Professor Adjunto I. E-mail: [email protected]

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VALE, Rony Petterson Gomes do. Risos e futebol: um ensaio sobre as paixões na mídia esportiva. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 16, n. 3, p. 421-432, set./dez. 2016.

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Nesse ínterim, buscamos também refletir sobre como a linguagem do riso1 pode se

desenvolver, no âmbito do humor e do futebol, com a sombra do politicamente correto

agindo como uma espécie de “censura branca” que cerceia expedientes em vários níveis

semióticos – do linguístico ao imagético. Isso porque – acreditamos – tal censura parece

ter o potencial não somente de fazer os humoristas buscarem novas estratégias discursivas

para driblar as coerções sociodiscursivas estabelecidas pelo politicamente correto, mas

também de abrir a possibilidade de as formas do riso se voltarem para além da rivalidade

e do escárnio.

2 UMA TIPOLOGIA DO RISO: O PROBLEMA DO RISO BOM E DO RISO ALEGRE

De início, acreditamos ser providencial retomar, nesta seção, nossa crítica aos

postulados de Vladmir Propp a respeito de uma tipologia do riso. Em Comicidade e riso,

Propp (1992) afirma que o estudo da comicidade deve se pautar, ao mesmo tempo, na

estética das obras ditas cômicas e na psicologia do sujeito que ri. Com isso em mente, o

autor se debruça sobre a psicologia de diferentes tipos de riso, procurando evidenciar os

mecanismos capazes de desencadear o riso e a forma como eles agem na cognição

humana. Segue que o crítico russo passa a elencar e a discutir, metodicamente, os

principais tipos de riso, para os quais apresentamos uma síntese:

a) Riso de zombaria. Voltado para a punição dos vícios e para o escárnio dos

defeitos (mesquinhos). Altamente satírico e destruidor, esse riso estabelece

como alvo, entre outras coisas, a falsa grandeza, a falsa autoridade, a falsa

pusilanimidade, a falsa pudicícia e a norma estabelecida. O prazer gerado por

esse riso é a somatória de sentimentos como a satisfação e a sensação de

superioridade (conquistada por uma espécie de vitória), o ódio (contra o objeto

do riso), a alegria (com os pequenos infortúnios alheios), entre outros;

b) Riso bom. Raramente encontrado, esse riso também se volta para a punição dos

vícios; todavia, diferentemente do riso de zombaria, ele não porta o traço de

irrisão. Isso se deve ao fato de que a punição proporcionada por esse riso é

embotada por alguma forma de afeto daquele que ri sobre o objeto do riso, pois

o “defeito pode ser próprio de uma pessoa a quem amamos e apreciamos

bastante ou por quem sentimos simpatia”. Nessas circunstâncias, “um defeito

não provoca condenação, mas pode, ao contrário, reforçar um sentimento de

afeto e simpatia” (PROPP, 1992, p. 152);

c) Riso maldoso. Nesse tipo de riso, os vícios e os defeitos (mesquinhos, aparentes,

reais ou inventados) são hiperbolizados. Com isso, esse riso se aproxima

fortemente da maledicência e da falsidade, cuja ausência de um impulso nobre

faz elencar como alvos preteridos: a hipocrisia diante da realidade e a

sacralização dos atos de bondade (tidos sempre como falsos). Assim sendo, o

1 Conceito cunhado a partir das ideias de Bakhtin. Permite delinear o riso enquanto manifestações

linguageiras e enquanto atividade responsiva ativa, possibilitando descrever e interpretar o riso não

somente como efeito de sentido pretendido e possível, mas também como princípio organizador de textos

e de discursos (cf. VALE, 2012).

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pathos desse tipo de riso pode beirar o ódio generalizado, convertendo-se em

pseudotrágico. Isso porque, esse riso, nos alerta Propp (1992, p. 160), está

estritamente ligado à infelicidade, ao fracasso e à desilusão daquele que ri;

d) Riso cínico. Embora seja muito similar ao riso maldoso, o riso cínico se difere

desse pelo fato de que retira seu prazer da desgraça alheia. Para Propp, esse tipo

de riso se afasta, como o riso maldoso, da comicidade, pois não são mais os

pequenos infortúnios que se tornam alvo, mas qualquer desgraça, seja ela de

pequena ou de grande dimensão. Esse tipo de comportamento, ressalta Propp

(1992, p. 160), é “próprio de um ser humano árido, incapaz de compreender o

sofrimento dos outros”;

e) Riso alegre. Diferencia-se do riso bom, pois, em nenhum grau, se verifica a

presença de alguma forma de punição dos defeitos. Não carrega, de modo

algum, o traço de irrisão. Tal como o riso ritual, o riso alegre é vivificador das

forças e do desejo de viver, porém se distancia também desse último, uma vez

que não assume nenhum papel (obrigatório) em cerimônias de cunho religioso.

As causas do riso alegre não são precisas e os pretextos de seu surgimento

podem ser os mais insignificantes. O prazer desencadeado por esse riso se

aproxima de um alegramento puro. É próprio de pessoas boas e dispostas ao

humorismo (PROPP, 1992, p. 163);

f) Riso ritual. Como o próprio nome diz, esse riso está ligado aos mais diferentes

tipos de rituais verificados desde os primórdios das sociedades humanas. Tido

muitas vezes como intencional e/ou artificial (falso), o riso ritual pode até

mesmo, assim como o choro, ser obrigatório em algumas cerimônias. De acordo

com Propp (1992, p. 164-165), tal riso tem função de despertar e de elevar as

forças vitais, suscitar a vida e, até mesmo, promover a ressurreição dos mortos,

tanto dos seres humanos (por vezes, também dos deuses) quanto dos vegetais

(os rituais realizados durante as colheitas e as semeaduras).

Embora Propp vislumbre a possibilidade de existência dos outros tipos de riso, é

importante ressaltar o papel do riso de zombaria nas pesquisas sobre a comicidade. De

acordo com Propp (1992), esse riso de zombaria pode chegar ao ponto de ser tomado, por

vezes, como sinônimo de comicidade. O que se deve ao fato de que “Justamente este e,

[...], apenas este aspecto [irrisão] está permanentemente ligado à esfera do cômico. Basta

notar, por exemplo, que todo o vasto campo da sátira baseia-se no riso de zombaria. E é

exatamente este tipo de riso o que mais se encontra na vida” (PROPP, 1992, p. 28).

É oportuno destacar que, em grande parte do seu texto2, Propp (1992) se interessa

pelo riso de zombaria e seus aspectos. Com isso, os demais tipos de riso recebem uma

análise deveras superficial, em especial o riso bom e o riso alegre, pois “estes tipos de

riso não são provocados pela comicidade, não estão ligados a ela e constituem uma

questão mais de caráter psicológico que estético” (PROPP, 1992, p. 162). Propp justifica

essa posição, apresentando o fator quantitativo como argumento decisivo para não

avançar em suas reflexões e análise desses tipos de riso, pois, segundo ele, “Partindo-se

2 Dos vinte e sete capítulos que compõem Comicidade e riso, dezenove são dedicados à análise do riso de

zombaria.

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de observações de ordem puramente quantitativas, podemos afirmar que o riso de

zombaria é o mais freqüente, que é o tipo fundamental de riso humano e que todos os

outros tipos encontram-se muito mais raramente. Do ponto de vista da lógica formal pode-

se chegar racionalmente à conclusão de que há duas subdivisões do riso, ou dois gêneros.

Um contém a derrisão, o outro não” (PROPP, 1992, p. 151).

Contudo, devemos chamar a atenção para esses dois tipos de riso, pois,

diferentemente do riso ritual, o riso bom e o riso alegre podem ser desencadeados por via

discursiva. Com efeito, esses tipos de riso, de modo semelhante ao riso de zombaria ou o

riso maldoso, também participariam de um discurso baseado no risível, muito embora

estejam, aparentemente, mais afastados da comicidade, como sugere Propp.

Como alegamos anteriormente, nessa atitude de Propp parece ressoar uma certa

visão (moderna) a respeito de certos tipos de riso nos fatos da comicidade e do humor.

Numa linha um pouco divergente, podemos citar Baudelaire. Procurando definir a

essência do riso em seu estudo sobre a caricatura, Baudelaire (1855) considera que o riso

é diversificado e que não nos alegramos somente com a desgraça, a fraqueza e

inferioridade de outrem. Isso porque, nosso riso, prossegue o poeta, pode ser excitado de

maneiras (inocentes!) que muitas vezes não tem nada a ver com o “espírito de Satã”.

Nesse sentido, Baudelaire (1855, p. 9-10 – tradução nossa) propõe que façamos

uma distinção entre o que é a alegria e o que é o riso. A primeira, nos esclarece esse

autor, é um estado de espírito existente por si mesmo; um estado de espírito que pode se

manifestar de inúmeras formas, por exemplo, o silêncio, o choro e, é claro, o riso. Já esse

último “é a expressão de um sentimento duplo, ou contraditório; e é por isso que há a

convulsão”3. Desse modo, o riso das crianças, que seria uma objeção à sua tese, é, para

Baudelaire, “totalmente diferente, mesmo como expressão física, quanto forma, do riso

do homem que assiste a uma comédia, observa uma caricatura”4, pois o riso das crianças

“é como um desabrochar de uma flor. É a alegria de receber, de respirar, de se abrir, de

contemplar, de viver, de crescer”5. E, com base nessa ideia de um riso de alegramento per

si, Baudelaire é levado a diferenciar6 as formas de cômico em significativo e absoluto,

sendo este último totalmente desprovido de qualquer alegria.

No âmbito de uma crítica estética e psicológica, Pirandello (1996) busca a essência

do humorismo, tratando, primeiramente, de diferenciá-lo de outras formas do riso,

principalmente, do cômico. Com esse intuito, Pirandello nos diz que uma obra

3 No original: “Le rire est l’expression d’un sentiment double, ou contradictoire; et c’est pour cela qu’il y a

convulsion.”

4 No original: “[...] est-il tout à fait différent, même comme expression physique, comme forme, du rire de

l’homme qui assiste à une comédie, regarde une caricature...”

5 No original: “Le rire des enfants est comme un épanouissement de fleur. C’est la joie de recevoir, la joie

de respirer, la joie de s’ouvrir, la joie de contempler, de vivre, de grandir.”

6 De acordo com Santos (2012, p. 23-24), a diferença entre as formas cômicas apontadas por Baudelaire

tem como base, por um lado, a percepção (do cômico) e, por outro, a intenção imitativa dessa percepção

pelo artista. Assim, ainda seguindo Santos, o cômico absoluto (ou grotesco) seria mais natural (no sentido

de encontrado na natureza) e captado somente pela intuição humana; já o cômico significativo (ou ordinário)

estaria mais para a arte, para uma linguagem vulgar (cotidiana) e, por conseguinte, seria mais fácil de

analisar.

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humorística, assim como toda realização artística, passa por um procedimento psicológico

de organização. Essa organização psicológica, no caso específico do humorismo, se

aproxima de uma forma de sentimento que, “à medida em que (sic) a obra se faz, ela a

critica, não friamente como faria um juiz desapaixonado, analisando-a, mas

improvisadamente, segundo a impressão que dela recebe” (PIRANDELLO, 1996, p.

131). Disso, chega-se ao princípio que organiza o humorismo: o sentimento do contrário.

Pirandello defende essa ideia, exemplificando esse princípio com o caso da velha

senhora “fantasiada” com roupas e maquiagens de mulheres mais jovens. Segundo o

crítico italiano (1996, p. 132), ao nos darmos conta dessa senhora, pomo-nos a rir, uma

vez que ela representa o contrário daquilo que se espera de uma senhora respeitável. Tem-

se, então, a essência do cômico, ou seja, a advertência do contrário. No entanto, se nos

colocamos a refletir sobre a situação, os motivos que levaram a velha senhora a se

“empetecar” ridiculamente (por exemplo, para agradar um esposo muito mais jovem que

ela e, por conseguinte, conservar seu relacionamento), e “eis que não posso mais rir disso

como antes, precisamente porque a reflexão, trabalhando em mim, fez-me ir para além

daquela primeira advertência, ou de preferência, mais adentro: daquela primeira

advertência do contrário fez-me passar a este sentimento do contrário” (PIRANDELLO,

1996, p. 132).

Conclui-se disso que, para Pirandello, a diferença básica entre uma representação

cômica e uma representação humorística é como se dá a percepção do contrário, este

último portador do potencial gerador do riso. Porém, esse potencial pode ser embotado a

partir do momento em que a reflexão, a qual, na visão de Pirandello, necessariamente

segue alguma forma de sentimento, tende a turbar ou a impedir o riso.

Quanto a esse último ponto, Bergson (2007, p. 3) é categórico: “o riso não tem

inimigo maior que a emoção”. A insensibilidade e a indiferença, afirma o filósofo francês,

são fatores necessários para que a comicidade produza seus efeitos de sentido (leia-se:

riso). Para Bergson, isso se deve ao fato de que “Numa sociedade de puras inteligências

provavelmente não mais se choraria, mas talvez ainda se risse; ao passo que almas

invariavelmente sensíveis, harmonizadas em uníssono com a vida, nas quais qualquer

acontecimento se prolongasse em ressonância sentimental, não conheceriam nem

compreenderiam o riso” (BERGSON, 2007, p. 3).

Assim sendo, emoções como a piedade e a afeição têm um grande potencial de

anular o riso, pois, para que ele – o riso – aconteça, é necessária uma certa anestesia do

coração. Ou seja, a comicidade “dirige-se à inteligência pura” (BERGSON, 2007, p. 4).

Em suma, se considerarmos que, de um modo geral, as teorias7 correspondem a uma

certa visão admitida a respeito de determinado fenômeno em dada época e que, de volta,

7 De acordo com Charaudeau (2006, p. 196 et seq.), teorias e construtos teóricos devem ser enquadrados

como saberes de conhecimento, que procuram estabelecer uma verdade sobre o mundo, constituindo um

saber exterior ao homem, de modo que o mundo se imponha ao homem como realidade por si mesmo. Esse

conhecimento pode ser subdividido em: savant (próximo do saber científico; da ordem do que pode ser

provado) e de experiência (próximo de um saber que pode ser experimentado). Os saberes de conhecimento

se diferenciam, por exemplo, da doxa e do senso comum, pois esses se enquadram na classe dos saberes de

crença, que procuram também estabelecer uma verdade sobre o mundo, mas por meio da avaliação e do

julgamento. Nesse caso, o homem, com base num engajamento daquele que enuncia em relação ao

conhecimento enunciado, se impõe ao mundo e esse passa por um filtro interpretativo do sujeito. Esses

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os construtos teóricos influenciam outras reflexões posteriores, constituindo assim

imaginários sociodiscursivos sobre esse mesmo fenômeno; devemos, então, aceitar que

dificilmente poderemos perceber o riso bom e o riso alegre. Isso porque, como vimos,

esses dois tipos estão muito próximos de emoções que poderiam anular o riso, embotar a

sua intensidade ou, até mesmo, mudar a classe de suas formas. Contudo, evidenciar essa

dificuldade não quer dizer, de modo algum, que esses tipos de riso não podem ser

induzidos, o que, por consequência, nos obriga a considerá-los, mesmo que em potência,

na análise do discurso humorístico e, no caso especial deste trabalho, no âmbito do humor

sobre o futebol.

Figura 1 – Charge de Duke: Fernandão

Fonte: SUPER NOTÍCIAS. Belo Horizonte: Sempre Editora, 2014, ano 13, n. 4411, p. 2.

Exemplo disso é a charge da figura 01. Nela, podemos dizer que o riso, passível de

ser desencadeado, de modo algum está ligado ao riso de escárnio ou ao riso mal, uma vez

que o humor colocado visa a um riso alegre ou a representação de um riso muito próximo

do riso ritual, que busca uma superação de momentos tristes por um ato de reverência,

de aclamação daqueles que nos deixaram. Em outras palavras, diremos que o riso na

charge da figura 01 sobre a morte do jogador Fernandão está vazio do daquilo que marca

as partidas de futebol: a rivalidade entre os times e os torcedores.

saberes de crença podem se apresentar na forma de uma revelação (semelhante às verdades doutrinais) e

de opinião (marcadas por um engajamento do sujeito). Todos esses saberes (de conhecimento e de crença),

no entanto, devem, ainda de acordo com Charaudeau, ser considerados como formas materializadas de

expressão com núcleo semântico estável, isto é, maneiras de dizer as representações sociais que circulam

em dada sociedade e que, por isso, constituem os imaginários sociodiscursivos sobre determinado

fenômeno ou realidade.

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3 RIVALIDADE X EMULAÇÃO: DISCUTINDO PAIXÕES NO FUTEBOL

A princípio, devemos refletir sobre as relações sociais (e discursivas) que o esporte

bretão pode proporcionar a partir do enfrentamento de 22 jogadores correndo atrás de

uma bola. De fato, esse enfrentamento não se resume às quatro linhas do campo; no nosso

modo de ver, ele estimula o espírito de rivalidade tanto nos próprios jogadores quanto nos

torcedores: as discussões sobre o jogo continuam após o seu término, numa aparente

tentativa de levar esse “enfretamento” às últimas consequências – o que infelizmente, por

vezes, acontece, gerando incidentes como a morte de torcedores. Nesse passo, entende-

se que a rivalidade deve ser considerada um fator decisivo nas reflexões sobre discursos

que têm no futebol sua matéria e que ela pode se consubstanciar em várias formas: física;

fisiológica; psicológicas; e, lógico, discursiva – alvo de nossa reflexão aqui. Uma

pergunta, no entanto, se coloca: o que entendemos por rivalidade?

De acordo com o dicionário Houaiss (2009 – destaques nossos), rivalidade pode

ser definida como “característica ou condição de rival ou do que rivaliza” e pode

apresentar as seguintes acepções:

1. Oposição, por vezes lúdica e ger. sem grandes consequências, entre dois ou mais

indivíduos, grupos, instituições que perseguem um mesmo objetivo e em que cada lado

visa suplantar o(s) outro(s); competição, concorrência, disputa, emulação;

2. Zelo excessivo; ciúme;

3. Ausência de entendimento, de tolerância, de convivência pacífica entre pessoas, grupos

étnicos, instituições, países etc. que disputam entre si alguma coisa, não raro de modo

violento, ou cujos interesses, opiniões etc. são radicalmente diversos; luta, conflito.

Assim definida, podemos dizer que a rivalidade se situa no quadro das paixões que,

de certo modo, “comandam” as ações humanas, por exemplo, a ira e o amor. Mais do que

isso: ela se apresenta com características de paixões compósitas (como o ciúme), uma vez

que, ao mesmo tempo, apresenta em seu âmago tanto o potencial da agressividade, da

violência quanto o potencial do prazer do lúdico, da brincadeira – muito semelhante à

paixão desconhecida que comanda o riso (cf. HOBBES, 1966). Como efeito, essa mistura

de sentimentos – problemática constante nos estudos discursivos – presente nessa

definição de “rivalidade” nos levaria, em princípio, a um beco sem saída – como acontece

com o riso – que evitaria seu estudo. Todavia, acreditamos que essa questão possa ter

uma terceira via. Vejamos.

Aristóteles, no livro II da Retórica, discute o valor retórico da motivação dos

sentimentos e das emoções no juízo dos ouvintes, pois os “factos não se apresentam sob

o mesmo prisma a quem ama e a quem odeia, nem são iguais para o homem que está

indignado ou para o calmo” (ARISTÓTELES, 2005, p. 159). Com efeito, nos diz o

filósofo, as paixões têm uma função importante na argumentação, uma vez que são elas

“as causas que fazem alterar os seres humanos e introduzem mudanças nos nossos juízos,

na medida em que elas comportam dor e prazer...” (ARISTÓTELES, 2005, p. 160). Nesse

passo, podemos afirmar que as paixões, ou melhor, o conhecimento sobre elas é uma

“arma” nas mãos daqueles que desejam argumentar e elaborar “n” tipos de discursos,

movendo o ouvinte ou o leitor no campo do hedônico.

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Aristóteles, ainda no livro II da Retórica, descreve e analisa várias paixões, como a

calma, a ira, a vergonha, o amor/amizade, o medo, a emulação etc. Dentre estas, daremos

especial atenção aqui à emulação, à ira e à hostilidade, uma vez que essas parecem estar

no bojo da definição de rivalidade, apresentada anteriormente.

Segundo Aristóteles (2003; 2007), a ira (cólera, raiva, fúria) pode ser definida como

um desejo ou um impulso, acompanhado de dor e de tristeza, voltado para um desprezo

sofrido, por vezes sem ser justificado, por uma dada pessoa ou por um alguém muito

querido desta. Esse desejo gera um dado prazer que está diretamente ligado à expectativa

de vingar-se do indivíduo de onde se originou o desprezo. Nesse ponto, é importante

ressaltar a diferença entre o ódio (ou hostilidade) e a ira: enquanto esta se volta para um

indivíduo em particular, aquele pode se voltar para o coletivo. Isso se deve, dentre outras

coisas, aos objetivos ou as finalidades por detrás das relações interpessoais que se

apresentam nessas paixões: “cólera é o desejo de causar desgosto, mas ódio, o de fazer

mal, visto que o colérico quer notar o desgosto causado, enquanto ao que odeia nada

importa” (ARISTÓTELES, 2003, p. 29).

Ainda no tocante à pessoa que sente ira, salienta Aristóteles, essa paixão pode ser

desencadeada pela falta de respeito daquele que se julga dotado de superioridade (material

ou espiritual) em relação aos outros, uma vez que “um homem espera ser respeitado,

sobretudo pelas pessoas que são inferiores em nascimento, capacidade, bondade, e, em

geral, em qualquer coisa na qual esse homem seja superior” (ARISTÓTELES, 2007, p.

84). Por conseguinte, esse mesmo homem, por sua condição, será também alvo da fúria

daqueles (inferiores) que zombam e escarnecem.

A emulação, por sua vez, pode ser definida, com base em Aristóteles, como uma

paixão de caráter nobre, voltada para a competição entre pessoas de bem. Nas palavras

do filósofo, “a emulação é o sofrimento causado pela presença de coisas boas, em pessoas

cuja natureza é semelhante à nossa, que são vistas em alta conta e as quais podemos

adquirir; porém, não nos emulamos pelo fato de essas pessoas terem tais coisas, mas por

nós não as termos. Portanto, é um sentimento bom percebido por pessoas boas [...]”

(ARISTOTELES, 2007, p. 108).

Essa ideia de competição saudável pode abrir caminho, em nosso modo de pensar,

para a possibilidade de uma rivalidade esvaziada de hostilidade e de ira, o que, por vezes,

pode-se perceber em representações sociodiscursivas sobre o esporte, como, por exemplo:

“o importante não é vencer, mas competir” (ou seja, o espírito olímpico). Assim

entendida, a paixão da emulação, diferentemente da rivalidade, garante que o riso, no

futebol, não necessariamente é todo ele escárnio ou maldade, podendo, por vezes, ser

aplicado, por exemplo, à correção de defeitos daqueles que amamos, ou seja, a

possibilidade da presença do riso bom.

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Figura 2 – Charge de Duke: Selfie

Fonte: SUPER NOTÍCIAS. Belo Horizonte: Sempre Editora, 2014, ano 13, n. 4470, p. 2.

Na Figura 2, podemos dizer que estamos diante do riso bom, isso porque a

rivalidade aqui abre espaço para a emulação, no sentido de que se está a troçar de

comportamento de um atleta não pelo fato de ele jogar mal – realmente não é o caso, pois

Neymar se revelou um craque de grande potencial –, mas pela sua obsessão com a própria

imagem e na exposição desta.

4 FUTEBOL, DISCURSO E O POLITICAMENTE (IN)CORRETO

Com base em Possenti (1995, p. 125-129), podemos dizer que uma linguagem

politicamente incorreta é perceptível a partir de formas linguísticas que veiculam, com

maior ênfase, ideias de segregação de classe, de raça, de sexo etc. Nessa linha de

raciocínio, a utilização dessa linguagem pode acarretar, entre outras coisas: i) tornar o

vocabulário de determinada língua marcado em relação a qualquer grupo discriminado

(por exemplo, negro, gay, sapatão, gordo, bicha etc.); e ii) fazer com que os sujeitos

produtores de práticas discursivas que utilizam, consciente ou inconscientemente, essa

linguagem sejam julgados como preconceituosos (machistas, homofóbicos, racistas...) a

partir dos efeitos de sentido que possam ser depreendidos na/pela enunciação de tal

vocabulário.

Numa tentativa de reverter essa situação, os partidários de uma linguagem

politicamente correta, conforme explica Possenti (1995, p. 131; 138), acabam caindo, do

ponto de vista linguístico, em erros banais, como, verbi gratia, propor a substituição do

termo marcado por outro – teoricamente, não marcado –, pois se “considera que a troca

de palavras marcadas por palavras não marcadas ideologicamente pode produzir a

diminuição dos preconceitos”; entretanto, se o preconceito existe, é somente porque a

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sociedade gera condições para que o preconceito e os discursos que o justificam

aconteçam.

A reboque dessa substituição, muitas vezes se segue a inexistência na língua de um

termo sinônimo, criando, como sugere Possenti (1995, p. 139), “eufemismos de certa

forma cômicos, ou verdadeiras definições”, como, por exemplo, “indivíduo casado com

atividade sexual paralela” e “prestadora de serviços sexuais” em vez de adúltero e de

prostituta, respectivamente. Ou seja, o politicamente correto se torna politicamente

incorreto, dependendo da visada impressa no enunciado pelo sujeito:

Oh, desculpa! Eu não sei fazê esse negócio de stand-up... Tô meio nervoso, não tô

acostumado a falá no microfone; na verdade, tô aqui só para cumprir a cota de negro no

elenco... Queria fazê um protesto: que é muito difícil ser negro no Brasil, é muito difícil ser

negro nesse País; tem país que mais fácil você ser negro... Tipo, sei lá: Nigéria, Angola... Uh,

hu! Lá só dá nóis! Mas aqui é muito preconceito contra o negro. Negro, não! Que agora

mudou, vocês tão sabendo? Agora, não pode mais chamar o coleguinha de negro, de preto;

agora vocês são obrigados a me chamar de? [“Afrodescendente!” – responde a plateia] É...

agora sim... é um puta respeito comigo, cara. Eu passo na rua e as pessoas falam:

“Afrodescendente, só faz merda hein!”8

No caso do humor focado sobre o futebol, para além do uso restrito de um

vocabulário, a linguagem politicamente incorreta, confusamente cerceada pelo

politicamente correto, influencia a própria estrutura dos gêneros do humor, instituindo

novos alvos para além das partes envolvidas no campo, como na figura 3:

Figura 3 – Charge de Duke: Macaco

Fonte: SUPER NOTÍCIAS. Belo Horizonte: Sempre Editora, 2014, ano 13, n. 4494, p. 2.

8 Comedy Central Apresenta Stand-up com Marcelo Marrom. Disponível em: <https://www.youtube.

com/watch?v=0l4FjRwzFFk>. Acesso em: 14 mar. 2013.

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Aqui temos referência ao caso do goleiro Aranha, do Santos Futebol Clube. Em

uma partida pelo Campeonato Brasileiro 2014, Aranha foi hostilizado pela torcida do

Grêmio, sendo chamado de “macaco” por ser afrodescendente. A repercussão do caso

gerou uma séria punição ao Grêmio. Mas, o que nos interessa mostrar, aqui, é que o

humor, diante do politicamente correto ou incorreto, faz o próprio ato de dizer o

politicamente incorreto se tornar alvo de um riso – podemos dizer – totalmente destruidor,

não da torcedora flagrada no ato, mas da atitude de preconceito que ainda insiste em se

mostrar em nossa sociedade e nos campos de futebol.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

As questões acima debatidas – e até mesmo exemplificadas – nos instigam a

procurar mais evidências de que tanto o riso bom/alegre quanto o riso malvado/destruidor

podem também ter seu papel no entendimento dos discursos sobre o futebol, uma

instituição que para muitos é considerada a que melhor representa a cultura de nosso País

– depois do “Alemanha 7 x Brasil 1” na última copa do mundo, quem sabe?. No mesmo

passo, observar a ação do politicamente (in)correto no humor sobre o futebol parece

indicar um redirecionamento dos alvos, principalmente quando se trata do riso malvado,

por vezes, focando a própria instituição Futebol ou aqueles que a dirigem no Brasil. Ou

seja, escarniar e rir do rival acarreta implicações legais e desportivas que não vale a pena

pagar, nem para imprensa nem para os torcedores.

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Retórica das paixões. São Paulo: Martins Editora,2003.

______. Retórica. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2005.

______. Retórica. São Paulo: Rideel, 2007.

BAUDELAIRE, C. De l’essence du rire et généralement du comique dans les arts plastiques. Le

Portefeuille, 1855. Disponível em: <http://baudelaire.litteratura.com

/?rub=oeuvre&srub=ess&id=27&s=1#>. Acesso em: 3 ago. 2012.

BERGSON, H. O riso: ensaio sobre significação da comicidade. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

CHARAUDEAU, P. Discurso político. São Paulo: Contexto, 2006.

HOBBES, T. Elements of law natural and politic. 2. ed. London: Cass: 1969.

HOUAISS, A. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. São Paulo: Objetiva, 2009.

PIRANDELLO, L. O humorismo. São Paulo: Experimento, 1996.

POSSENTI, S. A linguagem politicamente correta e a análise do discurso. Estudos da Linguagem, Belo

Horizonte, ano 4, v. 2, p. 123-140, jul./dez. 1995.

PROPP, V. Comicidade e riso. São Paulo: Ática, 1992.

SANTOS, R. E. Reflexões teóricas sobre o humor e o riso na arte e nas mídias massivas. In: SANTOS, R.

E.; ROSSETTI, R. (Org.) Humor e riso na cultura midiática: variações e permanências. São Paulo:

Paulinas, 2012, p. 17-59.

VALE, R. P. G. Lingua pileata: Bakhtin, linguagem do riso e Análise do Discurso. Inventário (revista on-

line), v. 1, 2012. Disponível em: <http://www.inventario.ufba.br

/11/LINGUA%20PILEATA%20BAKHTIN%20finalizado.pdf>.

______. O discurso humorístico: um percurso de análise pela linguagem do riso. 2013. 279f. Tese

(Doutorado em Linguística do Texto e do Discurso) – Programa de Pós-graduação em Linguística,

Faculdade de Letras, Belo Horizonte, 2013.

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VALE, Rony Petterson Gomes do. Risos e futebol: um ensaio sobre as paixões na mídia esportiva. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 16, n. 3, p. 421-432, set./dez. 2016.

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Recebido em: 16/02/16. Aprovado em: 21/07/16.

Title: Laughters and soccer: an essay on the passions in sports media

Author: Rony Petterson Gomes do Vale

Abstract: This paper is the result of the initial theoretical discussions that underlie our

researches about the interface between soccer and humorous discourse. In this text, we try

to develop a reflection on a typology of laughter in the comics of humor (in this essay,

specifically the charge), in which soccer is the theme central. Even admitting that the rivalry

between opposing teams provides – in most cases – the triggering of a derision laugh or an

evil laugh, our proposal aims to analyze, from the perspective of discourse analysis, the

presence of meaning effects similar to other species of laughter as the happy and good, as

Propp postulates in his Comicidade e Riso.

Keywords: Discursive strategy. Laughter. Soccer.

Título: Risas y fútbol: un ensayo sobre las pasiones en la media deportiva

Autor: Rony Petterson do Vale

Resumen: El presente ensayo es resultado de las discusiones teóricas iniciales que basan

nuestras investigaciones sobre el interface entre fútbol y discurso humorístico. En este texto,

hemos procurado desarrollar una reflexión a respecto de una tipología de la risa en

historietas de humor (en este ensayo, más específicamente la caricatura burlesca), en las

cuales el fútbol es el tema central. Aunque admitiendo que la rivalidad entre los equipos

adversarios proporcione – en la mayoría de los casos – el desencadenamiento de una risa

de burlas o de una risa malvada, nuestra propuesta tiene el objetivo de evidenciar, por

enfoque del Análisis del Discurso, la presencia de efectos de sentido próximos de otras

especies de risa, como lo alegre y lo bueno, como postula Propp en su Comicidade e Riso.

Palabras-clave: Estratégia discursiva. Risa. Fútbol

Este texto está licenciado com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.

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CARMELINO, Ana Cristina; SILVEIRA, Karine. O Acre não existe? Nas desnotícias, não. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 16, n. 3, p. 433-448, set./dez. 2016.

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DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1982-4017-160304-1216

O ACRE NÃO EXISTE? NAS DESNOTÍCIAS, NÃO

Ana Cristina Carmelino

Universidade Federal de São Paulo

Departamento de Letras

São Paulo, SP, Brasil

Karine Silveira

Pontifícia Universidade Católica de Minas

Departamento de Letras

Belo Horizonte, MG, Brasil

Resumo: Neste artigo, o objetivo é mostrar que a referenciação feita por expressões

nominais referenciais e/ou referenciais e atributivas é capaz de construir determinada

identidade social para o estado do Acre. Para isso, analisam-se desnotícias, nome dado a

textos humorísticos publicados no site Desciclopédia que parodiam notícias escritas por

mídias de renome. A discussão teórica ancora-se especialmente nos conceitos de identidade

social e referenciação, formulados, respectivamente, pela Análise de Discurso Crítica e pela

Linguística Textual. O estudo explicita que a seleção de termos que compõem as expressões

nominais é responsável por gerar certos efeitos de sentido. No caso em análise, busca-se

construir identidades sociais de modo bem-humorado, visto que tais formas colocam em

questão a existência do Acre, tornando esse estado motivo de piada.

Palavras-chave: Identidade social. Referenciação. Desnotícia. Humor. Acre.

1 O ACRE EM QUESTÃO

Diversos são os motivos para se fazer piada1 com algo ou alguém, a saber: brincar,

rebaixar, criticar; escancarar comportamentos não admitidos de forma explícita, mas

praticados socialmente; forjar ou dissimular, para expressar efeitos de verdade; e difundir

práticas sociais enraizadas na cultura de um povo, modos de ser, construções identitárias.

Nota-se, curiosamente, que dentre os estados brasileiros, o Acre tem sido alvo constante

de piada na Internet. Comecemos com dois exemplos, a fim de ilustrar o tipo de

brincadeira comumente feita com esse estado:

Professora Adjunta IV da área de Estudos da Linguagem. Doutora em Linguística e Língua Portuguesa

pela Unesp/CAr. E-mail: [email protected]

Doutoranda em Linguística e Língua Portuguesa pela PUC – Minas. E-mail: [email protected] 1 Estamos usando o conceito de piada da forma mais ampla possível, ou seja, algo constituinte de textos

humorísticos e compartilhado por diferentes gêneros de cunho cômico. É preciso destacar também que os

termos “humor”, “brincadeira”, “piada” e “cômico” (e suas variantes) são usados aqui como sinônimos.

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CARMELINO, Ana Cristina; SILVEIRA, Karine. O Acre não existe? Nas desnotícias, não. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 16, n. 3, p. 433-448, set./dez. 2016.

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Figura 1 – Exemplo (1): Mapa do Brasil (visto pelos cariocas)

Fonte: VERDADEIRO mapa de como os cariocas veem o resto do Brasil. Diário do Rio. Disponível em:

<http://diariodorio.com/wp-content/uploads/2011/10/Mapa-do-Rio-de-Janeiro-visto-pelos-cariocas.jpg>. Acesso em:

10 mar. 2016.

Figura 2 – Exemplo (2): Meme

Fonte: 3 COISAS que eu nunca vi na vida. Geradordememe. Disponível em:

<http://geradormemes.com/meme/5pqplg>. Acesso em: 10 mar. 2016.

No exemplo (1), tem-se um mapa que brinca com o modo como os moradores do

estado do Rio de Janeiro veem o Brasil. O lugar que corresponderia ao Acre é identificado

com uma pergunta: “Existe?”. Já em (2), tem-se um meme (algo que é imitado, uma

brincadeira que se difunde rapidamente por redes sociais e que, em geral, é constituída

por imagens e enunciados verbais) que destaca três coisas brasileiras jamais vistas: fã de

Latino (cantor), tekpix (câmera fotográfica digital) e Acre (estado). Ambos os textos, cada

um a seu modo, questionam a subsistência do estado.

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CARMELINO, Ana Cristina; SILVEIRA, Karine. O Acre não existe? Nas desnotícias, não. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 16, n. 3, p. 433-448, set./dez. 2016.

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Os dois exemplos, como visto, não se referem somente ao Acre, mas incluem a

localidade entre os dados mencionados para a produção do humor. Desse modo, de forma

bem-humorada, ambos evidenciam uma identidade social (imagem negativa) construída

para o Acre: a de ser um estado inexistente. A primeira pergunta que se levanta é se

haveria motivo(s) para isso. Se sim, qual (quais) seria(m) ele(s)?

Levando-se em conta que os textos humorísticos são um material rico para refletir

sobre construção identitária, este artigo pretende explicitar como a identidade social de

estado inexistente, comumente edificada para o Acre nesses tipos de textos, é construída

(e reforçada) por meio de expressões nominais com função: 1) referencial; 2) referencial

e atributiva. Para isso, toma-se como corpus de análise exemplos de desnotícias, nome

dado a textos publicados no site Desciclopédia, os quais parodiam notícias escritas por

mídias de renome.

É relevante esclarecer que os excertos de desnotícias usados neste artigo para

ilustrar a análise foram selecionados a partir de uma busca sobre o tema no site

Desciclopédia. Em princípio, levantaram-se todas as desnotícias que versavam sobre o

Acre em geral (um total de 322), depois foram verificadas aquelas que atribuíam ao estado

a identidade de inexistente. Neste caso, foram encontrados 10 exemplos.

Para além desse objetivo, qual seja, explicitar a construção da identidade social de

estado inexistente, busca-se entender não apenas os motivos pelos quais o Acre é objeto

de piada, mas também em que medida a história pode ou não explicar a construção bem-

humorada de certa identidade social construída para o estado3, dado novo em relação ao

tema e, por conta disso, ainda não explorado do ponto de vista teórico-científico (o que,

por si só, já justificaria a necessidade da discussão em tela).

Há três hipóteses consideradas neste texto: a) que as expressões nominais

referenciais e/ou referenciais e atributivas são um recurso eficaz na construção da

identidade social do Acre; b) que as piadas sobre o Acre encontram explicação na história

desse estado; c) que essas piadas forjam uma identidade para expressar efeitos de verdade.

O referencial teórico que fundamenta a análise empreendida neste estudo ancora-se

em dois conceitos principais: identidade social e referenciação por meio de expressões

nominais. Para discutir o primeiro, tomam-se como base os pressupostos da Análise de

Discurso Crítica; para tratar do segundo, parte-se das considerações da Linguística

Textual de base sociocognitiva e interacional. Antes, porém, de abordar tais conceitos, é

importante esclarecer o que vem a ser desnotícia.

2 As desnotícias que constam deste artigo fazem parte de um corpus maior, constituído de 32 exemplos,

como citado. Para tal seleção, Silveira (2013) fez um levantamento da quantidade desses textos presentes

no site Desciclopédia no período de 4 a 13 de abril de 2011, contabilizando um total 3.077 sobre assuntos

variados. De todos os assuntos tratados, o estado do Acre era um dos temas mais abordado, tornando-se,

portanto, o corpus de análise da pesquisadora. 3 Convém destacar que não estamos afirmando que as identidades construídas social e culturalmente para

o Acre, em textos humorísticos, correspondam de fato a uma verdade.

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CARMELINO, Ana Cristina; SILVEIRA, Karine. O Acre não existe? Nas desnotícias, não. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 16, n. 3, p. 433-448, set./dez. 2016.

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2 DESNOTÍCIA: HUMOR E PARÓDIA

De acordo com o site Desciclopédia, a desnotícia é definida como

Uma fonte de notícias livre e de grátis, feita por pessoas e animais como você em mais de 25

mil idiomas. [...]. O seu conteúdo pode ser modificado, impresso e distribuído livremente

para os seus amigos, ou para que você possa os colorir, saiba como! (Desnotícias: página

principal, Desciclopédia, s/d)

Trata-se de textos humorísticos que brincam com notícias veiculadas em alguma

mídia de renome. Como registra de maneira bem-humorada o próprio enunciado, se até

“animais como você” podem escrever e qualquer um pode editar ou modificar o seu

conteúdo, as desnotícias se tornam informações nada confiáveis.

Os textos humorísticos, em oposição aos não humorísticos, definem-se pela

perspectiva da comunicação não confiável. Conforme registra Travaglia (2015, p. 51),

“há um rompimento do compromisso da comunicação com a seriedade, de ser algo válido

em que se pode confiar, do princípio segundo o qual se alguém me diz algo, aquilo deve

ser levado em conta com seriedade”. Além disso, pode-se dizer que um ingrediente

comum a essas produções seja o fator surpresa (cf. POSSENTI, 2010).

Para compreender melhor a desnotícia, faz-se necessário esclarecer de onde ela

parte, ou melhor, o que vem a ser a Desciclopédia, veículo no qual tais textos são

publicados. Lançado em 2006, o site é uma versão brasileira da Uncyclopedia. Ambas, a

brasileira e a norte-americana, caracterizam-se por satirizar a página Wikipédia4, seja na

forma de apresentação dos dados (layout), seja em relação aos diversos textos que ela

publica.

Os diferentes conteúdos ali inseridos, que fazem parte de diversos gêneros

(despoesias, desentrevistas, deslistas), são abertos para que usuários cadastrados os

editem. Se o veículo (a Desciclopédia) que publica os textos por si só já é uma sátira, é

coerente que seu conteúdo seja também de cunho humorístico.

No que tange às desnotícias, partindo de que se trata de “uma fonte de notícias livre

e de grátis” (Desnotícias: página principal, Desciclopédia, s/d), buscou-se verificar se tais

textos, embora de conteúdo humorístico, baseavam-se em matérias jornalísticas

existentes e publicadas em portais jornalísticos. O estudo de Silveira (2013) comprova

que sim. Ao comparar a notícia-fonte com a desnotícia, a autora nota que esta geralmente

desconstrói o conteúdo do texto original, por meio de uma recontextualização.

Proposto por Fairclough (2003), o termo recontextualização implica transformação,

uma vez que se refere ao fato de um texto/gênero ser posto em outro contexto. As

desnotícias seriam, seguindo esse raciocínio, “a recontextualização de notícias reais em

um texto parodístico, cujo propósito comunicativo é diferente do propósito da notícia”

(SILVEIRA, 2013, p. 106). No caso das desnotícias usadas na análise deste artigo, nota-

se que elas visam a ridicularizar o estado do Acre. A título de ilustração, vejamos um

exemplo:

4 A Wikipédia é uma enciclopédia virtual que pode ser editada por seus usuários cadastrados e está

disponível no endereço <www.wikipedia.org.>

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CARMELINO, Ana Cristina; SILVEIRA, Karine. O Acre não existe? Nas desnotícias, não. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 16, n. 3, p. 433-448, set./dez. 2016.

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(3) Desnotícia

PELOTAS, Estados Unidos do Sul - Numa região de montanhas geladas a oeste da

Amazônia, numa área onde são raros os sinais de civilização, enormes antenas fazem um

balé sincronizado. Ora viram para o poente, ora para o nascente. Para onde quer que apontem

olham na direção do infinito e tentam responder a uma das questões mais antigas da

humanidade: o Acre existe? (Pesquisadores procuram sinais do Acre, Desciclopédia, 16 jan.

2011)

(4) Notícia

Numa região de montanhas geladas ao norte da Califórnia, numa área onde são raros os sinais

de civilização, enormes antenas fazem um balé sincronizado. Ora viram para o poente, ora

para o nascente. Para onde quer que apontem olham na direção do infinito e tentam responder

a uma das questões mais antigas da humanidade: estaremos, afinal, sozinhos neste universo?

(Na Califórnia, pesquisadores procuram sinais de vida extraterrestre, G1, 18 nov.

2007)

O primeiro fragmento corresponde ao lead (nome do parágrafo de abertura do texto

jornalístico, que tende a condensar os principais dados daquela informação) da desnotícia

“Pesquisadores procuram sinais do Acre”, postada no site Desciclopédia e atualizada em

16/01/2011. O segundo diz respeito ao lead da notícia que serviu de base, ou seja: “Na

Califórnia, pesquisadores procuram sinais de vida extraterrestre”, nota que foi publicada

no portal G1 em 18/11/2007, na seção Ciência e Saúde.

Conforme se observa, a desnotícia funciona como uma espécie de paródia, visto

que desloca o sentido do texto original para criticá-lo e/ou deformá-lo, ou seja, retrabalha-

se, no caso do corpus em questão, a notícia-fonte com o propósito de produzir humor,

sem comprometimento com a verdade, mesmo que haja nesse texto uma crítica/denúncia

social. De acordo com Silveira (2013), a desnotícia trata-se de um texto que

recontextualiza fatos pertencentes ao contexto da notícia, a qual visa a informar a

sociedade sobre acontecimentos cotidianos, para o contexto do humor: o fazer rir, divertir.

Ainda tomando como base o exemplo mencionado, especialmente o trecho “Para

onde quer que apontem olham na direção do infinito e tentam responder a uma das

questões mais antigas da humanidade: o Acre existe?”, verifica-se que a paródia (vista na

alteração de “estaremos, afinal, sozinhos neste universo?” para “o Acre existe?”) busca

não apenas divertir, mas construir para o Acre, de forma bem-humorada, a mesma

identidade social vista nos casos já mostrados: a de estado inexistente. A questão que

resta é saber por quê.

3 IDENTIDADE SOCIAL E REFERENCIAÇÃO

Herdeira dos estudos desenvolvidos pela Linguística Crítica, no final da década de

1970 – cujos propósitos eram compreender a linguagem e sua relação com o social e com

as noções de ideologia e poder –, a Análise de Discurso Crítica (doravante ADC)

consolida-se como disciplina no início da década 1990, tendo como expoente o linguista

britânico Norman Fairclough.

Conforme Chouliaraki e Fairclough (1999), a ADC constitui um modelo teórico-

metodológico que se situa no âmbito da Ciência Social Crítica, estabelecendo um diálogo

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entre esse campo e a Linguística. Uma das características que define tal modelo, nas

palavras de Ottoni (2014, p. 28), é que “o problema investigado é que vai demandar quais

teorias entrarão nesse campo de diálogo”.

Isso posto, o propósito principal da ADC é tratar de diversas práticas que compõem

a vida social. Entre elas, está a construção de identidades sociais, que estão diretamente

vinculadas ao conceito de discurso. Tais identidades, conforme Fairclough (2001), são

estabelecidas nos e pelos discursos, de acordo com um projeto de dizer do falante/autor.

Mas o que seria discurso, para o autor, nessa abordagem?

O conceito é concebido como “forma de prática social”, que inclui não apenas uma

forma de “representação do mundo”, mas, também, de “significação do mundo”

(FAIRCLOUGH, 2001, p. 90). Em suas considerações, o autor destaca que o discurso

contribui para a construção de identidades sociais, de relações sociais entre as pessoas e

de sistemas de conhecimento e crença. Silva (2009, p. 44), pesquisadora vinculada à

ADC, que ampara seus estudos em Woodward (2000), salienta:

Um ponto consensual entre os pesquisadores é que as identidades não são um processo

acabado, elas estão, por meio da linguagem, em constante construção e reconstrução. Assim,

a linguagem é constitutiva do ser humano. E as identidades só adquirem sentido pela

linguagem e pelos sistemas simbólicos que as representam

Tal abordagem pode ser relacionada com a perspectiva sociocognitiva da

Linguística Textual, teoria com a qual será trabalhado o conceito de referenciação mais

adiante. Para Silva (2009), as identidades estão em “constante construção e reconstrução”.

Isso ocorre, pois “o texto passa a ser considerado o próprio lugar da interação e os

interlocutores, sujeitos ativos que – dialogicamente – nele se constroem e por ele são

construídos” (KOCH, 2009, p. 33). Além disso, “a linguagem é tida como o principal

mediador da interação entre as referências do mundo biológico e as referências do mundo

sociocultural” (p. 32).

Essa visão de interação e de construção e reconstrução dos sujeitos por meio do

texto pode ser relacionada com a afirmação de Silva (2009, p. 44), a de que “as

identidades não são para sempre, e que a diferença ocorre com relação aos outros e com

relação a elas mesmas, devido às transformações no tempo”. Em outras palavras, os

interlocutores, como sujeitos ativos, interagem por meio do texto construindo e

reconstruindo identidades, tendo em vista que se trata de algo sempre em processo. Desse

modo, a construção de identidade pode sofrer modificação à medida que o tempo passa.

Com relação às identidades atribuídas a determinada nação (e, por que não dizer, a

certa região ou certo estado de um país), é importante acrescentar, com base em Hall

(2006), que elas advêm não apenas das histórias que são contadas sobre a nação,

memórias que conectam seu presente com seu passado (panoramas, eventos históricos,

símbolos, rituais) e imagens que dela são construídas, mas, também, do conjunto de

práticas que buscam articular certos valores e normas de comportamento, por meio da

repetição. Os exemplos citados até o momento neste artigo tendem a reforçar, de forma

bem-humorada, que o estado do Acre não existe.

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Em suma, o discurso tem alguns efeitos constitutivos e um deles é o de contribuir

para a construção de identidades sociais e culturais. Identidades que, nesta discussão, são

compreendidas como uma representação imaginária, que pode ou não ter amparo no real

e que, portanto, pode ou não ser explicada por questões históricas. Além disso, mesmo

que as representações se vinculem à História, isso não significa que elas, de fato, sejam

verdadeiras, já que a desnotícia descontrói os fatos aos quais faz referência.

Desse modo, as identidades – que se ligam à cultura, às relações sociais e aos

elementos históricos – são, portanto, construções que levam em conta aspectos que

refletem indivíduos, lugares. Nesse sentido, as representações sociais e culturais,

manifestadas nos textos de humor que brincam com a inexistência do Acre, consistem em

vetores potenciais de processos identitários de manutenção e/ou reconstrução de

identidades desse estado brasileiro, nesse contexto.

Considerando-se que o objetivo deste artigo é refletir sobre uma das identidades

construídas para o Acre (a de estado inexistente) por meio de processo de referenciação

– mais especificamente a partir de expressões nominais referenciais e/ou referenciais e

atributivas que remetam a ele –, faz-se necessário tratar aqui de cada um desses conceitos.

O fenômeno da referenciação é abordado por diferentes correntes teóricas. Do

ponto de vista da Linguística Textual de base sociocognitiva e interacional, perspectiva

da qual se parte, trata-se de uma operação discursivamente produzida, na qual os sujeitos

constroem objetos de discurso (MONDADA, DUBOIS, 2003; APOTHÉLOZ,

REICHLER-BÉGUELIN, 2003). Esses objetos são definidos como “entidades que são

interativamente e discursivamente produzidas pelos participantes no fio da enunciação”

(MONDADA, 2001, p. 9).

De acordo com pesquisadores brasileiros que abordaram o tema5, a referenciação é

concebida como uma “atividade discursiva”, na qual o sujeito, “por ocasião da interação

verbal, opera sobre o material linguístico que tem à sua disposição, realizando escolhas

significativas para representar estados de coisas” a fim de construir um determinado

sentido (KOCH, 2005, p. 34-35). Por esse olhar, trata-se de uma atividade cognitivo-

discursiva, cujo processamento é estratégico.

Tal processo, que se caracteriza pela introdução (ativação, categorização) e

retomada de objetos de discursos (reativação, recategorização), pode ser estabelecido por

expressões tanto de ordem gramatical (como pronomes e numerais), quanto lexical

(formas ou grupos nominais). Dentre essas expressões, interessam as de ordem lexical,

dado o fato de que elas podem ser as responsáveis por construir identidades.

Compostas em geral por um nome (substantivo) que pode ser acompanhado de um

determinante (indefinido, definido ou demonstrativo) ou de um modificador (adjetivo,

sintagma preposicional, oração relativa), as expressões nominais podem ser: 1)

referenciais; 2) referenciais e atributivas. O primeiro caso refere-se “àquelas que

identificam ou designam um objeto de discurso”; já o segundo diz respeito às “que

atribuem predicados a um objeto de discurso instituído” (CARMELINO, 2015, p. 96).

5 Caso de Marcuschi (2000), Koch (2005) e Cavalcante (2011).

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Se a escolha das palavras que compõem as expressões nominais referenciais e/ou

referenciais e atributivas é feita pelo produtor do texto de acordo com um projeto de dizer

(a fim de veicular certo efeito de sentido), muitas vezes, são essas formas as responsáveis

por construir identidades sociais, além de revelar pontos de vista e fazer avaliações.

Nesse sentido, o processo de referenciação por meio de tais expressões pode ser

articulado à proposta de Fairclough (2001, p. 104), quando nos diz que: “as pessoas fazem

escolhas sobre o modelo e a estrutura de suas orações que resultam em escolhas sobre o

significado (e a construção) de identidades sociais, relações sociais e conhecimento e

crença”. Ainda a esse respeito, convém mencionar o que registra Ottoni (2007, p. 47):

“Muitas palavras que nós escolhemos para descrever alguma coisa ou alguém veiculam

uma atitude positiva ou negativa [...] Isso vai depender de nossa posição [...] de como

queremos nos posicionar e também posicionar o ouvinte/leitor de nosso texto”.

Com base nessas considerações e na análise de fragmentos de desnotícias, busca-se

mostrar no próximo tópico como algumas expressões nominais referenciais e/ou

referenciais e atributivas constituem estratégias representacionais para reiterar certa

identidade social que circula na mídia (em especial em textos de humor) sobre o Acre: a

de que esse estado brasileiro não existe.

4 ESTADO INEXISTENTE: IDENTIDADE SOCIAL CONSTRUÍDA PARA O ACRE

As piadas ou os textos de humor em geral, por veicularem discursos menos oficiais,

podem além de criticar, pôr em evidência certos modos de ser e estar, representações

identitárias. Uma identidade social comumente construída para o Acre nas chamadas

desnotícias, que reforça o que já foi explicitado nos exemplos citados ao longo deste texto,

é a de estado inexistente.

Haveria alguma explicação (de ordem histórica ou não) para isso? Antes de dar

qualquer resposta para a questão levantada, vejamos como tal identidade se manifesta por

meio de diferentes expressões nominais com função referencial e/ou referencial e

atributiva que remetem ao estado. Comecemos por dois exemplos:

(4) “Antigamente pertencente à Bolívia, foi trocado por um cavalo com o Brasil, porém como

até hoje ninguém achou o local, o cavalo continua no Brasil, estacionado em frente a [sic]

embaixada boliviana em Brasília, esperando a comprovação da existência do Acre”. (Lula

coloca Acre no fuso horário brasileiro na tentativa de encontrá-lo, Desciclopédia, 16 jan.

2011 - grifo nosso)

(5) “Até mesmo entre os grandes cientistas, discutir a existência do Acre é tão complicado

quanto discutir política ou religião” (Pesquisadores procuram sinais do Acre, Desciclopédia,

16 jan. 2011 - grifo nosso)

Os excertos – que fazem parte das desnotícias “Lula coloca Acre no fuso horário

brasileiro na tentativa de encontrá-lo” e “Pesquisadores procuram sinais do Acre” –

questionam, cada um a seu modo, a existência do Acre. Isso pode ser observado tanto

pela expressão nominal “a existência do Acre”, com função referencial, quanto pelos

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termos que fazem parte de seu entorno. Formada por um determinante definido (a), um

substantivo (existência) e um sintagma preposicional (do Acre), a expressão nominal

chama a atenção especialmente pela presença do termo existência. Não é comum usá-lo

para se referir a algo que, efetivamente, exista. Portanto, quando o leitor se depara com

tal expressão, surpreende-se por ser afirmado algo tão óbvio, acarretando, assim, o efeito

humorístico do texto e a depreciação do estado do Acre, que passa a ter sua existência

questionada.

Em (4), a construção “esperando a comprovação da”, que antecede a forma

nominal, permite que se compreenda que a existênca do Acre ainda não foi confirmada,

porque não haveria provas certificando o fato (espera-se pelo acontecimento). Em (5), ao

explicitar que a existência do Acre seja algo complicado de ser discutido “até mesmo

entre grandes cientistas”, como é o caso de política e religião, sugere-se que existam

assuntos delicados, polêmicos, sobre os quais ainda não há um consenso, uma única

opinião formada. E a existência do Acre é um desses assuntos.

Outra expressão nominal, agora com função referencial e atributiva, que reitera a

identidade social do Acre como inexistente, é a que o mostra como “o estado perdido”,

como podemos ver no fragmento que segue:

(6) RIO BRANCO, Ilha de Lost Acre - O presidente Luís Fusohorácio Lula da Silva

sancionou hoje a lei que institui o mesmo fuso horário do Oeste do Brasil para o Acre. A

medida visa facilitar a vida das inúmeras expedições exploratórias que buscam o Estado

Perdido. (Lula coloca Acre no fuso horário brasileiro na tentativa de encontrá-lo,

Desciclopédia, 15 jan. 2011 - grifo nosso)

Constituída por um determinante definido (o), um substantivo (estado) e um

adjetivo (perdido, daí o caráter atributivo), a escolha lexical, no caso dessa expressão,

mostra-se essencial para produzir o efeito de sentido pretendido pelo autor. O

determinante o indica que não é qualquer estado que está sendo procurado, mas apenas

um, o Acre. O termo perdido significa não ter mais (por consequência, não existir). Se

algo é perdido, nesse caso, passa a ser inexistente, de certa forma. Com base na história

do Acre, pode-se inferir que se trata de um estado desaparecido ou esquecido, talvez por

estar situado muito distante dos grandes centros brasileiros, como Rio de Janeiro, São

Paulo, Distrito Federal.

Alguns elementos do entorno da expressão corroboram um sumiço definitivo (daí

a inexistência), como “A medida visa [instituir o mesmo fuso horário do Oeste do Brasil

para o Acre, a fim de encontrá-lo] facilitar a vida das inúmeras expedições exploratórias

que buscam o Estado Perdido”. Há outro exemplo cuja expressão nominal semelhante,

“Estado Brasileiro Perdido”, acena para o mesmo sentido, a diferença é que ela caracteriza

explicitamente o Acre como um estado brasileiro, como se verifica em:

(6) Suspeitas recaem que o estado localize-se [sic] no meio da Amazônia, à frente da

República Checa e atrás do Peru, mas nenhum governante destes locais confirma o fato.

Enquanto isso, a ONU preocupada com os fracos e oprimidos, mandou sua 69ª missão em

busca do Acre e a NASA já preparou o lançamento da 42ª sonda em busca do “Estado

Brasileiro Perdido”. (Acre é o local que mais aparece no Google Earth diz pesquisa,

Desciclopédia, 15 jan. 2011 - grifo nosso)

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No exemplo (7), temos uma expressão nominal referencial e atributiva, “Estado

Brasileiro Perdido”, que sugere uma possível mudança no nome do estado, pois as iniciais

estão em letra maiúscula, igual a um nome próprio. Isso nos chama a atenção, já que

recategoriza o objeto do discurso Acre, caracterizando-o principalmente como perdido.

Tal adjetivação avalia, como visto no excerto (5), o Acre como um estado desaparecido

ou esquecido. Além disso, pode-se retomar a história do Acre para se compreender o uso

do adjetivo perdido, tendo em vista que o Brasil quase se envolveu em uma Guerra com

a Bolívia para não perder o território que hoje é o Acre. Nesse caso, a desnotícia se baseia

na história para satirizar a luta pela posse da área correspondente a tal estado.

Outra possibilidade de entendimento inferida é a de que o Acre tenha sido destruído

de maneira definitiva, pois perdido também tem esse significado (ser arruinado,

aniquilado). No entanto, o uso do sintagma preposicional em busca de, que antecede e

introduz a expressão nominal aqui analisada, leva-nos a interpretar a noção de perdido

como desaparecido, pois evidencia a possibilidade de desaparecimento ou sumiço do

estado, uma vez que o uso do verbo buscar, nessas expressões, tanto em (6) quanto em

(7), assumem o mesmo valor de procurar, e se tende a buscar aquilo que foi perdido.

Os próximos dois excertos, (8) e (9), caracterizam-se por fazer referência indireta

ao Acre, mas não deixando de reforçar a costrução da identidade de estado inexistente,

pois destacam a capital e o exército ao fazerem uso dos mesmos adjetivos: suposto e

inexistente:

(7) No mapa do Brasil que servia como ponto de partida para as matérias sobre as cidades,

Rio Branco, a "suposta" capital do Acre, foi apontada na região onde de fato está

localizada. (FIFA comprova o óbvio: o Acre não existe!, Desnotícia, 15 jan. 2011 – grifo

nosso)

(8) O Exército Bahiano perdeu, neste domingo, sua invencibilidade diante do suposto

exército acriano inexistente. [...] Diversos moradores das cidades que fazem divisa com o

Acre tem [sic] visto mobilizações de diversos animais azuis voadores se reunindo na

inexistente capital acreana [sic]. (Portal Terra relata nova Guerra do Acre, Desnotícia, 16

jan. 2011 – grifos nossos)

No fragmento (8), a expressão destaca a capital “Rio Branco” e, em seguida, é

utilizado um aposto explicativo, “a ‘suposta’ capital do Acre”. No aposto, constituído por

uma expressão nominal referencial e atributiva, o que se destaca é o adjetivo suposto que

caracteriza a capital do Acre, Rio Branco. As aspas sugerem uma construção irônica do

tipo: todos sabem que não existe a capital do Acre, o que já seria algo óbvio. Com isso,

reafirma-se a subsistência do estado, tendo como ponto de partida a não existência de sua

capital. Seria um caso de metomínia, a parte pelo todo, se a capital não existe, o mesmo

vale para o estado que supostamente a abrigaria. Outro fato que salienta a não existência

do Acre, nesta desnotícia, é o próprio título dela: “FIFA comprova o óbvio: o Acre não

existe!”.

Em (9), “o suposto exército acriano inexistente”, o mesmo adjetivo não mais se

encontra entre aspas, mas modifica o sentido de “exército acriano”, o que coloca em

questão a presença de um exército no estado. Entretanto, a dúvida é resolvida ao final da

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expressão, por meio do adjetivo inexistente, que indica que seja um estado desprotegido,

pois não há um órgão público para defendê-lo. Além disso, esse adjetivo é utilizado

novamente no fragmento (9), “a inexistente capital acreana”. Apesar de os fragmentos (8)

e (9) serem de desnotícias diferentes, ambos têm o mesmo propósito: evidenciar a não

existência da capital acreana e, assim, consequentemente, anular a existência do estado.

Por fim, uma última desnotícia que corrobora a identidade social de estado

inexistente por meio da expressão nominal referencial e atributiva “uma invenção do

governo”, que pode se vista no trecho a seguir:

(9) Muito provavelmente você ja percebeu onde queremos chegar... Não, o Acre não existe,

ele é apenas uma invenção do governo a fim de esconder uma área secreta onde estão

mantidas as tampas de caneta bic (perdidas), os políticos honestos e os Chesters. (Google

nega ter apagado o Acre do serviço GoogleMaps, Desnotícia, 18 jan. 2011 – grifo nosso)

A expressão em destaque no excerto (10) é constituída por um determinante

indefinido (uma), um substantivo (invenção) e um sintagma preposicional (do governo).

Nela, o termo que é ressaltado na constituição da identidade é invenção, pois sugere que

o Acre seja uma fantasia (algo que não existe). Esse dado é confirmado pela definição do

próprio vocábulo: “invenção: coisa imaginada ou inventada com astúcia ou má-fe;

invencionice, maquinação, mentira” (FERREIRA, 1999).

Além disso, deve-se levar em conta que o estado não é uma invenção feita por

qualquer um, mas, sim, pelo governo. A fim de se compreender melhor a escolha lexical

do governo, é preciso conhecer a história do Acre, para saber que ele foi comprado da

Bolívia, pelo Brasil, por duas mil libras esterlinas. Com base nisso, se a desnotícia diz

que o governo o inventou, certamente é para desconstruir a história do Acre e colocar em

dúvida se ele realmente existe, já que pouco se fala, atualmente, nas escolas e na mídia

sobre as brigas territoriais que ocorreram entre Bolívia, Peru e Brasil, por causa do Acre.

A partir dos exemplos aqui apresentados, é possível verificar que as expressões

nominais com função referencial e/ou referencial atributiva que remetem ao Acre

mostram esse estado brasileiro como aquele que não subsiste como espaço físico e, por

isso, não possui uma capital, nem mesmo habitantes.

Ao colocar em questão (ora de forma implícita, ora de forma escancarada) a (não)

existência do Acre, as desnotícias tendem, pelo viés do humor, a construir uma imagem

(identidade social) negativa dele. Imagem esta que, além de ridicularizá-lo, rebaixa-o a

ponto de anulá-lo.

Embora o rebaixamento seja uma forma bastante comum de se produzir humor, é

preciso refletir sobre seus efeitos de sentido que, certamente, têm uma razão de ser. A

explicação para se fazerem tantas piadas com/sobre o Acre (um dentre os 26 estados

brasileiros e o Distrito Federal), segundo se entende, não está no acaso, mas na sua própria

história. Em razão disso, na sequência, serão abordados alguns fatos que marcaram a

trajetória do estado, a fim de se compreender o porquê de edificá-lo por meio de certa

imagem.

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5 O QUE DIZ A HISTÓRIA SOBRE O ACRE?

Sobre o Acre, o que imediatamente nos chama a atenção não é o fato de ele ser um

estado novo, se comparado a Minas Gerais, São Paulo ou Bahia. Quanto a esse tópico, há

o Tocantins, que é o mais recente território elevado ao status de estado. Em termos sócio-

históricos, chamam a atenção dois dados: o Acre quase não ser noticiado e ter sido um

estado comprado.

Retomando a sua história, até 1901, o Acre pertencia à Bolívia e era um território

habitado pelos índios. Entretanto, em meados do ano de 1877, brasileiros provenientes do

Nordeste passaram a ocupá-lo com o objetivo de extrair o látex6, principal matéria-prima

da região. Por causa da chegada dos brasileiros, o governo imperial brasileiro assinou o

Tratado de Ayacucho, que fixou áreas limítrofes entre as duas nações.

Tal acordo não foi suficiente para evitar conflitos entre os dois países. Conforme

Gurgelm (2003), no período de 1899 a 1903, o Brasil e a Bolívia quase declararam guerra

por causa das brigas territoriais. Nesse contexto de lutas (visto que a maioria do território

do Acre tinha sido ocupada por brasileiros), em 14 de julho de 1901, Luís Galvez,

conhecido como “o Imperador do Acre”, decidiu proclamá-lo estado independente.

Nas palavras de Neves (2013), em novembro de 1903, o Acre foi anexado ao Brasil

como Território Federal, tendo os poderes judiciário e legislativo sido implantados de

forma lenta e irregular. O Atlas National Geographic: Brasil (2008) registra que, após a

assinatura do Tratado de Petrópolis (um acordo diplomático proposto pelo Barão do Rio

Branco7), o governo brasileiro pagou dois milhões de libras esterlinas à Bolívia e

prometeu construir a estrada de ferro Madeira-Mamoré para facilitar o escoamento de

produtos bolivianos para o Atlântico. Isso deixa claro que o Acre foi um território

comprado.

Convém assinalar que a ascensão do Acre como estado só ocorreu em 15 de junho

de 1962, por meio da lei 4.070, sancionada pelo Presidente da República João Goulart.

Nesse período, o estado teve como governador José Augusto de Araújo, eleito em outubro

de 1962.

Atualmente, sabe-se muito pouco sobre o Acre, pois, como já dito, trata-se de um

estado que não é noticiado na chamada grande mídia, nem considerado como local que

apresenta algum ponto turístico de destaque no país. Pode-se, entretanto, ressaltar que ele

ocupa uma área de 164.123.040 km², o que equivale a menos de 2% da superfície do país.

De acordo com o censo do IBGE de 2013, o Acre é o terceiro estado menos

populoso do país. Ele ocupa ainda o 22º lugar no índice de desenvolvimento em pesquisa

realizada pela Fundação Carlos Chagas e o 24º lugar dos melhores estados em condições

de vida, do estudo realizado pela consultoria Macroplan (2004).

6 De acordo com o Atlas (2008, p. 48), “a extração de látex sustentou o ciclo da borracha um século atrás e

ainda é uma das principais atividades econômicas do Acre”. 7 O tratado de Petrópolis representa uma das maiores vitórias diplomáticas do Brasil, visto que conseguiu

incorporar ao território nacional, sem deflagrar guerra, uma extensão de terra de quase 200.000 km², que

foi entregue a 60 mil seringueiros e suas famílias para que lá pudessem exercer as funções extrativas da

borracha.

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CARMELINO, Ana Cristina; SILVEIRA, Karine. O Acre não existe? Nas desnotícias, não. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 16, n. 3, p. 433-448, set./dez. 2016.

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Diante do exposto, considera-se a hipótese de que a história do Acre explica as

piadas e a identidade social bem-humorada que se constrói para o estado em textos que

circulam na Internet. Os dados mais relevantes parecem ser o fato de se localizar numa

região bastante isolada, ou seja, distante dos grandes centros urbanos ditos mais

importantes (como os da região Sudeste), não ter pontos turísticos para visitação e não

ser noticiado na grande mídia (rádio, TV, jornais). Isso reforça a construção da imagem

do Acre como um estado sem importância, esquecido e, por consequência, alvo de textos

que questionam a sua existência, apontando-o como inexistente.

Se, como dito no início deste texto, há motivos para se fazer piadas com algo ou

alguém, no caso em questão, as piadas sobre o Acre cumprem funções de extrema

relevância. Ao afirmarem insistentemente, e de diferentes formas, que o estado não existe

(o que não é verdade), os textos humorísticos buscam, pela simulação, não só reafirmar a

subsistência desse estado, mas também colocá-lo em evidência no cenário brasileiro,

fazendo com que ele seja lembrado, notado.

Desse modo, além de forjar, para expressar efeitos de verdade (já que a inexistência

do Acre é inventada para destacar uma possível verdade a seu respeito: o esquecimento),

outra função das piadas sobre o Acre é a denúncia à condição específica a que esse estado

parece estar submetido: a de anulado.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo, procurou-se evidenciar como o processo de referenciação feito por

expressões nominais referenciais e/ou referenciais e atributivas constrói determinada

identidade social para o estado do Acre, tornando-o motivo de piada. A esse respeito,

convém destacar que as escolhas lexicais que constituem tais expressões são

significativas para construir certas representações, independentemente de serem

verdadeiras ou não.

Além disso, destacou-se que as desnotícias são textos humorísticos que

recontextualizam dados de matérias jornalísticas existentes (e sérias). No caso em

questão, certas notícias foram transformadas em piadas sobre o Acre especialmente por

meio das expressões nominais, como é o caso dos exemplos “o Estado Perdido”, “Rio

Branco, a "suposta" capital do Acre”, “uma invenção do governo”. Pode-se dizer,

portanto, que tais formas constituem um recurso eficaz tanto na deflagração da identidade

social do Acre de ser um estado inexistente, quanto na produção de textos humorísticos.

Ainda tomando como base a análise das expressões que compõem o corpus deste

artigo, verificou-se que a identidade construída para o Acre é negativa, algo que tende a

rebaixá-lo e a anulá-lo como estado. Tal fato – a sua inexistência – pode ser justificado

pelas condições sócio-históricas da constituição do Acre como estado, que, como exposto

no decorrer deste estudo, mostram que ele tem pouco destaque na sociedade brasileira

(seja pela localização geográfica, seja por não possuir pontos turísticos), sendo assim

pouco noticiado e, portanto, sendo esquecido.

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CARMELINO, Ana Cristina; SILVEIRA, Karine. O Acre não existe? Nas desnotícias, não. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 16, n. 3, p. 433-448, set./dez. 2016.

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Recebido em: 12/03/16. Aprovado em: 21/08/16.

Título: Does not Acre exist? In unnews, it does not

Authors: Ana Cristina Carmelino; Karine Silveira

Abstract: In this study the main aim is to show how referential and/or referential and

attributive nominal expressions are able to build a social identity to Acre’s state. To do it,

unnews were analyzed. Unnews are humoristic texts posted in Desciclopedia site that parody

news from different media. The theoretical discussion is based on the concepts of social

identity and referential process, both formulated by Critical Discourse Analysis and Textual

Linguistics. The present study explains that the terms selection which composes nominal

expressions is responsible for producing different meaning effects. In our analysis the goal

of this type of text is to build humorous social identities, as long as the nominal expressions

doubt about Acre’s existence. In our point of view, this strategy shows that this state became

a reason for making jokes.

Keywords: Social identity. Referential process. Unnews. Humor. Acre.

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CARMELINO, Ana Cristina; SILVEIRA, Karine. O Acre não existe? Nas desnotícias, não. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 16, n. 3, p. 433-448, set./dez. 2016.

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Título: ¿Acre no existe? En desnoticias, no

Autoras: Ana Cristina Carmelino; Karine Silveira

Resumen: En este artículo, el objetivo es mostrar que la referencia hecha por expresiones

y/o referencias nominal y expresiones atributivas es capaz de construir cierta identidad

social para el estado de Acre. Para ello, se analizan desnoticias, el nombre dado a los textos

humorísticos publicados en el sitio Desciclopedia parodiando noticias escritas por los

medios reconocidos. La discusión teórica está anclada en especial en los conceptos de

identidad social y referenciación, hechos respectivamente por el Análisis Crítico del

Discurso y la Lingüística Textual. El estudio explica que la selección de los términos que

conforman las expresiones nominales es responsable por generar determinados efectos de

sentido. En este caso, buscamos construir la identidad social de manera humorística, ya que

esas formas ponen en duda existencia de Acre, tornando ese estado en hazmerreír.

Palabras-clave: Identidad social. Proceso referencial. Desnoticia. Humor. Acre.

Este texto está licenciado com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.

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DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1982-4017-160305-1416

A CONSTITUIÇÃO DA SUBJETIVIDADE

NO DISCURSO DO IDOSO SOBRE SI

Adélli Bortolon Bazza*

Universidade Estadual de Maringá

Departamento de Língua Portuguesa

Maringá, PR, Brasil

Resumo: Neste estudo, propôs-se analisar a subjetivação do idoso em contexto de ensino na

Universidade Aberta à Terceira Idade (UNATI) da Universidade Estadual de Maringá

(UEM). Enquanto alguns trabalhos abordam o discurso sobre o idoso, propõe-se analisar

as práticas que compõem um discurso do idoso sobre si. Embasada em uma perspectiva

discursiva, calcada no pensamento de Michel Foucault, objetivou-se descrever o processo

de subjetivação do estudante da UNATI-UEM, a partir da oposição sujeição-subjetivação.

A série enunciativa analisada foi composta de dez entrevistas semiestruturadas feitas com

estudantes da UNATI-UEM e de doze relatos produzidos por eles. A análise apontou que os

sujeitos participantes pesquisados estabelecem resistência ao ideal de novo idoso, na medida

em que adotam algumas das práticas que compõem essa subjetividade, enquanto rejeitam

outras.

Palavras-chave: Subjetividade. Idoso. Discurso.

1 INTRODUÇÃO

Neste artigo, propõe-se abordar a constituição da subjetividade de idoso atual, a

partir de um olhar discursivo. Dentre uma sociedade multifacetada e composta de

inúmeros sujeitos, sejam eles maioria ou minoria social, recorta-se para a discussão a

subjetividade do idoso, tendo em vista a representatividade que esse grupo vem ganhando

na sociedade.

Pesquisas constataram um aumento da população idosa em alguns países do mundo

– em geral, dos países mais desenvolvidos. No Brasil, dados dos censos 2008 e 20101

sugerem mudanças na população brasileira: aumenta a proporção de idosos em relação às

demais faixas etárias. Esse fenômeno foi chamado de envelhecimento da população e

pode ser creditado, entre outras coisas, ao desenvolvimento da medicina e de

farmacologia, que garantiram um aumento da expectativa de vida.

O crescimento da quantidade de idosos no país ocasionou um aumento de sua

representatividade, que desencadeou inúmeras ações sociais como: a revisão das regras

da Previdência Social, a homologação do Estatuto do Idoso, a implementação de

* Doutora em Letras (PLE/UEM). E-mail: adellibazza@hotmail.

1 Disponível em: <censo2010.ibge.gov.br/noticias-censo?view=noticia&id=3&idnoticia=1722&busca

=1&t=dados-preliminares-censo-2010-ja-revelam-mudancas-piramide-etaria-brasileira>. Acesso em: 6

mar. 2016.

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programas de atenção ao idoso e à sua saúde, entre outros. Além dessas mudanças, o

mercado de consumo passou a desenvolver publicidade específica para essa faixa etária,

colocando-a como foco de muitos produtos midiáticos. Diante de todas essas mudanças,

as pessoas com mais de sessenta anos se deparam com novas condições de vida, com

nova relevância social, com novas formas de viver a velhice e com uma intensa produção

discursiva a respeito de sua subjetividade.

Os discursos produzidos sobre os indivíduos pertencentes à chamada terceira idade

apresentam certa regularidade que dá visibilidade ao trabalho de (re)construção da

subjetividade desse grupo, que passa a receber o nome de “novo idoso”. Esse processo

discursivo opera uma espécie de classificação desse sujeito. Ao se descrever quem ele

supostamente é, apresentam-se as práticas que se espera que ele assuma para ocupar o

lugar de novo idoso na sociedade contemporânea. Diante dessa produção discursiva, cabe

às pessoas idosas empreenderam um trabalho de constituição de sua subjetividade.

A descrição da subjetividade assumida por idosos será tratada a partir de sequências

enunciativas produzidas por sujeitos idosos estudantes na Universidade Aberta à Terceira

Idade (UNATI) da Universidade Estadual de Maringá (UEM), a respeito da sua vivência

da terceira idade.

2 A CONSTRUÇÃO DO OBJETO “NOVO IDOSO”

Assim como Foucault se pergunta quem é o homem, num processo metonímico, é

possível indagar-se: quem é o idoso de hoje. A resposta a essa questão é bastante

complexa, pois pressupõe que se descreva a subjetividade de idoso assumida por pessoas

que vivem nessa faixa etária. Levando-se em conta que a subjetividade é o resultado

(ainda que movediço e sempre inacabado) de um processo de subjetivação, trata-se então,

de descrever a subjetivação vivida por esses sujeitos.

Esse processo se dá concomitantemente ao processo de objetivação, o que implica

considerar que a subjetividade de um novo idoso é construída a partir de uma dispersão

de enunciados atravessados por saberes de diversos campos. Essa discursividade pode

produzir diferentes subjetividades de idoso e oferecer posições diversas para os sujeitos,

a depender das relações estabelecidas social e discursivamente. As pessoas respondem a

esses agenciamentos quando assumem ou negam determinadas práticas.

Uma análise discursiva de orientação foucaultiana desenvolve-se pautada na

constituição de séries enunciativas e requer que se considere a descrição do enunciado e

de sua função no interior dos discursos. De acordo com Foucault (2008, p. 32), “um

enunciado é sempre um acontecimento que nem a língua e nem o sentido podem esgotar

inteiramente”. Isso ocorre porque ele não é uma unidade em si mesmo, mas um

cruzamento entre um domínio de estruturas e um jogo de memória, produzindo um efeito

de atualidade. Voss e Navarro (2013, p. 97) explicam que “Foucault, no método

arqueológico, está interessado no enunciado como acontecimento discursivo: índice

paradoxal de novidade e de repetição, na história”. Entre os acontecimentos mais recentes

em relação à velhice, pode-se destacar a emergência da subjetividade do novo idoso como

uma ruptura na história.

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Ponto crucial de uma análise arqueológica, a descrição de um enunciado ocorre a

partir da função enunciativa, que compreende as características: referencial, posição-

sujeito, campo associado e existência material. Para Foucault (2008, p.103), o enunciado

está ligado a um referencial, que “define as possibilidades de aparecimento e de

delimitação do que dá à frase seu sentido, à proposição seu valor de verdade. Dessa forma,

o referencial trata-se do objeto construído discursivamente”. O segundo elemento da

função enunciativa, posição-sujeito, corresponde a uma posição vazia que pode ser

ocupada por diferentes indivíduos. A análise discursiva procura, então, “determinar qual

é a posição que pode e deve ocupar todo indivíduo para ser seu sujeito.” (FOUCAULT,

2008, p. 108). Dessa forma, pressupõe-se sempre o devir que descentra o sujeito. Essa

concepção implica assumir, no caso dos idosos participantes, que o discurso produzido

por eles sobre si mesmos não é totalmente consciente, nem se origina totalmente neles.

Ao contrário, seu dizer e seu agir são fruto da imbricação de diversas práticas e de diversas

memórias, as quais muitas vezes eles desconhecem, mas assumem como suas.

O terceiro elemento da função enunciativa, campo associado, permite compreender

que a descrição dos saberes e a formação dos objetos não são tomadas como um dado a

ser encontrado, mas uma teia a ser descrita a partir das relações entre os enunciados.

Foucault (2008) afirma que o enunciado só existe dentro de um campo associativo com

outros enunciados, composto de elementos como: a) outras formulações onde o enunciado

se inscreve; b) conjunto das formulações a que o enunciado se refere; c) conjunto das

formulações que podem vir como consequência do enunciado; d) conjunto das

formulações cujo status é compartilhado. Essa série de formulações com as quais o

enunciado coexiste atesta sua historicidade, o que permite descrever o trabalho realizado

pela memória na sua constituição.

Sendo assim, a posição-sujeito de novo idoso é um lugar construído na função

enunciativa que tem o idoso como seu objeto de saber. O enunciado que descreve e

instaura o novo idoso, na mídia, por exemplo, está em relação com: a) enunciados sobre

saúde, longevidade, condições de vida etc.; b) outras formulações sobre como eram os

idosos de antes e como podem vir a ser os idosos do futuro; c) formulações que discutem

o ideal de novo idoso e a forma como ele está sendo vivido, questionam sua veracidade

e/ou aplicabilidade, d) outros assuntos que também são tratados em textos da mídia.

Como último elemento da função enunciativa, o enunciado tem uma existência

material. Ele precisa de uma superfície, um suporte, um lugar e uma data e, quando essa

materialidade se altera, o próprio enunciado também se modifica (FOUCAULT, 2008).

A análise do enunciado deve observá-lo no interior de uma série. Desse modo, a

descrição dos modos de relação entre enunciados indica, entre outras coisas, os princípios

das práticas que caracterizam um determinado discurso. Sendo assim, as práticas

discursivas formam saberes, os quais o método arqueológico permite rastrear. Conforme

Araújo (2008, p. 65), “a história dos saberes não deve remeter a algo externo a eles, a

algum referente [...]. Trata-se de um outro tipo de história, como já dissemos, pensada

para evidenciar a formação dos objetos em um discurso, o que extrapola a simples relação

entre dizer e mundo.”

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BAZZA, Adélli Bortolon. A constituição da subjetividade no discurso do idoso sobre si. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 16, n. 3, p. 449-464, set./dez. 2016.

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Nesse emaranhado da objetivação de saberes, foi possível transformar as pessoas

com mais de sessenta anos em um objeto de saber: o novo idoso. Ao ser tomado como

objeto de saber e de análise, o discurso sobre o novo idoso se organiza a partir de uma

função enunciativa que propõe um referencial: novas formas de viver a velhice; uma

posição-sujeito a ser ocupada por pessoas que possam adotar as práticas necessárias para

que a vida seja estendida. Isso se constrói em relação com outros enunciados em que se

trata do idoso, da expectativa de vida em diversos lugares e em diversos momentos

históricos, das formas de agir e de cuidar do corpo na velhice, entre outros; e também

articula superfícies em que isso se materializa, como textos da mídia, textos acadêmicos,

depoimentos etc.

Esse processo de objetivação do novo idoso produz inúmeras práticas às quais os

idosos devem se submeter para serem considerados novos idosos. Conforme Polla (2013)

levantou a partir de enunciados da mídia, o novo idoso é aquele que ocupa diversas

atividades, sejam elas de lazer, de estudos, sejam pessoais. Além disso, ele está conectado,

acessando e publicando informações on line, o que demonstra o quanto se atualizou e

adaptou aos avanços tecnológicos. Por fim, o novo idoso é um sujeito que quer envelhecer

sem perder características da juventude como a saúde e a beleza. Mas essa subjetividade

não é homogênea:

Convivem, na mídia atual, as duas objetivações e subjetivações de idoso: a “nova” e a

“velha”. Nesse sentido, destaca-se o fato de o Estatuto do Idoso objetivar, na maior parte de

seu texto, o “velho” idoso, devido ao fato de ser uma legislação protetiva, que visa a cuidar

daqueles idosos com saúde debilitada. Os meios de comunicação, ao contrário, marcam mais

a objetivação de “novo” idoso, isto é, aquele que trabalha, faz uso das tecnologias e procura

manter-se belo. (POLLA, 2013, p. 99)

Também a partir de uma série enunciativa composta por vídeos, fotos e outros

enunciados de mídia de textos de mídia, Navarro e Bazza (2012), descrevem as práticas

discursivas que contribuem para a subjetivação do novo idoso. Os autores (2012, p. 157)

partem de uma visada discursiva que considera que “o sujeito não corresponde a uma

individualidade no mundo, as suas enunciações manifestam a presença do exterior na

subjetividade. Esse mesmo exterior constitutivo atravessa o idoso, como sujeito no

mundo e como referencial das práticas discursivas.”

Navarro e Bazza (2012) priorizaram a descrição de discursos que operam na forma

de memória e delineiam práticas desejáveis para o novo idoso. A descrição das sequências

enunciativas de mídia recortadas apontou as seguintes práticas: a) injunção à saúde e ao

cuidar com o corpo; b) injunção ao convívio em grupos, em oposição à solidão e ao

convívio apenas com a família; c) injunção à jovialidade em oposição à imagem frágil e

de cabelos brancos; d) injunção ao consumo de produtos ou de lazer em oposição ao ato

de poupar; e, e) injunção à vivência da sexualidade em vez de sua neutralização.

Essas práticas também são descritas como constitutivas de um ideal de novo idoso

por Monteiro e Leite (2011), em análise de material publicitário. As autoras destacam que

a representação do corpo velho é construída a partir de um ideal de beleza, longevidade e

produtividade. Fatores que os sujeitos devem desenvolver em si para serem considerados

pertencentes a essa subjetividade. Esses estudos indiciam uma recorrência na forma de

objetivação do novo idoso que, por sua ampla circulação, se instaura na memória

discursiva e passa a funcionar como enunciado com o qual o sujeito precisa se haver para

elaborar seu processo de constituição do eu, ou seja, sua subjetivação.

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3 A SUBJETIVAÇÃO DOS INDIVÍDUOS COMO (NOVO) IDOSO

O processo discursivo de constituição de uma subjetividade se dá na imbricação

entre as relações de saber-poder, que formam seus objetos, e o processo de subjetivação,

que permite aos indivíduos se constituírem como sujeitos de discurso. No caso dos

sujeitos idosos, isso significa que o discurso do sujeito idoso sobre si se organiza a partir

de relações com as diversas objetivações que as pessoas da terceira idade sofreram. Dessa

forma, depois de retomadas as práticas que constituem o objeto de saber novo idoso,

inicia-se o levantamento do conceitual da subjetivação foucaultiana, para posterior

descrição da subjetivação no discurso do idoso.

Em relação à constituição do eu, no método foucaultiano, sujeito é considerado uma

categoria discursiva que não coincide com o sujeito empírico. Fruto do trabalho de

construção de saberes, agente e produto de uma rede de poderes, para Foucault (2004a,

p. 58),

as posições do sujeito se definem igualmente pela situação que lhe é possível ocupar em

relação aos diversos domínios ou grupos de objetos: ele é sujeito que questiona, segundo uma

certa grade de interrogações explícitas ou não, e que ouve, segundo um certo programa de

informação; é sujeito que observa, segundo um quadro de traços característicos, e que anota,

segundo um tipo descritivo.

Nesse sentido, os indivíduos existem empiricamente, mas se tornam sujeitos de um

discurso e de uma verdade na medida em que assumem um lugar discursivo. Para se

subjetivar pelo discurso de um novo idoso, é preciso que o indivíduo ocupe uma posição

no jogo discursivo que instituiu esse objeto, trabalhe com os saberes que foram

objetivados ora apropriando-se deles, ora resistindo a eles.

É por isso que o sujeito é também datado, conforme aponta Veyne (2011, p. 179):

“o sujeito não é soberano, mas filho de seu tempo; não é possível tornar-se qualquer

sujeito em qualquer época. Em compensação, é possível reagir contra os objetos e, graças

ao pensamento, tomar distância em relação a eles”. Assim, empírica e legalmente cada

participante da pesquisa realizada existe e é considerado idoso porque tem mais de 60

anos. Porém, eles se tornam sujeitos idosos na medida em que precisam lidar com aquilo

que se produz de verdade sobre os idosos, nos mais variados campos de saber, trabalham

sobre memórias, produzem devir e assumem um discurso sobre si mesmos. Esse processo

implica entrar na teia das relações de discurso, de práticas e, portanto, de poderes que

cercam e constituem a subjetividade do idoso atual.

Se os processos de objetivação constroem um objeto, como é o caso do novo idoso,

poder-se-ia acreditar que, ao se fazer uma descrição arqueológica sobre as formas como

esse sujeito é representado, demonstrar-se-ia a forma de subjetividade possível para o

idoso atual. O processo de constituição da subjetivação, contudo, não coincide com o de

objetivação, tendo em vista o que Foucault (1997) nomeou como possibilidade de

resistência às estratégias de sujeição.

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Nas sequências enunciativas analisadas na pesquisa, as pessoas são questionadas se

são novos idosos e como fazem para ser idosos atualmente. Para responder a isso, eles

dialogam com todo um conjunto do que se diz sobre idoso, para delimitar uma posição e

um modo de viver para si. As afirmações demonstram que a subjetividade de novo idoso

que circula na mídia não é plenamente assumida pelos sujeitos.

Diferentemente de uma tradição intelectual que compreendia o poder como algo

que se detém, para Foucault (2005a, p. 35) o poder se exerce; não é atributo de um grupo

específico. Não é algo externo ao sujeito do qual ele se apropria, ele circula e organiza as

práticas discursivas e, consequentemente, as subjetividades que elas agenciam. Dessa

forma, “o indivíduo é um efeito do poder e é, ao mesmo tempo, na mesma medida em

que é um efeito seu, seu intermediário: o poder transita pelo indivíduo que ele constituiu”.

No caso dos idosos, há um jogo de poderes que organiza as práticas e prescreve o que é

e como deve agir um idoso na contemporaneidade. Os indivíduos são atravessados por

esse poder ora assumindo práticas propostas, ora resistindo a elas.

A capacidade que o poder tem de apreender a todos no jogo de relações

estabelecidas não impede manifestações de resistência, o que acaba por estabelecer um

jogo de forças que se materializa nos enunciados e os individualiza. De acordo com

Foucault (1999, p. 10), “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os

sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos

queremos apoderar”. Enraizados nas relações sociais, o poder e a resistência a ele

classificam os indivíduos atribuindo-lhes uma subjetividade. Pode-se considerar que

todos os enunciados (midiáticos, legais, científicos) a respeito do idoso disputam espaço

na construção de uma verdade. As práticas de um campo de saber podem se opor às de

outro campo. Por exemplo: enquanto pesquisas biológicas tentam definir as

características fisiológicas da terceira idade, pesquisas da área de humanas relacionam

essa demarcação a questões psicológicas, sociais e econômicas além da fisiológica.

Acrescenta-se a isso o fato de que essa subjetividade de idoso é multifacetada, fruto de

embates e pode ser aceita, refutada totalmente ou em parte, ressignificada pelos

indivíduos com mais de 60 anos.

Nessa perspectiva, subjetivação e subjetividade não estão relacionadas a estados

psicológicos, experiências individuais e únicas. Ao contrário. Segundo Fischer (2012), o

termo “subjetividade”, segundo Foucault, refere-se ao “modo pelo qual o ‘sujeito faz a

experiência de si mesmo em um jogo de verdade no qual está em relação consigo

mesmo’”. Essa relação consigo se dá num jogo de práticas e técnicas por meio das quais

o sujeito faz uma experiência de si em um jogo de verdade.

Os modos de objetivação constroem saberes e subjetividades e transformam os

seres humanos em sujeitos de um discurso. Contudo, não se trata apenas de uma força

que se impõe sobre o sujeito, pois há que se considerar o trabalho dele sobre esses

discursos. Fischer (2012, p. 55), ao comentar a teoria foucaultiana, explica que

há dois sentidos para a palavra sujeito: sujeito submetido ao outro através do controle e da

dependência, e sujeito preso à sua própria identidade, através da consciência ou do

conhecimento de si. Em ambos os casos, essa palavra sugere uma forma de poder que subjuga

e assujeita.

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A visão de um sujeito que trabalha sobre si, paralelamente à concepção do sujeito

que é constituído pelas práticas discursivas, desenvolve-se principalmente a partir dos

trabalhos a respeito da estética da existência. Nessa perspectiva, Foucault (2003, p. 75)

postula que

no decurso de sua história, os homens jamais deixaram de construir a si mesmos, isto é, de

deslocar sua subjetividade, de constituir para si uma série infinita e múltipla, de

subjetividades diferentes e que jamais terão fim e jamais nos colocarão diante de algo que

seria o homem.

Nos estudos sobre a estética da existência, as análises de Foucault (2005b)

perseguem a relação entre a verdade e o sujeito, a partir de uma visada genealógica, em

que, para refletir sobre essa questão do presente, analisa-se esse problema em outras

camadas históricas. Para tanto, o autor recua à questão dos prazeres sexuais e do cuidado

de si (epiméleia heautoû) na antiguidade greco-romana. O objetivo de tal recorte é o de

compreender como emerge e se constitui a subjetividade moral dos indivíduos a partir de

uma cultura de si.

Foucault procura a verdade sobre o sujeito a partir da articulação entre subjetividade

e verdade pelo viés histórico. Candiotto (2008, p. 88) aponta as questões que se originam

desse posicionamento:

que relação o sujeito estabelece consigo a partir de verdades que culturalmente lhe são

atribuídas? Tal interrogante parte do fato de que em qualquer cultura há enunciações sobre o

sujeito que, independentemente de seus valores de verdade, funcionam, são admitidas e

circulam como se fossem verdadeiras.

Esse encaminhamento possibilita saber quais são os efeitos de subjetivação a partir

da existência de discursos que pretendem dizer uma verdade para o sujeito. Assumindo

também essa perspectiva genealógica, o questionamento sobre o que o idoso atual faz de

si foi pensado a partir da forma como o aluno da UNATI se discursiviza em relação às

formas de sua objetivação.

Ao explicar a proposta foucaultiana de compreensão da subjetividade, Gros (2011,

p. 461) pontua que seria possível “um sujeito verdadeiro, não mais no sentido de uma

sujeição, mas de uma subjetivação”. As técnicas de si seriam formas de o indivíduo

tornar-se sujeito e objeto para si próprio e resistir às técnicas de dominação (poder) e às

técnicas discursivas (saber). O autor (2011, p. 475) explica que “o indivíduo-sujeito

emerge tão-somente no cruzamento entre uma técnica de dominação e uma técnica de si.

Ele é a dobra dos processos de subjetivação sobre os procedimentos de sujeição, segundo

duplicações, ao sabor da história, que mais ou menos se recobrem.”

Por outro lado, esses processos contemplam um trabalho do sujeito que reelabora

essas práticas de sujeição e abrem, portanto, um espaço de liberdade. Essa visada abre

caminhos para o estudo das subjetividades contemporâneas: uma das vias para

compreender os processos de subjetivação é analisar, paralelamente às relações de

sujeição, o trabalho cotidiano, ordinário do discurso. Em relação ao idoso atual, significa

que discursos políticos, midiáticos e de demais esferas institucionalizadas objetivam

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quem é o idoso hoje. Essa objetivação construiu uma imagem, recorrentemente

denominada novo idoso, composta não só pela forma como o sujeito é visto, mas pelas

práticas que o indivíduo deve adotar para ser daquela forma. Ao mesmo tempo em que

ocorre esse processo de sujeição, há um microprocesso (e também um micropoder) em

ação, por meio do qual as pessoas ditas idosas atuam cuidando de si mesmas em prol de

uma vida mais prazerosa. Isso implica assumir ou rejeitar as práticas apresentadas como

típicas do novo idoso, conforme suas necessidades e possibilidades. Trata-se, portanto,

da subjetivação. Cabe, então, questionar qual seria o estatuto da velhice hoje e qual

estatuto pode vir a emergir a partir das práticas atuais, com todos os jogos de saberes e

poderes que o compõem.

4 A SUBJETIVAÇÃO DO IDOSO ESTUDANTE DA UNATI-UEM

As sequências enunciativas que serão analisadas neste trabalho fazem parte de uma

série enunciativa maior que foi composta para nossa pesquisa de doutoramento. Para

tratar de questões de subjetivação do idoso atual, foram considerados os sujeitos em

situação de estudos na UNATI-UEM, que é um projeto que visa a oferecer ensino não

formal a idosos. Constituído como um órgão da universidade, a UNATI oferece cursos,

ministrados por professores da instituição, voltados aos interesses dessa faixa etária. Não

se trata de uma graduação da qual o aluno recebe um diploma, mas de cursos

independentes dos quais os estudantes recebem um certificado.

A construção da série enunciativa contemplou produções de dois gêneros

diferentes: relatos e entrevistas, ambos tratando das formas de esses sujeitos viverem a

terceira idade. Para a produção do relato, os alunos tiveram aulas sobre esse gênero e, em

seguida, foi-lhes solicitado que escrevessem um relato contando sobre sua rotina e sua

experiência de vida no atual momento. Para a produção das entrevistas, foram feitas

questões sobre sua rotina de vida, opinião dos entrevistados sobre o novo idoso e sobre a

UNATI2.

Uma das perguntas questionava se eles se consideram novos idosos e por quê. Entre

as práticas em que os idosos se reconhecem como “novo idoso”, destaca-se a questão do

humor. Em enunciados como:

S4 – “Eu sou muito divertida. Gosto de diversão” ou “Eu ando de bicicleta com os netos”

S9 – “Eu sou muito divertida”.

Esses sujeitos atribuem a si a subjetividade de novos idosos por acreditarem ser

bem-humorados. Isso demonstra que o bom humor figura como uma das práticas que

supostamente compõe o discurso sobre o novo idoso, e faz parte do discurso que eles

assumiram sobre si mesmos.

2 Quando transcritos trechos de relatos, eles são introduzidos pela letra R. Nas sequências retiradas das

entrevistas, as falas da pesquisadora são identificadas pela letra E e as respostas dos idosos introduzidas

pela letra S. Para preservar a identidade dos participantes, em vez de seus nomes, são apresentados números

que identificam cada informante.

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A ideia da diversão retoma uma memória historicamente associada a representações

de idosos: o sujeito cordial e o ranzinza. Ser divertido está no campo da cordialidade,

porém desloca o seu sentido, pois a cordialidade muitas vezes tinha relação com a figura

maternal/paternal que avós assumiam. Ser divertido, contudo, desloca o campo da

condescendência, tendo em vista que implica as relações não só com familiares, mas com

as pessoas encontradas em novos lugares de interação. Enquanto a cordialidade relaciona-

se a uma posição fruto da maturidade, ser divertido parece estar associado à jovialidade,

o que poderia ser indício das práticas descritas como juvenilização dos idosos (cf.

COUTO; MEYER, 2011).

As características e as atitudes pressupostas para os idosos mudam ao longo do

tempo, prova de que são construídas historicamente. Ao assumir essa característica como

componente de sua subjetividade, esse indivíduo constrói-se como sujeito histórico

dessas práticas. Ao mesmo tempo em que se volta para si para se constituir, suas escolhas

e seu trabalho sobre si mesmo suportam e apontam uma densidade histórica.

Outro aspecto em que a imagem que o sujeito tem de si e a imagem de um novo

idoso coincidem é a necessidade de atividade, seja ela social, física ou psíquica. Esse

discurso se materializa em afirmações como

S4 – [...] hoje em dia eu sou muito elétrica, então eu não tenho pensamento ruim. Eu falo:

“Vou em tal lugar” e eu vou.

S10 – Acho [que sou uma nova idosa], eu acho. Eu acho que o idoso de uns anos atrás não

fazia o que a gente faz hoje.

A atividade figura como um dos elementos que compõem, no imaginário social, a

subjetividade de novo idoso. Ocorre, contudo, uma particularidade em relação à

percepção das atividades: em comparação às possibilidades de atividades de que

dispunham os idosos da geração anterior, por exemplo, esses sujeitos consideram-se mais

ativos em função das possibilidades de que dipõem:

E – Se eu te perguntasse se você acha que você é uma nova idosa, você acha?

S8 – Sim, pela oportunidade que eu estou tendo agora.

Afirmações como essa indicam uma percepção de que a nova forma de viver tem a

ver com mudança nas condições concretas de sua existência, o que reforça as teorias que

compreendem a terceira idade atual como experiência de uma geração específica (cf.

SILVA, 2008). Essa percepção da mudança é indício de como a memória atua na

construção dos sentidos. O enunciado em que se afirma que o novo idoso é ativo é

povoado por outros enunciados que o margeiam. Fazem parte do campo associado desse

enunciado outros enunciados que, antes, afirmavam a necessidade do repouso e da

reclusão. A ruptura nesse enunciado coloca o idoso atual em outra posição de sujeito:

permite-lhe ocupar outros espaços, ao mesmo tempo em que lhe impõe isso. Levar uma

vida ativa é uma prática que se materializa também nos relatos:

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R3 – Minha vida atual não trouxe grandes mudanças, visto que estou com 61 anos, e continuo

na ativa [...].

R8 – Estou com 72 anos, mas continuo dinâmica como nos tempos da minha mocidade.

R5 – […]eu levo a vida normal como-se não fosse idoso.

A noção de atividade sofre um acúmulo, na medida em que é relacionada à distinção

entre normal/anormal. São os saberes, disseminados pela sociedade e assumidos como

verdade, que vão construir a ideia de que somente na juventude se tem as condições de

mobilidade, saúde, etc. que possibilitam ser ativo.

Nesse caso, porém, opera-se uma ruptura na percepção da atividade: ela não é mais

vista como uma forma de ser idoso diferente de seus antepassados, mas uma maneira de

estender as atividades de sua vida adulta. A atividade implica uma noção de continuidade

da fase adulta. Como uma fase de entremeio, o processo de subjetivação da pessoa da

terceira idade manifesta-se constituído na tensão desse pêndulo que ora aponta para a fase

adulta, ora aponta para a velhice. Ser idoso hoje é estar na contradição entre esses dois

papéis que, historicamente são mais demarcados. Mas ao afirmar ser normal por manter-

se ativo, esse sujeito indica uma posição-sujeito que foi construída no discurso

contemporâneo e que ele assumiu para si.

Também se observa a subjetivação como novo idoso a partir de um processo de

degeneração mais lento.

S10 – “Um homem, quando ele chegava aos sessenta anos era um velho acabado. Hoje não,

aos oitenta está inteiro”.

Esse alongamento da juventude parece ser assumido também pelos entrevistados.

Alguns deles chegam até a elencar motivos para que hoje eles demorem mais para

envelhecer:

S5 – Antigamente as pessoas achavam que com cinquenta anos já era velho, considerada

velha. E eu acho que a mulher não se impunha. Essas ginásticas, os cosméticos, o cuidado

com a pele... Eu acho melhora a autoestima da mulher e ela está mais valorizada também.

A prática de manutenção da juventude é assumida pelos idosos tanto em relação a

aspectos físicos quanto psíquicos. Tal prática está amparada em um investimento de poder

que estuda, esquadrinha e governa o corpo. Isso possibilitou a disseminação das

ginásticas, dos cosméticos, citados pela idosa, e de outros cuidados que ciências como a

medicina, a fisioterapia, a psicologia, entre outras, prescrevem para conservar o corpo do

idoso como jovem, ou ao menos retardar sua constituição em um corpo velho. Na

sequência enunciativa:

S7 – Eu sou [novo idoso], eu tenho idade, mas eu não sou velho. Minha cabeça não é cabeça

de velho. [...] Então, mas eu não tenho cabeça de velho. E, me adaptar às coisa de hoje, eu

sou fácil de adaptar”,

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há indícios de que a idade cronológica não coincide com a imagem que o sujeito

faz de si e uma das coisas que garante isso é a sua capacidade de adaptação, característica

atribuída ao novo idoso e à qual ele se associa.

A possibilidade de estudar é um dos fatores que fazem com que os idosos na UNATI

se identifiquem com essa subjetividade. Diante do questionamento sobre se considerar

um novo idoso, algumas respostas positivas têm relação com o fato de estudar nesse

momento da vida:

S8 – Sim, pela oportunidade que eu estou tendo agora.

S5 – “Eu acho que a gente investiu. A gente foi investindo, estudando mais.”,

R4 – Bem, agora posso fazer tudo o que mais gosto, e também a oportunidade de novas

amizades. Aí descobri essa beleza da UNATI que dá a oportunidade de realizarmos um sonho

do passado. Frequentarmos uma universidade.

Atuando como um dispositivo de saber-poder, a UNATI faz falar e faz viver a partir

de uma nova posição-sujeito, segundo a qual estudar configura-se como uma resposta à

injunção por atualização, por atividade e por relações sociais:

R3 – O que me levou a concorrer a uma vaga na UNATI, foi justamente para ver provar da

minha idade ou mais velhos que eu tentando sair da sua rotina, manter a mente aberta,

aprender o que não teve oportunidade de aprender antes, por faltar tempo ou mesmo

oportunidade.

Nesse sentido, frequentar a UNATI representa uma nova forma de ser. É uma

maneira de se manter ativo e fazer amizade, como consequência do alongamento da fase

adulta. As práticas comuns ao novo idoso emergem, portanto, em uma teia de condições

sociais e históricas que possibilitaram uma nova forma de viver depois dos sessenta anos

e, ao mesmo tempo, impelem os indivíduos a assumir essa posição de sujeito.

Entre as práticas assumidas pelos idosos como características de novo idoso,

figuram ações relacionadas à tecnologia:

R1 – Depois almoço e vou ver o meu facebook. Jogo paciência [...] Estas são as atividades

do meu dia-a-dia. Também faço crochê, tricô e bordado com agulha mágica e agulha russa.

R10 – Comprei um computador gosto muito de jogos, isso me distrai bastante.

A prática considerada nova divide espaço com práticas tradicionalmente atribuídas

a essa faixa etária. Ações como conversar e saber notícias de amigos e parentes assim

como jogar para passar o tempo são mantidas no cotidiano dessas pessoas, porém, agora,

mediadas por um novo suporte: o computador. Conforme afirma Foucault (1999, p, 26),

“o novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta”. Nesse caso, o novo

está na volta ou na permanência de um conjunto de ações e nele mesmo apresenta-se a

ruptura, por meio da qual o sujeito incorpora, em seu dia a dia, inovações tecnológicas.

As considerações dos idosos sobre o que eles tinham de novo idoso trouxeram em

seu bojo também os elementos que compõem essa subjetividade na compreensão desses

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indivíduos. A regularidade de suas respostas apontou a formulação de um enunciado

segundo o qual “o idoso deve ser ativo”. Esse enunciado se sustenta em um regime de

verdade construído historicamente por saberes de diversos campos, entre eles a própria

gerontologia, que defende a tese da velhice ativa. Por ser embasada teoricamente também

na gerontologia, a UNATI funciona sob esse regime de verdade, pois é desenvolvida para

idosos ativos e incentiva os que lá estão a serem assim. Tal verdade também circula na

mídia, na medida em que são representadas predominantemente figuras idosas ativas em

novelas, propagandas, reportagens etc. Dessa forma, a mídia, a gerontologia e a própria

UNATI funcionam como dispositivos a partir dos quais são construídos saberes, relações

de poder e modos de viver aplicáveis ao novo idoso.

Esse regime é constituído a partir de práticas discursivas que estabelecem como

deve ser e/ou agir um novo idoso. As sequências enunciativas recortadas apontam para

três elementos sobre os quais essas práticas incidem: o conhecimento, os hábitos e as

crenças. Em relação ao conhecimento, a prática que constitui o novo idoso é materializada

pelo verbo ‘estudar’. Tal ação é assumida pelos sujeitos entrevistados, visto que todos

eles frequentam a UNATI. Em relação aos hábitos considerados do novo idoso e

assumidos por esses sujeitos, observa-se a adaptação ao uso da tecnologia. Faz parte,

portanto, da rotina de ser ativo a prática de estar atualizado sobre as estratégias modernas,

materializado pelas expressões: computador e elementos do mundo virtual, como

facebook. As crenças, contudo, funcionam como o lugar em que se opera a resistência e

o sujeito não se reconhece como um novo idoso.

Há momentos em que os entrevistados não se consideram novos idosos, ou seja,

não percebem semelhança entre a sua forma de viver a terceira idade e as injunções

descritas como próprias ao novo idoso. Uma delas é o imperativo da adaptação às

novidades quando relacionada a crenças. A afirmação:

S1 – “Olha, tem muita coisa que continua tudo velho, viu? Algumas coisas... Mas eu me

considero uma pessoa que aceita muito as mudanças”

aponta um distanciamento das práticas de novo idoso em prol de algumas questões

em que o sujeito percebe não ter mudado e considera-se portanto um “velho idoso”. Essa

contradição entre o novo e o velho fica situada no fato de aceitar ou não as mudanças. No

decorrer desta entrevista, a idosa relata a aceitação das mudanças de seu corpo, em

contraposição a uma dificuldade em aceitar formas de viver o casamento (casamento

aberto e divórcio) e a sexualidade (homossexualidade) de maneiras diferentes da que lhe

foi ensinada e por ela adotada.

Essa compreensão de si mesma é um indício de que existe uma produção discursiva

que constrói uma subjetividade de novo idoso aceita como verdadeira, e para se

considerar nova idosa, essa mulher acredita ser necessário ter a mentalidade e investir em

práticas consideradas modernas e atuais. Estar aberto a mudanças faz parte do imaginário

sobre o que é ser novo idoso, atualmente. Na série enunciativa analisada, algumas dessas

mudanças são aceitas, como o uso da tecnologia e a maleabilidade para aceitar as

mudanças do corpo. Essa prática, contudo, não é adotada total e genericamente. Sobre as

questões consideradas novas, esses sujeitos projetam suas crenças, as regras de formação

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às quais estão acostumados por se submeterem a elas por longo tempo. Isso constitui um

crivo pelo qual passam as mudanças a serem aceitas e adotadas por esse idoso. Diante da

injunção para assumir as verdades deste momento, o sujeito se vê em uma relação de

tensão, posto que resiste a algumas práticas que constituem esse discurso construído.

Outro aspecto que justifica uma não coincidência entre o novo idoso e os idosos da

UNATI-UEM se refere às atividades de lazer. Estudos, reportagens e pesquisas (cf.

MORAES, 2011) demonstram a prática da dança em bailes como algo que caracteriza a

rotina dos idosos, porém esses sujeitos não as reconhecem como suas:

S3 – “Porque da mídia, eles mostram o novo idoso dançando. A gente sai e eu acho

engraçado, porque a turma da professora Terezinha, a gente estava comentando que ninguém

vai em baile, ninguém dança. Eles dizem “Nossa, esses velhos da televisão não têm nada a

ver com a gente.

Conforme a própria idosa explica, é comum ver reportagens que mostram o novo

idoso como um frequentador de bailes, contudo, entre os idosos estudantes da UNATI,

tal prática não se manifesta. Apesar de os bailes de idosos serem atividades promovidas

há bastante tempo para socialização, recentemente essa se transformou em uma atividade

que parece caracterizar as atividades sociais do novo idoso.

A instituição oferece um número reduzido de vagas – perto de 300 – e sempre há

fila de espera, por isso estar matriculado ali significa já pertencer a um grupo privilegiado.

Os idosos dali resistem a uma prática de interação social comum à maioria dos idosos em

prol de outras atividades. Enquanto entidades assistenciais promovem bailes e passeios,

a UNATI-UEM possibilita a interação mediada pelo contexto educacional, por meio de

aulas mais teóricas em que são utilizadas salas de aula; aulas mais práticas, como as de

informática, sapateado, canto, natação, etc.; e também por meio de grupos que treinam

esportes, como handebol. Os passeios propostos pela instituição são voltados à

participação em congressos ou são viagens de estudo, diferentemente de passeios que só

visam à recreação. Dessa forma, a subjetividade de novo idoso pode ser considerada fruto

do olhar do poder, via dispositivos como a mídia, a pesquisa científica e a própria UNATI.

Porém, sobre ela é lançado o olhar do sujeito que tensiona a densidade histórica que

compõe os modelos de que se serve e os seus anseios mais particulares.

Um dos fatores que distanciam as práticas dos sujeitos às do chamado novo idoso

é a questão financeira, considerando o custo que esta forma de viver acarreta. Ao ser

questionado se havia coisas do novo idoso com as quais não se identificava, o sujeito

respondeu:

S7 – Tem né, o poder aquisitivo. Às vezes eu tenho até vontade de dar um passeio, fazer uma

turnê pela Europa, mas eu não consegui ainda ir”.

Observa-se, porém, que apesar de afirmar não ter condições de viajar, o sujeito está

afetado por esse desejo e afirma já ter feito passeios e cruzeiro, na verdade, o que lhe falta

seriam passeios mais dispendiosos que aqueles que já fez. Dessa forma, apesar de afirmar

não se identificar com essa prática, já está afetado por ela.

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Nas práticas discursivas midiáticas há um tipo de idoso para o qual são endereçados

os discursos. A venda de viagens e cruzeiros, planos de saúde completos, financiamento

em bancos, tratamentos estéticos e de saúde, entre outros produtos, visam a um sujeito

que dispõe de recursos para custeá-los e de informação para buscá-los. Assumir tal

posição discursiva requer condições de existência bastante privilegiadas,

consequentemente, acessíveis a um grupo restrito. Por circular na mídia e atingir um

grande percentual das pessoas com mais de sessenta anos, muitos idosos se sentem

impelidos a entrar nessa ordem de discurso e assumir tal posição. Isso faz com que surjam

posições de sujeito como a do entrevistado: interpelado pela subjetividade ofertada e sem

as condições concretas para exercê-la. Contrariamente à ideia de uma identidade para os

idosos na História, trata-se de um exemplo da dispersão em meio à qual se constituem as

subjetividades idosas possíveis na atualidade.

Além de não se reconhecerem como novo idoso baseados em coisas que eles

acreditam não fazer, há momentos em que os sujeitos não se descrevem como novo idoso

por se identificarem com práticas de seus pais e avós, os supostos velhos idosos:

S3 – Comparando minha mãe e eu, eu acho que não tem muita diferença, na minha família,

os idosos já eram mais ativos, porque a minha mãe sempre viajou, meu pai gostava de viajar,

e gostava de festa.

A partir desse recorte, pode-se observar que, no percurso de cada sujeito,

identificar-se à classificação de novo idoso não depende somente de conhecer e assumir

as práticas descritas como próprias a ele, mas também de isso ter sido assumido

recentemente, como emblema da mudança. Se a prática já existia na vida da pessoa, o que

ocorre em seu discurso é um descrédito à existência dessa subjetividade:

S6 – Eu acho que não [sou um novo idoso], porque eu sei lá... A gente tem que ser aquilo

que o idoso é, né? Não adianta ter oitenta anos e querer ter sessenta.

E – O senhor acha que existe esse novo idoso?

S6 – Sei lá, acho que é muita propaganda.

O sujeito não se discursiviza como novo idoso. Por ter 84 anos no período da

entrevista, parece atribuir a subjetividade de novo idoso àqueles que estão mais próximos

dos 60. Parte de um domínio associado de memória, essa fala remete à teoria de que a

terceira idade seria uma fase entre a vida adulta e a velhice. Desse modo, em sua idade,

ele já faria parte da chamada velhice. O funcionamento do poder, com todos os

micropoderes que o constituem, estipula formas de vida, classifica, rotula. Com isso cria

imagens de subjetividades, como a do novo idoso, na qual o sujeito da pesquisa não se

reconhece.

Apesar de não se incluir na chamada terceira idade, opina sobre ela: parece

desconfiar da existência de um novo idoso tal como observa a mídia descrever. As

respostas dadas a essa questão podem ser consideradas indícios de que a compreensão do

que sejam as práticas do novo idoso não é homogênea, assim como a ocorrência dessas

práticas na rotina dos idosos é variável. Desse modo, não é possível fazer uma afirmação

categórica sobre a subjetivação dos idosos da UNATI como novos idosos assumidos ou

como pessoas que rejeitem tal caracterização. O que se verifica é um trabalho particular

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de construção da sua existência a partir do que lhe é oferecido em termos de condições

concretas de existência (biótipo, saúde, condições financeiras) atravessado pelas

condições discursivas peculiares a esses sujeitos.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para colocar em questão a subjetividade de idoso possível na atualidade, partiu-se

da concepção foucaultiana de que subjetivar-se é processo nunca acabado, que imbrica o

trabalho discursivo de objetivação dos saberes e o trabalho do sujeito de constituição do

eu, em meio a essa teia. Objetivação e subjetivação se dão atravessadas pela densidade

histórica dos saberes e pelas relações de poder que orientam as práticas discursivas.

As pessoas com mais de sessenta anos subjetivam-se como idosos na atualidade a

partir de uma consideração da produção discursiva que objetiva o chamado novo idoso.

Ser sujeito dessas práticas implicaria ser jovial, se atualizar e ser ativo profissionalmente,

intelectualmente, socialmente, sexualmente etc. Diante das coerções para assumir essa

posição-sujeito, as pessoas idosas exercem o seu micropoder no cotidiano ao

constituírem-se de modo a se colocar nesse dispositivo da terceira idade, mas resistir a

ele a partir de alguns deslocamentos.

Em relação à subjetividade assumida pelos idosos, observa-se um processo de

identificação a práticas como o exercício da jovialidade, a disposição para se atualizar e

aceitar as mudanças da sociedade e a tentativa de se manter ativo em diversas áreas. Em

contrapartida, há pontos de resistência: as crenças e a opção por determinadas atividades

de lazer são pontos em que os sujeitos deslizam e se constituem a partir de práticas

consideradas mais tradicionais. Configura-se, portanto, uma subjetividade de idoso atual,

considerando a investigação realizada, que materializa a contradição entre um novo idoso

– imposto pela contemporaneidade – que ele está se tornando e um velho idoso, que ele

ainda não deixou totalmente de ser.

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Acesso em: 15/03/2016.

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Recebido em: 28/03/16. Aprovado em: 22/09/16.

Title: The constitution of subjectivy in elderly discourse about himself/herself

Author: Adélli Bortolon Bazza

Abstract: In this study, it was proposed to analyze the subjectivation of the elderly in the

Universidade Aberta à Terceira Idade (UNATI), of the Universidade Estadual de Maringá

(UEM). While some papers approach the discourse about the elderly, here it is proposed to

analyze the practices that compose a discourse of the elderly about himself/herself. Based on

a discursive perspective and grounded on Michel Foucault’s thoughts, this study aims at

describing the process of subjectivation of the UNATI-UEM student, parting from the

subjection-subjectivation opposition. The enunciate series analyzed was comprised of ten

semi-structured interviews conducted with UNATI-UEM students and of twelve reports

produced by them. The analysis pointed that the researched subjects establish resistance to

the new elderly ideal, inasmuch as they adopt a few of the practices which compose this

subjectivity while rejecting others.

Keywords: Subjetictivity. Elderly. Discourse.

Título: La constitución de la subjetividad en el discurso del mayor sobre si mismo

Autor: Addéli Bortolon Bazza

Resumen: En esta investigación fue propuesto analizar la subjetivación del mayor en

contexto de enseñanza en la Universidade Aberta à Terceira Idade (UNATI), de la

Universidade Estadual de Maringá (UEM). Mientras algunos trabajos abordan el discurso

sobre el mayor, se propone analizar las prácticas que componen un discurso del mayor sobre

él mismo. Anclada en perspectiva discursiva en el pensamiento de Michel Foucault, fue

objetivado describir el proceso de subjetivación del estudiante da UNATI-UEM, desde la

oposición sujeción-subjetivación. La serie enunciativa analizada fue compuesta por diez

entrevistas semiestructuradas hechas con estudiantes de la UNATI-UEM y de doce relatos

producidos por ellos. El análisis apuntó que los sujetos participantes investigados establecen

resistencia al ideal de nuevo mayor, en la medida en que adoptan algunas de las prácticas

que componen esa subjetividad, mientras rechazan otras.

Palabras-clave: Subjetividad. Mayor. Discurso.

Este texto está licenciado com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.

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SOUZA, Marilena Inácio de. Dos discursos do papa Francisco à produção e circulação de pequenas frases: a construção do papa heterodoxo. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 16, n. 3, p. 465-487, set./dez. 2016.

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DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1982-4017-160306-2016

DOS DISCURSOS DO PAPA FRANCISCO

À PRODUÇÃO E CIRCULAÇÃO DE PEQUENAS FRASES:

A CONSTRUÇÃO DO PAPA HETERODOXO

Marilena Inácio de Souza*

Universidade do Estado de Mato Grosso/ CNPq

Faculdade de Letras, Ciências Sociais e Tecnológicas

Curso de Letras

Alto Araguaia, MT, Brasil

Resumo: O desenvolvimento recente de uma configuração midiática totalmente nova, que

associa diretamente a mídia impressa, o rádio, a televisão e a internet, permitiu aumentar

significativamente o destacamento e a circulação de pequenas frases. Na tentativa de

compreender o funcionamento linguístico e discursivo desse fenômeno, analisamos um

conjunto de enunciados extraídos dos discursos do papa Francisco e destacados na mídia.

A meta é verificar em que medida o trabalho hermenêutico do enunciador interfere na

interpretação do texto citado, fornecendo ao leitor uma espécie de percurso interpretativo.

Para isso, mobilizamos vários conceitos da Análise do Discurso francesa – especialmente

os conceitos de destacabilidade, sobreasseveração e aforização, desenvolvidos por

Maingueneau (2006; 2010; 2014). A análise empreendida autoriza a dizer que os enunciados

destacados potencializam a (re)produção e circulação de simulacros sobre o discurso do

papa. Tem-se, por consequência, a construção da imagem de um papa heterodoxo.

Palavras-chave: Destacamento midiático. Pequena frase. Efeito de sentido.

1 REFLEXÕES PRELIMINARES

A circulação de “pequenas frases” descoladas de seus contextos e co-textos

originais não é um fenômeno linguístico recente. Desde os tempos imemoriais, elas

circulam isoladamente de seus textos-fonte. No entanto, é certamente na

contemporaneidade, devido à imediatez com que os fatos são divulgados nas grandes

mídias, que elas têm proliferado intensamente. Basta olhar para os mais diversos suportes

midiáticos - jornal impresso, jornal online, rádio, televisão, internet, entre outros, para vê-

las se manifestando nas manchetes, títulos ou subtítulos de artigos e/ou reportagens.

Maingueneau (2006), ao estudar a presença desses enunciados na mídia francesa,

observa que é impossível determinar se eles são assim (“destacáveis”) porque os locutores

dos textos de origem os quiseram assim, ou se são os jornalistas que os dizem, dessa

forma, para legitimar o seu dizer.

* Doutora em Linguística – Universidade Federal de São Carlos. Professora da UNEMAT/CNPq. E-mail:

[email protected].

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De qualquer forma, pelo clássico jogo de antecipação das modalidades de recepção, os

produtores dos enunciados, que são profissionais da vida pública, têm tendência a fabricá-los

em função dos (re)empregos que deles serão feitos” (MAINGUENEAU, 2006, p. 80).

As "pequenas frases" atestam “a existência de rotinas que consistem em selecionar

e distinguir um fragmento de discurso, sem que as regras e as condições deste processo

sejam explicadas” (KRIEG-PLANQUE; OLLIVIER-YANIV, 2011, p. 18).

Na tentativa de compreender esse fenômeno, analisamos um conjunto de

enunciados extraídos das declarações do papa Francisco, desde o início de 2013 (quando

iniciou o seu pontificado) até os dias atuais, e postos em circulação na mídia. Não se trata

de um caso simples de citação, em que os enunciados destacados circulam em outros

textos, demarcados por uma sinalização de distanciamento, mas de um trabalho

hermenêutico do enunciador. A meta é verificar em que medida esse trabalho interfere na

interpretação do texto citado, fornecendo ao leitor uma espécie de percurso interpretativo.

À luz da Análise do Discurso francesa, especialmente dos conceitos de

destacabilidade, sobreasseveração e aforização, desenvolvidos por Dominique

Maingueneau (2006; 2010; 2014), buscamos, por um lado, descrever e analisar o

funcionamento linguístico e discursivo das “pequenas frases”, em estudo; por outro,

tornar pertinente a afirmação de que os procedimentos de destaque do discurso do outro,

sobretudo, os procedimentos de “destextualização” e de “sobreasseveração”

(MAINGUENEAU, 2014) potencializam a (re)produção e circulação de “simulacros”

sobre o discurso do pontífice, na esfera midiática, sobretudo, ao se tratar de temas

polêmicos para a Igreja Católica.

2 SOBRE A CONSTITUIÇÃO DO CORPUS E CRITÉRIOS DE SELEÇÃO:

UMA QUESTÃO PERTINENTE

A definição de um corpus de pesquisa supõe necessariamente um recorte, o que

deixa de fora, inevitavelmente, uma série de fenômenos. Neste estudo não é diferente: o

recorte é o resultado de uma construção teórica, isto é, um trabalho de pesquisa e

interpretação que exige, por definição, a exclusão de muitos elementos. Os enunciados

selecionados para análise são, assim, o resultado de recortes e exclusões que, por um lado,

põe em evidência o fenômeno das “pequenas frases”. Por outro, permite averiguar em que

medida esse fenômeno interfere na produção, circulação e interpretação dos

acontecimentos enunciativos.

Uma rápida busca no site do Google, por enunciados que teriam sido extraídos dos

discursos do papa Francisco, demonstrou que uma variedade muito grande deles circula

na mídia, desde sua primeira declaração, em março de 2013, até os dias atuais. Não é

novidade o fato de que, basicamente, tudo o que o pontífice fala se torna notícia. Em

consequência, um número muito grande de enunciados atribuídos ao papa ganha

notoriedade nas principais páginas de jornais, de revistas, de programas de informação

televisivos, entre outros. Daí a necessidade de estabelecer alguns critérios de seleção do

corpus.

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O primeiro deles diz respeito ao recorte temporal, compreendido entre os anos de

20013 a 2016. Nesse período, o pontífice fez muitas viagens, visitou vários países, rezou

muitas missas e, consequentemente, concedeu inúmeras entrevistas. Em seus discursos,

abordou os mais variados temas, desde os mais “ordinários” aos que, ainda hoje, são

considerados polêmicos para a Igreja, tais como: orientação sexual, aborto, pedofilia, taxa

de natalidade, métodos contraceptivos, divórcio, nulidade matrimonial, diálogo inter-

religioso, etc. Consequentemente, vários enunciados se desprenderam desses discursos e

passaram a frequentar outros textos. Interessamo-nos apenas por aqueles que se tornaram

objeto de comentários, sendo constantemente retomados e comentados na/pela mídia.

Trata-se da circulação de 10 enunciados, organizados na tabela, a seguir, a partir de uma

ordem cronológica de circulação:

Quadro 1 – Apresentação do corpus

Destacamentos midiáticos Declarações atribuídas ao papa Francisco

1- “O carnaval acabou!” diz papa Francisco, ao

recusar a capa usada por Bento 16;

(FOLHA Online, 16/03/2013)

“Não, obrigada monsenhor, você pode vesti-la. O

carnaval acabou.”

2- “Homossexuais não devem ser julgados ou

marginalizados”, diz papa (G1, 29/07/2013)

“Os gays não devem ser marginalizados, mas

integrados a sociedade. Se uma pessoa é gay, busca

Deus e tem boa vontade, quem sou eu para julgá-

los? O problema não é ter essa orientação.

Devemos ser irmãos. O problema é fazer lobby por

essa orientação, ou lobbies de pessoas invejosas,

lobbies políticos, lobbies maçônicos, tantos

lobbies. Esse é o pior problema."

3- “Não existe um Deus católico, mas um Deus”,

diz papa (ESTADÃO, 02/10/2013)

“Não existe um Deus católico, há um Deus.

Religião sem misticismo é apenas filosofia.”

4- “Não há fogo no inferno, Adão e Eva não são

reais”, diz o papa Francisco

(FOLHA BRASIL, 22/01/2014)

“A igreja já não acredita em um inferno literal,

onde as pessoas sofrem. Esta doutrina é

incompatível com o amor infinito de Deus. Deus

não é um juiz, mas um amigo e um amante da

humanidade. Deus nos procura não para condenar,

mas para abraçar. Como a história de Adão e Eva,

nós vemos o inferno como um artifício

literário. O inferno é só uma metáfora da alma

exilada (ou isolada), que, como todas as almas em

última análise, estão unidos no amor com DEUS.”

5- Papa diz que cachorros vão para o céu e cria

polêmica com teólogos (FOLHA Online,

12/12/2014);

“O paraíso está aberto a todas as criaturas.”

6- Católicos não devem procriar “como coelhos”,

diz papa

(VEJA, 19/01/2015);

“Algumas pessoas pensam- me desculpem a

expressão aqui- que para ser um bom

católicoprecisam ser como coelhos. Não.

Paternidade tem a ver com responsabilidade. Isto é

claro.”

7- Papa: Divorciados que voltam a se casar e

seguem fazendo parte da Igreja não devem ser

tratados como “excomungados” (CORREIO

BRASILIENSE, 05/08/2015)

“É necessária uma fraterna e atenta acolhida, no

amor e na verdade, em direção a estas pessoas que

efetivamente não estão excomungadas, como

alguns pensam: elas formam parte sempre da

Igreja."

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8- Papa pede que padres perdoem católicas que

praticaram aborto

(A TRIBUNA, 01/09/2015)

“Alguns vivem o drama do aborto com uma

consciência superficial, quase sem perceber o

gravíssimo mal que comporta um ato deste tipo.

Muitos outros, porém, inclusive vivem este

momento como uma derrota, consideram não ter

outro caminho por onde ir. O perdão de Deus não

pode ser negado a qualquer um que tenha se

arrependido.”

9- Igreja não pode ser “museu de memórias,” diz o

papa em Sínodo

(G1, 05/10/2015)

“A Igreja não deve ser um tacanho museu de

memórias, mas precisa ter a coragem de mudar, se

for isso o que Deus quiser.”

10- Papa Francisco diz que, diante de Zika,

contracepção é “um mal menor”

(EXTRA, 18/02/2016)

“O aborto não é um mal menor. É um crime. É

descartar um para salvar o outro. Mas evitar a

gravidez é. Paulo VI, em uma situação difícil, na

África, permitiu às religiosas o uso de

anticoncepcionais em casos de (iminente)

violência. Não confunda o mal de evitar a gravidez,

sozinho, com o aborto.”

Fonte: Autora

Os critérios de seleção e organização dos dados foram estabelecidos considerando

as práticas sociais e a forma como as “pequenas frases” são produzidas pelos jornalistas

e se manifestam na mídia. Assim, esperamos abordar o uso social das “pequenas frases”

e, consequentemente, ressaltar a maneira por meio da qual o sentido pode ser “forjado”

por certas opções linguístico-discursivas.

3 DOS DISCURSOS DO PAPA FRANCISCO AO DESTACAMENTO MIDIÁTICO:

EFEITOS DA SOBREASSEVERAÇÃO

Para descrever e analisar o funcionamento linguístico e discursivo dos enunciados

tomados como objeto, recorremos à noção de destacabilidade apresentada por

Maingueneau em sua obra Cenas da Enunciação (2006). Essa noção diz respeito a um

conjunto de propriedades de certas frases que as fazem ser destacadas e circular,

eventualmente, fora do texto de origem. Além das máximas, dos provérbios, dos slogans

e das divisas – enunciados que, segundo o autor, são por natureza destacados – uma série

de outros enunciados pode receber este estatuto, basta que, para isso, se apresentem como

enunciados “destacáveis”. Isto é, passíveis de serem destacados de um texto, graças à

posição em que se encontram, ao sentido de definição ou generalização que lhe pode ser

atribuído, à marca de uma operação metadiscursiva, à forma sintética e inusitada. Em

outros termos, trata-se

de enunciados curtos, cujos significante e significado são considerados no interior de uma

organização pregnante (pela prosódia, rimas internas, metáforas, antíteses...), o que explica

que sejam facilmente memorizados. Algumas dessas fórmulas circulam no interior de uma

comunidade mais ou menos restrita, outras são conhecidas por um grande número de

locutores espalhados em vários setores do espaço social. (MAINGUENEAU, 2006, p. 72)

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SOUZA, Marilena Inácio de. Dos discursos do papa Francisco à produção e circulação de pequenas frases: a construção do papa heterodoxo. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 16, n. 3, p. 465-487, set./dez. 2016.

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Eles comportam ainda duas características que, a princípio, se apresentam como

paradoxais: “são percebidos como inéditos; são percebidos como imemoriais.”

(MAINGUENEAU, 2006, p. 74).

A destacabilidade abre a possibilidade de uma “destextualização”, de uma saída do

texto, e, assim, entra em tensão com a dinâmica da textualização, isto é, caminha na

direção oposta à de integrar os constituintes do texto em uma unidade orgânica. Não se

trata de uma citação, mas de uma enfatização em relação ao entorno textual, de uma

operação que Maingueneau (2006) chama de sobreasseveração. Ou seja, ao

sobreasseverar um determinado enunciado, o enunciador não realiza uma citação, mas

apenas uma operação de destaque do trecho em relação ao restante dos enunciados que

constituem o tecido textual, por meio de marcadores diversos: de ordem aspectual

(genericidade), tipográfica (posição de destaque dentro de uma unidade textual),

prosódica (insistência), sintática (construção de uma forma pregnante), semântica

(recurso aos tropos), lexical (utilização de conectores de reformulação).

Por definição, sobreasseverar é antecipar um destacamento. Dessa forma, a

sobreasseveração se aplica a todas as situações em que uma sequência breve se sobressai

em um texto. Geralmente, as sequências sobreasseveradas já se encontram em posição de

destaque no texto, possuem um caráter generalizante; são uma tomada de posição no

campo discursivo e implicam amplificação da figura do enunciador. A imprensa escrita

explora a sobreasseveração de diversas formas. A mais clássica delas, segundo

Maingueneau (2006), aparece geralmente na forma de “pequenas frases”, colocadas em

destaque nos títulos e subtítulos de manchetes e/ou reportagens, como as apresentadas na

tabela de elucidação do corpus e retomadas, neste tópico, para efeito de análise.

Os enunciados sobreasseverados na imprensa não se constituem sempre da mesma

forma. Dois tipos de destacamento, segundo Maingueneau (2006), são responsáveis por

sua produção e circulação: o “destacamento fraco”, em que o enunciado destacado

permanece vizinho do texto de origem, sem, no entanto, implicar uma total fidelidade; e

o “destacamento forte”, em que o enunciado destacado rompe com o texto de origem.

Nos dois casos, a sobreasseveração implica uma figura de enunciador que não apenas diz,

mas que mostra o que diz e presume-se que o que ele diz condensa uma mensagem forte,

induz a uma tomada de posição.

Assim, a sobreasseveração produz um efeito de evidência no enunciado: por um

lado, apresenta-se como sendo algo incontestável e, por outro, orienta o leitor para a

construção de novos sentidos. No caso em estudo, conforme demonstra a análise a seguir,

essa orientação caminha no sentido de construir, para o pontífice, a imagem de um papa

inovador e heterodoxo. No entanto, a sobreasseveração desresponsabiliza o jornalista

dessa orientação. A responsabilidade dos enunciados destacados recai sempre sobre o

sobreasseverador.

O sobreasseverador é alguém que se sobrepõe, que mostra o ethos de homem autorizado, sob

a influência de uma “Origem transcendente”, que estabelece valores, para além das interações

e das argumentações. O apagamento da relação com o co-texto acompanha um reforço do

engajamento ilocutório. (MAINGUENEAU, 2006, p. 89)

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O sobreasseverador é mais o efeito da sobreasseveração, o correlato do enunciado,

do que sua fonte. Isso implica dizer que os locutores-origem se encontram, dessa forma,

na posição de sobreasseveradores de enunciados que nem sempre foram formulados como

tais nos textos. Produz-se um desacordo essencial entre o locutor efetivo e esse mesmo

locutor considerado como sobreasseverador de um enunciado que foi destacado pela

mídia. No entanto, a sobreasseveração legitima o enunciado destacado, pela evocação da

autoridade do discurso de outro, nesse caso, o discurso do papa Francisco

O excerto a seguir, publicado no jornal da Folha online, em 16 de março de 2013,

é um bom exemplo do que Maingueneau (2006) chama de “destacamento forte”:

Figura 1 – Reportagem 1

Fonte: Site <www.folha.uol.com.br>, em 16/03/2013.

Ao comparar o enunciado destacado no topo do jornal à enunciação original,

observamos que não é exatamente a frase proferida pelo papa Francisco que o enunciador

destaca. Segundo o jornalista, o pontífice disse: “O carnaval acabou”, ao recusar a capa

usada por Bento 16. Por sua vez, o pontífice teria dito: “Não, obrigada monsenhor, você

pode vesti-la. O carnaval acabou.” Desse fragmento, o jornalista destaca apenas alguns

elementos linguísticos, colocando-os em evidência no título da reportagem. Dentre as

frases inscritas no co-texto original, destextualiza-se um único enunciado, que é colocado

em posição de relevo em relação ao restante do texto. A declaração do pontífice é

modalizada pelo jornalista, passando simplesmente ao enunciado “O carnaval acabou.”

E esse enunciado passa a significar metonimicamente o acontecimento enunciativo em

destaque.

Para compreender a singularidade desse acontecimento, é necessário retomar as

condições de produção em que a frase atribuída ao Papa Francisco teria sido pronunciada.

Segundo o site italiano Mesa in Latino, antes da aparição pública para os fiéis, após sua

eleição, o sumo pontífice dirigiu-se à sacristia, na qual o cerimoniário papal, Monsenhor

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Guido Marini, havia preparado os hábitos pontificais, desde sempre utilizados pelos

papas. Diante das vestes, o papa teria dito ao cerimoniário: “Não, obrigado monsenhor,

você pode vesti-la. O carnaval acabou.” Posteriormente, então, o papa, recém-eleito,

apareceu ao público apenas com a batina branca, com seu crucifixo de aço (sem substituí-

lo pelo de ouro) e sem a tradicional capa vermelha, chamada de mozzeta.

O enunciado destacado “O carnaval acabou” (re)ssignifica esse acontecimento.

Não se trata somente de divulgar o acontecimento que marcou a primeira aparição do

sumo pontífice, com destaque para as suas vestes pontificais, mas, sobretudo, de atualizá-

lo, levando o leitor à interpretação de que, no pontificado do papa Francisco, os

paramentos litúrgicos serão marcados pela simplicidade, sem excessos ou extravagâncias.

O conteúdo do enunciado em questão é, ao mesmo tempo, perfeitamente transparente e

profundamente opaco.

A opacidade do enunciado tem a ver tanto com a carga semântica do vocábulo

“carnaval” quanto com os discursos que sua enunciação recupera. De acordo com o

dicionário Aurélio, a palavra “carnaval” é um substantivo masculino, que indica o período

anual de festas profanas, originadas na Antiguidade e recuperadas pelo cristianismo.

Começa no dia de Reis e acaba na Quarta Feira de Cinzas, às vésperas da Quaresma. No

senso comum, o “carnaval” representa a maior festa popular brasileira, que se caracteriza

por suas extravagantes fantasias e adereços carnavalescos. Trata-se de uma festa que

promove desfiles luxuosos de escolas de samba e arrebata multidões para as ruas. Os

foliões extravasam suas emoções e suas paixões carnais, promovendo “comilanças”,

extravagancias, sensualidade, erotismo, exibicionismo e culto ao corpo. A Igreja,

comumente, usa essa palavra para se referir à “festa da carne”.

Dessa forma, o enunciado “O carnaval acabou” é profundamente opaco: sua

materialidade léxico-sintática (um substantivo simples na posição de sujeito, a marca

temporal do lexema verbal “acabou”, indicando o fim do “carnaval” (neste caso, uma

metáfora), a ausência de complementos) imerge esse enunciado em uma rede de relações

associativas implícitas – paráfrases, implicações, comentários, alusões, isto é, uma série

heterogênea de enunciados, funcionando sob diferentes registros discursivos, e com uma

estabilidade variável. Por se tratar de um enunciado metafórico, “O carnaval acabou”

implica múltiplas interpretações: Acabou o quê, como e por quê?

Cabe ao leitor recuperar e interpretar os “não ditos” e estabelecer relações que

justifiquem as escolhas linguístico-discursivas do enunciador. Uma possível interpretação

do enunciado destacado relaciona os supostos excessos litúrgicos dos antecessores do

papa às festas de carnaval, com suas luxuosas fantasias e alegorias características. Assim,

o referido enunciado atinge o núcleo do efeito buscado. Ou seja,

produz algo memorável, isto é, um enunciado digno de ser consagrado, antigo de direito,

novo de fato. É porque é digno de ser antigo que pode aspirar a um estatuto monumental. Tal

enunciado inaugura uma série ilimitada de retomadas, na medida em que se apresenta como

o eco de uma série ilimitada de retomadas. Esse tipo de enunciado visa, portanto, produzir,

na realidade, aquilo que não passa de uma pretensão enunciativa: apresentando-se como uma

sentença já pertencente a um saber compartilhado, ele prescreve, justamente, por isso mesmo,

sua retomada ilimitada. (MANGUENEAU, 2006, p.74-5).

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Na materialidade linguística de “O carnaval acabou”, encontram-se as marcas do

discurso “outro”, que fazem ressurgir o interdiscurso no espaço da memória

(COURTINE, 2009). Ou seja, o destacamento se constrói sobre discursos “já ditos”, e é

isso que faz com que ele se torne um enunciado memorável, isto é, “antigo de direito”,

“novo de fato”. Essa memória, por sua vez, tende a conjurar os acasos do discurso pela

reiteração do idêntico, pelo eterno retorno do mesmo (FOUCAULT, 2006). Ela privilegia

as formas discursivas da repetição (citação, recitação, comentário), e os mecanismos

linguísticos da ligação, do encaixamento e do destacamento, responsáveis, em boa

medida, pelos constantes destacamentos desse enunciado na mídia.

Caso semelhante de destacamento midiático pode ser visto no título da reportagem

“Homossexuais não devem ser julgados ou marginalizados”, publicado no G1, portal

de notícias da rede Globo, em 29 de julho de 2013:

Figura 2 – Reportagem 2

Fonte: Disponível em: <www.g1.globo.com.br>. Acesso em: 29 set. 2013.

Na entrevista concedida aos jornalistas, durante o voo do Rio de Janeiro a Roma,

após a Jornada Mundial da Juventude, em 29 de julho de 2013, ao ser questionado sobre

o seu posicionamento em relação aos homossexuais, o papa Francisco teria respondido:

“Os gays não devem ser marginalizados, mas integrados à sociedade. Se uma pessoa é

gay, busca Deus e tem boa vontade, quem sou eu para julgá-la?”.

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Após a entrevista, a declaração do papa foi convertida na “pequena frase”

“Homossexuais não devem ser julgados ou marginalizados” e destacada na mídia. O

enunciado destacado deixa claro que o jornalista não somente retirou de um texto maior

um “pequeno” enunciado, mas também realizou um trabalho interpretativo sobre o texto-

fonte. Por meio desse trabalho, o jornalista elimina modulações, reforça a autonomia e o

caráter lapidar do enunciado, convertendo-o em uma sequência sobreasseverada, que, por

sua vez, não apenas resume a declaração do pontífice, mas também a modifica: a

substituição do léxico, “gays” por “homossexuais”, a junção das palavras “julgados” e

“marginalizados”, numa mesma oração, bem como o apagamento da expressão “se uma

pessoa é gay, busca a Deus e tem boa vontade, quem sou eu para julgá-la?” são

responsáveis por essa modificação.

Para o pontífice, a orientação sexual não é um pecado, mas a sua prática sim. “O

problema não é ter essa orientação. O problema é fazer lobby por essa orientação, ou

lobbies de pessoas invejosas, lobbies políticos, lobbies maçônicos, tantos lobbies. Esse é

o pior problema". (FRANCISCO, 29/07/2013). No entanto, a menos que se faça uma

pesquisa, que não está ao alcance de todo mundo, ninguém vai voltar à entrevista em que

o papa falou sobre os homossexuais para constatar a autenticidade do enunciado

destacado. Do ponto de vista do consumidor das mídias, para os leitores, esse texto de

origem não existe.

Fora do texto-fonte, a “pequena frase” “Homossexuais não devem ser julgados

ou marginalizados” faz deslizar os sentidos. Ela dialoga com o discurso homofóbico

inscrito numa série de acontecimentos, que retratam a forma como os homossexuais,

desde sempre, são vistos na sociedade. Dizer que “os homossexuais não devem ser

julgados ou marginalizados” implica que há um julgamento sobre eles e a consequência

é, dentre outras, a marginalização. O enunciado em destaque dialoga com o discurso da

intolerância e do preconceito, ao mesmo tempo em que busca combatê-los.

Disperso na memória do dizer, o discurso homofóbico se deixa flagrar na

interdiscursividade constitutiva do destacamento midiático. O trabalho hermenêutico do

enunciador busca silenciar esse discurso, por meio da autoridade do discurso do papa. É

como se “discretamente”, o jornalista indicasse ao leitor que, para a Igreja, não há

nenhuma diferença de tratamento entre homossexuais e heterossexuais, mesmo se os

homossexuais não tiverem “boa vontade” e não “buscarem a Deus”. A interpretação do

enunciador caminha no sentido de construir, para o papa, uma imagem menos

conservadora, portanto, mais liberal. Há, nesse sentido, uma tentativa de aproximação da

Igreja aos homossexuais e aos simpatizantes, que, por receio de serem marginalizados,

não participam das celebrações eucarísticase de outras atividades eclesiásticas.

A autonomização do fragmento recortado frente ao texto de origem pode ir ainda

mais longe quando existe uma transformação do enunciado, ou, de um ou outro de seus

parâmetros enunciativos, quando ele passa a título e/ou subtítulo de artigo ou de

reportagem. É o caso do enunciado publicado pelo jornal online Folha Brasil, no dia 22

de janeiro de 2014: “Não há fogo no inferno, Adão e Eva não são reais”.

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Figura 3 – Artigo 1

Fonte: Disponível em: <www.folhabrasiloficial.com.br>. Acesso em: 29 jan. 2014.

O texto, que deu origem ao título, diz o seguinte:

A Igreja já não acredita em um inferno literal, onde as pessoas sofrem. Esta doutrina é

incompatível com o amor infinito de Deus. Deus não é um juiz, mas um amigo e um amante

da humanidade. Deus nos procura não para condenar, mas para abraçar. Como a história de

Adão e Eva, nós vemos o inferno como um artifício literário. O inferno é só uma metáfora

da alma exilada (ou isolada), que, como todas as almas em última análise, estão unidos no

amor com DEUS. (FRANCISCO, 22/01/2014)

Também aqui o destacamento “Não há fogo no inferno, Adão e Eva não são

reais” não corresponde ao texto original. Sequer encontramos essas duas frases, juntas,

numa mesma oração no texto original, conforme atesta o jornalista. No entanto, o referido

enunciado é atribuído ao papa, tanto por meio do verbo dizer quanto por meio das aspas.

Aliada ao verbo dizer, as aspas autenticam o enunciado destacado, fazendo-o passar por

legítimo. Produz-se, com isso, um movimento argumentativo, isto é, o discurso do papa

é transformado em uma única frase, generalizante, uma espécie de sentença autonomizada

que enuncia um “sentido completo”. Assim, o leitor não duvidará da autenticidade do

enunciado, mesmo que o pontífice jamais o tenha proferido.

A discursivização do enunciado “Não há fogo no inferno, Adão e Eva não são

reais” produz um deslocamento de sentido e engendra retroativamente uma série de

implícitos, ocasionando a desautorização de um sentido já formulado. O enunciado

destacado retoma a “enunciação original”, mas também instaura e sustenta sentidos que

intervêm e modificam o “já dito”. Nesse caso, a enunciação destacada cria uma nova

filiação de sentidos, (re)atualiza o discurso da Igreja e institui uma memória. Trata de

rememorar o discurso bíblico sobre a criação da humanidade, inserido no livro de

Gênesis:

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03: E ouviram a voz do Senhor Deus, que passeava no jardim pela virada do dia; e

esconderam-se Adão e sua mulher Eva da presença do Senhor Deus, entre as árvores do

jardim; 09: E chamou o Senhor Deus a Adão, e disse-lhe: Onde estás?” (BÍBLIA, Gênesis,

03, 08-09).

bem como o da punição dos pecados, no Evangelho segundo Lucas:

23: E no inferno ergueu os olhos, estando em tormentos, e viu ao longe Abrão, e Lázaro ao

seu lado; 24: E clamando disse: Pai Abrão, tem misericórdia de mim e manda a Lázaro que

molhe na água a ponto do seu dedo e me refresque a língua, porque estou atormentado nesta

chama. (BÍBLIA, Lucas, 16, 23-24).

Ao rememorar esses discursos, o enunciado “Não há fogo no inferno, Adão e Eva

não são reais” busca combatê-los, contrariando, dessa forma, a sabedoria popular cristã,

que comumente interpreta o livro do Gênesis em sua literalidade, e imagina o inferno

como um lugar propriamente dito, caracterizado por muito sofrimento e constantemente

tomado pelo fogo. Assim, a “pequena frase” sobreasseverada coloca o papa diante de uma

situação que contraria esse “senso comum”.

Se investigarmos no Catecismo da Igreja Católica (1992), em nenhum momento

são defendidas essas ideias populares sobre a literatura do Gênesis e o inferno como um

lugar. Ao contrário, quando aborda o tema da “Criação” (dos números 279 a 384), o

Catecismo utiliza genericamente os termos “homem” e “mulher”, ou até mesmo

“primeiro homem” (n. 374), “pessoa humana” (n. 362) ou “gênero humano” (n. 360),

designando assim uma humanidade genérica, não identificada com uma pessoa concreta

e particular. Já quanto ao inferno, o Catecismo o define como “estado de auto exclusão

definitiva da comunhão com Deus e com os bem-aventurados” (n. 1033). Nesse sentido,

o inferno não é um lugar, mas um “estado”. Portanto, as declarações do papa estão em

consonância com a doutrina da Igreja; porém, em desacordo com o imaginário popular.

O enunciado em questão retoma um discurso anterior, mas também aponta para um

novo discurso, um novo dizer, produzindo, portanto, a possibilidade do múltiplo e a

compreensão da incompletude do discurso que evoca. Isso é possível porque as palavras

são portadoras de memória: elas são, como disse Bakhtin (2004), “habitadas”

[temporariamente] pelos sentidos e pelos contextos que elas encontraram. O jornalista se

apropria desse caráter dialógico dos enunciados e o faz circular, produzindo o efeito de

que as ideias do senso comum são a doutrina da Igreja e de que, portanto, o papa Francisco

estaria contrariando os ensinamentos da Igreja; quando, na verdade, estava apenas

reproduzindo-os.

Para ilustrar, no nosso corpus, a presença do “destacamento fraco”, retomamos o

excerto publicado no jornal Folha Online, em12 de dezembro de 2014:

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Figura 4 – Artigo 2

Fonte: Disponível em: <www.folha.uol.com.br>. Acesso em: 12 dez. 2014.

Segundo o jornalista, ao tentar consolar uma criança que estava triste porque perdeu

seu cãozinho de estimação, o papa Francisco teria declarado em aparição pública na praça

de São Pedro, que “o paraíso está aberto a todas as criaturas do Senhor”. No entanto,

não foi novamente a declaração do papa que o jornal pôs em circulação. Há, no enunciado

destacado, uma transformação significativa tanto do ponto de vista da materialidade

linguística quanto da produção discursiva. Ou, dizendo de outro modo, os enunciados,

proferido pelo papa e o título do artigo que ilustra a página da Folha, não são os mesmo.

Enquanto no enunciado original há uma sentença generalizante marcada tanto pela

expressão “o paraíso está aberto” quanto pela expressão “todas as criaturas”, o

enunciado destacado é bastante específico, “papa diz que cachorros vão para o céu”.

Essa especificidade do enunciado não apenas altera o enunciado original, mas sugere para

o leitor um percurso interpretativo: apenas as almas vão para o céu, logo se os cães vão

para o céu é porque eles têm alma. O sentido do texto-fonte é significativamente

modificado. No entanto, a sequência sobreasseverada estabelece uma asserção que leva o

leitor a crer na veracidade e autenticidade do enunciado em questão.

Destacamento semelhante encontra-se no excerto do jornal A Tribuna, publicado

em 01 de setembro de 2015:

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Figura 5 – Reportagem 3

Fonte: Disponível em: <www.atribuna.com.br>. Acesso em: 1 set. 2015.

Se voltarmos à declaração original, verificaremos que há uma alteração de sentido

entre o texto da manchete “Papa pede que padres perdoem católicas que fizeram

aborto”, e o texto-fonte:

Alguns vivem o drama do aborto com uma consciência superficial, quase sem perceber o

gravíssimo mal que comporta um ato deste tipo. Muitos outros, porém, inclusive vivem este

momento como uma derrota, consideram não ter outro caminho por onde ir. (...). O perdão

de Deus não pode ser negado a qualquer um que tenha se arrependido1. (FRANCISCO,

01/09/2015)

Além da alteração lexical e sintática do enunciado, atribuindo aos padres e não a

Deus o poder do perdão, o apagamento da expressão “o perdão de Deus não pode ser

negado a qualquer um que tenha se arrependido”, na manchete, sugere que os padres

perdoem todas as mulheres que praticaram o aborto, mesmo as que não se arrependeram.

Não se trata apenas de informar, de destacar o acontecimento enunciativo, tampouco de

fazê-lo memorável, mas, sobretudo, de torná-lo legítimo e, consequentemente, de traçar

para o leitor um percurso interpretativo.

A sobreasseveração, conforme demonstramos, abre para a saída do enunciado

destacável do texto-fonte. Ou seja, abre para a destextualização de fragmentos de textos

que não foram formulados como tais, tornando-os, muitas vezes, autônomos frente ao

texto de origem. Os enunciados “O carnaval acabou!”; “Homossexuais não devem ser

1Carta do papa Francisco ao presidente do Conselho Pontifício para a nova Evangelização, durante o Ano

do Jubileu.

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julgados ou marginalizados”; “Não há fogo no inferno, Adão e Eva não são reais”,

são bons exemplos desse tipo de destacamento. Destacados pela mídia, eles se tornam

autônomos e passam a circular livremente em outros textos. Nesse caso, há uma mudança

de estatuto pragmático, isto é, os enunciados destacados deixam de ser um fragmento do

texto-fonte e passa a integrar um regime de enunciação específico, que Maingueneau

(2014) chama de aforização. A aforização reatualiza a citação, não se trata mais de

representar a voz do outro, mas sim de apresentar a “verdade” e/ou a “lei”, produzida

alhures a partir de uma Fonte Transcendental.

4 SOBRE A PRODUÇÃO DISCURSIVA DAS AFORIZAÇÕES DESTACADAS NA MÍDIA...

O conceito de aforização se aplica ao conjunto de enunciados, que Maingueneau

(2014) denomina “frases sem texto”. Ou seja, frases que não são precedidas ou seguidas

de outras frases com as quais estão ligadas por relações de coesão, de modo a formar uma

totalidade textual ligada a um “gênero de discurso”2. No entanto, a aforização não fica

totalmente sem contexto. A “contextualidade”, segundo o autor, difere segundo se trate

uma “aforização primária” (provérbios, slogans, máximas e divisas) e uma “aforização

secundária”, destacada de um texto. Esse é o caso das “pequenas frases” sobre as quais

nos debruçamos, neste estudo.

O não pertencimento a um texto fonte faz com que a “aforização primária” possa

ser inscrita em uma infinidade de textos. Seu sentido é uma espécie de instrução sobre as

condições de emprego: ele delimita a priori o tipo de contexto nos quais pode ser

empregado, mesmo que caiba ao locutor decidir se as condições para seu emprego estão

satisfeitas. Em contrapartida, a “aforização secundária” deve ser considerada em dois

contextos efetivos: um contexto-fonte e um contexto de recepção. A diferença entre os

dois alimenta os comentários, que põem em evidência as “deformações”, os “mal-

entendidos”, os “deslizamentos de sentido”, que o contexto de recepção os fará sofrer.

Vimos anteriormente que a “destextualização” e a “sobreasseveração” contribuem

para a saída do enunciado “destacável” do texto de origem, transformando-o, muitas

vezes, em aforização. Os enunciados “O carnaval acabou”, “Homossexuais não devem

ser julgados e marginalizados”, “Não há fogo no inferno, Adão e Eva não são reais”

são bons exemplos. O acesso de um fragmento de texto ao estatuto de aforização modifica

profundamente seu estatuto pragmático, e, portanto, sua interpretação. Em boa medida,

isso acontece porque a “recontextualização” ativa potencialidades semânticas

incontroláveis. Dentre as diversas perguntas que mereceriam ser feitas, uma é

especialmente necessária: quem é o autor das aforizações destacadas? Por um lado, seu

“conteúdo” parece coincidir com a declaração original; por outro, há uma alteração no

texto. Seu autor não é mais o pontífice, mas não se pode dizer simplesmente que seja o

jornalista, visto que a alteração é uma paráfrase.

No nosso entendimento, o autor passa a ser percebido como um aforizador,

(MAINGUENEAU, 2010), isto é, um locutor capaz de transitar de um lado para o outro

da diversidade infinita dos gêneros de discursos e dos textos. Ou seja,

2Maingueneau (2005) mobiliza este termo para atividades como registrar o nascimento, o debate televisivo,

o sermão, entre outros.

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O aforizador assume um ethos do locutor que está no alto, do indivíduo autorizado, em

contato com uma Fonte transcendental. Ele é considerado como aquele que enuncia sua

verdade, que prescinde da negociação, que exprime uma totalidade vivida: seja uma doutrina

ou uma certa concepção de existência. Por intermédio da aforização veremos coincidir sujeito

da enunciação e sujeito no sentido jurídico e moral: alguém que se coloca como responsável,

afirmando valores e princípios diante do mundo, se endereçando a uma comunidade para

além dos locutores empíricos que são seus destinatários. (MAINGUENEAU, 2010, p.14-15).

O aforizador não é o locutor, o suporte da enunciação, mas uma consequência do

destacamento. Não se trata apenas de uma instância enunciativa, mas de uma instância

“hiperenunciativa” em contato com uma Fonte Transcendental. Assim, quando se extrai

um fragmento de um texto para fazer dele uma aforização, um título de uma matéria na

imprensa, por exemplo, converte-se ipso facto seu locutor original em aforizador. A

aforização não se apresenta como um fragmento de texto, mas como um enunciado

autossuficiente, situado ao mesmo tempo “no” texto em que está inserido e “fora” de

qualquer texto.

Passamos a análise de mais um excerto: “Não existe um Deus católico, mas um

Deus”, publicado no jornal Brasil Estadão, em 02 de outubro de 2013:

Figura 6 – Reportagem 4

Fonte: Disponível em: < www.brasil.estadão.com.br >. Acesso em: 2 out. 2013.

Ao realizar o destacamento midiático acima, o enunciador não está dialogando nem

com o locutor da fala destacada nem com o destinatário (o leitor). Sua fala

monologalmente construída se inscreve como a fala autorizada, como se proviesse de uma

Fonte Transcendental. Em outros termos, ao destacar e modificar parte da declaração do

papa, o aforizador recorre a um Thesaurus, isto é, a um conjunto de saberes de

conhecimento público, para validar a sua enunciação. A extração do texto base não se dá

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SOUZA, Marilena Inácio de. Dos discursos do papa Francisco à produção e circulação de pequenas frases: a construção do papa heterodoxo. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 16, n. 3, p. 465-487, set./dez. 2016.

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por acaso, ela remete a um discurso “já dito”, que o enunciador julga ser de conhecimento

público. Nesse caso, o saber partilhado entre os cristãos é de que “Deus é católico”. A

aforização não só dialoga com esse saber, mas também o contesta, colocando em destaque

que, para o pontífice, portanto, para a Igreja, Deus não tem religião.

No momento em que o jornal Estadão Brasil insere monologalmente a aforização

“Não existe um Deus católico, mas um Deus”, atribuída ao papa Francisco, o leitor é

levado a atribuir a esse enunciado um sentido que extrapola o da enunciação original. As

possíveis interpretações produzidas pelos leitores não são da mesma ordem das que

acompanham os textos literários, filosóficos, ou religiosos, por exemplo. A interpretação

assume a equação: “Dizendo X, o locutor implica Y”, onde “Y” se constitui num

enunciado genérico de valor deôntico: Deus existe; Deus (não) tem uma religião; Deus

(não) é católico; etc.

A materialidade linguística do enunciado aparece atravessada por uma divisão

discursiva entre dois espaços:

o da manipulação de significações estabilizadas, normalizadas por uma higiene pedagógica

do pensamento, e o de transformações do sentido, escapando a qualquer norma estabelecida

a priori, de um trabalho de sentido sobre o sentido, tomados no relançar indefinido das

interpretações. (PÊCHEUX, 2006, p. 51)

Dessa forma, a aforização “Não existe um Deus católico, mas um Deus” coloca

necessariamente em jogo, através do advérbio de negação e do verbo “existir”, o

“discurso-outro” como espaço imaginário desse enunciado. Esse “discurso-outro” sugere

aos leitores os sentidos do enunciado.

Soma-se ao exemplo ilustrado, a aforização “Cristãos não devem procriar como

coelhos”, publicada no site da revista Veja, em 09 de janeiro de 2015:

Figura 7 – Reportagem 5

Fonte: Disponível em: <www.veja.abril.com.br>. Acesso em: 19 jan. 2015.

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Na matéria acima, a aforização faz alusão ao discurso bíblico, sobre o início da

humanidade: “Deus abençoou Noé e seus filhos. Sede fecundos, disse-lhe ele, multiplicai-

vos e enchei a terra”. (BÍBLIA, Gênesis, 09, 01), ao mesmo tempo em que o refuta.

Ao comparar os cristãos aos coelhos, a referida aforização coloca em questão o

crescimento “desenfreado” da população mundial. É como se discretamente o enunciador

indicasse ao leitor que o papa Francisco não concorda com o discurso bíblico que alicerça

a aforização. A enunciação original “algumas pessoas pensam - me desculpem a

expressão aqui - que para ser um bom católico precisam ser como coelhos. Não.

Paternidade tem a ver com responsabilidade. Isto é claro.” (FRANCISCO, 19/01/2015),

novamente é modulada, ou seja, sofre as coerções do trabalho hermenêutico do jornalista

que, ao noticiar referida declaração, não só busca chamar a atenção dos leitores para a

falta de planejamento familiar, mas também colabora no sentido de criar uma imagem

menos tradicional para o pontífice. Trata-se de sugerir uma mudança de posicionamento

na Igreja, que não vê com bons olhos o crescimento familiar sem planejamento. A

aforização (re)direciona os sentidos e, com isso, coloca o enunciador numa situação

discursiva bastante confortável, uma vez que o aporte ao aforizador o desresponsabiliza

por aquilo que diz.

Efeito de sentido semelhante pode ser encontrado no excerto publicado no G1,

portal de notícias da rede Globo, em 05 de outubro de 2005:

Figura 8 – Reportagem 6

Fonte: Disponível em: <www.g1.globo.com.br>. Acesso em: 5 out. 2015.

Ao voltarmos à enunciação original “A Igreja não deve ser um tacanho museu de

memórias, mas precisa ter a coragem de mudar, se for isso o que Deus quiser”,

(FRANCISCO, 02/10/2015), verificamos que o contexto de produção e de recepção da

aforização destacada não é o mesmo. A substituição lexical do verbo dever, na

formulação original, pelo verbo poder, na aforização destacada, bem como o apagamento

da expressão “mas precisa ter a coragem de mudar, se for isso o que Deus quiser”,

são, em grande medida, responsáveis por essa alteração de sentidos. Dizer que a “Igreja

não pode ser um museu de memórias”, não é o mesmo que dizer que a “Igreja não deve

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ser um tacanho museu de memórias”. Há aí uma mudança significativa de sentido:

enquanto na aforização destacada a Igreja não pode exercer a função de museu de

memórias, na enunciação original, do ponto de vista linguístico e discursivo, essa

proibição não existe. O pontífice apenas fala sobre uma possível mudança na Igreja,

levando em consideração a vontade de Deus. No entanto, a aforização destacada sugere

ao leitor a interpretação de que o papa não concorda com o conservadorismo da Igreja.

Para encerrar a análise, mobilizamos o excerto publicado no jornal Extra, no dia 18

de fevereiro de 2016:

Figura 9 – Artigo 3

Fonte: Disponível em: <www.extra.globo.com>. Acesso em: 18 fev. 2016.

Em declaração a bordo do avião que o conduziu do México à Itália, no dia 18 de

fevereiro, o papa Francisco, ao ser questionado sobre a possibilidade de mulheres,

angustiadas pela ameaça do Zika3, evitarem a gravidez, respondeu:

O aborto não é um mal menor. É um crime. É descartar um para salvar o outro. Mas evitar a

gravidez é. Paulo VI, em uma situação difícil, na África, permitiu às religiosas o uso de

anticoncepcionais em casos de (iminente) violência. Não confunda o mal de evitar a gravidez,

sozinho, com o aborto. Evitar a gravidez não é um mal absoluto, e, em certos casos, como no

que mencionei do Beato Paulo VI, era claro. (FRANCISCO, 18/02/2016)

3 O Zika é uma doença viral aguda, transmitida principalmente pelo mosquito Aedes aegypti. Os principais

sintomas são dor de cabeça, febre baixa, dores leves nas articulações, manchas vermelhas na pele, coceira

e vermelhidão nos olhos. Outros sintomas menos frequentes são inchaço no corpo, dor de garganta, tosse e

vômitos. No geral, a evolução da doença é benigna e os sintomas desaparecem espontaneamente após 3 a

7 dias. No entanto, a dor nas articulações pode persistir por aproximadamente um mês. Formas graves e

atípicas são raras, mas quando ocorrem podem, excepcionalmente, evoluir para óbito, como identificado

no mês de novembro de 2015, pela primeira vez na história. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2016).

<http://combateaedes.saude.gov.br/pt/tira-duvidas>. Acesso em 24 out. 2016.

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Após a declaração, a mídia colocou em circulação o enunciado “Papa Francisco

diz que, diante de Zika, contracepção é “um mal menor”. Um único elemento do

discurso do pontífice foi “destextualizado” e passou a integrar o título da matéria,

sugerindo que, diante de Zika, o papa Francisco abre uma exceção e libera o uso de

métodos contraceptivos. No enunciado original, o papa não diz que a contracepção é “um

mal menor”, mas enfatiza que, em casos extremos, como nos casos de violência sexual,

e/ou nos que coloquem em risco a saúde da mãe e/ou do bebê, “evitar a gravidez é”. Sem,

no entanto, mencionar a maneira de evitá-la. Ao falar sobre o uso de anticoncepcionais,

o pontífice lembra que, em outro momento da história, o papa Paulo VI concedeu

permissão às religiosas para usá-los, devido à iminência de violência sexual. Portanto, a

declaração de Francisco não é uma excepcionalidade na Igreja.

Mesmo não sendo excepcional, a referida declaração provocou muitos comentários,

tais como: “Papa Francisco admite o uso de contraceptivos contra o vírus da Zika4”; “Papa

fala de possibilidade de uso de contraceptivos por causa de Zika5”; Por causa de Zika e

microcefalia, papa abre exceção para uso de contraceptivos6”; “Para combater Zika, papa

admite uso de anticoncepcionais7”, entre outros. Foram tantos os comentários que o papa

Francisco voltou a falar sobre o assunto. Em suas novas declarações, tornou a enfatizar

que, em ocasiões extremas, o uso de métodos contraceptivos é uma prática aceitável.

Outro fator importante na produção de sentidos desse destacamento midiático diz

respeito ao fato de ele vir associado à fotografia do papa, que, por sua vez, não condiz

com o contexto original de produção da enunciação. Como mencionamos, o papa fez essa

declaração a bordo do avião, no entanto, a fotografia apresenta o papa em outra cena

enunciativa: o plano de fundo, as vestes e os objetos litúrgicos levam à interpretação de

que o papa a teria pronunciado na Igreja. Para nós, essa mudança de cena tem a ver com

as estratégias interpretativas desenhadas pelo enunciador no sentido de autenticar a

enunciação destacada, e, ao mesmo tempo, indicar para o leitor que o papa fala não

somente em nome da Igreja, mas para a Igreja.

No entendimento de Maingueneau, a associação frequente entre aforizações e rostos

se explica porque o rosto possui características notáveis, tais como:

1 - é a única parte do corpo que, de maneira superficial, permite identificar um indivíduo

como distinto de outros;

2 - é, no imaginário profundo, a sede do pensamento e de valores transcendentais;

3 - é nele que se encontra a boca, fonte da fala e, portanto, da aforização. (MAINGUENEAU,

2014, p.46)

Isso explica a constante recorrência de fotografias do rosto do papa Francisco

associadas às aforizações destacadas na/pela mídia. Em sua grande maioria, tais

fotografias, conforme atestam os exemplos mobilizados, não enfocam apenas o rosto do

papa, mas também as suas vestes, a arte sacra e os objetos litúrgicos, que juntos evocam

4Destaque enunciativo publicado no site http://www1.folha.uol.com.br/, 18/02/2016; 5 Destaque enunciativo publicado no site http://g1.globo.com 18/02/2016; 6 Destaque enunciativo publicado no site http://ultimosegundo.ig.com.br, 18/02/2016; 7 Destaque enunciativo publicado no site http://agenciabrasil.ebc.com.br 19/02/2016;

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a imagem da Igreja. Assim, as aforizações não falam apenas em nome do papa, mas,

sobretudo, em nome da Igreja, que é significada de forma menos conservadora, com o

pontificado de Francisco.

Soma-se aos exemplos citados uma centena de enunciados destacados das

declarações do papa Francisco, na mídia, que corroboram essa leitura, tais como: “Papa

Francisco diz que batizaria até marcianos”8; “O mundo digital pode ser um ambiente rico

em humanidade, é uma rede não de cabos, mas de pessoas”9; “Divorciados que voltam a

se casar e seguem fazendo parte da Igreja não devem ser tratados como excomungados10”,

entre outros. No entanto, não julgamos necessário trazê-los à discussão, visto que os

apresentados são suficientes para afirmarmos que, ao destacar e/ou aforizar o discurso do

papa, o enunciador não apenas informa o acontecimento enunciativo, mas, sobretudo,

propõe para o leitor um percurso interpretativo que (re)atualiza esse acontecimento.

Assim pensada, a mídia vai se patenteando muito mais como uma instância de circulação

de sentidos e interpretações do que propriamente de circulação dos fatos.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

No decorrer deste estudo, buscamos compreender o funcionamento discursivo dos

destacamentos midiáticos extraídos dos discursos do papa Francisco desde o início do seu

pontificado, em março de 2013, até os dias atuais. À luz dos conceitos de destacabilidade,

sobreasseveração e aforização (MAINGUENEAU, 2006; 2010; 2014), foi possível

constatar que os destaques efetuados pela mídia, colocando o locutor original ora como

sobreasseverador, ora como aforizador, não apenas convida o leitor a realizar uma

interpretação para os acontecimentos enunciativos destacados, mas propõe para esse

leitor um percurso interpretativo.

No momento em que a mídia destaca as aforizações do discurso do papa Francisco,

coloca em questão os pronunciamentos do pontífice em relação à doutrina da Igreja, e,

por consequência, em relação à sabedoria popular cristã. Nessa circunstância, o leitor é

interpelado a se identificar com esse sentido orientado e a atribuir a esses gestos

interpretativos efeitos que extrapolam o sentido primeiro. Trata-se de uma verdadeira

atitude hermenêutica que faz com que os leitores mobilizem um conjunto de saberes

interdiscursivos para interpretar os enunciados destacados, procurando reconstruir o

percurso interpretativo desenhado pela mídia. Desse percurso, abrem-se as brechas

interpretativas para os leitores construírem e repassarem em suas práticas sociais.

A matriz de orientação deôntico-interpretativa de sentido assume a equação:

“Dizendo X, o locutor implica Y”, em que o “Y” se constitui em um enunciado genérico

de valor deôntico. Assim, as aforizações “Homossexuais não devem ser julgados e

marginalizados”, “Não há fogo no inferno, Adão e Eva não são reais!”, “Não existe

um Deus católico, mas um Deus”, “Cristãos não devem procriar como coelhos”;

“Igreja não pode ser museu de memórias”, sugerem ao leitor a construção de uma

imagem do papa Francisco como revolucionário e heterodoxo, que não apenas diz o que

8 Destaque enunciativo publicado no site http://www.noticiais.uol.com.br, em 12/05/2014; 9 Destaque enunciativo publicado no site http://www.noticias.terra.com.br, em 10/02/2015; 10 Destaque enunciativo publicado no site http://www.correiobrasilense.com.br, em 05/08/2015.

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pensa, mas impõe, devido à posição de liderança que ocupa na Igreja, novos modos de

ver e agir na sociedade.

A forma negativa, em geral, polifônica das estruturas sintáticas, o valor impositivo

dos verbos (dever; poder; existir), bem como a conjugação no presente do indicativo (não

é um presente dêitico, mas atemporal) revelam o caráter deôntico dos enunciados

destacados, que, por sua vez, dialogam com o discurso produzido alhures,

respectivamente: A sociedade julga e marginaliza os homossexuais; Há fogo no inferno;

Adão e Eva deram origem à humanidade; Deus é cristão; Os cristãos acreditam que devem

ter muitos filhos; a Igreja é conservadora. Trata-se de discursos inscritos na sabedoria

popular cristã, que são chamados à discussão na materialidade linguística das aforizações

destacadas.

Vale lembrar que o discurso religioso é um lugar de memória. Na religião, a

memória funciona como um poder. Ela funda uma possibilidade de se expressar, abre um

direito à fala, possui, até mesmo, um valor performativo de proposição eficaz. Assim, o

discurso religioso é recoberto com o peso da tradição, que o inscreve numa série de

sentidos e de razão, que ancora a volatilidade das palavras com o peso da lembrança. De

fato, a memória religiosa se inscreve nas aforizações destacadas do discurso do papa,

fazendo com que alguns discursos sejam relembrados, repetidos e retomados.

Encontramo-nos, aqui, com Foucault (2006), para quem

a repetição indefinida dos comentários é trabalhada do interior pelo sonho de uma repetição

disfarçada: em seu horizonte não há talvez nada além daquilo que já havia em seu ponto de

partida, a simples recitação. O comentário conjura o acaso do discurso fazendo-lhe sua parte:

permite-lhe dizer algo além do texto mesmo, mas com a condição de que o texto mesmo seja

dito e de certo modo realizado. A multiplicidade aberta e o acaso são transferidos, pelo

princípio do comentário, daquilo que arriscaria de ser dito, para o número, a forma, a máscara,

a circunstância da repetição. O novo não esta no que é dito, mas no acontecimento de sua

volta. (FOUCAULT, 2006 p. 25-6)

É assim que surgem novos enunciados e/ou que enunciados “antigos” são

(re)atualizados, nas aforizações destacadas do discurso do papa. Os efeitos de sentido

dessas aforizações não dependem dos atos, escolhas ou decisões do enunciador, mas

exatamente de uma configuração determinada de saber no interdiscurso, na instância do

que se denomina a exterioridade do enunciável (MAINGUENEAU, 2005). Em outros

termos, os objetos de discurso que se inscrevem nas aforizações destacadas são

elaborados na instância do interdiscurso (exterior constitutivo), e são retomados no

intradiscurso (PÊCHEUX, 2009), muitas vezes, na forma de discursos transversos,

responsáveis pelo estabelecimento das relações de sentido.

Isto posto, compreendemos que a análise empreendida, embora pouco numerosa e

não exaustiva de um grande corolário a ser ainda pesquisado, fornece subsídios para

afirmarmos que além de recortar e fazer circular enunciados, a mídia é também uma

poderosa máquina de (trans)formar enunciados e produzir simulacros, na medida em que

põe em circulação apenas os enunciados destacados e aforizações que afrontam um

ensinamento da Igreja, segundo o senso comum dos cristãos. A nosso ver, o próprio

processo de destacar e aforizar os enunciados proferidos pelo papa se constitui em um

simulacro, na medida em que apaga aquilo que poderia colocar sob suspeita a

interpretação que faz do discurso recortado.

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REFERÊNCIAS

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COURTINE, J.-J. Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado aos cristãos. [1983]

Trad. Cristina de Campos Velho Birck et al. São Paulo-SP: EduFScar, 2009.

FOUCAULT, M. A ordem do discurso. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Loyola,

2006.

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______. Cenas da Enunciação.Trad. Sírio Possenti et al. Curitiba-PR: Criar, 2006.

______. Gênese dos discursos [1984]. Trad. Sírio Possenti. São Paulo: Criar Edições, 2005.

______. Doze conceitos em Análise do Discurso. Trad. Adail Sobral et al. São Paulo: Parábola, 2010.

PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento? Trad. Eni Pulcinelli Orlandi. Campinas: Pontes,

2006.

______. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio.Trad. Eni Pulcinelli Orlandi. Campinas:

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01/09/2015. Disponível em <www.atribuna.com.br> Acesso em mar. 2016.

CORREIO BRASILIENSE. Papa: Divorciados que voltam a se casar e seguem fazendo parte da Igreja

não devem ser tratados como excomungados. Matéria publicada em 05/08/2015. Disponível em

<www.correiobrasilense.com.br> Acesso em mar. 2016.

ESTADÃO BRASIL. Não existe um Deus católico, mas um Deus, diz papa. Matéria publicada em

02/10/2013. Disponível em <www.brasil.estadão.com.br> Acesso em março de 2016.

EXTRA. Papa Francisco diz que, diante de Zika, usar anticoncepcionais é “um mal menor.

Matéria publicada em 18/02/2016. Disponível em <www.extra.globo.com.br> Acesso em mar. 2016.

FOLHA ONLINE. O carnaval acabou, diz papa Francisco ao recusar a capa usada por Bento 16. Matéria

publicada em 16/03/2013. Disponível em <www.folha.uol.com.br> Acesso em mar. 2016.

FOLHA BRASIL. Não há fogo no inferno, Adão e Eva não são reais, diz o papa Francisco. Matéria

publicada em 22/01/2014. Disponível em <www.brasil.estadão.com.br> Acesso em mar. 2016.

FOLHA. Papa diz que cachorros vão para o céu e cria polêmica com teólogos. Matéria publicada em

12/12/2014. Disponível em <www.folhauol.com.br> Acesso em mar. 2016.

G1. Homossexuais não devem ser julgados ou marginalizados, diz papa. Matériapublicada em

29/07/2013. Disponível em <www.g1.globo.com.br> Acesso em mar. 2016.

G1. Igreja não pode ser museu de memórias, diz o papa em Sínodo. Matéria publicada em 05/10/2015.

Disponível em <www.g1.globo.com.br> Acesso em mar. 2016.

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Disponível em <www.veja.abril.com.br> Acesso em mar. 2016.

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Recebido em 30/05/16. Aprovado em: 18/10/16.

Title: From Pope Francis’speeches to the production and circulation of small phrases: the

construction of the heterodox Pope

Author: Marilena Inácio de Souza

Abstract: The recent development of a media configuration totally new, which it is directly

associated with the printed media, radio, television and the Internet, has significantly

increased the posting and circulation of small sentences. In trying to understand the linguistic

and discursive functioning of this phenomenon, we analyzed a set of statements taken from

the Pope Francis' speeches and detached in the media. The goal is to check the extent to

which, the enunciator’s hermeneutic work interfere in the interpretation of the quoted text,

providing the reader a kind of interpretive route. Thereunto, an analysis was carried out

based on Discourse Analysis, more specifically the works by Dominique Maingueneau

(2006; 2010; 2014). The analysis performed allows to say that the posted statements

potentiate the (re)production and circulation of simulations about the Pope's speech. There

is, therefore, the construction of the image of an heterodox Pope.

Keywords: Detachment media. Small sentence. Meaning effect.

Título: De los discursos del Papa Francisco hasta la producción y circulación de pequeñas

frases: la construcción del Papa heterodoxo

Autor: Marilena Inácio de Souza

Resumen: El desarrollo reciente de una configuración mediática totalmente nueva, que

asocia directamente la media impresa, la radio, la televisión y el internet, he permitido

aumentar significativamente el destacamento y la circulación de pequeñas frases. Para

intentar comprender el funcionamiento lingüístico y discursivo de ese fenómeno, analizamos

un conjunto de enunciados extraídos de los discursos del papa Francisco y destacados en la

media. La meta es verificar en qué medida el trabajo hermenéutico del enunciador interfiere

en la interpretación del texto citado, proporcionar al lector una especie de ruta

interpretativa. Para ello, movilizamos varios conceptos del Análisis del Discurso francesa –

especialmente los conceptos de lo que es destacable, sobreaseveración y aforización,

desarrollados por Maingueneau (2006; 2010; 2014). El análisis emprendido autoriza a decir

que los enunciados destacados potencializan la (re)producción y circulación de simulacros

sobre el discurso del papa. Se tiene por consecuencia la construcción de la imagen de un

papa heterodoxo.

Palabras-clave: Destacamento mediático. Pequeña frase. Efecto de sentido.

Este texto está licenciado com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.

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SANTOS, Antonio Genário Pinheiro dos; NASCIMENTO, Maria Eliza Freitas do. Sujeito do ensino e articulações de poder: consenso de verdades na educação. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 16, n. 3, p. 489-502, set./dez. 2016.

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DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1982-4017-160307-2116

SUJEITO DO ENSINO E ARTICULAÇÕES DE PODER:

CONSENSO DE VERDADES NA EDUCAÇÃO

Antonio Genário Pinheiro dos Santos*

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Departamento de Letras

Currais Novos, RN, Brasil

Maria Eliza Freitas do Nascimento**

Universidade do Estado do Rio Grande do Norte

Departamento de Letras Estrangeiras

Pau dos Ferros, RN, Brasil

Resumo: Inscrito nos pressupostos teórico-metodológicos da Análise do Discurso francesa,

este estudo objetiva analisar os lugares de consenso e a produção de efeitos de verdade na

educação, tratando-a sobre o trajeto da essencialidade e do caos. Para tanto, fundamenta-

se nos estudos de Foucault (2005, 2006a, 2006b, 2007) e de Pêcheux (2008), voltando-se

para a análise de capas da revista Nova Escola a partir de uma leitura discursiva que

considera os lugares reservados ao sujeito do ensino – aluno e professor – e as articulações

de poder-saber no campo da mídia, por meio dos quais se discute a educação brasileira.

Atrelado à investigação acerca da discursividade e do sentido, o presente estudo dialoga

com a proposta de oferecer um espaço de discussão ligado, por sua vez, à linguagem e seu

funcionamento, apontando para a construção de um real no qual impera o dizer e a cena do

dito.

Palavras-chave: Discurso. Consenso. Educação. Mídia.

1 INTRODUÇÃO

Ao se inscrever no leque de investigações que tratam da produção discursiva do

sentido e ao se voltar para a concepção de discurso como uma dispersão, este trabalho

investiga, nas estratégias discursivas da mídia, a produção e circulação de dizeres acerca

da educação no Brasil. Importa aqui, através da descrição e interpretação de enunciados,

conforme estabelece o método arquegenealógico de Michel Foucault (2005), fazer uma

leitura dos dizeres que considere os resgates de uma memória social e a produção de

efeitos de sentido sobre o pilar da essencialidade da educação no cenário nacional

contemporâneo.

* Professor Doutor da URFN, com atuação no Departamento de Letras – DLC, no Centro de Ensino Superior

do Seridó – CERES. E-mail:

** Professora Doutora da UERN, com atuação no Departamento de Letras Estrangeiras – DLE e no

Programa de Pós-Graduação em Letras, no Campus Avançado Professora Maria Elisa de Albuquerque Maia

– CAMEAM.

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SANTOS, Antonio Genário Pinheiro dos; NASCIMENTO, Maria Eliza Freitas do. Sujeito do ensino e articulações de poder: consenso de verdades na educação. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 16, n. 3, p. 489-502, set./dez. 2016.

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A partir dessa leitura, propõe-se analisar a discursividade mobilizada nas capas da

revista Nova Escola, considerando esta como um veículo midiático que retoma discursos

sobre o papel e sobre o lugar social ocupado pela escola. Tem-se que tal discursividade

marca o trabalho com o dizer da revista, a qual restitui os efeitos de sentido que validam

a condição de espaço de poder/saber da escola, por onde são produzidos e circulam efeitos

de sentido de intervenção social e promoção da vida melhor. Defende-se que tais efeitos

estão ligados ao trabalho com manobras discursivas de controle e de cerceamento do

dizer.

No escopo das discursividades, a partir das quais são produzidos os efeitos de

consenso de verdades na educação brasileira, é possível pensar sobre a constituição do

sujeito do ensino e sobre as amarras das articulações de poder-saber na escola. A proposta

é a de compreender o sujeito como uma posição-sujeito, isto é, um sujeito discursivo que

está intimamente ligado às manobras em torno do dizer, uma vez que, não preexistindo

ao discurso, “ele é uma construção no discurso, sendo este um feixe de relações que irá

determinar o que dizer, quando e de que modo” (NAVARRO-BARBOSA, 2004, p. 113).

Para percorrer esse trajeto de investigação, problematizam-se as categorias:

discurso, vontade de verdade, interdição, segregação do dizer, enunciado, memória,

efeitos de sentido, visibilidade e acontecimento discursivo. Busca-se relacionar a questão

do ensino e a produção de subjetividade, isto é, enxergar como se efetiva a fabricação das

posições-sujeito do ensino – aluno e professor – na condição em que se encontra a

educação nacional. Importa observar como esses elementos – a educação e seus sujeitos

– são discursivizados na e pela mídia, neste caso, a partir da discursividade mobilizada

nas capas da Revista Nova Escola.

O percurso analítico exige pensar na inscrição política, ética, econômica e cultural

que as práticas discursivas reclamam nos dias de hoje. É preciso observar que, na esfera

do dizer, há manifestação de saber e de vontade de verdades, isto é, miras determinadas

que incitam, por sua vez, determinados efeitos de sentido e não outros em seu lugar

(FOUCAULT, 2005, p. 90). Assim, a leitura do dizer sempre pode ser outra, mas nunca

qualquer uma.

2 A EDUCAÇÃO NA ORDEM DO DIZER: EFEITOS DE CONSENSO

Inicialmente, considerando que a questão discursiva tem sua efetividade assegurada

no cenário de cobertura midiática na atualidade, pode-se afirmar que a educação tem

ocupado espaço de evidência na cena pública. Nesse sentido, o sistema educacional tem

sido objeto de análises, levantamentos, medidas de intervenção governamentais,

discussões de especialistas, comparações nacionais e internacionais, valoração e

nivelamento dos índices de desenvolvimento humano.

Inscrito na ordem do dizer, o sistema educacional brasileiro é, desse modo, um

espaço de consensos que oscilam entre efeitos de sentido de essencialidade e de caos. Por

um lado, há o efeito de consenso sobre sua condição caótica, sobre a feição problemática

de seu desenvolvimento e de sua ação capenga nos dias de hoje. Por outro, tem-se a

discussão sobre sua caracterização como ferramenta primordial para o desenvolvimento

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social, para o equilíbrio do país. Nessa dimensão, a educação se apresenta como

atualizada, em processo de ascensão e de renovação no qual novos profissionais, com

novos perfis de atuação, desenvolvem suas atividades.

Em ambos os aspectos, prevalece um efeito de consenso, seja de sistema em ruínas,

seja de proposta renovada. Desse modo, perseguindo o trajeto de discursividade ligada à

temática da educação no Brasil, é possível enxergar e problematizar a produção discursiva

e a mobilidade de dizeres na mídia que incitam o resgate de memória e permitem analisar

o deslize do sentido acerca de tais consensos, que produzem a imagem da escola e da

educação no cenário nacional.

Com isso, olhar para a questão da descrição e interpretação dos discursos torna-se

crucial, haja vista que o dizer está diretamente atrelado ao equívoco da língua: “todo

enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, se

deslocar discursivamente de seu sentido para derivar para um outro” (PÊCHEUX, 2008,

p. 53). É, portanto, nesse espaço em que se oferece lugar à interpretação, bem como à

priorização da descrição de enunciados, que se volta para os efeitos de importância e de

crise, de essencialidade e de descrédito que modulam o olhar para as condições do ensino

formal no país.

O percurso exige revisitar a proposta de discurso como dispersão, lendo o trabalho

da mídia a partir de operações e estratégias de fazer ver e de fazer sentir, numa relação

estreita com o poder e o saber já que, conforme aponta Foucault (2006a, p. 9) em A ordem

do Discurso: “Em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada,

selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por

função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar

sua pesada e temível materialidade.”

Esse aspecto de temível materialidade discursiva de que trata Foucault, diz respeito

aos procedimentos de controle do dizer, o cerceamento do discurso que assegura o que

pode e deve ser dito em determinado lugar e a partir de certas condições de produção.

Assim, nesse ambiente onde a mídia impera como a medida de todas as coisas (GOMES,

2004), ao circular socialmente, aquilo que perpassa e preenche o espaço do dizível, é antes

fruto de uma rigorosa operação de seleção, balizamento e interdição.

Lendo essa dimensão da mídia e propondo sua inscrição como dispositivo de poder-

saber, Thompson (2009, p. 19) fala de um processo de reelaboração do caráter simbólico

da vida social, defendendo que o desenvolvimento dos meios de comunicação representa

uma reordenação dos “meios pelos quais a informação e o conteúdo simbólico são

produzidos e intercambiados no mundo social e uma reestruturação dos meios pelos quais

os indivíduos se relacionam entre si”.

Nessa corrente, tem-se que os dizeres de agora são sempre atravessados pelo já-

dito. Os discursos são sempre veículo de retomada e resgate de outros discursos,

permitindo “multiplicar as relações entre o que é dito aqui, dito assim e não de outro jeito,

com o que é dito em outro lugar, a fim de entender a presença de não ditos no interior do

que é dito.” (PÊCHEUX, 2008, p. 44). Essa operação diz respeito àquilo que se apresenta

e constitui o espaço de visibilidade pública, isto é, o acontecimento discursivo que

convoca, na agressividade de sua irrupção, os sujeitos sociais à tomada de posição, à

discussão, enfim, à leitura do recorte de real que se apresenta.

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Diante disso, pode-se afirmar que, nos dias de hoje, não se pode defender a

existência de uma realidade universal e panorâmica, mas recortes de real construídos pelo

regime de verdade, erguidos em tramas de poder-saber, que fundamentam, com os seus

efeitos de fazer ver, os consensos e as resistências. Assim sendo,

O importante [...] é que a verdade não existe fora do poder ou sem poder [...] a verdade é

deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos

regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de

verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os

mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a

maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados

para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o emprego de dizer o que funciona

como verdadeiro. (FOUCAULT, 2007, p. 12).

Atrelando essa leitura ao objeto de investigação neste estudo, pode-se afirmar que

a educação no Brasil tem se tornado um campo de discussões as mais vastas possíveis, o

que oportuniza uma caracterização dual de sua condição atual: de um lado, a reafirmação

de seu caráter de essencial para a promoção do desenvolvimento social, econômico e

humano e, de outro, seu atestado de caos, de depreciação e ineficiência.

As formas e modos de dizer produzidos e difundidos pela mídia nessa direção

reforçam um ou outro aspecto dessa dualidade e, nessa operação, observa-se o jogo com

estratégias discursivas – ora de evidência, ora de silenciamento – as quais oportunizam

efeitos de verdade e, consequentemente, de consenso. Segundo Souza (2014, p. 104),

inscrito e trabalhado nesse viés de cobertura e de visibilidade, onde imperam a interdição,

a vontade de verdade e a segregação da palavra, “o acontecimento discursivo consiste na

abertura para a possibilidade de o dizer correr conforme a contingência do momento de

fala”. Trata-se, portanto, “de entregar-se ao acaso do discurso sem temer o aleatório de

seu fluxo”.

Seguindo a perspectiva foucaultiana na investigação do discurso e do sentido, é

possível trazer que, ao se constituir como um mecanismo que mobiliza poder e saber, a

revista Nova Escola opera, nas capas de suas edições, um sinuoso trabalho em torno da

verdade. Tem-se, nessas condições, uma operação estratégica em torno do dizer que mexe

com a memória, estabelece uma ligação interdiscursiva entre um passado e uma

atualidade e convoca a massa de sujeitos sociais a se posicionar mediante um efeito de

polarização: a educação é, ao mesmo tempo, sinônimo de essencialidade e de caos.

É o fetiche do acontecimento sinalizando para os efeitos de espetáculo, uma vez

que “o que o espetáculo apresenta como perpétuo é fundado sobre a mudança, e deve

mudar com a sua base. O espetáculo é absolutamente dogmático e, ao mesmo tempo, não

pode levar a nenhum dogma sólido” (DEBORD, 2002, p. 52). E, nessa operação, tem-se

o trabalho se fazer ver, isto é, a projeção sobre o que deve ser evidenciado, vislumbrado,

e sempre a partir de determinados efeitos de sentido e não outros em seu lugar.

A educação surge, portanto, como um acontecimento discursivo. Ela é exposta e

trazida ao espaço do visível e do dizível pelo trânsito de enunciados acerca de sua

condição no cenário nacional. A sociedade é convocada a se posicionar e, nesse jogo, a

mídia engendra um percurso de discursividade e de mobilidade de memória, no escopo

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da evidência midiática. Essas condições de possibilidade do discurso interessam porque,

ao abrir espaço para a rememoração, permite-se que se olhe para o presente, para o

passado e para o futuro.

Em suma, ao considerar o trabalho da mídia na produção de dizeres e de sentidos

sobre a educação no Brasil, é possível enxergar uma trama de relações sinuosas e

estratégias de visibilidade e de cerceamento do dizer que resultam na produção de efeitos

de sentido de consenso. A educação é discursivizada num cenário de trânsito de

enunciados, de verdades fabricadas, de poderes e de saberes que justificam, corroboram,

dualizam, provocam e caracterizam sua qualidade no escopo de uma dualidade: ruína e

renovação, descrédito e resistência.

Pelo caminho da discursividade é possível observar então que a educação – sendo

ela uma questão histórica atrelada à política, à economia, e à iniciativa governamental,

interessando, portanto, a todos – tem sido objeto de discursivização na e pela mídia ao

longo do tempo.

3 SOBRE A EDUCAÇÃO NO BRASIL: OS EFEITOS DO DISCURSO DA INEFICIÊNCIA

Voltando-se para a cisão histórica da realidade educacional brasileira, é possível

afirmar que prevalecem, no espaço de sua discursivização, efeitos de um discurso de

ineficiência. Assim, reportagens, matérias jornalísticas, coberturas televisivas de talk

shows a documentários, tratam da situação do sistema formal de ensino no país, sob o

viés da má qualidade e da responsabilização governamental.

Tal discurso adquire efeitos de ratificação na apresentação de índices comparativos

negativos, na transmissão de coberturas e de recortes que, por sua vez, concatenam o

efeito de desprestígio e de minimização de resultados positivos. O trajeto de

discursividade da educação brasileira pode ser percebido, portanto, no espaço de efeitos

de negativação e de caos.

Considerando a incursão da mídia sobre a posição-sujeito professor e a posição-

sujeito aluno, e ainda, a função-escola no contexto nacional, pode-se observar a operação

com um discurso social1 que procura produzir um espetáculo de verdades no bojo do que

pode ser verificado, confirmado pelas lentes que se impõem.

Tem-se, nesse espaço de leitura, a produção de um consenso, já que, segundo

Coulomb-Gully, (2014, p. 149):

As mídias produzem significações comuns, e pelos efeitos de intertextualidade, de retomadas

e de citações que caracterizam o universo midiático, contribuem para forjar o que se poderia

chamar de senso comum midiático, uma espécie de vulgata que, apesar das críticas apontadas,

confere-lhe um status de objetividade mais ou menos assumida.

1 Numa referência aos estudos de Marc Angenot na obra O discurso social e as retóricas da incompreensão:

consensos e conflitos na arte de (não) persuadir (ANGENOT, 2015).

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Ao evidenciar a conjuntura de ineficiência do sistema educacional brasileiro, as

operações midiáticas em torno das discursividades que são produzidas, abrem espaço para

o efeito de necessidade de intervenções urgentes, mobilizado no apelo por novas

abordagens de conteúdos, nova postura profissional do professor, nova conduta de

comprometimento discente e, principalmente, nova roupagem da escola e de seus

gestores. Na produção desse cenário de avaliação e da exigência por mudanças

estruturais, tal elaboração discursiva se mantém atrelada à questão da política e da

governamentalidade.

Perpassada por efeitos de análise, medições, comparações, e inscrita na ordem do

verídico e do necessário, a produção do dizer sobre a educação – e seus sujeitos – no

Brasil, é trazida midiaticamente como tema central e, principalmente, como termômetro

de avaliação e justificação da atuação do governo. Tal discursividade é operacionalizada

de forma a oportunizar o resgate de dizeres sobre os parâmetros internacionais de

promoção de vida melhor, redução de indicadores sociais de pobreza e de desigualdade

do social, fomento à distribuição de renda e à ascensão social.

Tem-se, nesse espaço, o funcionamento da interdição, da vontade de verdade e da

segregação do dizer, haja vista que nem tudo pode ser mobilizado em qualquer lugar e/ou

de qualquer forma, mas obedecendo a determinados trajetos de leitura e não outros em

seu lugar. A mira do discurso sobre a educação aponta então para esse cerceamento do

dizível, exigindo considerar suas condições de possibilidade e propondo um adestramento

da visão para a evidência dos efeitos ora de crise, ora de renovação do ensino no Brasil.

4 DA INEFICIÊNCIA À RENOVAÇÃO:

EFEITOS DE CONSENSO NA EDUCAÇÃO BRASILEIRA

No espaço do discurso como dispersão e do sentido como possibilidade, as análises

apontam para uma operação que produz efeitos de verdade e de controle discursivo,

resgatando a memória dos lugares historicamente reservados ao professor, ao aluno e,

sobretudo, à escola. A discursividade mobilizada nas capas da revista Nova Escola

oportuniza, dessa forma, a problematização sobre a reserva de lugares discursivos ao

sujeito do ensino e discussão que versa sobre as articulações de poder-saber no cenário

da educação.

Nessa materialidade, a educação é trazida na condição de acontecimento discursivo

porque, ao se materializar na capa, o tema já é objeto de uma montagem, seleção e de

decisão, e já engendra percursos de leitura determinados. Dessa forma, aponta para as

condições de possibilidade dos dizeres permitirem trajetos de memória e inscreverem as

posições-sujeito de aluno e professor nessa relação estreita entre verdades e consensos. A

capa versa sobre o universo da sala de aula, centrando a discussão na postura docente

diante dos desafios que se apresentam. Nela, evidencia-se não apenas o espaço da

posição-sujeito professor, mas, sobretudo, a questão da educação e sua amplitude

enquanto sistema.

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Figura 1 – Revista Nova Escola – 02/03/11

Fonte: www.revistaescola.abril.com.br

Na figura, os “15 mitos da educação” são trazidos num efeito de falas recortadas de

profissionais da área o que sinaliza para um efeito de passado, isto é, ideias de um tempo

anterior, mas que reverberam ainda na prática docente na contemporaneidade. A escolha

sintática da palavra “mitos” – e por que não “verdades” em seu lugar? – já engendra um

trajeto de leitura que atribui um efeito de temporalidade. O vocábulo é substituído logo

na afirmação seguinte por “ideias” sendo estas apresentadas como elementos do senso

comum, “incorporadas na sala de aula e que prejudicam a aprendizagem”.

É importante observar aqui a estratégia de condução do dizer alicerçada em

procedimentos de interdição e de segregação, uma vez que tais afirmações são trazidas

como “mitos” e como “ideias baseadas no senso comum” e não como avaliação de

especialistas e/ou tendências de ensino na escola num tempo anterior. A própria

disposição dos “mitos” em balões de fala, sendo eles apresentados com o recurso de

itálico, já pressupõe um trabalho de montagem e seleção, servindo para mobilizar um

efeito de informalidade e de pessoalidade dos dizeres, que afirmam:

B12 – Creche é um mal necessário

B2 – Sem a possibilidade de reprovação, os alunos perdem o respeito pelo professor

B3 – Conteúdo dado é conteúdo aprendido

B4 – Os alunos aprendem mais quando a atividade é lúdica

B5 – Trabalho em grupo sempre gera indisciplina

B6 – Para ser um bom professor, é preciso ter dom e vocação

B7 – A repetência sempre melhora o desempenho

B8 – Criança pobre não aprende

B9 – Meninos são melhores em matemática

2 Por uma opção metodológica, usa-se a nomenclatura B1, B2 (e etc.) para a apresentação dos balões de

fala trazidos na capa da respectiva edição da revista Nova Escola. A ordem de apresentação dos recortes de

fala está no sentido horário em que aparecem na capa.

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Tais afirmações, além de reclamarem diretamente a posição-sujeito de professor,

resgatando uma memória sobre a realidade da escola no cenário nacional, tocam nos

temas centrais a partir dos quais se discute a educação no Brasil e sua condição de caos

na contemporaneidade: a educação infantil e a questão da conciliação entre família x

trabalho, reprovação e evasão escolar, seleção de conteúdos x necessidades de

aprendizagem dos alunos, metodologia e rotina em sala de aula, preparação e atuação

profissional do educador, a questão social e o déficit de aprendizagem.

Entram em jogo, nessa operação de dizibilidade, estratégias discursivas atreladas à

memória e à interdiscursividade, pois mobilizam os dizeres “de antes” questionando sua

validade e sua pertinência para a escola de hoje. Nesta perspectiva, os “15 mitos da

educação” são contraditórios no acontecimento de sua volta, uma vez que, no próprio

título da revista, a “Nova Escola” exige pensar em rumos diferentes para o ensino e para

a aprendizagem. É importante evidenciar ainda que, neste trabalho de fazer ver toda a

materialidade linguística da capa aponta para esse efeito de dualidade entre um cenário

educacional de antes e um de agora, reservando um lugar de destaque não só à escola e

ao sistema educacional, mas, principalmente, aos sujeitos – isto é, às posições-sujeito –

ali mobilizados.

Pode-se trazer, então, que estão implicadas nessa polarização da escola, o professor

e o aluno e seus lugares discursivos. É no silenciamento dessas posições-sujeito que elas

se tornam evidentes, pois na produção e circulação de dizibilidades, a mídia adestra o

olhar e mobiliza vontades de verdade que se pretendem críveis, conforme aponta Gomes

(2003, p. 77):

É por conta da visibilidade que as mídias assumem um papel crucial como disciplina e

controle, portanto, como promotoras/mantenedoras de escalas de valores, como vigilantes.

Temos que pensá-las em seu duplo papel: aquele pelo qual expõem a todo momento os

conflitos é também aquele pelo qual definem a esfera de equilíbrio em que esses conflitos se

diluíram. Enquanto mostram, as mídias disciplinam pela maneira do mostrar, enquanto

mostra ela controla pelo próprio mostrar.

Desse modo, ao trazer que “baseadas no senso comum, essas ideias estão há tempo

incorporadas no dia a dia da escola” e pelo imperativo “confira todas elas e entenda como

prejudicam a aprendizagem”, o espaço de discursividade midiática tange para a posição-

sujeito professor, pois torna evidente que não há mais espaço para essas “ideias”, haja

vista o cenário de mudança na educação. Assim, ao retomar os mitos sob a óptica de que

eles prejudicaram e/ou prejudicam o ensino, evidencia-se que a escola de hoje é renovada

e que, portanto, exige um profissional com perfil diferente de atuação.

Essa proposta de leitura é possível pelo viés de deslize do sentido, já que ele é

sempre suscetível de tornar-se outro, mas nunca qualquer um. É possível ainda se retomar

como as dizibilidades apontam para a educação seguindo um efeito de sentido de mito.

Os enunciados citados na revista promovem uma ressignificação do que é mito. A

produção de tal efeito só é possível porque há relações de poder-saber, por meio do

discurso pedagógico, que legitimam outros dizeres e contrariam o que é dito nos balões.

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É a vontade de verdade da LDB3, dos PCN4 e dos discursos dos pedagogos que legitimam

o fazer da escola, relegando as falas dos professores ao lugar de mito.

Esse efeito de evidência na figura do professor pode ser mobilizado no trajeto de

sentido que polariza a inscrição de caos e de renovação da educação, conforme se observa

a partir das capas abaixo:

Figura 2 – Revista Nova Escola – 02/10/2010

Fonte: <www.revistaescola.abril.com.br>

Figura 3 – Revista Nova Escola – 02/10/2012

Fonte: <www.revistaescola.abril.com.br>

3 Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei Federal (9.394/96) promulgada em 20 de dezembro

de 1996.

4 Parâmetros Curriculares Nacionais - Os Parâmetros Curriculares Nacionais constituem um referencial de

qualidade para a educação no Ensino Fundamental em todo o País (MEC, 1997).

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SANTOS, Antonio Genário Pinheiro dos; NASCIMENTO, Maria Eliza Freitas do. Sujeito do ensino e articulações de poder: consenso de verdades na educação. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 16, n. 3, p. 489-502, set./dez. 2016.

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Figura 4 – Revista Nova Escola – 02/08/14

Fonte: <www.revistaescola.abril.com.br>

A discursividade oportunizada nessas materialidades incide sobre o lugar discursivo

que é reservado ao professor pela justificativa de que eles são constituídos em “agentes”

do ensino e “condutores” de um novo tempo no fazer pedagógico. As capas incitam a

uma leitura que evidencia e atribui visibilidade a um trajeto de renovação da escola, da

educação e, principalmente, do educador. Em todas as figuras, há o semblante animado e

feliz de alguém que ocupa a posição-sujeito de professor. O efeito de alegria – que, por

sua vez, pode ser associado à felicidade e à realização pessoal e profissional – é trazido

pelo sorriso que, paradoxalmente, não se atrela à dimensão do humor, mas, apenas, ao

que se apresenta no espaço do risível.

É importante notar a inscrição do efeito de manual nas capas, em cuja materialidade

linguística se observa operações de poder-saber voltadas para o adestramento e para a

intervenção no escopo do ensino. Na figura 2, por exemplo, a condição para ser “o

professor do futuro” está diretamente ligada ao conhecimento “das seis características de

um bom profissional do século 21”. Em adição, na figura 3, a capacidade de gerir a sala

de aula está estreitamente vinculada ao desempenho do professor “nas 20 situações que

mais os afligem no dia a dia em classe”.

Na figura 4, pode-se mencionar que a operação de evidência está sobre a técnica de

si, o trabalho de constituição da subjetividade de um self. Nessa última capa, a questão

do registro diário, a problematização entre registro e reflexão, imprimem um espaço de

condução de dizer na esteira do olhar para si, mobilizando efeitos de reconhecimento e

confissão de “erros” pelo professor – “Registro para refletir: percebi que realizei muitas

intervenções não dando tempo para a criança refletir”.

Quando se traz a perspectiva do professor, como na figura 4, por exemplo, é para

que ele reflita sobre sua postura – se contextualizada ou não, se produtiva ou não – há um

jogo de sentido pelo enunciado “refletir” da revista com a objetividade da apresentação

da “fala” do professor. E nesse sentido, a revista se constitui como uma instituição de

poder disciplinar, que dociliza e disciplina o sujeito professor. Nas instituições

disciplinares tradicionais eram os alunos que precisavam ser disciplinados, aqui é o

sujeito professor que sofre os efeitos do poder disciplinar, induzindo o seu fazer e ser, por

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meio de uma produção de subjetividade ditada pela revista. Essa produção perpassa a

discursividade de todas as capas.

Essa operação retoma a problemática da escrita de si, conforme proposta por

Foucault (2006b), acerca do papel da escrita em constituir um corpo. O escrever é, nesse

entremeio, uma proposta de fazer ver, de fazer aparecer um rosto perto do outro,

oferecendo ao olhar um eu pela via do que se diz sobre si mesmo.

Na leitura de tais materialidades discursivas, há uma operação de evidência no “eu”

docente, isto é, um trabalho sinuoso em torno da subjetividade desse sujeito, fazendo-o

ocupar a posição de “consciente” e de “reflexivo” em torno de sua própria prática

pedagógica. Esse efeito mobiliza, no espaço do silenciamento, uma oposição entre o

professor de antes e o de agora. Na condução de tais dizibilidades e ao tratar do perfil que

os educadores devem assumir na contemporaneidade, a mídia edifica um efeito de

polarização e dualidade: o professor de agora deve ser reflexivo, precisa desenvolver um

olhar para si e para sua prática e ser reconhecedor de suas falhas e dos espaços de sua

atuação em sala de aula.

Ao atribuir visibilidade nesse sentido, a discursividade das capas reafirma o

caminho para se sair do caos e entrar no cenário da renovação. Ao trazer que a escola de

hoje exige um profissional que ocupe uma posição de “agente” do ensino, as capas 2, 3 e

4 oportunizam pensar na caracterização que se tem reservado à escola e ao sistema

educacional no país, estabelecendo, ao mesmo tempo, uma relação de diálogo e duelo

(GREGOLIN, 2007) com os dizeres que tratam desse tema na mídia.

Nessas condições, tem-se a educação se inscrevendo no escopo da irrupção de um

acontecimento discursivo. A questão do ensino formal no país é perpassada pelas

dizibilidades midiáticas que tentam imputar uma subjetividade ao professor e ao aluno e,

sobretudo, discursivizando o lugar social ocupado pela escola no cenário nacional. Assim,

perseguindo esse trajeto de sentido e de discursividade, é possível ler as operações de

poder e de saber que marcam o lugar reservado à instituição de ensino que apontam para

os efeitos de cerceamento, de visibilidade e, ao mesmo tempo, de silenciamento,

conforme apresentam as manchetes a seguir:

M15 – Portal Época: O ensino público no Brasil: ruim, desigual e estagnado.

Fonte: <http://epoca.globo.com>

M2 – Jornal O Poti: Evasão e desestímulo são retrato do Ensino Médio.

Fonte: <www.diariodenatal.com.br>

M3 – Portal UOL: Gasto público em ensino no Brasil atinge 6,6% do PIB e supera os países

ricos.

Fonte: <www.uol.com.br>

M4 – Folha de São Paulo: Copa custa só um mês de gastos com a educação.

Fonte: <http://1.bp.blogspot.com>

M5 – Portal Informação Extra: Estado dá pacotão de benefícios para os servidores da

educação.

Fonte: <http://2.bp.blogspot.com>

5 Por uma opção metodológica, opta-se pela nomenclatura M1, M2 (e etc.) para a disposição e apresentação,

no corpo do texto, de manchetes veiculados em materialidades midiáticas (impressa e virtual).

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É a partir desse gesto de leitura que se observa os efeitos de sentido nas

materialidades da mídia. Nesse sentido, entende-se que a produção discursiva da Revista

Nova Escola centra-se na questão do ensino e na produção de subjetividade ao apresentar

padrões de postura ético-profissional para os professores. Esse trabalho se dá na revelação

de medidas e atitudes a serem tomadas no espaço da sala de aula, ao fomentar a discussão

acerca de estratégias de mediação de conflitos na escola e ao enxertar efeitos de

atualização e felicidade no trabalho docente.

O regime de verdade aí operacionalizado é atravessado pelo já-dito, mas perpassado

pelos efeitos da mudança e do novo numa conjuntura discursiva de silenciamento e

evidência, de visibilidade e apagamento, enfim, de domesticação dos olhares e das

posturas (SARGENTINI, 2014, p. 168). O discurso se apresenta, portanto, como o espaço

primeiro onde tais embates se materializam, como a arena de lutas em torno da palavra e

de seus efeitos.

Em suma, é nessa perspectiva que se observa, nas capas da Revista Nova Escola,

um jogo estratégico como os mecanismos de controle do discurso, uma operação sinuosa

com o dizer, produzindo efeitos de poder e de saber e, sobretudo, de consenso sobre a

educação no Brasil.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao se inscrever no leque de investigações que tratam da educação na interface da

mídia e do discurso, à luz das contribuições teórico-metodológicas da Análise do

Discurso de linha francesa, o presente estudo sinaliza para a inscrição do sentido no

cenário do poder e do saber, evidenciando o trabalho midiático com estratégias

discursivas ligadas aos mecanismos de controle e à operação de cerceamento da palavra.

O caminho percorrido mostra trajetos de leitura alicerçados em efeitos de

visibilidade e evidência por um lado, e, por outro, de silenciamento e apagamento. A

análise permite ler que a educação é discursivizada, na amplitude das materialidades da

mídia, como um acontecimento. Os dizeres que versam sobre sua condição no cenário

nacional são, antes de tudo, produto de operações rigorosas que determinam e selecionam

o que pode e deve ser trazido à tona no espaço do visível. Nesse jogo sinuoso de fazer

ver, as posições-sujeito de professor e de aluno são subjetivadas e apresentadas como

espaços discursivos atrelados a uma memória que desliza “do que era” para “o que deve

ser”.

É considerando essas tramas e articulações nas quais o sentido é mobilizado que se

pode observar o lugar reservado à escola e à educação no Brasil. Por esse viés de

discursividade e de efeitos do dizer, a mídia opera na fabricação de espaços de visibilidade

produzindo, sobretudo, efeitos de consenso. Assim, na irrupção de seu acontecimento, a

educação brasileira é enxertada por práticas discursivas que incitam a uma condição de

dualidade e polarização na sua condição atual: ela é, ao mesmo tempo, símbolo de descaso

e projeto de renovação; ela se apresenta, por um lado, como elemento crível e

fundamentado em princípios de essencialidade e, por outro, como cenário de descrédito

e de ineficiência. Amparada em práticas de saber, a mídia funciona discursivamente.

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REFERÊNCIAS

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persuadir. São Carlos, SP: EDUSFCAR, 2015.

COULOMB-GULLY, M. Gênero, política e análise do discurso das mídias. In: PIOVEZANI, C;

CURCINO, L; SARGENTINI, V. Presenças de Foucault na Análise do Discurso. São Carlos, SP:

EdUFSCar, 2014.

DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Trad. Francisco Alves e Afonso Monteiro. Rio de Janeiro:

Contraponto, 2002.

FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense

Universitária, 2005.

_______. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2006a.

_______. A escrita de si. In: Ditos e Escritos V. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006b.

_______. Microfísica do poder. Org. e Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 2007.

GOMES, M. R. Poder no jornalismo: discorrer, disciplinar, controlar. São Paulo: Hacker Editores/Edusp,

2003.

GOMES, W. Transformação da política na era da comunicação. São Paulo: Paulus, 2004.

GREGOLIN, M. R. V. Foucault e Pêcheux na Análise do Discurso: diálogos e duelos. São Carlos:

Editora Claraluz, 2007.

NAVARRO-BARBOSA, P. O acontecimento discursivo e a construção da identidade na História. In:

SARGENTINI, V; NAVARRO-BARBOSA, P. Foucault e os domínios da linguagem: discurso, poder,

subjetividade. São Carlos: Claraluz, 2004.

PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. Eni Puccinelli Orlandi. Campinas, SP:

Pontes, 2008.

SARGENTINI, V. O. Ecos da arquegenealogia de Michel Foucault na análise da imagem: retratos do

homem político na mídia. In: PIOVEZANI, C; CURCINO, L; SARGENTINI, V. Presenças de Foucault

na Análise do Discurso. São Carlos, SP: EdUFSCar, 2014.

SOUZA, P. A dimensão dramatúrgica do acontecimento discursivo. In: PIOVEZANI, C; CURCINO, L;

SARGENTINI, V. Presenças de Foucault na Análise do Discurso. São Carlos, SP: EdUFSCar, 2014.

Recebido em: 23/05/16. Aprovado em: 06/10/16.

Title: Subject of teaching and power articulations: consensus of truth in Education

Authors: Antonio Genário Pinheiro dos Santos; Maria Eliza Freitas do Nascimento

Abstract: Considering the theoretic and methodological principles from the French

Discourse Analysis, this study aims to analyze the spaces of common agreement and the

production of meaning effects of truth in Education through the way of essentiality and chaos.

Therefore, this investigation is based on Foucault’s studies (2005, 2006, 2007), as well as

Pêcheux’s (2008), proposing to analyze covers of the magazine Nova Escola through a

discursive reading which considers the spaces reserved to the subjects of teaching – students

and teachers – and the articulations of power-knowledge in the Media, regarding to the

Brazilian education scenario. By considering the meaning and the discursive issues, this

study is linked to the stage for the discussion which is, by its own turn, related to language

matters and its work pointing to the construction of a real, through which remains the saying

and the scene of what is said.

Keywords: Discourse. Common Agreement. Education. Media.

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SANTOS, Antonio Genário Pinheiro dos; NASCIMENTO, Maria Eliza Freitas do. Sujeito do ensino e articulações de poder: consenso de verdades na educação. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 16, n. 3, p. 489-502, set./dez. 2016.

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Título: El sujeto de enseñanza y articulaciones de poder: consenso de verdades en la

Educación

Autores: Antonio Genário Pinheiro dos Santos; Maria Eliza Freitas do Nascimento

Resumen: Registrado en las presuposiciones teórica y metodológicas del Análisis del

Discurso francesa, este estudio tiene por objetivo analizar los lugares de consenso y la

producción de efectos de verdad en la educación, tratándola sobre el trayecto de la

esencialidad y del caos. Para ello se fundamenta en los estudios de Foucault (2005, 2006a,

2006b, 2007) y Pêcheux (2008), volviendo para el análisis de tapas de la revista Nova Escola

desde una lectura discursiva, que considera los lugares reservados al sujeto do enseñanza –

alumno y profesor – y las articulaciones de poder-saber en el campo de la media, por medio

de los cuales se discute la educación brasileña. Conectado con la investigación acerca del

discursivo y del sentido, el presente estudio dialoga con la propuesta de ofrecer un espacio

de discusión ligado, a su vez, con el lenguaje y su funcionamiento, apuntando para la

construcción de una realidad en la cual impera el decir e la escena del dicho.

Palabras-clave: Discurso. Consenso. Educación. Media.

Este texto está licenciado com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.

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BALOCCO, Anna Elizabeth. O flaming (ou violência verbal em mídia digital) e suas funções na esfera pública. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 16, n. 3, p. 503-521, set./dez. 2016.

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DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1982-4017-160308-2716

O FLAMING (OU VIOLÊNCIA VERBAL EM MÍDIA DIGITAL)

E SUAS FUNÇÕES NA ESFERA PÚBLICA

Anna Elizabeth Balocco*

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Educação e Humanidades

Departamento de Letras Anglo-Germânicas

Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Resumo: Este artigo discute a função do flaming (KAYANY, 1998) na esfera pública, a partir

de um estudo de caso de comentários eletrônicos publicados em um site de notícias, após

campanha eleitoral da Presidente Dilma Roussef, em 2015. Para tanto, são introduzidos os

conceitos de esfera pública (HABERMAS, 1991) e discurso polêmico (AMOSSY, 2011). Para

a análise do corpus, são adotadas categorias analíticas de Bousfield (2008) para o estudo

da impolidez na linguagem. Foram identificadas, no corpus, ameaças à face positiva e

negativa dos interlocutores. Argumenta-se que a violência verbal aparece de forma

sistemática, endereçada a um interlocutor imaginário que se coloca, no espectro ideológico,

em campo oposto ao do locutor. Embora não contribua para uma esfera pública em moldes

habermasianos, caracterizada pelo debate racional de questões de interesse coletivo, o

flaming pode ser visto como uma rotina interacional usada para delimitar diferentes

posições discursivas no âmbito do discurso polêmico.

Palavras-chave: Flaming. Linguagem ofensiva. Impolidez. Mídia digital. Comentário

eletrônico.

1 INTRODUÇÃO

A linguagem hostil e agressiva tem sido estudada de diferentes perspectivas, no

âmbito dos estudos da linguagem. Culpeper (2011) toma o arcabouço teórico de Brown e

Levinson (1987) sobre o fenômeno da polidez como ponto de partida para a análise de

aspectos linguísticos da ‘linguagem usada para ofender’. Para o autor, há pelo menos duas

condições necessárias para a ocorrência de ofensa verbal: a linguagem deve estar em

conflito com as expectativas (baseadas em normas sociais) do interlocutor, em relação à

forma como ela lhe é endereçada; a linguagem deve produzir, pelo menos junto ao

interlocutor direto, o efeito perlocucionário de ofensa (ou ter consequências emocionais

negativas). Há vários outros fatores que podem exacerbar a ofensa verbal, mas estes não

seriam condições necessárias para a mesma.

Argumenta ainda Culpeper (2011) que estas percepções são relativas ao contexto:

aquilo que é considerado ofensivo, para determinado interlocutor, em certa situação, pode

não ser percebido da mesma forma em situação distinta. No âmbito da mídia digital,

* Doutora em Linguística pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pós-doutora em Estudos da

Linguagem pela Universidade Federal Fluminense. Prof. Associada da UERJ (Pós-graduação em Letras).

E-mail: [email protected].

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BALOCCO, Anna Elizabeth. O flaming (ou violência verbal em mídia digital) e suas funções na esfera pública. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 16, n. 3, p. 503-521, set./dez. 2016.

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Amaral (2012) elaborou uma dissertação de mestrado que examina o funcionamento

discursivo do dispositivo Twitter, em contexto situacional de grande envolvimento

emocional (jogos da Copa do Mundo) e relata resultados em que a ocorrência de

linguagem de baixo calão e agressiva é motivada, não somente pela interação em tempo

real, mas também pela polarização dos participantes do evento discursivo, que se

posicionam em campos antagônicos.

O fenômeno do flaming (ou violência verbal em mídia digital) parece ser o resultado

direto do funcionamento discursivo da mídia digital, que permite a aparição de um “eu”

anônimo, passional, regido apenas por seus impulsos e não pela razão (BALOCCO,

2016). Além de uma tendência à des-individualização ou despersonalização da mídia

digital, outro argumento frequentemente citado na literatura é o de que a interação via

mídia digital não incorpora os traços não verbais e contextuais da interação face a face,

tais como as expressões faciais, a gesticulação, o tom de voz, dentre outros fatores da

situação imediata em que se dá a interação. Esta redução de recursos expressivos levaria

à busca de elementos para compensar aquela falta, na expressão verbal da emoção,

indiretamente motivando um impacto reduzido das normas sociais que regulam as

interações verbais.

Estes argumentos têm sido questionados, a partir de diferentes tradições teóricas.

Amossy (2011), por exemplo, argumenta que a linguagem agressiva e polarizada, embora

possa ser relacionada a alguns traços da mídia digital, não resulta exclusivamente desta.

Para a autora, a linguagem hostil e agressiva de internautas não deve ser vista como

comportamento verbal que foge às regras de convívio social, mas como uma intervenção

discursiva no âmbito de debates públicos, motivada por características do discurso

polêmico.

O estudo de Balocco e Shepherd (no prelo) contribui para esta última tradição de

pesquisas, ao adotar um enfoque descritivo ao flaming, sem qualquer pretensão de um

juízo de valor sobre o fenômeno. Para tanto, as autoras comparam os traços de um corpus

de textos coletados em um site de notícias, após campanha eleitoral da Presidente Dilma

Roussef em 2015, àqueles de um corpus de referência, levando em consideração certas

variáveis do seu contexto de produção. A proposta das autoras, assim, não é a

caracterização da linguagem agressiva ou hostil, mas investigar a relação entre mídia

digital e violência verbal.

Os comentários (ou posts) eletrônicos são publicados em diferentes sites da internet;

há comentários em blogs, em sites de notícias, em redes sociais, como o Facebook, ou o

Twitter, dentre várias outras possibilidades. O presente trabalho centra-se unicamente na

análise de comentários em sites de notícias, com o objetivo de levantar questões

relevantes para os estudos do discurso e das práticas sociais.

Para reunir elementos para esta reflexão, serão articulados os conceitos de discurso

político (VAN DIJK, 1997), esfera pública (HABERMAS, 1991), esfera pública

midiatizada e flaming (KAYANY, 1998), além dos conceitos de discurso polêmico

(AMOSSY, 2011) e gênero do discurso (o comentário eletrônico e sua funcionalidade).

Com base nestes elementos e na análise empírica de comentários eletrônicos

postados no site de notícias oglobo.com, a partir de categorias para o estudo da impolidez

na linguagem de Bousfield (2008), pretende-se discutir a seguinte questão: quais são as

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funções do flaming na esfera pública midiatizada? E qual a contribuição (se alguma) dos

comentários com violência verbal para os debates públicos?

Nas seções a seguir, busca-se conceituar o fenômeno do flaming; introduz-se a

metodologia da pesquisa, para, em seguida, proceder-se à discussão dos conceitos de

esfera pública e esfera pública midiatizada, que darão consistência à tentativa de

caracterização das funções do flaming no corpus de pesquisa.

2 COMO CONCEITUAR E DEFINIR O FENÔMENO DO FLAMING?

O’Sullivan e Flanagin (2003) indicam que o termo flaming tem origem no discurso

leigo de comunidades virtuais, com o sentido de um comportamento verbal negativo, com

o poder metafórico de incendiar um debate, ou “fritar” um internauta.

O fenômeno do flaming, ou linguagem usada intencionalmente para ofender, tem

sido estudado em diversas abordagens, desde a área dos estudos da comunicação e da

psicologia social, até a área dos estudos da linguagem. Na maior parte destes estudos, o

flaming é visto como um fenômeno característico das mídias digitais (THOMPSEN;

FOULGER, 1996), que favoreceria a aparição de um sujeito anônimo e passional, movido

apenas por suas paixões e não pela razão. Já Lea et al. (1992), Sullivan e Flanagin (2003)

e Amossy (2011) problematizam a vinculação do flaming à esfera digital, argumentando

que o fenômeno é motivado por fatores exteriores àquelas mídias digitais.

Há vários problemas analíticos na conceituação do flaming, pois este é um

fenômeno complexo, que depende de normas culturais, locais e interacionais, que variam

no tempo e têm formas distintas em função de seus suportes interacionais. A interpretação

de um enunciado contendo linguagem ofensiva depende, em última análise, da

compreensão que tem, um indivíduo em particular, das normas operando em dada troca

interacional.

Apesar destas dificuldades, Kayany (1998, p. 1137-1138) define uma ocorrência de

flaming, ou um flame, como “uma expressão de hostilidade, livre de inibições, tal como

xingar, injuriar, ridicularizar, lançar insultos a outra pessoa, seu caráter, religião, raça,

inteligência, e habilidades física ou mental”. Em relação a esta definição, Amossy (2011)

levanta a indagação se qualquer uso de linguagem ofensiva, ou contendo injúrias, pode

ser incluída no âmbito do flaming.

Para a autora, é preciso distinguir entre o uso gratuito de linguagem ofensiva e o

uso de linguagem ofensiva no interior de um quadro de conflito. No primeiro caso,

observa-se a transgressão de normas de conduta verbal (facilmente caracterizado como

comportamento livre de inibições e uma violência verbal sem propósito e sem direção).

No segundo caso, no entanto, a violência verbal acomoda-se, não a uma situação

particular de interação problemática (O’SULLIVAN; FLANAGIN, 2003), mas a um

quadro mais amplo de negociação de sentidos tensa, que se desenvolve a partir de um

contexto de “trocas agonísticas” (AMOSSY, 2011), ou situadas num ambiente de

dissenso.

Neste estudo de caso, adota-se a mesma perspectiva discursiva de Amossy, de

abordar o flaming no âmbito do discurso polêmico, caracterizado pela polarização (ou

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pela existência de um contra-discurso antagonista) e pela tentativa de desconstrução do

outro. A ocorrência de flames, neste contexto, parece ser a norma, antes do que a exceção:

os flames são previsíveis (eles obedecem a regras tácitas); não levam à interrupção da

interação; constituem, antes, uma rotina interacional, cujas funções serão discutidas neste

estudo.

3 METODOLOGIA

A coleta de textos para o corpus de estudo aconteceu durante o período pós-

eleitoral: a primeira coleta de comentários foi feita em 10/08/2015, após notícia sobre a

participação do senador Aécio Neves em evento público, em que convoca os brasileiros

a aderirem à manifestação contra a presidente Dilma Roussef. A segunda coleta ocorreu

em 11/08/2015, após notícia sobre o presidente Lula e a Marcha das Margaridas,

convocada para dar apoio à presidente.

Embora não se trate de campanha eleitoral, os candidatos e os internautas que

postam comentários comportam-se como se estivessem em campanha, expressando suas

posições a favor ou contra o impeachment da presidente Dilma. Pode-se, assim, afirmar

que se trata de uma situação, se não de conquista de poder, pelo menos de garantia de

poder conquistado nas urnas, de um lado, e de ameaças ao poder, de outro. Isto, por si

só, motiva a ocorrência de linguagem radical e polarizada no corpus.

Como o site é de domínio público¸ decidiu-se por identificar os comentários

publicados. Alguns internautas usam apelidos em suas postagens, outros usam seus

nomes completos, ou apenas os seus nomes de batismo. Os fragmentos retirados do

corpus são identificados, também, por sua ocorrência após a primeira notícia (SC1,

subcorpus 1) ou após a segunda notícia (SC2, subcorpus 2). Os comentários são

apresentados sem revisão, da forma como publicados, com erros de gramática, de

pontuação, de ortografia, dentre vários outros.

Tabela 1 – Perfil do corpus

Corpus estudo Participantes Comentários No. de Palavras Publicação

Subcorpus 11 19 67 1.422 11/08/2015

Subcorpus 22 31 29 2.962 10/08/2015

Total Corpus 50 96 4.384 -

1 Disponível em: <http://oglobo.globo.com/brasil/lula-dilma-apostam-em-movimentos-sociais-para-

contrapor-acoes-de-oposicionistas-17145765>. Acesso em: 11 ago. 2015. 2 Disponível em: <http://oglobo.globo.com/brasil/aecio-diz-que-nao-cabe-ao-psdb-escolher-melhor-

desfecho-para-crise-17143221>. Acesso em: 11 ago. 2015.

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A relação entre o número de participantes e o de comentários atesta a densidade das

trocas interacionais no site de notícias. Os participantes postam seus comentários, mas

também respondem a outros internautas, ou os atacam.

No que diz respeito ao tratamento dos dados, foram adotados os seguintes

procedimentos. Na identificação da linguagem agressiva e hostil, observaram-se os

seguintes critérios. Em primeiro lugar, foi etiquetado o léxico marcadamente valorativo,

em expressão cuja função é injuriar, ou ofender a honra (por exemplo, “vai sair ladrão e

entrar outro ladrão”; “bando de oportunistas”; “Srs. Petistas, integrantes da Organização

Criminosa vulgo PT”; “Clepto Collor”).

Foi igualmente etiquetado o léxico marcadamente valorativo, em expressão cuja

função é o insulto pessoal, como nos exemplos: “são muito otários esses petistas”; “bando

de desocupado com bolsa”; “os baderneiros”; “Aécio Neves e Eduardo Cunha, Os

achacadores do Brasil”; “UNE, esses vaggabundos marginais”.

Os xingamentos também foram etiquetados, como nos seguintes exemplos:

“VAGA BONDS”; “fodam-se a Dilma, o Lula e principalmente os eleitores e

simpatizantes da Organização Criminosa vulgo PT”; “a corjjja de filhos da puta”; “um zé

buc.. desses”; “d[esses] comentaristas chupadores de rôla”.

E, finalmente, foram etiquetadas expressões que desqualificam o outro. Por

exemplo, em “[Glauber] brigou com seu garotão”, o internauta é alvo de ofensa, de teor

marcadamente homofóbico. Em “[Glauber], fique de quatro pastando enquanto um

jumento ti cobre por trás”, a ofensa é exacerbada, pois, além de uma ofensa pessoal,

constitui uma ofensa à honra do internauta.

A partir destes procedimentos de identificação, foram aplicadas as categorias de

Bousfield (2008) para o estudo da impolidez na interação, exemplificadas no decorrer da

análise. As categorias analíticas de Bousfield localizam-se no quadro mais amplo do

modelo linguístico usado para os estudos da polidez de Brown e Levinson (1987). Tais

categorias permitem caracterização mais eficiente de usos de impolidez, se contrastadas

com o uso exclusivo de categorias lexicais, na análise do fenômeno.

Tendo delineado a metodologia e os princípios teóricos que norteiam o trabalho,

introduzem-se, nas seções a seguir, os conceitos de discurso político e de esfera pública,

de forma a entender se o fenômeno da linguagem hostil pode ser acomodado no âmbito

de uma discussão da natureza da esfera pública e de suas funções políticas.

4 OS POSTS EM SITES DE NOTÍCIAS PODEM SER

CONSIDERADOS INSTANCIAÇÕES DO DISCURSO POLÍTICO?

O primeiro compromisso do analista do discurso é indagar se há algo no

funcionamento discursivo das mídias digitais que permite a ocorrência da linguagem do

ódio. No caso do comentário eletrônico, há três traços principais de sua funcionalidade

que poderiam ser vistos como favorecendo a linguagem do ódio: 1) o mesmo não é

editado pelo site, e não sofre cortes, sendo antes publicado em sua integralidade, não

havendo censura de termos ofensivos; 2) o comentário é produzido em tempo real, o que

abre a possibilidade de interação entre internautas que comentam a mesma notícia postada

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no site; em geral, a interação entre os internautas resume-se à troca de ofensas verbais; 3)

o post é feito por um internauta anônimo, que não assume responsabilidade criminal por

seus comentários, frequentemente de teor homofóbico, racista, ou misógino. Seriam estas

as condições exclusivas que motivam a linguagem da ofensa pessoal, tornando

desnecessário o trabalho de face entre interlocutores?

Nossa hipótese de trabalho aproxima-se da de Amossy (2011), que postula que o

flaming não deve ser atribuído exclusivamente a aspectos do funcionamento discursivo

do suporte digital. Assim, uma pergunta que se impõe, imediatamente, diz respeito à

natureza da ordem do discurso3 com a qual se está lidando: os comentários eletrônicos

poderiam ser tratados como instanciações do discurso político, que faria emergir uma

subjetividade da paixão, do sentimento irrefletido, e não da razão ou da reflexão?

Para examinar tal hipótese, apresentamos considerações sobre o discurso político e

discutimos sua aplicabilidade ao corpus de comentários eletrônicos coligidos para este

estudo. Para Laclau e Mouffe (1985, p. 153), o discurso político pode ser entendido de

duas formas. Em sentido estrito, é aquele que apresenta demandas situadas ao nível dos

partidos políticos e do Estado. Em sentido mais abrangente, no entanto, ele pode ser

entendido como o discurso que cria, reproduz, ou transforma relações sociais.

Observa-se que, no seu sentido estrito, a definição de discurso político para Laclau

e Mouffe (1985) baseia-se em critério vinculado ao enunciador do discurso. O discurso

político aqui estaria representado pelos pronunciamentos, acordos, peças legislativas,

executivas, ou de outra natureza, emitidos por figuras públicas como deputados,

senadores, presidentes, procuradores da República, dentre outras possibilidades. Já para

Pinto (2012), os espaços clássicos de enunciação do discurso político foram ampliados

pelas mídias impressa, audiovisual, ou digital, que colocam em circulação a voz de

jornalistas, cidadãos, ou especialistas, que, especialmente em períodos de campanhas

eleitorais, tornam-se enunciadores de discurso político.

O discurso político pode e deve ser entendido, segundo Pinto (2012), de forma

ampla, como toda e qualquer tentativa de fixar sentidos em relação a certo processo

político, sempre de forma precária e passível de contestação, em um cenário de disputa.

Essa disputa se dá no contexto de um quadro conflitual, que repercute, direta ou

indiretamente, sobre aquele processo político (uma campanha eleitoral, uma tentativa de

legislar sobre determinado assunto, um protesto em relação a determinado status quo,

dentre outras possibilidades). O comentário de leitores em sites de notícias, assim, seria

um exemplo destes novos espaços de enunciação do discurso político, visto que, nos

posts, os internautas posicionam-se a respeito de certos processos políticos. No caso deste

trabalho, expressam suas opiniões a favor ou contra o impeachment da Presidente Dilma

Rousseff.

O problema com estas duas formulações é que, nelas, a conceituação de discurso

político é muito abrangente, não levando em consideração, por exemplo, os diferentes

3 Entende-se por ‘ordem do discurso’, segundo Fairclough (2003, p. 220), uma determinada configuração

de gêneros, discursos e estilos, que constituem a dimensão discursiva de uma rede de práticas sociais.

Assim, a ordem do discurso político comporta gêneros específicos (comícios, pronunciamentos, etc.),

discursos característicos (conservador, liberal, etc.) e determinados estilos (formas de dizer e de argumentar

próprias).

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efeitos de sentido que têm os discursos produzidos em locais de enunciação distintos. Os

enunciados colocados em circulação em rodas informais de discussão, ou mesmo em

comentários eletrônicos, na mídia impressa, ou televisiva, não se comparam, em termos

de seus efeitos de sentido (de credibilidade, autoridade, legitimidade), àqueles

codificados em pronunciamentos de figuras públicas da República.

Seria possível argumentar, ainda, que os locais de enunciação do discurso político

também afetam a qualidade da interação entre os participantes discursivos. Por exemplo,

em rodas informais de discussão, as opiniões tendem a ser atenuadas, tendo em vista a

relação de proximidade entre os participantes daquele evento discursivo. Por outro lado,

os comentários eletrônicos, como não são endereçados a interlocutores próximos, em

termos de afeto ou relação social, não precisam necessariamente obedecer ao trabalho de

face que incide sobre interações em que se observa menor distância social e/ou emocional

(por exemplo, em comentários postados em redes sociais).

Para evitar os problemas analíticos que decorrem de uma conceituação muito

abrangente do discurso político, acatamos argumento de Van Dijk (1997), segundo o qual

a categorização de determinado discurso como político depende de sua funcionalidade,

ou de o mesmo ter influência, direta ou indireta, sobre determinado processo político.

Os comentários eletrônicos não são diretamente funcionais nos processos políticos,

no sentido de que não são enunciados produzidos em fóruns políticos, com repercussões

sobre aqueles processos. Sendo assim, eles não devem ser entendidos como instanciações

do discurso político, mas como parte constitutiva do discurso midiático.

No entanto, eles representam intervenções na esfera pública (via discurso

midiático), dando visibilidade às posições antagônicas de atores sociais em determinado

processo político. Trazemos para a próxima seção o conceito de esfera pública de

Habermas, com o objetivo de encaminhar a discussão das funções do flaming.

5 O CONCEITO DE ESFERA PÚBLICA

Habermas argumenta, em A transformação estrutural da esfera pública (1991), que

tanto a natureza quanto as funções da esfera pública mudaram ao longo do tempo.

Correndo o risco de reduzir o argumento do autor, apresentam-se alguns de seus eixos,

buscando elementos para a compreensão da formação da esfera pública moderna, para

em seguida contrapô-la à esfera pública midiatizada da modernidade tardia4.

A esfera pública, nas sociedades inglesa, francesa e alemã, formou-se, no século

XVIII, como um espaço de natureza burguesa, em salões literários. O que contribuiu para

a formação da esfera pública burguesa? A partir do século XVI, com a formação dos

estados-nação e o início de um capitalismo mercantilista, observa-se a perda do poder

feudal e a emergência de um novo estrato social, os burgueses (comerciantes,

empresários, banqueiros), um conjunto de indivíduos que atua nas cidades, locais de

trocas de mercadorias e de informações. Se no mundo feudal a esfera pública resumia-se

4 O termo ‘modernidade tardia’ é usado pelo sociólogo inglês Anthony Giddens, para referência aos dias

de hoje, ao invés de ‘pós-modernidade’. As razões para este uso são fornecidas pelo autor, em pelo menos

dois livros (1990; 1991).

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à teatralização do poder em palácios, na corte, ou em eventos cujo objetivo era dar

visibilidade à “aura” ou prestígio do clero, da realeza ou da nobreza, no mundo pós-feudal

a esfera pública (ou esfera da autoridade pública) passa a ser associada ao novo aparato

do Estado moderno, com sua burocracia e seu sistema de tributação para atender às

demandas crescentes de capital, necessário para a expansão do capitalismo mercantilista

(HABERMAS, 1991, p. 17).

No século XVIII, forma-se uma esfera pública burguesa, que se localiza fora da

esfera da autoridade pública (o Estado), em salões literários, a partir da discussão de

produtos culturais acessíveis nos teatros, museus e concertos (HABERMAS, 1991, p. 29).

Segundo Habermas, quando a cultura deixa de ser um elemento da Igreja ou da Corte, ela

perde seu caráter “sacramental”, é transformada em produto e pode ser “profanada”, ou

seja, tratada como algo que pode ser objeto de discussão (p. 37). A partir daí, as pessoas

privadas passam a ter responsabilidade por determinar seu sentido e isto é feito na forma

de uma discussão racional.

Do ponto de vista de sua função política, a esfera pública burguesa emerge como

um espaço de defesa pública do caráter privado da sociedade. A discussão de objetos de

cultura fornece o terreno para uma reflexão pública sobre questões privadas:

A esfera pública burguesa pode ser entendida inicialmente como a esfera das pessoas

privadas reunidas em um público; elas reivindicam esta esfera pública regulamentada pela

autoridade, mas diretamente contra a própria autoridade, a fim de discutir com ela as leis

gerais da troca na esfera fundamentalmente privada, mas publicamente relevante, as leis do

intercâmbio de mercadorias e do trabalho social. (HABERMAS, 1991, p. 27)5.

Em um segundo momento, observa-se uma mudança estrutural da esfera pública

burguesa. Este espaço, que se restringia aos cafés e salões literários, onde se formava o

gosto e se expressavam juízos críticos, aos poucos amplia-se para abarcar a política e

temas relevantes à vida coletiva. Daqui decorre a noção de que a crítica ao poder político

nasce da crítica de arte: o princípio habermasiano de que qualquer cidadão, independente

de títulos nobiliárquicos ou de qualquer outra natureza, tem o direito de expressar-se em

relação à arte (a uma pintura, a um livro, ou a uma peça de teatro), bastando para tanto

ter capacidade argumentativa, resultou numa concepção de crítica de arte como uma troca

racional de argumentos (DA SILVA, 2001, p. 123). É este princípio iluminista6, da troca

racional de argumentos na esfera pública, ampliado para a discussão de temas políticos,

que vai fortalecer a função política da esfera pública burguesa, como fator de controle e

de legitimação do poder exercido pelo Estado e seu aparato.

A esfera pública dos salões literários e, posteriormente, ampliada para o campo da

política funda-se, argumenta Habermas, em certa subjetividade privada, voltada para si

própria, característica da família patriarcal burguesa, e cresce no solo das ideias ligadas a

um liberalismo econômico nascente, que se opõe ao absolutismo do rei: “as questões na

5 Minha tradução do original em inglês. 6 O iluminismo ocidental do século XVIII caracteriza-se pelo apego às noções de razão, universalidade,

transparência, além daquelas expressas nos ideais da Revolução Francesa: liberdade, igualdade,

fraternidade.

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esfera da reprodução social [são ou devem ser tratadas como] uma questão de indivíduos

privados, responsáveis por si próprios” (p. 74)7. A esfera pública burguesa seria então

uma categoria da sociedade liberal, que afirma a primazia do indivíduo em relação ao

Estado.

No final do século XVIII, emerge a chamada ‘opinião pública’, que se refere às

reflexões críticas de um público competente para formar seus próprios argumentos: a

imprensa na Grã-Bretanha foi vista, pela primeira vez, como um instrumento

genuinamente crítico, de um público engajado em um debate público racional de ideias

(p. 60). Já no final do século XIX, com o advento do capitalismo industrial, a emergência

de uma democracia de massas e o aparecimento da indústria cultural, a esfera pública

burguesa entra em decadência, observando-se uma mudança em sua natureza e uma

“refuncionalização” de seus papeis. À medida que ela se estende ao domínio do consumo,

argumenta Habermas (p. 160), a esfera pública enfraquece-se e torna-se apolítica. As

instituições que até então garantiam a coerência do público, como uma entidade autônoma

e capaz de conduzir o debate racional de ideias públicas, vão se enfraquecendo (p. 162).

De uma subjetividade privada, mas orientada para o debate público de ideias, passa-

se a uma subjetividade desprivatizada pelas mídias de massa, que passam a adaptar-se ao

gosto de seus consumidores. De um público que debate a cultura para um público que

consome cultura, resume Habermas (p. 162).

Há várias leituras críticas do conceito habermasiano, centradas em dois núcleos

principais: em primeiro lugar, critica-se a natureza do conceito como um construto

idealizado, normativo, uma forma histórica específica da época em que é formulada

(FRASER, 1990, p. 57). Tal construto só teria validade no interior do quadro do

Iluminismo, em que a razão é vista como pensamento racional, crítico e transparente e no

quadro do nascente liberalismo econômico, próprio da Europa do início do período

moderno, que funciona como um contrapeso ao estado absolutista (1990, p. 59).

Outra vertente crítica aponta as limitações da constituição da esfera pública

burguesa: a mesma não contempla vários setores da sociedade civil, como as mulheres,

os operários, os trabalhadores “não-burgueses”. Para Fraser (1990, p. 60), havia várias

esferas públicas desde o início, não apenas a partir do final dos séculos XIX e XX, como

argumenta Habermas.

Mais importante para o tema deste trabalho é a postulação de que o conceito de esfera pública

habermasiano precisa ser repensado, pois se, por um lado, ampliou-se o seu alcance de forma

inegável (com as mídias digitais), por outro, diminuiu-se consideravelmente o leque de suas

funções políticas. Segundo Wolton (1995, p. 167), “[...] o espaço público contemporâneo

pode ser designado por ‘espaço público mediatizado’, no sentido em que é funcional e

normativamente indissociável do papel dos media.”

Embora admita que a esfera pública deixou de ser constituída de forma homogênea,

por uma camada culta, e passou a dividir-se em uma minoria de especialistas e uma massa

de consumidores de informação, Habermas (1991) re-afirma a importância da esfera

pública e a existência de um público crítico, participativo e racional, em contraponto à

7 “[...] a matter of private people left to themselves”.

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massa amorfa de consumidores de informação, além de argumentar pelo papel relevante

das mídias (ou meios de comunicação social) no levantamento de temas para debate

público.

Chouliaraki e Fairclough (1999) caminham na mesma direção das críticas ao

conceito habermasiano, ao observar que, enquanto as análises do espaço público moderno

identificavam uma esfera pública unificada, análises recentes, na modernidade tardia,

apresentam um cenário distinto: há muitas esferas públicas, organizadas em torno das

agendas próprias de diferentes movimentos sociais (como o feminismo, a ecologia, dentre

várias outras). No entanto, prosseguem os autores, interessa preservar, do conceito

habermasiano, a ideia de que é da natureza da esfera pública o uso de uma forma particular

de linguagem, aquela que se observa no debate racional de questões de interesse coletivo:

“De forma a conseguirem agir de forma conjunta, as pessoas precisam dialogar”8.

Este diálogo não pressupõe o consenso, dizem Chouliaraki e Fairclough (1999);

muito pelo contrário, ele comporta um espaço para a explicitação (inclusive polêmica)

das diferenças e também para a construção de alianças, acima das diferenças9.

Trazendo novamente a discussão para o tema desta pesquisa, até que ponto os

comentários eletrônicos se adequam à forma particular de linguagem usada para

intervenção na esfera pública? Para aproximar-me desta questão, trago, na seção a seguir,

considerações sobre a esfera pública midiatizada como forma de introduzir a polêmica

sobre a existência ou não de uma esfera pública digital.

6 A ESFERA DIGITAL: UM ESPAÇO PÚBLICO OU UMA ESFERA PÚBLICA?

Butsch (2007) argumenta que as mídias digitais tornaram-se forças centrais na

esfera pública no final do século vinte, dada a sua variedade, o seu alcance e a sua

convergência. Para o autor, vivemos hoje uma era de intensos debates sobre o impacto

das mídias nas instituições e na esfera pública, que poderia ser sintetizado na seguinte

questão: quais mídias afetam que tipos de esfera pública?

As respostas a estas questões são contraditórias, mas todas as pesquisas que se

ocupam da relação entre mídia e esfera pública tentam esclarecer em que medida as

mídias contribuem para fortalecer ou prejudicar uma esfera pública democrática, com

ampla participação dos vários grupos que constituem a sociedade. A esfera pública

midiatizada tem o papel de levantar temas de interesse coletivo, como a esfera pública

burguesa de Habermas? Tem a função de servir como controle e legitimação das

instâncias de poder? E a função de manter-se como um espaço privado, fora do controle

do estado?

8 No original, em inglês: “In order to act together, people need to talk together.” (CHOULIARAKI;

FAIRCLOGH, 1999). 9 Chouliaraki e Fairclough (1999, p. 64) não desconhecem os problemas colocados pelo conceito de

‘diálogo’, que depende da acessibilidade de todos à esfera pública; da simetria de papeis dos participantes;

da liberdade de expor sua visão particular; do compromisso com a aliança, ou seja, com uma visão que

ultrapasse a visão particular de cada participante.

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No que diz respeito às mídias digitais, Papacharissi (2002) argumenta que a internet

pode ser vista como um “espaço público”, mas não como uma “esfera pública” em moldes

habermasianos, um espaço que promove uma troca racional e democrática de ideias e

opiniões. A autora cita Lyotard (1984), por exemplo, que criticou o conceito

habermasiano de esfera pública, argumentando que, mais do que o acordo racional, “o

que leva à verdadeira emancipação democrática é a anarquia, a individualidade e o

desacordo” (PAPACHARISSI, 2002). Fraser (1990), como vimos, ampliou as críticas a

Habermas, observando que a esfera pública burguesa constituía um espaço para o

exercício de liderança de homens privilegiados, que excluía mulheres e indivíduos não-

proprietários10.

Embora não possa ser vista como uma esfera pública no sentido habermasiano,

Papacharissi (2002) admite que a mídia digital “é uma ferramenta útil, que pode servir

para dar um feedback direto para os políticos”. E vai mais longe: a anonimidade das

mídias digitais favoreceria a expressão mais franca e aberta de posições políticas11.

É com este entendimento e com a visão de que o flaming ocorre em um contexto de

trocas interacionais situadas em um ambiente de dissenso (AMOSSY, 2011) que

abordamos o corpus de estudo, nas seções a seguir.

7 ESTRATÉGIAS DE IMPOLIDEZ (FLAMING) NOS COMENTÁRIOS ELETRÔNICOS

Bousfield (2008, p. 1) argumenta que “os discursos contendo ilocuções polêmicas

(algumas delas sendo constituídas de linguagem ofensiva) não são fenômenos marginais”.

Pelo contrário, em alguns discursos, a polêmica é mais central do que em outros, continua

o autor, e cita Culpeper (2008), para alguns exemplos: o discurso do treinamento de

oficiais no Exército, das cortes judiciais, da família, o discurso terapêutico, o discurso dos

adolescentes, dentre vários outros.

A maior parte dos estudos voltados para a linguagem da impolidez toma como

ponto de partida os estudos de Brown e Levinson, um modelo linguístico para o estudo

do gerenciamento da face. Bousfield (2008) faz o mesmo, mas complementa seu quadro

teórico analítico com o conceito de norma social (ou visão leiga da polidez), além do

princípio das máximas conversacionais de Lakoff (1973) e de Leech (1983, 2005). No

que diz respeito ao primeiro, o autor argumenta que é preciso olhar para a historicidade

da polidez e para a forma como os leigos compreendem as normas sociais, algo que faltou

no modelo de Brown e Levinson e foi consistentemente criticado.

Bousfield (2008, p. 72) define a impolidez como “o oposto da polidez”. Se na

polidez tenta-se mitigar atos que constituem ameaças potenciais à face, na impolidez tais

atos são intencionalmente gratuitos e polêmicos. Os atos que ameaçam a face são, assim,

produzidos: 1) de forma não mitigada, em contextos em que a mitigação é necessária,

10 No original, em inglês, o termo é ‘nonpropertied classes’. 11 No original inglês: “relative anonymity encourages discussion participants to be more vocal and upfront

about stating their beliefs.”

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e/ou, 2) com agressão deliberada, ou seja, com a face exacerbada, de alguma forma

maximizados para ampliar o dano infligido à face.

Além do mais, continua Bousfield (2008, p. 73), “para que haja impolidez, a

intenção do locutor de ofender (ameaçar ou causar danos à face) precisa ser compreendida

pelo interlocutor”. Neste sentido, o autor acompanha Culpeper, que também argumenta

que interessa, aos estudos da linguagem, não a impolidez acidental, mas aquela estratégica

ou instrumental, que realiza uma função específica.

As categorias usadas por Bousfield (2008) são aquelas de Culpeper (2011),

organizadas em torno das macroestratégias de ataque à face (positiva ou negativa) do

interlocutor (p. 82). Por razões de espaço, apenas as estratégias realizadas no corpus de

estudo serão descritas.

Predominam, no corpus, os ataques à face positiva do interlocutor, através de várias

estratégias, que serão exemplificadas a seguir. A primeira delas é “Ofenda o seu

interlocutor – use termos derrogatórios (injúrias, insultos)”:

Glauber • há 3 horas (SC1)

Xamelez Aparecida, dizer que eu defendo o Lula é a prova de seu retardo mental. Faça o

seguinte: fique de quatro pastando enquanto um jumento TI cobre por trás.

Aparecida Ferreira • há 3 horas (SC1)

Ê COM UM DETALHE.... ESSE GLAUBER COMEÇOU CEDO HOJE..... A MULHER

DEVE TER COLOCADO ELE PRA FORA DA CAMA ...

Glauber • há 3 horas (SC1)

Múmia de extrema direita, viúva da dentadura, digo, ditadura. Todas as mehdas feitas pelo

PT não apagam as mehdas feitas pela direitalha golpista.

Observa-se que as ofensas são de caráter sexual (muito comuns, no corpus), nos

dois primeiros casos, e de natureza ideológica (“múmia de extrema direita”), no terceiro

enunciado. Mas há também uma ofensa pessoal, no primeiro excerto (“prova de seu

retardo mental”).

Nestes exemplos, os internautas interagem em tempo real e ofendem-se,

mutuamente, de forma direta. No entanto, podem ser considerados usos de impolidez

enunciados em que os internautas não se dirigem a seus interlocutores, mas fazem

comentários ofensivos sobre terceiros. Uma estratégia muito comum, nestes casos, é

“Use linguagem tabu (use palavrões, seja abusivo, expresse opiniões fortes, opostas à de

seu interlocutor)”:

Imelton Pires de Azevedo • há 2 horas (SC1)

Olha só a cara de cachacei.. desse sujeito. Como pode um zé buc.. desses, ter tanta

importância nesse país? Um país com 200 milhões de habitantes? Um povo que vota no

Collor, no Renan, no Maluf ... Todo sofrimento para esses eleitores ainda é pouco.

Sergio Ricardo • há 2 horas (SC1)

OLHEM A CARA DE D.E.S.E.S.P.E.R.O DESSE VERME. Hilário.

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Em exemplos como estes, não há troca direta entre os internautas. Os xingamentos,

os palavrões, são atribuídos a terceiros (nos exemplos acima, ao ex-presidente Lula). Para

quem estes enunciados são considerados ofensivos? As ofensas são dirigidas a qualquer

outro internauta visitando o site, com posições diferentes daquelas de quem faz a

postagem. É um Outro imaginário, de posição ideológica (contra ou a favor da presidente

Dilma) distinta da do internauta.

Para Bousfield (2008, p. 138), para que os palavrões sejam considerados ofensivos,

eles não precisam endereçar-se ao interlocutor, ou mesmo ser usados para dar ênfase a

uma estratégia de impolidez dirigida ao interlocutor. O uso de palavrões, ou quaisquer

outras formas de expressão consideradas tabu, pode ser ofensivo, nestes casos, pois é um

uso de linguagem que causa desconforto àqueles que a ouvem. Há, no arcabouço teórico,

uma estratégia (“Faça o seu interlocutor sentir-se desconfortável”) que poderia

representar estes usos de linguagem ofensiva.

No entanto, continua o autor, a questão da intenção de ofender deve ser

problematizada. Neste estudo, depreende-se a natureza ofensiva da linguagem no co-

texto: os internautas têm posições antagônicas, no interior de um quadro de dissenso, e

ofendem seus interlocutores quando ofendem terceiros alinhados às suas posições. Isto

fica claro em enunciados como o que segue:

Jorge Wehbeh • há 1 hora (SC2)

Senhores Petistas única palavra de consolo do fundo do meu coração é FO DAM-

SEEEEEEEEEEEEEEEE a Dilma, o Lula e PRINCIPALMENTE os eleitores e

simpatizantes do PT, Ex-tesoureiro do PT visitou sede da Andrade Gutierrez 53 vezes em

sete anos, diz MPF, e ainda tem idio/ta que quer defender esses ladrões do PT.

Neste enunciado, a linguagem abusiva (“fodam-se”) é atribuída a terceiros (à

presidente Dilma, ao ex-presidente Lula, além de a “simpatizantes do PT”), mas o

enunciado é claramente endereçado, através do uso do vocativo “Senhores Petistas”, que

dá consistência, no discurso, ao interlocutor imaginário do internauta. Ele ofende, não um

interlocutor especificamente, mas todos aqueles (“senhores petistas”) que figuram no

contra-discurso antagonista.

Tanto no caso de ilocuções endereçadas a interlocutores específicos, quanto no caso

de ilocuções não endereçadas (dirigidas a um Outro imaginário, localizado no contra-

discurso antagonista), os enunciados ofensivos ameaçam a face positiva do interlocutor,

ou seja, o seu desejo de reconhecimento, de ser visto de forma favorável. Mas foram

observadas também ameaças à face negativa do interlocutor (seu desejo de preservar o

seu território, sua liberdade de ação e permanecer livre de imposições).

Várias estratégias são usadas nos ataques à face negativa do interlocutor. A primeira

delas é “Amedronte (seu interlocutor) – instile a crença de que ações prejudiciais a ele

irão acontecer”:

M Vogel • há 3 horas (SC2)

É nessa hora que eu gostaria que surgisse no Brasil um novo Hitler para colocar diante de um

pelotão de fuzilamento toda essa turma do PT (Dies ist, wenn ich in Brasilien entstanden

wünschen eine neue Hitler vor einem Erschießungskommando diese ganze Klasse von PT

setzen)

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Neste enunciado, a internauta mobiliza os medos de seus antagonistas através da

referência a Hitler e ao pelotão de fuzilamento. Como forma de exacerbar sua ameaça, a

internauta repete-a em alemão, como se a adoção daquela língua tivesse o poder mágico

de realizar a ameaça. Também aqui o enunciado é codificado em relação a um terceiro

(“essa turma do PT”) e não endereçada diretamente a um interlocutor, mas o fato de o

coocorrer com enunciados de internautas em posição ideológica claramente contrária à

da internauta é evidência de que há intenção de ofender.

Outra estratégia de ameaça à face negativa do interlocutor é “Condescenda, ou

ridicularize seu interlocutor – enfatize o seu próprio poder, use diminutivos, demonstre

desprezo, diminua o outro, não leve o outro a sério”:

Marcio Fabrini • há 3 horas (SC2)

Incrivel, ele foi no encontro dos senadores com a presidenta? Não. Mas na passeata vai.

Né? Olha trabalhar que é bom ninguem quer. Mas fica de prosa contra o pais todo. Só um

detalhe: O PT é uma droga, o Psdb idem, quem está ao lado ou atra da Dilma idem. O mais

importante nisso que todos desastras delas e imperfeições adiministrativas. Ninguem pode

meter o dedo na cara dela e dizer você é ladra. Agora isso eu não tenho certeza dos que

querem o lugar dela e é muita gente. Acorda Brasil acorda.

A ofensa inicial (“vai na passeata mas não vai ao encontro dos senadores”) é

dirigida ao senador Aécio Neves, com o sentido de que ele não deve ser levado a sério.

Este sentido é reforçado pela expressão “trabalhar que é bom ninguém quer”, uma ofensa

de caráter mais geral, haja vista o pronome indefinido (“ninguém quer trabalhar”), que se

aplica tanto ao senador quanto a qualquer outro indivíduo que participe de passeata. Prova

de que há também outro destinatário para o enunciado, todo aquele que não se alinha às

posições do próprio internauta, fica evidente no último enunciado: “Acorda Brasil

acorda.” A convocação dirigida ao país é na verdade uma ameaça à face negativa dos

leitores da notícia, através de uma outra estratégia, qual seja “Invada o espaço do outro –

literal ou metaforicamente”.

No caso desta última ocorrência, a invasão de espaço é metafórica, entendendo-se

que certas rotinas interacionais (ordens, perguntas de foro íntimo, proibições) são

admitidas apenas quando a relação entre os participantes discursivos é próxima, o que

não é o caso aqui. Em “Acorda Brasil acorda”, o internauta dá ordens a um interlocutor

indefinido, recuperado na metonímia ‘Brasil’, que tem como referente os brasileiros em

geral. No exemplo a seguir, observa-se a mesma estratégia:

Francisco Franciam Dutra • há 4 horas (SC2)

Senador Aécio, desça do palanque, desde que terminou as eleições, você não faz outra coisa

há não ser querer derrubar um governo eleito legitimante pelo povo brasileiro, se foi

estelionato eleitoral, quem vai cobrar é o povo brasileiro nas próximas eleições, não queira

ser o salvador da pátria, apenas não seja um irresponsável, apoiando manifestações contra

um governo que está passado pela uma crise econômica e politica,

TODA MANIFESTAÇÃO É JUSTA DESDE QUE SEJA PARA PROTESTAR E NÃO

PRA DA GOLPE

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A ordem para o senador “descer do palanque” caracteriza-se como uma ameaça à

sua face negativa, através da mesma estratégia de invadir o espaço do outro. Acresce a

esta ameaça à face negativa do senador uma ameaça à sua face positiva, através da

estratégia de “Xingue o outro – use termos derrogatórios”: “não queira ser o salvador da

pátria”, “não seja um irresponsável”.

Outra possibilidade de classificação aqui, em relação ao mesmo exemplo, seria

entender que o enunciado realiza a estratégia “Force a mudança de papel [de seu

interlocutor]” (BOUSFIELD, 2008, p. 131). Em “Senador Aécio, desça do palanque”, a

estratégia funciona ao convocar o senador a sair de um papel social (de candidato a

presidente) e assumir outro (de senador da República). Trata-se de uma ameaça à face

negativa do senador, pois invade o seu território, a sua liberdade de ação; ao mesmo

tempo, funciona como uma ameaça à face positiva do senador, pois representa uma crítica

à sua atuação “no palanque”. A dupla ameaça (à face negativa e positiva) é frequente no

corpus, como mostra o exemplo a seguir:

Arthur Fraga • há 16 horas (SC2)

O que cabe ao PSDB já "cabeu"! Como o Vasco da Gama, um "vice", nada mais, na última

eleição. No mais, é o tradicional "jus esperniandi" de quem PERDEU A ELEIÇÃO POR

MAIS DE 3 MILHÕES DE3 VOTOS. Pedir outra eleição é válido. Vai ter outra mesmo, mas

no prazo constitucional. Golpe de mão, só na construção de aeroporto em terras de "parentes".

Para Miami já, "pray-boy" capiau!

A ameaça à face negativa mais uma vez traduz-se em um enunciado com uma

ordem (“para Miami, já”), que ameaça a liberdade de ação do senador. E o léxico

valorativo (““pray-boy” capiau”) representa uma ameaça à face positiva do senador.

Mais uma vez é preciso lidar com a dificuldade analítica de um quadro que tem

como condição necessária para a impolidez o reconhecimento, por parte do interlocutor,

da natureza ofensiva do enunciado. O que justifica o reconhecimento destas ilocuções

como ofensivas é que as mesmas buscam, intencionalmente, causar danos à face do outro.

Ainda que este outro seja um terceiro, o dano à sua face (positiva ou negativa) é um dano

à face daqueles que se alinham a ele, naquela faixa do espectro ideológico. Deveriam

estes enunciados (que não ofendem diretamente seus interlocutores, mas terceiros) ser

considerados “ameaças incidentais” à face (Bousfield, 2008, p. 68)?

Bousfield observa que as ofensas incidentais ocorrem quando há efeitos não-

planejados de uma ação e dá como exemplo o questionamento, por parte de um indivíduo,

de uma multa de trânsito. Quando resiste a aceitar a multa, o indivíduo ameaça a face do

policial de trânsito, colocando em dúvida sua autoridade para penalizá-lo. É exatamente

por esta percepção de que sua ilocução é uma ameaça potencial à face do policial que o

indivíduo usa várias formas linguísticas para amenizar o impacto de seu enunciado.

No caso dos enunciados com ofensas a terceiros, aqui em discussão, as ameaças são

intencionais, em primeiro lugar, tanto à face do terceiro quanto à daqueles que com ele se

alinham, no espectro ideológico. Em segundo lugar, elas cumprem determinadas funções,

quais sejam, 1) a de distanciamento no espectro ideológico; 2) a de dar nitidez às posições

que animam os internautas. Damos sequência ao exame destas funções, na seção a seguir.

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8 CONCLUSÃO: AS FUNÇÕES DO FLAMING NO ESPAÇO PÚBLICO DIGITAL

A visão de Amossy (2011), de que o fenômeno do flaming deve ser visto no quadro

mais amplo do discurso polêmico (que se desenvolve a partir de um contexto de trocas

agonísticas), permite encaminhar uma discussão mais fundamentada sobre as funções do

flaming no espaço público digital.

O primeiro ponto é anotar que a violência verbal no corpus não configura uso

gratuito de linguagem ofensiva, no quadro de uma interação problemática com certo

interlocutor (O’SULLIVAN; FLANAGIN, 2003), ou sequer artifício usado

exclusivamente para expressar a indignação do internauta. Muito pelo contrário, o

flaming no corpus de estudo aparece de forma sistemática, endereçado a um interlocutor

imaginário, que se coloca, no espectro ideológico, em campo oposto ao do locutor, ou no

âmbito de um contra-discurso. Neste sentido, o flaming pode ser visto como uma rotina

interacional usada para delimitar diferentes posições discursivas, no âmbito do discurso

polêmico.

Bousfield (2008) argumenta que a tentativa de classificar os usos de linguagem tabu

e ofensiva, quer como expressão emocional (raiva, indignação, etc.), ou como ameaça

estratégica à face do outro, de forma exclusiva (ou é isso ou é aquilo), não é produtiva:

uma forma mais promissora de encaminhar uma análise deste tipo de linguagem seria em

termos da distribuição dos seus usos, por tipo de participante discursivo. Quem pode usar

linguagem abusiva e em que situações? De que forma esta distribuição é motivada por

questões ligadas a poder, no discurso?

No caso dos internautas neste corpus de pesquisa, não há assimetria nas relações de

poder entre os participantes discursivos, sendo assim as ofensas ocorrem dos dois lados.

É preciso admitir que, em usos de linguagem ofensiva, ao invés de estar atento à face do

interlocutor, o locutor tenta atacar e ameaçar a sua face, para cumprir certos propósitos

extra-linguísticos (BOUSFIELD, 2008). O objetivo extra-linguístico dos internautas

parece ser o de dar visibilidade às suas posições, explicitando suas diferenças na esfera

pública.

Este seria um importante primeiro passo na direção de um discurso democrático,

pois, sem o reconhecimento da diferença, não há possibilidade de se construir acordos.

Nos termos de Chouliaraki e Fairclough (1999), o diálogo para construir acordos não

pressupõe o consenso; muito pelo contrário, ele comporta um espaço para a explicitação

(inclusive polêmica) das diferenças.

Retornando à questão de pesquisa que motivou este estudo, relativa à possibilidade

de se acomodar o fenômeno do flaming no âmbito de uma discussão da natureza da esfera

pública e de suas funções políticas, há dois pontos a serem considerados. Em primeiro

lugar, no caso dos comentários eletrônicos em sites de notícias, é preciso interrogar-se

sobre a conveniência de se tratar este espaço como uma esfera pública, no sentido

habermasiano. Embora seja mais apropriadamente caracterizado como um ”espaço

digital”, por sua fragmentação, esta mídia ainda se mantem como um espaço privado, fora

do controle de instâncias de poder (seja jornalística, administrativa, estatal, ou qualquer

outra).

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No entanto, o caráter privado desses espaços não parece ser suficiente para que se

exerça, neles, a função de controle e legitimação das instâncias de poder, ou sequer a

função de levantar temas de interesse coletivo, visto que os comentários configuram-se

como reações a uma pauta da própria mídia. Não funcionam, neste sentido, como uma

esfera pública, no sentido habermasiano.

Em segundo lugar, e para terminar fazendo uma afirmação sobre as características

linguísticas do fenômeno estudado, o flaming, nos comentários eletrônicos analisados,

materializa-se na forma de ameaças à face negativa ou positiva dos interlocutores, o que

representa uma tentativa de desqualificar, ou reduzir ao silêncio, o Outro de um discurso

antagonista. As ameaças à face são codificadas em linguagem radical e polarizada, que

não cumpre os requisitos para a “forma particular de linguagem” própria do debate

racional de questões de interesse coletivo. Assim vistos, os comentários eletrônicos não

se qualificam para o estatuto de discurso democrático, aquele que pressupõe o

compromisso com a aliança, ou com uma visão que ultrapasse a visão particular de cada

participante discursivo (CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999, p. 64)12. Somente o

discurso democrático garantiria o funcionamento de uma esfera pública em moldes

habermasianos.

Se não se qualifica para o estatuto de discurso democrático, e não se adequa às

formas de dizer próprias do debate racional de questões de interesse coletivo, o discurso

polarizado e radical das mídias digitais serve exclusivamente, como argumentam vários

pesquisadores, ao propósito de criar um espetáculo para atrair leitores?13. Ou seria

possível atribuir ao flaming outra função: a de teatralizar as posições discursivas, em um

quadro de dissenso, dando corpo e forma às diferenças que animam aquele quadro?

No pequeno corpus de estudo, as intervenções dos internautas podem ser vistas

como a expressão franca e aberta de suas posições políticas e a função do flaming parece

ser a de conferir nitidez a essas posições discursivas, o que permite o gerenciamento de

situações de conflito no espaço público, conforme argumento de Amossy (2011). Resta

saber se a expressão franca e aberta de um conflito, garantida pela acessibilidade universal

ao debate coletivo proporcionado pelas mídias digitais, pode compensar a perda de

racionalidade do debate público.

Para Habermas, “o conflito e o consenso [...] não são categorias que permanecem

refratárias ao desenvolvimento da sociedade” (1991, p. 250). A análise das

transformações da esfera pública e de sua capacidade de assumir funções apropriadas

“determina se o exercício da dominação e do poder persistem como uma constante

negativa, por assim dizer, da história – ou se, sendo, elas mesmas [a dominação e o poder]

categorias históricas, estão abertas a mudanças substantivas” (1991, p. 250). O presente

estudo pretende contribuir para esta tradição de pesquisas, ao levantar questões sobre a

função do flaming na esfera pública midiatizada.

12 Cf. ainda Laclau (2005, p. 81): no discurso democrático, o social é feito de diferenças e as identidades

sociais podem ser contraditórias, diferentemente do discurso populista, em que as relações entre identidades

sociais são de puro antagonismo. 13 “[...] la mise en spectacle de la polémique à la fin de captation (Charaudeau, 2005)” (AMOSSY, 2011).

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Recebido em: 02/06/16. Aprovado em: 27/0916.

Title: Flaming (or verbal violence in digital media) and its functions in the public sphere

Author: Anna Elizabeth Balocco

Abstract: In this article, we are concerned with the function of flaming (hostile language) in

the public sphere, drawing on a case study of electronic posts published in a news site, after

President Dilma Roussef´s electoral campaign in 2015. To this end, the concepts of public

sphere (HABERMAS, 1991) and polemical discourse (AMOSSY, 2011) are introduced, as

well as Kayany´s (1998) conceptualization of flaming. For corpus analysis, Bousfield´s

(2008) categories for the study of impoliteness in language are adopted. It is argued that

verbal violence (in the form of positive and negative face threats in the corpus) is systematic,

addressed to an imaginary interlocutor positioned in an antagonistic field; and that, although

flaming does not contribute to a Habermasian public sphere, characterized by the rational

debate of public issues, it nonetheless serves the purpose of making distinct positions in

discourse explicit, allowing for conflict situations to be managed in the digital sphere.

Key-words: Flaming. Hostile language. Impoliteness. Digital media. Electronic post.

Título: El flaming (o violencia verbal en media digital) y sus funciones en la esfera pública

Autor: Anna Elizabeth Balocco

Resumen: Este artículo discute la función del flaming (KAYANY, 1998) en la esfera pública,

desde un estudio de caso de comentarios electrónicos publicados en una portada de noticias,

después de la campaña electoral de la Presidente Dilma Roussef, en 2015. Para ello son

introducidos conceptos de esfera pública (HABERMAS, 1991) y discurso polémico

(AMOSSY, 2011). Para el análisis de corpus son adoptadas categorías analíticas de

Bousfield (2008) para el estudio da falta de cortesía en el lenguaje. Fueron identificadas en

el corpus amenazas al lado positivo y negativo de los interlocutores. Se argumenta que la

violencia verbal aparece de forma sistemática, direccionada a un interlocutor imaginario

que se pone, en el espectro ideológico, en campo opuesto aquél de lo locutor. Aunque no

contribuya para una esfera pública en modelos habermasianos, caracterizada por el debate

racional de cuestiones de interés colectivo, el flaming puede ser visto como una rutina de

interacción usada para delimitar diferentes posiciones discursivas en el ámbito del discurso

polémico.

Palabras-clave: Flaming. Lenguaje ofensivo. Falta de cortesía. Media digital. Comentário

electrónico.

Este texto está licenciado com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.

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LEITE, Jan Edson Rodrigues; ESPÍNDOLA, Lucienne; NÓBREGA Mônica (Orgs.). Apresentação do dossiê cognição e interface: educação, tecnologia, saúde/neurociência e sociedade. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 16, n. 3, p. 523, set./dez. 2016.

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DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1982-4017-1603APD-0000

APRESENTAÇÃO/PRESENTATION

Este dossiê – Cognição e Interface: Educação, Tecnologia, Saúde/Neurociência e

Sociedade – tem como objetivo articular pesquisas e estudos entre a Linguística Cognitiva

e outros campos do saber que se dedicam à cognição humana, nas perspectivas da

Saúde/Neurociências, das Ciências da Educação, da Tecnologia da Informação e das

Ciências Sociais. Propomos, com essa temática, divulgar reflexões da teorização

linguística em torno da problemática cognitiva, presente de forma cada vez mais incisiva

e promissora na agenda dos estudos sobre a linguagem (e na agenda das ciências da

cognição).

Os artigos selecionados para este dossiê representam algumas das pesquisas mais

promissoras, desenvolvidas no Brasil e no exterior, sob o arcabouço teórico e

metodológico da Linguística Cognitiva e que permitem vislumbrar o alcance dos modelos

de análise linguístico-cognitivos sobre os fenômenos de que se ocupam a Educação – a

exemplo da discussão sobre as relações entre semântica e educação; a Tecnologia e seus

usos nos estudos semânticos e lexicográficos; a Sociedade, observada a partir de

processos sociocognitivos na linguagem; a Saúde e o emprego das relações entre

linguagem, interação e cognição em suas práticas; a Neurociência – a exemplo da

correlação entre processos biológicos e culturais na investigação de fenômenos como a

leitura; e a própria Linguística, ao lançar novas luzes sobre fenômenos como a

relatividade nos estudos da linguagem e da cognição espacial.

Não faz muito tempo que a Linguística Cognitiva se consolidou como uma área de

estudos das mais produtivas na ciência brasileira e é sua natureza enciclopédica,

transcultural e interdisciplinar que legitima seu escopo explicativo sobre os fenômenos

em discussão nesta Revista. As investigações aqui relatadas são recorte e amostra do

arsenal explicativo da área e representam os temas discutidos durante VII Conferência

Linguística e Cognição, que ocorreu em João Pessoa (PB) em agosto de 2015. Desejamos

que a leitura seja produtiva e que desperte o interesse para as várias outras pesquisas

apresentadas no Evento.

Jan Edson Rodrigues Leite

Lucienne Espíndola

Mônica Nóbrega

Organizadores.

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MIRANDA, Neusa Salim; LOURES, Luciene Fernandes. Da análise semântica do discurso à ação educativa – um mapa da crise da sala de aula. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 16, n. 3, p. 525-546, set./dez. 2016.

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DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1982-4017-160301-0116D

DA ANÁLISE SEMÂNTICA DO DISCURSO À AÇÃO EDUCATIVA

– UM MAPA DA CRISE DA SALA DE AULA

Neusa Salim Miranda*

Universidade Federal de Juiz de Fora /FAPEMIG

Juiz de Fora, MG, Brasil

Luciene Fernandes Loures**

Colégio Tiradentes da Polícia Militar de Minas Gerais

Juiz de Fora, MG, Brasil

Resumo: Este artigo apresenta a trajetória de um macroprojeto de natureza híbrida –

Linguística e Educação – que, por uma década, mediante o desenvolvimento de doze Estudos

de Caso fixados no cenário escolar, vem trabalhando um modelo de análise do discurso

baseado na Semântica de Frames e nos Modelos de Linguagem baseados no Uso. Valendo-

se da narrativa de práticas de alunos e professores como metodologia de constituição de

seus corpora, este estudo permitiu traçar um mapa da crise da sala de aula, com suas causas,

consequências e, também, rotas de saída, o que tem conduzido não só à consolidação de um

modelo de análise do discurso, como a novos caminhos para a ação educativa na sala de

aula de Língua Portuguesa e no processo de formação de professores.

Palavras-chave: Semântica de Frames. Análise do discurso. Vivência escolar.

“Quem elegeu a busca não pode recusar a travessia.”

(BOSI, 2003)

1 INTRODUÇÃO

A epígrafe eleita remete ao conto Sequência (ROSA, 1962, apud BOSI, 2003), que

tematiza a busca dificultosa de uma vaquinha pitanga, uma rês fujã (que viajava que nem

uma criatura cristã) e de um senhor-moço que, no vão do mundo, ia, atrás dela, sem saber

para onde, com vontade de desistir. E Bosi (2003, p. 45), interpretando o sentido das

travessias de Guimarães Rosa, sentencia “Quem elegeu a busca não pode recusar a

travessia.”.

É sobre uma busca, igualmente dificultosa, de um projeto de pesquisa de natureza

híbrida – Linguística e Educação, no curso de uma década, que este artigo se debruça,

mostrando também a travessia que não pôde recusar-se a empreender.

A primeira questão mobilizadora deste estudo foi a percepção intuitiva e cotidiana

de uma crise das práticas interacionais e linguísticas em instâncias públicas em nossa

* Professor Associado. Pós-doutora em Linguística. E-mail: [email protected]. ** Professora de Língua Portuguesa. Mestre em Linguística. E-mail: [email protected].

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sociedade (cerimônias religiosas, formaturas, cinemas e outros espaços de lazer e cultura).

Falta de delicadezas, de generosidade; ostentação e individualismo; confusão entre o

direito à fala e o dever da escuta; invasão, no domínio público, de práticas sociais do

mundo privado.

Deste incômodo veio a pergunta – Qual seria o impacto de tais práticas em sala de

aula? – e nasceu o primeiro projeto investigativo (MIRANDA, 2007-2015)1.

Seis estudos de caso desenvolvidos (LIMA, 2009; PINHEIRO, 2009;

BERNARDO, 2011; ALVARENGA, 2012; FONTES, 2012; FONSECA, 2015)

trouxeram à luz um conjunto significativo de generalizações analíticas sobre as vivências

em sala de aula de ensino fundamental em redes públicas. A análise desta realidade, vista

sob o ângulo de relatos de experiência de docentes e discentes minuciosamente analisados

em termos de frames suscitados e reiterados na voz coletiva (Semântica de Frames e

Modelos de Linguagem baseados no Uso), traçou, de modo contundente, um “mapa da

crise” no espaço escolar. Deslimites das práticas interacionais e linguísticas, violência,

desordem, opacidade de valores, crise de autoridade foram alguns dos indicadores deste

mapa.

Nesta cena, a escola (alunos, professores e outros profissionais) nomeia com um

rótulo difuso de “indisciplina” tanto a violação de regras morais (violência de todas as

ordens, desrespeito, furtos...) quanto de regras convencionais (uso de uniforme, celulares,

horários...) e mesmo a marcante falta de interesse dos alunos. Sem projetos para

enfrentamento dessa realidade, esta instituição, via de regra, dirige suas preocupações

normativas e punições para as regras convencionais (BERNARDO, 2011;

ALVARENGA, 2012; FONTES, 2012).

Por outro lado, em meio às avaliações dos sujeitos, surgem também fortes

indicadores de possíveis caminhos para a travessia, como o apontamento claro do papel

do protagonismo jovem; a preservação do poder simbólico do professor; a afirmação da

autoridade docente por meio da autoria, dos valores e do afeto; a percepção do papel de

um ambiente escolar positivo. Sobressaindo-se a tudo isto, a voz coletiva dos discentes

demarca a não naturalização das práticas conflituosas vividas no espaço escolar.

Neste estudo, para além dos indicadores semânticos obtidos através da análise dos

discursos baseada em frames e na frequência de uso, abriu-se um diálogo interteórico com

o campo da Linguística Aplicada e o das Ciências Sociais (Sociologia, Antropologia,

Ética, Educação...) de modo a se elegerem os fundamentos e as categorias capazes de

propiciar um exercício interpretativo destes resultados em cada estudo de caso.

Em busca de aprofundamento deste olhar, a pergunta se estreitou – Como seria o

retrato desta cena em sala de aula de Língua Portuguesa? Qual seria, pois, o papel das

Letras nesta crise? –, trazendo um novo rumo investigativo para o projeto (MIRANDA,

2012)2.

É fato que, em quatro décadas de discussão e pesquisa sobre o ensino de Língua

Portuguesa (doravante LP) no Brasil, uma vasta literatura sobre o tema se formou,

1 Macroprojeto “Práticas de Oralidade e Cidadania”, FAPEMIG, PNPD.

2 Macroprojeto Ensino de Língua Portuguesa – da Formação Docente à Sala de Aula

(PPGLinguística/UFJF ; FAPEMIG - APQ-01864-12; APQ- 02548-14).

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consolidando uma perspectiva sociointeracionista de linguagem – linguagem como

prática social – e mesmo legitimando-a nos documentos em que o Estado parametriza

este ensino. Nesta direção, definiu-se uma rede integrada de práticas de leitura, escrita e

oralidade como meta de ensino da LP. Avanços aconteceram, é fato, na teoria e mesmo

na prática, ainda que nesta, de modo lento e minoritário. Nesta rede de saberes propostos,

muitos e muitos professores ainda estão emaranhados, sem caminhos para transformar

teoria em prática ou mesmo sem compreender tal teoria (MIRANDA, 2005, 2006). Ainda

mais: sem saber como construir um ambiente efetivo de linguagem – de atenção de

intenção conjuntas – em uma cena em que as vozes, via de regra, se perdem em conflitos

ou em bate-papos, sem espaço para a voz e a vez da cada um. E se falta um frame de

atenção e intenção conjuntas em sala de aula, envolvendo seus atores como partícipes, a

linguagem não acontece e, se não acontece, não se efetiva a construção do conhecimento.

Foi este o cenário mostrado por uma gama de quatro novos estudos de caso sobre a

sala de aula de LP que trouxe a voz de discentes (SIQUEIRA, 2013; LOURES, 2013) e

docentes (TEIXEIRA, 2014) do ensino médio. Uma consequência marcante ecoou dessas

vozes, qual seja a autoimagem negativa dos discentes; o sentimento de incapacidade, de

incompetência e o desinteresse desencadeado pela “culpa” pelo fracasso. Mais uma vez,

contudo, preserva-se a imagem do professor. No ensino superior, a perspectiva de alunos

de um curso de Letras sobre seu processo de formação (LIMA, 2014) completou o

“mapa”, revelando o desinteresse pela profissão de professor entre aqueles que fazem

licenciatura em Letras.

No conjunto, esta rede de pesquisa envolveu dez estudos de caso, desenvolvidos na

zona de influência da Universidade Federal de Juiz de Fora (Zona da Mata mineira) em

trinta e sete (37) escolas públicas de ensino fundamental e médio. Sete (7) destes estudos

tiveram as vozes dos discentes como matéria; dois (2), as vozes docentes; e um (1), a

palavra de alunos do curso de Letras.

Os resultados reiterados nesta rede de estudos nos impulsionaram para o terceiro

momento do projeto de pesquisa – a sua vinculação às pesquisas de natureza interventiva

e participativa do PROFLETRAS (Mestrado Profissional em Letras-FALE/UFJF). Com

este viés, temos dois (2) estudos concluídos e dois (2) em andamento e, assim, a travessia

se completa, tomando o rumo da ação, buscando o impacto social desejável.

Passamos, de modo abreviado, à elucidação da matriz teórico-metodológica destes

estudos, pontuando a motivação de cada escolha (seção 2) e, em seguida (seção 3), à

apresentação de um Estudo de Caso (LOURES, 2013) que tem como questão a

autoimagem dos alunos de Português em sete escolas da rede estadual de ensino da cidade

de Juiz de Fora. Na seção 4, apresentamos as considerações finais.

2 DAS ESCOLHAS TEÓRICO-METODOLÓGICAS E DE SUAS RAZÕES

Em torno destes estudos de natureza híbrida ergueu-se uma matriz teórico-

metodológica que envolve os seguintes aparatos:

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a) o uso das narrativas de práticas (FABRÍCIO; BASTOS, 2009;

THORNBORROW; COATES, 2005; DELORY-MOMBERGER, 2008, 2012,

2014, dentre outros) como instrumento investigativo dos Estudos de Caso;

b) a construção de um modelo de análise do discurso baseado na Semântica de

Frames (FILLMORE, 1977, 1979, 1982, 1985, 1992, 2009; FILLMORE;

JOHNSON; PETRUCK, 2003; SALOMÃO, 1999; MIRANDA; SALOMÃO,

2009; PETRUCK, 1996; GAWRON, 2008; RUPPENHOFER et al., 2010,

dentre outros) e nos Modelos de Linguagem Baseados no Uso (TOMASELLO,

2003; CROFT; CRUSE, 2004; GOLDBERG, 1995, 2006; BYBEE, 2010,

dentre outros);

c) um diálogo interteórico, voltado para o exercício interpretativo das questões

educacionais emergentes em cada Estudo de Caso, com contribuições de áreas

do saber como a Antropologia Evolucionista (TOMASELLO,1999, 2003), a

Psicologia Social (LA TAILLE, 1999; LA TAILLE; MENIN, 2009), a

Sociologia, a Filosofia e a Educação (BAUMAN, 1992, 1998, 1999, 2005,

2007; GIDDENS, 1991, 1992; BERMAN, 2001; APPLE, 2000, 2001, 2002,

2006; BEECH, 2009; FRIGOTTO; CIAVATTA, 2003; MACEDO, 2000;

CHAUÍ, 1999, 1997; CUNHA, 2003, 2004, dentre outros).

Tendo como matéria investigativa a perspectiva instaurada pela voz de alunos e

professores sobre o cenário escolar e, mais especificamente, sobre a sala de aula, estes

Estudos de Caso têm como objeto de análise as narrativas de práticas. Para tal objeto

linguístico vimos tecendo um modelo de análise ancorado na categoria frame (Semântica

de Frames) e na afirmação do relevo do uso linguístico e de sua frequência na arquitetura

de nossa expressão conceptual (Modelos de Linguagem Baseados no Uso).

As hipóteses analíticas traçadas por tal modelo de análise são de que (i) os frames

invocados pelo discurso permitirão chegar-se aos indicadores da experiência social da

comunidade em estudo e de que (ii) quanto maior for a frequência de cada frame – e das

Unidades Lexicais (UL) que os evocam e dos Elementos de Frame (EF) que os

constituem (cf. subseção 2.2) – mais vigorosa será a experiência evocada por tais frames.

O que se busca, portanto, é explorar a relação entre linguagem e experiência, como

passamos a elucidar.

2.1 A NARRATIVA NÃO É A VIDA COMO O MAPA NÃO É O TERRITÓRIO

O ato de narrar é, nos termos de Thornborrow e Coates (2005), central à construção

de nossa identidade social e cultural, representando uma capacidade fundamental da

cognição humana. Nóbrega e Magalhães (2012) e Moita Lopes (2001), convergem nesta

visão atribuindo à narrativa “um lócus da (re)construção identitária”. Por meio dela os

sujeitos dizem quem são, no que acreditam e o que desejam. Também para Rego (2003),

as narrativas sobre si mesmo podem expressar um conjunto de significados que foram

construídos culturalmente pelo sujeito – “[...] suas visões interpretações, impressões,

representações e lembranças [...]” (REGO, 2003, p 80), tornando possível a identificação

de traços históricos e culturais internalizados de uma determinada época ou sociedade.

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Este é, pois, o endosso para o uso da narrativa como um meio de captar as vozes

dos discentes neste trabalho. Cabe pontuar, contudo, que a narrativa é uma prática

discursiva – uma operação cognitiva e um objeto de linguagem específico. “A narrativa

seleciona, orienta, ordena, reúne, projeta, seguindo uma lógica a posteriori, que é a do

narrador no momento da narração.” (DELORY-MOMBERGER, 2014 [2004], p.179).

Não há transparência, portanto, entre o vivido e o narrado, ou seja, a narrativa não é a

vida assim como o mapa não é o território. Portanto, no uso da narrativa como estratégia

metodológica na construção de dados não nos mobiliza a ilusão da “verdade” a ser

desvelada nas aulas de Língua Portuguesa, mas as pistas deixadas pelas escolhas feitas

pelo narrador-personagem, pela sua perspectiva na reconstrução, no presente, de uma

cena vivida no passado. Nosso propósito não é também apreender as representações e os

valores de um indivíduo singular, mas as experiências pessoais que, replicadas de modo

significativo, sirvam de indicadores das experiências coletivas mais relevantes do grupo.

Do particular ao geral, encontram-se, assim, as figuras – as representações recorrentes em

contextos similares – que emergem no conjunto dos discursos.

2.2 SOBRE O OBJETO LINGUÍSTICO E UM MODELO DE ANÁLISE DO DISCURSO

É amplamente reconhecido o papel da experiência de todas as ordens na instituição

do pensamento e da linguagem dentro dos pilares centrais da Linguística Cognitiva. Nessa

direção, os processos de significação construídos em frames de atenção conjunta, o uso

linguístico e a diversidade das línguas passam a ocupar a agenda investigativa dos

linguistas. De igual modo, os corpora naturais tornam-se uma opção metodológica cada

vez mais usada a que se somam as naturais intuições analíticas do linguista.

Assim, subscrevendo tal paradigma e tendo a relação linguagem e experiência como

hipótese-guia, este estudo elege como matéria analítica um corpus constituído por

narrativas de práticas e define seu escopo teórico-analítico central a partir da Semântica

de Frames e de seu projeto lexicográfico computacional, a FrameNet, e dos Modelos de

Linguagem Baseados no Uso (cf. item “ii”, seção 2).

O endosso central para uma análise do discurso baseada em frames está nas palavras

de Fillmore:

Desse modo, pode-se ver a proximidade que existe entre a semântica lexical e a semântica

textual ou, para me expressar melhor, entre a semântica lexical e o processo de compreensão

do texto. As palavras que evocam frames em um texto revelam a multiplicidade de maneiras

com que o falante ou o autor esquematizam a situação e induzem o ouvinte a construir uma

tal visualização do mundo textual que motive ou explique os atos de categorização expressos

pelas escolhas lexicais observadas no texto. (2009[1982], p. 37)

O percurso interpretativo exige, portanto, que se recuperem e percebam os frames

evocados pelo conteúdo lexical do texto, combinando esse conhecimento esquemático de

modo a construir uma compreensão do mundo textual.

A noção de frame trazida por Fillmore (1977, 1979, 1982, 1985, 1992, 2003) a partir

de uma Semântica da Compreensão, de caráter empírico e inferencial, se contrapõe ao

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modelo de análise do significado propugnado por uma semântica composicional

(Semântica da Verdade) ancorado em condições necessárias e suficientes. Assim,

negando o caráter estritamente composicional do processo de significação – a dita

Hipótese Forte da Composicionalidade –, a Semântica de Frames, tendo em conta as

motivações que impulsionam uma comunidade de fala a criar determinada categoria

representada pela palavra, ultrapassa a materialidade linguística e toma as palavras como

categorias de experiência. Este é, pois, o ponto crucial deste modelo semântico que

confere continuidade entre linguagem e experiência.

O termo “frame” corresponde “a qualquer sistema de conceitos relacionados de tal

modo que para entender qualquer um deles é preciso entender toda a estrutura na qual se

enquadram” (FILLMORE, 2009[1982], p. 25). Assim sendo, quando acionamos qualquer

elemento de um frame, este evoca consigo uma cena, e é somente nesse enquadre que

pode ser compreendido.

Tal relativização dos significados às cenas é, pois, fundamental para a compreensão

das diversas perspectivas que se tecem na conceptualização das palavras e discursos.

Deste modo, este instrumental teórico vem facultando ao presente estudo o mapeamento

dos processos de significação erguidos nos discursos sobre a sala de aula e permitindo a

construção de um sólido diagnóstico sobre a perspectiva dos sujeitos acerca da realidade

vivenciada.

O projeto lexicográfico derivado desta teoria – a FrameNet – empresta a este estudo

as principais ferramentas analíticas.

Baseado na Semântica de Frames, a FrameNet é um projeto lexicográfico

computacional desenvolvido na Universidade de Berkeley

(<https://framenet.icsi.berkeley.edu>). Dentre seus objetivos, está a criação de uma base

de dados de palavras do Inglês (e de outras línguas, como o Português)3 e dos frames que

elas evocam, além da documentação de possibilidades combinatórias sintáticas e

semânticas de cada palavra em cada um dos seus sentidos. Essas descrições que compõem

o banco de dados estão baseadas em anotações semânticas de exemplos de sentenças

extraídas de grandes corpora de textos (BAKER; FILLMORE; LOWE, 1998;

FILLMORE; JOHNSON, 2000; FILLMORE; JOHNSON; PETRUCK, 2003).

Salomão (2009) aponta uma vantagem deste projeto sobre a abordagem

lexicográfica tradicional. Por meio dele, é possível obterem-se as informações que no

dicionário só aparecem implicitamente. Isso ocorre porque a consulta a uma palavra

remete ao frame que esta evoca e a todos os elementos que o integram. Além disso, é

permitido ainda o acesso às possibilidades de combinação sintáticas e semânticas da

palavra pesquisada, e o acesso a outros frames que se relacionem com o frame buscado.

Para análise de corpus, a FrameNet criou categorias como a Unidade Lexical e o

Elemento de Frame. A Unidade Lexical (UL) “é um pareamento de uma palavra com um

3 Outros projetos aos moldes da FrameNet têm sido desenvolvidos para outras línguas como alemão,

japonês, espanhol, português e sueco. Para o português, temos a FrameNet Brasil

(<http://www.ufjf.br/framenetbr/>), projeto de notação lexicográfica desenvolvido na Universidade

Federal de Juiz de Fora.

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significado” (FILLMORE; JOHNSON; PETRUCK, 2003, p. 9). Cada sentido de uma

palavra evoca um frame e os elementos que compõem a estrutura da cena, sendo as

palavras polissêmicas evocadoras de frames diferentes dependendo de seu sentido. Já os

Elementos de Frame (EF) são os participantes de uma cena evocada (micropapéis

semânticos), e podem constituir-se como centrais ou não centrais (RUPPENHOFER et

al., 2010).

Tomando, como exemplo, o frame Aplicar_calor (RUPPENHOFER et al., 2010),

temos possíveis ULs como “assar”, “ferver” evocadoras de uma cena com os EFs

Cozinheiro, Comida e Instrumento_de_aquecimento.

A análise feita nesta plataforma implica a reconhecimento da estrutura argumental

na unidade frasal, o que envolve a notação em três níveis de função, quais sejam a

semântica (Elementos de Frames), a função gramatical (FG) e o tipo de sintagma (TS).

Há diferentes tipos de relações semânticas entre os elementos incorporados na base

de dados da FrameNet. Essas relações são diretas (assimétricas) e se dão, como pontuam

Ruppenhofer et al. (2010), entre dois frames em que um deles (o menos dependente, mais

abstrato) é chamado de superframe enquanto o outro, mais dependente, é um subframe.

Essas relações, primeiramente, frame a frame, como pontua Fillmore (2003), podem ser:

Subframes, Herança, Perspectiva_em, Veja_também, Usando, Incoativo_de e

Causativo_de. É possível a consulta das relações entre os frames por meio da ferramenta

Framegrapher, disponível no site.

Outra opção teórica para o modelo de análise do discurso que se tece em nosso

projeto são os Modelos de Linguagem baseado no Uso (item ii). O cerne teórico de tais

Modelos está na afirmação de que a aquisição e a aprendizagem da linguagem se dão

através de exemplares específicos usados em situações comunicativas determinadas e de

generalizações construídas a partir do uso reiterado destes exemplares. Dado o relevo da

reiteração de uso para a compreensão da forma como a linguagem é estruturada e

armazenada na mente do falante, a frequência de token/ocorrência (frequência com que

determinada estrutura ocorre em uma determinada comunidade linguística) e a frequência

de type/tipo (frequência com que essa mesma estrutura varia dentro do mesmo grupo de

falantes) ganham relevo nas análises orientadas por tais Modelos. A primeira implica a

assertiva de que quanto mais frequente uma forma for, mais entrincheirada, mais central

à língua ela será, articulando-se com a noção de Convencionalização; a segunda

relaciona-se à possibilidade de extensão de um padrão a novos padrões, vinculando-se ao

conceito de Produtividade.

Guardadas as especificidades de cada Estudo de Caso, os seguintes passos definem

a matriz de procedimentos analíticos seguida (MIRANDA; BERNARDO, 2013):

a) Anotação manual4 de Unidades Lexicais (UL) que são eleitas com auxílio da

ferramenta WordSmithTools através dos recursos Wordlist (fornecendo a lista

completa de ocorrências de cada palavra do texto, assim como sua frequência,

tal ferramenta permite, a partir da pergunta de cada Estudo de Caso, eleger as

4As anotações feitas nestes estudos têm sido manuais; em apenas um (1) estudo de caso conseguimos usar

o desktop da FrameNet.

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ULs a serem recortadas) e Concordance (busca do contexto de uso das ULs

eleitas);

b) Evocação dos frames (busca no repertório da FrameNet) que as ULs invocam;

c) Descrição dos frames não encontrados na FrameNet;

d) Anotação de Elementos do Frame (EF);

e) Desenho da rede de frames (framegraphers);

f) Estabelecimento de frequência de types/tokens em relação aos frames, às

Unidades Lexicais e aos Elementos de Frame que integram cada frame;

g) Exercício interpretativo dos discursos, mediante diálogo interdisciplinar

construído a partir da questão posta em cada Estudo de Caso (cf. item “iii”,

seção 2).

Passamos à apresentação de um Estudo de Caso de modo a ilustrar a matriz

teórico-metodológica eleita neste macroprojeto.

3 UM ESTUDO DE CASO – A AUTOIMAGEM DO ALUNO DE LÍNGUA PORTUGUESA

Como um projeto vinculado à rede investigativa apresentada à Introdução, este

estudo de caso (LOURES, 2013) tem como aporte a matriz teórico-metodológica

apresentada à seção 2. O que o distingue é questão específica que o mobiliza, qual seja

Como os sujeitos investigados constroem sua identidade enquanto alunos de Língua

Portuguesa?

O propósito analítico é, pois, mapear a autoimagem desses discentes, valendo-nos,

para tanto, da análise do discurso desses sujeitos sobre suas experiências nas aulas de

Português. Dos indicadores levantados nesta análise decorre o exercício interpretativo, o

que traz também a singularidade do campo interteórico a ser buscado. Em nosso caso,

contribuem para a interpretação dos resultados semânticos auferidos pela análise em

frames os estudos de MIRANDA, 2007, 2009, 2011; PEREIRA, 2008; LIMA, 2009;

PINHEIRO, 2009; BERNARDO, 2011; ALVARENGA, 2012; FONTES, 2012.

O lócus investigativo é a sala de aula de Língua Portuguesa de sete escolas da rede

estadual de Ensino de Juiz de Fora. Os sujeitos são cento e oitenta e oito (188) alunos do

nono ano do Ensino Fundamental e do segundo ano do Ensino Médio, o que representa

35% da mostra total (trezentos e sessenta e quatro – 364 – alunos, com um total de

trezentos e quarenta – 340 – respostas válidas).

De modo a se evitar uma realidade homogênea, as escolas foram escolhidas

segundo determinados critérios. O primeiro critério constituiu-se a partir do mapeamento

das instituições em termos dos resultados obtidos no IDEB e na Prova Brasil, assim como

da análise de dados como taxa de abandono, taxa de reprovação, média de alunos por

turma e taxa de participação dos alunos no Enem. Desse modo, a pesquisa contempla

escolas com qualificações alta, média e baixa em todos esses quesitos. O segundo critério

baseou-se na distribuição geográfica heterogênea das escolas (duas localizadas na região

norte, três na região central, uma na região sul e uma na região oeste da cidade), o que

implica envolver regiões com riscos sociais distintos.

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3.1 ANÁLISE DO DISCURSO DISCENTE: PRINCIPAIS ACHADOS

Em seu âmbito metodológico, este estudo, caracterizando-se como um estudo de

caso5, precisa pontuar, de pronto, o alcance das generalizações analíticas alcançadas por

seus resultados, circunscrevendo-as ao limite do universo investigado.

O trabalho apresentado resultou em uma rede de frames que identificados,

hierarquizados e analisados, trouxeram à luz quatorze (14) indicadores analíticos que, no

conjunto, desenharam o retrato da autoimagem discente.

Dados os limites de espaço deste artigo, procederemos a uma apresentação

abreviada dos resultados gerais obtidos para nos determos no INDICADOR 2, um dos

mais relevantes (e, talvez, mais preocupantes) dentre os encontrados em nosso trabalho.

Como já referenciado à seção 2, o instrumento de coleta utilizado nos estudos de

caso de nosso macroprojeto tem sido uma narrativa de experiência. Em nosso caso, tal

instrumento assim se delimita:

Caro Aluno,

A disciplina de Língua Portuguesa está presente em sua vida desde que você entrou para a

escola. Durante este tempo, você vivenciou várias experiências relacionadas à matéria (com

seus professores, durante suas aulas, conteúdos que aprendeu etc.). Gostaríamos, então, de

conhecer um pouco da sua história e compreender melhor sua relação com essa

disciplina. Conte-nos suas vivências mais marcantes (positivas ou negativas) como aluno

de Português.

Os destaques em negrito demarcam os limites do discurso desejado – relatar as

experiências mais importantes com a disciplina Língua Portuguesa e avaliá-las (de

maneira positiva ou negativa), assim como já delimitam os superframes a serem

evocados: o frame de Ensino_educação e o frame de Aula_de_ Português.

A análise do discurso discente, seguindo os procedimentos anunciados à seção 2,

partiu, portanto, do levantamento das principais as unidades lexicais (ULs) e

construcionais (UCs) evocadoras. Somada a tal procedimento, outra pista usada foram os

atos de linguagem expressos nos relatos de experiência discentes que remeteram às

seguintes práticas discursivas em relação à disciplina de Língua Portuguesa:

a) Expressão de sentimentos;

b) Autoavaliações;

c) Relatos de experiências.

5 Segundo Yin (2001), o estudo de caso é uma metodologia utilizada para explorar situações da vida real,

debruçando-se, de maneira mais aprofundada, sobre um acontecimento contemporâneo. O principal

objetivo de tal abordagem não é descrever o objeto analisado, mas explicá-lo e, por essa razão, várias

técnicas de pesquisa são conjugadas neste processo. O estudo de caso possui, assim, um grande potencial

no âmbito educacional, uma vez que se orienta por perguntas (do tipo “como” e “porque”) e não por

soluções.

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A partir de tais procedimentos, uma complexa rede de frames nos permitiu traçar a

autoimagem do aluno de Português no cenário escolar investigado. É o que passamos a

sintetizar:

a) Ao superframe Aula_de_Português vinculam-se quatro (4) frames:

Autoavaliação_comportamento_escolar, Autoavaliação_desempenho_ escolar

(hierarquicamente subordinados também ao superframe Autoavaliação),

Relatos_de_experiência_escolar e ....Foco_no _experienciador;

b) Por sua vez, ao frame Autoavaliação_comportamento_escolar vinculam-se

quatro (4) outros frames: Dedicação, Experiência_de_encontro_hostil,

Prestar_atenção e Bagunça;

c) Seis (6) frames se subordinam a Autoavaliação_desempenho_escolar:

Capacidade, Compreensão, Dificuldade, Tentativa, Impedimento, Sucesso e

Fracasso;

d) Os estudantes que elegeram os Relatos_de_experiência_escolar como foco

principal de sua narrativa, acionaram os frames de

Experiência_de_criação_textual, Experiência_de_teatro,

Experiência_de_expulsão, Experiência_de_aprendizagem,

Experiência_de_avaliação_e_resultado e Experiência_de_leitura.

O gráfico 1 sintetiza a distribuição por frequência dos superframes principais que

suportam a rede em nosso corpus. O número total de segmentos considerados para o

cálculo das ocorrências (duzentos e setenta e sete – 277) ultrapassa o número total de

alunos (cento e oitenta e oito – 188), uma vez que alguns segmentos aparecem em mais

de um frame analisado, sendo contados duplamente.

Gráfico 1 – Distribuição dos principais macroframes analisados

O diagrama 1 de toda a rede (cf. Fluxograma 1) dá uma dimensão da complexidade

do processo de construção da autoimagem desses alunos. Ao descreverem a si mesmos,

os estudantes evocam cenas distintas, utilizando diferentes tipos textuais (divididos em

superframes):

38%

29%

23%

10%

Frames principais

Autoavaliaçao_Desempenho_Escolar

Relato_de_Experiencia_Escolar

Foco_no_Experienciador

Autoavaliaçao_Comportamento_Escolar

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Diagrama 1 – A autoimagem dos alunos de Língua Portuguesa

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Após a análise semântica detalhada desta rede, quinze importantes indicadores

sintetizam as principais generalizações analíticas alcançadas neste Estudo de Caso

(Tabela 1):

Tabela 1 – Os indicadores analíticos

Superframes Frames INDICADORES

Foco_no_

experienciador

23%

4MA2– 3 Eu particularmente

detesto português, pois nunca

entendo a matéria

1) A relação afetiva estabelecida com a

disciplina Língua Portuguesa é de

significativo afastamento e mesmo de alta

rejeição - 61,8% das expressões de sentimento

são negativas.

Autoavaliação _

desempenho

_Escolar

(38%)

Dificuldade (48%)

5MA2-22- Não sou uma boa aluna

nessa

matéria,tenhomuitadificuldade. Não

entendo quase nada.Minha

professora é ótima explica super

bem, mas acho que o problema

está comigo.

2) A segunda relação estabelecida é a de

dificuldade. Dentre os estudantes que acionam

este frame, 87,5% relatam tal relação e

atribuem a culpa desta dificuldade a si

mesmos.

Compreensão (24%)

6MA2-28 Não gosto de

portuguêsnão entendonada.IND

3) 60% dos trinta e cinco (35)

estudantes que acionam o frame de

Compreensão não entendem ou entendem

pouco a disciplina.

Capacidade (11%)

5MA9- 11 Para falar a verdade

nunca gostei de português, tenho

muita dificuldade em entender, em

memorizar as regras, mas com

muitas dificuldadesconsigotirar

notas médias.IND

4) Os alunos sentem-se incapazes diante

da disciplina; 63% dos estudantes que

acionam o frame, dizem não conseguir

compreender a disciplina.

Tentativa (6%)

Impedimento (3%)

Sucesso ou Fracasso (8%)

4MA2 – 8 No meu caso eu sempre

tive um pouco de dificuldade no

entendimento da matéria mas com

um pouquinho de esforço eu

conseguia boas notas. (...) segundo

são os próprios alunos, somos nós

mesmos que atrapalhamoso

rendimento da aula.

5) Mesmo quando fala de seu sucesso

(8%), o estudante apresenta suas tentativas

juntamente aos impedimentos que

encontraram neste percurso, o que demonstra

que tal sucesso não foi conseguido facilmente.

Autoavaliação

_comportamento

_escolar

Bagunça (33%)

6MA9-18Pow nem tenho tanta

coisa pra falar porque nas

aulas[IND]faço só bagunça. Mas

6) Os relatos de bagunça durante as

aulas pautam suas justificativas na facilidade

de aprendizagem da disciplina, o que sinaliza

a ausência de desafios neste processo de

ensino-aprendizagem para este grupo.

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(10%) sempre consigo passar nas matérias

não sei porque elas devem nunca

mais querer ver a minha cara.

Prestar_atenção (26%)

6MA9-11 Não tem muita coisa pra

falar mas quero falar alguma coisa

as aulas são boa às vezes tem vez

que eunão presto

atenção[IND]porque é chata a

matéria

7) Os alunos justificam o fato de não

prestarem atenção nas aulas pelo

distanciamento que possuem em relação à

disciplina.

Dedicação (22%)

6MA2-6 Bom, desde a 1ª série até

a 4ª euerauma aluna

muitodedicada...

8) O aluno não é alheio à matéria e

mostra alguma dedicação.

Encontro_hostil (19%)

5MA9- 21- tomei advertência

porque [IND]respondia professora

de português,e não sou fã da

matéria.

9) O que se encontra, em síntese, é uma

imagem de comportamentos

predominantemente negativos. O EF

Justificativa que é mencionado em 70% dos

frames acionados, mostra que os alunos

possuem consciência de que suas ações não

são facilitadoras do ambiente de sala de aula e

temem um julgamento. Tal achado tem um

viés positivo – tais cenas divergentes não estão

NATURALIZADAS em suas práticas.

Relato_

Experiência

_Escolar

(29%)

Experiência_ _Aprendizagem

(37%)

4MA9– 22Lá no présinho quando

comecei a aprenderas vogais,

palavrinhas.

10) Ganham destaque as experiências de

descoberta, principalmente, as de inserção no

mundo letrado. A experiência inicial do

estudante com a disciplina, durante a fase de

alfabetização, é sempre vista como positiva.

No entanto, no decorrer dos anos como alunos

de Língua Portuguesa, alguns entraves

provocam o afastamento do aluno em relação

a tal disciplina.

Experiência_de_

Avaliação_Resultado (27% )

4MA9– (...) ai eu descobri que

estava de recuperação ai eu fiquei

preocupado comecei a estudar e

[IND]passei.

11) O aluno prefere falar de seus

resultados positivos associados às avaliações

da disciplina. Ao apresentar tal resultado,

apresenta, também, seu esforço para conseguir

tal mérito.

Experiência_de_leitura (22%)

6MA2-2(...) Tínhamos um esquema

de apresentar pra turmao livro que

[IND] lemos, e com isso, dividir

nossa experiência literária.

12) Alçados a um papel protagonista, os

alunos põem em relevo as experiências

pedagógicas diferenciadas com a leitura,

reconhecendo o papel crucial desta prática em

sua vida.

Experiência_de_Criação

Textual (6%)

6MA2-24 O meu interesse pela

disciplina começou na quarta série,

quando a professora contava

historias para a turma ou então

pedia pra gente criar nossas

próprias historias. Era incrível!

13) As experiências de criação textual

mencionadas pelos alunos levam em

consideração um contexto motivacional e um

propósito específico bem definido e que vai

além de experiências meramente avaliativas.

Protagonismo e Reconhecimento são marcas

desta experiência.

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Experiência_de_Teatro (5%)

5MA2-17 (...) aí eu participei do

teatro que tinha na escola minha

vida mudou pra melhor.

14) As experiências de teatro, mesmo em

percentual menor que as demais, representam

um motivador de protagonismo e autoestima

para o aluno.

Experiência_de_Expulsão (3%)

4MA2 – 22 No ano passado tive a

experiência de ser expulsa de

salapor motivo de conversa

15) O frame de expulsão sempre representa

uma experiência negativa. Nos dois casos

analisados, o aluno apresenta consciência

sobre o motivo que levou a sua expulsão.

Como pode ser observado na Tabela 1, um número considerável de relatos aciona

o frame de Dificuldade (48%) hierarquicamente subordinado a Autoavaliação

_desempenho _escolar. Por isso, tal frame foi eleito para um exercício interpretativo um

pouco mais detalhado nesse artigo.

3.2 FRAME DE DIFICULDADE

Dificuldade

(<https://framenet2.icsi.berkeley.edu/fnReports/data/frameIndex.xml?frame

=Difficulty>) é o frame mais acionado pelos discentes: aparece em cinquenta e quatro

(54) segmentos e é evocado cinquenta e sete (57) vezes por distintas ULs e UCs, o que

representa 48% do grupo Autoavaliação_Desempenho_escolar (em cinquenta e quatro –

54 – segmentos).

Esse frame define-se pela ideia de um experienciador que apresenta dificuldade ou

facilidade para realizar determinada tarefa. Sua descrição, retirada da FrameNet e

traduzida por nós, é a seguinte:

Quadro 1 – Frame de Dificuldade

Frame de Dificuldade

Um experienciador tem facilidade ou dificuldade na realização de uma atividade. A facilidade ou

dificuldade de uma atividade parece ser às vezes acionada por um participante proeminente.

Entretanto, consideramos que esta impressão se dá devido à sintaxe e à pragmática das construções e

não empregamos nenhum EF especial para esses participantes. A gradação da facilidade ou

dificuldade é frequentemente especificada por uma circunstância. O Parâmetro, que indica porque a

atividade é considerada fácil ou difícil, pode ser mencionado.

EFs Centrais:

Atividade: Indica a Atividade em que o Experienciador encontra dificuldade ou facilidade. Em alguns

casos, a Atividaderelevante tem que ser inferida a partir do contexto.

Apesar deu gosta de Português tenho minhas dificuldades em tirar notas boas

Eu sinto um pouco de dificuldadeem relação à Língua Portuguesa

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No corpus analisado, foram encontradas quatro (4) ULs e quatorze (14) UCs

distintas evocadoras do frame Dificuldade. Tais unidades são apresentadas no quadro a

seguir, dividido por sinsets, ou seja, por listas de sinônimos de unidades lexicais e

construcionais. Ao lado desta coluna, temos os tokens (frequência de ocorrências):

Quadro 2 – Frame Dificuldade: Unidades Lexicais e Unidades Construcionais

Ucs e ULs Frame Dificuldade

Semântica

negativa

Sinset 1

Tokens Exemplos

Sentir

dificuldade, ter

dificuldade,

encontrar

dificuldade, ter

problema,

difícil,

complicado

36 5MA9- 16- Apesar deu gosta de Português

tenho minhas dificuldades em tirar notas boas!

6MA2-9 Mas no Ensino Médioencontrei um

grau de dificuldademaior.[IND]

Sinset 2 Ficou difícil,

começou a

ficar difícil,

ficou

complicado

10 7MA9 – 13 Mas na quinta série começou ficar

um pouco difícil pois a turma não colaborava,

os professores não tinham paciência.

4MA9– 6 Mas o tempo foi passando e

português foi ficando mais complicado não sei

se é difícil ou se

Subtotal: 46 (79,31%)

Semântica

Positiva

Sinset 3 Nunca ter

dificuldade,

nunca ter

problema

4 4MA2– 4 Desde pequeno nunca tive

dificuldade quanto à matéria de português

Experienciador: Indica que uma pessoa julga a realização de uma Atividade difícil ou fácil.

Euaté hojetinhauma certadificuldade.

Eutenhomuitadificuldadede aprender.

Não-Central:

Grau : Indica o Grau de dificuldade que o Experienciador possui para a realização de uma Atividade.

Gosto muito da matéria, mas[IND]tenho grandes dificuldades para estudar

Tempo :O Tempo em que a Atividade ocorre.

No Ensino Fundamental eu achava fácil sempre tirava boas notas. Mas no Ensino

Médioencontrei um grau de dificuldade maior.

Unidades Lexicais e Unidades Construcionais:difícil n, dificuldade n, , complicado n., sentir

dificuldade v, fácil n, facilidade n. sentir dificuldade

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5MA2-9Bem, desde que comecei a estudar

nunca tive nenhum problema com a Língua

Portuguesa

Sinset 4 Não é difícil,

nunca foi

difícil

2 5MA2-1Pra mim,estudar a matéria de

português,nunca foi difícil

5MA2-8porque já estou ficando muito triste

com meu desempenho melhor porque

português não é uma matéria difícil

Sinset 5 Fácil,

facilidade

6 6MA2- No Ensino Fundamental eu achava

fácil sempre tirava boas notas

5MA2-1Tenho facilidade de aprender a matéria

e ainda ajudo alguns colegas quando estão com

dúvida

Subtotal: 12 (20,7%)

Total: 58 (100%)

O quadro 2 mostra que os sinsets que remetem a dificuldade são mais recorrentes,

apresentando quarenta e seis (46) ocorrências, o que representa 79,3% das ocorrências no

frame Dificuldade. Em contrapartida, os sinsets de facilidade representam apenas 20,7%

das ocorrências totais.

Uma análise mais detalhada dos EFs não centrais nos deu a dimensão da dificuldade

dos alunos. O EF Atividade refere-se em 60,4% à disciplina de Português e a uma lista

de sinônimos que remetem à matéria, assim como a ações e a processos ligados à

disciplina (como estudar, compreender e entender) que representam uma forte barreira

para processo de aprendizagem destes alunos. Sem sequer reconhecer o propósito

educativo do estudo da Língua Portuguesa, os alunos, neste processo de autoavaliação,

atribuem a culpa da “não-aprendizagem” a si mesmos, como pode ser observado no

segmento abaixo, em que o professor é avaliado de modo positivo em detrimento da

autoavaliação negativa:

1. 4MA2–21 Sempre tive ótimos professores, mas nunca consegui aprender

muito. Português é a matéria em que eu tenho mais dificuldade.

2. 5MA2-22 Não sou uma boa aluna nessa matéria, tenho muita dificuldade.

i. Não entendo quase nada.

ii. Minha professora é ótima explica super bem, mas acho que o

problema está comigo.

Os resultados destacam, em consonância ao primeiro indicador, e de modo claro, o

quanto pode ser árdua e mesmo dolorosa a tarefa de aprendizagem em relação à disciplina

Língua Portuguesa. O primeiro indicador encontrado foi o ‘desafeto’ (frame Foco_no_

Experienciador, 23% em sessenta e cinco (65) segmentos; o segundo, por sua vez, indica

‘dificuldade’ de aprendizagem (cf. Tabela 1).

A análise desse frame tão recorrente (Dificuldade) não destoa dos demais

pertencentes ao superframe Autoavaliação_de_desempenho_escolar. Os resultados

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traduzem uma autoimagem profundamente marcada pela dificuldade, incapacidade, pela

tentativa e pelo fracasso escolar.

Esta questão em relação à disciplina é abordada por Perini (2000). O autor discute

o motivo que leva tal matéria a ser considerada como “aquela que ninguém aprende”. Ele

salienta o fato de existirem outras disciplinas tão ou mais complicadas do que o Português

e, entretanto, as reações de repugnância recaírem mais fortemente sobre essa disciplina e,

em especial, sobre seu ensino de gramática. Calcada em uma repetição do mesmo

conteúdo, por anos e anos, a sala de aula de LP estaria condenada ao tédio e à

desaprendizagem – esta é a razão apontada pelo linguista.

O que o linguista aponta é o mesmo que os alunos avaliam em seus discursos:

3. 7MA2–30 Bom, a minha vivência com a língua Portuguesa nem sempre é muito boa,

pelo fato de ter um pouco de dificuldade as vezes.

A língua Portuguesa não é uma matéria fácil de se lidar de se aprender, é preciso

ter um ensino qualificado, onde nós passamos dificuldades quando, fazemos um

vestibular, provas para concurso onde nos deparamos com palavras novas fora do

nosso cotidiano.

4. 3MA9–3 Aaa, não gosto muito de português... A língua portuguesa me ajudou na fala

correta e está me preparando para me ajudar no futuro. Desde pequena tive os melhores

professores de português.

Eu acho a matéria muito complicada, pois tenho dificuldade em VTD, VTI,

conjunção, conjugação, subordinativas, etc.

Acho que eu também tenho que forçar meu estudo.

Português é complicado de maiiis, mas eu vou indo nessa porque isso não ser

necessário no meu dia a dia.

(Obs.: eu não sei me expressar muito bem)

5. 3MA9–7 Eu acho que a disciplina de Português vai pela cabeça de cada um, pois cada

um tem sua opinião uns gostam outros detestam, mas fazer o que se essa disciplina foi

criada apenas para nos ajudar.

Eu não gosto muito de Português, acho meio chatinho, complicado. Desde

quando comecei a estudar sempre peguei os melhores professores de português.

Para esses estudantes, a disciplina de Língua Portuguesa é apresentada como um

dos “pacotes de conhecimentos” (BAUMAN, 2008) que não sabem como

"desempacotar”. O reconhecimento da dificuldade da disciplina e as tentativas de

aprendizagem (Indicador 5, 6MA2-7 Eu sempre me esforcei na matéria, mas quase nunca

tiro notas boas.) podem demonstrar que os estudantes não buscam atalhos, mas podem

desistir ante os obstáculos.

Dado o fato de o conjunto de frames majoritariamente marcado pela perspectiva

negativa integrar 71% de todas as sequências discursivas em foco neste estudo, temos um

resultado que confirma que o processo ensino-aprendizagem de LP está longe de atingir

as metas propugnadas tanto pela academia quanto pelo Estado. De igual modo, as mesmas

vozes adultas conhecem os desafios ainda não superados neste ensino. Pode parecer, à

primeira vista, portanto, que o quadro que tecemos representou um “chover no molhado”.

Contudo, o desafio posto neste estudo foi conhecer a perspectiva discente acerca de

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tal realidade. O que temos como resultado primeiro, e majoritário, é a comprovação,

pelas próprias vozes adolescentes, da construção de uma identidade social marcada pela

impotência e pelo fracasso ante a língua pátria:

6. 2MA9-9 [...] Mas tenho que fazer um esforço para aprender pois a matéria é uma das

mais importantes para o meu futuro, eu tento ao máximo aprender mas eu nunca

consigo entender nada.

Nosso estudo apresentou também uma contraparte positiva advinda do superframe

Experiência_Escolar (esse grupo apresentou majoritariamente experiências positivas).

Temos, nesse caso, o relato de significativas experiências vinculadas à aprendizagem

inicial da disciplina (ciclos de alfabetização), à leitura, ao reconhecimento através das

notas, à criação textual e ao teatro. A marca do sucesso em tais vivências remete, de modo

claro, ao espaço dado ao Protagonismo e ao Reconhecimento dos discentes.

Por fim, cabe reconhecer que, mesmo em tempos de liquidez (BAUMAN, 2008) e

de fugacidade do conhecimento em que a educação é vista, em grande escala, como

mercadoria, como bem descartável, nossos alunos ainda buscam por novas identidades

construídas por meio da escola. E mesmo pertencendo a uma classe social vítima de uma

escola brasileira “interrompida” tantas vezes e cujo projeto continua inacabado e devedor,

esses sujeitos ainda reproduzem a ideia do poder transformador da escola, ainda carregam

uma esperança transmitida, certamente, pelos pais que tiveram menos chances ainda que

seus filhos:

7. 5MA2-15 Desde pequena sempre gostei de estudar, pois sempre tive o

objetivo de dar uma vida melhor a minha família. Meus familiares não tiveram

uma escolaridade boa, mas porém sempre me incentivaram a estudar para ter

um futuro melhor.

4 CONSIDERAÇÕES SOBRE OS RESULTADOS DE UMA TRAVESSIA DIFICULTOSA

Para encerrar este artigo, cabe-nos retomar a epígrafe eleita “Quem elege a busca

não pode recusar a travessia” (BOSI, 2003), de modo a aclarar suas razões. O fato é que

a narrativa que construímos em uma década acabou por traçar o rumo de uma difícil

travessia, qual seja a vinculação deste estudo ao novo projeto brasileiro de qualificação

de professores de Português da escola pública – o Mestrado Profissional em Letras

(PROFLETRAS/ UFJF). Envolvendo professores do ensino fundamental como

pesquisadores-participantes, os novos Estudos de Caso (BRASIL, 2015; ISHIKAWA,

20156) passam a se definir pela pesquisa-ação (MORIN, 2004). A busca destes

professores pesquisadores – valendo-se da matriz teórico-analítica construída pela rede

de estudos anteriores e também dos resultados por ela alcançados – envolve desde o

traçado de um “mapa da crise” de suas salas de aula até a construção de novas tecnologias

6 Há mais outros dois estudos de caso em andamento no PROFLETRAS com conclusão prevista para

novembro, 2016.

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de ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa, de modo a se enfrentar o ambiente de

desinteresse e de incivilidade vivenciado.

Assim, a travessia deste grupo de pesquisadores, da teoria à ação educativa,

permitiu que as generalizações analíticas alcançadas, dentro dos limites claros do

conjunto de Estudos de Caso, trouxessem significativos elementos para a compreensão

da realidade educacional na zona de influência da UFJF e para o trabalho de formação de

professores nesta realidade.

Outro ganho substancial nesta travessia investigativa é a consolidação de um

modelo de análise do discurso suportado pela Semântica de Frames e pelos Modelos de

Linguagem baseados no Uso. Ancorado na relação entre linguagem e experiência, tal

modelo traz a vantagem de colocar à mostra e à luz de nosso exercício interpretativo a

perspectiva instaurada pelas vozes dos atores centrais da sala de aula sobre as experiências

vivenciadas nesse cenário.

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Title: From the semantic discourse analysis to educational action – a classroom crisis map

Authors: Neusa Salim Miranda; Luciene Fernandes Loures

Abstract: This article aims to present the path of hybrid nature macro project – both

linguistic and educational – that, for a decade, before the development of twelve Case Studies

in the elementary school scenario, works with a discourse analysis model based on Frame

Semantics and on Usage-based model. From the narratives of practices of students and

teachers as a constitutive methodology of your corpora, this study allowed us to draw the

classroom crisis map, with your causes, consequences and also your escapes, which has led

not just for a consolidation of a discourse model analysis, but a new way for an education

action in the Portuguese classroom and in the processes of teacher’s formation.

Keywords: Frame Semantics. Discourse analysis. School experience.

Título: Del análisis semántico des discurso hasta la acción educativa – un mapeo de la crisis

de la sala de aula

Autores: Neusa Salim Miranda; Luciene Fernandes Loures

Resumen: Este artículo presenta una trayectoria de un macro-proyecto de naturaleza

híbrida – Lingüística y Educación – que por una década, delante el desarrollo de doce

Estudios de Caso fijados en el escenario escolar, viene trabajando un modelo de análisis del

discurso basado en la Semántica de Frames y en los Modelos de Lenguaje anclados en el

Uso. Se valiendo de la narrativa de prácticas de alumnos y profesores como metodología de

constitución de sus corpora, este estudio he permitido trazar un mapeo de la crisis de la sala

de aula, con sus causas, consecuencias y también rutas de salida, lo que hay conducido no

solo hasta la consolidación de un modelo de análisis del discurso, pero a nuevos caminos

para la acción educativa en clases de Lengua Portuguesa y en el proceso de entrenamiento

de profesores.

Palabras-clave: Semántica de Frames. Análisis del discurso. Experiencia escolar.

Este texto está licenciado com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.

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DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1982-4017-160302-0316D

CONVERGÊNCIAS ENTRE SEMÂNTICA DE FRAMES E

LEXICOGRAFIA

Rove Chishman*

Universidade do Vale do Rio dos Sinos

Escola da Indústria Criativa

São Leopoldo, RS, Brasil

Resumo: O presente ensaio objetiva refletir sobre as convergências entre Semântica de

Frames (FILLMORE, 1982, 1985) e Lexicografia. Para tanto, preveem-se dois vieses

distintos, mas complementares para abordar o tema. Um deles diz respeito à interface da

Semântica de Frames com a Lexicografia Computacional. Essa primeira perspectiva remete

obrigatoriamente a tratar da Semântica de Frames e de sua contraparte computacional, a

base de dados FrameNet, assim como a considerar o efervescente contexto em que se situa

o projeto de Fillmore. O outro viés, através do qual se abordará a interface, leva em conta

a aproximação não apenas da Semântica de Frames, mas da Semântica Cognitiva em termos

mais amplos, com a Lexicografia tradicional. Dar-se-á destaque à noção de frame semântico

nesse novo cenário de investigação.

Palavras-chave: Semântica de frames. Léxico computacional. Lexicografia.

1 INTRODUÇÃO1

O presente ensaio objetiva refletir sobre as convergências entre Semântica de

Frames (FILLMORE, 1982, 1985) e Lexicografia. Para tanto, prevêem-se dois vieses

distintos, mas complementares para abordar o tema. Um deles diz respeito à interface da

Semântica de Frames com a Lexicografia Computacional. Essa primeira perspectiva nos

remete obrigatoriamente a tratar da Semântica de Frames e sua contraparte

computacional, a base de dados FrameNet, assim como a considerar o efervescente

contexto em que se situa o projeto de Fillmore. Salienta-se, nesse primeiro enfoque, o

papel que os estudos semânticos e lexicais passaram a assumir no âmbito da Linguística

Computacional e da Inteligência Artificial. O outro viés através do qual se abordará a

interface leva em conta a aproximação não apenas da Semântica de Frames, mas da

Semântica Cognitiva em termos mais amplos, com a Lexicografia tradicional. Trata-se de

uma perspectiva ainda pouco explorada, mas que sinaliza para a pertinência em se

aplicarem os preceitos da Semântica Cognitiva como elementos organizadores na

estruturação dos dicionários. Dar-se-á destaque à noção de frame semântico nesse novo

cenário de investigação.

* Professora do Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada da Unisinos, Pesquisadora

Produtividade CNPq (PQ 2). E-mail: [email protected].

1 Artigo desenvolvido como parte do projeto de pesquisa “Convergências entre Semântica de Frames e

Lexicografia Computacional”, financiado com recursos do CNPq (Processo No. 311450/2015-6).

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CHISHMAN, Rove. Convergências entre semântica de frames e lexicografia. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 16, n. 3, p. 547-559, set./dez. 2016.

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2 DISCUSSÃO

2.1 DOS DICIONÁRIOS AOS LÉXICOS COMPUTACIONAIS

Antes de nos atermos à apresentação da Semântica de Frames e sua contraparte

computacional, a base de dados FrameNet, convém que se chame a atenção para um

período em que os estudos semânticos e lexicais passaram a ser centrais no âmbito da

Computação.

É na década de 1990 que questões de natureza semântica e lexical passaram a

despertar o interesse dos estudiosos das áreas da engenharia da linguagem e da

representação do conhecimento, assumindo papel central na construção de uma série de

produtos para processamento da linguagem natural, tais como tradutores automáticos e

programas de indexação e recuperação de informação.

Recebem importância, nesse período, os chamados dicionários legíveis por

máquina (machine-readable dictionaries – MRDs), dicionários em formato eletrônico

com possibilidade de serem processados e manipulados pelo computador. MRDs, em sua

fase inicial, nada mais eram do que dicionários convencionais que se tornavam

dicionários inteligentes, haja vista sua capacidade de processamento.

Litwovski (2003, p. 753-761) traz uma detalhada retrospectiva do surgimento e

evolução desses recursos, destacando o Longman’s Dictionary of Contemporary English

(LDOCE), como um dos primeiros dicionários convencionais a serem usados como

MRDs. Com os avanços tecnológicos, tais dicionários deixaram de ser transcrições fiéis

dos dicionários impressos e passaram a contar com versões em formatos de mais fácil

acesso, como é o caso da linguagem de marcação XML (eXtensible Markup Language).

Acompanhando a própria evolução da tecnologia nesse período, surgem também os

dicionários construídos especialmente para uso no processamento da linguagem (também

conhecidos como PLN dictionaries). Embora ambos possam ser processáveis pela

máquina, os dicionários para uso exclusivo em PLN já são construídos tendo em vista

exclusivamente o uso computacional.

Nessa mesma linha podemos compreender a denominação dicionário tratável por

máquina (no inglês machine tractable dictionary ou MTDs) proposta por Wilks et al.

(1996) para se referir ao resultado da transformação de um MRD com vistas a ser

manipulado de forma mais apropriada tanto pela Linguística Computacional como pela

Inteligência Artificial.

Esta sucinta contextualização nos permite compreender outras questões. Uma delas

é a própria concepção alargada que os termos dicionário e léxico passaram a assumir.

Segundo Litwovski (2003, p. 753-761), léxicos computacionais e dicionários incluem não

apenas versões manipuláveis pelo computador de dicionários convencionais e thesaurus,

como quaisquer compilações eletrônicas de palavras, sintagmas e conceitos, tais como

listas de palavras, taxonomias, bases de dados terminológicas e ontologias. Destaca-se

também que não se incluem nessa categorização ampla as versões eletrônicas dos

dicionários, construídas apenas com o intuito de simples consulta na tela do computador

por um usuário humano.

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CHISHMAN, Rove. Convergências entre semântica de frames e lexicografia. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 16, n. 3, p. 547-559, set./dez. 2016.

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Outra questão relevante para a presente discussão diz respeito ao próprio status que

as teorias semânticas passaram a adquirir, especialmente pela preocupação em atender às

demandas provindas das aplicações computacionais. A Semântica Lexical representa,

nessa visão revigorada, uma área de convergência entre semântica lexical, lexicografia

computacional e semântica computacional.

Niremburg e Raskin (2004: p. 25) se referem às abordagens já delineadas tendo a

aplicação computacional em mente como representando a visão de demand-side lexical

semantics ou ontology-driven theories. Em face ao compromisso com a aplicação, trata-

se de concepções teóricas que enfatizam as questões essenciais de significado, de maneira

a não o dissociar do conhecimento de mundo. A profundidade e a cobertura da descrição

do léxico dependem da arquitetura do sistema em desenvolvimento. O importante é

construir modelos (isto é, ontologias) e pô-los em correspondência com o léxico, que

passaria a conter conhecimento que não é exigido para a decodificação da realização

sintática dos argumentos.

Essa visão de orientação ontológica contribuiria com a força expressiva adicional

ao fornecer informação residual à estrutura predicado-argumento, como, por exemplo,

especificações quanto às restrições de seleção e ao próprio conteúdo das unidades.

Contrastando com essa visão que mescla teoria e prática estão as abordagens que

Niremburg e Raskin denominam de supply-side lexical semantics ou syntax-driven lexical

semantics. Denominações como semântica gramatical ou semântica linguística também

são empregadas como referindo-se a esta visão. Tais abordagens se atêm às noções de

predicados e argumentos e a apresentar informações sobre os diferentes papéis temáticos

que podem ser incluídas nas entradas lexicais. Entre as peculiaridades da visão

sintaticamente orientada, destaca-se o interesse em formular teorias em semântica lexical

que põem o foco de atenção na elegância formal, na economia de recursos descritivos e

na ausência de exceções. Em consequência desse tipo de compromisso, fenômenos que

não se submetem ao rigor almejado não são tratados. É o que normalmente ocorre com

as questões de conteúdo lexical, que raramente são discutidas por teorias que seguem essa

tradição. Estuda-se o que é possível.

Como exemplo dessa concepção, temos as investigações realizadas no âmbito do

MIT Lexicon Project, cujos principais objetivos do projeto são o estudo de regularidades

no comportamento de itens lexicais, em especial de verbos, e a descoberta de princípios

que determinam o mapeamento entre semântica lexical e morfossintaxe (LEVIN, 2011).

2.2 A SEMÂNTICA DE FRAMES

A Semântica de Frames é uma das abordagens mais importantes do movimento nos

estudos linguísticos conhecidos como Linguística Cognitiva. Tendo surgido no cenário

linguístico nos fins da década de 70 e princípios da década de 80, a Linguística Cognitiva

se estabelece como um paradigma que se desvincula de aspectos-chave presentes em

abordagens formais em vigor na época, haja vista rejeitar a concepção de autonomia da

linguagem, assim como o tratamento periférico dispensado a questões relacionadas ao

sentido e ao uso.

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Desse período inicial da Linguística Cognitiva, os linguistas George Lakoff, Ronald

Langacker, Leonard Talmy, Gilles Fauconnier e Charles Fillmore figuraram como os

principais expoentes que se empenharam em firmar este novo modelo para os estudos da

linguagem, capaz de dar conta daquilo que era antes posto de lado.

São considerados centrais para a Linguística Cognitiva os seguintes aspectos: a) a

centralidade do estudo das estruturas conceptuais; b) o motivacionismo semântico da

gramática; c) a diluição de dicotomias como semântica/pragmática, significado

linguístico/significado extralinguístico e sentido literal/sentido figurado; d) o

compromisso com o experiencialismo; e e) a visão enciclopédica do significado.

No que tange à relação entre cognição humana e linguagem, a Linguística Cognitiva

se afasta da perspectiva de modularidade da mente e defende o pressuposto de que a

linguagem está intrinsecamente relacionada com os demais módulos cognitivos,

assumindo a existência de aspectos cognitivos compartilhados pela linguagem e outras

capacidades. Segundo Fauconnier e Turner (2003), capacidades cognitivas que possuem

papel central na linguagem não são específicas a ela. Dentre essas capacidades, podemos

incluir analogia, recursão, ponto de vista e perspectiva, alinhamento figura e fundo e

integração conceptual. O fato de a Linguística Cognitiva promover o encontro de todos

os níveis linguísticos, não mais negligenciando a semântica e a pragmática, possibilita

compreendermos que o conhecimento é enciclopédico. Por exemplo, o significado de

dicionário de “cachorro” se limita a incluir as propriedades de um cachorro que nos

possibilitam distingui-lo de outros seres, enquanto o conhecimento enciclopédico carrega

uma série de outras informações, como o fato de cachorros serem conhecidos, em

determinados contextos socioculturais, como os melhores amigos do homem (CRUSE,

2006). Sendo assim, a Linguística Cognitiva relaciona a linguagem (e a forma como nos

expressamos através dela) com as nossas experiências. É nesse contexto que surge a

Semântica de Frames de Charles Fillmore.

A teoria, de acordo com Evans e Green (2006, p. 222, tradução nossa), “tenta

descobrir as propriedades do inventário estruturado da linguagem associado com as

palavras e considera quais consequências as propriedades desse sistema de conhecimento

podem ter para um modelo semântico”2. Um frame pode ser descrito como uma

esquematização da experiência depositada em nossa memória de longo-prazo (EVANS;

GREEN, 2006), elencando os elementos participantes de uma determinada experiência.

De acordo com Fillmore (1982, p. 11), um frame é “qualquer sistema de conceitos

relacionados de tal maneira que para entender qualquer um deles é preciso entender a

estrutura que os comporta como um todo [...]”.

Um outro aspecto central para compreendermos a Semântica de Frames e os

desdobramentos que interessam à nossa reflexão neste trabalho diz respeito ao

compromisso da teoria com o empirismo. Empirismo, no contexto da Linguística

Cognitiva, relaciona-se diretamente à visão experiencialista, a qual, num sentido lato,

envolve aspectos culturais, históricos e sociais.

2 No original: “[...] attempts to uncover the properties of the structured inventory of knowledge associated

with words, and to consider what consequences the properties of this knowledge system might have for a

model of semantics.”

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Fillmore (1982) caracteriza a Semântica de Frames como empírica. Nas palavras

do linguista, “A Semântica de Frames oferece um modo particular de se olhar para o

significado das palavras [...]” (FILLMORE, 1982, p.11). Tal modo é caracterizado pela

observação e análise das nossas experiências, resultantes da nossa interação com o

ambiente. As palavras, para Fillmore, são categorizações de experiência, sustentadas por

uma situação motivacional que ocorre em um plano de fundo de conhecimento decorrente

da forma como nos posicionamos e percebemos o mundo ao nosso redor. Desse modo, os

frames podem caracterizar um modo para se entender a razão pela qual determinada

comunidade cria certas categorias de palavras, buscando explicar o significado de cada

unidade lexical através do esclarecimento de tal motivação. Os frames, nesse sentido,

estão intrinsecamente relacionados à cultura.

Tal relação existente entre o frame semântico de Fillmore e a cultura de cada um

pode ser representada a partir de um frame de café da manhã (FILLMORE, 1982).

Segundo o linguista:

Entender essa palavra é entender a prática em nossa cultura de ter três refeições diárias, em

horários mais ou menos convencionalmente estabelecidos do dia, e sendo que uma dessas

refeições é aquela a ser feita no início do dia, após um período de sono, consistindo de um

menu um tanto quanto único (cujos detalhes podem variar de comunidade para comunidade)

(FILLMORE, 1982, p.118, tradução nossa).3

Seguindo o raciocínio de Fillmore, podemos dizer que compreender “café da

manhã” significa compreender o papel dessa refeição na nossa sociedade. Podemos ir

mais fundo: um café da manhã tradicionalmente americano contém ovos mexidos, bacon,

panquecas. É possível que a ausência de algum desses elementos cause estranhamento

em uma pessoa acostumada a essa realidade. No entanto, no Brasil, é igualmente possível

que a presença dos mesmos elementos cause tal estranhamento. É importante ressaltar

que o frame é o mesmo, uma vez que ele está ainda retratando a primeira refeição do dia,

feita no início da manhã, após um período de sono, dentre outros aspectos que o

caracterizam.

Ainda explorando o caráter empírico da Semântica de Frames, vale destacar o

compromisso que Fillmore passa a assumir com as investigações baseadas em corpora

para descrever a linguagem.

Dessa forma, há claramente uma refutação de abordagens intuitivas que

desconsiderem o real uso linguístico dos falantes. Esses preceitos são retomados e

aperfeiçoados na década de 1980, quando o autor consolida a Semântica de Frames como

um programa de análise do significado a partir de situações reais de comunicação

(FILLMORE, 1982; 1985).

Outro ponto de especial interesse para este trabalho diz respeito aos aspectos

sintagmáticos do significado lexical que Fillmore passa a considerar. Cabe lembrar que

foi no clássico The case for cases (1968) que Fillmore propôs, ainda no âmbito do

3 No original: “To understand this word is to understand the practice in our culture of having three meals a

day, at more or less conventionally established times of the day, and for one of these meals to be the one

which is eaten early in the day, after a period of sleep, and for it to consist of a somewhat unique menu (the

details of which can vary from community to community).”

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gerativismo, a Gramática de Casos. Tomando como base a teoria padrão, a ideia consistia

em se dispor de uma representação mais profunda do que a já prevista pela teoria, com

uma base sintática associada a elementos semânticos.

Nos anos de 1990, com a publicação de Toward a Frame-Based Lexicon: The

Semantics of RISK and its Neighbors em co-autoria com Atkins, Fillmore (1992) traz uma

análise descritiva minuciosa no que diz respeito às descrições valenciais que estruturam

os frames. Dentre os principais resultados deste estudo está a evidência de que um

dicionário em que se separam os sentidos com base em diferenças de padrões gramaticais

não permite que o usuário verifique processos metafóricos e metonímicos relacionados a

determinadas unidades lexicais (FILLMORE; ATKINS, 1992), daí a necessidade de se

criar um recurso organizado em torno de frames.

É neste contexto que surge o projeto FrameNet.

2.3 A FRAMENET

A Plataforma FrameNet4 vem sendo desenvolvida no International Computer

Science Institute (ICSI) em Berkeley (Califórnia), tendo entrado em operação em 1997

como uma contraparte aplicada da SF.

Trata-se de um recurso projetado para ser legível tanto por máquinas como por

humanos, sendo, portanto, um MRD, conforme definição apresentada anteriormente.

Nesse sentido, assemelha-se a outros projetos de bases de dados computacionais, tais

como a WordNet (MILLER; FELLBAUM, 2007) e o PropBank (PALMER et al., 2005),

apenas para citar os mais conhecidos, haja vista o compromisso com as aplicações em

PLN.

Em artigo em que Salomão et al. (2013) refletem sobre a aplicação da Semântica

de Frames na base da FrameNet, são apresentados o que os autores consideram como

seus principais objetivos: a) a descrição das Unidades Lexicais (ULs), dos frames

evocados e os Elementos de Frame (EFs); b) o uso de corpus para validar as descrições;

c) a determinação das possibilidades combinatórias das ULs; d) a disponibilização de

sentenças anotadas; e) a sumarização de padrões valenciais; e f) a representação das

relações entre frames.

Desse modo, conforme sintetizam Atkins, Fillmore e Johnson (2003), a FrameNet

é um recurso lexicográfico computacional que descreve propriedades semânticas e

sintáticas de palavras em língua inglesa, a partir de corpora eletrônicos, apresentando

essa informação através de uma plataforma on-line. Assim, o desenvolvimento do projeto

embasa-se na análise de um vasto conjunto de textos autênticos de língua inglesa, do qual

são extraídas as sentenças que ilustram as unidades lexicais.

Fillmore e Baker explicam que o método de pesquisa adotado pelo projeto

4 <http://framenet.icsi.berkeley.edu>.

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[...] consiste em encontrar grupos de palavras cujas estruturas de frames podem ser

conjuntamente descritas, devido ao fato de partilharem padrões e contextos esquemáticos

comuns de expressões que podem se combinar com elas para formar frases ou sentenças

maiores. Tipicamente, as palavras que partilham de um mesmo frame podem ser usadas como

paráfrases umas das outras. As propostas gerais do projeto buscam oferecer descrições

confiáveis de propriedades combinatórias sintáticas e semânticas de cada palavra do léxico e

reunir informações sobre modos alternativos de se expressar conceitos dentro de um mesmo

domínio conceptual. (FILLMORE; BAKER, 2010, p. 321, grifo nosso).5

Assim, o trabalho da FrameNet inclui o desenvolvimento do frame semântico, a

extração de corpus e a anotação de sentenças exemplo. O desenvolvimento do frame tem

como etapas a caracterização informal do tipo de entidade ou situação representada pelo

frame, seleção dos elementos de frame e a construção de listas de palavras que pertencem

ao frame. A extração de corpus tem por objetivo a verificação dos contextos sintáticos e

semânticos dos constituintes das sentenças, anotando-se os exemplos de acordo com os

EFs estabelecidos (FILLMORE; JOHNSON; PETRUCK, 2003).

Além da Framenet de Berkeley, estão em construção recursos lexicais baseados em

frames para o hebraico (PETRUCK, 2009), o português brasileiro (SALOMÃO, 2009), o

italiano (VENTURI et al., 2009) e o francês (PITEL, 2009). Os frames e elementos de

frame da FrameNet também têm sido utilizados para anotação de corpora em alemão

(BURCHARDT et al., 2009). Todos os recursos lexicais até aqui citados estão voltados à

descrição de língua geral. No entanto, a FrameNet também serviu de inspiração para o

desenvolvimento de recursos léxico-computacionais para linguagens especializadas. Um

exemplo de aplicação dos frames para linguagens especializadas é o Kicktionary

(SCHMIDT, 2009), base de dados lexicais multilíngue da linguagem do futebol e fonte

de inspiração para o projeto Kicktionary-Br (CHISHMAN, 2009).

Importante destacar que estas framenets distintas, ainda que possam ser chamadas

de léxicos computacionais, não foram desenvolvidas a partir dos preceitos da

Lexicografia. O seu principal propósito é armazenar informações léxico-semânticas com

base em frames em um formato que possa ser processado pelo computador. Trata-se,

portanto, de bases de dados lexicais, e não dicionários propriamente ditos.

2.4 A SEMÂNTICA DE FRAMES E A LEXICOGRAFIA

Antes de tratar das possíveis convergências entre Linguística Cognitiva, em

especial a teoria de nosso interesse – a Semântica de Frames, e a Lexicografia, é

importante partir das possíveis convergências entre Lexicografia e Linguística em um

sentido mais amplo.

5 No original: “The method of inquiry is to find groups of words whose frame structures can be described

together, by virtue of their sharing common schematic backgrounds and patterns of expressions that can

combine with them to form larger phrases or sentences. In the typical case, words that share a frame can be

used in paraphrases of each other. The general purposes of the project are both to provide reliable

descriptions of the syntactic and semantic combinatorial properties of each word in the lexicon, and to

assemble information about alternative ways of expressing concepts in the same conceptual domain.”

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Ainda que tal vinculação pareça natural e previsível, haja vista que os dicionários

lidam com informação linguística, há quem chame a atenção para as dificuldades em

estabelecer tais elos. O caráter fortemente aplicado da Lexicografia vem corroborar tal

posição, que enfatiza que dicionários são artefatos (o que os distanciaria de um tratamento

científico) e que ter embasamento em teoria linguística não é pré-requisito para uma

prática bem-sucedida.

Atkins e Rundell (2008, p. 130) chamam a atenção para a situação inversa: teorias

linguísticas têm aplicação direta no trabalho de planejamento e desenvolvimento de

dicionários. Nesse cenário, a semântica lexical e outras abordagens filiadas ao

estruturalismo estão entre as perspectivas teóricas que têm impactado a prática

lexicográfica. Relações semânticas entre os itens lexicais, como hiponímia, sinonímia,

meronímia e tipos variados de antonímia, e o tratamento da polissemia estão entre os

fenômenos que têm sido abordados nos dicionários a partir do viés das teorias semânticas.

Lyons (1969, 1977, apud ATKINS; RUNDELL, 2008) e Cruse (1986) estão entre os

linguistas que têm inspirado o trabalho lexicográfico. Os princípios teóricos da chamada

Lexicologia Combinatória Explanatória de Mel’cuk também têm sido aplicados na

constituição de entradas lexicais. O DiCoInfo – Dictionnaire fondamental de

l’informatique et de l’Internet - (LEROYER, 2007, 2011; L’HOMME et al., 2014) é um

exemplo de tal aplicação ao fornecer informações sobre estrutura de actantes e

circunstantes nas entradas dos verbetes.

Geeraerts (2015), seguindo nessa mesma linha de pensamento, ressalta que a

influência da perspectiva estruturalista já estava presente na obra de Zgusta (1971, apud

Geeraerts, 2015), considerada como uma das mais influentes desse período. Dentre as

perspectivas teóricas de orientação estruturalista que tiveram reflexo na prática

lexicográfica, o autor chama a atenção para a teoria dos campos semânticos e sua

aplicação em dicionários onomasiológicos6.

O autor também faz menção à semântica relacional e à semântica distribucional

como abordagens estruturalistas que estão presentes em projetos lexicográficos. No caso

da semântica relacional, é feita referência à aplicação que o projeto WordNet faz do

conceito de relações de sentido. Na base de dados WordNet, nomes, verbos, adjetivos e

advérbios são agrupados em conjuntos de sinônimos (comumente conhecidos como

synsets). Como exemplo de projeto lexicográfico inspirado na semântica distribucional,

Geeraerts faz menção ao trabalho de John Sinclair (ver Sinclair (1991)) com o

desenvolvimento do Collins Cobuild English Language Dictionary (1987), para o qual

foi compilado um corpus de 20 milhões de palavras. O conceito central desta perspectiva

repousa sobre a noção de colocação, definida como uma relação lexical entre duas ou

mais palavras que têm a tendência de aparecerem juntas em texto corrido.

No que diz respeito à aplicação da Linguística Cognitiva ao estudo dos dicionários,

pode-se afirmar que as iniciativas são ainda tímidas. À primeira vista, Lexicografia e

Linguística Cognitiva parecem não ter muitos pontos em comum ao ponto de favorecer

6 Dicionários que organizam o vocabulário não em ordem alfabética, mas com base em temáticas

específicas e na associação semântica entre as palavras.

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uma projeção de uma sobre a outra. Enquanto a Lexicografia tem seguido princípios

estabelecidos por décadas e até por séculos, a Linguística Cognitiva, comparativamente,

é um campo da Linguística que emergiu há poucas décadas. Geeraerts (1997, 2001, 2006,

2007) é um dos poucos teóricos da perspectiva cognitivista que tem discutido aspectos

referentes à Lexicografia.

Referindo-se ao impacto da semântica cognitiva na lexicografia, Geeraerts (2015)

dá destaque a três perspectivas: a semântica de frames, o estudo da metáfora conceptual

e metonímia e a teoria dos protótipos. No que tange à semântica de frames, o autor chama

a atenção para o projeto FrameNet e para o uso de corpus como a principal fonte de

evidência empírica para a análise baseada em frames.

Os estudos sobre metáfora conceptual e metonímia, por sua vez, sinalizam para

formas de lidar com as associações entre os sentidos de itens lexicais que vão além da

prática comum nos dicionários. Como exemplo de iniciativas envolvendo as metáforas

conceptuais, Geeraerts cita o Macmillan English Dictionary for Advanced Learners

(2007), que incorpora “caixas de metáfora”, mostrando metáforas conceptuais

subjacentes às expressões.

A teoria dos protótipos e a própria visão de polissemia e categorização que a

Linguística Cognitiva defende impõem um desafio para uma perspectiva estruturalista de

estudar o léxico. Em uma perspectiva que põe o foco sobre os sentidos como parte de um

sistema linguístico mais ou menos autônomo, muitos dos fenômenos que são destacados

pela semântica cognitiva ficam descartados.

Outro estudo que explora a aplicação dos preceitos da Linguística Cognitiva à

prática lexicográfica é o de Carolin Ostermann (2015). A autora propõe uma nova

abordagem para a lexicografia fazendo uso, em especial, da semântica cognitiva. À

primeira vista, defende Ostermann, lexicografia e linguística cognitiva não parecem ter

pontos em comum que favoreceriam a projeção de uma sobre a outra; contudo, o

compromisso que a Linguística Cognitiva tem em descrever a linguagem de acordo com

o modo como as pessoas percebem e conceptualizam o mundo, com a linguagem não

sendo vista como uma faculdade isolada, mas relacionada ao mundo, parece adequada

para a composição das estruturas dos dicionários. Segundo a autora, a Linguística

Cognitiva pode auxiliar a lidar com problemas clássicos, como linearização,

multiplicidade de sentidos, definições, metáforas e metonímias, além de partir de uma

concepção psicologicamente plausível.

No que se refere especificamente ao emprego da noção de frame na prática

lexicográfica, interesse central deste trabalho, Martin (1997, apud OSTERMANN, 2015)

enfatiza a força descritiva e explanatória dos frames, haja vista que organizam e

apresentam o conhecimento de mundo. Dentre as formas como os frames poderiam ser

adicionados às entradas de um dicionário, o autor faz menção a uma possível organização

temática ou até a eliminação dos sentidos do dicionário.

A proposta apresentada por Ostermann considera as sentenças de exemplos que

fazem parte de uma entrada de dicionário como o lócus para a aplicação da noção de

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frame. Independente de sua função de mostrar a cabeça7 de verbete em um contexto

específico e oferecer colocações, as sentenças evocam uma situação e oferecem espaço

suficiente para descrições elaboradas sem as restrições de um formato específico.

Langacker (2005, apud OSTERMANN, 2015) e Atkins (1995, apud

OSTERMANN, 2015) também reconhecem o papel que as sentenças de exemplos

ocupam. Segundo Atkins, as sentenças constituem uma parte integral da descrição do

significado e devem de forma sistemática exemplificar todos os fatos relevantes do frame.

As seções de exemplos, sob tal óptica, adicionariam uma representação de um frame às

entradas de dicionário dos itens lexicais participantes.

O desenvolvimento do Dicionário Field: expressões do futebol8 (CHISHMAN et

al., 2014) foi guiado, ainda que de forma embrionária, pelo propósito de aplicar a noção

de frame na estrutura do dicionário. Diferentemente do projeto FrameNet, o Field

procurou ajustar os preceitos da Semântica de Frames à prática lexicográfica tradicional,

o que significa contemplar requisitos como, por exemplo, o perfil do usuário.

O Dicionário Olímpico9 (CHISHMAN, 2015), por sua vez, vem sendo

desenvolvido tendo como mote uma proposta similar à de Ostermann; contudo, ao invés

de explorar as sentenças de exemplos como o lócus para a representação do frame, o

dicionário para os esportes olímpicos põe ênfase na própria glosa do esporte e no princípio

fillmoriano de que saber o significado de uma palavra implica saber o frame evocado por

tal palavra.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Propusemo-nos, neste ensaio, a refletir sobre as convergências entre a Semântica

de Frames e a Lexicografia. Iniciamos nosso percurso chamando a atenção para os léxicos

computacionais, em especial destacando a distinção entre dicionários legíveis (ou

tratáveis) por máquina e dicionários legíveis na máquina.

Partindo deste esclarecimento sobre os léxicos computacionais, apresentamos a

Semântica de Frames e sua vinculação à Linguística Cognitiva, destacando as

características que vão justificar o emprego desse arcabouço teórico na prática

lexicográfica.

Tendo situado a Semântica de Frames, em seguida tratamos de apresentar duas

possibilidades de aplicação da teoria. A primeira traz o projeto FrameNet, enfatizando as

características que o situam como léxico computacional e indicam a interface com a

Linguística Computacional. A segunda explora a interface da Semântica de Frames com

a Lexicografia tradicional, destacando a pertinência de explorar não apenas a noção de

frames, mas outros conceitos da Linguística Cognitiva.

7 Cabeça de verbete equivale à entrada de verbete. Optou-se pela forma cabeça de verbete em consideração

à expressão original em inglês headword, conforme Atkins e Rundell (2008). 8 <www.dicionariofield.com.br>.

9 <www.dicionariolimpico.com.br>.

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Por fim, citamos dois projetos do grupo SemanTec10 que têm procurado aprofundar

formas de aproximar a Semântica de Frames e a Lexicografia. Nesses projetos, nosso

propósito foi apenas destacar uma das formas em que as duas áreas podem convergir, que

é a noção de frame como princípio organizador de uma obra lexicográfica. Chamou-nos

a atenção nesses empreendimentos a importância da noção de significado enciclopédico

para a eficácia da compreensão dos sentidos.

Conforme já se destacou, não apenas a Semântica de Frames, mas também a

semântica cognitiva em um sentido amplo, têm muito a oferecer para a prática

lexicográfica. Categorização, polissemia, categorias radiais, metáforas conceptuais são

tópicos que muito têm a agregar à prática dicionarística.

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New York: Holt, Rinehart & Winston, Inc., 1968.

10 O grupo de pesquisa SemanTec (forma acrônima de Semântica e Tecnologia) é credenciado pelo CNPq

desde 2000 e coordenado pela Profa. Dra. Rove Chishman. As investigações realizadas pelo grupo integram

duas áreas do conhecimento: a Linguística, mais precisamente a Semântica Cognitiva, e a Informática, com

ênfase nas investigações voltadas para a Lexicografia Computacional e o uso de corpus eletrônico (como

roga a Linguística de Corpus) em situações de pesquisa. Mais informações em

<www.projeto.unisinos.br/semantec>.

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Recebido em: 04/07/16. Aprovado em: 22/07/16.

Title: Similarities between Frame Semantics and Lexicography

Author: Rove Chishman

Abstract: This essay aims to reflect on the similarities between Frame Semantics

(FILLMORE 1982, 1985) and Lexicography. To this proposal, two distinct biases but

complementary are considered. One of them concerns the interface between Frame

Semantics and Computational Lexicography. This first perspective obligatorily refers to the

Frame Semantics and its computer counterpart, the database FrameNet, as well as to

consider the effervescent context in which lies the Fillmore project. The other bias through

which to address the interface takes into account the approach of not only Frame Semantics,

but also the Cognitive Semantics in broader terms, with traditional lexicography. We will

highlight the notion of semantic frame in this new research scenario.

Keywords: Frame Semantics. Computational lexicon. Lexicography.

Título: Convergencias entre Semántica de Frames y Lexicografía

Autor: Rove Chishman

Resumen: Este artículo tiene el objetivo de reflejar sobre convergencias entre Semántica de

Frames (FILLMORE, 1982, 1985) y Lexicografía. Para ello, se prevén dos puntos de vista

distintos, pero complementares para abordar el tema. Uno de ellos es con respecto a

interface de la Semántica de Frames con la Lexicografía Computacional. Esa primera

perspectiva remete obligatoriamente a tratar de la Semántica de Frames y de su contraparte

computacional, la base de datos FrameNet, también a considerar el efervescente contexto en

que se sitúa el proyecto de Fillmore. El otro punto de vista es a través del cual se aborda la

interface y considera la aproximación no solo de la Semántica de Frames, pero de la

Semántica Cognitiva en términos más amplios, con la Lexicografía tradicional. Se da

destaque para la noción de frame semántico en ese nuevo escenario de investigación.

Palabras-clave: Semántica de Frames. Léxico computacional. Lexicografía.

Este texto está licenciado com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.

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VEREZA, Solange Coelho. Cognição e sociedade: um olhar sob a óptica da linguística cognitiva. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 16, n. 3, p. 561-573, set./dez. 2016.

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DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1982-4017-160303-0416D15

COGNIÇÃO E SOCIEDADE: UM OLHAR

SOB A ÓPTICA DA LINGUÍSTICA COGNITIVA

Solange Coelho Vereza*

Universidade Federal Fluminense (UFF)

Instituto de Letras

Departamento de Letras Estrangeiras Modernas

Niterói, RJ, Brasil

Resumo: Este trabalho propõe uma reflexão em torno da relação entre cognição e

sociedade, sob a perspectiva da Linguística Cognitiva (LC). O conceito de cognição

corporificada (embodied cognition), um dos pilares da LC, põe em xeque qualquer

possibilidade de dicotomização entre os dois conceitos, uma vez que representações

cognitivas como frames, Modelos Cognitivos Idealizados (MCIs) e metáforas conceituais

seriam ancoradas na conceitualização de experiências tanto sensório-motoras, quanto

socioculturais. A busca da compreensão da articulação entre o social e o cognitivo,

entretanto, deve, segundo Gibbs (2001), sair do âmbito exclusivo do pensamento e encontrar

o mundo. Por esta razão, propõe-se uma abordagem alinhada à recente tendência cognitivo-

discursiva, que busca instrumentos teórico-metodológicos para sistematizar o estudo de tal

articulação. Entre esses, a distinção entre sistema e uso, cognição episódica e estável, frames

online e offline, e metáforas situadas e conceituais tem se mostrado teórica e analiticamente

produtiva.

Palavras-chave: Sociocognição. Metáfora. Discurso.

1 INTRODUÇÃO

Ao ser convidada para fazer parte de uma mesa-redonda intitulada Cognição e

Sociedade, no contexto da VII Conferência Linguagem e Cognição, que aconteceu na

Universidade Federal da Paraíba, em agosto de 2015, busquei, entre os estudos que

desenvolvia, ou entre os que pretendia desenvolver, aquele que mais poderia contribuir

para o tema proposto. Os meus trabalhos específicos mais recentes (VEREZA, 2013a,

2013b, 2016) têm um norte em comum: a investigação da dimensão cognitivo-discursiva

da metáfora em uso e dos frames nos quais ela se ancora (no caso de frames off-line) e ao

mesmo tempo, cria (frames online) na linguagem em uso. Nesse sentido, como a relação,

ou mesmo a interdeterminação, entre discurso e sociedade já é hoje quase um pressuposto

consensual nos estudos contemporâneos da linguagem, sendo que o próprio conceito de

discurso implica o uso socioculturalmente inserido do que era comumente conceituado

como um sistema linguístico idealizado e, portanto, descontextualizado (sendo a langue

saussuriana o protótipo desse conceito), um estudo sobre a metáfora no discurso pareceu-

me atender o critério de coerência temática com a mesa-redonda proposta.

* Doutora em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem. E-mail: [email protected].

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No entanto, um dos fundamentos da Linguística Cognitiva (LC) que, inclusive, a

distanciou da Linguística Gerativa (que, apesar das inúmeras diferenças, tem em comum

com a LC o foco em questões relativas à relação entre a mente e a linguagem) é justamente

a inseparabilidade entre o cognitivo e o social. Sendo assim, a conjunção coordenativa

aditiva “e” no título Cognição e Sociedade, juntamente com sua aparente implicação no

estabelecimento de uma possível dicotomização entre os dois conceitos, colocou-se como

um elemento potencialmente problematizável em si mesmo. No âmbito da Linguística

Cognitiva, a cognição é vista como:

inerentemente social e cultural, não apenas em termos de as pessoas compartilharem os

tópicos ou os resultados de suas interações, mas em termos das práticas interpretativas por

meio das quais as pessoas constituem os tópicos e os resultados de suas

interações.1(SAFERSTEIN, 2010, p. 113)

As definições de frame, um conceito central na Linguística Cognitiva, de Lakoff

(2004) e de Turner (2001), a seguir, evidenciam o quão imbricadas estão as dimensões

socioculturais e cognitivas na formação e reprodução do que Underhill (2012) chama

“visão de mundo” (world view), de base inteiramente sociocognitiva:

Frames são estruturas mentais que moldam a maneira com que vemos o mundo. Como

resultado, eles moldam os objetivos que traçamos, os planos que fazemos, a maneira que

agimos e o que conta como resultados bons ou ruins de nossa ações. Na política, nossos

frames moldam nossas políticas sociais e as instituições que formamos para implementar

nossas decisões. Mudar nossos frames é mudar tudo isso. Reframing é mudança social. 2

(LAKOFF, 2004, p. xv)

Operações mentais básicas operam sobre um conjunto cultural e pessoal de conhecimentos.

Alguns desses conjuntos serão largamente compartilhados em uma cultura, e certas

expressões da língua dessa cultura o evocarão. Cientistas cognitivos chamam esses conjuntos

de conhecimentos “frames”3. (TURNER, 2001, p.12)

Outros conceitos fundadores da Linguística Cognitiva, como o de MCI (Modelos

Cognitivos Idealizados (LAKOFF, 1987)) e até mesmo o de “metáfora conceptual” são,

hoje, estudados em sua relação com o ambiente sociocultural e com os construtos

ideológicos que evocam. Esses estudos compõem a nova tendência conhecida como

“Teoria Crítica da Metáfora”, que será discutida mais adiante neste trabalho. Isso não

quer dizer que outros tipos de representações cognitivas, mais diretamente relacionadas a

experiências sensório-motoras, não sejam alvo de debate sobre a possibilidade de sua

1 [Cognition is inherently social and cultural, not merely in terms of people sharing the topics or the results

of their interactions, but in terms of the interpretative practices through which people constitute the topics

and results of their interactions].

2[Frames are mental structures that shape the way we see the world. As a result, they shape the goals we

seek , the plans we make, the way we act and what counts as good or bad outcome of our actions. In politics

our frames shape our social policies and the institutions we form to icarry out our policies. To change our

frames is to change all this. Reframing is social change.]

3 [Basic human mental operations operate over cultural and personal assemblies of knowledge. Some of

these sets will be widely shared in a culture, and expressions in the culture’s language will evoke them.

Cognitive scientists call these sets of knowledge "frames".]

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universalidade, como as metáforas orientacionais, as metáforas primárias e os esquemas

imagéticos. Mesmo assim, em relação à primeira (metáfora orientacional), Lakoff e

Johnson (2002 [1980], p. 74) sustentam que, “de um modo geral, as orientações [...]

parecem existir em todas as culturas, mas a maneira pela qual os conceitos são orientados,

assim como a hierarquia das orientações, variam de cultura para cultura.”

Até mesmo a suposta universalidade da metáfora primária, como “INTIMIDADE

É PROXIMIDADE”, por exemplo, foi questionada por Martin (2004, p. 202): “Onde está

a cultura neste quadro? Todas as culturas têm conceitos para intimidade ou afeição, ou

até mesmo atribuem-lhe sentido da mesma maneira? 4. Segundo a mesma autora, até

mesmo o conceito de “corpo”, central para a noção de cognição corporificada, não deve

pressupor um corpo “a-histórico” e não socioculturalmente situado.

Com base nessas considerações, que emergiram da problematização de uma

possível dicotomização conceitual entre “cognição e sociedade”, o objetivo deste trabalho

foi redirecionado para uma breve reflexão em torno da relação entre os dois conceitos e,

principalmente, como essa relação tem sido abordada em alguns estudos da área. Como

instrumento teórico-analítico para conduzir essa reflexão, foram acionados conceitos da

própria Linguística Cognitiva: MCIs, frames e esquemas imagéticos.

2 UM OLHAR SOBRE A COGNIÇÃO SOB O VIÉS DA LINGUÍSTICA COGNITIVA

Um dos pilares da Linguística Cognitiva é o reenquadramento do conceito de

“cognição”. Tanto no senso comum quanto em estudos mais ortodoxos, fora do âmbito

da LC, a cognição é normalmente abordada, em seu sentido dicionarizado (Dicionário

Houaiss), como “ato ou efeito de conhecer; processo ou faculdade de adquirir um

conhecimento”. No Dicionário Informal, a definição é similar: “Ato ou processo de

conhecer, inclui estados mentais e processos como pensar, a atenção, o raciocínio, a

memória, o juízo, a imaginação, o pensamento, o discurso, a percepção visual e audível,

a aprendizagem, a consciência, as emoções.”5

O que essas definições têm em comum é o fato de a cognição ser vista

essencialmente como um processo de aquisição de conhecimento ou de raciocínio, haja

vista a menção à memória, à atenção, à imaginação, etc. Sendo assim, a cognição é

normalmente associada aos processos envolvidos na aquisição de conhecimento, o que

parece pressupor um esquema imagético de “contêiner” para se entender a mente. Nesse

prisma, a cognição passaria a ser abordada como os meios de se levar conhecimento a

este contêiner. Esse enquadramento pode ser visto como análogo, na perspectiva da

cognição e não na da comunicação, à metáfora do canal (REDDY, 1993).

A noção de cognição como processo remete à de desenvolvimento cognitivo, um

outro conceito largamente divulgado a partir do paradigma construtivista, cujos dois

4 [Where is culture in this picture? Do all cultures even have concepts of intimacy or affection, let alone

give them meaning in then same way? ]

5A definição do Dicionário Informal foi aqui incluída porque parece refletir a noção mais aceita no senso

comum, além de ser a mais bem avaliada entre as quatro propostas por diferentes usuários.

(<http://www.dicionarioinformal.com.br/cogni%C3%A7%C3%A3o/>. Acesso em 5 maio 2016.

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representantes principais, mesmo que vistos como antagônicos em alguns aspectos,

seriam Jean Piaget e Vygotsky. Como já é amplamente conhecido, segundo a teoria

piagetiana, o desenvolvimento cognitivo seria ancorado na ação e em funções lógicas,

seguindo uma gradação de quatro estágios no processo de aquisição de estruturas, que

formariam um conjunto unificado de conhecimento ou de habilidades cognitivas. Já em

Vygotsky, o desenvolvimento cognitivo é abordado a partir de um viés sociocultural, que

atribui um forte papel às interações no ambiente social enquanto propulsoras do

desenvolvimento cognitivo. (SANTANA; ROAZZY; DIAS, 2006).

A noção de cognição que fundamenta a Linguística Cognitiva, por sua vez, se afasta

da perspectiva, tanto teórica quanto do senso comum, que vincula a cognição à aquisição

de conhecimento (inclusive linguístico) e a um conjunto de habilidades cognitivas, muitas

vezes associadas à capacidade intelectual. Esse afastamento (e não necessariamente um

rompimento radical; afinal, isso acarretaria, nas palavras de Reddy (1993), um “conflito

de enquadramento”- frame conflict) se dá por meio da introdução do conceito de

“cognição corporificada”6, e, mais recentemente, a de “cognição situada”. Apesar da

ênfase atual nesta última, vale lembrar que o conceito de cognição corporificada já

contempla um contexto bem mais amplo, incluindo o sociocultural:

Ao usar o termo “encarnada/corporificada” queremos destacar dois pontos: primeiro que a

cognição depende dos tipos de experiência que decorrem do fato de se ter um corpo com

várias capacidades sensório-motoras e, segundo, que estas capacidades sensório-motoras

individuais estão inseridas em um contexto biológico, psicológico e cultural bem mais

abrangente "7. (VARELA; THOMPSON; ROSCH, 1992, p. 172-173)

Conceitos de base da LC, como o de metáfora conceptual, frames, esquemas

imagéticos, protótipos, MCIs e até mesmo o de construção gramatical se referem às

representações cognitivas (ou modelos mentais mais estáveis, que incluem os chamados

“modelos culturais” (van DIJK, 2009) que formam a base de nosso sistema conceptual,

ancorando e promovendo a conceptualização da experiência. Como essas representações,

por sua vez, emergem das experiências tanto sensório-motoras quanto socioculturais, a

mente, nessa perspectiva, não pode ser vista como estando separada do corpo, da língua

e do mundo. Nesse sentido, a cognição corporificada é sempre situada em um contexto

sociocultural, e esse contexto não se constitui de entidades e/ou situações objetivas, que

influenciam diretamente a cognição, pois, segundo van Dijk (2009), essas mesmas

entidades e/ou situações são, elas próprias, objetos cognitivos, representações mentais.

6O termo em língua inglesa embodied cognition também foi traduzido para o português como cognição

encarnada. No entanto, optou-se, neste trabalho, pela expressão cognição corporificada pelo fato de esta

ter um uso mais frequente no português brasileiro, como verificado em um site de busca.

7[By using the term embodied we mean to highlight two points: first that cognition depends upon the kinds

of experience that come from having a body with various sensorimotor capacities, and second, that these

individual sensorimotor capacities are themselves embedded in a more encompassing biological,

psychological and cultural context.]

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3 FRAMES SUBJACENTES À RELAÇÃO ENTRE COGNIÇÃO E SOCIEDADE

Considerando a aparente dicotomia entre os conceitos de sociedade e de cognição,

podemos observar que abraçar conceitualmente o entrelaçamento ou até mesmo a

inseparabilidade entre os dois conceitos, o que seria coerente com os pressupostos da LC,

implicaria, também, um frame conflict, pois a própria maneira pela qual falamos sobre

ambos evidencia a quase impossibilidade de se romper conceptualmente (e não

conceitualmente, um processo mais consciente) com essa dicotomia. Ou seja, parece

haver determinados frames que estruturam sociocognitivamente essa relação e que

pressupõem a separação entre os dois conceitos, mesmo que não concordemos,

teoricamente, com ela.

O primeiro frame enquadra a cognição como inserida na sociedade, que pode ser

pensada como um ambiente, um contexto, uma realidade, um meio, uma situação

(expressão licenciada pela metáfora conceptual SITUAÇÃO É LUGAR), uma

experiência envolvendo o outro e, finalmente, o mundo.

Figura 1 – Cognição e Sociedade: frame 1 (contêiner) (S= Sociedade C= Cognição)

A figura 1 é uma representação esquemática desse enquadre, em que a cognição

está inserida em um contêiner, sendo “afetada”, “informada”, “influenciada”, “nutrida”,

“moldada”, “determinada”, “constituída”, “construída” e até “moldada” por elementos

que emergem desse contêiner: “Cognition is always shaped by the social context in which

it takes place” (OAKES et al., 2004).

Nessa representação, o elemento “cognição”, ao contrário de outras representações

que rejeitam, conceitual e epistemologicamente, a influência determinante do contexto

sociocultural, colocando a cognição como uma instância mental autônoma, mantém uma

relação com este contexto que pode ser também compreendida a partir do esquema

imagético de força (TALMY, 2000). Nesta dinâmica de forças, que implica

causalidade/mudança, a cognição seria o agonista e a sociedade o antagonista, que exerce

força (causa mudança/influência) sobre a primeira.

Um outro frame que parece ser evocado nas representações da relação entre

cognição e sociedade é o que emerge do esquema imagético parte-todo (JOHNSON,

1987). Nesse caso, a mente é metonimicamente conceptualizada como o próprio

indivíduo, e este pertenceria a um grupo social maior, como família, associação e a

própria sociedade. Nesse sentido, a cognição não seria social, e nem manteria uma relação

de interdeterminação com o contexto sociocultural:

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Um sistema cognitivo pode ser incorporado em um único indivíduo ou distribuído ao longo

de um grande número de indivíduos. Falamos de cognição individual ou de cognição

distribuída. Cognição social é um processo cognitivo distribuído sobre todos os membros de

uma sociedade, interagindo dentro de uma rede social. A cognição individual também pode

ser considerada como cognição distribuída, mas apenas através da rede neural do próprio

indivíduo.8 (CHAVALARIAS, 2008, p. 54).

Figura 2 – Frame 2 : Cognição Individual X Cognição Social

O frame que conceptualiza o indivíduo (e sua mente, numa relação metonímica)

como um elemento autônomo, que pertence ao conjunto de elementos que compõem a

sociedade, remete à concepção de cognição discutida na seção 1, ou seja, aquela que

aborda este conceito como um processo de aquisição de conhecimento que envolve

habilidades cognitivas como atenção, percepção, memória, raciocínio, processamento,

entre outras. Assim, a mente do indivíduo é, ao mesmo tempo, a fonte desses processos e

o recipiente dos produtos resultantes desses processos: conhecimento, pensamento, ideias

e a própria linguagem, sendo este um conhecimento específico de um sistema (ou de um

conjunto de regras, ou uma “competência”, na perspectiva modular chomskyana), usado

para expressar tais pensamentos e ideias.

Essa noção de indivíduo, inerente ao conceito de “cognição individual”, em

contrapartida à de cognição compartilhada ou distribuída, é hoje contestada no âmbito de

várias áreas das ciências humanas e sociais. Segundo Ehrenberg (2009),

Essas filosofias ou essas sociologias subjacentes as ciências neurais permanecem prisioneiras

da oposicao entre o individuo e a sociedade ou entre um interior subjetivo e um exterior

objetivo. Ora, o conceito de pessoa nao separa o individuo e a sociedade, como tambem nao

separa um interior subjetivo e um exterior objetivo, ele remete indiretamente a um individuo

empirico; ele designa e descreve a possibilidade de ocupar as tres posicoes pessoais da pessoa

verbal: para poder dizer 'eu falo', e necessario ser capaz de se reconhecer, segundo o caso,

como aquele que fala (eu), aquele a quem se fala (tu) e aquele de qual se fala (ele), a nao-

pessoa ou o mundo que forma “o membro faltante da correlacao de pessoa”. O conceito de

pessoa e um conceito puramente relacional (EHERENBER, 2009, p. 124 ).

Mesmo no âmbito das ciências neurais, a que Eherenberg se refere na citação acima,

as dicotomias indivíduo x grupo social, interior x exterior e, portanto, cognição x

sociedade, que é a que nos interessa mais particularmente neste trabalho, estão sendo

8[A cognitive system can be embedded in a single individual or distributed over a large number of

individuals. We speak of individual cognition or distributed cognition. Social cognition is a cognitive

process distributed over all members of a society, interacting within a social network. Individual cognition

as well might be considered as distributed cognition over a neural network]. Para uma discussão mais

aprofundada sobre cognição distribuída, ver Salomon (1997).

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empiricamente desafiadas com a descoberta dos chamados “neurônios-espelhos” que,

segundo Salomão (2007), estão sendo abordados como a base material das experiências

da intersubjetividade e da empatia. Um neurônio espelho é aquele que dispara quando um

animal age e, também, quando o animal apenas observa um outro se engajar nesta mesma

ação (KEYSERS, 2011).

Esta descoberta parece corroborar a hipótese da cognição corporificada, pilar da

Linguística Cognitiva, em sua base experiencialista, pois, de algum modo, comprova que

algo tão individual quanto um neurônio, em um cérebro específico, dispara pela simples

imaginação, através do contato intersubjetivo. Ou seja, até mesmo no âmbito das

neurociências, a mente não está sendo mais abordada em uma perspectiva individual, pois

a inserção e a interação sociais afetam, de algum modo, o próprio funcionamento das

redes neurais. Sendo assim, do ponto de vista da cognição, o indivíduo caracterizado na

figura 2 não seria apenas um elemento pertencente a um conjunto de outros indivíduos

com quem convive mais ou menos de perto; mas sim um elemento que se constitui,

subjetiva e socialmente, pela relação que mantém com os outros indivíduos, com as trocas

simbólicas que com eles estabelece e pelas experiências sensório-motoras, que, sempre

mediadas pelo simbólico (logo, pelo outro), servem de matéria-prima para

conceptualizações (“distribuídas”) de suas experiências.

4 ARTICULAÇÃO ENTRE COGNIÇÃO E SOCIEDADE:

O CASO DA METÁFORA EM USO

Retomando um dos pontos centrais discutidos até o momento, ou seja, a

dicotomização entre cognição e sociedade, reafirmamos que esta não encontra suporte

nos postulados da Linguística Cognitiva, que tem a cognição corporificada como um de

seus principais fundamentos. Isso não impede, no entanto, que essa dicotomização se

“infiltre” em várias proposições encontradas nessa área do conhecimento, uma vez que

os frames que sustentam essa separação estão imbricados em nosso pensamento e

inscritos em nossa linguagem. Frame conflicts não podem ser radicalmente promovidos

apenas por mudanças de paradigmas, por mais teoricamente consistentes que esses

possam ser.

Mesmo assim, as pesquisas desenvolvidas nas diversas ilhas da LC (GEERAERTS,

2006) apontam para a permanente articulação entre a cognição e a sociedade, e tanto um

conceito quanto o outro são abordados sob ângulos diversos, de acordo com o objeto e as

perguntas que norteiam a pesquisa.

O quadro 1 apresenta uma explicitação, bastante esquemática, e, portanto,

inevitavelmente reducionista, mas que se propõe a iluminar essas diferentes perspectivas,

no caso específico do estudo da metáfora – um dos principais objetos de estudo da LC -

para que pesquisas na área possam ser compreendidas e cotejadas a partir de suas

possíveis similaridades e diferenças. O quadro parte da distinção entre sistema e uso,

proposta por Steen (2006).

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Quadro 1 – Níveis de cognição: sistema x uso

Nível Estável (Sistema) Nivel Episódico (Uso)

Metaforas Conceptuais Metáforas Situadas

Frames off-line, MCIs, Esquemas Imagéticos Frames online

Discurso discurso

O primeiro nível, chamado, no quadro 1, nível estável da cognição, refere-se ao que

Lakoff (1987) chama, de maneira abrangente, “sistema conceptual”. Nesse nível de

cognição estariam as representações mentais mais estáveis, como as elencadas por Lakoff

(1987): os MCIs, os protótipos, os esquemas imagéticos, as metáforas conceptuais e os

frames. Neste quadro, proponho a especificação de frame no nível estável como frame

off-line, ou seja, uma representação socialmente compartilhada e essencialmente

inconsciente, como seria o caso das outras representações do mesmo grupo. Ainda nesse

nível, teríamos o Discurso, que seria a inscrição das representações estáveis na linguagem,

enquanto sistema.

Já o nível episódico se refere ao evento discursivo em si, ou seja, à cognição e à

linguagem em uso. As metáforas, nesse nível, por exemplo, ao contrário das conceptuais,

seriam situadas, de natureza mais deliberada e menos convencional, fazendo parte da

tessitura textual e da construção de frames online ou, para usar um termo da Linguística

Textual, da “construção do objeto de discurso” (MONDADA, 2002). Finalmente, há o

discurso (que, no quadro 1, teria o Discurso como contraparte, no nível estável) e seria o

próprio evento discursivo, em pleno acontecimento. Nesse nível, as instâncias do nível

estável seriam evocadas e articuladas àquelas presentes na cognição online. De fato, não

há um nível sem o outro: a separação é meramente teórica e analiticamente operacional.

Há de se evitar, em uma análise que tenha como foco a linguagem metafórica, fazer

afirmações sobre uma metáfora situada como se esta fosse conceptual, ou vice-versa, pelo

fato de ambas estarem inseridas em níveis de cognição distintos, mesmo que

relacionados: um episódico e outro estável, respectivamente. Essa distinção é relevante,

pois implica questões sobre a convencionalidade, a disseminação sociocognitiva e

discursiva e o grau de deliberalidade e/ou consciência no uso da metáfora.

No entanto, as possíveis articulações que entrelaçam a metáfora conceptual e a

metáfora situada podem ser, em um estudo que tenha esse propósito, identificadas e

analisadas. É bastante comum nos deparamos com um “nicho metafórico” (VEREZA,

2013b), um conjunto de enunciados construídos e articulados, a partir de mapeamentos

textuais online, em que metáforas situadas são licenciadas por metáforas conceptuais

subjacentes. Segue um exemplo de nicho metafórico, um fragmento retirado de um texto

publicado em um blog bastante popular9, o Bolsa de Mulher:

9O blog recebe, mensalmente, a visita de 41 milhões de usuários, segundo o Google Analytics.

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TEXTO 1 – NICHO METAFÓRICO

SEM RUMO..... (por Administradores)

[...] Pode parecer estranho, mas se sentir perdido no mundo, completamente sem rumo, sem

saber o que fazer e o que querer é uma experiência pela qual muita gente já passou – ou ainda

passa [...] Em primeiro lugar, para que uma pessoa se ache, antes é preciso que ela tenha

estado perdida. Ninguém passa a vida inteira com os pés firmes no chão, satisfeito com o que

está fazendo e em harmonia com o mundo e com seus sentimentos. É mais que normal as

pessoas passarem por fases em que parecem estar desencontradas, sem chão. Quem estiver

nessa situação deve lembrar que não é o único a passar por isso e que reencontrar o caminho

de volta é somente uma questão de tempo. [...] Só que, pelo visto, não é assim com todo

mundo, não. Tem gente que parece não sair nunca do período de desorientação. Uma coisa é

estar sem rumo, outra é ver os anos passarem, passarem e nada de descobrir o caminho certo.

Fonte: <http://www.bolsademulher.com/estilo/sem-rumo>. Acesso em: 25 maio 2016.

A argumentação tecida no texto, de claro teor de autoajuda, é desenvolvida a partir

de mapeamentos locais, textualmente explorados, com base em uma metáfora situada

(plano episódico) que conceptualiza, localmente, a “instabilidade na vida” (profissional,

emocional, etc.) como “desorientação no espaço”. Essa metáfora, apesar de situada, é

bastante convencional, e está ancorada em metáforas conceptuais (plano estável): A

VIDA É UMA VIAGEM/CAMINHO (o caminho de volta; o caminho certo);

OBJETIVO NA VIDA É RUMO NO CAMINHO (sem rumo; perdido no mundo,

desorientação); ESTABILIDADE EMOCIONAL É ESTABILIDADE FÍSICA (com os

pés firmes no chão; sem chão). A ilustração, que mostra uma pessoa (metonimicamente

representada pela mão) segurando uma bússola, seria, também, uma instanciação,

explorada imageticamente, dessas metáforas, principalmente das duas primeiras.

Outros elementos de natureza mais estável são acionados, como o frame que

estrutura os domínios fontes “viagem” e “caminho”, mais concretos, além de frames (ou

MCIs) de natureza sociocultural, como “objetivos de vida” e “inserção social”. Estes

últimos, ao se articularem com os de nível mais episódico, geram tanto expectativas

quanto as consequentes noções do que seriam felicidade e frustração, com efeitos

psicológicos, como argumentado no próprio texto.

Este nicho metafórico, portanto, parece evidenciar a articulação, no evento

discursivo, entre os dois níveis de cognição aqui propostos, um mais estável, mais

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difundido socioculturalmente e mais inconsciente; e o outro mais episódico, local e fruto

de um ato comunicativo mais deliberado.

No que concerne à relação entre cognição e sociedade, foco deste artigo, esta

também pode ser abordada, no contexto do exemplo analisado, a partir dos dois níveis

propostos. Em primeiro lugar, a cognição local é estabelecida como instrumento para se

tecer a “argumentatividade” (GUIMARÃES, 2013) pretendida, ou seja, explorar

discursiva e retoricamente um dado ponto de vista, por meio de mapeamentos locais,

marcados linguisticamente pela escolha, aparentemente deliberada, de determinados

veículos metafóricos. Em segundo lugar, a relação entre a cognição e a sociedade é

evidenciada pela evocação, não necessariamente consciente, de instâncias do nosso

sistema conceptual, como no caso de frames e de metáforas conceptuais, sejam essas de

base sensório-motora, sejam de base sociocultural. É nesse último aspecto que a cognição

é fundamentalmente ideológica, revelando a sua relação interconstitutiva com a

sociedade. Essa relação é ressaltada por Lakoff, que acredita que

toda e qualquer ideologia é um sistema conceptual de algum tipo, inclusive um sistema moral.

No entanto, ideologias possuem aspectos tanto conscientes quanto inconscientes. Se

perguntássemos para uma pessoa, com uma dada ideologia política, no que ela acredita, ela

vai nos dar uma lista de crenças e, talvez, algumas generalizações. Um linguista cognitivo,

ao ouvir a sua resposta, provavelmente atentará para os frames e metáforas inconscientes por

trás das suas crenças conscientes. Ao meu ver, essa é a parte interessante das ideologias: a

parte inconsciente. É a respeito dela que o linguista cognitivo pode trazer alguma

contribuição.10 (LAKOFF apud OLIVEIRA, 2001, p. 37).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Concluo este trabalho ousando discordar da proposição expressa no último período

da citação acima, apesar de ter usado essa citação por compartilhar a visão de Lakoff no

que diz respeito à relação de interdeterminacão entre sistema conceptual e ideologia. O

enunciado específico, a que me refiro, parece remeter à aparente rejeição, por parte de

setores mais ortodoxos da LC, do enfoque analítico nos aspectos ditos da enunciação (no

uso e não no sistema; no discurso e não no Discurso, seguindo o esquema aqui proposto),

como não sendo de interesse para linguistas cognitivos. Essa rejeição parece ser fruto do

deslocamento do lócus da metáfora da linguagem para o pensamento que a visão

cognitivista promoveu. Para tanto, foi necessário romper com a visão tradicional de

metáfora enquanto figura meramente estilística, poética ou retórica, sem qualquer função

cognitiva. A partir dessa ruptura inicial, provavelmente necessária para a quebra de

paradigma que a Teoria da Metáfora Conceptual introduziu, o estudo das metáforas e

10 [Any ideology is a conceptual system of a particular kind, including a moral system. However, ideologies

have both conscious and unconscious aspects. If you ask someone with a political ideology what she

believes, she will give a list of beliefs and perhaps some generalizations. A cognitive linguist, looking at

what she says, will most likely pick out unconscious frames and metaphors lying behind her conscious

beliefs. To me, that is the interesting part of ideologies: the unconscious part. It is there that cognitive

linguists have a contribution to make].

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outras figuras no funcionamento discursivo ficou em segundo plano. As representações

mentais, como os frames, MCIs e metáforas conceptuais passaram a ser consideradas

como estruturas fundantes da construção de sentido, principalmente no que se refere à

categorização. E é nesse âmbito conceptual que, segundo o que podemos depreender da

citação de Lakoff, a relação da cognição com a sociedade interessaria à Linguística

Cognitiva.

No entanto, creio que os recentes caminhos traçados pela Linguística Cognitiva,

principalmente nos estudos cognitivo-discursivos da metáfora (CAMERON; MASLEN,

2010; MULLER, 2008; CHARTERIZ-BLACK, 2004; SEMINO, 2008; VEREZA;

MOURA; ESPÍNDOLA, 2013, entre outros), que desvelam a complexidade do entrelace

entre o sistema conceptual e a construção online de objetos de discurso no evento

discursivo, apontam para a necessidade de se buscar compreender as possíveis formas de

articulação entre o mais ou menos estável, e o mais ou menos consciente. Ressalto aqui o

uso do modalizador “mais ou menos”, uma vez que não há, de fato, estabilidade ou

instabilidade plena, mas sim um continuum entre os dois níveis. Como já aqui

mencionado, a proposta de uma separação entre eles é feita por razões teórica e

metodologicamente operacionais, e pelo fato de acreditarmos que instrumentos

conceptuais têm o potencial de alavancar novos entendimentos, desde que reconheçamos

suas limitações. E é dentro dessa perspectiva que emerge, neste trabalho, da

problematização da dicotomização entre sociedade e cognição, que creio ser possível

conduzir investigações que visem a compreender alguns aspectos da articulação entre as

duas instâncias, no discurso. Nesse processo, deparamo-nos, inevitavelmente, com a

grande complexidade envolvida nessa articulação, o que nos impulsiona a buscar novas

perguntas e novos instrumentos (ou reformulações destes) para tentar explorá-la.

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VEREZA, Solange Coelho. Cognição e sociedade: um olhar sob a óptica da linguística cognitiva. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 16, n. 3, p. 561-573, set./dez. 2016.

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Recebido em: 04/07/16. Aprovado em: 29/07/16.

Title: Cognition and society: a view from the perspective of Cognitive Linguistics

Author: Solange Coelho Vereza

Abstract: This work proposes a reflection on the relationship between cognition and society,

from the perspective of Cognitive Linguistics (CL). The concept of embodied cognition, one

of the pillars of cognitive linguistics, challenges any possible dichotomy between the two

concepts, since cognitive representations, such as frames, idealized cognitive models (ICMs)

and conceptual metaphors would be anchored in conceptualizations of both sensory-motor

and sociocultural experiences. The search for the understanding of the relationship between

society and cognition, however, must, according to Gibbs (2001), must leave the exclusive

realm of thought and find the world. For this reason, we propose an approach in line with

recent cognitive-discursive trends, which seeks theoretical and methodological tools to

systematize the investigation of such articulation. Among these instruments, the distinction

between system and use, episodic and stable cognition, online and offline frames and situated

and conceptual metaphors has proved to be both theoretically and analytically productive.

Keywords: Sociocognition. Metaphor. Discourse.

Título: Cognición y sociedad: una mirada bajo el punto de vista de la Lingüística Cognitiva

Autor: Solange Coelho Vereza

Resumen: Este trabajo propone una reflexión sobre la relación entre cognición y sociedad,

bajo la perspectiva de la Lingüística Cognitiva (LC). El concepto de cognición encarnada

(embodied cognition), uno de los pilares de la LC, pone en jeque cualquer posibilidad de

dicotomización entre los dos conceptos, una vez que representaciones cognitivas como

frames, modelos cognitivos idealizados (MCI) y metáforas conceptuales serían ancladas em

conceptualizaciones de experiencias, tanto sensorio-motoras, cuanto socioculturales. La

búsqueda de la comprensión de la articulación entre el social y el cognitivo, sin embargo,

debe, de acuerdo con Gibbs (2001), salir del ámbito exclusivo del pensamento y encontrar el

mundo. Por esta razón, propomos un abordaje alineada con el reciente tendencia cognitivo-

discursiva, que busca instrumentos teóricos y metodológicos para sistematizar el estudio de

esa articulación. Entre ellos, la distinción entre sistema y uso, cognición episódica y estable,

frames em línea y fuera de línea, y metáforas situadas y conceptuales tiene se muestrado

teórica y analíticamente productiva.

Palabras-clave: Sociocognición. Metáfora. Discurso.

Este texto está licenciado com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.

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MORATO, Edwiges Maria. Das relações entre linguagem, cognição e interação – algumas implicações para o campo da saúde. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 16, n. 3, p. 575-590, set./dez. 2016.

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DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1982-4017-160304-0516D

DAS RELAÇÕES ENTRE LINGUAGEM,

COGNIÇÃO E INTERAÇÃO – ALGUMAS IMPLICAÇÕES

PARA O CAMPO DA SAÚDE

Edwiges Maria Morato*

Universidade Estadual de Campinas

Instituto de Estudos da Linguagem

Departamento de Linguística

Campinas, SP, Brasil

Resumo: Neste ensaio dedicamo-nos a uma discussão sobre uma questão de grande

interesse contemporâneo: as relações entre linguagem, interação e cognição e suas

contribuições ao campo da Saúde. A primeira das questões com as quais nos deparamos

frente a esse tema diz respeito à vocação interdisciplinar do estudo voltado a essas relações.

A segunda trata brevemente da relação entre ciência básica e aplicada e entre modelos

biomédico e biossocial, em geral vista a partir de uma perspectiva dicotômica em função do

frame naturalista, que caracteriza o campo das Neurociências e, também, o da

Neurolinguística. Para exemplificar nossas ponderações, levamos em conta o contexto das

afasias e o da Doença de Alzheimer. Por fim, tecemos considerações sobre os desafios que

se colocam para a relação entre esses três elementos – Cognição, Neurociências, Saúde.

Palavras-chave: Cognição. Interação. Afasia. Doença de Alzheimer.

1 INTRODUÇÃO

Este ensaio está dedicado à discussão de uma questão de grande interesse

contemporâneo: as relações entre linguagem, interação e cognição e suas contribuições

ao campo da Saúde. Teriam as Neurociências e as Humanidades objetos comuns, desafios

comuns? Esta é a primeira das questões com as quais nos deparamos. A segunda refere-

se à arbitragem interdisciplinar própria a esses dois campos do Conhecimento. A terceira

trata da relação entre ciência básica e aplicada, e entre modelos biomédico e biossocial,

duas dentre tantas dicotomias a serem superadas por quem se interessa pelas relações

entre linguagem, cérebro e cognição.

Para exemplificar nossas reflexões, levamos em conta neste ensaio alguns termos

da relação entre linguagem e cognição no contexto das afasias e da Doença de Alzheimer,

de modo a assinalar as implicações – e as vantagens - de um modelo não meramente

biomédico de doença para o campo da Saúde. O ambiente selecionado não poderia ser

mais emblemático: o das afasias e o da Doença de Alzheimer, que invocam alguns dos

piores males de nossa sociedade: a carência metalinguística e a perda da memória.

Cumpre observar que concepções fortemente normativas de cérebro, cognição e

* Doutora em Linguística (UNICAMP). Professora Associada (Livre docente). E-mail:

[email protected].

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linguagem, altamente judiciosas frente às relações entre o normal e o patológico,

concentram-se no escopo dessas duas entidades nosológicas, afasia e Doença de

Alzheimer, com implicações teóricas, diagnósticas e terapêuticas importantes, capazes de

influenciar políticas públicas de Saúde, formas de “inclusão social” e processos de

(des)legitimação de capacidades comunicativas e cognitivas humanas.

Servimo-nos, para o desenvolvimento da presente reflexão, de nossa experiência

interacional com pessoas afásicas no Centro de Convivência de Afásicas (doravante,

CCA), que funciona nas dependências da Universidade Estadual de Campinas1 e é fruto

da cooperação entre os departamentos de Linguística e de Neurologia dessa instituição de

ensino e pesquisa. Por fim, pretendemos tecer algumas considerações sobre os desafios

que se colocam para a relação entre esses três elementos – Cognição, Neurociências,

Saúde.

2 AS VÁRIAS DISCIPLINAS ASSOCIADAS ÀS NEUROCIÊNCIAS:

OBJETOS COMUNS, DESAFIOS COMUNS?

Se o interesse humano pela realidade simbólica da mente e pela arquitetura do

cérebro é antigo2, remontando às primeiras descobertas da função cerebral, o termo

neurociência, por sua vez, é bastante jovem, datando dos anos 1970 a primeira associação

de Neurociência de que se tem notícia (BEAR, CONNORS, PARADISO, 2002). Por seu

turno, o termo híbrido neurolinguística, em suas várias acepções (AHLSÉN, 2006;

MORATO, 2012a), diz respeito a um campo do Conhecimento que concentra seus

interesses teóricos e metodológicos nas relações entre linguagem, cérebro e cognição.

De um ponto de vista institucional, quando nascem as Neurociências, nascem

também, mais ou menos à mesma época, a Psicolinguística, a Neurolinguística, a

Linguística Cognitiva, as Ciências Cognitivas, etc. Não se trata, naturalmente, de uma

coincidência que não pode ser explicada de um ponto de vista historiográfico. Ambas –

Neurociências e Neurolinguística – são derivadas da antiga Afasiologia do século XIX e

de outros domínios da Ciência voltados para o estudo das relações existentes entre cérebro

e mente, marcados pela tradição naturalista, pelo positivismo filosófico e pelo

estruturalismo linguístico.

A perspectiva biomédica tradicional na qual se forjam as Neurociências, cumpre

notar, privilegia inicialmente uma relação unidirecional desse campo com a ciência básica

e com as áreas aplicadas (designação com a qual frequentemente se deparam as “áreas

da Saúde”, como a Medicina, a Psicologia, a Fisioterapia, a Fonoaudiologia, etc.)3. Não

1 Disponível em: <http://cogites.iel.unicamp.br/p/atividades-no-cca.html>. 2 “Acerca das doenças sagradas” (HIPÓCRATES, V a.C.): “o homem deve saber que de nenhum outro

lugar, mas do encéfalo, vem a alegria, o prazer, o riso, e a diversão, o pesar e o ressentimento, o desânimo

e a lamentação... por esse mesmo órgão tornamo-nos loucos e delirantes, e medos e terrores nos

assombram... Nesse sentido sou da opinião de que o encéfalo exerce o maior poder sobre o homem”. 3 Tomemos, à guisa de exemplificação, manifestações variadas de uma mesma tendência essencialmente

biomédica, subordinada ao frame epistêmico naturalista em variados sítios na Internet de entidades ou

associações científicas, os de programas de pós-graduação em Neurociências (que não são muitos no País,

ao que parece), via de regra alocados em institutos ou centros da área de Saúde ou de Ciências Biológicas,

e mesmo os concernente a páginas pessoais ou blogs de pesquisadores do campo, muitas vezes dedicados

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MORATO, Edwiges Maria. Das relações entre linguagem, cognição e interação – algumas implicações para o campo da saúde. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 16, n. 3, p. 575-590, set./dez. 2016.

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são poucas as definições de Neurociências que a confinam, seguindo o modelo fundador

naturalista (do tipo organicista) de algum modo ainda dominante no campo, à estrutura

interna do sistema nervoso central, como se este – ou partes dele, como o cérebro – fosse

um mero substrato biológico de nossos processos cognitivos.

Vale notar que, se admitimos que as Neurociências têm a ver com o estudo do

sistema nervoso e sua estrutura, não podemos deixar de considerar que tal investigação

refere-se também a seus modos de funcionamento, à existência de fatores internos e

externos interatuantes na atividade córtico-cognitiva (corpóreos, socioculturais, afetivos,

etc.), às condições imprescindíveis para a existência da plasticidade cerebral, largamente

dependentes de variadas experiências e práticas humanas, como as aprendizagens formais

e informais.

Desse arrazoado decorrem duas questões: (i) de fato, muitos podem ser os objetos

das Neurociências: sociabilidade humana, memória, aprendizado, coordenação da ação,

organização neuropsicológica da atividade cerebral, visão, desenvolvimento linguístico-

cognitivo, perspectivação conceitual, evolução filogenética, teorias de conhecimento,

células-tronco, etc.; (ii) várias são as áreas das Neurociências exploradas por

pesquisadores no Brasil e no Mundo, e muitos são, como salientam autores que se

dedicam à historiografia do campo, os que podem ser chamados de neurocientistas, isto

é, aqueles que produzem pesquisa em Neurociências, como biólogos, médicos,

psicólogos, filósofos, físicos e linguistas.

Visto dessa forma, esse campo interdisciplinar envolve muitas interfaces no plano

teórico e inumeráveis aplicações no campo da Saúde, como é possível observar nas

distintas realidades das Neurociências brasileiras, das mais acadêmicas às mais

pitorescas4.

De todo modo, podemos considerar que o escopo atual das Neurociências é bem

maior do que o observado há algumas décadas. Isso não quer dizer, entretanto, que se

encontra superado o frame epistêmico naturalista que abriga, inclusive, um naturalismo

às avessas, isto é, a ideia de um “cérebro social5” que não rompe com o reducionismo

organicista dos séculos passados. Porém, isso pode implicar uma participação ou um

à divulgação científica e àqueles cuja formação acadêmica não integra as áreas biológicas. Vale mencionar,

ainda, aqueles sítios alocados um tanto à margem da Academia e dos centros de pesquisa que, apesar de

evocarem o campo das Neurociências, compreendem-na como uma espécie de psicologia de autoajuda, isto

é, sem profundidade ou alcance científico, dos quais são exemplares os tantos perfis de Facebook voltados

para (dicas de) Saúde, Educação, Yoga, Economia, Sonhos, Ecologia, Empreendedorismo, etc. 4 Não sendo possível e nem o caso de fazermos aqui um levantamento minucioso da situação das

Neurociências no Brasil (há, lembramos, portais acadêmicos na Internet relativos à produção científica no

campo, informações sobre formação e associações existentes, levantamentos a respeito do impacto

científico e suas aplicações na área da Saúde, periódicos de difusão cultural e científica, etc.), não deixa de

ser interessante destacarmos um exemplar dessa relação entre o campo e potenciais aplicações na área da

Saúde, entre as quais as mais óbvias se encontram nos hospitais e centros universitários, ou na relação

destes com políticas públicas. Podemos observar, a partir desse cenário, que não apenas o escopo teórico e

disciplinar das Neurociências está mais alargado, como também sua metodologia. 5 Para uma parcela das Neurociências, a cognição humana - e a cognição social – torna-se hoje uma questão

biológica decisiva, uma espécie de “naturalismo às avessas”, um “naturalismo como ideia social”

(EHRENBERG, 2007, 2008). A tese de um "cérebro social", para usar a expressão de Ehrenberg, traz para

o campo das ciências biológicas o tratamento decisivo de questões classicamente abordadas pelas ciências

sociais (como a empatia, a intersubjetividade, a cultura, a interação). Assim, o corpo, reduzido ao substrato

biológico, corre o risco de se tornar a base material da cognição, da pragmática, da metaforicidade

(MORATO, 2014a).

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envolvimento maior das ciências humanas e, muito particularmente, da Linguística no

terreno da “problemática cognitiva”.

Nesse panorama, é difícil afirmar que as Neurociências tenham, assim como as

Ciências Cognitivas, um programa específico; parece não haver ainda, à hora atual,

teorias abrangentes que possam prover a Neurociência de um único método científico

capaz de alcançar múltiplas aplicações na área da Saúde – ou de qualquer outra. Tal

limitação se dá, entre outras coisas, pela nossa relativamente embaraçosa ignorância a

respeito da atividade cerebral e da cognição, esse objeto que exige que pensemos sempre

da maneira complexa, e a partir de arbitragens necessariamente interdisciplinares

(MORATO, 2014a).

3 DISCUSSÃO: OS CLUSTERS DE INFLUÊNCIAS

NOS ESTUDOS SOBRE LINGUAGEM, CÉREBRO E COGNIÇÃO

O enfraquecimento do frame biomédico como fonte explicativa decisiva das

patologias e da problemática cognitiva, bem como da concepção de cérebro como mero

substrato físico da cognição, estão entre as razões da eleição de um vetor interdisciplinar

que foi se fortalecendo em torno de uma relação estreita e recíproca entre interação,

cérebro e cognição – fulcral para o campo da Neurolinguística, seja qual for a ênfase

epistemológica dada a qualquer um desses elementos na definição da área, que tem

resultado de verdadeiros clusters de influência, como afirma Ahlsén (2006, p. 3), que a

define como o estudo da relação entre diferentes aspectos da função cerebral associada à

linguagem e à comunicação.

Com efeito, se à hora atual podemos entender a cognição como um conjunto de

processos altamente motivados com os quais atuamos num mundo multissemioticamente

constituído, resultantes de nossas múltiplas experiências psicossociais – portanto,

contingenciados de forma intersubjetiva e perspectivada (TOMASELLO, 1999), não

sabemos tudo sobre como esses processos são na prática modulados e, inversamente,

como modulam a atividade cerebral ou as experiências simbólicas humanas, dentre elas

linguagem, memória, conceptualização.

No ponto em que estamos, uma das questões que se colocam é: seria possível pensar

a cognição sem que os estudos em Linguística e em Neurociências sejam parte da

resposta? A nosso ver, a resposta para essa pergunta seria não.

Além disso, não apenas a vitalidade dos estudos produzidos no campo das

“linguísticas cognitivas” e das Neurociências atesta a pertinência científica da relação

entre esses dois campos (não infensos, contudo, às lutas e disputas duras próprias do

campo científico, tal como o concebe Bourdieu, 2003), mas também os impactos que essa

interface pode significar, entre os quais destacamos uma compreensão aprofundada da

importância do uso social da linguagem e da experiência na configuração e na gestão de

fenômenos humanos, como a cognição6.

6 Concebida, nos termos de Tomasello (1999/2003), como a “capacidade de cada organismo compreender

os coespecíficos como seres iguais a ele, com vidas mentais e intencionais iguais às dele” (TOMASELLO,

2003, p. 7).

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Mais recentemente, o interesse sistemático da Linguística pela atividade cerebral e

pela cognição a tem aproximado das Neurociências, via interesse pelos processos

cognitivos subjacentes à linguagem, pela natureza da conceptualização, pela relação entre

o biológico e o cultural, pela corporificação da cognição7 e da linguagem, pela

continuidade entre o normal e o pathos/patológico, pelo papel dos processos figurativos,

pelos processos de aprendizagem formal e informal e pelas experiências e rotinas

significativas da vida em sociedade envolvidos na plasticidade cerebral e cognitiva.

Essa interface8 se torna mais possível e auspiciosa quando as Neurociências

também se interessam em saber o que a cognição requer, e não apenas o que ela contém.

Esta aproximação entre estudos linguísticos e neurocognitivos é não apenas teórica, como

também metodológica, tendo em vista os verdadeiros clusters de influências recíprocas a

associá-los atualmente (MORATO, 2014a): basta ver, entre outras coisas, o uso, pela

Linguística, dos recursos neurobiológicos temporais e funcionais (não apenas estruturais)

do tipo neuroimagem e eletrofisiologia (como os potenciais evocados ligados a eventos –

ERPs, na sigla em inglês – ou os eletroencefalogramas, por exemplo), remissão aos

protocolos de estudos experimentais e observacionais mais qualificados em termos

linguísticos por áreas de estudo abrigadas nas Neurociências (como a Neuropsicologia e

as áreas envolvidas com a diagnose clínica e a conduta terapêutica de patologias

linguístico-cognitivas), simulações computacionais, observação naturalística, etc.

7 Trazemos à lembrança, a propósito desta questão que envolve a clássica dicotomia mente-corpo pela via

da noção de corporificação, uma esclarecedora resposta de Margarida Salomão em entrevista concedida a

Karina Falcone e Jan Edson Leite (SALOMÃO, 2010b, p. 201) a respeito do que está envolvido na

constituição corpórea da cognição: “O conceito de embodiment/corporificação desfruta de estatuto crítico

nos estudos cognitivistas da linguagem. Muitas descobertas, acumuladas desde a década de setenta do

século passado, contribuíram, para isso: a relação estruturante entre a neurofisiologia do aparato visual,

a cognição das cores e sua lexicalização nas línguas do mundo (Kay e McDaniels 1978; Kay e Regier

2003); a função dos esquemas sensório-motores como domínios-fonte das metáforas conceptuais,

especialmente das metáforas primárias (Lakoff e Johnson 1980;1999; Grady 1997); o papel dos esquemas

imagéticos e cinestésicos na estruturação tanto do léxico como da gramática (Talmy, 2000); a evocação

imaginada de esquemas físicos na interpretação de chistes ou de expressões idiomáticas (Gibbs 1994).

Estes elementos, entre tantos outros, favorecem uma hipótese não modularista sobre a relação entre

cognição linguística e outras modalidades da experiência cognitiva [...] Não se pode dizer, à luz da

produção intelectual considerada, que a categoria da cognição corporificada acarrete um viés

biologizante, se esta designação referir qualquer tipo de abordagem reducionista da cognição. Pelo

contrário, a cognição, nesta perspectiva, é concebida como processo emergente das interações entre corpo,

cérebro e ambiente sócio-físico. A mente é abordada como sistema dinâmico materializado no mundo antes

que como uma rede neural, “na cabeça” (...) a relação mente-mundo não é de “espelhamento”, mas de

interferência recíproca: a experiência não é, pois, mero epifenômeno da vida mental, mas dimensão

fundadora da mente e de sua fenomenologia.

8 A remissão ao termo de origem latina interface (retrato, forma, maneira, aspecto) indica algum dispositivo

conceitual que coloca em relação elementos ou sistemas qualitativamente diferentes e algo independentes

que podem estar alocados em um grupo. Também significando enfrentar, voltar-se para, o termo interface

remete a um “ar de família” entre elementos que podem estar alocados em um grupo. Há aqui, pois, uma

ideia de conexão, contato, comunicação, concernência.

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4 A COGNIÇÃO NO CORAÇÃO DAS PRÁTICAS DISCURSIVAS E SOCIOCOGNITIVAS

Uma das preocupações da Neurolinguística ao compartilhar objetos teóricos e

metodologias com as Neurociências é o tipo de contribuição que pode dar ao campo da

Saúde, dentre eles a participação na elaboração de critérios avaliativos e diagnósticos,

bem como de programas de caráter educacional voltados ao interesse público.

Nesse terreno interdisciplinar, a parcimônia é sempre não apenas desejável, como

recomendável, uma vez que os estudos linguísticos, sobretudo os que se pautam pela

análise da linguagem e da cognição em uso, podem de fato questionar correlações

anátomo-clínicas diretas. Podem, por exemplo, apontar discrepâncias importantes entre o

comportamento neuropatológico exibido em diagnósticos clínicos e o comportamento

cotidiano de indivíduos cérebro-lesados. Podem, ainda, apontar limites da investigação

diagnóstica cujas atividades linguísticas e cognitivas sejam descontextualizadas e

carentes, aos olhos da população-alvo, de atividades construtoras de sentido pragmático.

Superados os limites próprios à trajetória de um e de outro campo científico, torna-

se possível admitir como auspiciosas as possibilidades de interface entre diferentes áreas

da Linguística e as Neurociências. Nesse contexto, o “neurocentrismo” que marca o

surgimento de um e de outro campo (MORATO, 2014a) dá lugar a perspectivas que

procuram integrar aspectos corpóreos e simbólicos na explicação da atividade cognitiva

humana.

Se o frame epistêmico naturalista que orienta uma perspectiva mais estritamente

biomédica da saúde e da doença submete inicialmente a Linguística a um papel apenas

instrumental em relação às Neurociências, o funcionalismo, o experencialismo ou o

sociocognitivismo as têm colocado em uma relação mais equilibrada ou integrada em

termos explicativos: afinal, a cognição estaria, para lembrar Levinson em texto de 2006,

“no coração das práticas discursivas”.

Entre os temas que integram a agenda de uma e de outra área estão a relação estreita

entre mente/corpo, a dimensão pragmática da cognição humana, a natureza

sociocognitiva (não meramente neurobiológica) da plasticidade cerebral, a concepção de

cérebro como sistema funcional dinâmico, corporificado e simbólico, não redutível ao

substrato físico ou orgânico (como já preconizado pelo neuropsicólogo russo Alexander

R. Luria nas primeiras décadas do século XX).

Instanciada no uso, no contexto das práticas e rotinas simbólicas da vida em

sociedade, nas práticas interacionais as mais diversas, a pergunta sobre cognição passa a

ser também e sobretudo sobre os processos que ela envolve. Afinal, o que a cognição

requer ou envolve?

Ela envolve, entre outros elementos associados à compreensão e à conceptualização

– do mundo, do outro da fala do outro – um papel crucial na negociação, na construção e

no reconhecimento de um conhecimento e de um foco comum, na compartilha de

intenções (“sintonia referencial”, de acordo com Marcuschi, 1998), na diversidade de

expectativas e das marcas de atenção conjunta, além de um imprescindível interesse

subjetivo pela interação. Assim, é possível, a partir dessa concepção de cognição, lançar-

se ao desafio de descrever e analisar como os indivíduos constroem, planejam e executam

seus gestos simbólicos no decurso da interação e no contexto nos quais estão envolvidos.

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O caráter sociocognitivo de nossa vida mental se constitui, entre outras

características e fatores citados acima, pela recursividade comunicativa, pela

intencionalidade compartilhada, pela perspectivação conceitual, de acordo com

Tomasello (2008, 2009, 2014).

Investidas de propriedades intersubjetivas e inferenciais, as práticas discursivas –

que ancoram a relação entre interação e conceptualização – tornam-se uma das chaves

para entendermos o modus operandi da cognição humana.

Para essa abordagem da cognição, chamada largamente de sociocognitiva (KOCH;

CUNHA-LIMA, 2004; MORATO, 2015), uso e interação não podem ser separados do

funcionamento cerebral e cognitivo – são e estão, afinal, enfeixados na construção do

conhecimento e na representação da experiência.

Considerando que muitas ainda são as questões que merecem ser detalhadas quanto

às relações entre linguagem e cognição, mencionamos as que nos parecem também

desafiadoras a outras disciplinas científicas (SALOMÃO, 2010b; MORATO, 2014a):

i) a natureza da categorização e de nossas estruturas conceituais, bem como do papel da

experiência na construção conceitual; ii) a compreensão das interações existentes entre o

sistema linguístico e outros sistemas cognitivos, bem como entre estruturas neurobiológicas

e processos que subjazem à linguagem; iii) a constituição da “cognição social”; iv) a

sustentação empírica de uma concepção sociobiológica e dinâmica da atividade cerebral, cuja

plasticidade está baseada não apenas em mecanismos anátomo-fisiológicos ou

sensoriomotores, mas em processos de natureza sociocognitiva; v) o desenvolvimento de

estudos mais sistemáticos e constituição de corpora envolvendo linguagem e cognição em

uso, em contexto, em interação; vi) o aprofundamento da preocupação com a visibilidade dos

dados, algo importante para as teorias que imbricam atos linguísticos, cognitivos e sociais.

(MORATO, 2014a, p. 310)

5 COGNIÇÃO EM INTERAÇÃO: QUESTÕES PARA

AS NEUROCIÊNCIAS, PARA A LINGUÍSTICA E PARA A SAÚDE

Na esteira das reflexões aqui expostas, pretendemos dedicar-nos a partir desta seção

às temáticas e ações que envolvem a Neurolinguística e as Neurociências com a área da

Saúde (termo que alude, de acordo com a definição da Organização Mundial da Saúde9,

“a um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de

doenças”), notadamente aquela voltada para questões que envolvem a sociabilidade

humana e suas vicissitudes, bem como as práticas sociais de diagnóstico e de

enfrentamento de patologias linguístico-cognitivas. Dentro desse espírito integrado a

modelos biopsicossociais10 de patologias linguístico-cognitivas, como as afasias e a

9 Disponível em: <http://www.who.int/eportuguese/countries/bra/pt/>.

10 Como salienta Morato (2014a), surgindo como antagonista ou ao menos como complementar ao modelo

biomédico, o modelo social, amparado em metodologias observacionais, qualitativas e heurísticas (por

vezes, chamadas de “estudos de caso”), tem se preocupado com as implicações ético-discursivas da

recepção social dos diagnósticos e tem rejeitado procedimentos supostamente objetivos do método clínico

tradicional, como as baterias de teste-padrão, em geral tomadas como fonte exclusiva de explicação sobre

estados neurolinguísticos patológicos ou sadios. O modelo biopsicossocial procura integrar aspectos

variados da constituição da saúde e da doença, como fatores neurobiológicos, socioculturais e psicológicos,

bem como enfatizar as vantagens da análise da “cognição-em-interação” para o entendimento de processos

(normais ou patológicos) do funcionamento cerebral.

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Doença de Alzheimer, o estudo da cognição em uso ou em interação implica tanto

domínios teóricos, quanto aplicados:

Aumenta nos últimos tempos no campo dos estudos da linguagem e da cognição a percepção

de que a dicotomia entre pureza e aplicação, teoria e prática ou entre pesquisa básica e

pesquisa aplicada é de fato uma falácia; além disso, a agenda dos estudos linguísticos,

inclinando-se mais e mais para unidades de análise como uso, contexto, prática ou interação

tem exigido dos pesquisadores do campo um pensamento mais complexo em relação às

arbitragens necessariamente interdisciplinares em torno do seu objeto, a linguagem. A

distinção entre aplicação e teoria se desfaz, pois, feito um castelo no ar. (MORATO, 2014b,

p. 293)

Um dos campos mais interessantes da Neurolinguística é precisamente o estudo do

papel da interação e da linguagem na configuração da cognição humana, fator

inquestionável para qualquer noção de “estado de bem-estar humano”. Muitos

pesquisadores chegam mesmo a admitir que sem interação e sem linguagem o cérebro

humano, assim como a mente humana, não se desenvolve, ou se desenvolve com muitos

percalços e dificuldades.

Interação é, pois, uma aventura humana muito complexa, apesar de ser a mais

“natural” das nossas capacidades.

O termo interação requer que pensemos em seus traços definidores mais

expressivos, na presença do prefixo latino inter, que veicula a ideia de influência

recíproca, e ação, algo construído socialmente (no sentido que dá Vygotsky à construção

social das ações humanas em sua obra de 1930/1978) e compartilhado de forma

intersubjetiva, perspectivada e cooperativa (no sentido que dá à cooperação Tomasello

em obras de 1999/2003, 2009, 2014) e dramática (no sentido que Goffman dá ao termo

em obra de 2007). E é verdade que isso vale tanto para trocas conversacionais, consultas

médicas, jogos amorosos ou lutas de boxe, por exemplo (MORATO, 2004).

Dessa forma, vemos bem que é no coração das instituições e práticas sociais que

esses três aspectos singulares da expressão humana – a linguagem, a cognição e a

interação – se constituem, e se constituem mutuamente. Nele, nesse coração, interagir ou

estar em interação é uma operação sociocognitiva altamente sofisticada, ritualizada,

estruturada. Por isso é que o estudo das muitas formas da interação tornou-se tão

importante para o estudo da linguagem e da cognição humana, superando seu ingresso

relativamente tardio no conjunto de interesses da Linguística Moderna (KERBRAT-

ORECCHIONI, 1998). Uma das faces mais relevantes dos estudos dedicados aos

aspectos cognitivos da interação está precisamente na compreensão de sua importância

para a construção do sentido do que pensamos, falamos e fazemos (ou seja, não apenas

do “conteúdo” da interação, mas também de sua dinâmica e gestão).

Com efeito, não são poucos os estudiosos, linguistas ou não, que dão à interação e

à linguagem um papel fundamental no desenvolvimento e reorganização de nossa vida

mental, com implicações diretas na comunicação humana, em nossa sociabilidade, em

nossa capacidade cognitiva de objetivar, compreender, interpretar, representar e construir

a realidade, em nossa atuação num mundo socioculturalmente organizado. A metáfora de

Levinson (2006) para falar da interação, “coração da cognição”, é compatível com a

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vitalidade e a imprescindibilidade do estudo da linguagem e da cognição em uso, em

contexto, em interação.

Tendo isso em consideração, dificilmente as objeções contra a inclusão da noção

de interação no sistema nocional da Linguística com base numa suposta disjunção entre

dado observável e representação teórica se manteriam hoje em dia. Não mais tomada

como parte imanente dos dados e eliminada da teoria ou infundida em outros conceitos

(como o de comunicação, por exemplo), a interação – em todos os seus aspectos – requer

teorização e empreendimento analítico.

O que, afinal, interagir requer? Interagir, de acordo com perspectivas

interacionistas, funcionalistas e sociocognitivas (VYGOTSKY, 1934/1987;

TOMASELLO, 1999/2003, 2009, 2014), envolve atenção conjunta, perspectivação

conceitual, intersubjetividade, ação coordenada, reconhecimento e compartilha de

intenção, controle da atividade motora, ativação simultânea e estratégica de sistemas

cognitivos linguísticos e não linguísticos variados, representação mental dos elementos

do contexto situacional e social, mais amplo, inferências de várias ordens, percepção de

regras pragmáticas que presidem utilização da linguagem e o comportamento, auto-

monitoramento. Isso não é pouca coisa. Interação é capital para entendermos a natureza

da cognição humana.

Outro aspecto importante da interação é que ela é fortemente

regrada/ritualizada/estruturada. Dessa forma, ela tem a ver com diferentes e interatuantes

regimes simbólicos e experiências sociais, portanto, em estado de cooperação

(TOMASELLO, 2008, 2009). Não se trata, pois, de um conceito pré-teórico.

Uma das maneiras desenvolvidas pela Neurolinguística e para várias áreas

abrigadas sob a designação Neurociências para investigar as relações entre linguagem,

interação e cognição tem sido o estudo do contexto aquisicional e o das patologias, como

as afasias e a Doença de Alzheimer.

No terreno dos estudos neurolinguísticos, o que sabemos de fato sobre conteúdos e

esquemas de ação de processos interacionais de pessoas com patologias linguístico-

cognitivas, por exemplo, não é muito, embora a interação pareça capital para a

compreensão de estados linguístico-cognitivos patológicos, como as afasias11 e a Doença

de Alzheimer12.

11 Em linhas gerais, são definidas como alterações de linguagem oral e ou escrita decorrentes de lesão mais

ou menos circunscrita no Sistema Nervoso Central em função de acidentes vasculares cerebrais,

traumatismos cranioencefálicos ou tumores. As afasias, que têm sido descritas no terreno da

Neurolinguística como perda ou alteração da metalinguagem (em geral, em seu sentido mais estrito, isto é,

operações metalinguísticas concernentes ao sistema linguístico e seus diferentes níveis de constituição) -

portanto, capacidade de selecionar palavras, predicar, categorizar, argumentar, manipular enunciativamente

processos textuais na fala e na escrita, podem ser acompanhadas por outros sinais e sintomas neurológicos,

como as hemiplegias, as apraxias e as agnosias. 12 Em linhas gerais, a Doença de Alzheimer se traduz por alterações cognitivas e comportamentais que

constituem uma síndrome demencial associada à presença de lesões histológicas características. No campo

dos estudos neurocognitivos, entende-se em linhas bem gerais que a Doença Alzheimer evolui em três

fases: a forma leve, na qual os problemas mnésicos são constantes, assim como certa desorientação das

funções executivas cotidianas (como as profissionais e as domésticas) e dificuldades sutis de processamento

semântico e de manipulação das regras pragmáticas que presidem a utilização da linguagem; a forma

moderada, na qual os problemas mnésicos passam a ser incapacitantes, seguidos de crescente desorientação

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Ainda que fenômenos afásicos nem sempre possam significar apenas desvio e

excrescência em relação à produção linguística tida como normal, encontramos na fala (e

na escrita) afásica um conjunto de processos – tais como anomia, pausas longas,

hesitação, inadequações gramaticais, repetição, titubeio, lapsos fonéticos, circunlóquio,

automatismo, alterações fonoarticulatórias e parafasias de diversas naturezas – que

afetam a fluência, a comunicação, a produção e a interpretação da significação linguística

(e não só linguística, vale notar), a interação. A afasia – seja qual for seu grau de

severidade ou quais forem suas características neurolinguísticas – implica ou impõe

sempre outras formas de relação do indivíduo com sua linguagem, com o outro, com o

mundo social. Desse modo, ela deixa de ser simplesmente uma questão linguística, uma

questão cognitiva. Ela se torna uma questão social (MORATO, 2010), como têm

apontado estudos que se pautam por perspectivas não estruturalistas e que acolhem

pressupostos e métodos próprios de abordagens interacionistas seja no contexto

patológico, seja no não patológico (MORATO, 2014a).

O mesmo poderia ser dito a respeito da Doença de Alzheimer. Como é possível

observar nos mais variados contextos interacionais, a afecção cerebral difusa e

progressiva não compromete apenas e isoladamente as funções cognitivas; seu impacto

se observa também no declínio da vida psicossocial do doente, em função do declínio

sociocognitivo que se observa na evolução dessa patologia, de modo a afetar todo o

entorno social dos que com ela convivem. O declínio nela observado, pois, não pode ser

reputado apenas ao que acontece na intimidade do cérebro do indivíduo com diagnóstico

de Doença de Alzheimer; tem a ver também com os impactos da doença no entorno

interpessoal, nas formas de recepção social da doença (algo que inclui as práticas

diagnósticas e a interação do doente com seus próximos), bem como de seu enfrentamento

no plano psicossocial, médico-terapêutico e familiar. Como bem nota o sociólogo Roy

Porter (1994), “a doença põe a linguagem sob tensão” - e também a cognição e a interação,

poderíamos complementar a essa afirmação.

Qual a importância do estudo da linguagem, da cognição e da interação no contexto

das afasias e da Doença de Alzheimer? Podemos dizer que são várias as razões que

explicam essa importância; apontemos algumas delas, possivelmente as mais evidentes e

socialmente relevantes:

(i) ambas colocam desafios de várias ordens para o pesquisador, seja ele linguista,

neurocientista, antropólogo, psicólogo, etc. Afinal, referem-se a patologias crônicas, para

as quais não há ainda propriamente cura e se caracterizam por uma evolução multifatorial,

para a qual concorrem aspectos neurobiológicos, socioculturais, linguísticos, cognitivos,

psicológicos, etc.;

(ii) são patologias altamente estigmatizantes: cada uma, à sua maneira, diz respeito

a grande impactos psicossociais, a perda da linguagem e a perda da memória/ da razão/da

consciência. Levando em conta o que isso tem significado em nossa tradição científico-

filosófica, logocêntrica e racionalista. Nada pior para uma visão utópica (porque

temporal-espacial e de problemas de linguagem mais frequentes e prontamente perceptíveis; a forma severa,

na qual a memória encontra-se gravemente alterada e a linguagem apresenta-se sensivelmente

comprometida em todos os seus níveis de constituição.

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idealizada) de língua e de mente que se deparar com seu “espelho roto e deformado”, para

lembrarmos uma expressão do escritor argentino Jorge Luís Borges;

(iii) o contexto patológico permite, tanto por suas peculiaridades, quanto pelas

analogias e comparações com processos linguístico-cognitivos não patológicos,

teorizações mais abrangentes da linguagem e de processos afeitos a ela (JAKOBSON,

1954/1981);

(iv) apesar dos avanços biotecnológicos, nem tudo sabemos sobre a estrutura e o

funcionamento cerebral, e apesar da sofisticação teórica e metodológica dos estudos sobre

linguagem e cognição, nem tudo sabemos sobre aspectos ligados ao uso;

(v) o estudo da linguagem e da cognição em interação pode questionar fortemente

a dicotomia entre linguagem (alterada na afasia, com vários graus de severidade) e

cognição (alterada de forma heterogênea na Doença de Alzheimer). A tese estruturalista

de que as afasias e a Doença de Alzheimer afetam respectivamente o linguístico e o

cognitivo tomados como dimensões dicotômicas (LEBRUN, 1983; DÉFONTAINES,

2001) tem, na realidade, dificultado a compreensão do que se encontra preservado ou

alterado, e do que se reorganiza após o comprometimento cerebral;

(vi) o estudo da linguagem e da cognição em interação ajuda-nos a superar mitos

antigos, como o da “idade crítica” para a aquisição linguística, o da rigidez da arquitetura

córtico-cognitiva de certas categorias de indivíduos (os surdos ou os autistas, por

exemplo), o da competência linguística tomada como faculdade mental ou fenômeno pré-

programado em termos neurobiológicos, as dicotomias clássicas, como percepção versus

ação, natureza versus ambiente, emoção versus razão, etc.

No ponto em que estamos, voltemo-nos para a dimensão interacional da cognição.

Por cognição em interação entende-se que toda ação simbólica humana depende

estreitamente das circunstâncias variadas nas quais se dão. Esta é a premissa

sociocognitiva de cunho interacionista cujos autores emblemáticos são L.S. Vygotsky

(1930, 1934) e M. Tomasello (1999, 2008, 2009, 2014).

Para essa perspectiva, linguagem e interação são decisivas para o desenvolvimento

cognitivo e para a sociabilidade humana. Entre as teses associadas a essa perspectiva está

a da indissociabilidade entre linguagem e outros aspectos da cognição humana; a da

plasticidade cerebral enquanto plasticidade sociocognitiva (portanto, não inata e não

baseada apenas e tão somente em mecanismos neurobiológicos); a do contexto como

construção sociocognitiva (e não mero entorno físico que ancora os atos de significação);

a da não dicotomia entre “fatores de ordem cognitiva” e “fatores de ordem social”. O

domínio empírico de exploração dessas teses revela uma grande preocupação com a

visibilidade dos dados e com a constituição de corpora linguísticos autênticos e

sociolinguisticamente variados.

Em nossos estudos, pautados pelas reflexões vygotskianas e tomasellianas, temos

tomado a interação como parte da resposta para a pergunta sobre a cognição em seus

diferentes tamanhos e escopos. Temos observado que dados de linguagem e de cognição

em interação (isto é, extraídos de práticas interacionais variadas, e não apenas de testes

diagnósticos) têm colocado em xeque a clássica definição estruturalista de afasia

enquanto alteração da capacidade de realizar operações metalinguísticas stricto sensu.

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A análise empírica de variados processos e práticas comunicacionais no contexto

das afasias tem nos levado a admitir que não parece anulada ou destruída a capacidade

discursiva dos indivíduos afásicos (MORATO et al., 2010), uma vez que estes lançam

mão de diferentes processos de significação, alternativos, coexistentes ou compensatórios

em relação à fala e à escrita (como gestos, direcionamento do olhar, postura corporal,

etc.). Também não deixam de exibir suas capacidades reflexivas ao procederem a reparos

e reformulações na conversação, ao se servirem de promptings orais e gestuais do

interlocutor, ao checarem de alguma forma a intenção comunicativa, ao produzirem

reformulações parafrásticas ou construções explicativas, etc. Lembremos, neste ponto,

que muitos desses processos são observados na linguagem em uso, não sendo de forma

alguma desviantes ou patológicos.

Em relação à Doença de Alzheimer, contexto no qual as operações epilinguísticas

e reparadoras estariam mais instáveis em função do declínio cognitivo heterogêneo dessa

complexa entidade nosológica, o caráter regulador da linguagem e da interação frente aos

processos cognitivos passa a depender acentuadamente do papel do interlocutor e dos

contextos situados de interpretação e produção de sentido (MORATO, 2012b). Como

afirma Morato, a propósito:

Mais recentemente, os estudos dedicados às afasias e à Doença de Alzheimer que se

desenvolvem no âmbito de modelos explicativos psicossociais (LYMAN, 1989;

BALLENGER, 2006; BERRIOS, 1990; HOLSTEIN, 1997; BEACH,1987), que não levam

em conta apenas biomarcadores como as placas senis ou o componente genético, têm

admitido que a linguagem e a interação influenciam de maneira decisiva o ritmo e a

intensidade do declínio cognitivo (LEIBING e COHEN, 2006; CRUZ, 2008; MORATO,

2010a, SÉ, 2011; DIAS, 2012), bem como têm admitido (SCHEGLOFF, 2003; KITA et al,

2003; KLIPPI, 2003; GOODWIN, 2004; OELSCHLAEGER E DAMICO, 2003;

FERGUSON, 1996; MORATO et al., 2010b) que, na complexa semiologia das afasias, a

linguagem sempre diz respeito, de maneira direta ou indireta, a vários outros processos

cognitivos interatuantes na compreensão e produção de sentido. (MORATO, 2012b, p.183-

184)

6 O DESAFIO DA INTERDISCIPLINARIDADE ENTRE

(NEURO)LINGUÍSTICA E NEUROCIÊNCIAS NAS QUESTÕES DE SAÚDE:

A EXPERIÊNCIA DO CENTRO DE CONVIVÊNCIA DE AFÁSICOS (CCA)

Neste ponto de nossa reflexão, com o intuito de exemplificarmos as relações entre

(Neuro)linguística e Neurociências nas ações voltadas para a Saúde, passamos a descrever

brevemente os objetivos e a dinâmica de funcionamento de um grupo de convivência

entre indivíduos afásicos e não afásicos criado a partir da interação entre docentes e

pesquisadores dos Departamentos de Neurologia e de Linguística da Universidade

Estadual de Campinas.

Esse grupo integra o Centro de Convivência de Afásicos (CCA), no qual temos

atuado já há vários anos no contexto das atividades-fim da Universidade, isto é, ensino,

pesquisa e extensão. A iniciativa de criação desse Centro buscava, desde seu início, nos

anos 1990, desmedicalizar o tratamento e a convivência com a afasia e os afásicos,

procurando investigar conjuntamente subsídiosanalíticos linguísticos e neuropsicológicos

sobre as afasias, informar familiares e amigos sobre a condição afásica, potencializar

ações inclusivas, estudar a linguagem e a cognição em uso (MORATO, 2002 et al., 2010).

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Com tais preocupações em mente, o CCA pode ser compreendido como um espaço

de interação entre pessoas afásicas e não afásicas no qual se realizam atividades (também

chamadas de Programas ou Oficinas) interacionais diversas que procuram evocar rotinas

significativas de vida em sociedade (conversação cotidiana, debates sobre temas de

interesse comum, jogos, cinema, cafés coletivos, visitas a exposições, piqueniques, saraus

musicais, etc.) e atividades que envolvem expressão artística (música, teatro, dança).

Temos procurado nessas práticas a restituição de papéis sociais, a partilha de um espaço

simbólico de experiências, o fortalecimento de quadros interativos, a evocação de práticas

discursivas as mais diversas, a reorganização linguístico-cognitiva após o

comprometimento neurológico, a recomposição de aspectos ligados à subjetividade e à

inserção social (MORATO et al, 2002, 2010). Constituindo-se como uma “comunidade

de práticas” (ECKERT, 1997), esse grupo tem se responsabilizado pela elaboração e

publicação de um livro de divulgação sobre as afasias e os afásicos (MORATO et al,

2002), pela edição de uma peça radiofônica (CALLIGARIS, 2016) e por um jornal anual

desde 2007.

Os impactos teóricos, metodológicos e sociais do CCA colocam em evidência as

vantagens teóricas e práticas da inter-relação entre estudos do campo das Neurociências

e os da Linguística para o campo da Saúde. Dentre eles, podemos apontar:

questionamento do escopo do termo afasia (fenômeno não redutível à carência

metalinguística); incremento da recepção social das afasias (por meio de livro de

divulgação das afasias elaborado por participantes do grupo acima referido, do “Jornal do

CCA”, das atividades desenvolvidas dentro e fora da instituição); apoio à formação de

novos grupos de convivência de pessoas afásicas, etc.

Com relação aos eixos de interesse científico comum entre os pesquisadores do

campo linguístico e neurocientífico, poderíamos mencionar: as estratégias linguístico-

interacionais de reorganização da comunicação e da significação, os processos

referenciais, as regras pragmáticas que presidem a linguagem e a cognição, a

comunicação e o comportamento humano, a recepção social de patologias linguístico-

cognitivas, a reanálise da semiologia (neuro)linguística e neuropsicológica tradicional, a

dinâmica interacional – tal como a que se desenvolve no CCA – que envolve atenção a

processos implicados na gestão do tópico discursivo, na dinâmica de turno, no

alinhamento e na categorização social dos interagentes, a emergência de estratégias

linguísticas e cognitivas em situação de uso da linguagem, os modelos de contexto

ativados na conversação, os processos de ordem meta emergentes e construídos no

decurso das interações entre afásicos e não afásicos, a constituição do grupo como uma

comunidade de práticas discursivas e sociocognitivas, a presença de semioses

interatuantes na construção do sentido, a evocação de diversas competências

relativamente à linguagem exibidas pelos interagentes em suas atividades linguístico-

comunicacionais, etc.

Para a análise de todos esses fenômenos, os dois campos aqui evocados de forma

particular colocam em cena verdadeiros clusters metodológicos, dentre os quais podemos

mencionar a observação naturalística de práticas interacionais cotidianas, as entrevistas

semidirigidas e demais formas qualitativas de estudo, as técnicas de imageamento

cerebral e eletrofisiologia, dentre outras.

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Considerando os resultados alcançados por estudos desenvolvidos no âmbito do

nosso grupo de pesquisa13, podemos elencar algumas generalizações sobre o contexto das

afasias de interesse para o campo da Saúde. Tais generalizações estão voltadas para o

desenvolvimento de modelos biopsicossociais14 que superem os estritamente biomédicos

em relação à concepção de afasia, importante para as práticas diagnósticas, condutas

terapêuticas, ações inclusivas e constituição de dados de diversas naturezas:

i) questionamento do escopo do termo afasia e da semiologia tradicional das afasias

(com impacto na classificação, no diagnóstico e no tratamento terapêutico das afasias);

ii) demonstração empírica de que a afasia não parece destruir a capacidade

discursiva dos indivíduos afásicos, uma vez que estes lançam mão de diferentes processos

de significação, alternativos, coexistentes ou compensatórios em relação à fala e à escrita

(como gestos, direcionamento do olhar, postura corporal, etc.); procedem a reparos e

reformulações na conversação, por meio, por exemplo, de promptings orais e gestuais do

interlocutor, checam de alguma forma a intenção comunicativa, produzem reformulações

parafrásticas ou construções explicativas, etc.;

iii) desenvolvimento da hipótese de que a linguagem e a interação – portanto,

também o método de investigação – influenciam de maneira decisiva a reconstrução

linguística nas afasias;

iv) desenvolvimento da hipótese de que a conceptualização é uma construção

discursivo-cognitiva. A preservação dessa condição nas experiências cotidianas tem a ver

com a possibilidade de manutenção – por meio de estratégias discursivas e

sociocognitivas – de uma competência pragmática, social, comunicativa;

v) observação, tal como ocorre em outros contextos neurolinguísticos, de

discrepâncias entre comportamentos neuropatológicos e comportamentos cotidianos

(LOCK, 2006), pragmática e cognitivamente situados.

7 PALAVRAS FINAIS

Neste ponto de nosso ensaio, e à guisa de conclusão, poderíamos pensar em algumas

proposições e desafios que se colocam para a relação entre esses três elementos –

Cognição, Neurociências, Saúde:

i) incremento de uma interface entre esses três campos, de modo a desenvolver

investigações acerca da estrutura e do funcionamento da atividade cerebral em

circunstâncias e contextos naturais de uso;

ii) fortalecimento de modelos biopsicossociais de patologias linguístico-cognitivas

(LOCK, 2006);

13

Mais informações sobre as pesquisas desenvolvidas pelo grupo de pesquisa COGITES, “Cognição,

Interação e Significação” podem ser encontrados no sítio: <cogites.iel.unicamp.br>

14 Em relação a este ponto, parece-nos que está ainda por ser construída uma ponte conceitual e

metodológica entre o modelo biomédico e o social: “Ainda que notemos uma quase hegemonia do modelo

biomédico em nosso meio (clínico), podemos perceber que, na prática, um modelo híbrido já é construído

socialmente, ainda que de forma pouco prescritiva, inscrevendo-se seja nas consultas médicas e no ensino

médico, seja no metadiscurso científico, sobretudo os de cunho interdisciplinar” (DIAS, 2012, p.85).

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iii) incremento da mobilidade entre grupos de pesquisa das três áreas aludidas

acima;

iv) desenvolvimento de estudos interdisciplinares mais sistemáticos e constituição

de corpora envolvendo linguagem e cognição em uso, em contexto, em interação.

Todos esses pontos passam por uma necessária arbitragem interdisciplinar entre

saberes distintos. Tal arbitragem, contudo, dificilmente pode ser tomada apenas como um

“mal necessário” decorrente de uma ignorância comum. Antes, ela parece mais auspiciosa

se partir de um reconhecimento de que há vantagens científicas em pensarmos conjunta

e cooperativamente sobre questões complexas que ainda estão a exigir mais e melhores

contornos explicativos.

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Recebido em: 04/07/16. Aprovado em: 10/10/16

Title: Relationships among language, cognition and interaction – some implications for the

Health field

Author: Edwiges Maria Morato

Abstract: In this essay we are concerned with the discussion on a matter of great

contemporary interest: the relationship among language, interaction and cognition and their

contributions to the field of Health. The first issue we face relates to the interdisciplinary

vocation of Neurosciences. The second issue deals briefly with the relationship between basic

and ap-plied science which is viewed in general from a dichotomous perspective due to the

naturalistic frame that characterizes the fields of Neurosciences and Neurolinguistics, the

later dedicated to the relationship among language, brain and cognition. To illustrate our

considerations, we take into account the context of aphasia and Alzheimer’s disease. Finally,

we outline consid-erations about the challenges posed to the relationship among these three

elements – Cogni-tion, Neurosciences and Health.

Keywords: Cognition. Interaction. Aphasia. Alzheimer´s disease.

Título: De las relaciones entre lenguaje, cognición e interacción – algunas implicaciones

para el campo de la Salud

Autor: Edwiges Maria Morato

Resumen: En este ensayo nosotros dedicamos a una discusión sobre una cuestión de gran

interés contemporáneo: las relaciones entre lenguaje, interacción y cognición y sus

contribuiciones al campo de la Salud. La primera de las cuestiones con las cuales nosotros

deparamos frente a ese tema es de la vocación interdisciplinaria del estudio volvido a esas

relaciones. La segunda trata brevemente de la relación entre ciencia básica y aplicada y

entre modelos biomédico y biosocial, en general vista desde una perspectiva dicotómica en

función del frame naturalista, que caracteriza el campo de las Neurociencias, y también de

la Neurolingüística. Para ejemplificar nuestras ponderaciones, consideramos el contexto de

las afasías y de la Dolencia de Alzheimer. Al fín, tejemos consideraciones sobre los desafíos

que se han colocado para la relación entre eses tres elementos – Cognición, Neurociencias

y Salud.

Palabras-clave: Cognición. Interacción. Afasia. Enfermedad de Alzheimer.

Este texto está licenciado com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.

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FEIST, Michele I. Minding your manners: linguistic relativity in motion. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 16, n. 3, p. 591-602, set./dez. 2016.

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DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1982-4017-160305-0916D

MINDING YOUR MANNERS:

LINGUISTIC RELATIVITY IN MOTION

Michele I. Feist*

University of Louisiana at Lafayette

English Department

Lafayette, LA, USA

Abstract: Do speakers think about the world differently depending on the language they

speak? In recent years, this question has generated substantial interest in the cognitive

sciences, driven in part by Talmy’s (1985; 2000) observations regarding the typology of

motion descriptions. However, a flurry of research (CIFUENTES-FEREZ; GENTNER, 2006;

GENNARI et al., 2002; NAIGLES; TERRAZAS, 1998; PAPAFRAGOU; HULBERT;

TRUESWELL, 2008; among others) has produced mixed results, leaving us no closer to

understanding the role of language in motion event cognition. In this paper, I revisit the

linguistic analysis, combining Talmy’s observations with those of Slobin (2004) to refocus

the question on the differential salience of Manner across languages. I then present results

from three studies that suggest that cross-linguistic differences in the salience of Manner are

connected to speakers’ likelihood of encoding Manner information, in line with the Linguistic

Relativity Hypothesis.

Keywords: Linguistic relativity. Motion verb. Manner salience.

1 INTRODUCTION

Think about how you got to your current location: if you are a speaker of English,

chances are that you thought something akin to the sentence in (1); if you are a speaker

of Spanish or Portuguese, chances are that the sentence you thought was more similar to

that in (2).

I walked into the room.

Entré en lahabitación.

enter-1sg-pst in the-fem room

I entered the room.

However, if you were to picture your arrival at your current location rather than to

describe it in language, you would envision not only yourself as mover (the Figure in the

motion event), but also the room you were entering (the Ground) and the Path that you

were following (into the room), along with the fact that you were moving and the way in

which you moved (the Manner of motion: walking in the examples above). While all

these elements of the event are available to all observers, languages vary in how they are

* PhD in Linguistics. Associate Professor of Linguistics. E-mail: [email protected].

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FEIST, Michele I. Minding your manners: linguistic relativity in motion. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 16, n. 3, p. 591-602, set./dez. 2016.

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encoded (TALMY, 1985, 2000; SLOBIN, 2004), both in terms of which elements tend

to be encoded and in terms of the lexical classes most typically used to encode each

element. For example, whereas both sentences (1) and (2) encode the Figure, the Ground,

the fact of motion, and the Path, only sentence (1) encodes the Manner of motion. In

addition, the two sentences differ in how they encode the Path, which surfaces as a

separate word in sentence (1) but is conflated (TALMY, 1985) in the verb in sentence

(2).

Based on differences such as these in descriptions of motion events across

languages, Talmy (1985; 2000) argued that languages may be categorized according to

how they encode motion. One category of languages, verb-framed languages, tends to

encode the Path of motion in the main verb, as exemplified by the sentence in (2); this

category includes Romance languages such as Spanish and Portuguese, as well as

Japanese and Greek. In contrast, satellite-framed languages, such as Germanic and Slavic

languages, tend to encode the Path of motion in a separate element (the satellite), thus

leaving the verb free to encode Manner along with the fact of motion, as seen in example

(1). The categorization of languages as either verb-framed or satellite-framed has received

support from the appearance of similar patterns in elicited motion descriptions across a

variety of studies and a variety of languages (BERMAN; SLOBIN, 1994; GENNARI et

al. 2002; PAPAFRAGOU; MASSEY; GLEITMAN, 2002; PAPAFRAGOU; MASSEY;

GLEITMAN, 2006; SLOBIN, 1996; STRÖMQVIST; VERHOEVEN 2004, inter alia).

While Talmy’s observations, and the elicited data, make clear that speakers of

different languages talk about motion differently, there remains an open question

regarding whether speakers also think about motion differently. As demonstrated in the

example above, all aspects of a motion event are available to observers, regardless of

whether these elements would likely be encoded in a linguistic description, suggesting

that while language may vary, cognition need not. However, although the entire event is

doubtless available to a speaker, there are more details than the speaker is likely to encode,

with the result that “experiences [may be] filtered through language into verbalized

events” (SLOBIN, 1996, p. 71). Thus, the mere fact that the entire event is available to

all observers does not indicate that as a result all observers do think about motion in the

same way.

How can we know whether patterns in the language lead to differences in how

speakers think about motion? What might we expect if observers think about motion in

ways that are consistent with their language’s encoding of motion events? One salient

difference between verb-framed languages and satellite-framed languages is the element

that tends to be conflated with the fact of motion in the main verb: in verb-framed

languages, this is the Path of motion, whereas in satellite-framed languages, this is more

frequently the Manner. As a result, we might expect speakers of verb-framed languages

to pay more attention to Path than to Manner, while speakers of satellite-framed languages

may exhibit the opposite pattern. This hypothesis has been tested across a multitude of

studies, including those focused on recognition memory (e.g., BILLMAN; KRYCH,

1998; GENNARI et al. 2002; PAPAFRAGOU; MASSEY; GLEITMAN, 2002),

judgments of similarity (e.g., FINKBEINER et al. 2002; GENNARI et al. 2002;

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PAPAFRAGOU; MASSEY; GLEITMAN, 2002), and visual attention (e.g.,

PAPAFRAGOU; HULBERT; TRUESWELL, 2008), with mixed results.

For example, Gennari and her colleagues (2002) looked at recognition for

videotaped motion events in speakers of one satellite-framed language, English, and one

verb-framed language, Spanish. Participants were asked to remember a set of target

events under one of three conditions which manipulated the role of language at encoding:

(1) after naming the events; (2) while repeating nonsense syllables (so as to block access

to verbal working memory); or (3) with no concomitant task. To test whether speakers

attend to the element that is privileged in their language (either Path or Manner) at the

expense of the other, the experimenters created two recognition foils: one which showed

the same Path as the target video, but differed in Manner; and one which showed the same

Manner of motion, but differed in Path. They then presented all three versions of each

event, in random order, during the recognition test. Gennari and her colleagues observed

an effect of language on participants’ ability to recognize the target items, with English

speakers performing better than Spanish speakers (particularly when the role of language

at encoding was reduced), suggesting that language may influence recognition for motion

events. However, there was no effect of language on speakers’ recognition performance

for previously unseen items (i.e., the recognition foils), contrary to the predictions of the

Linguistic Relativity Hypothesis.

In the same study, Gennari and her colleagues (2002) collected similarity judgments

for each of the recognition foils relative to its target event. They reasoned that if language

influences such judgments, then Spanish speakers, who encode Path in the verb, would

judge the same-Path variant as more similar than the same-Manner variant; but English

speakers, who encode Manner in the verb, would show the opposite pattern in their

similarity judgments. They found that amongst participants who had named the target

events during encoding, Spanish speakers were more likely than English speakers to

judge the same-Path variant as more similar than the same-Manner variant, in line with

the Linguistic Relativity Hypothesis. However, same-Path choices did not differ between

the two language groups for speakers who had not previously completed the description

task.

Finally, Papafragou and her colleagues (PAPAFRAGOU; HULBERT;

TRUESWELL, 2008) asked whether speakers of Greek (which is verb-framed) and

speakers of English (which is satellite-framed) would attend to different parts of a visual

scene when watching a motion animation. To find out, they used an eye-tracker to track

participants’ gazes while watching a series of clip art animations. When speakers were

told that they would need to describe the events after watching them, there was a clear

effect of language: Greek speakers attended first to the Path endpoint and only later to the

instrument indicating Manner, and English speakers evidenced the opposite pattern.1

However, no effect of language was observed when speakers were told to remember the

animations, without being asked to describe them.

1 These patterns obtained only for the bounded animations; there was no Path endpoint for participants to

look at in the unbounded animations.

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The results of these studies leave open many questions regarding potential effects

of language on motion event cognition. While each of these studies revealed effects of

language, the effects were limited and only surfaced under particular circumstances,

suggesting that effects of language on cognition, when present, are in fact quite weak.

However, the inconsistency in the results, both within and across studies, raises another

possibility. Before we can conclude that the effects of language in this domain are indeed

modest, we must be sure that the cross-linguistic differences motivating the studies

completely characterize the way in which motion information is encoded in the languages,

and that the studies are testing cognitive consequences that are consistent with the

information encoded in the languages. The studies reviewed above all share a conceptual

foundation in two assumptions: first, that Manner and Path are conceptually equally

weighted, allowing researchers to compare attention allocated to each; and second, that

the information encoded in the main verb is uniquely important. Should a reexamination

of the linguistic data reveal that either or both of these assumptions may be flawed, this

would similarly call into question conclusions regarding the limited effects of language

on cognition.

2 LINGUISTIC ANALYSIS REVISITED

Talmy (2000, p. 25) defined a basic motion event as ‘‘one object (the Figure)

moving or located with respect to another object (the reference object or Ground)’’. As

Slobin (2004, p. 223) points out, Path is thus an obligatory element of a motion event (see

also Jackendoff 1996), but Manner is optional. This suggests an asymmetry between Path

and Manner, as (1) Path, but not Manner, is obligatory; and (2) Path is intimately

connected to another element, the Ground (see also FEIST, 2010). As Feist (2010) has

shown, this asymmetry is borne out in differences in the linguistic expression of Path and

Manner in single-clause motion event descriptions.

Feist (2010) examined the sentences used in a sample of studies which explored the

role of the syntactic frame in speakers’ inferences about the meanings of novel verbs

(CIFUENTES-FEREZ; GENTNER, 2006; NAIGLES; TERRAZAS, 1998;

HOHENSTEIN, 2005; HOHENSTEIN; NAIGLES; EISENBERG, 2004). She identified

three syntactic frames that were used in these studies: the bare intransitive frame (3), the

transitive frame (4), and the intransitive plus prepositional phrase frame (5).

(1) I walked.

(2) I entered the room.

(3) I walked into the room.

Whereas the bare intransitive frame can occur with both Path and Manner verbs

(HOHENSTEIN; NAIGLES; EISENBERG 2004), the other two frames introduce biases

due to their heightened likelihood to occur with only one type of verb: the transitive frame

occurs more frequently with Path verbs, and the intransitive plus prepositional phrase

frame, with Manner verbs (CIFUENTES-FEREZ; GENTNER, 2006; HOHENSTEIN,

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2005; HOHENSTEIN; NAIGLES; EISENBERG 2004; NAIGLES; TERRAZAS, 1998).

These biases have been found to interact with the typological tendencies of a speaker’s

language: when adult speakers of satellite-framed English and verb-framed Spanish were

asked to interpret novel verbs presented in the biasing frames, their typological

preferences were evident, with English speakers preferring Manner interpretations and

Spanish speakers, Path interpretations (CIFUENTES-FEREZ; GENTNER, 2006;

NAIGLES; TERRAZAS, 1998). However, when speakers were asked to interpret novel

verbs in the unbiased bare intransitive frame (NAIGLES; TERRAZAS, 1998), no

typological differences were observed. More surprisingly, speakers preferred the Manner

interpretation to the Path interpretation, despite Path’s obligatory status in a basic motion

event (SLOBIN, 2004; TALMY, 2000).

To account for these findings, Feist (2010) examined how the conceptual elements

of a motion event (the Figure, Ground, Path, Manner, and fact of motion) surfaced in the

lexical items in the three frames in use in these studies. Consider first the two biasing

frames, exemplified above in examples (4) and (5). In the path-biasing transitive frame

(example 4), the Figure surfaces as the subject (I) and the Ground as the direct object (the

room), while Path is conflated with the fact of motion in the verb (entered). In the manner-

biasing intransitive plus prepositional phrase frame (example 5), the Figure again surfaces

as the subject (I), but this time the Path surfaces in the preposition (into) and the Ground,

as the object of the preposition (the room), leaving a slot open in the verb for conflation

of Manner (walked) along with the fact of motion. Finally, in the non-biasing bare

intransitive frame (example 3), the Figure again surfaces as the subject (I), and the verb

is available to encode one element in addition to the fact of motion (TALMY, 1985).

Although the bare intransitive allows both Path and Manner verbs, the experimental

findings suggest a preference for conflating Manner with the fact of motion (NAIGLES;

TERRAZAS, 1998). Converging evidence may be found in elicited narratives, with the

majority of adult English speakers’ Manner verb usages in Frog story narratives being

intransitive2. As a result, the bare intransitive frequently encodes the Figure and Manner,

leaving the Path and Ground unexpressed.

From these patterns, we can see that Manner is encoded in a description in two

situations: when both Path and Ground are (intransitive plus prepositional phrase frame)

and when neither is (the bare intransitive frame). In contrast, Path is preferentially

encoded whenever the Ground is (i.e., in the transitive frame and in the intransitive plus

prepositional phrase frame), suggesting a conceptual link between the Path and the

Ground. This linkage makes sense, given that the Path requires a Ground as its substrate

(c.f. SLOBIN 2004, in which the assumption that Path is obligatory in a basic motion

event results from Talmy's [2000] specification of motion "with respect to another

object"). The linkage of Path to another element of a motion event may increase its

salience when either the Path or the Ground is mentioned in the description (FEIST,

2010). Because there is no parallel linkage for manner, this suggests that the conceptual

weight – and likely salience – of Manner and Path may not be equal.

2 Slobin (2004) reports that combined transitive and intransitive Manner verbs occur in just under 60% of

adult English motion event descriptions (Slobin 2004: Figure 2), while intransitive tokens occur in just

under 45% of descriptions (SLOBIN, 2004: Figure 3).

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The above analysis also makes clear that the three sentence frames used in the

experimental literature encode the Figure, the Ground, and the Path in elements other than

the verb. Thus, much of the information about the event – in fact most of it – is routinely

encoded elsewhere in the sentence frame. Furthermore, Feist (2010) has argued that the

conflation of Path or Manner in the verb may be predictable based on Gricean (GRICE,

1975) principles. She argues that to satisfy Grice’s Maxim of Quantity, the conflated

element should not be encoded elsewhere in the sentence, while to satisfy the Maxim of

Relation, it should “be maximally related to those elements which are encoded” elsewhere

in the sentence (FEIST, 2010, p. 194). Thus, the choice of which conceptual element to

encode in the verb is highly dependent on the semantics of the other lexical items in the

sentence. The interdependence of the lexical items, including the verb, suggests that the

elevated importance accorded to the verb in many studies of linguistic relativity may in

fact be misplaced.

Taken together, the linguistic evidence suggests two things. First, there appears to

be a conceptual asymmetry between Path and Manner, whereby Path is (1) more

foundational to an event’s classification as a motion event, and (2) more intimately

connected to other elements of the motion event. Because Path and Manner may not be

on conceptually equal footing nonlinguistically, it is impossible to interpret asymmetries

between them amongst speakers of typologically different languages. Second, the

conceptual elements of a motion event are distributed across the lexical items in a

description, with the conflation of one element in the verb dependent on which other

elements are encoded across the string. As a result, the information encoded in the verb,

rather than being uniquely important, is highly interdependent with the information

encoded in other lexical items.

3 LANGUAGE AND THOUGHT

If language were to influence motion event cognition, what form might that

influence take? The reanalysis of the linguistic data suggests that languages may not in

fact differentially feature either Path or Manner in motion descriptions. As a result,

framing the question around the comparison of Path and Manner may not tap into

differences in how languages encode motion events. More specifically, the observation

that Path is obligatory for an event to be a motion event (JACKENDOFF, 1996; SLOBIN,

2004; TALMY, 2000) suggests that languages may not differ in the prominence accorded

to Path. However, whereas Path may not be differentially salient to speakers of

typologically different languages, Slobin (2004) has argued that Manner is.

Looking beyond what is encoded in the verb to take into account other sentential

elements and, indeed, surrounding context, Slobin (2004) observed variation in the

expression of Manner that went well beyond the lexical differences that Talmy (1985;

2000) had uncovered. For example, languages vary in their use of adverbials (e.g.,

ÖZÇALiŞKAN; SLOBIN 2003), ideophones (e.g., IBARRETXE-ANTUÑANO, 2003),

and gesture (e.g., MCNEILL; DUNCAN, 2000) to encode manner information.

Furthermore, Slobin noted intratypological variation in the use of Manner verbs

themselves, with Germanic languages making modest use of them as compared to

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Mandarin and, even more strikingly, Russian, despite all of these languages being

satellite-framed. Slobin argued that the observed variation in the likelihood of encoding

manner is too fine-grained to be accommodated by the two part Talmian typology

contrasting verb-framed and satellite-framed languages, and instead proposed that

languages may fall along a cline of Manner salience.

Manner salience indexes the ease and naturalness with which Manner information

is encoded in a description of a motion event (SLOBIN, 2004) – in other words, the

codability (cf. BROWN; LENNEBERG, 1954) of Manner. High Manner salience within

a language is evident from frequent references to Manner in motion descriptions, a rich

lexicon of Manner-encoding items which mark fine distinctions between Manners, and

the early acquisition of Manner verbs amongst children (SLOBIN, 2003). Slobin (2003)

goes on to argue that the salience of Manner in a language impacts not only the use of

language, but also speakers’ conceptualizations of motion events. As such, Manner may

be expected to be more accessible to speakers of high-Manner-salient languages, and

more likely to be encoded when those speakers observe motion events. These predictions

provide a means for testing the hypothesis that motion language influences motion

cognition while avoiding the pitfalls associated with a comparison between attention to

Path and attention to Manner.

In order to assess the relation between salience and accessibility of Manner

information, Feist (2013) asked speakers of high-Manner-salient English and of low-

Manner-salient Spanish to describe short motion events, using only one word in each

description. The events involved a range of Manners of motion, but kept the Path and

Ground constant, allowing an examination of the codability of Manner in these two

languages. Feist reasoned that one way in which language may influence thought is

through easing the accessibility of highly codable concepts (HUNT; AGNOLI, 1991).

Thus, in addition to testing whether Manner was more codable in English than in Spanish,

she examined the relation between codability and cognitive cost for this set of motion

events.

Feist measured the codability of the Manners in her motion events in three ways.

First, she calculated the length in phonemes of the descriptions elicited for each event,

with higher codability indicated by shorter descriptions (BROWN; LENNEBERG, 1954;

ROSCH; HEIDER, 1972). A second index of length of descriptions can be found in the

proportion of participants who provided a one-word description as requested; this, thus,

constituted the second measure of codability. Finally, she calculated the degree to which

participants agreed on the label for each event, with higher codability indicated by higher

interpersonal agreement (BROWN; LENNEBERG, 1954; LUCY; SHWEDER, 1979).

By all three measures, Feist found that Manner was more highly codable for speakers of

high-Manner-salient English than for speakers of low-Manner-salient Spanish.

To estimate the difficulty participants had accessing concepts associated with each

motion event, Feist used two measures of cognitive cost. First, she measured the latency

between seeing an event and beginning to type a description, with longer latencies

indicating greater difficulty accessing the relevant concept (Traxler 2012). Second,

reasoning that greater difficulty accessing a concept may lead to greater uncertainty in

the response, Feist measured the rate at which participants changed their responses to

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each of the motion events. Both measures revealed lower cognitive cost for speakers of

high-Manner-salient English than for speakers of low-Manner-salient Spanish,

suggesting that language may influence the ease of accessibility of Manner of motion

information.

In related work, Feist, Rojo, and Cifuentes (2007) asked whether the contextual

salience of Manner information would influence the ease with which speakers could

verify whether or not a Manner-encoding verb described an event. Participants viewed

events either in a high Manner salience condition (i.e., viewing multiple events that

differed only in Manner of motion) or a low Manner salience condition (i.e., viewing a

single motion event) before indicating whether a description employing a Manner verb

was true of the target motion event. They found that English speakers were faster to

respond in the low Manner salience condition than in the high Manner salience condition,

likely due to the higher cognitive load associated with maintaining multiple events in

working memory. However, this difference was not evident for the Spanish speakers, who

responded equally quickly to event descriptions in the two conditions, suggesting that the

heightened salience of Manner introduced by the context may have facilitated Spanish

speakers’ access to Manner information, counteracting the difference in cognitive load

associated with holding more vs fewer events in working memory.

Both of these studies examined accessibility of Manner information as revealed by

access to and retrieval of lexical items. However, if speakers’ conceptualizations of

motion events are indeed influenced by the salience of Manner within their language,

speakers of high-Manner-salient languages may also be more likely to encode and

remember information about Manner of motion from the motion events they observe

(SLOBIN, 2003). Furthermore, if cross-linguistic differences in memory for Manner are

indeed due to the differential salience of Manner, these effects should be attenuated by

variation in the contextual salience of Manner (FEIST; ROJO; CIFUENTES, 2007). To

test these hypotheses, Feist and Cifuentes-Férez (2013) asked speakers of English and

Spanish to remember short motion events for later recognition. As in their earlier work

(FEIST; ROJO; CIFUENTES, 2007; FEIST, 2013), the events involved a variety of

Manners of motion, but kept the Path and Ground constant, allowing the contextual

salience of Manner information to be manipulated through the number of motion events

participants were shown during the first phase of the experiment: participants saw either

three or ten events, of which recognition memory would subsequently be probed for just

three.

The results suggest that cross-linguistic differences in the salience of Manner do

influence memory for Manner information: English speakers made fewer errors overall

than did Spanish speakers on the recognition task, regardless of the contextual salience

of Manner. Looking more closely at the data, however, complexities emerge in the

interplay of Manner salience, language, and memory for Manner. As with other tests of

recognition memory (e.g., BILLMAN; KRYCH, 1998; GENNARI et al., 2002;

PAPAFRAGOU; MASSEY; GLEITMAN, 2002), there were two ways participants could

make an error in the recognition test: participants could indicate that they thought they

had seen a previously unseen item (a false alarm), or they could indicate that they thought

they had not seen one of the events shown to them during the initial phase of the

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experiment (a miss); and the effects of language and contextual salience differed for the

two kinds of errors. As with the overall error rates, the false alarm rates revealed an effect

of language whereby English speakers evidenced fewer false alarms than did Spanish

speakers. The data on misses, in contrast, echoed the earlier data on motion verb

verification (FEIST; ROJO; CIFUENTES, 2007): English speakers performed better in

the low Manner salience condition than in the high Manner salience condition, but

Spanish speakers performed better in the high Manner salience condition than in the low

Manner salience condition, indicating that for speakers of a low-Manner-salient language,

the contextual salience of manner may counteract the heightened difficulty of the task.

Taken together, these results suggest that the salience of Manner may influence its

encoding and retrieval, even when speakers need not produce linguistic descriptions.

However, the salience of Manner is a function not only of its codability in the language

(FEIST, 2013), but also of its prevalence in the context (FEIST; ROJO; CIFUENTES,

2007), with different consequences for recognition memory depending on the source of

Manner’s heightened salience. As such, the evidence suggests that language likely

influences motion event cognition, and that these influences act in concert with the

context within which a motion event is experienced.

4 CONCLUSIONS

Talmy’s (1985; 2000) careful analyses of the lexicalization of motion revealed an

independence between concepts and lexical items, whereby the same concepts may be

lexically packaged in a variety of ways. Talmy further argued that individual languages,

rather than making full use of the variety of mapping possibilities, demonstrated

characteristic patterns in their encoding of these concepts. The ease with which languages

may be classed in Talmy’s (1985; 2000) typology and the separation between lexical

items and conceptual elements have made motion cognition an attractive domain in which

to test whether language influences thought, with many studies focusing on cross-

linguistic differences in the conceptual element typically encoded within the main verb.

Within and across studies, this body of research has uncovered a mixed tapestry of

evidence suggesting that effects of language, when present, may be limited and fragile.

However, the motion verb is but one element in a linguistic description, as Talmy

(1985; 2000) very clearly showed. Language provides an extremely rich and nuanced

medium for the encoding of experience. Complexities in the mapping of concepts to

language have been observed at many levels of linguistic structure, including lexical items

(e.g., FEIST, 2008), constructions (e.g., GOLDBERG, 1995), and narratives (e.g.,

SLOBIN, 2004). In the case of motion event descriptions, the mappings between concepts

and lexical items are intertwined, such that the encoding of each concept is dependent on

the identity and mapping of other encoded concepts across the description (FEIST, 2010),

as detailed above. As such, unique focus on a single lexical element – the verb – may be

obscuring the richness of information to which language may direct a speaker’s attention.

Looking closely at motion language with this in mind, it becomes evident that the

two conceptual elements figuring most prominently in Talmy’s (1985; 2000) typology,

Path and Manner, are not equivalently weighted in motion conception. First, whereas

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Manner is optionally encoded, Path, which surfaces in the most common sentence

patterns across typologically different languages, is one of four obligatory elements

defining a motion event (JACKENDOFF, 1996; TALMY, 2000). In addition, Path and

Ground are conceptually interdependent (FEIST, 2010), with the result that the mention

of the Ground may heighten the salience of the Path. Manner, in contrast, may stand alone,

and thus does not receive a boost in salience from the mention of other conceptual

elements. This asymmetry undermines comparisons between attention to Path and

attention to Manner, like those forming the basis of much research investigating the

influence of language on cognition in this domain.

Moving beyond Talmy’s original typology, Slobin and his colleagues

(ÖZÇALiŞKAN; SLOBIN 2003; SLOBIN, 2003, 2004) have argued that languages vary

in the salience accorded to Manner of motion, rather than merely in the mapping of

conceptual elements to lexical items. The variation across languages in the salience of a

single conceptual element opens new avenues for studying potential effects of language

on motion cognition. Across three studies, Feist and her colleagues (FEIST, 2013; FEIST;

CIFUENTES-FEREZ, 2013; FEIST; ROJO; CIFUENTES, 2007) observed connections

between the salience of Manner in a language and its availability to speakers as they

described and recognized short motion events. Furthermore, these connections were

likewise evident across differences in the contextual salience of Manner information

(FEIST; CIFUENTES-FEREZ, 2013; FEIST; ROJO; CIFUENTES, 2007), implicating

the salience of Manner per se as a driving force behind the effects of language in these

tasks. These results suggest not only that language influences motion cognition, but also

that a complete understanding of the influence of language will require consideration of

patterns in linguistic descriptions rather than in individual lexical items.

Cross-linguistic variation, like language itself, is extremely rich and nuanced. These

nuances are critical to an understanding of the interplay of language and cognition, an

interplay that extends beyond lexicalization patterns to tendencies in encoding that

pervade language use.

ACKNOWLEDGEMENTS

I am grateful to Paula Cifuentes-Férez and Ana Rojo for their help with portions of

this research and for many discussions of these ideas. I would also like to thank Jan Edson

Leite for his help translating the title and abstract.

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Recebido em: 13/07/16. Aprovado em: 28/10/16.

Título: Olhando seus modos: a relatividade linguística em movimento

Autora: Michele I. Feist

Resumo: Os falantes refletem sobre o mundo de forma diferente, dependendo da língua que

falam? Nos últimos anos, essa pergunta gerou um interesse substancial nas ciências

cognitivas, parcialmente motivado pelas observações de Talmy (1985; 2000) a respeito da

tipologia das descrições de movimento. Entretanto, variadas pesquisas (CIFUENTES-

FEREZ; GENTNER, 2006; GENNARI et al. 2002; NAIGLES; TERRAZAS, 1998;

PAPAFRAGOU; HULBERT; TRUESWELL, 2008; entre outras) obtiveram resultados

diferenciados entre si, impedindo-nos de chegar próximo à compreensão integral do papel

da linguagem na cognição de eventos de movimento. Neste artigo, faz-se uma revisita às

análises linguísticas, combinando as observações de Talmy com as de Slobin (2004) para

reconsiderar a questão da saliência diferencial de Modo (Manner) entre as línguas.

Apresentam-se resultados de três estudos que sugerem que as diferenças translinguísticas

na saliência de Modo são relacionadas à probabilidade de os falantes codificarem

informações sobre Modo, alinhados com o que postula a hipótese da Relatividade

Linguística.

Palavras-chave: Relatividade linguística. Verbo de movimento. Saliência de modo.

Título: Mirando a sus modos: la relatividad lingüística en movimiento

Autora: Michele I. Feist

Resumen: ¿Los hablantes reflejan sobre el mundo de manera diferente, dependiendo de la

lengua que hablan? En los últimos años, esa pregunta hay generado interés substancial en

las ciencias cognitivas, parcialmente motivado por las observaciones de Talmy (1985; 2000)

con respecto de la tipología de las descripciones de movimiento. Sin embargo, variadas

investigaciones (CIFUENTES-FÉREZ; GENTNER, 2006; GENNARI et al. 2002; NAIGLES;

TERRAZAS, 1998; PAPAFRAGOU; HULBERT; TRUESWELL, 2008; entre otras) hay

obtenido resultados diferenciados entre ellos, impidiéndolos de llegar próximo de la

comprensión integral del role del lenguaje en la cognición de eventos de movimiento. En este

artículo se hace una revisita a los análisis lingüísticos, combinando las observaciones de

Talmy con las de Slobin (2004) para reconsiderar la cuestión del sobresaliente diferencial

de Modo (Manner) entre las lenguas. Son presentados resultados de tres estudios que

sugieren que las diferencias tras-lingüísticas en el sobresaliente Modo son relacionadas con

las probabilidades de los hablantes codificaren informaciones sobre Modo, alineados con lo

que postula el hipótesis de la Relatividad Lingüística.

Palabras-clave: Relatividad lingüística. Verbo de movimiento. Modo sobresaliente.

Este texto está licenciado com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.

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GABRIEL, Rosângela. Como o milagre da leitura é possível? Investigando processos biológicos e culturais da emergência de sentidos durante a leitura. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 16, n. 3, p. 603-616, set./dez. 2016.

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DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1982-4017-160306-0916D

COMO O MILAGRE DA LEITURA É POSSÍVEL?

INVESTIGANDO PROCESSOS BIOLÓGICOS E CULTURAIS DA

EMERGÊNCIA DE SENTIDOS DURANTE A LEITURA

Rosângela Gabriel*

Universidade de Santa Cruz do Sul

Departamento de Letras

Programa de Pós-Graduação em Letras

Santa Cruz do Sul, RS, Brasil

Resumo: Se, por um lado, a leitura é uma forma particular de usar a linguagem verbal, por

outro, a fim de compreender os aspectos cognitivos envolvidos na leitura, é necessário evitar

estender inadvertidamente o campo de aplicação deste objeto de estudo (MORAIS, 1996).

Ao investigar a leitura, cumpre examinar que aspectos cognitivos e sociais lhe são

específicos e que aspectos são compartilhados com a modalidade oral ou, ainda, com as

demais linguagens, considerando processos de significação verbal e não verbal. O presente

artigo distingue elementos que são intrínsecos ao aprendizado e processamento da leitura,

e aspectos que são compartilhados com as demais linguagens, em especial, com a linguagem

oral, buscando identificar processos conscientes e inconscientes envolvidos (DEHAENE,

2012; 2014). Uma definição de leitura e a explicitação de seu modo de processamento são

necessárias para subsidiar o planejamento de políticas públicas e ações pedagógicas que

estejam alicerçadas nos avanços dos estudos neurocientíficos sobre linguagem, leitura e

cognição.

Palavras-chave: Leitura. Aprendizagem. Processamento. Processo consciente e

inconsciente. Educação.

1 INTRODUÇÃO1

Quando falamos sobre leitura no dia a dia, nossa atenção em geral está voltada para

o assunto do texto, para o autor, ou para o lugar em que o texto foi publicado, qual a

perspectiva adotada pelo autor... Poucas vezes, nossa atenção volta-se para a atividade

leitora per se ou para o próprio fenômeno denominado “leitura”. No livro “Fogo Pálido”,

de Vladimir Nabokov2, a personagem Dr. Charles Kimbote declara, a certa altura:

Nós estamos absurdamente acostumados ao milagre de que alguns poucos sinais escritos

sejam capazes de conter imagens imortais, involuções do pensamento, novos mundos com

pessoas vivas, falando, chorando, rindo. Tomamos isso como dado tão simplesmente que, em

* Docente do Programa de Pós-Graduação em Letras e do Departamento de Letras da UNISC –

Universidade de Santa Cruz do Sul. Bolsista de Produtividade em Pesquisa CNPq. E-mail:

[email protected] 1 Uma primeira versão do presente artigo foi apresentada durante o V SIMELP – Simpósio Mundial de

Estudos de Língua Portuguesa, que ocorreu em Lecce, Itália, em outubro de 2015. 2 Disponível em <https://www.google.be/#q=pale+fire+pdf> . Acesso em: 5 jan. 2016

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certo sentido, pelo simples ato de rotineira aceitação ignorante, desmerecemos o trabalho

milenar, a história da gradual elaboração da descrição e construção poética, do homem que

habitava árvores a Browning, do homem das cavernas a Keats. E se acordássemos um dia,

todos nós, e nos descobríssemos incapazes de ler? Eu gostaria que vocês se maravilhassem

não apenas com o que leem, mas também com o milagre de que tal possa ser lido3.

A pergunta lançada no trecho acima pode nos remeter a outra obra literária, Ensaio

sobre a cegueira, de José Saramago (1995), em que as personagens não só descobrem-se

subitamente incapazes de ler, mas também de ver. As situações ficcionais propostas por

Nabokov e Saramago ajudam-nos a desnaturalizar o fenômeno da leitura, para que

possamos refletir sobre ele. A leitura faz parte de nossas vidas de forma tão onipresente

e “natural”, que muitas vezes esquecemos que ela é um artefato cultural, uma criação da

genialidade humana, da capacidade que temos de criar cultura e aprender com nossos

coespecíficos (VYGOTSKY, 1998; TOMASELLO, 1999). O trabalho milenar que deu

origem à tecnologia mais revolucionária já inventada pela humanidade, começando com

desenhos esculpidos no interior de cavernas até o registro “nas nuvens” da era digital,

procura ser reconstruído por estudos como os desenvolvidos pela História da Leitura

(ABREU, 2000; CAVALLO; CHARTIER, 1999; ZILBERMAN, 1989; 2001). Noutra

perspectiva, a Linguística do Texto procura compreender as micro e macrosestruturas

presentes no texto que engendram a coesão e a coerência, possibilitando que a

comunicação escrita alcance desempenho semelhante à oral, ou superior em determinados

contextos, se considerarmos a possibilidade de permanência do registro escrito de um

lado, e a maior efemeridade do discurso oral por outro (KOCH; FÁVERO, 1985; KOCH;

TRAVAGLIA, 1989; KOCH; ELIAS, 2006), ou ainda, se pensarmos na literatura como

arte, cuja matéria prima é a palavra escrita.

O estranhamento diante do milagre da leitura, ao qual nos conclama Nabokov, pode

nos levar a outras perspectivas, tais como a das neurociências. O que nosso corpo (e nosso

cérebro) faz quando lemos (DEHAENE, 2012; SCHOTTER; RAYNER, 2015)? O que o

corpo (e o cérebro) de quem não lê (por exemplo, uma criança antes dos 5 anos ou um

adulto não letrado) faz diante de um texto escrito (PEGADO et al., 2014; DEHAENE et

al., 2015)? O que faziam os neurônios que processam a leitura em um leitor proficiente

antes da aprendizagem dessa habilidade (DEHAENE; COHEN, 2007; DEHAENE et al.,

2010)?

A leitura pode ainda ser abordada a partir de uma perspectiva educacional,

econômica e social: a leitura se tornou uma ferramenta tão fundamental para a vida em

sociedade que o desempenho em leitura dos cidadãos interessa não só ao indivíduo ou à

comunidade escolar, mas também aos governos, e a organizações como a OECD

(Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, em inglês,

Organisation for Economic Co-operation and Development), cujo objetivo é promover

políticas para incrementar o bem-estar social e econômico mundial e que é responsável

pelo PISA (Programa para Avaliação Internacional de Estudantes, em inglês, Programme

for International Student Assessment). Se a leitura é uma habilidade tão fundamental,

podendo ser considerada um direito humano em sociedades democráticas (MORAIS,

3 As traduções apresentadas ao longo do artigo são de responsabilidade da autora.

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2016), como assegurar que todos tenham acesso a esse bem e possam aprender a ler,

desenvolvendo a habilidade leitora?

As diversas perspectivas brevemente referidas nesta introdução nos dão uma

indicação da complexidade e importância do tema, tanto do ponto de vista do indivíduo

quanto da sociedade. Neste artigo, procuramos abordar a leitura a partir de um ponto de

vista interdisciplinar, congregando conhecimentos das Neurociências, da Linguística, da

Psicologia Cognitiva e da Educação. Procuramos refletir sobre dois aspectos que parecem

estar no cerne dos maus resultados apresentados pelas políticas públicas e pelas

orientações pedagógicas voltadas à melhoria dos níveis de leitura dos estudantes

brasileiros. O primeiro aspecto, abordado na seção que segue esta introdução, diz respeito

aos processos conscientes e inconscientes envolvidos na leitura. O segundo aspecto,

abordado na terceira seção, refere-se à complexa relação entre a linguagem oral e a

escrita, bem como aos componentes da compreensão leitora. Na última seção, voltamos

nossa atenção ao contexto brasileiro, buscando sintetizar as contribuições que uma

perspectiva amparada na ciência da leitura pode trazer para o planejamento de políticas

públicas e a intervenção pedagógica.

2 PROCESSOS CONSCIENTES E INCONSCIENTES ENVOLVIDOS NA LEITURA

Uma metáfora muitas vezes referida quando se trata de processos cognitivos

conscientes e inconscientes é a do iceberg. Assim como a ponta visível do iceberg, o

processamento cognitivo consciente é parte, e não todo o iceberg. Quando pensamos em

leitura, novamente a metáfora do iceberg nos ajuda a compreender como a um só tempo

estamos conscientes e inconscientes dos processos envolvidos. Além disso, a

automatização faz com que processos dos quais temos consciência num determinado

estágio de aquisição possam tornar-se inconscientes noutro estágio, acarretando inclusive

incremento no desempenho. Pensemos, por exemplo, em como aprendemos a dirigir um

carro (a série de ações coordenadas que precisam ser efetuadas e o esforço consciente de

pensar em cada uma delas) e em como dirigimos após alguns anos de experiência:

acelerar, debrear, frear passam a ser ações automatizadas, inconscientes, enquanto a

atenção consciente fica liberada para monitorar as condições do trânsito ou planejar o

caminho a ser percorrido. No processo de aprendizagem da leitura, a automatização

desempenha papel fundamental, como veremos ao longo deste artigo.

Dehaene (2014) explora a relação entre processos cognitivos conscientes e

inconscientes. De acordo com o autor, nunca vemos uma imagem como nossa retina vê.

Ao contrário de um conjunto distorcido de pixels, permeado por vasos sanguíneos, com

um ponto cego central, o que vemos é uma imagem tridimensional corrigida e

reinterpretada a partir de nossas experiências prévias. Esse processo de correção e

reinterpretação é inconsciente, assim como o processo de agrupamento das unidades

significativas (chunks) na memória de trabalho (para uma revisão, ver GABRIEL et al.,

2016). Nossa capacidade de reconhecer palavras escritas deriva da capacidade

inconsciente de aprendizagem estatística: ao longo da vida, um leitor adulto vê milhões

de palavras, e seu córtex visual contém neurônios preparados para identificar sequências

frequentes. Durante o processamento de frases simples, a mente está consciente do tópico,

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e a maioria das palavras isoladas (sem mencionar fonemas e morfemas) não atinge o

limiar de consciência. Já durante o processamento de frases complexas, ambíguas ou

metafóricas, a mente inconsciente ativa vários possíveis significados, ao passo que a

mente consciente escolhe qual desses significados é mais apropriado ao contexto. Nas

palavras de Dehaene (2014, p. 66): "A mente inconsciente propõe enquanto a mente

consciente seleciona” 4.

A metáfora do iceberg é útil, ainda, quando pensamos no ensino e aprendizagem

da leitura: assim como a ponta visível do iceberg pode levar o comandante do navio a

subestimar o perigo iminente, como na famosa tragédia do Titanic, a parte observável da

leitura pode levar o professor (ou os responsáveis pelo estabelecimento de políticas

públicas direcionadas ao desenvolvimento da leitura) a subestimar a importância dos

processos inconscientes envolvidos na leitura realizada pelo leitor hábil, os quais, no

entanto, precisam ser aprendidos, de forma explícita e consciente pelo leitor iniciante.

Um exemplo de como a pedagogia da leitura pode ser traída pela ilusão do iceberg

é o processo de transformação dos sinais gráficos em linguagem oral. Ler implica um

sistema complexo de transformação dos sinais de entrada – o sinal gráfico, em

representações de sua pronúncia e de seu significado. De acordo com Morais (2013, p.

11), ler é “traduzir” o que está escrito, traduzir aquilo que o texto escrito representa, quer

dizer, a fala. Nos sistemas de escrita alfabética, esse processo de tradução implica que o

leitor iniciante decodifique os grafemas (letras ou conjunto de letras5) em fonemas

(unidades fonológicas da língua que distinguem palavras entre si).

No Glossário de “Termos de Alfabetização, Leitura e Escrita para Educadores”, do

Ceale/Ufmg, Coscarelli (2016) define decodificação como o “processo no qual o leitor

transforma as retas e curvas que compõem as letras em sons oralizados ou numa imagem

mental do som”. Essa operação poderia ser considerada um processo simples de

associação (GOUGH; HILLINGER, 1980), se as letras representassem sempre o mesmo

som, mas não é o que acontece. As línguas variam quanto à consistência com que a

fonologia é representada pela ortografia – ou seja, o grau de previsibilidade da pronúncia

de uma determinada letra ou conjunto de letras –, com línguas em que a relação grafema-

fonema é mais transparente, num extremo, como o finlandês, até línguas altamente

imprevisíveis, como o inglês (ZIEGLER; GOSWAMI, 2005; 2006). Coscarelli (2016)

propõe o exemplo da palavra “banana”, em que temos três ocorrências da letra A, mas

em cada uma delas essa letra representa um som diferente (em algumas variantes do

português os sons são: [a], [ã], /Ә/, respectivamente, e em outras /ã/, /’ã/, /Ә/), mas

poderíamos também pensar no caso emblemático da letra “x”, que representa diferentes

fonemas em “xícara”, “táxi”, “excesso” e “exame”, sendo que esses mesmos fonemas

podem ser escritos com outros grafemas, como no caso de “churrasco”, “acesso” e

“azeite”6.

4 The unconscious mind proposes while the conscious mind selects. 5 Um grafema é uma letra ou um conjunto de letras que corresponde a um fonema. Por exemplo, o grafema

“p” corresponde ao fonema /p/, ao passo que o grafema “ss” em “pássaro” corresponde ao fonema /s/. 6 Não nos ocorre nenhum exemplo em português em que os fonemas /ks/, de táxi, sejam escritos com outro

grafema que não o “x”, mas talvez o leitor aprendiz seja tentado a grafar esses fonemas com dois grafemas,

como em “tacsi” ou “taksi”, por exemplo.

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A decodificação pressupõe que o leitor aprendiz tenha compreendido o princípio

alfabético, segundo o qual os grafemas representam os fonemas da língua. Para um leitor

alfabetizado, ou seja, que saiba ler em uma escrita alfabética, esse princípio parece

bastante óbvio. No entanto, se considerarmos outros sistemas de escrita, por exemplo, o

chinês e o japonês, em que os grafemas representam palavras, conceitos ou sílabas,

veremos que esse princípio não é óbvio e precisa ser explicitado às crianças. Esse talvez

seja um dos pontos a ser enfatizado e repetido como um mantra, quando se trata de ensino

de leitura: o que parece óbvio para o leitor proficiente (processado, em geral, de forma

inconsciente) não o é necessariamente para o aprendiz!

A decodificação, ainda que imprescindível, é apenas o primeiro passo a ser dado no

processo de transformação dos sinais gráficos em linguagem oral. À medida que o leitor

ganha familiaridade com a forma escrita das palavras, o processo de decodificação vai

dando lugar à conversão ortográfica (FRITH, 1985), em que unidades ortográficas

correspondem idealmente a morfemas ou palavras. A leitura proficiente implica fluência

(leitura rápida, não truncada) e essa só é atingida por meio da automatização (ou seja,

transformação de um processo consciente em inconsciente) da decodificação e gradual

armazenamento das representações de palavras em sua forma ortográfica na memória de

longo prazo. Embora seja um processo inconsciente para o leitor proficiente, este pode

lançar mão da decodificação consciente quando necessário, por exemplo, diante de

palavras novas, de difícil pronúncia ou potencialmente conflitantes (como no caso de

palavras parônimas, como delatar/dilatar/deletar).

A prática frequente da leitura e da escritura, seja com propósitos pragmáticos

(utilitários), divertimento, ampliação do conhecimento ou fruição estética (literária),

possibilita o desenvolvimento da literacia (tradução do termo inglês, literacy). Segundo

Morais (2016), a literacia não se confunde com a alfabetização por duas razões: primeiro,

porque alguém pode saber ler em árabe, japonês ou chinês sem ter sido alfabetizado, já

que essas línguas não utilizam o alfabeto. Segundo, porque a literacia pressupõe o uso

fluente da leitura e da escrita, não como um fim, mas como um meio, uma ferramenta.

Como dissemos no início deste artigo, o leitor fluente, em geral, não pensa em como lê,

mas sim no que lê, portanto sua atenção consciente está voltada para a construção de

sentidos durante a leitura, o que se torna possível exatamente porque a transformação dos

sinais gráficos em linguagem (oral ou mental, como na leitura silenciosa) já está

automatizada. Nesse sentido, a literacia poderia ser tomada como sinônimo de letramento,

mas esse termo ganhou no Brasil uma conotação bastante particular, que parece

negligenciar os aspectos específicos da leitura (desenvolvimento da consciência

fonológica, identificação de letras e padrões ortográficos, conhecimento do vocabulário

e de expressões mais frequentes na língua escrita, reflexão sobre as micro e

macroestruturas características de diferentes gêneros textuais), enfatizando seu papel

enquanto prática social, como se houvesse um conflito inerente a esses dois aspectos

(MORAIS, 2003; SOARES, 2004). Na perspectiva que adotamos, a alfabetização e a

literacia qualificadas são imprescindíveis para o uso da leitura e da escrita enquanto

prática social, e precisam ser abordadas de forma objetiva e consciente nos programas

que se propõem a incrementar a alfabetização e compreensão leitora. Voltaremos a esse

assunto na sequência deste artigo.

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GABRIEL, Rosângela. Como o milagre da leitura é possível? Investigando processos biológicos e culturais da emergência de sentidos durante a leitura. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 16, n. 3, p. 603-616, set./dez. 2016.

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3 A RELAÇÃO ENTRE LINGUAGEM VERBAL ORAL E ESCRITA

À palavra ‘leitura’ são atribuídos muitos significados, dependendo do contexto em

que é empregada. De um ponto de vista cognitivo e também educacional, a definição do

que entendemos por leitura é determinante das práticas consequentes, tanto do ponto de

vista da investigação quanto da intervenção pedagógica. Para Morais (1996, p. 111), para

compreender o que é leitura, temos que evitar estender nosso objeto de estudo, a fim de

apreender o que ele tem de específico, de intrinsecamente relevante. Portanto, para

entender como é possível ler, nosso primeiro desafio é dizer o que há de específico na

leitura.

A leitura pressupõe a escrita, que se desenvolveu inicialmente como um sistema de

representação da linguagem falada. Entretanto, ainda que a escrita tenha sido inicialmente

uma tentativa de escrever a fala, seu uso ao longo dos séculos contribuiu para a

constituição de uma nova modalidade de comunicação, cujas convenções são

compartilhadas culturalmente, e que precisam ser aprendidas pelos novos membros da

comunidade. É importante lembrar que a escrita é uma invenção cultural relativamente

recente (em torno de 5.000 anos), constituindo-se em uma forma particular de uso da

linguagem. Por isso, é previsível que linguagem oral e escrita compartilhem uma série de

características, mas, o que as distingue? O Quadro 1 a seguir ilustra dez critérios de

comparação.

Quadro 1 – Dez critérios ilustrativos da relação entre linguagem verbal oral e escrita

Linguagem verbal Oral Escrita

1. Aprendizagem sim sim

2. Compreensão sim sim

3. Interpretação sim sim

4. Linguagem + literal versus

ling. + metafórica sim sim

5. Interação falante – discurso - ouvinte [autor] – texto – leitor

6. Variação linguística + variação; + coloquial + estável; + formal

7. Léxico + repetição; - diversidade + diversidade; + densidade

8. Sintaxe + orações curtas;

+ ordem direta;

+ orações subordinadas; + voz

passiva; + ordem inversa

9. Conhecimento prévio Temas de domínio comum Maior abrangência temática

10. Tradução dos sinais

visuais em linguagem NÃO SIM

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Ao compararmos situações de uso da linguagem verbal oral e escrita, podemos

concluir que ambas podem ter como objetivo a aprendizagem, a compreensão e a

interpretação (KINTSCH, 1998; DASCAL, 2006; GABRIEL et al., 2012).

Ambas as modalidades apresentam expressões mais literais ou mais metafóricas,

não sendo a linguagem figurada uma prerrogativa literária (LAKOFF; JOHNSON, 2002;

GIBBS, 1994; 2002; GABRIEL et al., 2011).

Ambas as modalidades pressupõem interação, ainda que atores e contextos se

distingam: nas situações de comunicação oral, as informações contextuais tendem a ser

mais compartilhadas, ao passo que na escrita muitas informações não são dadas e

precisam ser inferidas, o que pressupõe conhecimentos compartilhados, sendo que parte

desses conhecimentos têm origem nos próprios interlocutores: falante-ouvinte, autor-

leitor (FLÔRES; GABRIEL, 2012).

Ambas as modalidades apresentam variação linguística, com a linguagem escrita

tendendo à maior estabilidade e formalidade, em oposição à maior variação e

informalidade da linguagem oral (KATO, 1986; MARCUSCHI, 2007).

Ambas as modalidades amparam-se no conhecimento lexical, sendo que a

linguagem escrita apresenta maior densidade e diversidade lexical quando comparada à

linguagem oral (NAGY; ANDERSON, 1984; CUNNINGHAM, 2005; JOHANSSON,

2008).

Ambas as modalidades compartilham características comuns da sintaxe da língua,

sendo que a linguagem escrita se caracteriza por construções sintáticas mais longas, uso

de ordem inversa, estruturas subordinadas e maior uso de voz passiva (MACWHINNEY;

BATES, 1989; BATES et al., 1995; GABRIEL, 2001).

Ambas as modalidades amparam-se no conhecimento prévio, porém o contexto das

interlocuções orais tende a ser mais compartilhado e familiar (família, escola, trabalho,

comércio, etc.), proporcionando informações multimodais que se somam e

complementam as informações verbais (MORATO; BENTES, 2013). Assim, os

interlocutores podem apoiar-se em informações de diferentes origens para a atribuição de

sentidos. Durante a leitura, por sua vez, o contexto é menos óbvio, englobando, a priori,

qualquer área do conhecimento humano. Ainda que o autor tenha em mente um possível

leitor, com um conjunto de conhecimentos, evidenciados no que é dito e no que não é

dito, o texto escrito se emancipa do autor, ganhando públicos diversos, em períodos

históricos diversos. Por isso, a compreensão em leitura muitas vezes é prejudicada por

lacunas de informações contextuais imprescindíveis.

Observemos a proposta de continuum explicitada pelos sinais + e – presentes no

Quadro 1: uma análise cuidadosa de cada critério nos revela não dicotomias, mas sim

gradações. Não é necessário dizer que cada um desses critérios constitui uma área de

pesquisa per se, e que os procedimentos utilizados na compreensão da linguagem oral e

escrita não são exatamente os mesmos, como, por exemplo, o processo de referenciação,

a interpretação de elementos dêiticos, as pistas prosódicas ou a possibilidade de releitura

ou de interpelação do interlocutor, nas respectivas modalidades. Entretanto, essa gama de

nuanças mais ou menos sutis não será discutida em profundidade neste artigo por uma

questão de foco e de espaço.

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Os nove primeiros critérios elencados no Quadro 1, sintetizados nos parágrafos

anteriores, apontam compartilhamentos entre linguagem oral e escrita, bem como

diferentes gradações e intensidades. O último critério, no entanto, distingue-se dos

demais. Para melhor entendê-lo, imaginemos a situação proposta por Nabokov: E se um

dia acordássemos, todos nós, e nos descobríssemos incapazes de ler? E se, como em

“Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago (1995), um de nós mantivesse a capacidade

de ver/ler e lesse para os demais: Quem compreenderia o texto lido? Quem estaria lendo,

literalmente?

A transformação de sinais gráficos, visuais, em sons da linguagem oral, que abrange

a tradução nos sistemas de escrita alfabéticos de grafemas em fonemas, e, no leitor

proficiente, de padrões ortográficos em linguagem oral, está presente apenas na

linguagem escrita. Ainda que possamos compreender e aprender a partir da leitura feita

por outrem, só lemos, em sentido estrito, quando somos autores dessa transformação.

O conceito de leitura, as dificuldades na aprendizagem da leitura, e a necessidade

de definir com precisão o objeto de estudo que temos em mente quando tratamos de

leitura, vem sendo discutida por vários autores, com propostas que merecem nossa

atenção.

Hoover e Gough (1990) propuseram uma visão “simples” da leitura (The Simple

View of Reading), segundo a qual a leitura hábil pode ser caracterizada como o produto

das habilidades de decodificação e compreensão linguística, sendo esses dois elementos

de igual importância: se há decodificação, mas não há compreensão linguística, não há

leitura; por outro lado, se há compreensão linguística, mas não há decodificação, não há

leitura. A visão “simples” da leitura não pressupõe que a decodificação nem a

compreensão sejam simples, quer na modalidade oral ou escrita, mas sim que esses dois

componentes, independentes entre si, constituem a leitura hábil em proporções

equivalentes.

Kamhi (2007) propõe uma visão restrita da leitura (Narrow View of Reading), em

que o conceito de leitura seria limitado à leitura de palavras (reconhecimento de palavras

e decodificação) e a compreensão (reflexão, raciocínio, interpretação), ou melhor, as

dificuldades de compreensão não seriam questões de leitura, mas sim de carência de

conhecimento em domínios específicos. Para o autor, os Estados Unidos e outros países

estariam evidenciando, mais do que uma crise de leitura, uma crise de falta de

conhecimentos. Kamhi (2009a; 2009b), a partir das críticas à sua proposta, reavaliou sua

posição, sem, no entanto, deixar de enfatizar que a falta de clareza sobre que aspecto está

sendo medido nos testes de avaliação da compreensão leitora (se o reconhecimento de

palavras, a compreensão leitora em domínios gerais ou o conhecimento de um assunto

específico), obscurece os resultados e dificulta a tomada de atitudes políticas e

pedagógicas que possam trazer contribuições efetivas para minimizar a crise.

Em um estudo longitudinal, investigando a leitura inicial e as habilidades

linguísticas de crianças com dificuldades de compreensão leitora, dos 5 aos 8 anos de

idade, Nation et al. (2010) constataram que fragilidades em aspectos da linguagem oral

foram detectados em crianças que posteriormente apresentaram dificuldades de

compreensão leitora. Esse resultado é extremamente relevante, se considerarmos que, até

a sua publicação, não estava claro se as dificuldades de compreensão da linguagem oral

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eram uma consequência do baixo aproveitamento que os leitores pobres7 fazem da

atividade leitora (ampliação de vocabulário e dos conhecimentos relacionados, por

exemplo), ou se essas dificuldades já estavam presentes antes da aprendizagem da leitura,

tendendo à ampliação da lacuna entre bons leitores e leitores com dificuldades de

compreensão. Segundo os autores, as variações na linguagem oral nos anos pré-escolares

são um bom preditor da compreensão leitora no segundo ano escolar. Além disso, o

estudo mostrou que os leitores com dificuldades de compreensão apresentaram menor

consciência fonológica nos anos iniciais e também baixa competência no processamento

de sentenças e na compreensão de frases faladas, sugerindo a intervenção precoce junto

a crianças com baixo desempenho na linguagem oral, a fim de evitar baixo desempenho

futuro também na linguagem escrita.

Nesse mesmo sentido, Snowling e Hulme (2012) advogam a presença de dois

componentes independentes no processo de compreensão em leitura nos primeiros anos

de aprendizagem, o que gera a necessidade de considerar pelo menos duas categorias de

leitores deficientes: leitores cujas dificuldades em leitura sejam decorrentes da

decodificação ineficiente (lenta e/ou não acurada); e leitores cujas dificuldades sejam

decorrentes do conhecimento insuficiente da linguagem oral (vocabulário, estruturas

gramaticais, entre outros aspectos que desempenham papel relevante na compreensão).

Seidenberg (2013) retoma a distinção proposta por Snowling e Hulme (2012) ao

considerar a realidade americana, em especial a das crianças oriundas de famílias

hispânicas aprendendo a ler em inglês e a de usuários de variantes dialetais como a dos

afrodescendentes, que apresentam domínio insuficiente da língua inglesa utilizada nos

textos escritos. Se considerarmos a realidade brasileira, podemos traçar uma analogia com

relação às variantes dialetais da linguagem oral usadas por grupos cultural e

socioeconomicamente desfavorecidos, que se distanciam daquelas usadas nos textos

escritos, representando assim um obstáculo à compreensão.

Os estudos e reflexões apresentados nesta seção reiteram a intrínseca relação entre

linguagem oral e escrita, e ao mesmo tempo as distinguem. A leitura é uma criação

cultural, como referido no início deste artigo, não disponível a todos: há povos ágrafos,

há adultos analfabetos em sociedades letradas e há crianças que não compreendem o que

leem, mesmo depois de anos de escolarização. Se, de um lado, aprendemos a linguagem

oral a partir da interação com outros seres humanos, adquirindo inicialmente a variante

linguística utilizada pelo grupo familiar, a aprendizagem da linguagem escrita requer,

além da exposição a textos escritos, instrução explícita, consciente e sistemática nos

vários componentes da linguagem (fonológico, semântico, sintático, pragmático), como

ilustrado no Quadro 1. Ao mesmo tempo, um diagnóstico preciso do tipo de dificuldade

apresentada pelos leitores pouco fluentes é altamente desejável, para viabilizar o

planejamento de intervenções qualificadas, que atendam às necessidades das crianças em

risco de se tornarem leitores pobres ou que já apresentem dificuldades de leitura

cristalizadas.

7 A literatura especializada na área de leitura cunhou o termo poor readers para denominar os leitores com

dificuldades de leitura. Na falta de um termo sucinto em português, adotamos aqui a tradução literal da

expressão, leitores pobres, sem que essa faça referência ao estatuto socioeconômico do leitor, mas sim ao

seu desempenho em leitura.

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4 PARA QUE TODOS SEJAM CAPAZES DE LER

E se acordássemos um dia, todos nós, e nos descobríssemos capazes de ler? Esta

questão, uma antítese à pergunta de Nabokov, sintetiza o desejo de tantos que vêm

trabalhando para a universalização do direito de todos à alfabetização e à literacia. Para

que esse objetivo seja alcançado, muitos esforços vêm sendo empreendidos, em vários

países. É verdade que o século XX testemunhou reduções dramáticas do analfabetismo

adulto e a consolidação do direito ao ingresso e permanência na escola. No contexto

brasileiro, o ensino obrigatório e gratuito, que até 1971 restringia-se a quatro anos (curso

primário), passou a oito anos no período de 1971 a 2009, e a nove anos a partir de 2010,

com início do Ensino Fundamental aos 6 anos de idade. Por outro lado, a profusão de

dados sobre a qualidade da educação promovida pelo sistema de ensino brasileiro mostra

que há muito a avançar. De acordo com os dados do INEP/OCDE (2012; 2013), 49,2%

dos estudantes brasileiros de 15 anos de idade encontram-se no nível 2 de leitura (em uma

escala de 1 a 6), sendo capazes de reconhecer a ideia principal do texto, entender relações

de partes delimitadas, fazer inferências elementares em tópico familiar, e não muito mais.

Apenas 0,5% dos estudantes brasileiros dessa faixa etária encontra-se no nível 5, estando

aptos a localizar e organizar informações profundamente entranhadas no texto, cuja

interpretação e reflexão exijam compreensão detalhada. Outro dado a ter em mente é que

os baixos resultados nas avaliações em leitura concentram-se nos grupos sociais menos

favorecidos, o que indica a necessidade de intervenção do poder equalizador do Estado,

a fim de garantir educação de qualidade para todos.

Em 2012, o governo brasileiro lançou um programa promissor. O Pacto Nacional

pela Alfabetização na Idade Certa – Pnaic prevê a ação conjunta dos estados, municípios

e federação no sentido de proporcionar a formação continuada de professores

alfabetizadores e orientadores de estudo; disponibilizar material didático, obras literárias

e de apoio pedagógico, jogos e tecnologias educacionais; realizar avaliações sistemáticas;

e fazer a gestão, mobilização e controle social do Pacto.

Ainda que a iniciativa seja louvável, o estudo desenvolvido por Lopes (2015)

aponta lacunas importantes nessa iniciativa, que podem comprometer seus resultados. A

partir da análise dos Cadernos de Formação do Pnaic e de entrevistas com professores do

ciclo de alfabetização (primeiro ao terceiro ano do Ensino Fundamental), a pesquisa

constatou que a formação proporcionada pelo Pacto não aborda uma das questões mais

pertinentes no processo de alfabetização, a instrução fônica e explícita dos fonemas e

grafemas, a sistematização de atividades de consciência fonológica, pré-requisito para a

realização da decodificação das palavras, que, ao mesmo tempo, contribui para fluência

leitora e o incremento da compreensão.

Um dos pontos positivos apresentados pelos entrevistados foi a distribuição de

livros de literatura infantil e jogos para as escolas, contribuindo para a exposição das

crianças a materiais de leitura interessantes, em geral, lidos pela professora, numa

abordagem pedagógica cunhada como “leitura deleite”. No entanto, pouca ou nenhuma

ênfase foi dada ao modo de detectar e amparar precocemente crianças com dificuldades

na aprendizagem da leitura, ou que possam vir a apresentar dificuldades. Não há dúvida

de que a leitura deleite é bem-vinda e desejável na escola, mas para que todas as crianças

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possam usufruir desse prazer também de forma autônoma, e não apenas ao ouvir a leitura

feita por outrem, é necessário desenvolver as competências necessárias para a

decodificação rápida e fluente, a ampliação do vocabulário e das construções linguísticas.

Além disso, a leitura pode ter outros objetivos, tão nobres quanto o prazer: a busca de

informação, de conhecimento, e de desenvolvimento do raciocínio.

A falta de reflexão sobre os aspectos conscientes e inconscientes da leitura e sobre

a complexa relação entre as modalidades oral e escrita da linguagem fica evidente na fala

dos professores alfabetizadores, que se dizem preocupados com os alunos que apresentam

dificuldades na aprendizagem da leitura e compreensão textual, mas ao mesmo tempo

sentem-se desamparados, sem saber de que maneira intervir no processo. Essa situação é

especialmente dramática no terceiro ano do ciclo, que recebe crianças com 8 anos, muitas

das quais ainda não automatizaram a decodificação fluente, comprometendo, assim, o

avanço no processo de aprendizagem por meio da leitura e da escrita. Parece-nos bastante

injusto e pouco eficaz postergar a avaliação das competências desenvolvidas ao longo do

ciclo para o terceiro ano, quando na verdade o diagnóstico precoce das dificuldades

(reconhecimento de palavras, pouco domínio das variantes mais formais da língua,

lacunas em conhecimentos específicos) poderia instrumentalizar professores e

comunidade escolar para a intervenção precoce concomitantemente ao longo dos três

anos do ciclo, deslocando o foco da atenção da questão de reprovar ou não a criança para

a questão mais fulcral: que tipo de intervenção pedagógica (ou clínica, quando for o caso)

pode ser oferecida, para que todos sejam capazes de ler? Ou ainda, parafraseando o slogan

do programa americano, para que nenhuma criança fique para trás8?

AGRADECIMENTOS

A autora agradece à equipe da Unité de Recherche en Neurosciences Cognitives

(UNESCOG), Center for Research in Cognition&Neurosciences (CRCN), Université

Libre de Bruxelles (ULB), Bélgica, pelo acolhimento e pela infraestrutura disponibilizada

durante o estágio de pesquisa (2015-2016). A preparação deste artigo contou com o apoio

da Capes (Processo BEX 5192/14-5), da Fapergs (Edital Pesquisador Gaúcho 02/2014) e

da Universidade de Santa Cruz do Sul (Res. 083/2013).

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Recebido em: 04/07/16. Aprovado em: 21/07/16.

Title: How is the miracle of reading possible? Investigating biological and cultural processes

of emergent meaning while reading

Author: Rosângela Gabriel

Abstract: If in one hand reading is a particular use of language, on the other, in order to

understand the cognitive aspects of reading, it is necessary to avoid extending inadvertently

the field of application of this object of study (MORAIS, 1996). While investigating reading,

it is necessary to investigate which cognitive and social aspects are specific to it, and which

are shared with oral verbal language, or yet with other languages, taking into account

processes of verbal and non-verbal meaning production. In this article, the elements strictly

related to the acquisition and process of reading are disentangle from the ones that are

shared with other language, especially with the oral language, seeking at identifying the

conscious and unconscious processes involved (DEHAENE, 2012; 2014). An accurate

definition of reading is necessary to support public policies and pedagogical intervention

based on the state of art of the studies on language, reading and cognition.

Keywords: Reading. Learning. Processing. Conscious and unconscious process. Education.

Título: ¿Cómo el milagro de la lectura es posible? Investigando procesos biológicos y

culturales de la emergencia de sentidos durante la lectura

Autora: Rosângela Gabriel

Resumen: Por una parte, si la lectura es una forma particular de usar el lenguaje verbal,

por otra, para comprender los aspectos cognitivos involucrados en la lectura, é necesario

evitar ampliar por inadvertencia el campo de aplicación de este objeto de estudio (MORAIS,

1996). Cuando investigando la lectura, cumple examinar que aspectos cognitivos y sociales

con específicos a ella y que aspectos son compartidos con la modalidad oral, o aún con los

demás lenguaje, considerando procesos de significación verbal y no verbal. Este artículo

distingue elementos que son intrínsecos al aprendizaje y procesamiento de la lectura, y

aspectos que son compartidos con los demás lenguajes, en especial con el lenguaje oral,

buscando identificar procesos conscientes e inconscientes involucrados (DEHAENE, 2012;

2014). Una definición de lectura y la explicitación de su modo de procesamiento son

necesarias para subsidiar el planeamiento de políticas públicas y acciones pedagógicas que

estén ancladas en los avances de los estudios neurocientíficos sobre lenguaje, lectura y

cognición.

Palabras-clave: Lectura. Aprendizaje. Procesamiento. Proceso consciente e inconsciente.

Educación.

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