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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO (PUC-SP) PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA Rosiney Isabel Bigatão A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DO PEÃO PANTANEIRO: A INSCRIÇÃO DA TV E DO RÁDIO NA CULTURA MESTIÇA DO PANTANAL DE MS MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA Orientação: JOSÉ AMÁLIO DE BRANCO PINHEIRO SÃO PAULO MARÇO/2010

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO E … Isabel Bigatao.p… · Presos à cintura, vão os inseparáveis facão e a chaina, o instrumento para amolar que deixa o corte

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO (PUC-SP)

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

Rosiney Isabel Bigatão

A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DO PEÃO PANTANEIRO:

A INSCRIÇÃO DA TV E DO RÁDIO NA CULTURA MESTIÇA DO

PANTANAL DE MS

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

Orientação: JOSÉ AMÁLIO DE BRANCO PINHEIRO

SÃO PAULO

MARÇO/2010

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO (PUC-SP)

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

Rosiney Isabel Bigatão

A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DO PEÃO PANTANEIRO:

A INSCRIÇÃO DA TV E DO RÁDIO NA CULTURA MESTIÇA DO

PANTANAL DE MS

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

Dissertação apresentada à Banca

Examinadora da Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo como exigência

parcial para obtenção do título de

MESTRE em Comunicação e Semiótica,

área de concentração: Signo e

Significação na mídia, linha de pesquisa:

Cultura e ambientes midiáticos, sob

orientação do Prof. Doutor José Amálio

de Branco Pinheiro.

SÃO PAULO

MARÇO/2010

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AGRADECIMENTOS

São muitos os agradecimentos. Muitos foram os que me ajudaram e incentivaram a

seguir em frente neste projeto. Pessoas tão importantes que, sem elas, o desenvolvimento e

término deste trabalho não teria se realizado.

Em primeiro lugar, gostaria de agradecer ao professor Amalio, pela prontidão com

que sempre me orientou, pelos caminhos apontados e pelo carinho com que fez tudo isto.

Sou grata também aos professos do Programa de Comunicação e Semiótica por terem me

guiado com informações preciosas e tão eficazes para o desenvolvimento do projeto. Aos

amigos que fiz nesta caminhada, pelo carinho e atenção. E não poderia deixar de agradecer

ao auxílio recebido da CAPES.

Agradeço especialmente ao meu filho, pela paciência e compreensão durante todo o

processo, aos meus pais e irmãos, por tudo o que são e pelo que me ensinaram, às minhas

irmãs, pela inspiração em buscar cada vez mais, ao Wander, pelo estímulo mesmo quando

não esteve por perto. Um agradecimento especial aos companheiros de profissão, Miloca,

Carmen, Sandra e todos aqueles que, além de entenderam o meu distanciamento no dia a

dia, tornaram possível a realização deste trabalho. Por fim, aos amigos queridos que me

estimularam a seguir em frente e superar os obstáculos.

Sou ainda eternamente grata aos peões pantaneiros por terem dividido comigo tanto

conhecimento e confiança. E também aos proprietários de fazendas que me possibilitaram

chegar até eles para que pudesse fazer esta pesquisa.

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RESUMO

A pesquisa tenta compreender como se dá a construção da imagem do peão

pantaneiro, aqui entendido como aquele que vive e trabalha no Pantanal. Para tanto, analisa

as interações da TV e do rádio com a cultura mestiça pantaneira: mestiça pela trama

relacional e conectiva dos modos como se estrutura o pensamento perante a confluência de

materiais em mosaico que não se enquadram nas análises feitas a partir do modelo binário

e de grande parte das teorias centro-ocidentais. Parte-se da hipótese de que, quando o

peão se veste e se prepara para a lida diária, ele usa roupas, acessórios, peças e objetos

que criam uma imagem na qual se refletem as várias incorporações que compõem a cultura

mestiça do lugar. Nessa imagem, estão presentes interações midiáticas entre índios,

bandeirantes, vaqueiros, espanhóis, paraguaios, negros e outras assimilações culturais mais

recentes, que acontecem principalmente a partir da TV e do rádio. Longe da internet e das

redes móveis – o Pantanal tem especificidades que limitam o uso desses aparatos –, ele se

aproxima do rádio, por meio do qual recebe recados como se fosse um e-mail sonoro, se

atualiza e se conecta. Com acesso restrito também à mídia impressa, tendo em vista o alto

índice de analfabetismo – praticamente todos os peões entrevistados eram analfabetos, os

que eram alfabetizados sabiam pouco mais que ler e escrever o nome e nenhum deles tinha

o hábito de leitura –, e com uma cultura oral por excelência, o peão também faz da TV um

importante veículo de comunicação, presente em praticamente todas as fazendas

pantaneiras. Esse panorama foi decisivo na escolha do corpus da pesquisa, formado pela

novela Pantanal, da Rede Manchete, gravada em 1990 e reprisada em 2008, por matérias

jornalísticas da Rede Matogrossense de Televisão, afiliada da Rede Globo, feitas

recentemente, e por um programa diário da Rádio Difusora Matogrossense, em Corumbá,

além das entrevistas gravadas com peões em um ano de viagens (2005) às fazendas do

Pantanal de Mato Grosso do Sul. Para a análise, foram usadas as teorias da semiótica da

cultura (Iuri Lotman, Paul Zumthor), da mestiçagem (Severo Sarduy, Serge Gruzinski,

Amálio Pinheiro, Viveiros de Castro, Nestor Garcia Canclini), da sociologia do conhecimento

(Boaventura de Sousa Santos), de pensadores (Edgar Morin) e estudiosos da comunicação

como Jesús Martín-Barbero, cujo trabalho ajudou a entender como se dão as relações entre

a mídia e o expectador.

Palavras-chaves: mestiçagem, Pantanal, peão pantaneiro, rádio, TV, semiótica da cultura.

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ABSTRACT

The survey attempts to grasp how the image of the Pantanal farm worker is built,

meaning he who lives and works in the Pantanal. For such, it analyzes the interactions

between TV and radio and the mestizo culture of the Pantanal: mestizo because of the

relational, connective plot by which the thinking is structured out in the face of a confluence

of mosaic-like materials that do not fit into analyses based on the binary model, or into most

Midwestern theories. The survey is based on the hypothesis that whenever the farm worker

gets dressed and prepares himself for his daily chores, he wears clothing, accessories, items

and objects that create an image reflective of the various incorporations that constitute the

mestizo culture of the place. Said image comprises media interactions between Indians,

Bandeirante colonizers, cowboys, Spaniards, Paraguayans, blacks, and other more recent

cultural assimilations that took place mainly with the advent of TV and radio. Far removed

from the internet and from mobile networks – the Pantanal has specific features that limit the

use of such apparatus –, he moves closer to the radio, from which he receives messages as

if they were audio e-mails, keeps himself updated, and becomes connected. Given his

restricted access to printed media as well, due to the high rate of illiteracy – virtually all of the

farm workers interviewed were illiterate, those who were literate knew little more than how to

read and write their names, and none had the habit of reading –, and a culture that is oral par

excellence, TV is as an important communication vehicle to the farm worker, one that is

present in nearly all of the Pantanal farms. This panorama was decisive for the choice of the

research corpus, which comprised the Pantanal soap opera, shot in 1990 and re-run in 2008

by the Manchete TV network, recent news stories by Rede Matogrossense de Televisão, a

TV channel affiliated with the Globo network, and a daily show on Rádio Difusora

Matogrossense, based in the city of Corumbá, as well as interviews recorded with farm

workers over the course of one year of trips (2005) to farms in the Pantanal of the state of

Mato Grosso do Sul. For analysis, we have used the theories of semiotics of culture (Iuri

Lotman), miscegenation (Severo Sarduy, Manuel Delgado, Serge Gruzinski, Amálio

Pinheiro), sociology of knowledge (Boaventura de Sousa Santos), and theories by thinkers

(Edgar Morin) and scholars in communication whose work helped us to understand how the

relations between media and the spectator take place.

Keywords: miscegenation, Pantanal, farm worker, radio, TV, semiotics of culture.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 6

CAPÍTULO 1

A MESTIÇAGEM NA CULTURA DO PANTANAL DE MS

1.1 - Traços de uma imagem – o peão na visão dele mesmo...................................... 10

- A cultura e os textos culturais do peão pantaneiro.................................................... 12

- O conceito de fronteira e a semiosfera Pantanal....................................................... 18

- Rodas de tereré......................................................................................................... 27

- Causos revelam os mitos pantaneiros....................................................................... 31

- O jeito do pantaneiro contar histórias....................................................................... 35

- Oralidade pantaneira: feita de memória e esquecimento.......................................... 38

1.2 - As especificidades do Pantanal: da inexistência ao Paraíso................................ 44

- A visão da mídia sobre o Pantanal........................................................................... 48

1.3 - As primeiras mestiçagens – o peão na visão do outro......................................... 55

- Os seres impressionantes do Pantanal....................................................................... 57

- O império da nação Guaykuru.................................................................................. 65

1.4 – A implantação das fazendas – novas mesclas culturais...................................... 67

CAPÍTULO 2

A INSCRIÇÃO DO RÁDIO NA CULTURA MESTIÇA DO PANTANAL

2.1 – Rádio: um meio e muitas mediações.................................................................. 78

- A onda da integração chega ao Pantanal.................................................................... 82

- Corumbá: cenário mestiço para as transmissões radiofônicas................................... 85

- Longe dos jornais e revistas, de ouvido colado no rádio........................................... 88

2.2 – Alô Pantanal: um canal direto para o homem pantaneiro.................................... 90

- Um tambor que sincroniza o tempo do ouvinte......................................................... 95

- Rádio - As ondas que criam vínculos........................................................................ 99

2.3 – No ar, a oralidade pantaneira.............................................................................. 104

- A renovação das tradições através do rádio............................................................. 112

- Mestiçagens pelo dial do rádio................................................................................. 116

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CAPÍTULO 3

AS INTERCORRÊNCIAS DA TV NA CULTURA PANTANEIRA

3.1 – A inserção da televisão no cotidiano pantaneiro............................................... 119

- Laços sociais e conexões a partir da TV.................................................................. 124

- A oralidade pantaneira frente à mediação televisiva................................................ 127

- O urbano e o rural na tela da televisão..................................................................... 130

- A chegada da TV ao Pantanal.................................................................................. 133

- O início da TV em Corumbá: uma matéria que não foi arquivada.......................... 138

- A consolidação das redes de TV: a Globo e a Matogrossense................................. 112

- A implantação do “padrão Globo de qualidade”..... ............................................... 146

- A regionalização da Globo por intermédio da afiliada em M.S.............................. 153

3.2 – O Pantanal na TV: a inserção do peão na tela.................................................... 156

- O olhar do telejornalismo sobre o peão e o Pantanal ............................................... 157

- Outras reportagens, a mesma forma de olhar........................................................... 166

3.3 – O peão na tela de todo o Brasil: a novela Pantanal........................................... 178

- Visibilidade para o peão pantaneiro ........................................................................ 181

- Mitos e lendas na tela da TV.................................................................................... 190

- A construção da imagem do peão pela telenovela................................................... 193

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 200

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................. 206

ANEXOS

Transcrição do Programa de rádio Alô Pantanal........................................................ 215

Transcrição das reportagens da TV Morena............................................................... 230

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INTRODUÇÃO

Bombacha ou jeans cobertos por calça de couro ornamentada com

margaridas1, botas ou botinas de couro, faixa colorida na cintura, sobre ela a

guaiaca2, também com muitas margaridas, e chapéu de feltro ou palha na cabeça.

Presos à cintura, vão os inseparáveis facão e a chaina, o instrumento para amolar

que deixa o corte da lâmina preciso. Quando a lida é distante ou longa, na cintura

desponta, ainda, o revólver. Quando não estão montados em seus cavalos para a

lida no campo, estão sentados em roda embaixo de um pé de árvore, como dizem,

ou no galpão. As rodas geralmente são regadas por histórias, que lá recebem o

nome de “causos”. Essas histórias tratam das narrativas diárias, de lendas, contos e

mitos e podem ser embaladas pelo som do violão e da sanfona. E de mão em mão

roda o tereré, bebida de erva-mate tomada com água fresca. A guampa, feita de

chifre de boi, onde se toma o tereré, vai pendurada com a traia3. Nas cavalgadas, o

peão não precisa descer do cavalo: com a guampa, a água é retirada da baía ou do

corixo4 que ele estiver atravessando. São considerados desbravadores, exímios

caçadores que enfrentam onças com lanças, verdadeiros heróis que lutam com

“unhas e dentes pra termos direito a um depois”, senhores das águas que conhecem

os caminhos das águas que “são como veias, serpentes (...) levando a água da vida

do fundo da terra ao coração do Brasil, gente que entende e que fala a língua das

plantas, dos bichos...”5.

É essa imagem que vai ser tratada nesta pesquisa. E nessa descrição rápida,

sintética, estão englobadas várias formas de ver e de relações midiáticas: partes da

descrição foram retiradas de cenas de ficção. Elas ajudam a compor uma imagem

que conquistou o coração dos brasileiros de norte a sul do País por intermédio dos

personagens Zé Leôncio, Tadeu, Zé Lucas de Nada, Joventino, Tibério e outros

peões durante as exibições da novela Pantanal (na primeira, em 1990, pela

1Enfeites de prata que imitam flores.

2Guaiaca (do quíchua huayaca, do espanhol guayaca) é um cinto largo de couro com bolsos para

pequenos objetos, enfeitado com flores de prata, chamadas de margaridas; para o pantaneiro, quantomais margaridas, mais “bem-sucedido” é o peão. É considerada parte do vestuário tradicional dopantaneiro e do gaúcho.3

Traia é o jeito popular de dizer tralha, o conjunto de equipamentos de montaria para o cavalo e ocavaleiro.4

Corixos e baías são formações aquáticas da época das cheias decorrentes da baixa declividade doterreno. Algumas não secam nunca e podem ter quilômetros de diâmetro. Podem ser de águasalgada – as chamadas salinas (ALMEIDA, 1959, p. 47).5

Trecho da música “Sagrado coração da Terra”, de Marcos Viana, da abertura da novela Pantanal.

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Manchete, a novela bateu a supremacia da Rede Globo, com mais de 40 pontos de

audiência6 – um marco na história da telenovela nacional –, e, na segunda, pelo

SBT, em 2008, chegou a ficar alguns minutos na liderança novamente, com 18

pontos, um recorde para a emissora no horário). São muitos os motivos que levaram

a novela a ter tanto sucesso, um deles é que ela conquistou o público com um

pedacinho de um país praticamente inexistente até então, “um Brasil rural, que se

refugiava envergonhado em uns poucos programas de música sertaneja de

televisões culturais ou locais” (BECKER; MACHADO, 2008, p. 45), um país com

outro sotaque, outros sons, outro ritmo de vida.

Peão Faustino sai para a lida no campo com revólver na cintura. Pantanal da Nhecolândia, 2005.

A imagem descrita cabe também na forma como o jornalismo da TV vê o

pantaneiro. Nas reportagens dos telejornais e outros formatos de programas de

notícias, as características da cultura que são valorizadas e destacadas são a

paixão pela lida no campo, o domínio do cavalo e o conhecimento sobre a natureza,

o gosto pela música e sonoridade que vêm dos países fronteiriços e a forma

contemplativa de ver o mundo, de pessoas que estão inteiramente em harmonia

com o meio em que vivem, consideradas por eles rústicas, selvagens, mas

detentoras de grande conhecimento sobre a natureza.

6Cada ponto equivale de 55 a 60 mil pontos de audiência, dependendo da região.

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Chapéu enfeitado por margaridas do peão Jonas. Pantanal da Nhecolândia, 2005.

A descrição do peão pantaneiro serve também para a imagem que ele tem

dele mesmo. Ela reúne os textos culturais produzidos a partir de mesclas que

começaram a se formar antes mesmo de o Pantanal ser denominado como tal e

ainda hoje estão em formação. Acredita-se que nela está expresso, de forma

sintética, fragmentária e emblemática, um caleidoscópio que reflete as relações

midiáticas entre índios, bandeirantes, vaqueiros, ibéricos, paraguaios, negros, norte-

americanos e tantas outras que foram e ainda hoje estão sendo feitas no Pantanal

de Mato Grosso do Sul. E entender esse quebra-cabeça, esse mosaico que se

expressa na imagem do peão pantaneiro, é o objetivo desta pesquisa: desvendar as

formas como seus encantos e desencantos foram construídos pela mídia e pelos

próprios peões e as mesclas culturais que incorpora.

Seria muita pretensão esmiuçar cada um dos elementos que a compõem: a

vestimenta, o jeito de falar, de andar, de se comportar, a riqueza da oralidade, pois

cada um deles mereceria – e merece – um aprofundado estudo que teria resultados

maravilhosos, com toda a certeza. Presunção maior seria, ainda, analisar os

complexos mecanismos de produção, mediação e recepção das mídias TV e rádio

em toda a sua extensão. O que se pretende, talvez ainda marcado pela presunção,

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é fazer um mapeamento7 da cultura pantaneira a partir dos textos culturais

produzidos pelo peão pantaneiro. E fazer esse mapeamento é um exercício que

passa pela compreensão das relações midiáticas entre o peão pantaneiro, a TV e o

rádio.

Comitiva atravessa corixo em época de cheia. Pantanal da Nhecolândia, 2005.

Em uma de suas obras (Livro de pré-coisas), o poeta mato-grossense Manoel

de Barros diz: “Este livro não é um livro sobre o Pantanal. Seria antes uma

anunciação, enunciados como que constativos. Manchas. Nódoas de imagens.

Festejos de linguagens...” (1985, p. 13). Longe de qualquer pretensão poética, usou-

se a poesia dele como inspiração para, diante de temas tão amplos quanto a

imagem do peão pantaneiro e a cultura do Pantanal, dizer que esta pesquisa é, de

fato, apenas uma “anunciação, enunciados como que constativos” sobre o que se

quer abordar. Por mais que se faça recortes, por mais que se delimite o tema ou a

área em estudo, sempre surge uma borda querendo ganhar mais espaço ou uma

fresta apontando outras luzes, outras direções e sentidos. E a vontade que se tem é

de segui-las, tal o encantamento e a riqueza de possibilidades que elas suscitam. E

7Agradeço à professora Jerusa Pires Ferreira por indicar esse caminho, o de um mapeamento

cultural, que acabei trilhando na pesquisa.

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é nesse sentido que esta pesquisa é um mapeamento sobre a cultura do Pantanal

de Mato Grosso do Sul a partir dos textos culturais do peão pantaneiro.

Peão pantaneiro conduz gado para leilão, em época da seca. Pantanal do Paiaguás, 2005.

Parte-se do pressuposto que, antes de analisar como o peão pantaneiro é

visto pela mídia e como ele se vê, é preciso entender quem ele é, os textos culturais

que produz e o contexto cultural em que está inserido. Por isso, no primeiro capítulo,

buscaram-se dados históricos, sociais, antropológicos e culturais para esse

entendimento. Os conceitos de cultura são discutidos, principalmente, a partir de

teóricos da semiótica da cultura como Iuri Lotman, da cultura oral como Paul

Zumthor, da sociologia do conhecimento como Boaventura de Souza Santos,

estudiosos como Edgar Morin, Severo Sarduy, Néstor Canclini, Amálio Pinheiro,

Michel Certeau, além de outros pesquisadores e estudiosos como o historiador

Serge Gruzinski e os antropólogos Lévi-Strauss e Viveiros de Castro.

Como se verá no capítulo 1, a cultura do pantaneiro é essencialmente oral.

Por isso, para a compreensão de como se dá a construção da imagem do peão

pantaneiro, acredita-se ser fundamental incluir na pesquisa a mídia rádio, já que ela

é a mais acessada por ele. O programa Alô Pantanal, da rádio Difusora

Matogrossense, em Corumbá, no Mato Grosso do Sul, foi incluído no corpus da

pesquisa e é discutido no capítulo 2. O programa é feito para o homem que vive na

área rural de Corumbá, cidade considerada a capital do Pantanal, e é pioneiro na

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região – está no ar há quase quarenta anos. É um programa de avisos, como se

fossem recados transmitidos em rede, e funciona como interlocução direta entre

quem está na cidade e aqueles que estão no Pantanal. Ao cumprir o papel de

correio virtual aberto ao público, também funciona como espelho, refletindo o que ele

pensa, seus problemas, suas práticas diárias, seus costumes, enfim, sua cultura.

Além dos autores já citados, foram utilizadas para a análise as teorias de Jesús

Martín-Barbero, um dos principais estudiosos da comunicação da América Latina.

Os estudos sobre rádio foram feitos também a partir de teóricos que discutem mídia,

comunicação, recepção e relações midiáticas, como Harry Pross, Norval Baitello

Junior, entre outros pesquisadores.

No capítulo 3, discutiu-se a mídia TV, não isoladamente, mas considerando

suas interações com a cultura do peão pantaneiro. Trata-se, portanto, de um estudo

de mediação. A maneira como a televisão se insere no universo pantaneiro, como o

peão assiste TV e as interações midiáticas que acontecem a partir dela. Por meio de

reportagens recentes feitas e transmitidas pela Rede Matogrossense de Televisão

(RMT), afiliada da Rede Globo, é analisado como a mídia vê o peão pantaneiro.

Para maior compreensão das matérias, estudou-se como se deu a formação da rede

regional, a implantação do “padrão Globo de qualidade” e a conquista de espaço na

grade da programação nacional para a produção local. As cinco matérias

investigadas foram escolhidas pela própria equipe da emissora, atendendo ao

pedido de reportagens que mostrassem aspectos da cultura do peão pantaneiro.

A novela Pantanal também foi incluída no corpus da pesquisa, em virtude não

só da importância que teve para a história da teledramaturgia brasileira, mas

também por ter despertado a atenção da mídia para a existência do pantaneiro – a

partir da novela, ele foi inserido na paisagem. O cronista Abílio de Barros (1998)

afirma que eles, pantaneiros, não estavam inclusos. Ao colocar o Brasil rural em

evidência, evidenciou também o homem que vive no Pantanal, mostrando, de forma

ficcional, como ele se veste, que música ouve e produz, entre outros costumes. E a

partir desse repertório, analisou-se até que ponto a imagem ficcional, criada a partir

da imagem real, passa a ser um modelo de inspiração para o peão pantaneiro. Para

análise dessas mediações, foram retomadas algumas das principais reflexões sobre

mídia televisiva, mediação, semiótica da cultura e estudos recentes sobre práticas

cotidianas.

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Filho de peão pantaneiro que quer seguir a profissão do pai. Pantanal da Nhecolândia, 2005.

A visão que o peão pantaneiro tem dele mesmo será analisada por meio das

entrevistas realizadas durante o ano de 2005 em viagens feitas ao Pantanal do Mato

Grosso do Sul em janeiro (Pantanal do Aquidauana, fazenda Aguapé), de 5 a 12 de

fevereiro (Pantanal da Nhecolândia, fazendas Corixão e Baía das Pedras), 16 a 19

de março (Pantanal da Nhecolândia, fazenda Rio Negro), maio (Pantanal da

Nhecolândia, fazendas Fazendinha e Tupasseretã), 9 a 13 de junho (Pantanal do

Paiaguás e Nhecolândia, Porto Rolon), 16 a 18 de junho (Pantanal da Nhecolândia,

fazenda Nhumirim), 18 a 25 de junho (Pantanal da Nhecolândia, fazendas Firme,

Curva do Leque, Porto da Manga, Leilão da Curva do Leque), além de outras

realizadas em 2008 e 2009 para Corumbá, Aquidauana e Campo Grande. Também

serão utilizadas teses e pesquisas que abordam o homem e a cultura pantaneira,

como os trabalhos de Frederico Augusto Garcia Fernandes, Álvaro Banducci Junior,

Ricardo Pierreti Câmara, Cristina Campos, Mário Cezar Silva Leite e Wilson Corrêa

da Fonseca Júnior.

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Peões da comitiva do seu Beto atravessam campo. Pantanal da Nhecolândia, 2005.

Algumas considerações sobre o peão pantaneiro e o Pantanal

Cabem aqui algumas considerações importantes. A primeira, sobre o lugar a

que o presente trabalho se refere: o Pantanal de Mato Grosso do Sul, grafado com

maiúscula por ter características únicas no mundo e reconhecido pela Unesco como

patrimônio natural da humanidade. Mas não se trata de toda a área. Considerando a

divisão feita pela Embrapa Pantanal8, a pesquisa de campo foi realizada

principalmente nas fazendas localizadas no pantanal da Nhecolândia ou de suas

proximidades, e a maior parte fica no município de Corumbá. Ao acompanhar as

comitivas, a pesquisadora foi levada para outros pantanais, como o do Nabileque e

Paiaguás. Alguns peões levaram-na ainda para os pantanais de Aquidauana e

Abobral. Apesar de pouco marcantes, as diferenças geoambientais entre eles

acabam gerando também algumas especificidades no modo de vida e na cultura

local – nas áreas pesquisadas, foi percebido muito pouco vínculo com a pesca, por

8O Pantanal tem 138.183 km

2de área e é dividido em 11 pantanais, cada um com características

próprias de solo, vegetação e clima: Cáceres, Poconé, Barão de Melgaço, Paraguai, Paiaguás,Nhecolândia, Abobral, Aquidauana, Miranda, Nabileque e Porto Murtinho. Informações extraídas dosite: www.cpap.embrapa.br/, pesquisado em 5/1/2009.

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exemplo, característica que pode ser percebida e é mais forte entre moradores dos

pantanais do norte do estado. Há diferenças também no contato com as cidades do

entorno – muito frequente no Pantanal da Nhecolândia, porém menos frequente nos

de acesso mais difícil, como o do Paiaguás. Lá, foram contatadas crianças de 10

anos que nunca tinham ido à cidade.

É importante também ressaltar a diferenciação entre os termos “pantaneiro” e

“vaqueiro”. Esse último é considerado o peão que trabalha no Pantanal, mas não

tem vínculos trabalhistas efetivos9. O termo é usado em outras regiões, como em

Minas, no Nordeste e outras regiões pelo interior do País. O termo pantaneiro é

usado de forma genérica para todos que nasceram ou vivem no Pantanal. Assim,

todo fazendeiro com propriedade no Pantanal é um pantaneiro. Muitos proprietários,

evidentemente, são peões, mas, por manterem outra relação com o Pantanal e sua

cultura, eles não foram incluídos na pesquisa. Neste trabalho, adotou-se a

expressão “peão pantaneiro”, e este foi definido como aquele que vive e/ou trabalha

no Pantanal. Do espanhol platino, peón, o termo “peão” significa “o amansador de

cavalos, burros e bestas, o condutor de tropas” (FERREIRA, 1986). A definição é

incompleta para o peão pantaneiro, pois ele tem muitas outras atividades, divididas

entre o ciclo das cheias e da seca. Mais recentemente, também alterna a pecuária

com o turismo. Uma definição mais completa vem de Guimarães Rosa: peão

pantaneiro, no personagem do vaqueiro Mariano, é aquele que é “trivial na destreza

e no tino, convivente honesto com o perigo, homem entre o boi xucro e permanentes

verdes: um ‘peão’, o vaqueiro sem vara do Pantanal” (2001, p. 120).

9Segundo Banducci Jr. (2000, p. 7), o vaqueiro é um trabalhador rural que não possui ligação

imediata com a terra, cuja posse desconhece, mas no Pantanal desenvolve fortes relações deproximidade e identidade com seu espaço como um todo.

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CAPÍTULO 1

A MESTIÇAGEM NA CULTURA DO PANTANAL DE MS

1.1 Traços de uma imagem – o peão na visão dele mesmo

Já aprendi um pouco as coisas,que a gente morre sem aprender todas as

coisas (...)hoje em dia um rapaz novo chega aí

e fala coisas que eu nunca tinha vistoe eu faço coisas que ele não sabia,

então aprende de mim (...)A gente aprende do outro...

(Seu Alonso, Pantanal do Aquidauana, 2005)

Jonas toma mate e Claudete prepara carreteiro. Pantanal da Nhecolândia, 2005.

Quatro e meia da manhã, ou da madrugada, como se diz no Pantanal. Ainda

é noite escura e Jonas tateia ao lado da cama para achar a lanterna. Não adianta

tentar acender a luz: o motor que gera energia na fazenda, movido a óleo diesel, só

vai ser ligado às seis. Nesse horário, Jonas já vai estar em plena atividade no

campo. Com a ajuda da lanterna e de lamparinas, ele se prepara. Na hora de se

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vestir, não faltam a calça de couro, a faixa enrolada na cintura, a guaiaca, o chapéu

de palha e o facão. Mas antes de sair ele vai tomar mate (quente), também chamado

de chimarrão, enquanto a mulher, Claudete, prepara o arroz carreteiro para o

quebra-torto, como é chamado o café da manhã pantaneiro, uma refeição que, além

do arroz, é reforçada com ovo frito e farofa.

No galpão, com outros peões, ele termina os preparativos para o dia de lida

no campo. Os cavalos foram reunidos por outro peão e vão ser encilhados ali.

Agrupada no galpão, está a traia – cada peão tem e cuida da sua. A do Jonas é

caprichada: buçal10, freio e outros apetrechos que vão na cabeça do cavalo, a

chincha (peças que prendem o arreio), a peiteira (artefato cheio de argolas que

enfeita o peito do animal), o maneador, o laço, enfim, tudo o que ele vai precisar

para cavalgar e manejar o gado. A maior parte da traia é de couro e foi feita por ele.

Na traia vão os apetrechos para o tereré e, se o trajeto é longo, uma matula11. Nos

dias de muito calor e em época de cheia, o tereré vai sendo tomado pelo caminho,

sem que o peão desça do cavalo. Mas ele é presença certa nos intervalos criados

entre uma atividade e outra e no final do dia, geralmente sob uma árvore perto do

galpão. Os peões vão chegando, soltam os animais e formam uma roda. Ali rodam

histórias, causos12, moda de viola – o que cada componente trouxer. As mulheres

raramente participam das rodas dos peões. Fazem as suas, com duas, três

mulheres, pois geralmente estão em menor número nas fazendas. As casadas que

não trabalham como cozinheiras ou em outros serviços domésticos na fazenda ficam

em suas casas, que nem sempre são perto umas da outras. Depois que Jonas sai

para a lida, a mulher dele revela13:

Tem peão que não tem nada na traia, aí cê olha assim, é aquelepeão sem graça, parece que não tem nada, aí cê vê um peão comuma traia bem bonita, bem argolada, uma calça de couro cheia demargarida, né, a guaiaca cheia de fivela, aquilo tudo já levantaaquele peão. Às vezes a pessoa fala assim “sou peão”, porque vestiuuma calça de couro e um chapéu na cabeça e fala que é um peão!(Faz gesto de negação com a cabeça) Eu tenho orgulho de sermulher do peão Jonas, porque ele é um peão exemplar.

10Nomenclatura recolhida em pesquisa de campo e do Glossário Pantaneiro, da Sodepan.

11Matula, o lanche do pantaneiro, geralmente é uma farofa com carne seca.

12Causos são os casos pantaneiros.

13Entrevista com Claudete, mulher de peão, gravada pela autora no Pantanal da Nhecolândia.

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Jonas no galpão dos peões. Fazenda Fazendinha, Pantanal da Nhecolândia, 2005.

O relato mostra dois aspectos relevantes para a análise: a cultura, expressa

no episódio pelo vestuário, pelos objetos e artefatos de uso diário, pelos hábitos e

pela comida; e a imagem que o peão pantaneiro tem dele mesmo – relatada por ela:

ser peão não é vestir “uma calça de couro e um chapéu”. Mas, para analisar como

se constrói essa imagem14, é preciso, antes, entender e contextualizar como se deu

a formação cultural. Um caminho que passa pelo entendimento do termo “cultura”15.

A cultura e os textos culturais do peão pantaneiro

Na tentativa de vencer a morte, o homem inventou o símbolo16. E desde

então, deixando marcas nas paredes das cavernas, escrevendo, pintando, falando,

teatralizando, vestindo-se, criando objetos, gesticulando, dançando, enfim, nas mais

variadas formas, meios e suportes, inscreve sua cultura. Para Morin, cultura é o

(...) conjunto de hábitos, costumes, práticas, savoir-faire, saberes,regras, normas, interdições, estratégias, crenças, ideias, valores,

14Imagem aqui se refere ao sentido mais abrangente da palavra, e não apenas no seu sentido estrito.

15Gruzinski (2001, p. 51) aponta para o desgaste do termo, mas, acredita-se, é o mais adequado

para o sentido que se quer expressar aqui.16

“Os símbolos vivem mais que os homens”, afirmação de Harry Pross (apud BAITELLO, 2006, p. 8).

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mitos, ritos, que se perpetua de geração em geração, reproduz-seem cada indivíduo, gera e regenera a complexidade social (2005, p.61).

As relações entre o homem e o meio que o cerca, englobando aí outros seres,

os processos e objetos imateriais, também fazem parte do conceito de cultura do

russo Iuri Lotman (1979, p. 31): um “conjunto de informações não hereditárias, que

as diversas coletividades da sociedade humana acumula, conserva e transmite”.

Como conjunto de informações, um sistema semiótico, portanto, que coordena as

atividades inerentes a ele.

Cultura não é simplesmente um depósito de informações, mas um conjunto

complexo que recebe as coisas novas, codifica e decodifica mensagens, traduzindo-

as para um sistema de signos. Assim, ela se apresenta como uma estrutura de

códigos diversificada e de grande complexidade organizada em unidades menores,

os textos culturais. “Um texto tem um início, um fim e uma organização interna

definida. E ela é inerente, por definição, a qualquer texto. Um amontoado amorfo de

signos não é um texto” (LUCID apud CAMPELO, 1997, p. 15).

Baitello Jr. (1999, p. 28) define, a partir das noções de vários semioticistas,

que textos da cultura não são formados “apenas por construções da linguagem

verbal, mas também pelas imagens, mitos rituais, jogos, gestos, cantos, ritmos,

performances...”. Cultura, para Paz (1991, p. 118), “não somente é material (coisas)

e institucional (estruturas sociais) como é um signo (ideia, conceito)”. E, para ele, só

é possível entender a cultura de uma sociedade se houver compreensão da sua

linguagem.

Pode-se considerar então que os textos culturais do peão pantaneiro são o

que ele expressa por meio da sua vestimenta, do seu comportamento, da sua

oralidade, incluindo a literatura oral com seus causos, lendas e mitos, do linguajar,

da música e da dança, dos seus ritos e crenças, dos objetos que cria e usa, enfim,

são as expressões que marcam sua trajetória no tempo e no espaço. São textos que

passam essencialmente pelo corpo. É por meio do corpo que o indivíduo se

relaciona. Corpo aqui é visto como um todo que extrapola o conceito de “corpo

biológico”, físico. Segundo o antropólogo José Carlos Rodrigues (2006, p. 209), o

“corpo humano não tem dois lados – um fixo e biológico, outro variável e cultural –

mas apenas um. Consequentemente, a cada cultura corresponde uma corporeidade

própria”. Por meio do corpo, o mapa traçado pela cultura sai da abstração e ganha

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materialidade, fica impregnado nas pessoas, nos seus gestos, na língua oral, no

vestuário, na postura, em suas expressões (CAMPELO, 1997, p. 40). Mas nem todo

texto é um texto cultural.

Para uma dada mensagem ser considerada um texto, ela deve estarcodificada, no mínimo, duas vezes (...) constituindo no primeiro casouma cadeia de signos com diversos significados e, no segundo,certo signo complexo com um único significado (LOTMAN, 1996, p.78).

Viu-se que, como partes integrantes de um sistema de informação e como

unidade mínima da cultura, os textos têm códigos que permitem que cada um seja

analisado individualmente ou pelo seu conjunto, com determinado conjunto de

códigos. Eles, por sua vez, são os intermediários comuns entre o emissor e o

receptor da informação. E, se cada tipo de cultura representa uma hierarquia de

códigos extremamente complexa e os textos culturais, por sua vez, têm grande

mobilidade semântica, tem-se aí uma particularidade: “um mesmo texto pode

fornecer a seus diferentes ‘consumidores’ informações diferentes” (LOTMAN, 1979,

p. 35).

Jonas corta tira de couro para trançar laço. Pantanal da Nhecolândia, 2005.

Um laço de couro, por exemplo, pode ser apenas um instrumento de trabalho,

comprado em uma loja, feito de diversos materiais, naturais ou sintéticos, ou ser um

artefato que guarda, pela maneira como o animal foi morto, o couro retirado, curtido,

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cortado e trançado, técnicas e aprendizados acumulados e aperfeiçoados ao longo

dos anos. É difícil precisar a data exata e quem introduziu esse conhecimento no

Pantanal.

A utilização de peles de animais parece ser tão antiga quanto o próprio

homem – foi uma das primeiras matérias-primas usadas por ele para se agasalhar.

Foi usado para a escrita, para confecção de armas, entre outros fins – os registros

históricos apontam o uso e o desenvolvimento de técnicas para curtir e conservar o

couro a partir de 3000 a.C. e até Homero elogia um hábil curtidor de couro em

Odisseia: “Um belo couro de boi, onde muita gordura preserva. Graças ao esforço de

tantos, que a pele bem tensa alfim chegou...” (GOULART, 1966, p. 13).

Peão prepara couro para curtir. Pantanal da Nhecolândia, 2005

Os incas, os árabes, os espanhóis, os portugueses – todos os povos que,

direta ou indiretamente, tiveram contato com os primeiros habitantes do Pantanal –,

tinham algum conhecimento sobre o assunto. Os próprios índios também o tinham –

vários artefatos indígenas das tribos que habitavam a região do Pantanal eram feitos

em couro17. Historiadores registram que os Guaykuru – índios que dominaram o

Pantanal e outras tribos da região por quase dois séculos – usavam laços de couro

compridos para laçar e prender o inimigo, e Carlos Lázaro Ávila (apud COSTA,

17Podem ser vistas peças feitas por índios Bororo no acervo do Museu da Cultura Dom Bosco, em

Campo Grande.

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1999, p. 51) afirma que, quando eles começaram a montar, passaram a vestir

também corseletes de couro.

A questão sobre a forma como o couro se insere na vestimenta, nos artefatos

e nas tradições do peão pantaneiro aponta para uma característica dos textos

culturais dele: a forte presença do hibridismo ou mestiçagem – conceitos, aliás, que

estão se tornando uma marca da cultura latino-americana (PINHEIRO, 2006, p. 39).

Mestiçagem aqui não se refere apenas ao conceito de mistura racial, que de fato

aconteceu não só no Pantanal, como em todo o continente sul-americano, mas a

modos de estruturação do pensamento. Para Gruzinsky (2001, p. 42), historiador

francês que analisa em O pensamento mestiço o processo de formação cultural do

México, mestiçagem é “misturar, mesclar, amalgamar, cruzar, interpenetrar,

superpor, justapor, imbricar, colar, fundir, etc.”, e essas palavras todas trazem “a

imprecisão das descrições e a indefinição do pensamento”. Canclini usa tanto o

termo “mestiçagem” quanto “hibridação”. Prefere o último, por achá-lo mais atraente

para traduzir as mestiçagens, sincretismos, fusões e outras palavras que possam ser

usadas para designar as misturas. E define hibridação como os “processos

socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma

separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas” (CANCLINI,

2008, p. XIX).

Tendo como base essas teorias, pode-se voltar à descrição inicial e dizer que,

quando Jonas se veste e se prepara para a lida de todo dia, não está simplesmente

usando roupas, objetos e acessórios que fazem parte do seu instrumental, da sua

traia; quando toma o mate e o café da manhã; quando se reúne com os outros

peões para tomar tereré, relatar causos ou cantar; e em vários outros modos de

expressão do cotidiano, está também acessando códigos que fazem parte de um

todo, da totalidade da cultura do Pantanal – uma cultura mestiça por excelência.

Para Pinheiro (2006, p. 10), o termo mestiço engloba aqueles que “acarretam, pela

confluência de materiais em mosaico, bordado e labirinto, outros métodos e modos

de organização do pensamento”.

Mestiços ou híbridos, esses modos de estruturação do pensamento estão

expressos no vestuário, no jeito de falar, cantar e contar causos, nos costumes,

enfim, nos textos culturais do peão pantaneiro. Textos formados pela incorporação

das culturas paraguaias, indígenas, espanholas, dos bandeirantes, incas, e tantas

outras que estão presentes na imagem dele. Uma não foi abandonada para ceder

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lugar à outra, mas elas interagem, coexistem, renovam-se. Apesar de terem

começado a se formar antes mesmo da chegada do europeu ao continente

americano18, ainda hoje estão fortemente entrelaçadas em sua cultura e na imagem

que se forma a partir dela.

Não é um caso isolado nem novo – praticamente toda a América Latina é

mestiça, de origem. A partir do conceito de cultura como sistemas simbólicos e de

sociedade como uma estrutura complexa (um sistema de estruturas), Paz (1991)

defende que as sociedades modernas são extremamente complexas e, dentro de

cada uma delas, há diversas culturas e sociedades, e essa pluralidade é maior nos

países para onde confluíram diversas civilizações. E os países da América Latina

estão entre eles: “As épocas históricas e as diversas culturas que formaram nosso

país convivem na alma dos mexicanos e dentro de cada um de nós discutem,

brigam, se fundem e confundem” (PAZ, 1991, p. 122). Depois de analisar as

relações entre tradição, modernismo cultural e modernização socioeconômica na

América Latina, o estudioso argentino Canclini conclui, em seu trabalho Culturas

híbridas, que “hoje todas as culturas são de fronteira” (2008, p. 348).

Depois de levar gado pelo Pantanal, peão chega a Corumbá. A casa mistura elementos urbanos erurais. 2005.

18A pluralidade de culturas e de tempos históricos é ainda maior quando se pensa em países onde

confluíram diversas civilizações, como é o caso da Espanha (PAZ, 1991, p. 121).

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O conceito de fronteira e a semiosfera Pantanal

Para entender como se dá esse hibridismo, é preciso compreender o conceito

de fronteira citado por Canclini (2008) e proposto por Lotman, pois é por meio dessa

fronteira que os textos culturais se mesclam. A fronteira faz parte da semiosfera19,

um grande sistema no qual estão inseridos os textos culturais – eles constituem um

continuum ocupado por formações semióticas de diversos tipos e que se encontram

em diversos níveis de organização. Esse continuum é marcado por intervalos

chamados de fronteira, espécie de “tradutores – filtros – bilíngues, por meio dos

quais um texto se traduz em outra linguagem (ou linguagens) que se acha fora da

semiosfera dada” (LOTMAN, 1996, p. 24). Por meio dela, segundo o autor, acontece

a semiose20 – a produção de significados –, os sistemas de signos se proliferam,

novos dados passam a fazer parte dos textos culturais.

Sem a existência da semiosfera “a linguagem não só não funciona como

tampouco existe” (LOTMAN, 1996, p. 35). Ela é, portanto, a condição para a

existência e o desenvolvimento da cultura. E é pelo mecanismo de tradução inerente

ao texto que acontecem as mestiçagens e hibridações em determinada sociedade,

pois a fronteira possibilita as correlações dinâmicas entre os elementos que

compõem a semiosfera e o meio externo. Assim, o homem vai inscrevendo textos e

subtextos, os vários ladrilhos que vão compor o “texto maior”, o edifício da

semiosfera. Os pequenos ladrilhos são os textos culturais que organizam a

totalidade da cultura, e nessa visão cultura é “um sistema de signos que organiza de

um modo, e não de outro, as informações que recebe” (FERREIRA, 2004, p. 74).

Para exemplificar, Lotman (1996, p. 30) descreve a semiosfera como um

“museu” onde

(...) estão expostos objetos de diferentes séculos, inscrições emlínguas conhecidas e desconhecidas, instruções para odeciframento, um texto esclarecedor redigido pelos museólogos,guia com os roteiros para o trajeto de visitações e as regras deconduta para os visitantes. Se colocarmos ali, também os própriosvisitantes, cada qual com seu mundo semiótico, obteremos algoque lembrará um quadro da semiosfera.

19Para Morin (2002), esse universo simbólico é chamado de “segunda existência” e para Bystrina

(1995), de “segunda realidade”.20

Para Santaella e Nöth (2001), semiose é a interpretação de signos por um intérprete. E indicam adefinição de Morris (1938, p.13, apud SANTAELLA E NOTH, 2004, p. 171): “o processo pelo qualalgo funciona como um signo”.

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Usando o exemplo do Lotman, pode-se inferir o Pantanal como uma

semiosfera onde vários textos culturais, de várias fontes, de várias épocas, foram e

estão se misturando e se expressam por meio das linguagens do peão pantaneiro.

Ali, entre as paisagens encantadoras que emolduram as vitrines desse “museu”,

estão os sons da sanfona e da viola que misturam acordes do Paraguai, da

Argentina e da música de Mato Grosso do Sul, que por sua vez recebe múltiplas

contribuições de estilos21; está o peão vestido com calça de couro sobre jeans ou

bombacha, faixa paraguaia, chapéu de carandá ou de feltro, botina de couro ou

descalço, facão e guaiaca na cintura – na vestimenta dele vários elementos estão

misturados: a faixa paraguaia é tecida em fios de algodão, larga e colorida, dá voltas

na cintura:

Faixa eu uso desde pequenino porque protege muito as costas,cadeiras, tem que usar isto aqui. O pantaneiro mesmo usa faixa eguaiaca, é sistema pantaneiro, com muita fivela. (Mostra o facão.) Àsvezes vai entrar na mata fechada, aí usa isso aqui, pra fazerpicada22.

Peão carneando uma vaca. Detalhe do cinto com margaridas, guaiaca, relógio de pulso e faixaparaguaia.

21Um exemplo dessa mistura está no documentário Terra das Águas (BIGATÃO, 2007): é “Chamamé

do Picolé”, música instrumental de Hélio Martins, peão da fazenda Rio Negro, apelidado de Picolé.22

Seu Alonso, peão de origem paraguaia, entrevistado pela autora no Pantanal de Aquidauana.

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A calça de couro é uma mistura das tradições espanholas e indígenas, e a

guaiaca, citada na introdução deste trabalho, também tem origem espanhola e

indígena. O facão preso à cintura vem do contato com os espanhóis e, estes, por

sua vez, adquiriram a prática na milícia das Índias, bem antes de cruzarem o

Pantanal (HOLANDA, 1986, p. 51). O chapéu de carandá é considerado “autêntico”

pelos pantaneiros, tradição herdada dos índios da região, e o de feltro, veio com os

mascates, principalmente de Minas Gerais23. E ainda segundo seu Alonso, com

chapéu de feltro na mão: “Esse aqui é quando chove muito, carandá não aguenta.

Se não tem capa boa, molha tudo, então, chapéu de feltro. E aqui tem uma pala,

tempo de frio, é lã pura”.

A pala, também chamada de poncho, do quíchua punchu, é uma manta com

uma abertura para passar a cabeça que cobre praticamente a pessoa do pescoço

aos pés e é comum na vestimenta no sul brasileiro e em vários países da América

do Sul24. O uso do poncho pelos índios que habitavam o Pantanal é apontado por

Holanda (1986, p. 47), ao descrever a forma como os índios se vestiam no inverno,

época em que o vento frio corta a região: “até o impávido guaicuru se amedronta

quando ele vem, cobrindo-se da cabeça aos pés com mantos de peles de bichos”.

Camisetas, bonés, havaianas e relógio de pulso são elementos mais recentes, que

vieram com a TV, o turismo, os diaristas que vão trabalhar no Pantanal e o próprio

vai e vem dos peões pantaneiros entre as fazendas e cidades do entorno

(BANDUCCI JR., 2000, p. 74).

Roda de tereré No primeiro plano, em pé, à direita, peão com faixa paraguaia na cintura. 2005.

23Os mascates circularam no Pantanal a partir de 1920, primeiro em burros, depois em jeeps e até

em aviões (BARROS, 1998). Além do chapéu, introduziram o jeans e a botina.24

Fonte: site http://educaterra.com.br/voltaire/brasil/2009/09/12/002.htm. Acessado em: 5/4/2009.

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Enfim, em um ambiente cheio de especificidades, mesclaram-se e ainda se

mesclam textos culturais das mais variadas origens e épocas. Alguns já vinham

mesclados dos seus lugares de origem, como os espanhóis que cruzaram as terras

pantaneiras – ou suas águas – em busca de riquezas, como se verá com mais

detalhes na sequência. Antes de os espanhóis virem para as “novas terras

descobertas”, a península Ibérica já tinha incorporado tecnologias e modos de viver

característicos dos árabes. E mesmo aqui no continente, alguns espanhóis

estiveram no México em expedições anteriores e lá tiveram contato com outras

culturas. Os índios de tribos diferentes também trocavam entre si. O peão

pantaneiro, mesmo aquele que está acostumado ao trânsito entre a cidade e a

fazenda, com incorporações mais recentes como um aparelho celular no meio da

traia, ainda mantém um vínculo muito estreito com a traia que compõe a sua

imagem há mais de duzentos anos. É por causa de mesclas assim que o estudioso

Canclini (2008, p. 348) acredita que na América Latina todas as culturas são de

fronteira:

Todas as artes se desenvolvem em relação às outras artes: oartesanato migra do campo para a cidade; os filmes, os vídeos ecanções que narram acontecimentos de um povo sãointercambiados com outros. Assim as culturas perdem a relaçãoexclusiva com seu território, mas ganham em comunicação econhecimento.

A afirmação de Canclini (2008) fica clara no depoimento de seu Alonso, peão

pantaneiro conhecido por Paraguaio, antigo domador de cavalos que hoje trabalha

com turismo, gravado em 2005 no Pantanal do Aquidauana:

Ta vindo muita gente estrangeira porque antigamente não tinhapousada no Mato Grosso. Pousada mais velha deve ta com 20 ano.Aqui mesmo ta com 14, 15 ano que começou. (...) Naquele tempoera difícil carro (...) condução nossa era cavalo, carreta de boi, nóstrazia compra de Aquidauana e Taunay, ia com duas, três carreta epuxava sal pras fazenda e, quando via que ia encher, já traziacompra pra até quatro meses, antes de chegar a chuva, hoje emdia é tudo moderno, já tem carro moderno que varre o barro.

Para os peões, essa troca – perder a relação exclusiva com o território e

ganhar em conhecimento e comunicação – nem sempre é considerada como

“ganho”. Por exemplo, no Pantanal, saber ou não trançar o couro é um dos aspectos

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do que é, para eles, ser ou não pantaneiro, como se observa nos depoimentos a

seguir:

O bom peão pantaneiro tem que aprendê com os mais velho, vercomo ele faz, aprendê a fazê um laço, fazê um chicote, como esseaqui. Vai pegá um peão lá da cidade e traz ele aqui, ele munta acavalo, mas não sabe fazê traia.

(...) vai puxando, esse aqui é o laço da cruz, laço de oito, cadaoitinho desses tem que puxá, então arde a cadeira da gente pratrançá (...) o melhor é assim, dia de chuva, ele assenta melhor, setiver duro, fica um mais alto que o outro (...). Um laço bem feito eletem valor pra nóis, tem que ser firme, a senhora joga e vai longe,os mais novo, hoje em dia, não têm interesse, prefere comprá doque fazê (...).

Peões Márcio e Vandir trançam o couro para fazer laço. Fazenda Nhumirim, 2005.

Fica evidente a sensação de pertencimento que vem da cultura – é por meio

dela que o indivíduo pode se conectar ou não com algo maior, se identificar com os

outros e com o lugar em que vive. Porém, na visão ocidental, esse conceito pode

mascarar as mesclas que surgem a partir das conexões, pois geralmente a cultura

de determinada sociedade é definida por uma série de traços estáveis, invariantes –

como o saber fazer traia para identificar se o peão é ou não pantaneiro. Quando

uma cultura é colocada diante de outra, a tendência é ela se proteger desse

encontro, pois a que vem de fora traz “contaminações”, “influências” e empréstimos

vindos de outros horizontes.

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Este conteúdo está implícito no trecho do depoimento: os peões da cidade

sabem montar a cavalo, mas não sabem fazer traia. É a visão tradicionalista, que

quer preservar o modo de vida dos antigos e que não aceita o novo que está

chegando com os peões que vêm da cidade. Com eles, outros materiais também

chegam ao Pantanal, como nylon ou ráfia, usados nas embalagens de batata e

cebola, com os quais os peões tecem enfeites para os chapéus, para os cavalos. A

traia do cavalo, quando comprada na cidade, vem com material sintético. Seu Japão,

da fazenda Rio Negro, desabafa: “Vai acabando, essa traia de montaria quase tudo

vem da cidade, é tudo de nylon, plástico. Coiserada feia que põe na cara do

cavalo”25. Essa contradição é a mistura: “mestiçagem não é a fusão, a coesão, a

osmose, mas a confrontação e o diálogo” (LAPLANTINE apud GRUZINSKI, 2001, p.

325).

Outros depoimentos apontam para a mesma sensação de perda de

identidade, o mesmo conflito gerador de tensões, como na fala da Claudete, quando

ela diz “não basta vestir calça de couro”. Esse questionamento, esse confronto com

o novo que resulta em desconforto é próprio das culturas que se mesclam, porque

esse não é um processo de equilíbrio. Aliás, chega a ser o contrário, trazendo a

sensação de desequilíbrio, pois, de certa forma, o novo desorganiza a cultura.

Peão tece com fios de nylon, material usado nos sacos de cebola. Pantanal da Nhecolândia, 2005.

25Entrevista gravada no Pantanal da Nhecolândia, em 2005.

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24

Peões pantaneiros em roda de tereré. Pantanal da Nhecolândia, 2005.

Nesse confronto, o peão acredita perder o vínculo com a sua cultura de

origem, pois, para ele, ser pantaneiro é também uma questão territorial. Ter nascido

no Pantanal e ser descendente de índio ou paraguaio o qualifica como pantaneiro

como mostram os depoimentos26: “Eu sou crioulo aqui da Nhecolândia, aí eu

atravessei pelas bandas do Paiaguás em 1983 e estou pra lá até hoje”; “Sou

descendente de índio, meu avô, pai do meu pai, era cuiabano, minha avó que era

índia”; “Nasci no Paraguai. Eu trabalhei um tempo lá no chaco (...) depois é que eu

passei pro Brasil”; “Sou índio Bororo, quer dizer, eu sou mestiço, minha mãe é índia,

eu nasci no mato. Tenho os beiço furado, os Bororo fura os beiço, fura as orelha,

fura tudo, mas o meu pai tirou”.

26Respectivamente, seu Paulo, Jonas, seu Alonso e seu Celestino, gravados em várias regiões do

Pantanal.

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25

Seu Celestino, índio Bororo, posa para foto com suas filhas e netos. Pantanal doAquidauana, 2005.

Diante das mudanças que veem na cultura do lugar, eles passam a

questionar a própria identidade, como na entrevista27 a seguir:

Tem muita gente que ta mudando, indo pra cidade (...), tem genteque nasceu e criou na cidade ta vindo pra cá, então ta mudandomuito, não é mais bem aquela coisa de falar é “pantaneiro”, poucasfazendas têm gente que é nascido e criado e ta lá. (...) Eu mesmo, eusou pantaneiro, to morando aqui, de repente mudo pra cidade já nãosou mais nada, né.

Dois aspectos importantes aparecem aqui: primeiro, a questão da identidade

e, segundo, a noção muito arraigada do conceito de cultura como algo fechado,

como um conjunto de ideias, crenças e costumes que não só permite aos indivíduos

decifrarem o mundo em que vivem, mas o determinam. Para o antropólogo

Rodrigues (1980, p. 11), a cultura atua como um guia que distingue um ser de outro

ser, uma sociedade de outra: é como um

(...) mapa que orienta o comportamento dos indivíduos em sua vidasocial. Puramente convencional, esse mapa não se confunde como território: é uma representação abstrata dele, submetida a uma

27Faustino, 48 anos, peão do Pantanal da Nhecolândia, em entrevista gravada pela autora.

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lógica que permite decifrá-lo. Viver em sociedade é viver sob adominação desta lógica e as pessoas se comportam segundo asexigências dela, muitas vezes sem que disso tenham consciência.

Esse conceito fechado de cultura, como algo que determina a vida das

pessoas, é questionável. Segundo Viveiros de Castro (2006, p. 191), mesmo

modernos antropólogos ainda veem “a cultura sob um modo teológico, como um

‘sistema de crenças’ a que os indivíduos aderem, por assim dizer, religiosamente”. E

esse modo de ver é herança da redução antropológica do cristianismo, que acabou

impregnando o conceito de cultura com os valores do que ele queria abarcar. A

cultura como um sistema arquitetônico de regras e princípios também é combatida

pelo historiador francês Gruzinski, que, além de desconfiar do uso do termo por estar

desgastado, como já foi dito, acredita que ele alimenta a crença, mesmo que secreta

e inconsciente, da ideia de “uma totalidade coerente, estável, de contornos

tangíveis, capaz de condicionar os comportamentos” (2001, p. 51).

Gruzinski (2001, p. 52) considera também a questão da identidade uma

cilada: essa noção “que atribui a cada criatura ou a cada grupo humano

características e aspirações igualmente determinadas, supostamente fundadas num

substrato cultural estável ou invariante”. Para ele, os indivíduos são múltiplos, cada

um possui uma série de identidades providas de referências mais ou menos estáveis

que podem ser ativadas de uma só vez ou de modo sucessivo, dependendo dos

contextos, e, socialmente, “o indivíduo não para de enfrentar uma plêiade de

interlocutores, eles mesmos dotados de identidades plurais” (GRUZINSKI, 2001, p.

53). O exemplo da pluralidade vem do seu Alonso, peão conhecido como Paraguaio:

“Hoje em dia somos tudo hermano, meio misturado, alemão, italiano, francês,

paraguaio”.

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Seu Alonso, o Paraguaio. Pantanal do Aquidauana, 2005.

Rodas de tereré

Na cultura do Pantanal, um dos traços que mais evidenciam a mestiçagem é

a roda de tereré. Nela está um hábito antigo, o de tomar mate, quente ou frio, que já

teria sido de todo o continente: “A América nasceu bebendo mate”28. Pesquisadores

apontam que o uso da erva-mate vem desde os quíchuas, povos indígenas do Peru,

descendentes dos incas. A própria palavra vem de “mati”, vocábulo quíchua que

significa cabaça, cuia – o recipiente em que se bebe passou a dar nome à própria

bebida. No Pantanal, a cuia foi substituída pela guampa de chifre de boi. O uso da

bebida chegou a ser proibido pelos colonizadores espanhóis no Peru, que a

consideravam afrodisíaca e viam nela motivos do afastamento dos fiéis dos serviços

religiosos e, por isso, ficou conhecida como “a erva do diabo” (BOGUSZEWSKI,

2007, p. 21).

No sul do continente, o uso da bebida também foi proibido nas missões

jesuíticas (1610 a 1768) – era chamada de “caá” pelos índios Guarani –, mas os

jesuítas acabaram conquistando o monopólio para o comércio e chegaram a

aperfeiçoar o cultivo da planta (BOGUSZEWSKI, 2007, p. 22). Muito comum em todo

28Afirmação de Temístocles Linhares reproduzida na obra de Boguszewski (2007).

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o Centro-Oeste e na região Sul, no Pantanal o chimarrão é solitário, geralmente

tomado pelos peões mais velhos de manhã e no final de tarde. Já o tereré é coletivo

– a cuia passa de mão em mão e tem várias regras: só roda em um sentido, cada

um tem que tomar o que foi servido até o final, e assim por diante. Esse costume,

aliás, foi um dos pontos retratados na novela Pantanal de forma equivocada, virando

piada entre os peões (BECKER; MACHADO, 2008, p. 47). Recentemente, o

costume também foi proibido em uma fazenda do Pantanal, quando ela trocou a

tradição da pecuária pelo turismo:

A patroa que deu ordem, que não é pra tê reunião de gente assim,cada um tem seu vício, pega seu preparo, vai lá e toma. O patrãochama isso aqui de embromaré, ali vai duas, três hora, se você juntáum grupo, cê dá a cuia pro Picolé, ele já vai contá um causo, até elecontá a hora vai passano, daí o nome de embromaré. O patrão nãoqué sabê29.

Baiano conta história enquanto toma tereré. Fazenda Rio Negro, 2005.

A própria origem da erva-mate está associada em uma lenda indígena ao

poder de contar histórias como uma forma de guardar a memória de um povo.

Recontada por Fernandes (2002) a partir da obra de Hélio Serejo, ela diz que um

velho chefe indígena, Uni, e sua filha, Yari, teriam ficado sozinhos após todos os

29Entrevista gravada na fazenda Rio Negro, Pantanal da Nhecolândia (também conhecido por

Pantanal do Rio Negro, por ser cortado pelo rio de mesmo nome), com peão conhecido como Baiano.

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índios deixarem a aldeia por causa da guerra. Uni era um dos guardiões da memória

e com ele estavam histórias dos antepassados, dos espíritos das matas e rios, das

caçadas e das ervas curativas. Um dia ele deu pouso a um andarilho, que foi

alimentado por sua filha e, a partir daí,

(...) compartilharam muitas histórias. Trocaram experiências. Uni deuvazão à mente, expandiu pela voz os limites espaciais, (re)criouseres. O andarilho, impressionado com o poder de Uni, sacou dosapicuá umas folhas verdes de um perfume inebriante (...). Plante-a,espere crescer e beba de suas folhas. Ao dizer isso, tocou a mão deYari (...), onde quer que Yari tocasse a terra a planta brotava. Finda aguerra, Uni serviu um chá daquelas folhas aos que voltaram. Sorvia-se a bebida em roda, o círculo avolumava-se. Na aldeia de Uni umamesma história nunca é igual. Toda voz é uma extensão daimaginação. Preenche o vazio, inclusive o vazio do próprio contador.Graças à erva do andarilho, presente dos deuses, o homem podecompartilhar diferentes mundos (FERNANDES, 2002, p. 21).

A roda de tereré, portanto, é propícia e estimulante para se contar/ouvir

causos – relatos que misturam lendas, mitos, narrativas do cotidiano e histórias que

transmitem oralmente as experiências de vida do pantaneiro:

Aí que sai as histórias, que nos serviço não dá tempo, o bommesmo é aqui na roda de tereré, sai “aquelas” histórias. Aqui saitanta história que se botar um, se o cocho aqui tivesse boca,ouvido, ele ouvia as histórias e depois ia contar pra gente cadahistória engraçada30.

Peões passam guampa de tereré feita de chifre de boi. Pantanal do Paiaguás, 2005.

30Entrevista gravada com Faustino, peão da fazenda Baía das Pedras, no Pantanal da Nhecolândia.

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O contar histórias, portanto, é uma marca da tradição oral, definida “como um

testemunho oral transmitido verbalmente de uma geração para outra. Quase em

toda parte, a palavra tem um poder misterioso, pois palavras criam coisas”

(VANSINA apud CAMPOS, 2004, p. 40). E por meio das palavras faladas no

cotidiano, repassadas para filhos e netos por histórias, dizeres populares, crendices

e outras práticas da linguagem do dia a dia, vão-se interiorizando conhecimentos,

contradições. E é nesses limites e nesse sentido que Zumthor (1993, p. 22), que

estudou as sociedades medievais, define oralidade:

(...) um conjunto complexo e heterogêneo de condutas emodalidades discursivas comuns, determinando um sistema derepresentações e uma faculdade de todos os membros do corposocial de produzir signos, de identificá-los e interpretá-los da mesmamaneira.

Assim como os intérpretes medievais se reuniam em praças para ouvir os

“jograis de boca” por intermédio dos portadores da voz poética, os menestréis, que

detinham a palavra pública, ou a gesta, que eram as canções que celebravam os

grandes feitos da época, os pantaneiros se reúnem para ouvir os contadores de

causos. O contar histórias pode vir regado pelo tereré ou pelo guaraná ralado,

tomado com água fria, como faz o pantaneiro do norte. Campos observa:

As histórias, sempre com o aval das testemunhas, eram contadasde tardezinha ou à noite, também em festas e velórios, para/entremulheres, vizinhos e, sobretudo, para as crianças, que cresciamrecontando-as, após ouvirem-nas inúmeras vezes dos pais eamigos. (...) O gosto por sentar em raízes de árvores no Pantanal,em casa nos banquinhos ou tocos de árvore, e uma conversaanimada em roda continua até hoje, entre os que migraram para acidade (2004, p. 118).

Na fazenda ou na cidade, as reuniões para ouvir os relatos dos contadores

ainda são um dos aspectos mais importantes da cultura baseada na tradição oral do

pantaneiro. E segundo Zumthor, a palavra poética vocalmente transmitida pela

oralidade reatualiza e favorece a migração de mitos, de temas narrativos, de formas

de linguagens, o que dificilmente a palavra escrita conseguiria fazer:

Pela boca, pela garganta de todos esses homens (muito maisraramente, sem dúvida, pela dessas mulheres) pronunciava-se umapalavra necessária à manutenção do laço social, sustentando enutrindo o imaginário, divulgando e confirmando os mitos, revestida

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nisso de uma autoridade particular, embora não claramente distintadaquela que assume o discurso do juiz, do pregador, do sábio (1993,p. 67).

Peões tomam tereré em descanso durante viagem de comitiva. Pantanal do Paiaguás, 2005.

Causos revelam os mitos pantaneiros

Estas figuras místicas,todas elas cercadas por lendas,

misturavam-se com as dos índios:com as do Mãozão (uma espécie de pai do mato),

com o da alma bondosa que protege as criançasque entram ou se perdem no mato,com a do bicho-papão, dos negros.

E, juntas passaram a habitaro Pantanal e a imaginação do povo.

(PROENÇA, 1997, p. 159)

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Peões almoçam em parada de viagem de comitiva. Pantanal do Paiaguás, 2005.

Ai, minha dona, a senhora não viu nada!Tem coisa feia nesse mundo aberto sem porteira.

(Seu Oscar, peão do Pantanal da Nhecolândia)

O Mato Grosso do Sul tem tradição oral, com uma história assentada na

transmissão de conhecimentos por meio da palavra falada, verbalizada. E é na

literatura oral, no testemunho oral transmitido de uma geração a outra, fundada na

memória e tão encharcada quanto o lugar onde o pantaneiro habita, que os mitos

ganham vida na cultura do Pantanal. E eles cumprem uma função poética, que é ao

mesmo tempo “coesiva e estabilizante sem a qual o grupo social não poderia

sobreviver” (ZUMTHOR, 1993, p. 139). E segundo o autor, o verbo cria o que ele

nomeia. De fato, na história do homem, o mito esteve presente em todas as

civilizações, fazendo parte das narrativas que comportam as metamorfoses entre os

estados animal, vegetal ou mineral (MORIN, 2005, p. 42). É no universo mitológico

que o ser humano vai buscar compreensão para o que não compreende, onde

busca explicações para o mundo ao seu redor – desde os fenômenos naturais até o

sobrenatural – e, ainda, as justificativas e os meios para processos literários,

artísticos e de sobrevivência (FERREIRA; BERNARDINI, 2006). Nas palavras de

Campelo (1977, p. 44), os mitos “são como fotos de antepassados dos quais já nem

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se sabe mais os nomes ou o grau de parentesco, mas que continuam a olhar e a

impressionar do fundo dos porta-retratos esquecidos pelos cantos da casa”.

Assim, por intermédio dos mitos, o homem consegue armazenar os seus

textos. Segundo Lévi-Strauss (1989, p. 242), “o mito é a linguagem”. E como tudo no

Pantanal acaba virando um causo, é nele que o pantaneiro armazena seus textos e

expressa esse universo mitológico, lendário, dos contos... A intenção desta pesquisa

não é classificá-los, trabalho feito com bastante abrangência por pesquisadores

como Fernandes (2002) e Câmara (2007). É importante apontar que, por meio dos

causos, o peão pantaneiro conta e reconta seus mitos e lendas, faz as conexões

entre passado, presente e futuro, com seus medos, anseios, transmite sabedoria e

conhecimento sobre a natureza, os animais, enfim, vai compondo e expressando a

imagem que ele tem de si mesmo e do mundo que o cerca. Trata-se, portanto, de

composição e expressão feitas de mestiçagens:

Contos e lendas parecem ter o mesmo papel. Eles se desdobram,como o jogo, num espaço excetuado e isolado das competiçõescotidianas, o do maravilhoso, do passado, das origens. Ali podementão expor-se, vestidos como deuses ou heróis, os modelos dosgestos bons ou maus utilizáveis a cada dia. Aí se narram lances,golpes, não verdades (CERTEAU, 2008, p. 84).

Nos mitos e lendas contados nos causos aparecem os seres protetores da

natureza, como o Mãozão, o curupira, o saci... Os que espantam e matam como o

pé de garrafa e pé grande. Por intermédio deles, o Pantanal é dividido em espaço

sujo e limpo, o primeiro dominado pela fauna e flora e o outro habitável pelo homem.

As águas, com seus rebojos, seus ciclos de cheia e seca também entram nessa

divisão (FERNANDES, 2002). Muitos mitos pantaneiros são comuns a outras regiões

do Brasil e do mundo e, em cada local, ganham suas conotações específicas e

também usos diferenciados. Os estudos culturais feitos por Gruzinski (2001)

apontam que mesmo a noção de “arcaico é um engodo”, pois a análise apressada

pode levar a conclusões equivocadas, como a de vincular ao passado da sociedade

indígena americana traços que provêm da península Ibérica. Um exemplo disso são

as mesclas ocorridas na formação do universo mitológico do peão pantaneiro. Dele

fazem parte as referências mitológicas das nações indígenas brasileiras que foram

mescladas com as dos viajantes, missionários e colonizadores que passaram pela

região que hoje forma o Pantanal:

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(...) do português, através do mameluco paulista, o Pantanalabsorveu a maior quantidade de assombrações, representadas pelolobisomem, pela mula sem cabeça, pelo pé de garrafa; figurasmitológicas de bichos, os mesmos que assombraram os meninos denossas casas grandes e fantasiaram as “estórias” que as mucamascontavam nos dias de chuva ao pé de um fogão de lenha(PROENÇA, 1997, p. 157).

Assim, para evitar que as crianças saiam do alcance da visão das mães, elas

crescem ouvindo as histórias do Mãozão. A mesma história serve para evitar a caça

nas áreas de mata e como explicação para os que se perdem nos caminhos

sinuosos pantaneiros. Quem conta é seu Oscar, 70 anos, uma vida inteira no

Pantanal:

O Mãozão é o seguinte: onde eu trabalhava, sumiu um garoto, tinhalá nove vaqueiros, tivemos 25 dias pra caçar esse guri (...) Pois eu viele (...) Mãozão é o capeta! É o diabo! A senhora conhece o capeta?(...) É um pretão (...) Ele anda por aí tudo (...) Na Campevas já sumiuuns quanto peão lá. Não pode ficá peão sozinho, Mãozão ficaandano pra cá e pra lá, se pega, coitado dele (...) Assusta à noite e,se ele qué levá aquela criatura, ele leva, porque nois, cada um temuma parte mais forte e mais fraca, a mais fraca ele leva. Campo Netoé dele. São Pedro é dele. Santa Maria... Conhece lá? Já ouviu faláno Mãozão naquela mata? É só duvidá, entrá lá – quem não conhecee duvida, ele bota pra corre (ri). Ai, minha dona, a senhora não viunada! Tem coisa feia nesse mundo aberto sem porteira31.

Outros mitos e lendas têm esse mesmo contexto, o de explicar o sumiço das

pessoas, como a lenda do mato do esquecimento, que faz com que a pessoa que

esbarre nele fique desnorteada, como que se fosse engolida pela natureza, sem

saber como voltar. No caso do Mãozão, é o espírito maligno que toma conta da

pessoa e ele passa a rejeitar o convívio com a família e seu cotidiano normal. Assim,

pela oralidade, o pantaneiro se expressa e constrói seu universo simbólico, pois pela

linguagem verbal o homem representa as coisas do mundo, ordenando-o e

conferindo-lhe significação: “Vivemos, assim, não apenas em um universo físico,

mas fundamentalmente simbólico. Um universo criado pelos significados que a

palavra empresta ao mundo” (DUARTE JR. apud CAMPOS, 2004, p. 40). Na

construção dos símbolos e significados da cultura pantaneira, os contadores de

causos têm um papel fundamental, que poderia ser comparado ao de um escritor.

Alguns teóricos veem a figura do narrador de histórias como a de um criador:

31Oscar Santelmo Magalhães, em entrevista gravada pela autora no Pantanal da Nhecolândia.

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À diferença da informação, o relato não se preocupa em transmitir opuro em si do acontecimento, ele o incorpora na própria vidadaquele que conta, para comunicá-lo como sua própria experiênciaàquele que escuta. Dessa maneira, o narrador deixa seu traço,como a mão do artesão no vaso de argila (BENJAMIN apudCAMPOS, 2004, p. 44).

O jeito do pantaneiro contar histórias

José Anastácio conta histórias em roda de tereré. Pantanal do Paiaguás, 2005.

A voz poética (...)se ergue do mesmo lugar,

anterior às palavras pronunciadas,mas ressoando com todos esses ecos,

graças às sonoridades que emanam desta boca,deste rosto,

escondidas com o gesto desta mão.(ZUMTHOR, 1993, p. 74)

A forma como os causos são contados é outro aspecto importante para a

cultura do Pantanal. Ela distingue os “bons contadores” de histórias. Sempre que

são solicitados a contar um causo, apontam para quem é considerado o contador do

lugar. Na opinião deles, a pessoa tem que saber dar “vida” para o que conta. Os

bons contadores imitam sons e vozes, aumentam o tom da voz, ficam quietos, dão

dinamismo ao relato. As histórias são contadas também com o corpo – eles

gesticulam, se levantam, se curvam, levantam as sobrancelhas, fazem caretas... Vão

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imprimindo no corpo o que contam com as palavras. Segundo Zumthor (1985): “o

corpo não é somente um agregado de membros que gesticulam sob nossos olhos

(...) É a nossa maneira de ser no mundo, nosso modo de existir no tempo e no

espaço”. É por meio do corpo, portanto, que a pessoa sente, vibra, se reprime e

exprime o que é, quem é:

O corpo é o peso sentido da experiência que faço dos textos. Meucorpo é a materialização daquilo que me é próprio, realidade vivida eque determina minha relação com o mundo. Dotado de umasignificação incomparável, ele existe à imagem do meu ser: é eleque eu vivo, possuo e sou, para o melhor e para o pior (ZUMTHOR,2007, p. 23).

Seu Beto, condutor de comitiva, conta história depois da lida. Pantanal da Nhecolândia, 2005.

Com isso, o contar causos se aproxima da performance, a denominação de

Zumthor para a encenação da narrativa, que, para ele, é o único modo vivo de

comunicação poética e, genericamente, se refere a um acontecimento oral e gestual.

A performance pressupõe uma plateia – essencial para o contador – que, no caso da

roda de tereré, já está ali, formada. Com o uso de elementos comuns, cria-se uma

relação de proximidade e cumplicidade entre quem ouve e quem conta, um

momento decisivo em que todos os elementos cristalizam em uma e para uma

percepção sensorial: um engajamento do corpo. Ou seja, “a palavra significa a

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presença concreta de participantes implicados nesse ato de maneira imediata”

(2007, p. 50). Portanto, ela concretiza a comunicação, é um momento da recepção

que, segundo ele, é privilegiado, em que um enunciado é realmente recebido. Para

Fernandes (2002, p. 28), é uma relação de contágio: “A fala pantaneira molda

nossos ouvidos na bigorna da oralidade, com marteladas que nos chamam a

atenção para os termos regionais e a concordância rústica”.

Os termos regionais a que Fernandes se refere estão presentes não só nas

rodas de tereré, mas em toda a oralidade da cultura pantaneira. E é outra mostra da

grande mestiçagem do lugar: o falar pantaneiro é uma mescla dos falares indígena,

paraguaio, guarani, paulista, entre outros. E essa miscigenação começou entre os

primeiros habitantes do lugar – a semelhança linguística entre os Payaguá e

Guaykuru fez com que se duvidasse da existência dos primeiros. Estudos

posteriores não só provaram que eles de fato existiram como conviveram: “as

relações entre os dois povos eram de tenaz inimizade, ora de acomodação, nunca

de estreita cordialidade” (HOLANDA, 1986, p. 85).

O jeito de falar do pantaneiro também incorporou outros sotaques, como os

dos paraguaios e bolivianos. Segundo Ana Maria de Oliveira, deles vêm

mestiçagens linguísticas como a herança de misturar o acento castelhano ao

português estilizado que foi trazido pelos caipiras paulistas. A autora afirma, ainda,

que é possível ressaltar a relação entre vários idiomas na cultura do homem

pantaneiro:

(...) o colonizador, ao assimilar um considerável número devocábulos de origem indígena e africana e, posteriormente, depovos hispano-americanos, contribuiu para a estruturação do léxicoregional, por meio de seu modo peculiar de expressão (OLIVEIRAapud CÂMARA, 2007, p. 61).

Esse tema, das mesclas linguísticas, sozinho, mereceria um amplo estudo,

mas, infelizmente, isso foge do alcance desta pesquisa. Por facilitar essas mesclas,

é também por meio dos causos que os textos culturais são atualizados, renovados

em seu repertório. Passado e presente se entrelaçam. Reunidos ali, passando a

guampa de mão em mão, comungam a mesma linguagem, colocam-se na mesma

sintonia. Manoel de Barros (1999) poetiza:

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Porque a maneira de reduzir o isolado que somos dentro de nósmesmos, rodeados de distância e lembranças, é botandoenchimento nas palavras. É botando apelidos, contando lorotas. Éenfim, através das vadias palavras, ir alongando os nossos limites.

Como aponta o poeta, quem chega logo ganha um apelido. Pedro da Costa

virou Japão, porque é filho de japonês. Seu Alonso é o Paraguaio – nasceu no

Paraguai. O peão Hélio Antônio Martins tem uma história engraçada: foi criado pelo

pai, que fazia cercas nas fazendas e dormia em acampamentos. Quando os amigos

do pai souberam que o menino ia junto para um lugar onde tinha muita onça,

disseram: “ele vai virar picolé de onça lá!”. O apelido pegou: Picolé de Onça. Ezídio

de Arruda, que foi criado por um baiano e por isso é chamado de Baiano, explica32:

“É mais fácil de lembrá. Às vezes ajusta hoje uma pessoa pra trabalhá, até vim na

sua cabeça o nome dele, já coloca um apelido, é mais ligeiro”. Guimarães Rosa, em

Entremeio – com o vaqueiro Mariano, percebe a mania do pantaneiro de colocar

nome em tudo, até nas vacas: “Meu amigo falava os nomes: Piôrra, Abelha,

Chumbada, Ciranda, Silina, De-Casa, Cebola, cor de raposa” (2001, p.132). Sobre

contar histórias, Baiano acrescenta: “A pessoa tem que sabê. A gente vê muita

história, mas cê esquece. Se ficá tudo na sua cabeça, cê endoida. Muitas coisas cê

esquece, só vendo, assim, pra lembrá”.

Oralidade pantaneira: feita de memória e esquecimento

Um bom contador de história é também aquele que se esquece das coisas.

Como disse o Baiano: “Se ficar tudo na sua cabeça, cê endoida”. Os causos trazem à

tona outro aspecto importante para a oralidade – a questão da memória e do

esquecimento. Nele está em jogo a memória individual de quem conta – que pode se

perder, portanto, ser completamente esquecida ou até mesmo modificada, pois as

pessoas podem acrescentar ou retirar os trechos de acordo com sua experiência

individual – e a memória coletiva, que reúne as memórias do grupo. Segundo

Zumthor (1993, p. 139), a memória é dupla, porque “coletivamente é fonte de saber e,

para o indivíduo, aptidão de esgotá-la e enriquecê-la”. O esquecimento é uma

estratégia da memória, fonte que possibilita a geração de lembranças. Zumthor

(1985) afirma que nossas culturas só se lembram esquecendo, mantêm-se rejeitando

32Entrevista com Baiano, na fazenda Rio Negro.

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uma parte do que elas acumulam de experiência e, ao apagar, clarificam o que

deixam à lembrança.

Picolé de Onça toca sanfona. Fazenda Rio Negro, Pantanal da Nhecolândia, 2005

Em Armadilhas de memória, Jerusa Pires Ferreira (2004) mostra as

contribuições de vários pensadores a respeito do tema. Aponta que Zumthor se

aproxima de Iúri Lotman e Boris Uspênski (1985) ao seguir os modos pelos quais a

comunidade expulsa os elementos indesejáveis de seus textos por meio do

esquecimento. Nesse sentido, o esquecimento é fator de criação. E esse recurso é

bastante presente entre os contadores de causos no Pantanal. De um lado, eles tiram

de suas histórias os detalhes que só serviriam para desviar a atenção, que tornariam

seu causo um simples relato de um acontecimento.

A capacidade em adquirir memória é uma propriedade do texto cultural.

Segundo Lotman (1996, p. 80), ele adquire memória porque tem propriedades de um

dispositivo intelectual: “não só transmite a informação depositada nele, mas também

transforma e produz novas”. E, já que os sistemas de cultura são construídos a partir

das línguas naturais, sistemas modelizantes primários, os textos são sistemas

modelizantes secundários (LOTMAN, 1979, p. 33). Portanto, a cultura compreende

também o conjunto de mensagens que são realizadas historicamente em um língua

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(ou texto) e transformar essa informação codificada em um texto é o que introduz a

informação na memória coletiva (MACHADO, 2003, p. 38).

Segundo Morin (2002), a cultura de uma sociedade organiza os indivíduos e é

organizada mediante linguagens articuladas a partir do material cognitivo que vai

sendo formado, conservado, transmitido e desenvolvido entre os indivíduos dessa

sociedade e que se manifesta por intermédio das representações, da consciência ou

do imaginário coletivo. Os textos têm, portanto, a capacidade de reconstituir, de

restaurar lembranças da história da cultura e da humanidade: “nesse sentido, os

textos constituem programas mnemotécnicos reduzidos, (...) tendem à simbolização

e se convertem em símbolos integrais” (LOTMAN, 1996, p. 89).

Assim, as palavras “ôa, ôa, ôa, êêeeee, eia, eia, uá, uá, uá” podem assumir

nenhuma ou várias significações, de acordo com a sociedade na qual estão

inseridas, podendo funcionar como simples conjunções e interjeições, vícios ou

cacoetes de linguagens, ou estabelecer um diálogo33 com o gado, como Jonas faz

no Pantanal34:

A gente fala com o gado, raia, fala pra ele obedecê a gente. Se ele tateimano, se ele quer ir pra um lugar que não é pra ir, a gente gritacom eles. Ele “arespeita”. Se tiver corrido, ele volta. Eu nem sei comofunciona, é uma linguagem da gente, a gente fala, decerto o animalentende, aprende aquilo. Se é um gado obediente, igual esse nossoaqui, cê fala, ele para, entende.

O gado obediente a que Jonas se refere faz parte de um rebanho de 5 mil

cabeças de gado – um número que impressiona quando se analisa que é um gado

obediente e ele chega a dar nomes aos animais, de tanto que os conhece, uma

mania também percebida por Guimarães Rosa, como já se apontou. Além de botar

nomes, o personagem de Rosa também humaniza o gado. Ao falar da forma como

uma vaca se aproximou do vaqueiro Mariano, ele diz: “O senhor viu como ela queria

se partir em pedaços no chão, estava toda mole, mole? Vaca que avança, parece

que tem até bigode...” (GUIMARÃES ROSA, 2001, p. 133). No texto do autor, o gado

morre de tristeza, de vergonha, de raiva. Entende o cochicho de gente. As

características do vaqueiro são iguais às do animal: “Mas a paciência, que é do boi,

33Essa forma de comunicação, muito comum no Nordeste, é chamada de aboio e já foi tema de

teses, livros, músicas e documentários. Disponível no site: www.vaquejadas.com.br./aboios/,pesquisado em 5/4/2009.34

Entrevista gravada pela autora no Pantanal da Nhecolândia, em 2005.

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é do vaqueiro. E Mariano reagia, ao meu pasmo por trabalho tanto, com a divisa

otimista do Pantanal: – Aqui é o gado que cria a gente” (GUIMARÃES ROSA, 2001,

p. 118).

Jonas, o peão real, é pantaneiro nato, nunca estudou e desde pequeno lida

com o gado, seja nas brincadeiras de menino ou mesmo acompanhando e ajudando

o pai na lida do dia a dia. Esse contato de proximidade com o gado, essa

humanização do animal, como mostrou também Guimarães Rosa (2001), é a forma

como o peão pantaneiro costuma se relacionar com a fauna de uma forma geral –

atribuindo aos animais atitudes e qualidades que atribui a si mesmo (BANDUCCI

JR., 2000, p. 91):

(...) é através da criação que se estabelecem desde o sentidomínimo do ser, o objetivo dele estar ali, até conceitos e valoresmais elevados para a vida do homem campeiro. As atividadescotidianas estão pautadas no relacionamento com os animais e, emgrande medida, é a partir deles que se define o ritmo de vida e otempo no Pantanal: proteger, amansar, ensinar, marcar, conduzir,vender.

Jonas na lida com o gado. Pantanal da Nhecolândia, 2005.

A memória para a cultura do peão pantaneiro é extremamente importante,

porque a cultura do Pantanal é uma cultura oral, produzida por seres iletrados – são

considerados iletrados, porque mal aprenderam a ler e a escrever; grande parte dos

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peões entrevistados na fase de pesquisa só sabia assinar o nome e alguns o fizeram

com certa dificuldade – e, apesar do alto índice de analfabetismo35, nem por isso

podem ser considerados ignorantes. Ao contrário, têm e transmitem vasto

conhecimento pelos objetos e artefatos que produzem, o linguajar, os costumes e

hábitos cotidianos, a dança, o gestual e a oralidade passados de geração a geração

por meio dos causos, que reúnem lendas, mitos, contos, experiências de vida e toda

a produção textual englobada pela literatura oral. Aqui é preciso explicitar o conceito

de literatura oral para evitar confusões, pois alguns autores usam a expressão

literatura popular para o mesmo fim. O próprio termo literatura é comumente

vinculado à letra, ao livro, e não à voz, ao ato de contar histórias verbalmente.

Popular, por sua vez, induz ao binarismo popular/erudita, como se a última ficasse

restrita aos livros e a primeira, à oralidade. Zumthor (1993, p. 119) esclarece: “oral

não significa popular, tanto quanto escrito não significa erudito”.

Com os estudos sobre a literatura medieval, a oralidade deixou de ser

estudada como uma manifestação folclórica e passou a ser percebida como um fator

importantíssimo na estruturação do pensamento. Segundo Zumthor (1993, p. 8):

“recuperava-se o direito sobre um universo perdido. Essa região – nossa velha

poesia oral –, da qual se desenhavam pouco a pouco as paisagens, havia sido

durante longo período renegada, ocultada, recalcada em nosso inconsciente

cultural”. O questionamento fez com que a literatura oral ganhasse distinção em

relação à escrita, sendo chamada também de voz. Para Zumthor (1993, p. 21),

melhor seria usar o termo “vocalidade” em vez de oralidade, pois assim estaria

inclusa na voz a sua historicidade, o seu uso. Fernandes (2002, p. 23), que realizou

extensa pesquisa sobre a literatura pantaneira, aponta que os estudos sobre

oralidade fizeram com que a “supremacia do escrito sobre o oral passa a ser

questionada, colocando em pé de igualdade a produção literária escrita e falada”.

Ele define a literatura pantaneira como popular, não por estar longe da erudição,

mas, sim, por ser uma literatura de memória “tão encharcada quanto a região, pois

antes de tudo ela está mergulhada no homem, na sua cultura, sociabilidade e

criatividade” (FERNANDES, 2002, p. 15).

35O analfabetismo acima de 11 anos é de 28% (mulheres) e 32% (homens) em Corumbá. Fonte:

www.ibge.gov.brasil_em_sintese/tabelas/educacao_tabela01htm, pesquisado em 4/4/2009.

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Peões fazem roda na hora do almoço em parada durante viagem. Pantanal do Paiaguás, 2005.

Como se viu, é por meio dos causos que o peão pantaneiro expressa sua

visão de mundo, constrói as narrativas sobre a lida com o gado, as relações com a

natureza, guarda histórias de suas vivências, armazena os dados que compõem sua

memória, enfim, atualiza e reaviva sua cultura. Essa capacidade de armazenar

informações e manipular os dados por meio de uma relação mútua entre os

indivíduos e a sociedade a que pertencem levou Morin (2002, p. 20) a comparar a

cultura com um grande computador, de forma metafórica: “a cultura de uma

sociedade é como uma espécie de megacomputador complexo que memoriza todos

os dados cognitivos e, portadora de quase-programas, prescreve as normas

práticas, éticas, políticas dessa sociedade”. Como um megacomputador, com

acesso a vários internautas, pode-se ver a cultura como um sistema de informação

que está em constante movimento, recebendo e transmitindo novas mensagens. O

estudioso argentino Canclini (2008) argumenta que se pode escolher viver em

estado de guerra ou em estado de hibridação. Pode-se dizer que a porção territorial

onde o Pantanal está inserido viveu um pouco dos dois nos últimos séculos, como

se verá a seguir.

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1.2 - As especificidades do Pantanal: da inexistência ao paraíso

No pantanal ninguém pode passar régua.Sobremuito quando chove.

A régua é existidura de limite.E o pantanal não tem limites.

(BARROS, 1985, p. 31)

Faustino atravessa vazante. Fazenda Baía das Pedras, Pantanal da Nhecolândia, 2005.

A imagem construída pela mídia para o peão pantaneiro – portanto, o peão na

visão do outro –, que se vai enfocar nos capítulos seguintes, passa essencialmente

pela imagem que se tem do Pantanal, pois muitos traços da cultura do peão

pantaneiro são vistos como resultado do meio em que vive. Por isso, abre-se um

parêntese para falar sobre as especificidades do Pantanal.

Quando se olha para o passado do Pantanal, há um vazio na história oficial

que encobre não só a região, mas grande parte da fronteira oeste brasileira36. As

primeiras referências sobre o lugar aparecem, de forma indireta, nos relatos,

descrições, boletins e narrativas feitas, a partir do século XVI, por viajantes,

36A historiografia do Pantanal está em parte mesclada com a historiografia da Argentina, paraguaia,

paulista e mato-grossense (COSTA, 1999, p. 32). Outro estudioso, Vasconcelos, afirma que “é comose a história da região centro-oeste não existisse após o passado colonial” (1999, p. 9).

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missionários e “colonizadores”37 que passavam pelo lugar – durante muito tempo o

Pantanal foi um lugar de passagem e é citado por estar situado no caminho entre

outros lugares. Um país inexistente, como denominou Costa (1999). Enquanto toda

a costa litorânea brasileira era ocupada e conhecida, o interior da terra recém-

descoberta continuava praticamente ignorado.

E é dessa produção literária, feita para exaltar as novas descobertas e

justificar para os reis e investidores das expedições o empreendimento que estava

sendo feito (FERNANDES, 2002, p. 65), que se podem pinçar dados que apontam

para as primeiras mestiçagens na cultura do lugar. A visão do estrangeiro sobre

esse mundo novo não se caracteriza apenas como um olhar curioso diante das

recentes descobertas – ele faz uma “leitura”, tenta decifrar o que vê (FERNANDES,

2002, p. 66). Não é, portanto, isenta, ao contrário, é uma literatura carregada de

exageros e exaltações ideológicas. E esses primeiros narradores eram cristãos,

estavam a serviço de seus reis e da Igreja, e as narrativas que produziram refletiam

os princípios e dogmas deles (COSTA, 1999, p. 63).

Esse modo de ver cristão está impregnado no conceito que se tem de

civilização e se perpetua em muitas correntes de pensamento. Elias mostra que

Em nome da Cruz e mais tarde da civilização, a sociedade doOcidente empenha-se, durante a Idade Média, em guerras decolonização e expansão. E a despeito de toda a sua secularização,o lema “civilização” conserva sempre um eco da Cristandade Latinae das Cruzadas de cavaleiros e senhoras feudais. A lembrança deque a cavalaria e a fé romano-latina representa uma fase peculiar dasociedade ocidental, um estágio pelo qual passaram todos osgrandes povos do Ocidente, certamente não desapareceu (1990, p.66).

Os viajantes, missionários e “colonizadores” foram os primeiros mediadores

de uma cultura “primitiva” americana para uma cultura “civilizada”, por ser letrada, na

Europa. Eles tiveram uma produção literária que deixa entrever ideais contraditórios

ao descrever paisagens edênicas e outras infernais, pela definição de um índio puro

e ao mesmo tempo, paradoxalmente, bárbaro e transgressor da doutrina católica. E,

mediante esse mecanismo de transposição cultural, eles criaram a primeira ideia de

Brasil (FERNANDES, 2002, p. 65).

37O termo colonizadores aqui engloba os missionários e integrantes das primeiras expedições.

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O Pantanal aparece nos relatos desses primeiros visitantes como um lugar de

contraste de paisagens, de clima e modo de vida entre América e Europa, descrito

com “fisionomias bem próximas daquilo que o mundo cristão costuma qualificar de

Paraíso” (COSTA, 1999, p. 250) ou como “uma ilha que era o ‘Paraíso Terrenal’”,

“lugar de grandes águas entrecortadas por muitos rios (...)”, ou ainda “campos

alagados, com várias lagoas e sangradouros” (p. 18). Em relatos de 1585, o

Pantanal de hoje tem a aparência de uma “terra encharcadiça, cheia de lagoas e

pântanos (...) sustentam haver por ali grandes reinos e floridos, fabricando então o

Paititi, o Dourado, o país dos Césares, onde se achariam maravilhosas coisas”

(ACOSTA apud HOLANDA, 1986, p. 100).

No século XVI, o Pantanal é desenhado em mapas holandeses, alemães e

italianos como uma ilha, um lago interior abraçado por braços dos rios Amazonas e

Prata, e essa forma não seria fruto apenas da fantasia dos cartógrafos: “A ‘ilha

Brasil’38 constitui, de fato, um mito expansionista, que ganha realidade através da

íntima cooperação da metrópole com os colonos, de lusos com luso-brasileiros”

(HOLANDA, 1986, p. 93). A imensidão das águas confundia os antigos viajantes e

em textos de 1703 o Pantanal aparece como um mar interior, o Mar de Xaraés. O

escritor Monteiro Lobato39 também usou essa classificação para explicar o passado

de Mato Grosso40: “O que foi Mato Grosso em épocas remotíssimas? Um mar. Um

fundo de mar (...) Mato Grosso constitui uma parte do fundo do mar de Xaraés”.

Até recentemente, alguns textos apontavam a salinidade do lugar – muitos

rios da região pantaneira têm água salobra e na época das cheias se formam lagos

de água salgada chamados de salinas – como decorrência do mito do mar de

Xaraés, que teria existido no lugar antes do aparecimento do homem. Essa crença

permanece até hoje no linguajar pantaneiro: “vim da costa do Miranda”, “vou à costa

do Perdido” (HOLANDA, 1986, p. 151). No passado, foi o espanhol Antonio Herrera

quem transformou o mar na fabulosa Laguna de los Xarayes. E o Pantanal, que até

então era inexistente, passou a ser desenhado e localizado geograficamente nos

mapas da primeira metade do século XVII como uma imensa lagoa. Praticamente na

mesma época, os jesuítas passaram a fazer o mesmo.

38A expressão foi usada por Leite (2000, p. 17), por sugestão de sua orientadora Jerusa Pires.

39Segundo Leite (2000), a expressão foi usada por Monteiro Lobato em um livreto da Companhia

Mato-Grossense de Petróleo, com data provável de 1937.40

O Estado de Mato Grosso foi dividido, em 1979, em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.

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O nome Pantanal aparece pela primeira vez em um texto de 172741. Deram o

nome mesmo sabendo que não se tratava de um pântano: “pantanosa não é um

topônimo, e sim um adjetivo, referente à qualidade do solo, terra pantanosa”,

esclarece Costa (1999, p. 279). Para Côrrea Filho (2009), Pantanal não é

simplesmente sinônimo de pântano, terreno brejoso, mas especifica uma vasta

região geográfica, de fisionomia singular.

Mesmo depois de nominado, o Pantanal continua a gerar dualidades. Um

lugar de belezas e perigos, de seca e cheia. Um paraíso e um inferno. Langsdorff,

que cruzou o pantanal em uma expedição em 1826, ao descrever a passagem pelo

lugar, parece fazer a descrição do inferno (COSTA, 1999, p. 249):

As contrariedades, as dificuldades e os perigos que havíamos sofridoaté então não eram nada em comparação com todas as desgraças eos tormentos que tivemos que sofrer subindo o Paraguai, o SãoLourenço e o Cuiabá. A estação das chuvas já tinha começado ecom elas apareceram milhões de mosquitos. As chalupas e osmarujos que, nesse clima abrasador, são obrigados a remar quasenus, estavam cobertos desses insetos a ponto de estaremenegrecidos e não achávamos nenhuma maneira de defender-nosdessas nuvens de vampiros. O Paraguai que flui muito lentamente écoberto de folhas, de raízes de árvores e de peixes podres, decrocodilos com cheiro de almíscar, de terra argilosa vermelha, e deuma espuma amarela nojenta. As águas são apenas potáveis. Ocalor do ar era geralmente de 26 a 29 graus à sombra; e o calor daágua do rio de 24. Fomos obrigados a renunciar ao prazer debanhar-nos nesse rio por causa do perigo que se corre de sermosdevorados pelas piranhas.

Em 1935/1936, o antropólogo Lévi-Strauss atravessou o Pantanal

para conhecer melhor os índios Bororo e Kadiwéu, no Mato Grosso e Mato Grosso do

Sul42. Ele descreve um lugar onde a estadia não é fácil e, apesar de demonstrar

grande conhecimento sobre a geografia do lugar, ainda usa em seu relato sobre o

Pantanal o termo dos primeiros viajantes (LÉVI-STRAUSS, 2007, p. 151):

(...) muitos viajantes cometem um contra-senso ao traduzirem MatoGrosso por “gran fôret” [grande floresta]; e nenhum termo poderia sermais apropriado para essa região selvagem e triste (...) Tão logo sepassa Aquidauana, entra-se no Pantanal: o maior pântano do mundo(...) ali passávamos dias sufocantes, respirando com dificuldade ebebendo a água do charco aquecida pelo sol (p. 157).

41“Pantanal chama os cuiabanos a umas vargens muito dilatadas, que começando no meio do

Taquari, vão acabar quase junto ao mesmo rio Cuiabá” (TAUNAY, 1891, p. 23).42

As aldeias estão situadas fora da área de abrangência deste trabalho.

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Peão de comitiva pega água do corixo para tomar tereré. Pantanal do Paiaguás, 2005.

A visão da mídia sobre o Pantanal

Essa dicotomia entre inferno e paraíso, existente desde as primeiras

narrativas, continua a ser usada pela mídia do século XX. A imagem que melhor

define, na mídia, o Pantanal, é a de santuário ecológico. Santuário não é usado

como “lugar consagrado pela religião”, como na definição do dicionário Aurélio

(1986), mas como um lugar não profanado, que se manteve intacto, portanto,

sagrado, longe das mãos e ações humanas. Em 2 de junho de 1999, Veja – a revista

de maior circulação no País – anunciava na capa: “A descoberta do Paraíso”. Nas

nove páginas destinadas à reportagem, falava da incrível explosão de vida selvagem

e justificava, assim, por que teria se mantido praticamente “virgem”’ e preservada: “O

clima inóspito, a natureza agreste, as imensidões inundadas, o isolamento – foi isso

que garantiu a preservação do Pantanal até hoje. Nenhuma outra região brasileira,

nem mesmo a Amazônia, continua tão intocada quanto à planície pantaneira”.

Na reportagem, a forma de descrever o Pantanal é muito parecida com a dos

primeiros narradores, como já se demonstrou: “fisionomias bem próximas daquilo

que o mundo cristão costuma qualificar de Paraíso”. Nos primeiros relatos, há mais

de trezentos anos, o que se tinha era o olhar dos mediadores entre a cultura

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“civilizada” a que eles pertenciam – eram europeus descrevendo as novas terras

descobertas – e a “primitiva”, sobre a qual eles não tinham quase nenhuma

informação. A mesma divisão dicotômica aparece na matéria da revista Veja.

Segundo Elias (1990, p. 23), o conceito de civilização expressa a consciência que o

Ocidente tem de si mesmo e, com ele, “a sociedade ocidental procura descrever o

que lhe constitui o caráter especial e aquilo de que se orgulha: o nível de sua

tecnologia, a natureza de suas maneiras, o desenvolvimento de sua cultura científica

ou visão de mundo, e muito mais”. Ele mostra, em um trabalho minucioso e

envolvente, como cada sociedade, cada uma em sua época, tentou moldar os

indivíduos segundo o padrão de hábitos, ideias e comportamento ideais e também

como o desenvolvimento do conceito de civilização foi diferente para alemães,

ingleses e franceses. Diante de um conceito tão amplo, já que ser civilizado ou não

pode representar o nível de tecnologia a que se tem acesso, o estágio do

conhecimento científico e uma infinidade de formas de manifestações sociais,

culturais, religiosas, e, por acreditar ter acumulado mais tecnologia, conhecimento,

valores culturais e outros, é que a sociedade ocidental se julga superior a

sociedades mais antigas ou contemporâneas “mais primitivas”. No próprio conceito

está o contraconceito geral a outro estágio: a barbárie (ELIAS, 1990, p. 62).

Aparecido, peão de comitiva, toma tereré. Pantanal da Nhecolândia, 2005.

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Segundo Lévi-Strauss, desde a Antiguidade, tudo o que não pertencia à

cultura grega ou greco-romana era classificado como “bárbaro”, e o termo selvagem

continuou a ser usado no mesmo sentido. Para o antropólogo, esse ponto de vista

ingênuo e tão arraigado no pensamento da maioria dos homens encobre um

paradoxo – na medida em que se pretende estabelecer uma discriminação entre as

culturas e os costumes que se identificam mais completamente com aqueles que se

tenta negar: “O bárbaro é em primeiro lugar o homem que crê na barbárie” (LÉVI-

STRAUSS, 1952, p. 23).

Dois anos antes da matéria de capa, a mesma revista (Veja, 16/9/1998) trazia

um enfoque semelhante no título: “O milagre dos peixes – Uma expedição vai à caça

de novas espécies num paraíso terrestre chamado Pantanal”. É o Pantanal

paradisíaco, marcado por mistérios, formas de vida rudimentares, que mais uma vez

desperta o interesse da mídia, ávida por modelos exóticos.

Para Gruzinski (2001, p. 29), valorizar o exótico é usar “um filtro sedutor, mas

ao mesmo tempo redutor”, e essa sedução vem “da nossa mania de largar o que

está perto para desencavar o que está longe”. Como se, ao lançar o olhar sobre um

lugar primitivo e rústico, comprovasse o “alto estágio de evolução” da cultura do

centro (p. 25). Assim, tudo o que parece ser arcaico e defasado em relação ao

cotidiano dos que vivem na modernidade parece pertencer ao passado: “é como se

sentíssemos um perverso prazer em fabricar as diferenças” (p. 25).

Outra questão que a reportagem da Veja levanta sobre o Pantanal é a do

isolamento: “O clima inóspito, a natureza agreste, as imensidões inundadas, o

isolamento”. Nem todas essas características geográficas e climáticas fizeram do

Pantanal um lugar “isolado”. Elas dificultam, sim, o acesso à infraestrutura e a

determinadas tecnologias, como a construção de estradas, redes de energia elétrica

e telefônica, entre outros. Esses fatores são determinantes no modo de vida local,

mas não são motivo de isolamento. No entender de Lévi-Strauss (1952, p. 17), salvo

em condições excepcionais, as sociedades nunca se encontram isoladas – a

Tasmânia, considerada um caso sem precedentes na história das populações

humanas, ficou 10 mil anos “isolada”. A questão é que as diferenças culturais nem

sempre são vistas como um fenômeno natural. Costuma-se repudiar o que é

estranho, desconhecido, e classificar de selvagem ou primitivo as “formas culturais,

morais, religiosas e sociais mais afastadas daquelas com que nos identificamos”

(LÉVI-STRAUSS, 1952, p. 21).

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Peões atravessam corixo em época de cheia. Pantanal da Nhecolândia, 2005.

O Pantanal tem, sim, algumas especificidades de geografia e clima que fazem

dele um lugar único em todo o mundo. Na verdade, o Pantanal é uma planície – a

maior planície alagável da terra, com 138.183 km!, e a maior parte (64,64%) está no

Mato Grosso do Sul43. Entre outros fatores, ele alaga porque tem um declive que

varia de 6 a 25 centímetros por quilômetro – é praticamente plano –, e com as águas

das chuvas que se acumulam na parte alta na época das chuvas, a água se

espalha, saindo dos leitos dos rios e abrindo novos caminhos entre corixos,

vazantes... O nível da água pode atingir 5 metros a mais do que no período da seca,

quando a água desaparece quase completamente da região. A vazão lenta – a água

pode levar até quatro meses para escoar por todo o Pantanal – abre, ainda, lagoas,

baías e outras formações, e essa água, sempre em constante movimento, muda

completamente a paisagem do lugar. As cheias nunca são iguais. Mudam a cada

ano e mudam de região para região. É que a combinação entre baixa declividade,

concentração das chuvas e a morfologia dos solos não acontece da mesma forma

em uma região tão grande, fazendo com que o Pantanal seja dividido em várias

microrregiões, os vários pantanais. No dizer poético de Manoel de Barros, o rio no

Pantanal: “se espraia amoroso, libidinoso animal de água, abraçando e cheirando a

terra fêmea”, para depois de “sestear”, ir “empurrando através dos corixos, baías e

43Dados segundo o site http://www.cpap.embrapa.br/, pesquisado em 5/1/2009.

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largos, suas água vadias”, para, então, voltar ao seu leito. Com pouco, “esse rio se

entedia de tanta planura, de tanta lonjura, de tanta grandeza”. E isso, “todos os

anos, como se fosse uma obrigação” (1985, p. 24).

A sazonalidade é um fator determinante no modo de vida atual do peão

pantaneiro. A atividade nas fazendas, a lida, se diferencia pelos períodos de seca e

cheia. Em função dela, cada vez mais os proprietários estabelecem contratos

temporários com os peões, gerando um fluxo maior entre o Pantanal e as cidades do

entorno, para onde eles vão no período que ficam sem trabalho nas fazendas –

muitos deles têm ou sonham ter uma casa na cidade (BANDUCCI JR., 2000).

Mesmo os peões que moram no Pantanal têm moradias temporárias dentro da

própria fazenda, os chamados retiros, e costumam revezar a moradia. Os solteiros

são considerados itinerantes, e a morada deles é no galpão, onde guardam suas

traias, penduram suas redes, contam causos, ouvem rádio (NOGUEIRA, 2002, p.

48). Isso faz com que o peão pantaneiro assuma características de um ser nômade,

em constante mudança, e não de um ser isolado do mundo ao redor.

Ao atribuir o isolamento como uma característica do pantaneiro em razão do

meio em que vive, a mídia se esquece que, por meio do contato pessoal, da

oralidade, do rádio e da TV, ele tem se conectado com outras culturas mesmo antes

de o Pantanal ser denominado como tal. As mudanças são percebidas pelos peões,

como esclarece seu Alonso44: “Hoje em dia é tudo moderno, peão dorme em cama,

em quarto com ventilador”.

Seu Alonso na frente do galpão onde dorme, o “apartamento” dele. Pantanal do Aquidauana, 2005.

44Entrevista gravada pela autora no Pantanal de Aquidauana.

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É claro que a troca não acontece ou pelo menos não é notada na mesma

intensidade e velocidade que nos centros urbanos. É Manoel de Barros quem nos

lembra: “As coisas que acontecem aqui, acontecem paradas. Acontecem porque não

foram movidas. Ou então, melhor dizendo: desacontecem” (1985, p. 33). As

sociedades, em relação à forma como processam seus textos, suas informações,

podem ser consideradas lentas ou rápidas. Ao analisar o procedimento construtivo e

a desautomatização em um texto cultural, Lotman aponta para o dinamismo

semiótico da cultura:

(...) as culturas cuja memória se satura fundamentalmente comtextos criados por elas próprias quase sempre se caracterizam porum desenvolvimento gradual e retardatário; ao contrário, as culturascuja memória torna-se periodicamente objeto de uma saturaçãomassiva com textos provenientes de outra tradição, tendem a um“desenvolvimento acelerado” (LOTMAN apud PINHEIRO, 2009, p.11).

As trocas e o nomadismo foram registrados bem antes de o Pantanal ser o

que é. Algumas tribos indígenas que habitavam a região tinham características

nômades. Holanda (1986, p. 69) aponta que os Kayapó, que viviam na rota até

Cuiabá, perto do Taquari – rio que corta os pantanais da Nhecolândia e Paiaguás –

eram índios “sem domicílio certo, sem lavouras que melhor os fixassem ou pouco

dados a elas”. Os Guató, com suas canoas, constituíam verdadeiras aldeias fluviais

(CÂMARA, 2007, p. 50).

E o contato entre tribos foram registradas pelos viajantes que cruzaram o

Pantanal em busca de riquezas, pois por causa da sazonalidade, de suas

constantes cheias, ele foi durante quase três séculos apenas um lugar de

passagem45, como mostrado neste trabalho. Após a assinatura do Tratado de

Tordesilhas, no final do século XV, a região passou a pertencer à coroa espanhola e

começou a atrair a atenção de nobres e aventureiros que, já no início do século XVI,

montavam expedições em busca de notícias – informações sobre lugares fabulosos

e ainda não conquistados (COSTA, 1999, p. 17).

Eles partiam de Assunção, via rio Paraguai, sempre acima, buscando as

notícias de índios ricamente vestidos em um lugar chamado então de Sierra de

45Segundo Maria de Fátima Costa (1999), a caracterização como lugar de passagem pode vir

também da presença dos índios e ausência de metais preciosos.

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Prata. Várias expedições depois, descobriram que as riquezas que adornavam

índios vistos na região pantaneira vinham do Peru. Segundo o relato de uma dessas

expedições, percebe-se que os índios já trocavam entre si: “Alguns aborígenes da

margem setentrional do nosso rio [o da Prata] usavam certas pranchas de metal que

obtinham, segundo explicaram, dos índios que viviam ao Norte” (COSTA, 1999, p.

34). Depois vieram as Bandeiras (século XVII) e a descoberta do ouro em Cuiabá

(1719), e o Pantanal continuou a ser um caminho de passagem. Os limites só foram

fixados após a Guerra do Paraguai (1864-1870). Os relatos que contam essas

histórias ajudam a esboçar os primeiros traços das imagens que compõem o atual

universo do peão pantaneiro, como se verá com mais detalhes a seguir.

Detalhe de botina com espora encobertas em parte pela calca de couro, Pantanal da

Nhecolândia, 2005.

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1.3 - As primeiras mestiçagens – O peão na visão do outro

Mato Grosso encerra em sua própria terraSonhos guaranis

Por campos e serras a história enterra uma só raizQue aflora nas emoções

E o tempo faz cicatrizEm mil canções

Lembrando o que não se dizMato Grosso espera esquecer quisera

O som dos fuzisSe não fosse a guerra

Quem sabe hoje era um outro paísAmante das tradições de que me fiz aprendiz

Em mil paixões sabendo morrer felizE cego é o coração que trai

Aquela voz primeira que de dentro saiE as vezes me deixa assim ao

Revelar que eu vim da fronteira ondeO Brasil foi Paraguai

(Música Sonhos guaranis, de Almir Sater e Paulo

Simões)

Comitiva atravessa o gado pelo rio Taquari, divisa do Paiaguás com Nhecolândia, 2005.

A tendência a descrever a região como um lugar indefinido – mar, lagoa, área

pantanosa e, finalmente, Pantanal – e a marcante dualidade entre cheia e seca,

entre paisagens paradisíacas e animais assustadores, nos relatos dos primeiros

viajantes e cronistas do lugar, também aparecem nessas descrições relacionadas

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aos homens que habitavam a região – eles aparecem como se pertencessem a

mundos muito diferentes daqueles onde viviam quem os descrevia: “riquezas

gigantescas, povos fantásticos e entidades sobre-humanas” (COSTA, 1999, p. 23).

Para Maria de Fátima Costa, essa tendência na descrição vinha da fantasia:

À medida que a geografia parecia querer fechar as portas de acessofísico, o homem abria outras, as da sua fantasia, para penetrar porvias imaginárias. Por este caminho inventaram-se maravilhas, sejamelas de riquezas gigantescas, de povos fantásticos ou da presençade entidades sobre-humanas. É dessa maneira que o Pantanal seinsere no paradigma da compreensão ambivalente que a Europacriou sobre o continente americano (COSTA, 1999, p. 26).

Essa compreensão não se restringe apenas ao olhar do estrangeiro, mas

também à própria visão que os brasileiros construíram de si mesmos, pois esses

primeiros relatos de viagens são praticamente os únicos que se têm desse período.

Gruzinski (2001) aponta que os “colonizados” não produziram quase nenhum

registro sobre esses episódios. E, por isso mesmo, essa compreensão permanece,

em parte, até hoje, como se viu na descrição de Lévi-Strauss (1952, p. 21) – de que

se repudia e classifica de selvagem ou primitivo o que nos é estranho.

Gruzinski (2001) alerta, ainda, de que muitas vezes, a análise é feita pela

dissecção, e isso “não tem apenas o inconveniente de fazer a realidade explodir; no

mais das vezes, ela projeta filtros, critérios e obsessões que só existem na nossa

visão de ocidentais”. Mais uma vez, o exemplo mais marcante dessa distorção está

no próprio conceito de civilização construído pela Europa Ocidental, segundo Elias

(1990) e Lévi-Strauss (1952, p. 20): “a Antiguidade confundia tudo o que não

participava da cultura grega (depois grego-romana) sob o nome de bárbaro; em

seguida, a civilização ocidental utilizou o termo de selvagem no mesmo sentido”. A

teoria que provém dessa dicotomia – dessa cisão entre civilizados e não civilizados

ou bárbaros e primitivos – tem sido usada por muitos estudiosos no momento de

definir e analisar o comportamento das sociedades, como se o primeiro fosse um

estágio pelo qual todos os outros ainda vão passar e atingir. E essa visão,

acostumada ao binarismo, não consegue enxergar o dinamismo das mesclas que

acontecem com os sistemas semióticos que estão em constante contato com novos

textos culturais, como é o caso das culturas da América Latina, entre as quais se

inclui a do peão pantaneiro.

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Aqui, mais uma vez, utiliza-se o conceito de semiosfera, de Lotman,

lembrando que ela tem um caráter de irregularidade interna marcada pelo núcleo, no

qual estão os sistemas semióticos dominantes, e setores periféricos, organizados de

maneira menos rígida. Esses são possuidores de construções flexíveis,

“deslizantes”, em que os processos dinâmicos encontram menos resistência e, por

conseguinte, se desenvolvem mais rapidamente (LOTMAN, 1996, p. 30). É por meio

dessa função da fronteira que, em diferentes momentos históricos do

desenvolvimento da semiosfera, um ou outro aspecto pode dominar, amortecendo

ou esmagando inteiramente o outro, ou gerando sistemas nos quais o núcleo

assume características de periferia.

Os seres impressionantes do Pantanal

As vias imaginárias que ajudaram a compor a imagem do peão pantaneiro

foram abertas há mais de quinhentos anos por meio das narrativas de Sebastián

Caboto46, de 1544, Alvar Núnez Cabeza de Vaca47, publicadas em 1555, Ruy Diaz

de Guzmán48, publicadas em 1835, tardiamente, pois foram escritas em 1612, e

Ulrico Schmidl49, datadas de 1567, com edições em vários anos. Schmidl viveu

durante 18 anos entre os rios Prata e Paraguai e foi quem primeiro “descreveu as

áreas alagáveis da bacia alto-paraguaia como lugar maravilhoso e paradisíaco”

(COSTA, 1999, p. 69). As publicações foram difundidas pelo mundo todo, com

edições em várias línguas, entre elas o espanhol e o alemão, mas ficaram

conhecidas como narrativas espanholas, por refletirem imagens criadas e difundidas

por conquistadores espanhóis. Além deles, outros viajantes ajudaram a colocar a

paisagem inundável da bacia do Alto Paraguai no imaginário ocidental.

Já foi citado que eram cristãos a serviço de seus reis e da Igreja. Segundo

Alexander von Humboldt (COSTA, 1999, p. 64), a intenção era dar um tom épico

para as narrativas e relevar o contato com os indígenas. Por isso, eles refletiam em

suas narrativas o tom dramático dos viajantes medievais e transmitiam um estranho

46Navegador veneziano, cosmógrafo e piloto a serviço da Espanha, buscava um caminho para o

Oriente quando mudou o itinerário em busca de riquezas – as notícias da época (COSTA, 1999).47

Cabeza de Vaca participou de uma expedição entre a Flórida e a Cidade do México, voltou para aEspanha e ganhou o governo do Rio da Prata. Queria conquistar riquezas. Foi preso e deportado.48

Guzmán nasceu em Assunção, no Paraguai, era filho de espanhóis e estava a serviço da Espanha.49

O alemão Ulrico Schmidl participou de uma das mais bem montadas empresas expedicionárias quesaíram da Espanha rumo à América. Ele chegou em 1535 e ficou até 1553.

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encantamento – o espaço que é, ao mesmo tempo, hostil, fantástico e paradisíaco.

E, como já foi mostrado, essa imagem ainda está presente na forma como a mídia

vê o Pantanal. Sobre o povo fantástico que habitava o Pantanal, Sebastián Caboto,

descreve, ao falar sobre a região do rio da Prata (OVIEDO apud COSTA, 1999, p.

39):

(...) a gente da dita terra é mui diferente entre si, porque os quevivem nas fraldas das serras são brancos como nós e os que estãopróximos da beira do rio são morenos. Alguns deles dizem que nasditas serras há homens que têm o rosto como cachorro, e outros dojoelho para baixo como de avestruz.

Uma das crônicas mais conhecidas sobre os seres impressionantes e ideias

fantásticas sobre a região pantaneira foi publicada em 1835, a partir de manuscritos

que circulavam desde o início dos Seiscentos. Trata-se de La Argentina, de Ruy

Diaz de Guzmán, em que é descrito que “a leste da cidade de Santiago de Xerez

existiria um povo de pigmeus, que vivia parte do tempo embaixo da terra, de onde

saíam os homens para os campos rasos” (HOLANDA, 1986, p. 135). Santiago de

Xerez, considerada por muitos estudiosos uma cidade lendária, teria sido fundada

pelo próprio Guzmán em 1593, para marcar a posse espanhola na região, e teria

sido invadida e destruída pelos bandeirantes luso-paulistas em 1632, para também

marcar a presença na região50.

Como se viu antes, ao descrever o desconhecido, o narrador inventa. E

assim, ao se depararem com o índio, os primeiros viajantes criaram em seus relatos

um imaginário sincrético, um pouco católico, outro tanto indígena (BOSI, 1992, p.

31), transpondo modelos de interpretação consagrados em sua cultura de origem:

A transposição para o Novo Mundo de padrões de comportamento elinguagem deu resultados díspares. À primeira vista, a culturaletrada parece repetir, sem alternativas, o modelo europeu; mas,posta em situação, em face do índio, ela é estimulada, para nãodizer constrangida, a inventar (BOSI, 1992, p. 31).

Esses cronistas descrevem o enorme peixe-jacaré, registram hábitos entre os

índios Surucusis e Xarayes como o uso das argolas redondas de madeira e o

50Um dos prováveis lugares para a cidade é em Aquidauana (MS), onde estão sendo feitas

escavações e já foram encontrados vestígios de antigas civilizações. Disponível em:http://portalms.com.br/noticias/arqueologos, site pesquisado em 2/3/2009.

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costume de perfurar os lábios (COSTA, 1999, p. 67). E já nessas primeiras incursões

em território pantaneiro, começam as mesclas entre visitantes e indígenas. Eram

várias tribos51, cada uma com características bem diferentes entre si – desde as

mais pacíficas, como os Guató, do grupo Guaná, que foram vestidos pelos

estrangeiros, conforme relata Holanda (1986, p. 48): “precisou socorrer com camisas

de algodão a uns índios guatós”; até as mais guerreiras, como os Guaykuru, e

algumas antropófagas.

Essas mesclas, é claro, não foram sempre tão amigáveis, como já visto.

Holanda (1986, p. 59) descreve assim: “É o confronto de duas humanidades tão

diversas, tão heterogêneas, tão verdadeiramente ignorantes, agora sim, uma da

outra, que não deixa de impor-se entre elas uma intolerância mortal”. Foram muitos

os atos de crueldade e barbárie descritos nos relatos dos viajantes, como ver o

corpo dos companheiros cortados em muitos pedaços: “É que aquela gente [os

índios da bacia do Prata] come carne humana, não os haviam comido nem queriam

aqueles índios tal carne, porque diziam que é muito salgada” (COSTA, 1999, p. 36).

Em edições ilustradas, como na de Schmidl de 1597, são destacadas cenas de

antropofagia espanhola cristã e queima de homens (COSTA, 1999, p. 68).

Assim como os índios da costa, analisados por Viveiros de Castro no ensaio

A inconstância da alma selvagem (2006), alguns indígenas do oeste brasileiro

também não foram facilmente “convertidos” pela cultura dos que chegavam. Vale

lembrar que os visitantes, os estrangeiros, ainda agiam como guerreiros cristãos,

mas, em vez dos mouros, enfrentavam aqui guerreiros pagãos, que andavam nus e

tinham outros deuses52. Nos primeiros contatos, podiam matar e comer até aqueles

com quem tinham se aliado. Um registro desse tipo vem por intermédio da

expedição de Juan Diaz de Solís, primeiro piloto do rei da Espanha. Em 1515, ele

subia a região da bacia do Prata em direção ao Peru quando foi atacado e morto,

com outros integrantes da expedição, pelos Charruas, índios Guarani que habitavam

a costa do Uruguai: “Mataram a Solís com sua gente, e os comeram à vista dos que

estavam na caravela” (COSTA, 1999, p. 33).

51Segundo a Funai (http:www.funai.gov.br/mapas/fr_mapa_fundiario.htm, consultado em 24/4/2009),

o MS tem a segunda maior população indígena do País, com 32.519 índios em 9 grupos indígenas.No Pantanal, vivem basicamente duas: Guató e Kadiwéu. Em 1872, eram 30 grupos no estado de MT– Relatório da Diretoria-Geral dos Índios (VASCONCELOS, 1999, p. 96).52

Citação feita a partir de Costa (1999, p. 63), que lembra que, antes de saírem em busca de novasterras e riquezas, os europeus defenderam a Igreja nas Cruzadas.

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Logo depois, o português Aleixo Garcia – náufrago de Solís – partiu da atual

Santa Catarina, subiu o rio Paraná, cruzou o Gran Chaco – hoje, parte do pantanal

no Paraguai, Argentina, Bolívia e Brasil – e foi recebido com amabilidade, fazendo

alianças com os índios:

(...) atravessando a terra através dos índios Guaranis, chegaram aoRio Paraguai; como foram recebidos e agasalhados pelos moradoresdaquela província, convocaram toda a comarca, para que fossejuntamente com eles à parte do poente para descobrir e reconheceraquelas terras, de onde trariam muitas roupas de estima, e coisas demetal (...) e como gente cobiçosa e inclinada à guerra, decidiram-secom facilidade a ir com eles (COSTA, 1999, p. 34).

No final da descrição, entende-se melhor a que o autor se referia quando

falava em inclinados à guerra. Com a ajuda dos índios Guarani, os portugueses

conseguiram chegar à terra dos Charca, no Peru, onde encontraram as riquezas

procuradas, mas: “encontrando algumas povoações de índios vassalos do Poderoso

Inca, Rei de todo aquele reino, deram neles e roubando e matando quanto

encontravam” (COSTA, 1999, p. 34). Os Charca fazem, então, os portugueses

marcharem de volta ao Paraguai junto com os Guarani, e Aleixo Garcia chega a

enviar cartas relatando o êxito da viagem e parte do tesouro para os companheiros

que ficaram em Santa Catarina. E, enquanto espera a resposta, é morto pelos

“mesmos que foram com ele à jornada; uma noite estando descuidado, atacaram e

mataram ele e seus companheiros”.

No relato, é bastante contraditória a descrição de índios amáveis, que

recebem e agasalham e, ao mesmo tempo, são cobiçosos e inclinados à guerra.

Para Viveiros de Castro (2006, p. 207), tanto na amabilidade como na guerra, o que

está em jogo é a mescla, a absorção do outro: “guerra mortal aos inimigos e

hospitalidade entusiástica aos europeus, vingança canibal e voracidade ideológica

exprimiam a mesma propensão e o mesmo desejo: absorver o outro e, neste

processo, alterar-se”.

Já para Ribeiro (2001, p. 35), a antropofagia era vista como a expressão do

atraso (ele analisou o povo Tupi): “Comiam seus prisioneiros de guerra porque, com

a rudimentaridade de seu sistema produtivo, um cativo rendia mais do que

consumia, não existindo, portanto, incentivos para integrá-lo à comunidade como

escravo”. Para ajudar o Brasil a situar-se em sua própria história, desenvolveu uma

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teoria da cultura no livro O processo civilizatório, retomada depois em O dilema da

América Latina e também em O povo brasileiro e outras publicações. A teoria

baseia-se, principalmente, no conceito que ele chama de transfiguração étnica – o

processo pelo qual os povos surgem, transformam-se ou morrem.

Em essência, defende que os povos nativos (índios) da América não tiveram

a oportunidade de evoluir como os seus colonizadores, que se encontravam em um

estágio de evolução mais adiantada quando chegaram ao continente53. Esse

conceito repete, no entanto, o mesmo modelo dicotômico já descrito, que pressupõe

uma linha de evolução para todos os povos – os mais atrasados hoje podem vir a

conquistar maior estágio de evolução, como os que estão na ponta da cadeia.

O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro estudou a antropofagia por meio

do exocanibalismo dos Tupinambá – eles comiam o inimigo vencido e preferiam

morrer em mãos alheias – e afirma que a prática, para aquele povo, está relacionada

a motivos, por um lado, de ordem sociológica e coletiva e, por outro, de ordem

escatológica e pessoal. Eles tinham “horror ao enterramento e à putrefação do

cadáver”, mas não era por piedade que devoravam os inimigos, mas sim por

vingança e honra – “ela era justamente a instituição que produzia a memória”

(VIVEIROS DE CASTRO, 2006, p. 233). Era a morte individual a serviço da longa

vida do corpo social. Atrás da atitude, o obscuro desejo de ser o “outro” (VIVEIROS

DE CASTRO, 2006, p. 195).

O absorver o outro a que ele se refere também aconteceu entre os índios

mais dóceis que também habitavam a região. Os Guató, que ainda vivem na região

pantaneira e foram descritos pelos primeiros desbravadores do Pantanal, só não

foram exterminados pelos europeus pela cordialidade (CÂMARA, 2007, p. 51).

Holanda (1986) também registra a facilidade com que alguns índios se entregaram

ao domínio dos estrangeiros. Quando os bandeirantes chegaram à região do Itatim,

situada mais ao sul da área em estudo, os índios teriam facilmente se entregado

para fugir dos espanhóis. Segundo depoimentos da época, de “bom grado se

deixavam capturar, falando mil iniquidades dos castelhanos” (HOLANDA, 1986, p.

56). O termo cordialidade e seu contrário, bravio, têm como referência a adaptação

ou não aos costumes dos que chegavam à região. Para os bravos, arredios e

53Ribeiro (2001, p. 29) afirmou: “se a história, acaso, desse a esses povos Tupi uns séculos mais de

liberdade e autonomia, é possível que alguns deles se sobrepusessem aos outros, criando chefaturassobre territórios cada vez mais amplos (...)”.

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selvagens, a perseguição, o castigo, a morte. Aos “pacificados” e “amigos da

civilização”, concessões e até proteções, como a proibição do uso de meios

violentos contra eles (VASCONCELOS, 1999, p. 44).

Peões atravessam o rio Taquari, levando a traia dos cavalos, 2005.

Ao analisar o sucesso dos portugueses diante do fracasso dos espanhóis na

ocupação do atual sul de Mato Grosso, que inclui a região em estudo, Holanda

(1986, p. 49) aponta para a mestiçagem – foi a aptidão que os primeiros tiveram “no

absorver e no conservar certos recursos indígenas”, portanto na interação com a

cultura deles. E descreve o uso das canoas monóxilas (feitas de um tronco só), que

foram “herdadas dos antigos naturais da terra e aperfeiçoadas com novos elementos

vindos do ultramar” (HOLANDA, 1986, p. 49). Até hoje no Pantanal, as canoas feitas

de um só bloco de madeira são muito usadas. Elas dão apoio para as comitivas de

gado na travessia dos rios e grandes corixos, levando a traia da tropa. E são

importantes em muitos outros momentos da vida pantaneira.

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Vandir joga laço que ele mesmo trançou. Fazenda Nhumirim, Pantanal da Nhecolândia, 2005.

O uso do cavalo pelos espanhóis, segundo Holanda (1986), não ajudou na

conquista da região em virtude das dificuldades impostas pela vegetação e pelas

águas. Os bandeirantes, ou mamelucos paulistas, como ele os chama, tiveram mais

resistência nas longas marchas feitas a pé: “bons atiradores de escopetas, mas

nada exercitados em caminhos” (HOLANDA, 1986, p. 50). Ele credita a esses

homens o reconhecimento de toda a área que “não podia ser domada senão a custa

de muitos e mortais sacrifícios” (HOLANDA, 1986, p. 48). Mas o uso do cavalo é

contestável. Como se viu, ele ajudou os índios cavaleiros a manterem o domínio da

região durante longo tempo. E seu uso é primordial. O cavalo – e a traia – é o bem

mais importante para o peão pantaneiro. E, ao contrário da época em que os

bandeirantes cruzavam o lugar, encontrar marcas de pegadas humanas no Pantanal

é sinal de problema: “Andar a pé no Pantanal tem conotações insólitas (...) e, não

raro, se transforma em fantásticos boatos e até visões sobrenaturais” (BARROS,

1998, p. 156). Por isso, no Pantanal, até quando um peão é mandado embora, ele

recebe um cavalo.

Assim, a conquista da região foi feita com mestiçagens, com processos

maleáveis, às vezes mais violentos, outros extremamente pacíficos. Um processo

que envolvia retroceder, quando preciso, “a formas de vida mais arcaicas, espécie

de tributo requerido para o melhor conhecimento e a posse da terra” (HOLANDA,

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1986, p. 29). Foi assim, usando os conhecimentos dos índios, que os bandeirantes

descobriram, por acaso, o ouro em Cuiabá. Foi desse modo que os índios

aprenderam a usar o cavalo. Foi dessa maneira que um aprendeu a língua do outro

– assim como os jesuítas tiveram que aprender a língua dos indígenas para

catequizá-los, os índios aprenderam a falar espanhol54. Portanto, tanto para os

estrangeiros que chegavam quanto para os moradores do lugar, as relações entre

eles foram construídas “com a consistência do couro e não do bronze, cedendo,

dobrando-se, amoldando-se às asperezas de um mundo rude” (HOLANDA, 1986, p.

29).

E até hoje, os proprietários de fazendas pantaneiras reclamam que os

funcionários de “ascendência” indígena, os “bugres”, não seguem lei nem ordem,

largam tudo por qualquer coisa: vivem o imprevisto, são capazes de dormir

tranquilos sem saber sequer o trabalho do dia seguinte; o tempo, para eles, não

possui a pontuação de prazos e metas55. Viveiros de Castro (2006, p. 186) alega

que a inconstância não era apenas uma questão que dizia respeito à religiosidade,

mas

(...) ela passou, na verdade, a ser um traço definidor do caráterameríndio, consolidando-se como um dos estereótipos do imaginárionacional: o índio mal-converso que, à primeira oportunidade, mandaDeus, enxada e roupas ao diabo, retornando feliz à selva, presa deum atavismo incurável. A inconstância é uma constante na equaçãoselvagem.

Peão pantaneiro em depoimento gravado em Campo Grande, 2005. Detalhe do dente de ouro.

54Quando chegaram ao país do Rei Branco, os espanhóis ficaram assustados quando os índios

daquele lugar “vieram ao encontro deles e começaram a falar espanhol” (COSTA, 1999, p. 42).55

Barros (1998) em vários momentos de Gente pantaneira: crônicas de sua história.

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O império da nação Guaykuru

Um exemplo claro no Pantanal do que é comer o outro vem dos Guaykuru.

Eles absorveram características culturais de outros índios e dos próprios europeus e

latinos que cruzaram seus rios e seus domínios. Como foi mostrado, quando os

bandeirantes chegaram à região pantaneira, já encontraram índios com uma cultura

mesclada, donos de cavalos, usando lanças em vez de arco e flecha e grandes

laços de couro trançado. “Os primeiros que deram notícias desses bárbaros foram

os paulistas, e já os encontraram senhores de grandes manadas de gado vacum,

cavalar e langero” (PRADO apud HOLANDA, 1986, p. 61).

Jonas: “Sou descendente de índio. (...) Minha vó que era índia.” Pantanal da Nhecolândia, 2005.

E mesmo já pertencendo ao domínio ibérico, ora espanhol, ora português, o

Pantanal foi um território indígena por excelência – a nação Guaykuru: “talvez o

Pantanal seja o único lugar onde uma nação indígena [Mbaya Guaykuru] pôde

reconquistar e dominar, por quase dois séculos, uma região já possuída pelo

conquistador europeu” (COSTA, 1999, p. 33). Dessa nação fazia parte os Payaguá,

de origem Guaykuru, descritos nos primeiros relatos como traidores e, a partir da

passagem dos bandeirantes pelo lugar, ficam conhecidos como os senhores do rio

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Paraguai56. Para fugir das lanças usadas por eles, os Guató se valiam da qualidade

de bons canoeiros e faziam manobras na água ao atravessarem o Taquari

(HOLANDA, 1986, p. 58). A habilidade surpreendia os narradores: “podem vir abaixo

montanhas de água umas sobre outras, bramar tempestades até o cansaço, que o

Payaguá de pé sobre a ponta extrema de sua embarcação, prosseguirá remando

completamente impávido frente a elas” (DOBRIZHOFFER apud COSTA, 1999, p.

49).

Habilidade e sabedoria também eram relacionadas aos Guaykuru quanto à

montaria. Montavam descalços, dominavam os cavalos, eram rápidos. Já usavam

laços trançados com maestria. Foram descritos pela agilidade fora do comum nos

movimentos, pela coragem, por serem guerreiros: “Pouco faltou para que

exterminassem todos os espanhóis do Paraguai” (AZARA apud HOLANDA, 1986, p.

70). Eles mantinham sob o domínio deles outras tribos, como os Guaná, os Guató,

os Xamacoco (da região do Chaco) e os Chiquitos, para fazer “aquelas coisas que

eles próprios não se rebaixavam a fazer” (AZARA apud HOLANDA, 1986, p. 71).

Foram retratados como heróis, com traços semelhantes aos dos colonizadores:

Estatura de um metro e noventa, já tinham, do ponto de vistasomático, traços distintivos de uma raça senhoril (...) todos os seusatos e gestos refletem, de fato, essa mentalidade de senhores, queem poucos povos sul-americanos é partilhada no mesmo grau

(AZARA apud HOLANDA,1986, p. 71).

Nessa descrição de Sérgio Buarque de Holanda, pode-se perceber um pouco

do preconceito – sobre o qual se falará ainda neste trabalho – com que os povos sul-

americanos foram e são vistos até hoje pelos intelectuais e pela mídia, de forma

geral. O domínio dos Guaykuru durou até a Guerra do Paraguai (Guerra da Tríplice

Aliança – 1864-1870), quando, finalmente, o território pantaneiro foi, de fato,

incorporado ao Brasil, e a região começou a ser dividida e ocupada pelas fazendas

pantaneiras (COSTA, 1999, p. 51).

56Segundo Alcides D’Orbigny (apud COSTA, 1999), o nome do rio Paraguai vem deles – Pauaguá-i,

rio dos Payaguás.

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1.4 - A implantação das fazendas – novas mesclas culturais

“O mundo é pequeno agora.”

(Fala de Picolé de Onça,

peão da fazenda Rio Negro)

Peões trabalham com gado no curral. Fazenda Curva do Leque, Pantanal da Nhecolândia, 2005.

O Pantanal tal como é hoje para o peão pantaneiro começou a ser formatado

a partir do século XIX, quando as minas de ouro em Cuiabá se esgotaram. Mato

Grosso já era uma capitania, Cuiabá, um centro importante para a colônia e

Corumbá, às margens do rio Paraguai, um ponto comercial em contato por via fluvial

com os países da América do Sul – principalmente com as cidades de Buenos Aires,

Montevidéu e Assunção – e a Europa. O rio Paraguai era importante também para

defender o território português da cobiça dos espanhóis, e ali se instalaram fortes

militares. Começam então ações, como a concessão de sesmarias57 por parte do

governo da capitania para tomar posse das faixas de fronteira, ainda indefinidas – a

57“(...) O direito às glebas restringia-se aos homens brancos, de ‘sangue puro’ e, dentre eles, aos

indivíduos que apresentassem real capacidade de fazê-los produzir, ou seja, àqueles que de antemãopossuíssem escravos, gado e outros bens de produção” (BANDUCCI JR., 2000, p. 21).

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maior parte, no Pantanal (NOGUEIRA, 2002, p. 43). E outras mesclas culturais se

fazem.

Os primeiros proprietários que receberam a posse da terra da coroa

portuguesa eram, principalmente, portugueses cheios de títulos, como o Barão de

Vila Maria, que fundou a primeira fazenda na região em estudo, mas ela foi

abandonada na época da Guerra da Tríplice Aliança, a Guerra do Paraguai (1864-

1870). O filho dele, Joaquim Eugênio Gomes da Silva – apelidado de Nheco –,

reconstruiu a fazenda após a guerra (1881), e ele é considerado o desbravador da

região hoje conhecida por Nhecolândia em sua homenagem (PROENÇA, 1992).

As fazendas reproduziam o estilo de vida dos engenhos de cana-de-açúcar

do norte do estado e nelas era empregada mão de obra escrava – ter escravos era

uma das condições para a concessão das sesmarias. Assim, além dos mamelucos

de São Paulo58, mineiros e outros bandeirantes (anteriormente atraídos para Cuiabá

por causa do ouro), mais um elemento – o negro – é incorporado à cultura do

Pantanal. A miscigenação é apontada pelo pesquisador Corrêa Filho (2009, p. 204),

ao relatar que, na ausência do proprietário, quem tomava conta da fazenda eram os

camaradas, termo usado para designar o trabalhador, neste trabalho chamado de

peão: “em cujas veias se misturava sangue dos antigos senhores da região, de

africanos e avós brancos, em dosagens variadas”. E ele afirma que, em uma

escritura de compra de fazenda, de 1827, além da sesmaria de 13.068 hectares, o

proprietário adquiria também dois escravos.

A posse das sesmarias não foi pacífica – os índios resistiram a entregar o seu

território. Como já mostrado, os Guaykuru eram senhores dessas terras e são

considerados por alguns autores os primeiros fazendeiros do Pantanal, pois, além

de usar o cavalo para montar, aprenderam com os espanhóis a manejar o gado

(WEINGARTNER, 2002, p. 17). Mas não foram os únicos a resistir. Conflitos muito

semelhantes aos que aconteceram nos séculos XVII e XVIII entre índios e as

expedições foram registrados em relação às sesmarias, mas na região já não havia

antropófagos.

Os cronistas agora são homens como Barbosa Rodrigues, mineiro, fundador

de um dos maiores grupos de comunicação de Mato Grosso do Sul, que, ao

relatarem a história, enaltecem a coragem e a bravura dos primeiros povoadores:

58Essa expressão é usada por Holanda (1986) para se referir aos caboclos paulistas que integravam

as Bandeiras e Monções.

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“enfrentaram dificuldades imensas, ora lutando contra animais ferozes, ora contra

insetos, aves de rapina, não se falando das tribos selvagens que assaltavam as

suas propriedades e vararam muitos deles com suas flechas pontiagudas”

(RODRIGUES, 1983, p. 58). Ele escreve que, em 1742, um sertanista radicado em

Mato Grosso assinou um termo de compromisso para o extermínio dos Kayapó59 e

conta como, em três meses, “muitas centenas de guerreiros Caiapós foram mortos

pelas armas dos aguerridos homens de Pires de Campos” (p. 41). Relata como os

Guaykuru eram índios traidores, que não cumpriam os acordos feitos (p. 57-58) e

também dificultavam a posse da terra pelos portugueses – naquela época se

acreditava que as desavenças eram decorrentes da amizade anterior que esses

tinham tido com os espanhóis.

Assim, os índios foram expulsos, dizimados ou incorporados. Banducci Jr.

(2000, p. 23) mostra que, depois de “subjugados e desfeitos os laços grupais”,

muitos indígenas foram trabalhar como peões nas fazendas de gado. Em 1946,

Corrêa Filho (2009, p. 204) já apontava esse dado: “Nos pantanais do Miranda, a

escassez de pessoal, conjugada com a boa vontade dos naturais, ensejou a

colaboração dos silvícolas, terenos60 especialmente, que se revelaram auxiliares

prestimosos dos pioneiros”. E continua: “Com tais elementos étnicos, em cuja massa

preponderou o caboclo regional, descendente de bororo, de pareci, de guató,

povoaram-se as fazendas”.

Essa incorporação da mão de obra indígena, apesar de traumática, acontece

da mesma forma que ocorreu em praticamente todo o Brasil – mesmo diante da

deculturação e da dizimação, houve trocas (GRUZINSKI, 2001, p. 35). Nem brancos

nem índios eram os mesmos depois do contato. Os índios aprenderam a cavalgar e

os brancos, a usar a canoa. Gruzinski, ao olhar para o Brasil, observa que os índios

do rio Negro, na Amazônia, ao longo de todo o século XVII, ora podiam escravizar,

ora podiam tornar-se escravos de holandeses ou portugueses (2001, p. 32). E

muitos eram os que comumente são chamados de brancos – espanhóis,

portugueses, paraguaios, brasileiros (os mestiços, como os mamelucos) –, assim

como múltiplos eram os índios – só na região do Pantanal: Guató, Bororo, Kadiwéu,

Payagua, Guaykuru, Guaná... cada um com características bem peculiares.

59Os Kayapó eram divididos em três grupos, e os do sul habitaram o atual Mato Grosso do Sul até o

século XVIII.60

Índios da tribo Terena.

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Como já foi mostrado, na região do atual Pantanal, muitos índios já tinham

tido contato com os jesuítas nas missões do Itatim, no sul de Mato Grosso, outros

com os espanhóis e, ainda, com os bandeirantes. Assim, quando as fazendas

pantaneiras são implantadas, o que eles levam para lá são todas essas mesclas e

mestiçagens que vinham se fazendo nos últimos séculos, e que continuaram a

acontecer. Gruzinski (2001) aponta que é nos espaços de mediação criados pelo

enfrentamento de duas culturas, como aconteceu na colonização do Novo Mundo,

que aparecem e se desenvolvem novos modos de pensamento capazes de

transformar o que elas têm de autêntico. Esses espaços são fronteiras semióticas

porosas e flexíveis, que se deslocam, mas diante da dificuldade em pensá-la assim,

pode-se resumir

(...) a história da conquista a um enfrentamento destruidor entre osbons índios e os malvados europeus, com a convicção e boa-fé queoutrora se recorria para contrapor os selvagens da América aosconquistadores civilizadores. Esse modo de ver as coisas imobiliza eempobrece a realidade, eliminando todo tipo de elementos quedesempenham papéis determinantes: as trocas entre um mundo eoutro, os cruzamentos, mas igualmente os indivíduos e grupos quefazem as vezes de passadores, e que transitam entre os grandesblocos que nós nos contentamos em localizar (GRUZINSKI, 2001, p.48).

Outro exemplo dessa forma empobrecedora de ver a realidade está em outra

incorporação na mão de obra das fazendas pantaneiras: a dos paraguaios, que

ocorreu principalmente depois da Guerra do Paraguai61. Já foi mostrado como a

cultura deles se mescla com a do Pantanal na produção dos textos culturais do peão

pantaneiro e também na forma de pronunciar as palavras. Mas é bem mais do que

isso. A presença deles está também no linguajar pantaneiro, com muitas palavras de

origem guarani. Nos costumes, na polca paraguaia (que também tem outras

incorporações musicais), no comportamento lento e tranquilo – preconceituosamente

chamado de preguiçoso.

61Mauro César Silveira aponta que na delimitação da fronteira, após a guerra, foram incorporados

aproximadamente 40% do total do território do Paraguai ao Brasil. Fonte: Intercom – Revista

Brasileira de Ciências da Comunicação, 44, São Paulo, v. 30, n. 2, p. 44, jul./dez. 2007. Sendo assim,os paraguaios apenas permaneceram em sua terra natal quando as fazendas de pecuária foraminstaladas nas proximidades da atual fronteira.

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Tião, peão paraguaio, protege laço ao atravessar vazante. Fazenda Baía das Pedras, 2005.

O preconceito contra o paraguaio é herança da época da guerra62, segundo

mostra a pesquisa de Mauro César Silveira (2007) sobre o jornal Paraguay

Illustrado, que circulou durante a guerra. Nele, eram veiculadas charges e matérias

com conteúdos que atribuíam aos paraguaios e ao Paraguai características

negativas, falsas. Elas ajudaram a formar ideias-imagens que até hoje fazem parte

da memória não só do Pantanal, mas também da mídia e dos brasileiros como um

todo. Delas fazem parte expressões como “cavalo paraguaio”, usada pelo canal

SporTV e pela Folha de S. Paulo, em 1975, “made in Paraguai”, usada pela revista

Veja, em 2001 (apud SILVEIRA, 2007), e assim por diante. O cronista Barros (1985,

p. 215) reconhece a imagem negativa que têm: como peões, “são subservientes,

não conseguem poupar, vivem o imprevisto”. E reconhece também a grande

habilidade dos paraguaios em lidar com o couro e a madeira, sendo eles os grandes

realizadores de cercas, currais e outras construções pantaneiras.

Outros elementos foram incorporados à cultura do Pantanal por meio das

mesclas a partir de Corumbá, uma cidade que, até as primeiras décadas do século

XX, convivia com o luxo (BARROS, 1985, p. 119) e mantinha fortes vínculos

comerciais com o exterior a partir da bacia do rio da Prata. Navios partiam dali para

a Argentina, Uruguai e países europeus carregados de carne, couro e produtos

62As marcas do preconceito no jornalismo brasileiro a e história do Paraguay Illustrado. In: Intercom –

Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, 42, São Paulo, v. 30, n. 2, p. 41-66, jul./dez. 2007.

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derivados das indústrias de charque, os saladeiros, implantados no entorno da

cidade. Voltavam trazendo mercadorias importadas, comerciantes turcos, sírios,

libaneses e outros estrangeiros, como italianos, árabes e portugueses63. Era ali que

os fazendeiros abasteciam suas fazendas. Em 1914, vieram os trilhos da estrada de

ferro e a região se voltou para o leste. A mão de obra ociosa das charqueadas – a

maior parte era paraguaia – também foi absorvida pelas fazendas. E, pelos trilhos,

vieram gaúchos, paulistas, gente de todo lugar.

São tantas as misturas que, em um dado momento, fica difícil perceber de

onde vêm as mesclas, as interferências ou contribuições de cada uma delas.

Gruzinski (2001, p. 85) interroga-se diante da questão: “onde começa o mundo

indígena, onde termina o dos conquistadores? Os limites entre um e outro são a tal

ponto imbricados que se tornam indissociáveis”. Quando se olha para a cultura do

Pantanal e todas as mesclas que fazem parte dela, é praticamente impossível

dissociá-las. Postas em contato, em um meio completamente diferente do que

tinham em sua origem, elas perdem a referência, perdem as condições e o conteúdo

por intermédio dos quais as relações poderiam se estabelecer. Ali, frente a frente,

não estão mais uma cultura paraguaia e uma indígena, mas fragmentos de uma e de

outra (GRUZINSKI, 2001, p. 87), e de muitas outras que se juntaram a elas.

É isso o que nos interessa – as mesclas que se fazem entre elas, as

interações que formam a cultura do peão pantaneiro. E todas elas, cada uma a seu

modo, como se viu no decorrer deste trabalho, foram sendo colocadas lado a lado

em um ambiente cheio de especificidades – o Pantanal. Como diz Martín-Barbero

(2006, p. 30), o que se busca é algo radicalmente diferente: “não o que sobrevive de

outro tempo, mas o que no hoje faz com que certas matrizes culturais continuem

tendo vigência, o que faz com que uma narrativa anacrônica se conecte com a vida

das pessoas”. Mas a tendência, conforme aponta Gruzinski (2001, p. 25), é situar as

referências culturais sempre no passado, contrapondo os estragos do “progresso” às

resistências da tradição:

(...) inúmeros lugares da América continuam pertencendo aopassado – pelo menos é assim que denominamos o que nos parecearcaico e rústico – embora imersos cotidianamente nos imagináriosplanetários. (...) Como explicar esse reflexo, essa inclinação

63Entre 1874 e 1876 foram emitidos 5 mil vistos para estrangeiros em Corumbá (BARROS, 1985, p.

215).

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irresistível que nos impele a procurar o arcaísmo em todas as suasformas, a ponto de ignorarmos, voluntariamente ou não, o que tocade perto ou de longe a modernidade? É como se sentíssemos umperverso prazer em fabricar as diferenças.

Durante os últimos cem anos, o peão pantaneiro está inserido em um

ambiente em que parece que pouca coisa mudou. Mas é só aparência. As fazendas

– latifúndios que chegavam a ter mais de 100 mil hectares – estão sendo divididas

entre herdeiros (BANDUCCI JR., 2000, p. 32), mas mesmo assim ainda são grandes

propriedades: em mais da metade da área (56%), elas têm mais de 10 mil hectares.

A fórmula da pecuária extensiva – pouca mão de obra para grandes rebanhos –

também se mantém. Somando isso aos fatores ambientais, que provocam

sazonalidade e pouca fixação do homem, como já mostrado, o Pantanal tem uma

das mais baixas densidades demográficas do País64. O peão Jonas, retratado no

início deste capítulo, é um exemplo disso: o rebanho do qual ele cuida, de 5 mil

cabeças de gado, está em uma área de 10 mil hectares. Em épocas de atividade

normal, ficam na fazenda, no máximo, cinco pessoas.

Até a década de 1950, a maior parte dos proprietários morava no Pantanal, e

essa é uma das principais mudanças na estrutura das fazendas pantaneiras. As

datas religiosas eram marcadas por grandes festas, o gado era vendido em leilões

que também se transformavam em dias de festa e a fazenda agregava em sua

estrutura todos os componentes de um pequeno núcleo urbano. Os peões eram

empregados fixos, só iam para a cidade em situações especiais e casos de doenças

e praticamente não recebiam dinheiro: os patrões faziam compras na cidade para

eles a partir de listas ou tinham lá uma despensa em que todos se abasteciam. O

proprietário se juntava aos peões na lida, e o que existia era uma camaradagem,

como mostra Banducci Jr. (2000) em sua pesquisa. O funcionamento da fazenda

chegava a ser semelhante ao de um núcleo feudal, em que o senhor das terras

implantava também as leis, o modo de ser dos peões. Belkiss Rondon, proprietária

de fazenda na Nhecolândia, conta que:

Até pouco tempo atrás quando você perguntava – fulano, de ondevocê é? Ele dizia – eu sou gente de fulano de tal, é como se elesfossem propriedades das fazendas, isso não existe mais, com o

64A densidade demográfica é de menos de 0,9 hab./km!. Disponível em:

http://www.ibge.gov,br/home/estatistica/populacao/atlas_saneamento/pdfs/mappag101.pdf. Acessoem: 5/5/2009.

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advento da TV, do cinto de fivelão prateado, que são coisascompletamente diferentes dos padrões pantaneiros65.

Paulo Rondon, nascido e criado no Pantanal, é um exemplo de como os

peões eram formatados pelos patrões e como a vida do peão e a do patrão estavam

vinculadas:

Eu atravessei pelas bandas do Paiaguás em 1983 e estou pra lá atéhoje, vinte e poucos anos. Criei meus filhos, aí fui trabalhar como oDr. Emílio. Tomei conta de fazenda 14 anos, que a gente lutou praeles aí e hoje são uns homens muito poderosos aí na região doPaiaguás, são uns fazendeiro grande. Os filhos, o doutor Paulo,doutor Emílio, são uns homens muito legal, como patrão e comoamigo, aproximou muito a gente da profissão66.

Paulo Rondon e o filho descarregam barco na travessia do Porto Rolon, na divisa do Paiaguás eNhecolândia, 2005.

As fazendas ainda funcionam praticamente como núcleos independentes um

do outro, com sua própria infraestrutura, com verdadeiras ilhas – pouco povoadas –

dentro da imensidão pantaneira, mas elas estão em contato com tudo o que

acontece ao redor. As dificuldades de comunicação são menores que as de acesso,

que ainda persistem. São poucas as estradas – a estrada Parque Pantanal, com 120

65Entrevista gravada em 2005 na fazenda Fazendinha, Pantanal da Nhecolândia.

66Entrevista com o peão Paulo Rondon no Porto Rolon, Pantanal do Paiaguás.

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km de extensão, é a maior e mais estruturada da Nhecolândia e foi aberta a partir de

uma trilha feita por boiadeiros e pelo marechal Rondon no século XIX, por onde

passava a rede de telegrafia. A rede de energia elétrica é insuficiente67 e muitas

fazendas ainda usam o óleo diesel para gerar eletricidade. As dificuldades para

implantar redes de energia são as mesmas para telefonia fixa, mas muitas fazendas

– e peões – têm telefone celular. As pousadas e unidades de turismo têm sido

implantadas com o mesmo padrão de funcionamento das fazendas de pecuária, mas

trazem mais movimento, novos meios de comunicação, idiomas. Nelas, geralmente

o peão é transformado em guia turístico. Passam a bater cartão de ponto, usar

celular, aprendem inglês e conhecem outras necessidades, outros limites:

Mudou muito, transporte, comunicação, energia, salário, seguroassim, de funcionário, entre patrão e funcionário, mudou muito, sóquem veve aqui que pode vê isso, mas quem não mora, não vênada. (...) A gente nem percebe que, se você não tem bastantedinheiro, você não sente falta dele, agora se você teve, tipo, eu nãotinha banheiro para tomar banho, então eu não achava falta porquevocê nunca teve aquilo. Se você trabalhava depois das cinco horas enão recebia, então aí não achava falta daquele dinheiro, você natotinha uma casa com ventilador de teto, você não achava falta de

nada disso, agora, se de repente falta, você pode achar falta68

.

Baiano, peão pantaneiro, passa cartão eletrônico de ponto na fazenda Rio Negro, 2005.

67A assessoria da Enersul, atual Redes de Energia, empresa concessionária, informa que na área

rural de Corumbá há rede de energia elétrica, mas não tem dados de quantas fazendas sãoabastecidas por essa rede.68

Entrevista com Hélio Martins, peão conhecido como Picolé de Onça, gravada na fazenda RioNegro, na Nhecolândia, onde foi gravada a novela Pantanal.

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Picolé, um peão que passou a trabalhar como motorista dos turistas que

chegam à fazenda Rio Negro, na época da gravação da novela Pantanal, chegou a

ajudar na produção da novela, como se verá no terceiro capítulo, recebeu convites

para sair dali, mas respondeu com um “não tenho vontade”. E justifica: “Eu posso ser

um bom sanfoneiro, mas daqui. (...). Cada pessoa tem o seu território. (...). O mundo

é pequeno agora”. E, ali, no meio do Pantanal, eles se sentem inseridos nesse

mundo em constante mudança: “Se eu embarco num avião pra viajar com um piloto,

se ele falar – cê quer levar? Tudo bem, me dá aí, eu levo (ri), então, prá mim, não

tem nada difícil”. E mesmo o Pantanal é visto como um lugar onde tudo muda: “A

gente que veve aqui, não conhece tudo. Às vezes seca, aparece um banco de

areia...”.

Picolé de Onça e seu Japão durante gravação de Terra das águas. Fazenda Rio Negro, 2005.

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As festas nas fazendas encolheram, são mais raras e foram transferidas para

as cidades, como a festa de São João, em Corumbá. Os encontros agora

acontecem em viagens, que se tornaram mais frequentes, principalmente por meio

das chalanas, que levam e trazem passageiros, gado, carga, entre outros, pelos rios

do Pantanal. E, pelas ondas do rádio e da TV, os peões pantaneiros recebem outras

mesclas que vão sendo incorporadas na sua imagem, como já foi mostrado e se

verá com mais detalhes nos capítulos seguintes.

Peões na chalana, em viagem no Rio Taquari. Eles chegam a passar dias embarcados, 2005.

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CAPÍTULO 2

A INSCRIÇÃO DO RÁDIO NA CULTURA MESTIÇA DO PANTANAL

2.1 - Rádio: um meio e muitas mediações

“Vinha eu da filosofia e,pelos caminhos da linguagem,

me deparei com a aventura da comunicação.E da heideggeriana morada do ser

fui parar com meus ossos na choça-favela dos homens,feita de pau a pique,

mas com transmissores de rádio e antenas de televisão.”(MARTÍN-BARBERO, 2006, p. 27)

Peão ouve rádio enquanto cozinha em acampamento de comitiva. Pantanal da Nhecolândia, 2005.

“Uma nova época do ouvir está anunciada.”(KAMPER apud BAITELLO, 2005, p. 108)

Vozes69 que anunciam, vozes que quebram distâncias, vozes que agregam,

vozes que enviam recados, vozes que apontam caminhos, que alegram, que

integram... O rádio não é só meio, é mediador cultural: opera social e culturalmente,

por meio dos diversos gêneros radiofônicos (MARTINS, 2002, p. 80). Passados mais

de cem anos da sua invenção70, um pouco mais de oitenta de sua operação como

69O termo aqui engloba os efeitos sonoros acrescidos às vozes dos interlocutores do rádio, que,

apesar “de serem vozes de pessoas, em virtude da intensidade e da força imaginativa (...), ganhamum valor próprio e se transformam em personagens” (LOPES, 1988, p. 131).70

Considera-se aqui a invenção do rádio por Roberto Landell de Moura, mesmo período em queGuglielmo Marconi também revelava suas descobertas: 1893.

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79

meio de comunicação71, o rádio continua sendo um poderoso instrumento de

mobilização social, entre tantas outras funções que pode desempenhar. E, ao

comunicar, entreter, educar, politizar, alienar e catequizar, também cria vínculos,

interações, sincroniza os tempos de cidadãos que moram em grandes cidades,

como mostrou Menezes (2007) e também os que moram no Pantanal sul-mato-

grossense, como se pretende mostrar aqui.

O poder de mobilização que o rádio teve em diferentes sociedades é

incontestável. Estão aí exemplos como o da propagação do nazismo na Alemanha,

a criação da imagem populista dos governantes na ditadura brasileira e até mesmo a

criação de um momento de pânico nacional, com cidades sendo esvaziadas por

causa da transmissão de A guerra dos mundos, feita por Orson Welles inspirado no

livro homônimo de H. G. Wells, na rádio Columbia Broadcasting System, a CBS, nos

Estados Unidos, na noite de 30 de outubro de 1938. O rádio era o meio de

comunicação mais usado naquela época e, ao transmitir de forma ficcional a invasão

da terra por marcianos, foi tão convincente que gerou medo e muita confusão,

levando moradores a abandonarem suas casas em busca de refúgio72.

É claro que essas situações só podem ser colocadas em um mesmo patamar

para comparação em virtude da mobilização pelo rádio. O primeiro exemplo estava

relacionado com a proximidade da guerra e a eficácia do uso da comunicação, sobre

a qual Hitler, no livro Minha luta, já anunciava que tinha sido a palavra falada, e não

a escrita, a responsável pelas grandes transformações históricas e “salientava a

necessidade da propaganda ser popular e de se equiparar ao nível intelectual da

capacidade de compreensão dos mais ignorantes” (LENHARO apud HAUSSEN,

1988). O segundo, que diz respeito ao caso brasileiro – e de demais países latino-

americanos –, tem a ver com o populismo, discurso político usado na época do

surgimento e sedimentação do rádio. Era um período em que se construía uma

cultura e identidade nacionais: o País estava se industrializando, a população do

campo migrou e, com a migração, trouxe a hibridação das classes populares, uma

nova forma de se fazerem presentes na cidade. Nesse contexto, o populismo fez

uso da eficácia do rádio – um meio acessível aos públicos não letrados, vale lembrar

71Alguns estudos indicam que a instalação da primeira rádio no País ocorreu em 1919, com a Rádio

Clube de Pernambuco. A Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, considerada a primeira oficial do Brasil,é de 1923.72

Dados disponíveis em: http://www.pucrs.br/famecos/vozesrad/guerradosmundos/index2.htm.Acesso em: 01 nov. 2009.

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– como forma de apelo às tradições populares e à construção de uma cultura

nacional:

o papel decisivo que os meios massivos desempenham nesseperíodo [1930-1950] residiu em sua capacidade de se apresentaremcomo porta-vozes da interpelação que a partir do populismoconvertia as massas em povo e o povo em Nação (MARTÍN-BARBERO, 2006, p. 233).

No caso de A guerra dos mundos, aconteceu o que se chamou de

“decodificação aberrante”, resultado da junção dos gêneros de rádio e televisão, o

que multiplica as formas de recepção. Landi afirma que o ouvinte pode captar as

diferenças de gênero e aceitar como verdadeiro tudo aquilo que está inserido no

contexto noticioso e, como ficcional, tudo o que está dentro do gênero do

radioteatro. E lembra que o noticioso, em seu caráter de espetáculo, tem a

possibilidade de uso de diversos códigos para decifrar cada gênero, de misturá-los e

confundi-los.

Os gêneros são um dispositivo por excelência do popular já que nãosão somente modos de escrita, mas, também, de leitura, um lugardo qual se lê, se olha, se decifra e se compreende o sentido de umrelato (LANDI apud HAUSSEN, 1988).

O conhecimento sobre esses modos de leitura divergentes, os lugares de

onde se lê, é um dos motivos que impedem que se generalize o rádio como meio de

manipulação, que não encontra nenhum tipo de resistência, como pensavam os

estudiosos de comunicação quando ele surgiu e teve o crescimento vertiginoso que

teve. Por isso, os primeiros estudos sobre esses meios estavam focados em saber

como eles manipulavam suas audiências, pois a súbita expansão do rádio, do

cinema e da televisão levou a crer que eles substituiriam as tradições, as crenças e

solidariedades históricas por novas formas de controle social. Canclini (2008, p. 253)

mostra que, quando as ondas sonoras começaram a envolver multidões, essas já

estavam homogeneizadas:

A rigor, o processo de homogeneização das culturas autóctones daAmérica começou muito antes do rádio e da televisão: nasoperações etnocidas da conquista e da colonização, nacristianização violenta de grupos com religiões diversas – durante aformação dos Estados nacionais –, na escolarização monolíngue ena organização colonial ou moderna do espaço urbano.

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Esse pensamento encontra ressonância também em Martín-Barbero (2006, p.

52), para quem a cultura de massas surge um século antes do que a maioria dos

manuais para estudiosos de comunicação costuma apontar: “por volta de 1835

começa a ser gerada uma nova concepção do papel e do lugar das multidões na

sociedade e ela traz o ‘medo das turbas’ e o desprezo das minorias pelo ‘sórdido

povo’”. E mostra que o primeiro esboço do conjunto, que dá origem ao conceito de

massa, vem de Tocqueville: se antes a ameaça estava fora – as turbas ameaçando

a sociedade com sua barbárie –, agora está dentro, dissolvendo o tecido das

relações de poder, erodindo a cultura, desintegrando a velha ordem, dando os

primeiros passos para o início da democracia moderna.

Esse é um aspecto muito importante para se analisar de que forma o rádio se

insere na cultura do peão pantaneiro, pois ainda hoje persiste o pensamento de que

o rádio e outros meios considerados de massa são os agentes de homogeneização

das “sociedades rurais”, distantes geograficamente dos grandes centros, de culturas

ditas “isoladas” e “puras”, como a pantaneira. Já se demonstrou no primeiro capítulo

as mesclas que ocorreram no Pantanal ao longo dos últimos séculos. E, no final dos

anos 1960 e início dos 1970, quando o programa Alô Pantanal, que se vai analisar

aqui, começou a ser transmitido, muitas mudanças estavam em trânsito na região.

Os donos das fazendas já não eram os únicos senhores a quem os peões se

reportavam, pois os peões já não eram propriedade dessa ou daquela fazenda,

como afirmou Belkiss Rondon.

Muitos peões passaram a receber salário e eles mesmos faziam suas

compras na cidade, o que aumentou o trânsito entre a cidade e o Pantanal. Os filhos

dos peões, a exemplo do que acontecia com os filhos dos proprietários, também

foram estudar na cidade, pois nem sempre havia uma escola pantaneira por perto.

As escolas pantaneiras, como são voltadas para a alfabetização, são de

responsabilidade dos governos municipais. Nas fazendas visitadas, três tinham

escolas: Tupanciretã, Baía das Pedras e Aguapé. Todas estão vinculadas ao

município de Aquidauana, que ao todo tem sete núcleos escolares. Na fazenda

Tupanciretã, a 180 km da cidade, está o Núcleo Escolar Cyriaco da Costa Rondon.

Funciona com uma sala multisseriada do 1º ao 5º ano, com um total de 14 alunos,

muitos deles vindos de outras fazendas – as filhas do peão Jonas, da fazenda

Fazendinha, estudam ali. Elas vão de trator na segunda-feira e só voltam para casa

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no final de semana, pois o acesso é muito difícil, porque está localizada em uma

planície de fácil inundação.

Crianças deixam a escola pantaneira na fazenda Tupanciretã, de propriedade da família Rondon,2005.

As fazendas ficavam menores por causa da divisão de terras entre herdeiros,

proprietários vindos de outros estados e países. Eles chegavam mudando costumes,

tradições e trazendo novas formas de relacionamento e novas relações de trabalho.

Quando o rádio chegou ao Pantanal, umas três ou quatro décadas antes, algumas

dessas transformações já estavam em andamento, e o Pantanal não era tão isolado

assim.

A onda da integração chega ao Pantanal

Ao contrário do que queria o marechal Deodoro da Fonseca73, na região do

Pantanal foi o rádio, e não o telégrafo, que colocou em prática o “tão sonhado”

projeto de integração nacional pela comunicação (MACIEL, 1999). O que estava por

trás da iniciativa do Império – tão personificada na figura de Cândido Rondon, que

acompanhou de perto a abertura de picadas na mata para a instalação da rede – era

o sonho de um país integrado pelos fios telegráficos, pois com eles seria possível

73Deodoro da Fonseca era inspetor de fronteiras e seguia a determinação do Império em integrar e,

principalmente, proteger o território nacional, já que em 1864 as tropas de Solano Lopes invadiram osul de Mato Grosso, expondo a fragilidade das fronteiras do País (ZAREMBA, 2003, p. 186).

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integrar a nação, vencer a distância geográfica e redimir o interior do País do seu

atraso material e cultural: “as terras indígenas, acreditavam articuladores políticos,

seriam incorporadas e os índios transformados em ‘brasileiros’” (ZAREMBA, 2003, p.

188, grifo nosso). Tais intenções fizeram do telégrafo um dos índices para aferir o

progresso e o avanço civilizador no País. Laura Antunes Maciel cita o seguinte

trecho proferido pelo marechal Rondon em uma conferência em São Paulo na

década de 1920:

(...) onde quer que chegue o telégrafo (...) ali far-se-ão sentir osbenéficos influxos da civilização. Com o estabelecimento da ordem,obtida pela facilidade com que os governos podem agir [para]distribuir o bem público e a justiça, virá fatalmente odesenvolvimento do homem e das indústrias (apud MACIEL, 2001).

Entre 1900 e 1906, o “progresso” chegava ao Pantanal, por meio da

construção da linha telegráfica entre Cuiabá e Corumbá, alcançando as fronteiras do

Paraguai e da Bolívia. Representava mesmo um avanço – naquela época, uma

viagem entre Cuiabá, a capital de Mato Grosso, e o Rio de Janeiro, capital do País,

demorava trinta dias (ZAREMBA, 2003, p. 188). A iniciativa resultou no incentivo da

instalação da rede telefônica de Cuiabá, cuja empresa de telefonia contabilizava

duzentos assinantes em 1913; nessa data a cidade nem mesmo tinha rede de

energia elétrica (MACIEL, 2001). Na parte sul do estado, foi a partir da linha traçada

pela rede para a instalação do telégrafo de Rondon74 que se abriu a principal estrada

– única, até então – para o Pantanal da Nhecolândia, a estrada Parque Pantanal,

antiga rodovia da Integração. Apesar de ter sido aberta tantas décadas depois, o

nome dado traz o mesmo ideal: o da integração.

No entanto, por trás da integração que se pretendia na época do Império,

estava a necessidade de reforçar e proteger as fronteiras do País, ameaçadas pela

recente Guerra do Paraguai, e também a de tomar posse do território, recém-

demarcado. Mas ele não era, assim, tão atrasado, como se pensava do lado oposto

do continente, na capital Rio de Janeiro. Antes da Guerra, essa região da fronteira

se voltava para o comércio e integração com os países da bacia do Prata, como foi

citado no capítulo anterior. E após o término dela, com a instalação do Arsenal da

Marinha em Ladário, ao lado de Corumbá, a navegação internacional é retomada e

74A casa onde funcionou a estação de telégrafo ainda existe e está situada no Porto da Manga, às

margens do rio Paraguai.

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surge na cidade “uma burguesia mercantil mais identificada com os países da Bacia

do Prata do que com a própria nação e governo representado pela distante capital,

Rio de Janeiro” (FONSECA, 1998, p. 84). O porto de Corumbá atraía a atenção de

comerciantes de várias nacionalidades:

(...) a tendência de crescimento de um circuito mercantil dinâmico,abastecedor da grande e distante região de Mato Grosso – corredorde mercadorias e matérias-primas –, e a oferta de terras baratas ouaté mesmo gratuitas – oferecidas pelo Estado como incentivo oficialà colonização – correspondeu aos fatores determinantes de umsignificativo fluxo de estrangeiros e nacionais, na fronteira sul mato-grossense (CORREA apud TONIAZZO, 2007, p. 83).

Corumbá, portanto, era um importante entreposto da fronteira, realizando

comércio com o Uruguai, Argentina e países da Europa e, até 1930, foi o terceiro

maior porto da América Latina. Ali atracavam navios com bandeiras inglesas,

portuguesas, francesas, entre outras. Traziam vinho, cimento, telhas; levavam carne,

couro, erva-mate. Corumbá chegou a ter 25 bancos internacionais, entre eles o City

Bank, e a libra esterlina, moeda oficial da Inglaterra, também era moeda corrente

(CORREA apud TONIAZZO, 2007, p. 86). Portanto, profundas transformações

econômicas e sociais estavam acontecendo depois da Guerra do Paraguai na área

incluída naquela que o Império acreditava precisar dos “benéficos influxos da

civilização”. A mais forte delas foi o incessante fluxo de estrangeiros, principalmente

paraguaios, conforme mostra Nelson Werneck Sodré, que alega que se podiam fixar

limites territoriais, mas não barreiras:

O fim da luta, em vez de acarretar uma delimitação permanente, umdivórcio entre os grupamentos de origem brasileira e de origemparaguaio-guarani, contribuiria para entrelaçá-los, confundi-los cadavez mais (SODRÉ, s/d, p. 105).

A integração tão sonhada da região com o restante do País só aconteceria,

efetivamente, por meio das redes – primeiro, a ferroviária, cujos trilhos partiam de

Bauru e chegavam até Corumbá, onde faziam interligação com a rede ferroviária

boliviana – e, depois, das emissoras de rádio e televisão. O rádio, portanto, não

chegou ao Pantanal modificando uma cultura “pura”, intocada, que estaria ali

preservada do contato com a população urbana. Quando o rádio chega ao lugar, já

encontra ali um cenário de mestiçagens muito forte.

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Corumbá: cenário mestiço para as transmissões radiofônicas

“Deste lado é Corumbá.Além da cansação,

nós temos cuiabanos, chiquitanos, pau-rodados eturcos.

Todos por cima de uma pedra branca enormeque o rio Paraguai borda e lambe.”

(Manoel de Barros, 1985, p. 13)

Peão passeia em Corumbá em intervalo de viagens de comitiva, 2005.

Foi nesse cenário, marcado pelas mesclas de culturas e relações comerciais

internacionais, que o rádio surgiu na região do Pantanal. A Rádio Difusora

Matogrossense, de Corumbá, está entre as mais antigas do País: foi fundada75 em

1934, apenas 11 anos após a instalação da primeira emissora de rádio brasileira, a

Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, de 1923. A empresa hoje faz parte do Grupo

Pantanal de Comunicação, que tem um jornal semanário, a Folha da Região, uma

agência de comunicação e uma rádio de frequência modulada que integra a Rede

Bandeirantes de Rádio, a Band FM. Desde 1980, a Rádio Difusora Matogrossense,

que produz o Alô Pantanal, está sob o comando de Uriel Raghiant e Caibar Silva

Pereira. A emissora opera em ondas médias, AM, na frequência de 1.360 khz, com

75Fonseca (1998, p. 62). Vera Lúcia Leite Lopes (2003, p. 251) também cita que a primeira rádio de

Mato Grosso era de Corumbá.

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um transmissor de 2.500 watts, o que permite alcance em um raio de 250 km,

“graças às características da região pantaneira (plana e alagada), que facilitam a

propagação das ondas eletromagnéticas” (FONSECA, 1998, p. 87).

Não foram localizados registros sobre a programação da Rádio Difusora

Matogrossense na época76 nem sobre a capacidade técnica dela nos primeiros

anos. A trajetória da emissora na cidade não deve, portanto, diferenciar-se do que

aconteceu no restante do Brasil, onde a radiodifusão começa com cunho

nitidamente educativo e, nos primeiros anos, segue os padrões de difusão cultural

comuns na Europa: “os pioneiros estavam distantes da realidade da maioria da

população e pensavam a cultura a partir de pressupostos europeus”

(BITTENCOURT, 1999, p. 13). No início, a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro

transmitia óperas diretamente do Teatro Municipal. As emissoras eram associações

entre amigos e, portanto, recebiam o nome de sociedade, de clube: “as primeiras

emissoras tinham sempre em sua denominação os termos clube ou sociedade, pois

na verdade nasciam como clubes ou associações formadas pelos idealistas que

acreditavam na potência do novo meio” (ORTRIWANO, 1985, p. 14).

A década de 1930, quando a Rádio Difusora Matogrossense começa suas

transmissões, é considerada a época de afirmação do rádio como meio de

comunicação de massa do Brasil. A autorização para transmissão da propaganda, a

difusão do samba e da marchinha e o sistema elétrico de gravação de discos foram

algumas das características que permitiram um caráter mais popular ao rádio

(BITTENCOURT, 1999, p. 17). Depois vem o período que é considerado os anos de

ouro do rádio brasileiro e, com ele, a radionovela. E aqui, um detalhe interessante: a

primeira radionovela foi Em busca da felicidade, transmitida pela Rádio Nacional em

1942. O autor – o dramaturgo Oduvaldo Vianna – começou a escrever radionovela

no período em que viveu e trabalhou na Rádio El Mundo, em Buenos Aires. Quando

voltou ao Brasil, resolveu lançar o gênero no País. A radionovela, portanto, já de

origem, vem incorporada com outras referências culturais.

O radiojornalismo também começa nesse período e vem marcado pelo

modelo americano, principalmente com o boletim Américas em guerra, que foi

desenvolvido pelos norte-americanos em formato de radioteatro, utilizando

sonoplastia e efeitos sonoros. Ele era transmitido pelas rádios brasileiras em

76Essas informações não fazem parte dos objetivos da pesquisa, mas acredita-se que podem ampliar

o entendimento sobre como se dão as mestiçagens na cultura do peão pantaneiro.

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português (BITTENCOURT, 1999, p. 22). Não é propósito deste trabalho analisar a

trajetória do rádio no Brasil, mas essa contextualização é importante, porque

emissoras de rádio do interior, como a de Corumbá, seguiam as emissoras dos

grandes centros e as da capital do País. Um exemplo disso é demonstrado por Vera

Lúcia Leite Lopes em sua dissertação de mestrado Rádio A Voz D’Oeste: construção

e cidadania. Em Cuiabá, capital mato-grossense, a comunicação acontecia apenas

pelas linhas do telégrafo. Voltando do Rio de Janeiro, maravilhado com o rádio, o

cuiabano Deodato Monteiro trouxe alguns componentes e montou um aparelho

receptor. Ouvia as notícias e corria para a janela de sua casa, gritando a todos que

passavam os últimos acontecimentos. Ganhou o apelido de boateiro (LOPES, 2000,

p. 23). Em 1934, ele funda a Rádio Sociedade de Cuyabá, que não teve sucesso. A

primeira emissora oficial do estado, a Rádio Clube A Voz D’Oeste, viria somente em

1939, cinco anos após a emissora de Corumbá.

A popularização do meio rádio se deu principalmente a partir de 1947, com a

invenção do transistor, que tornou o rádio acessível, de fácil manuseio e de baixo

custo para a população (BUFARAH, 2003, p. 151). Mas bem antes disso já havia

aparelhos de rádio no Pantanal, como fica claro na descrição feita por Renato Alves

Ribeiro (1984) sobre a Fazenda Taboco, no Pantanal do Aquidauana:

Quando comprei o primeiro rádio a bateria para o Taboco77, lá por1941, aquilo foi uma grande novidade. O pessoal vinha em casaouvir o rádio. E havia lá no Retiro Mangabal uma boa senhora, jáidosa, que gostava de tocar violão e cantar (...) ela não se fazia derogada para cantar nas reuniões do pessoal (1984, p. 31).

Abílio Leite de Barros, proprietário de terras e autor de crônicas sobre o

Pantanal e sua gente, conta que no início, quando o rádio chegou às fazendas

pantaneiras, ele ficava ligado a enormes baterias, pois não havia energia elétrica.

Conta também que os peões chegavam a fazer uma montagem com pilhas, unindo

umas às outras, para melhorar a capacidade dos aparelhos. Segundo ele, na

década de 1940 o rádio já era bem popular entre os peões e uma mostra disso era a

constante inclusão de pilhas na lista de pedidos deles para os patrões78.

77A Taboco, no Pantanal do Aquidauana, é uma das mais antigas fazendas do Pantanal: foi fundada

entre 1820 e 1830.78

Entrevista concedida para a autora em 9 de outubro de 2009.

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Longe dos jornais e revistas, de ouvido colado no rádio

O peão que vive hoje no Pantanal, portanto, cresceu ouvindo rádio, um

aparelho que “desemboca músicas e falas estranhas”79, no dizer do poeta Manoel de

Barros. Falas estranhas como as vozes que transmitem jogos de futebol e ajudam a

ter espalhados pelo Pantanal torcedores do Flamengo, do Santos, do Grêmio, ou de

qualquer outro time, independente se a bola rola a 40 ou 4 mil quilômetros dali; ou

como as que repercutem as notícias do Brasil, do mundo e sobre os assuntos

específicos da região, como a data de vacinação contra a febre aftosa, a previsão e

níveis de cheias do rio Paraguai, principal rio da planície pantaneira. Enfim, é

principalmente pelo dial do rádio que quem mora no Pantanal ainda hoje se conecta

com o mundo ao seu redor.

Apesar de não se ter conhecimento de nenhuma pesquisa de medição de

audiência específica para a região em estudo80, pode-se dizer que o rádio ainda é a

mídia mais importante para os moradores do Pantanal81. Um dos argumentos que

permite fazer tal afirmação é que, em razão das dificuldades de acesso impostas

pela ausência de estradas e pelo ciclo das águas, não há circulação de publicações

impressas com regularidade na região, a não ser pelas mãos dos proprietários,

moradores e visitantes que vêm das cidades da redondeza. Os peões têm acesso à

esses meios quando estes são levados até a fazenda ou quando eles estão na

cidade, mas o alto índice de analfabetismo entre eles os mantém afastados desse

tipo de mídia. A TV, hoje presente em muitas fazendas82, não tem uma programação

voltada para esse público. Por outro lado, ela tem o uso controlado por causa do

fornecimento precário de energia elétrica, como se verá no próximo capítulo.

Para o rádio, não há restrições. Pequeno, fácil de transportar e de manusear,

movido a pilhas83, ele está incorporado ao dia a dia do peão, independentemente da

função que ele desempenha e do vínculo de trabalho que tem – se mora na cidade e

é funcionário temporário nas fazendas ou se tem residência fixa no Pantanal. Ele

79Fonte: http://www1.uol.com.br/bibliot/turismo/pantanal.htm. Acesso em 27 nov. 2009.

80Foram consultados Ibope e Datafolha e não foi encontrado nenhum registro específico sobre

Corumbá.81

Segundo dados do Ministério do Meio Ambiente, o rádio é o veículo com maior alcance na regiãopantaneira. Fonte: http://www.portaldomeioambiente.org.br. Acesso em 12 maio 2008.82

Segundo informações fornecidas pela TV Morena de Corumbá, o sinal alcança toda a extensão doPantanal.83

A principal fonte de energia ainda hoje é a pilha, por causa da precariedade da rede elétrica e pelapraticidade de uso.

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acompanha os peões de comitiva preso à sela e é ligado em praticamente todas as

paradas: na hora do almoço, no final da tarde, quando vão montar o acampamento,

antes de dormir, ao acordar. Está nos currais durante o trabalho com o gado, está

nas cozinhas durante as refeições, no galpão dos peões durante os preparativos

para a lida ou pendurado em um canto enquanto trançam o couro, enfim, está

sempre ligado durante as atividades, seja no campo, no retiro, na estrada. O

costume de ouvir rádio foi observado, entre outros, pela pesquisadora Albana Xavier

Nogueira (2002, p. 48): “Nele [no galpão], os vaqueiros guardam suas traias, armam

suas redes, e, quando largam cedo a lida do campo, jogam umas partidas de truco,

escutam rádio, tocam violão, contam piadas”.

Rádio entre as traias no rancho do retiro. Fazenda Baía Bonita, Pantanal da Nhecolândia, 2005.

“É a nossa diversão”, diz seu Dito, o morador do rancho da Vazante do

Castelo, ao tentar explicar porque o pantaneiro ouve tanto rádio. Com 46 anos de

idade, sempre vividos no Pantanal, diz preferir morar no retiro84 com a mulher,

porque “não gosta de ajuntamento de gente”. O isolamento a que se submete por

escolha própria é quebrado pelas ondas sonoras, que, além de trazerem a diversão,

84Retiro é um rancho em área distante da sede usado para a estadia dos peões durante o trabalho

com o gado. Muitas vezes, torna-se a moradia fixa dos peões.

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como diz seu Dito, resgatam a concepção humana do comunicar como atividade

vinculadora, como se verá adiante.

2.2 - Alô Pantanal: um canal direto para o homem pantaneiro

“Quem ouvir favor avisar!”(Trecho do programa Alô Pantanal

85)

Peões da comitiva do seu Renê escutam programa Alô Pantanal. Pantanal do Paiaguás, 2005.

A atividade geradora de vínculos aparece várias vezes durante a transmissão

do programa Alô Pantanal: “Quem ouvir, favor avisar”. O locutor reforça a rede

criada por meio de seus ouvintes, pois, mais do que ouvir as mensagens, eles

podem dar o recado para aqueles que não estavam ouvindo o programa. Assim, no

Pantanal, é o rádio que cumpre o papel de interlocução direta com o homem que

vive na região. Nem tanto por meio do jornalismo diário, mas, sim, de programas

específicos para o homem que mora na área rural, como o Alô Pantanal, transmitido

pela Rádio Difusora Matogrossense e A hora do fazendeiro, da Rádio Clube. Os dois

são bastante parecidos em seu formato e linguagem, e o primeiro foi escolhido para

fazer parte do corpus desta pesquisa por estar mais tempo no ar, desde 1968. Os

85Programa da Rádio Difusora Matogrossense, gravado em Corumbá, em 31 de março de 2009.

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dois programas estiveram sob o comando de dois profissionais – Ronaldo Rey ficou

no Alô Pantanal até 1979 e depois foi para a concorrente apresentar A hora do

fazendeiro; Luiz Ribeiro Quidá, conhecido como Lalá, assumiu o programa da

Difusora e o mantém até hoje como era há mais de quarenta anos. Esse fator

também influenciou na escolha do programa para integrar o corpus, pois o fato de

ficar tanto tempo no ar, praticamente sem sofrer modificações em seu formato e

linguagem, é uma mostra de que funciona, tem audiência. Outra característica

preponderante na escolha foi o fato de ele dedicar o tempo integral para a

transmissão de mensagens entre quem está na cidade e no Pantanal. O próprio

locutor anuncia essa função quando o programa começa:

Boa tarde meus amigos aqui de Corumbá, aí de Ladário, aí da zonarural. Graças a Deus já estamos aqui iniciando o nosso AlôPantanal. É a maneira mais fácil do pessoal aqui da cidade secomunicar aí com os moradores aí dos sítios, chácaras e fazendas.Sonoplastia a cargo do Aguinaldão (Anexo I).

Apesar da presença do sonoplasta Aguinaldão, uma das grandes diferenças

entre os programas Alô Pantanal e A hora do fazendeiro é a inserção de músicas,

trilhas sonoras ou som ambiente. Elas são muito comuns no programa da Rádio

Clube, praticamente todo o programa é sonorizado, e menos presentes no da

Difusora. Nas duas horas de programa do dia 31 de março de 2009, foram 12

inserções musicais. Uma delas é a música de abertura, geralmente ligada aos temas

regionais. Outras quatro inserções estavam ligadas a anúncios de shows e festas e

usavam músicas ligadas ao evento como trilha. Uma foi um trechinho de Parabéns,

para celebrar o aniversário de uma pessoa que recebia uma das mensagens do

programa. Três inserções musicais foram usadas como sobe som, para dinamizar o

ritmo do programa. E outras três inserções atendiam, por meio de mensagens, a

pedidos de ouvintes, única forma de participar do programa; duas das músicas

tinham apelo religioso.

O Alô Pantanal é considerado, um programa de prestação de serviços, em

uma possível classificação de gêneros radiofônicos feita por André Barbosa Filho em

sua dissertação de mestrado Gêneros radiofônicos: tipificação dos formatos em

áudio, pois ele tem um caráter de “transitividade”, que indica movimento, trânsito,

circulação: “Os produtos radiofônicos de serviço são informativos de apoio às

necessidades reais e imediatas de parte ou de toda a população, atingida pelo sinal

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transmitido pela emissora de rádio” (BARBOSA FILHO apud FONSECA JR., 1998,

p. 88). É um programa de prestação de serviços muito voltado também para quem

está trabalhando, ou seja, para o peão pantaneiro, para o homem que vive no

Pantanal ou realiza trabalhos lá. Para quem está em trânsito, em movimento, a

mediação acontece no cotidiano e em espaços de interação: na cozinha, na hora do

almoço, no galpão enquanto preparam a traia e seus cavalos, enquanto tecem o

couro. E ao fazer a mediação nesses espaços de trabalho e convivência ao mesmo

tempo, possibilita-se a utilização criativa do imaginário e a atualização constante da

memória social e cultural (BALSEBRE; BOSI apud ULO, 2001, p. 12).

Acredita-se que não é o fato de ter ou não um aparelho de rádio que faz do

pantaneiro mais ou menos atrasado culturalmente, como mostram alguns autores.

Ao analisar as mudanças na cultura do caipira paulista, Cândido (2001, p. 171)

observou que, quando um grupo se equipara a outro que tem mais acesso aos bens

de consumo, se sente “bruscamente desajustado, mal aquinhoado” e tenta

compensar isso de alguma forma, pois ninguém quer sentir-se “atrasado”. Mas,

analisar os processos culturais somente pelo viés da linearidade e sucessão dos

fatos pressupõe primeiro que o próprio meio rádio é atrasado, pois existem outros

mais modernos86 do que ele. E, assim, falar do rádio hoje fica parecendo ser coisa

do passado, como se fosse um meio de comunicação já ultrapassado87 ou ao qual

se recorre em situações emergenciais como a do apagão88 de 11 de novembro de

2009.

Sem energia elétrica durante algumas horas, moradores das maiores cidades

brasileiras que não têm acesso à internet em seus telefones celulares recorreram ao

rádio de pilhas em casa ou ao rádio do carro para saber o que estava acontecendo,

quando a TV e grande parte dos computadores silenciaram. As emissoras de rádio

permaneceram no ar apesar do apagão e uma delas chegou a improvisar uma

86Modernos por terem sido lançados posteriormente.

87O rádio chega a ter 200 mil ouvintes por minuto nas regiões metropolitanas, segundo dados do

Ibope. Pesquisado em: http://www.almanaqueibope.com.br/asp/busca_resultado.asp. Acesso em: jan.2009. E participa com 0,49% do PIB, segundo dados disponíveis emhttp://www.abert.org.br/novosite/Abert%20informa%20-%20pdfs/APRESENTA%C7%C3O_IMPRENSA_FINAL.pdf. Acesso em: 23 nov. 2009.88

O apagão atingiu 18 estados e deixou cerca de 70 milhões de pessoas sem energia elétrica noBrasil em um período de 4 minutos a mais de 7 horas. Pesquisado em:http://www.estadao.com.br/especiais/os-numeros-do-apagao,77907.htm. Acesso em: 12 nov. 2009.

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vinheta: “Durante o apagão, o rádio não apaga”89. Para moradores de regiões como

o Pantanal, onde há restrição no uso de energia elétrica, essa rotina é diária, e lá o

rádio não apaga mesmo depois que os motores são desligados – é comum o

pantaneiro deixar o rádio ligado antes de dormir, mesmo depois de ter assistido TV.

As vozes no escuro, que os moradores urbanos só escutam em noites de apagão, é

uma rotina no Pantanal.

Mas o fato de ligarem o rádio no galpão ou na casa, iluminados apenas pela

luz das velas, não torna essas pessoas mais ou menos atrasadas culturalmente em

comparação com as que vivem na cidade, com acesso a tantas outras tecnologias

de comunicação. Pinheiro (2006, p. 31) enfatiza que

Descansar numa rede ou tomar chimarrão (heranças indígenascotidianas) não impede ninguém de mexer com sistemaseletrônicos. Circular com computadores de mão e máquinas digitaisnão livra ninguém de enfrentar os temas de separação, solidão,amor e morte. Toda tendência à unificação (querer estar no centrodo contemporâneo) embute o medo de habitar as fronteiras móveisda periferia, onde estão os complicados labirintos do conhecimento.

Não se pretende aqui comparar nem discutir os caminhos que o rádio assume

diante de uma sociedade com acesso a tantas outras tecnologias midiáticas, cada

vez mais pautadas pelas imagens, como mostra com clareza autores como Baitello

Jr. (2005, p. 99) em A era da iconofagia: “em todas as esferas da atividade e da

cultura contemporânea detecta-se um predomínio do visual sobre o auditivo”. O que

se quer é tentar situar o lugar que o rádio ocupa entre os habitantes do Pantanal

ainda hoje, mesmo quando essa população tem acesso a outros meios de

comunicação, e as interações e mestiçagens que acontecem por intermédio dele ou,

nas palavras da citação de Pinheiro (2006, p. 31), o que se quer é investigar as

“fronteiras móveis da periferia, onde estão os complicados labirintos do

conhecimento”.

89Vinheta da Jovem Pan de São Paulo, uma das emissoras que manteve sua programação durante o

apagão. Pesquisado em: http://www.abert.org.br/D_mostra_clipping.cfm?noticia=133192. Acesso em:12 nov. 2009.

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Peão liga rádio em parada de comitiva. Pantanal do Paiaguás, 2005.

Parte-se do princípio de que o rádio é também agente dessa mestiçagem,

portanto não chegou ao Pantanal para contaminar a cultura local, como acredita o

proprietário de fazendas e autor de livros sobre a região, Abílio de Barros. Em

entrevista, ele afirma que “havia uma cultura regional mais forte no Pantanal antes

da chegada do rádio, e o rádio afastou os peões do violão e dessa fonte,

contaminada com ritmos urbanos que estragaram os ritmos típicos do lugar e

fizeram com que a cultura dele ficasse estagnada”90. Já foi visto, no primeiro capítulo

e também no início deste, que a cultura pantaneira não é pura, assim, de origem – é

marcada pelas mesclas, pela presença constante de outras culturas que se inter-

relacionam.

Essa forma de pensar, que defende matrizes de culturas puras, está

alicerçada na corrente de pensamento que alguns historiadores tendem a ter ao

lerem os tempos históricos como fruto de uma evolução linear, que leva sempre os

povos de uma fase mais atrasada para uma mais avançada – uma visão distorcida,

como mostra Gruzinski (2001), como já foi apontado neste trabalho. Segundo ele,

essa noção evolucionista está impregnada na própria noção de cultura, “como se, a

cada vez, uma nova etapa devesse supostamente desenvolver forças que estariam

contidas, em gestação, nas etapas anteriores” (GRUZINSKI, 2001, p. 58). Assim, é

90Entrevista gravada pela autora em 8 de outubro de 2009, em Campo Grande.

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como se qualquer nova tecnologia ou nova percepção que provocasse interferência

nesse processo fosse uma desordem passageira e, depois dela, fosse possível

voltar ao estágio inicial, onde está pureza original. O autor lembra: “recusamo-nos a

ver as mestiçagens que se desenvolveram ou – quando estas se tornaram

dominantes e, portanto, irrecusáveis – apressamo-nos a assimilá-las a

‘contaminações’ ou ‘interferências’” (GRUZINSKI, 2001, p. 35). As mestiçagens,

portanto, quebram essa linearidade, tornando-se uma dinâmica fundamental, em

que cada nova peça do mosaico vai se juntando e formando novos elementos e,

como se viu no primeiro capítulo, elas fazem parte do processo cultural do peão

pantaneiro e, assim, mesmo antes da chegada do rádio ao lugar, já não havia tal

pureza. As ondas do rádio trazem novas mesclas e incorporações, como novas

formas de falar, novos ritmos sonoros, novos acordes, novas formas de pensar.

Um tambor que sincroniza o tempo do ouvinte

Cinco e meia da manhã. À sinfonia de pássaros que marca o amanhecer no

Pantanal soma-se o som, ainda mais marcante, que vem da casa principal, da sede

da fazenda Aguapé – é o som abafado de um radinho pendurado em um canto da

cozinha, onde se está preparando o quebra-torto. Um pouco mais adiante, no

comedor, uma cozinha perto do galpão dos peões, outro radinho está ligado. O som

mistura-se ao burburinho dos peões em torno do fogo para o mate91 ou daqueles

que começam a se movimentar nas proximidades do galpão para os preparativos

com a traia. Bem longe dali, a quietude matinal do rancho da Vazante do Castelo, na

fazenda Baía das Pedras, no Pantanal da Nhecolândia, também é quebrada pelo

som do rádio, que se mistura ao mugido das vacas no curral. E, ainda mais distante,

dia adentro, como diriam os peões, na parada para o almoço, é o rádio que anima o

carreteiro92 da comitiva. Um ritual que começa de manhã e se estende por todo o

dia, que se repetiu em todas as visitas feitas ao Pantanal na fase de pesquisa. E não

seria exagero afirmar que se repete por praticamente todo o Pantanal.

91Mate ou chimarrão: erva-mate tomada com água quente. No Pantanal, é comum fazer uma

pequena fogueira no chão ou usar o fogão à lenha para aquecer a água do mate de manhã.92

Carreteiro é o arroz feito com carne de sol, considerado prato típico da região.

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Peão sintoniza rádio em viagem de chalana, no rio Taquari, 2005.

É o rádio como um tambor tribal, fazendo referência à expressão usada pelo

canadense Marshall McLuhan93 em Understanding media: the extensions of man, de

1964, que marca não só o tempo de despertar, mas o tempo de outras atividades do

peão pantaneiro, por meio de uma rede de sincronizações. Assim como um tambor

tribal, a cultura, enquanto sistema comunicativo, que permite a circulação de textos

culturais, tem como principal função ordenar os sistemas de uma sociedade. Ao

ordenar, cria ritmos. E um dos maiores símbolos da humanidade para a organização

desses ritmos é o tempo. Baitello Jr. (1999, p. 98) mostra que o tempo, enquanto

sistema simbólico, desempenha papel fundamental na organização das sociedades

mediante a geração, distribuição e conservação das informações, ou seja, da mídia:

“Estes suportes atuam invariavelmente como demarcadores de tempo de vida dos

indivíduos, sincronizando suas atividades dentro de um todo maior”. O autor afirma,

ainda, que a mídia não só incorpora o tempo como símbolo em linguagem, no seu

conteúdo, usando as imagens cronológicas (dia, noite, tarde, semana, mês), como

ritualiza suas aparições, formas e formatos, acentuando ainda mais a função

sincronizadora, pois

93McLuhan desenvolveu importantes teorias sobre a natureza tecnológica do rádio, mas é

considerado ultrapassado por muitos autores, como aponta Bianco (2005) por ter sido determinista eimpreciso. Considera-se que seus conceitos foram fundamentais para os estudos feitos para amediação do rádio e da TV.

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(...) abrir um jornal ou apenas percorrer os olhos rapidamente sobresuas manchetes principais, sentar-se diante da televisão e assistirao noticiário, sentar-se no carro e ouvir os jornais matutinosconstituem alguns dos rituais mais consistentes deste século(BAITELLO JR., 1999, p. 100).

Para o peão pantaneiro, o ritual de ligar o rádio faz parte da rotina. Como se

viu, o aparelho está por toda parte: ao lado da cama, perto do fogão, pendurado na

cerca. Se é um peão estradeiro, aquele que vive em marcha levando gado de uma

fazenda para outra ou para os leilões da região, o ritual é ainda mais presente e,

como um marco, se repete nos momentos de parada, quando se vai preparar e fazer

as refeições, no momento do pouso. E o rádio é o maior vínculo que os mantém em

sintonia e conectados com o mundo ao redor. Para eles, a noção de tempo aparece

ainda mais simbólica:

Nós não somos boiadeiros efetivos, nós somos trocador de fazenda,vem de lá, vai para outra fazenda. Toda vez que nós passa, é assim,passa com esses 1.200 boi aí, atravessa tranquilo. Dá 18 dias deviagem94, da Fazenda São Francisco na Fazenda Santa Fé, nósvem passando nesses estradão, devagarinho95.

Longe dos relógios e marcos urbanos, como a hora de entrar e sair do

trabalho, do transporte, escola e outras atividades rotineiras da cidade, os peões que

viajam pelo Pantanal fazem do rádio um marcador de tempo, como se fosse um

relógio. O Alô Pantanal deixa essa função bastante evidente: no início de todos os

programas, o locutor repete “12 horas e 5 minutos agora em Corumbá; 12 horas e 5

minutos na capital do Pantanal” (Anexo I). E depois das apresentações de praxe,

volta para o marcador: “Hoje é dia 31, 31 de março, ano 2009. Hoje é terça-feira,

véspera de mais umas vitórias da seleção canarinha”.

94Eles levam 18 dias de viagem para percorrer pouco mais de 100 km de distância entre as

fazendas.95

Entrevista com Paulo Rondon e José Anastácio, gravada em 2005 na travessia do Porto Rolon, nadivisa entre o Pantanal do Paiaguás e o da Nhecolândia.

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Peão estradeiro acompanha gado saindo da água na travessia do rio Taquari, 2005.

“12 horas e 5 minutos agora em Corumbá” (Anexo I). Como o programa é

veiculado das 12 às 14 horas, as comitivas param para o almoço na hora do

programa, pois a rota da comitiva é dada pelo dial do rádio:

12 horas e 15 minutos em Corumbá. Leilão da fazenda NovoHorizonte será no dia 25. Rota da comitiva do senhor René deAlmeida na região da Nhecolândia e Paiaguás: hoje dia 13 pousa noPorto Rolon, dia 14, amanhã, pousa na fazenda Lourdes, dia 15pousa na fazenda Providência, dia 16 pousa na fazenda SãoFrancisco, dia 18 pousa na fazenda Cáceres, e dia 20 chega nafazenda Novo Horizonte96.

Tem que escutar (...) pra pessoa saber o dia, cada pessoa nafazenda pra entregar o gado, os fazendeiro saber o dia que a gentechega pra não ir nem adiantado nem atrasado. Se não escutar nãovai saber. Telefone não tem em todo lugar. Eles escutam e vãomandando. Quando não ta dando a rota, eles procuram saber o quefoi, algum atrapalho, se não vai ter o leilão. Como fala aí, SantaCatarina é a primeira, eu recebi dois gado aí, agora só na Lourdes,Providência, cada dia recebe, até chegar no último lote, na fazendaCáceres. Cada fazenda tem que pousar pra esperar97.

96Trecho do programa Alô Pantanal, gravado em 2005 durante transmissão gravada em Porto Rolon.

97Entrevista gravada com Renê de Almeida, no Pantanal do Paiaguás, Porto Rolon.

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Seu Renê escuta o programa Alô Pantanal na parada para o almoço, 2005.

Ao informar a rota e o tempo de cada parada para as comitivas em trânsito, o

programa Alô Pantanal fortalece a comunhão simbólica dos seus ouvintes com o

tempo – eles poderiam se informar pelo telefone, mas é o programa que cumpre

essa função. E, assim como em uma ligação telefônica, o emissor e o destinatário

são conhecidos, a mensagem foi direcionada para ele. É a mídia, com seus rituais,

criando um pulsar rítmico que reitera o tempo, pois “a função primordial da mídia é a

de sincronizadora de uma sociedade” (PROSS apud BAITELLO JR., 1999, p. 100).

Por meio de um gesto individual, de ligar o rádio para ouvir a programação, o ouvinte

se conecta com uma rede de vínculos, no sentido usado também, em outro viés, por

McLuhan, quando propõe a ideia de tambor tribal, pois quem toca pressupõe que

alguém ouve.

Rádio: as ondas que criam vínculos

A possibilidade da criação de uma rede de sincronização dos ritmos pelas

ondas sonoras nas grandes cidades foi demonstrada por Menezes no trabalho Rádio

e cidade – vínculos sonoros (2007). Para o autor, a palavra vincular está associada

aos laços que unem dois espaços e, nesse sentido, se cria um elo simbólico ou

material que se constitui em um espaço comum, que é a base de toda a

comunicação, como mostrou Pross (Apud BAITELLO JR., 1999), e se pode entender

a sociedade como um conjunto de vínculos (MENEZES, 2007, p. 23). Utilizando

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autores que mostram desde a evolução das espécies entre sociedade humanas ou

não, o autor aponta que os vínculos são primeiro uma necessidade de sobrevivência

física e biológica e, depois, uma rede que se tece no espaço sociocultural na relação

entre os homens da comunicação e, no caso do estudo específico, por meio das

ondas do rádio. Na introdução do trabalho, Baitello Jr., a partir dos conceitos de

Dietmar Kamper, explica a criação da rede de vínculos:

(...) o ouvir é uma categoria do corpo e seu pensar, resgata umaconcepção humana do comunicar como atividade vinculadora, valedizer, como geração de ambientes de afetividade, uma vez quevínculo se pode traduzir por afeto (BAITELLO JR. apud MENEZES,2007, p. 12).

Ainda segundo Baitello Jr. (2007, p. 13), “as máquinas se conectam, mas nós,

não ciborgues, nos comunicamos”. Para ele, em uma comparação com o clássico

filme de Alfred Hitchcock, Um corpo que cai (1958), um corpo que ouve nunca cairá,

estará amparado por partilhar com outros corpos o mesmo tempo, e o sentimento de

pertencer a um corpo social é sonoramente sincronizado:

(...) um corpo que ouve está amparado porque se vincula aos outroscorpos que ouvem, porque seu tempo é partilhado com os temposde outros corpos, porque seu sentimento de pertencer a outro corposocial é referendado sonoramente, é sonoramente sincronizado(BAITELLO JR., 2007, p. 13).

Esse corpo estará amparado por essa rede de sincronizações que oferece

serviços, notícias, comentários e os mais variados gêneros radiofônicos. Um amparo

que chega onde o ouvinte está por meio das palavras: “Alô Pantanal. Atenção sítio

Fortaleza. Alô Jeferson e Valdevino. O pai de vocês avisa que ele está seguindo

hoje. Assim que escutarem esse aviso, é pra vocês irem ao meu encontro lá no sítio

São Roque e é pra levar o meu mosqueteiro, mosqueteiro de rede” (Anexo I). Essa

rede, que prevê corpos que partilham o mesmo tempo, o corpo que ouve e o que

escuta, remete ao tempo em que a comunicação no Pantanal acontecia pelo

radioamador. A repetição do alô, que permeia todo o programa, também é

semelhante, mas o radioamador usava a palavra câmbio em vez de alô, marcando o

final da fala de cada um, deixando muito claro que a comunicação envolvia dois

corpos, também por meio de um aparato, portanto pela mídia terciária. No rádio, o

mesmo acontece, mas a gente acaba se esquecendo dessa função tão primordial.

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E, ao contrário dos moradores da cidade, que comumente ouvem rádio enquanto

dirigem seus carros, no Pantanal são corpos em trânsito, pois o pantaneiro

praticamente só desliga o rádio quando está em trânsito, cavalgando. Em todo o

tempo restante, como se viu, o aparelho está ligado, e os ouvintes estão

conectados.

A recepção gera um processo de mediação que implica uma duração de

extensão imprevisível98, mas, no momento em que acontece a recepção, em que a

pessoa ouve o programa de rádio em questão, é o corpo que está totalmente

envolvido, pois o ouvir é um sentido que envolve a pele, em especial o tímpano, no

qual se processa o ouvir: o “som é um tipo de massagem que nos conforta ou nos

impulsiona. Massagem que nos coloca no tempo e no espaço, nos permite

compreender o corpo como mídia primária, que se vincula a outros corpos”

(MENEZES, 2007, p. 35).

Como foi dito, os textos culturais produzidos pelo peão pantaneiro passam,

essencialmente, pelo corpo, e a noção de corpo extrapola as funções biológicas, as

funções vitais e físicas do organismo vivo e engloba também a expressão da

natureza e a memória cultural que ele transporta (ou retém). Como dito

anteriormente, essa questão do corpo como texto cultural fica muito clara para a

cultura do peão pantaneiro por meio dos causos. Ao contar um causo, o pantaneiro

usa as infinitas possibilidades de comunicação da mídia primária: “fala” com as

mãos, com os olhos, com a postura, com seus gestos. O corpo é onde começa e

onde termina toda a comunicação – o corpo como mídia primária, no conceito da

Teoria dos Media, criado por Harry Pross (apud BAITELLO, 2001, 2) para as relações

que se dão presencialmente: “Toda comunicação humana começa na mídia

primária, na qual os participantes individuais se encontram cara a cara e

imediatamente presentes com seu corpo; toda comunicação humana retornará a

esse ponto”.

E nessa cultura, tão marcada pela troca de gestos e de sons, o rádio entra

como uma extensão e, como mídia terciária – definida por Pross (apud BAITELLO,

2001, p. 4) como os “meios de comunicação que não podem funcionar sem

aparelhos tanto do lado do emissor quanto do lado do receptor” –, funciona como um

suporte para ampliar, amplificar o alcance da mídia primária, já que uma não anula a

98No próximo capítulo se falará mais sobre o tempo da recepção.

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outra, pois se trata de um sistema, o sistema de comunicação, e o que está sendo

transmitido pelo rádio faz parte do núcleo inicial e germinador da mídia primária. O

que acontece nessa amplificação é o que Harry Pross chama de economia de sinais:

Os meios eletrônicos, utilizando aparelhos de emissão e recepção,economizam a energia dos emissores que conseguem partilhar sonscom um maior número de pessoas. As ondas que reverberam nointerior de um pequeno estúdio de uma emissora de rádio, atravésdos mecanismos de codificação e decodificação de sinaiseletromagnéticos, através de aparelhos emissores e receptores,possibilitam a economia de sinais quando chegam a uma multidão deradiouvintes (PROSS apud MENEZES, 2007, p. 41).

É claro que nessa amplificação há mediação, pois a voz se tornou abstrata,

eliminando a presença de quem traz a voz e, pelas manipulações que o sistema

radiofônico permite – gravação, edição –, ele torna, ou pelo menos pode tornar, esse

espaço de transmissão artificialmente composto (ZUMTHOR, 2007, p. 14). Mas,

mesmo com todas as mediações que carrega, sobre as quais se falará ainda neste

capítulo, a voz do rádio é mais uma entre tantas que compõem a oralidade da

cultura do pantaneiro.

O corpo como texto cultural foi analisado por diversos teóricos, como Lotman,

como demonstrado no capítulo anterior. Também foi estudado por Ivan Bystrina, que

considera os textos culturais de acordo com os complexos significativos que formam

a partir dos códigos – que podem ser primários, secundários ou terciários. Os

primeiros estão relacionados às informações biológicas e à linguagem, e o último,

que interessa para este trabalho, se relaciona à cultura. A partir das funções

predominantes em cada um, os textos podem ter três classificações: instrumentais,

que têm por premissa atingir um objetivo técnico, como os utilitários como catálogos

telefônicos; racionais, matemáticos e lógicos, como o das ciências exatas; e

imaginativos e criativos, que englobam os culturais, como os mitos, rituais e obras de

arte (BYSTRINA apud MENEZES, 2007, p. 31).

Segundo Bystrina, os textos culturais do peão pantaneiro estão inseridos nos

textos imaginativos e criativos, pois não refletem a realidade tal como é, mas por

meio de um processo de significação construído por ele nas inter-relações com o

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meio em que vive, fazendo parte da “segunda realidade”99. Assim, além das próprias

histórias, o corpo que conta histórias também faz parte dos textos culturais, pois tem

um jeito de contar e ele conta com o corpo. Essa abordagem do corpo foi tema de

estudo do mestrado de Cleide Riva Campelo, em que ela mostra que o corpo se

expressa pela nudez, pelas roupas mais diversas, pela língua, gestos, máscaras que

usa e objetos que fabrica e se mesclam com ele. Segundo ela:

(...) o corpo aprende outras coisas: o andar ereto, o falar,as ações culturais todas têm que ser aprendidas. Mas ohomem traz potencialidade para todas essas ações decultura: já nasce aparelhado, equipado, mas precisa do

exemplo e da prática para executá-las (CAMPELO, 1997,p. 64).

Essa ideia, de corpo social sincronizado pelo rádio aparece também nos

ensaios de McLuhan, quando ele explica a natureza tecnológica e os efeitos sociais

do rádio. Em uma leitura sobre a obra dele, Nelia R. Del Bianco destaca que, ao

explicar a passagem da comunicação da era tipográfica, marcada pela invenção da

imprensa, para a eletrônica, dominada principalmente pelo rádio e pela TV, McLuhan

afirmou que a tecnologia criava uma ambiência pela qual o homem transitava e

essa, por sua vez, é uma espécie de segunda natureza que formava o próprio

homem e moldava seus padrões e modos de perceber o mundo. Por essa relação,

os meios tornavam-se “extensões do homem”, como se fossem prolongamentos do

corpo, próteses dos sentidos que condicionam mudanças no comportamento. Para

ele, o poder que o rádio tem de envolver e afetar as pessoas fez com que se

estabelecesse uma conexão com a cultura oral, trazendo à tona “ecos de antigos

tambores tribais” (BIANCO, 2005).

99A “primeira realidade” é formada pelo sistema biossocial e a “segunda realidade” é o universo da

cultura, que “se codifica a partir de raízes básicas como o imaginário, o sonho, as atividades lúdicas eprodução criativa do homem” (BYSTRINA, 1995).

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2.3 - No ar, a oralidade pantaneira

“Alô Pantanal!Atenção sítio São Bento.

Alô senhor Zecão, o seu tio Nérioavisa que segue viagem

na lancha Vilma hoje 4 horas da tardedo senhor Domingão,

pede pra você levar uma conduçãono porto Figueira.

Sem mais, lembranças a todos.Quem ouvir favor avisar.

É recado do senhor Nério Vilalva” (Anexo I).

Francisco, peão de comitiva, ouve rádio em acampamento da Curva do Leque, 2005.

Participando da vida do peão pantaneiro há tanto tempo, de forma tão

presente, o rádio está completamente incorporado à cultura dele. Mesmo trazendo o

mundo da cidade por meio de mediações, ele é percebido como algo que faz parte

daquele ambiente, e não como um elemento estranho, vindo de fora. Claudete,

mulher de peão pantaneiro, ao afirmar que coisas da cidade estão no Pantanal,

exclui o rádio:

O pantanal era uma coisinha, uma simplicidade, só. Hoje em dia opantanal mudou (...) A senhora vê, veio luz, melhorou estrada emcertos lugares, tem muitas coisas da cidade que ta no pantanal.Antes a gente não tinha uma TV, aí você não sabia como era omundo lá fora, você achava que não podia fazer uma coisa e às

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vezes pode (...) achava que não tinha condições de fazer algumascoisas e às vezes tem100.

Claudete, mulher do peão Jonas, tece faixa de cintura. Pantanal da Nhecolândia, 2005.

Mas o rádio é mais uma “das coisas da cidade” que está ali entre eles e se

encaixa perfeitamente aos costumes e hábitos cotidianos do pantaneiro. Já se falou

da importância dos causos para a cultura do Pantanal. Viu-se também que o contar

histórias ou reunir-se em volta de um tereré ou de um guaraná ralado é um costume

que migrou para as cidades. E é nesse contexto, das rodas pantaneiras, tão regadas

pela oralidade, que o rádio se insere: como algo que passa a fazer parte das rodas,

anima as conversas, enquanto a cuia com a erva-mate passa de mão em mão. É

como se ele mesmo fosse um personagem a contar novas histórias. A partir das

teorias de McLuhan, Maria Immacolata Lopes (1988, p. 131) conceitua o rádio como

(...) o mundo da fala que evoca o mundo através da fala.Curiosamente, enquanto o rádio desmaterializa o mundo em signosacústicos que baseiam sua eficácia na força da imaginação, os sonsda fala “corporificam” um mundo, diante do qual a voz assume umaposição de representação e de valorização.

E essa voz, que evoca o mundo da fala, é uma voz mediada, e no caso do

programa Alô Pantanal traz o mundo da cidade até o Pantanal e, mesmo por meio

100Entrevista gravada pela autora no Pantanal da Nhecolândia; parte do documentário Terra das

Águas.

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do suporte e de ter sido registrada para chegar aos ouvintes, se transforma em um

texto que não perde a característica da oralidade: continua pedindo um destinatário

(MARTINS, 2002, p. 76). A voz é a mesma há décadas – o locutor não usa artifícios

tecnológicos, ao contrário, é raro o uso de recursos da sonoplastia para valorizar ou

enfatizar algum recado: ele lê como se escreve, como se estivesse lendo o que foi

escrito em pleno ar.

O locutor não esconde que lê os anúncios e, quando não entende a letra,

tenta, no ar, decifrar o que está escrito, sem disfarçar, deixando claro para os

ouvintes que está lendo e tem dificuldades no processo. E essa dificuldade de leitura

vem por causa da letra cursiva – muitas mensagens são escritas em letra cursiva,

pelo próprio emissor, quando ele sabe escrever, ou pela recepcionista da rádio. E

essa dificuldade de leitura acaba criando uma identificação maior com o ouvinte,

pois ele também tem dificuldade em escrever e ler101. Assim, o programa propõe um

“ouvir como se lê”, como se desse ao ouvinte a oportunidade de ler junto com o

locutor – uma capacidade que muitos ouvintes não têm. Em alguns momentos, para

humanizar ainda mais o programa, o locutor questiona, colocando um “hein?” na

leitura da mensagem:

Atenção Retiro do senhor Geraldo, alô dona Maria de Fátima, avisoque a Sandra vai seguir hoje à tarde. Favor esperar ela na porteira,ela está levando sua encomenda. Beijo e abraços para todos. Éaviso de, é aviso, é aviso de Daia. Larilalá, heim, será isso mesmo?(Anexo I).

O “larilálá” é mais um recurso que o locutor usa para criar proximidade com o

ouvinte. De tanto falar “larilalá” e suas derivações como interjeição de indignação ou

de surpresa, Lalá se tornou o apelido dele (FONSECA, 1998, p. 92). O programa é

conduzido como uma conversa, e a transmissão de um recado, como um telefonema

– pressupõe um destinatário, ele é desconhecido, está distante, mas a linguagem é

tão simples que é como se ele estivesse ali ao lado, fosse conhecido do emissor.

Assim, ele se empolga para dar parabéns a um ouvinte, fala com um tom para cima.

Mas, com silêncios, embargo de voz, palavras que são pronunciadas mais

lentamente e com certo embaraço, o locutor passa a mensagem de assuntos

101Já foi mostrado no primeiro capítulo o índice de analfabetismo no Pantanal.

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delicados, como a proximidade da morte de uma pessoa querida do ouvinte. São

recursos da voz para ajudar a criar a noção de intimidade com o ouvinte:

Atenção porto Paraíso. Alô Maria José, mando falar para oReginaldo vir na próxima condução, porque o bebê não passa nadabem. O médico já desenganou. Peço para você vir pra gente darmais [voz embaraçada]... dar jeito [silêncio], estamos precisando dasua presença aqui, venha com urgência, antes que seja tardedemais. No mais, tudo bem. Abraço para todos aí. Quem manda oalô é [se enrola] Auxiliadora. Ave-Maria (Anexo I).

A linguagem usada pelo locutor também é bastante simples, a exemplo da

que é usada pelo pantaneiro no dia a dia, ao contar um causo, no seu jeito de falar,

com palavras simples, frases curtas, que sempre se repetem. Dessa forma, o locutor

consegue reforçar os laços entre ele e o ouvinte. É o uso da voz em toda a sua

potencialidade. Para Paul Zumthor:

A voz é uma forma arquetípica no inconsciente humano, imagemprimordial e criadora, energia e configuração de traços quepredispõem as pessoas a certas experiências, sentimentos epensamentos. (...) Através da voz, a palavra se torna algo exibido edoado, virtualmente erotizado, e também um ato de agressão, umavontade de conquistar o outro, que a ela se submete, pelo prazer deouvir (ZUMTHOR apud MARTINS, 2002, p. 76).

O programa Alô Pantanal, ao reproduzir um texto escrito – os recados são

escritos pelos próprios anunciantes, já que são pagos102, ou transcritos pela

atendente da rádio, quando quem quer enviar a mensagem não sabe escrever –,

enfatiza a linguagem oral, e isso é o que Zumthor (2007) chama de “índices de

oralidade”, em que há a vibração de um discurso que fala a própria voz que o

carrega. Segundo o autor, a voz é mais do que a palavra, sua função vai além de

transmitir a língua – é a língua que transita por ela. Se não fosse realizada através

de uma mídia secundária, poderia ser o que Paul Zumthor (2007) chama de

performance103, mas, além de não estar acontecendo no momento exato em que a

manifestação acontece, o rádio não transmite imagens, então, o termo não cabe

102As mensagens custam a partir de R$ 3,00 por inserção, dependendo do tamanho. Duas inserções

normais, com cinco linhas em média, saem por R$ 5,00. Mensagens publicitárias, a partir de R$10,00. Informações obtidas na sede da emissora, em Corumbá, em julho de 2009.103

No primeiro capítulo, mostrou-se que performance é usada para o momento em que acomunicação acontece, o que não acontece aqui.

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aqui. Mas, com a voz, o locutor tem uma apresentação performática: cria suspense,

dramatiza, se entristece, enfim, se aproxima do ouvinte.

Essa proximidade com o ouvinte permite que ele se sinta à vontade para

transmitir todos os tipos de mensagens pelo dial do rádio. É uma mensagem aberta,

como se fosse um e-mail sonoro ou um telefonema que se torna público. Quem

envia não está mesmo preocupado com a privacidade104, pois é comum inserirem no

texto: “quem ouvir favor avisar”. As mensagens enviadas funcionam como se fosse

um espelho que reflete os anseios, o modo de vida e as atividades cotidianas dos

moradores do Pantanal. Além de refletirem, expõem para todos os ouvintes detalhes

da vida privada, como cobranças e dificuldades financeiras ou problemas de saúde

(Anexo I):

Atenção Barra do São Lourenço. Atenção Wando e todos aí. Mandodizer que o Wesley foi desenganado pelo médico, mas ele está emcasa. Peço que os irmãos em Cristo ajudem em oração, porque eleestá desenganado pelo médico, mas não está desenganado porDeus. Wando, mande a certidão de nascimento do Josias. Abraçopara as crianças, da Creuza.

(...)Alô Pantanal. Atenção fazenda Santa Tereza. Alô RudneyTertualiano, a Rose avisa que pegou apenas 50 reais no escritório,sobre os 200 ele não falou nada. Me ligue à noite. Um abraço para adona Célia e para a Shirley, para Lilian e Auxiliadora, lá naPiratininga. É aviso da Rose, é aviso da Rose.

O programa acaba por mostrar que, apesar de outras tecnologias já estarem

disponíveis para a comunicação no Pantanal, ele continua sendo usado, mais que

isso, atua como um facilitador para o uso do telefone – como mostrou a mensagem:

“me ligue à noite”, e também aqui: “Atenção fazenda Santa Maria, alô Androlaje,

peço que me ligue, o telefone está com crédito. Abraço do Edinho. Abraço do

Edinho” (Anexo I). Mas a maior parte das mensagens está relacionada ao trânsito

dos moradores entre o Pantanal e Corumbá:

Alô Pantanal. A lancha Cidade Branca ta com saída confirmada parahoje 7 da noite, saindo do porto de Ladário e vai até onde tiver cargae passageiro. Quem for viajar na lancha Cidade Branca favorreservar passagem com antecedência. No retorno da lancha CidadeBranca vai ter vaga para gado (Anexo I).

104A maior parte das mensagens é escrita ou ditada pelos anunciantes.

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Lancha no rio Paraguai. A parte de baixo pode servir para o transporte de gado, 2005.

Os anúncios publicitários recebem o mesmo tratamento – pagam da mesma

forma e são transmitidos com a mesma linguagem (Anexo I):

Atenção colônia São Domingos, sítio Fortaleza, atenção Jeferson,aviso que eu não vou seguir viagem hoje, porque a lancha vai sairna sexta-feira, eu vou na lancha Nove de Julho, você aguarda aconfirmação da lancha, e se você não arrancou a mandioca, nãoprecisa arrancar. Que Jesus abençoe vocês aí. É aviso da sua mãe,a Nadir Ramos de Almeida.(...)A Dominique continua sendo amiga do homem do campo e dacidade. Para bem servir ao povo pantaneiro a Dominique ofereceproduto veterinários, artigo de montaria, artigos para pesca, roupasfeitas, secos e molhados em geral (locutor dá o endereço).

Entre os anúncios, a maior parte também vem dos proprietários de lanchas.

Os horários das viagens não são fixos e são sempre atualizados pelo programa:

“Atenção, a lancha Ipê vai sair amanhã 7 horas da noite e vai até o porto Zé Viana.

Tem vaga para cargas e passageiros. Lancha Ipê sai amanhã, maiores informações,

só ligar”. A mesma rota pode aparecer em mensagens diferentes, uma que anuncia

a viagem, divulgada pelo dono da lancha, e outra enviada pelos passageiros:

Alô Pantanal pela Difusora. Atenção localidade da colônia SãoDomingos, Porto Figueira, Porto Divino, Porto Saíru, Porto SantoAntônio, Porto Rolon, está confirmada a saída da lancha Nove deJulho, para quarta-feira, amanhã, ainda tem vaga para carga e para

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passageiro. Os fregueses, o senhor Branco e o senhor Florízio, setiver mandioca pode arrancar, umas dez bolsas, e umas dez canas,se tiver mandioca pode arrancar, e também uma dez dúzias decana. O retorno é para quinta-feira. O recado é do Anúbio Martins(Anexo I).

Passageiros em viagem de lancha que sobe os rios Paraguai e Taquari, 2005.

Quem consegue embarcar manda mensagem enviando recado para poder

continuar a viagem quando desembarcar da lancha. Alguns anúncios misturam os

tempos verbais, entre o do próprio locutor e do emissor da mensagem (Anexo I):

Alô Pantanal. Atenção sítio Nova Senhora do Carmo, alô Abílio, Maxe Arci, aviso que sigo viagem hoje 4 horas da tarde, vou na lanchaVilma do Domingão. É aviso da dona Pulguéria.(...)Alô Fazenda Nova Esperança. Alô Jorge, o Sebastião manda avisarque segue viagem com o Jeferson. Tá seguindo agora. Favoresperar no porto como o combinado. A Tita sobe também. É recadodo Sebastião de Arruda.

Assim, pelo Alô Pantanal, se pode fazer uma radiografia do que está

acontecendo no Pantanal: as lanchas em circulação, se é época de cheia ou seca,

quem está em trânsito, os eventos. Até aniversário de casamento é anunciado em

pleno ar (Anexo I):

Alô Pantanal. Atenção retiro do Waldir, atenção senhor Antônio edona Zenaide. Resolvemos unir (silêncio) suas mãos e dobrar seus

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joelhos, do senhor Antonio e da dona Zenaide, dia 31, fazendo 40anos de casados, pedimos as bênçãos de Deus para essa união docasal. São os votos de sua filha Cecília, do genro Édio e dos netosErik, Remler, Eduardo, Camelen e Junior. Parabéns e muitasfelicidades pela data.

Os nomes que aparecem nas mensagens veiculadas mostram grande mistura

de origens: uns mais “abrasileirados”, como José, Jorge, Sebastião, Antônio...;

outros nem tão simples assim, como Nadir, Jeferson, Zenaide...; e aqueles que

revelam referências de outros idiomas, como Erik, Remler, Camel... O formato do

programa tem se mantido sem grandes alterações, como já citado. Fonseca Jr.

(1998), que estudou o programa, como já foi citado, fez um levantamento de como

se organizam a estrutura e o conteúdo e mostrou que eles são bastante variáveis,

mudando conforme as necessidades e a demanda de cada dia. Pelo trabalho

realizado, pode-se perceber que pouca coisa mudou no programa nesses 12 anos.

Mas, por meio dele, das possibilidades de conexões que o rádio permite, o peão se

conecta, se insere, se informa, se torna quem é, incorporando as novas mesclas que

recebe.

Peão conhecido como Careca, cozinheiro de comitiva, vestido com roupa de cidade, 2005.

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A renovação das tradições por meio do rádio

O rádio é um dos meios que reaviva as tradições dessa cultura oral – já se viu

que nas sociedades iletradas, como a pantaneira, é a tradição que determina o tipo

de transmissão de valores e conhecimentos em uma dada cultura (ZUMTHOR,

1993). Assim, o pantaneiro que repassa seus conhecimentos de geração a geração

pela oralidade incorpora o rádio, e também a TV, como se verá no capítulo seguinte,

como fonte de novos saberes e como forma de atualização das representações

simbólicas que tem de si mesmo e do mundo natural. As mídias passam a ser novas

formas de mesclas para uma cultura já marcada pela miscigenação. No dizer de um

cronista regional:

Sempre julguei o fazendeiro matogrossense, e em especial opantaneiro, um homem muito evoluído, que aceitou com entusiasmoos melhoramentos que o progresso lhe trazia, tais como: curraisaustralianos, bretes para marcar, avião, rádio, luz elétrica e outrascomodidades... (RIBEIRO, 1984, p. 31).

O conhecimento sobre as condições meteorológicas, antes vindo

essencialmente da relação homem-natureza, agora também vem pelas ondas

sonoras. Na época das cheias, o Alô Pantanal, em sua primeira parte, traz

informações diárias sobre as medições que são realizadas no rio Paraguai, além de

previsões sobre o clima.

A esses saberes populares, acumulados através de gerações,somam-se informações recentes, provenientes dos centros urbanosque, com intensidade cada vez maior, acabam influenciando o seumodo de ver e de relacionar-se com o mundo natural. A perspectiva“purista”, de quem está sedento por descobrir sutilezas esingularidades culturais, acaba sendo traída pelas evidências de umcontexto dinâmico, aberto às mudanças do tempo. Assim, quandoperguntados sobre o modo como preveem a chegada dasenchentes, os peões deram a resposta mais simples e óbviapossível: “a gente ouve na rádio de Corumbá (BANDUCCI JR.,2000, p. 82).

Assim, é pelo rádio também que o pantaneiro passa a atualizar os seus textos

culturais. Câmara (2007, p. 62) traz um exemplo muito claro de como as novidades

tecnológicas são absorvidas por eles e se refletem no repertório dos causos: “O seu

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Perigoso105 é um dos que vivem enfiando televisão, rádio-amador, aparelho de som,

dentro de seus poços”. Os sons que ouvem no rádio são incorporados às falas;

cidades e países também: “A cabeça dela [da onça] veio pará na casa do prefeito,

em Curumbá” e “Aí começô dá uns truvão pru lado da Bulívia”106. Em alguns causos,

os aparelhos tecnológicos por onde recebem essas intercorrências também

aparecem, como no das três onças montadas:

Aí eu comprei um gravadô lá na Argentina... Uma bateria, umatelevisão, um gravadô, né. Guardei assim ô, dentro de uma mata, eupuis um tendão assim ó com dois metro e meio de cumprimento, né,liguei a bateria pra crariá lá a televisão, e quando amanheceu opatrão falô: - Perigoso sumiu! – E eu vinha muntado nas treis onça.Muntado nas treis (CÂMARA, 2007, p. 249).

A incorporação do rádio e sua inserção no universo pantaneiro acompanham

a mesma tendência que hoje domina tanto as sociedades urbanas quanto as rurais:

um mundo editado, mediado, presente no cotidiano, que “exige” uma nova forma de

interação. Para Baccega (2001):

O mundo que nos é trazido pelos relatos, que assim conhecemos ea partir do qual refletimos, é um mundo que nos chega editado, ouseja, ele é redesenhado num trajeto que passa por centenas, àsvezes milhares de mediações, até que se manifeste no rádio, natelevisão, no jornal.

Segundo Martín-Barbero e Rey (2004, p. 62), uma “segunda alfabetização” é

necessária para ler esse novo mundo mediado, do qual emerge outra cultura. Para

os autores, há uma mudança nos protocolos e nos processos de leitura e um outro

tipo de interação com o “ecossistema informacional e comunicativo” que exigem um

novo olhar sobre o fenômeno da mediação. No caso da população pantaneira, como

fica a mediação, já que a maioria é analfabeta e não passou nem mesmo pela

primeira alfabetização? Muitos autores resolvem essa questão classificando essas

populações analfabetas como populações rurais, portanto que vivem distantes dos

centros urbanos.

Ao estudar a relação entre o programa Alô Pantanal e três comunidades

rurais do município de Corumbá, Fonseca Jr. (1998, p. 4) se debruçou sobre essa

105O seu Perigoso é um narrador tradicional pantaneiro que narrou 32 causos para a tese de Ricardo

Pierette Câmara (obra citada).106

Causos relatados por seu Perigoso e transcritos por Câmara (2007, p. 247).

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questão e nos mostra com sua tese que a produção acadêmica brasileira em

Comunicação Rural é fortemente influenciada pelo difusionismo, termo usado para

designar várias linhas teórico-metodológicas de orientação funcionalista, surgidas

nos EUA a partir de 1940, voltadas para a difusão de inovações tecnológicas no

campo. Estudos posteriores sugerem até a retirada da palavra rural enquanto

categoria de análise:

(...) o rural não é uma categoria de análise e tampouco um conceitoanalítico, ele é apenas uma noção espacial. Os critérios espaciais eocupacionais nada revelam sobre as elações que de fato oscompõem e constituem, são apenas adjetivações. Toda e qualquerexplicação científica não pode ter um caráter particular oulocalizado, pois a ciência é genuinamente generalizante(SCHNEIDER apud FONSECA, 1998, p. 15).

Considerando a complexidade de sua abordagem, não se quer aqui reduzir o

aspecto rural a uma questão espacial, nem tampouco se quer reduzir a população

pantaneira a uma população rural e, a partir dessa divisão, estudar a mediação por

meio da Comunicação Rural. Por isso, foram adotados como linha metodológica os

estudos de recepção dentro do pensamento latino-americano, principalmente por

intermédio de Jesús Martín-Barbero. Um dos maiores teóricos da comunicação na

América Latina, o autor resgata os conceitos de povo e massa e investiga como se

desenvolveu a massificação antes dos meios eletrônicos, ou seja, por intermédio da

escola e da igreja, da literatura de cordel e do melodrama, da organização massiva

do industrial e do espaço urbano. E mostra que a comunicação se converteu “no

mais eficaz motor de desengate e de inserção de culturas – étnicas, nacionais ou

locais – no espaço/tempo do mercado e das tecnologias globais” (MARTÍN-

BARBERO, 2006, p. 13).

Martín-Barbero mostra, ainda, que a divisão entre rural e urbano vem de uma

visão construída pelos românticos ante o pensamento dos ilustrados, no final do

século XVIII, e está marcada ainda hoje por uma conotação bastante negativa e

intimamente ligada ao conceito do que é popular: “um movimento de separação e

coexistência entre dois mundos culturais – o rural, configurado pela oralidade, as

crenças e a arte ingênua, e o urbano, configurado pela escritura, a secularização e a

arte refinada” (2006, p. 38).

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Essa dicotomia histórica e social ainda marca a forma como a mídia e muitos

estudos de comunicação veem populações rurais como a pantaneira. Um exemplo

disso está no programa Alô Pantanal. Ao falar diretamente com o homem

pantaneiro, com o peão que vive e trabalha no Pantanal, o programa está falando

com um ser puro, original, não contaminado pela cultura urbana, e deixa de lado

toda e qualquer possibilidade de sofisticação tecnológica, fazendo um programa

limpo, livre de recursos de edição como efeitos sonoros e musicais. Os efeitos estão

acessíveis ao locutor, o sonoplasta está ali, ao lado dele, como ele mesmo anuncia

durante o programa, mas a utilização não é frequente. E, dessa forma, parece se

adequar à linguagem matuta, ao jeito de falar simples e introspectivo, características

bastante comuns ao homem rude que vive no campo. Voltando à visão dos

românticos:

(...) toda essa originalidade da cultura popular estaria em suaautonomia, isto é, na ausência de contaminação e de comércio coma cultura oficial, hegemônica. E, ao negar a circulação cultural, oque é negado de fato é o processo histórico de formação do populare o sentido social das diferenças culturais: a exclusão, acumplicidade, a dominação e a impugnação. E, ao ficar sem sentidohistórico, o que se resgata acaba sendo uma cultura que não podeolhar senão para o passado, cultura-patrimônio, folclore de arquivoou de museu nos quais se conserva a pureza original de um povo-menino, primitivo. Os românticos acabam assim encontrando-secom seus adversários, os ilustrados: culturalmente falando, o povoé o passado! (MARTÍN-BARBERO, 2006, p. 40)

O autor mostra, ainda, que foi pelo contato com as sociedades primitivas não

europeias que a ideia da diversidade das culturas adquiriu “estatuto científico” e por

meio do conceito de “cultura primitiva” é que se chegou a reconhecer que aqueles

indivíduos outrora definidos de forma paternalista como “camadas inferiores dos

povos civilizados” possuíam cultura:

O emprego do termo cultura para definir o conjunto de atitudes,crenças, códigos de comportamentos próprios das classessubalternas num certo período histórico é relativamente tardio e foiemprestado da antropologia cultural (GINZBURG, 2007, p. 12)

O “primitivo”, designando o selvagem na África ou o popular na Europa,

continuará obstinadamente significando, a partir de uma concepção evolucionista da

diferença cultural dominante até hoje, aquilo que olha para trás, um estágio talvez

admirável, porém atrasado, do desenvolvimento da humanidade e, por essa razão,

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“expropriável por aqueles que já conquistaram o estágio avançado” (MARTÍN-

BARBERO, 2006, p. 41).

Mestiçagens pelo dial do rádio

Para o estudioso, o conceito de cultura também mudou com a

tardomodernidade e a distinção clara entre antropologia e a sociologia – a primeira

lidando com as culturas primitivas e a outra, com as modernas – já não é tão nítida

assim. A crescente especialização comunicativa do cultural organiza, de um lado,

um “sistema de máquinas produtoras de bens simbólicos ajustados aos seus

públicos consumidores” e, de outro, toda a vida social que, “antropologizada, se

torna cultura” – é a cultura irrigando a vida social por inteiro. A constatação desses

desníveis socioeconômicos e de complexidade cultural que se vê em toda a América

Latina é a base de toda a reflexão que Jesús Martín-Barbero faz sobre o lugar da

comunicação no continente. Para ele, a verdade cultural dos países latino-

americanos é a mestiçagem, uma

(...) trama de modernidades e descontinuidades culturais,deformações sociais e estruturas de sentimento, de memóriase imaginários que misturam o indígena com o rural, o ruralcom o urbano, o folclore com o popular e o popular com omassivo (MARTÍN-BARBERO apud FONSECA, 1998, p. 28).

Já se viu no primeiro capítulo que essas mesclas são chamadas por Canclini

(2008) de hibridações. Para ele, na América Latina, as tradições ainda não se foram

e a modernidade não terminou de chegar. E é nesse ambiente que os estudiosos

analisam como se dão as mediações. Misturando tradição e modernidade, a

mediação televisiva ou radiofônica passou a fazer parte das ações políticas e do

cotidiano das pessoas. E é por intermédio do rádio e da TV que a política invade o

espaço doméstico, ao introduzir em seu discurso a corporeidade, a materialidade

significante de que se constitui a interação social cotidiana:

Assim, a comunicação e a cultura constituem hoje um campoprimordial de batalha política: um cenário que exige que a políticarecupere sua dimensão simbólica – sua capacidade de representaro vínculo entre os cidadãos, o sentimento de pertencer a umacomunidade – para enfrentar a erosão coletiva (Martín-Barbero,2006, p. 15).

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Jogo de futebol durante parada de comitiva, fazenda Curva do Leque, 200

Peões jogam futebol na fazenda Curva do Leque, enquanto esperam leilão, 2005

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Assim, para uma comunidade em que a figura do patrão sintetiza os

personagens institucionais da escola, do provedor das ações de governo, como

saúde e transporte, e de outras necessidades básicas, o rádio traz a possibilidade

da criação de outros vínculos, de outras teias, outras redes. Pelas ondas sonoras,

eles sentem-se como pertencendo a algo maior, fazendo parte de uma comunidade.

A oralidade, que perdura como experiência cultural primária da maioria, tem uma

profunda compenetração com a visualidade tecnológica, que para eles é uma forma

de oralidade secundária tecida e organizada pelas gramáticas tecnoperceptivas do

rádio e do cinema, do vídeo e da televisão (MARTÍN-BARBERO, 2006, p. 47). Até

os anos 1970, o rádio esteve conectado à oralidade cultural dos países da América

Latina e teve papel decisivo na mediação entre o mundo expressivo-simbólico do

rural e a racionalidade tecnoinstrumental da cidade – depois, o rádio foi substituído

pela televisão (MARTÍN-BARBERO, 2006, p. 39). No Pantanal, uma mídia não

substituiu a outra. E, mais do que mediar as constantes interações entre campo e

cidade, continua presente no cotidiano, nas festas, na religiosidade, como um

personagem a mais entre tantos que compõem a oralidade do pantaneiro.

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CAPÍTULO 3

AS INTERCORRÊNCIAS DA TV NA CULTURA MESTIÇA DO PANTANAL

3.1 A inserção da televisão no cotidiano pantaneiro

A gente fica fanático também,eu não gostava,

mas se estou em casa na hora da novela,eu tô lá na frente,

a gente aprende...a olhar.

(Jonas, na Nhecolândia)

Mulher toca sino na fazenda Aguapé. Pantanal do Aquidauana, 2005.

Blém, blém, blém... O sino toca para avisar que o jantar está pronto na

fazenda Aguapé, no Pantanal do Aquidauana. Apesar de ser final de tarde e ainda

ter luz natural, peões, com lanternas em punho, começam a chegar ao comedor,

lugar onde se servem as refeições. Dali, vão seguir outro chamado sonoro: o plim-

plim107 da TV Globo108, que fica ligada até às 9 da noite ou, mais especificamente,

107A vinheta da Rede Globo foi criada em 1971, a pedido de José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o

Boni, para marcar a passagem entre os programas e intervalos comerciais. Em 1976, Hans Donnerfez com que ela “começasse a flutuar livremente pelo espaço”. Eram três peças que, ao se

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até acabar a novela do horário nobre – 20 horas –, que lá começa uma hora mais

cedo por causa do fuso horário109. Às vezes, a TV é desligada um pouco mais tarde,

ao final do futebol, quando há transmissão de jogos de campeonatos importantes.

Depois disso, em virtude das restrições do uso de energia elétrica, os motores são

desligados. Na maior parte das fazendas visitadas, os motores eram ligados durante

algumas horas no período da manhã, na hora do almoço e à noite, totalizando de

quatro a seis horas por dia, mas a TV geralmente só é ligada à noite. Com hábitos

bem diferentes do dos moradores das grandes cidades, onde são realizadas as

pesquisas que mostram o tempo que cada brasileiro passa diante da televisão110,

pode-se afirmar, diante dessas circunstâncias, que o pantaneiro assiste entre duas e

três horas por dia – quase a metade do tempo daquele que vive no centro urbano111.

Muito importante para a compreensão de como o meio se insere na cultura

pantaneira é analisar não só o tempo, mas como é feito esse consumo, como se

assiste TV, pois a análise que se pretende fazer aqui não se restringe às mensagens

transmitidas pela tela e seus efeitos e reações, mas aborda como essa recepção se

articula com o contexto cultural em que vive o peão pantaneiro. É um estudo das

relações feitas por meio das mediações – “mediações não são o que está dentro

nem o que está fora, mas as conexões do que está dentro com o que está fora; são

as relações, as conexões e/ou ainda as interações promovidas” (APOSTOLICO,

2006, p. 49).

Foram adotadas as teorias propostas por Jesús Martín-Barbero, que, em vez

de primeiramente analisar a produção e a recepção, para depois considerar as

relações da TV com os espectadores, propõe três lugares possíveis para a

mediação: a cotidianidade familiar, a temporalidade social e a competência cultural.

A primeira é vista como a unidade básica de audiência (grifo no original), o lugar que

encaixarem, deixavam ver o arco-íris, fazendo soar o plim-plim. Pesquisado em:http://memoriaglobo.globo.com/Memoriaglobo/. Acessado em: 26 dez. 2009.108

Apesar de perder a hegemonia conquistada desde a década de 1970 a cada ano nas regiõesmetropolitanas, no Pantanal a TV Globo ainda é líder de audiência, segundo a TV Morena deCorumbá, integrante da Rede Matogrossense de Televisão, afiliada da Rede Globo.109

A diferença de fuso horário é para o sinal da TV que chega de Campo Grande ou Corumbá.110

As pesquisas geralmente são feitas em centros urbanos com mais de 1 milhão de habitantes.111

Segundo o IBGE, em 2004 o brasileiro gastou 4 horas, 53 minutos e 22 segundos assistindo à TVaberta. Pesquisa realizada pelo Almanaque Ibope em 2005 mostra que as classes D e E assistem 40minutos a mais, totalizando 5 horas e 11 minutos por dia (Fonte: Correio Brasiliense, 25/1/2005). Em2006, o IBGE divulgou pesquisa indicando aumento de meia hora no tempo gasto com o consumo detelevisão. Em 2009, a instituição francesa Deloitte apontou que o brasileiro gasta três vezes maistempo conectado à internet do que assistindo TV (Fonte: http://tecnologia.terra.com.br/interna/.Acesso em 27/3/2009).

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oferece uma situação de reconhecimento, “onde os indivíduos se confrontam como

pessoas e onde encontram alguma possibilidade de manifestar suas ânsias e

frustrações” (DURHAM apud MARTÍN-BARBERO, 2006, p. 295). A temporalidade

social é a que permite a medição entre o tempo do capital – o da produção, o tempo

que se mede – e o tempo da cotidianidade, o que se repete, feito não de unidades

contáveis, mas sim de fragmentos (PIRES DO RIO apud MARTÍN-BARBERO, 2006,

p. 297). E a competência cultural é a mediação que articula toda a vivência cultural

que as pessoas acumulam durante sua vida, não só pela educação formal, mas

também por meio das experiências cotidianas, atuando por intermédio dos gêneros

televisivos, que constituem uma mediação fundamental entre as lógicas do sistema

produtivo e as do sistema de consumo, entre a do formato e a dos modos de ler, dos

usos (PIRES DO RIO apud MARTÍN-BARBERO, 2006, p. 301). É essa dinâmica que

permite que a TV supere as diferenças sociais que a atravessam, tornando possível

que tanto um cidadão urbano, que sabe ler e escrever, portanto, letrado, quanto um

peão pantaneiro, analfabeto, assistam à programação, distinta em seus vários

gêneros.

Esse entendimento, por meio da cotidianidade, passa por um conceito

fundamental, o do habitus, que permite pensar a inscrição das estruturas sociais nas

práticas cotidianas. O termo foi usado por Certeau a partir de Bourdieu e,

posteriormente, Marcel Mauss. Panofsky também usou essa ideia em textos em que

sublinhava a importância teórica e prática do habitus na sociedade medieval

(CERTEAU, 2008, p. 332). Certeau defende uma inversão de perspectiva que

desloca a atenção do consumo supostamente passivo dos produtos recebidos para

o que chama de criação anônima, aquela que surge da prática mediante o uso

desses produtos. Assim, a “análise das imagens difundidas pela televisão

(representações) e dos tempos passados diante do aparelho (comportamento) deve

ser completada pelo estudo daquilo que o consumidor cultural ‘fabrica’ durante estas

horas e com essas imagens” (CERTEAU, 2008, p. 39). Tendo em vista o que Martín-

Barbero chama de habitus de classe, é possível observar como os modos de ver se

manifestam na organização do tempo e do espaço cotidianos, pois eles atravessam

os usos da televisão:

(...) de que espaços as pessoas veem televisão, privados oupúblicos, a casa, o bar da esquina, o clube de bairro? E que lugar

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ocupa a televisão na casa, central ou marginal? Preside a sala ondese leva a vida “social”, ou se refugia no quarto de dormir, ou seesconde no armário, de onde a retiram para ver algo muito especial?(2006, p. 302).

Jonas e Claudete assistem novela. A TV fica no quarto do casal. Pantanal da Nhecolândia, 2005.

No Pantanal da Nhecolândia e suas proximidades, ver TV é algo especial.

Aparelhos de televisão não estão em todo canto como nas casas da cidade: nas

fazendas pantaneiras, eles ainda têm lugar de destaque. Nas casas dos patrões,

nas sedes, está na sala. E na varanda dos fundos, perto da cozinha ou dentro dela,

para os empregados. Nos galpões dos peões é rara a presença dela. Se a fazenda

tem escola, geralmente é ali que fica a TV, pois fora dos horários de aula a escola se

transforma em um local de reuniões e eventos, como se fosse o centro comunitário

do lugar. Por isso, para os solteiros, assistir TV é um acontecimento marcado para

depois do jantar, já que os aparelhos também não estão perto da mesa em que são

servidas as refeições. Faustino, capataz de fazenda no Pantanal da Nhecolândia,

conta112:

Antes não tinha nada, cê jantava e se cê quisesse ficá conversandoum pouquinho, cê ficava, mas aí acabava o movimento, hoje em dianão, janta, vai assisti novela, pra mim ta sendo quase a cidade,porque o que ta passando na cidade, a pessoa sai daqui vai pra lá,

112Entrevista gravada pela autora em 2005, no Pantanal da Nhecolândia.

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ta tudo sabeno, não adianta falar – fulano tá lá no mato, não sabenegócio de TV, não sabe o que é... Num são todas fazenda que tatendo, mas a maior parte ta tendo.

Na casa dos peões casados, geralmente a TV está no quarto – poucas têm

sala, e, quando têm, são usadas como quartos. Camas servem de sofás e abrigam a

família após o jantar. É na cama, ao lado da mulher Claudete e dos filhos – quando

não estão na escola113 –, que Jonas assiste à novela de todos os dias. Ele revela:

Sabe que eu gosto mais de rádio do que de TV (...) era só rádioligado, o dia inteiro, ficava ali, conversando, se tinha pilhacontinuava, se não tinha ficava na mesma, mas TV é uma grandecoisa, aqui distrai a gente de muita coisa, agora eu assisto novela114.

Poucos confessaram o gosto pela novela, ao contrário, durante as entrevistas

realizadas na fase de pesquisa, muitos peões afirmaram que assistem apenas ao

noticiário na TV. Mas raramente eles se levantavam ou saíam da frente da TV com o

início da telenovela. Uma pesquisa feita pela Rede Globo mostrou que 40% da

audiência da novela das 20 horas é masculina (HAMBURGER, 2005, p. 64). No

Pantanal, onde há poucas mulheres, esse número deve ser bem maior. Vale dizer

que mesmo os que, como Jonas, ficaram fanáticos pela TV continuam grudados nos

seus aparelhos de rádio. Mas o rádio fica ligado durante os afazeres: nos

preparativos para a lida no galpão, na cozinha, no curral, durante o almoço na

comitiva, na rede ou ao lado da cama antes de dormir. O rádio só é desligado

durante a cavalgada, no momento do trânsito entre um local e outro.

Em meio à sonoridade a que estão acostumados – a literatura oral, os sons

da natureza e dos animais, os sinos que marcam o tempo do acordar, do almoço, do

jantar –, a televisão traz mais esse ritual, esse marco de tempo. E ainda traz a magia

da imagem – “foi a mais importante revolução virtual: tem as imagens que o rádio

não possui e é capaz de fixar hábitos na rotina das pessoas” (PIZA apud

TONIAZZO, 2007, p. 29). Cabe esclarecer que não se trata de considerar a TV como

um meio que acrescentou imagens à sonoridade do rádio, como de fato aconteceu

nos primórdios da TV, mas à sua capacidade de sedução – o mundo que aparece na

tela da televisão vem dominado pela instantaneidade, seja uma transmissão ao vivo

113As três filhas do casal estudam na escola pantaneira Cyriaco Rondon, da fazenda Tupanciretã,

distante três horas de trator na época da seca, e só voltam para casa nos finais de semana.114

Entrevista gravada pela autora na fazenda Fazendinha, no Pantanal da Nhecolândia.

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ou não, ela sempre traz a sensação de imediatismo, de proximidade com os fatos,

mesmo que eles estejam acontecendo do outro lado do planeta. Para Martín-

Barbero, essa preponderância do verbal na TV latino-americana ainda acontece

hoje, apesar de todo o desenvolvimento técnico e expressivo, em virtude da

(...) necessidade que se tem de subordinar a lógica visual à lógicado contato, dado que é essa que articula o discurso televisivo sobreo eixo da relação estreita e a predominância da palavra em culturastão fortemente orais (MARTÍN-BARBERO, 2006, p. 296).

Laços sociais e conexões criados a partir da TV

Assim como o rádio cria vínculos entre as pessoas, como visto no capítulo

anterior, a TV também cumpre esse papel. Para o pesquisador francês Dominique

Wolton115, a principal função da televisão é a criação de laço social:

Em que a televisão constitui um laço social? No fato de que oespectador, ao assistir à televisão, agrega-se a esse públicopotencialmente imenso e anônimo que a assiste simultaneamente,estabelecendo assim, como ele, uma espécie de laço invisível. Éuma espécie de common knowledge, um duplo laço e umaantecipação cruzada. “Assisto a um programa e sei que outrapessoa o assiste também, e também sabe que eu estou assistindo aele” (1996, p. 124).

Fechine (2008) destaca algumas dessas teorias, sobre os modos de ver TV,

ao fazer uma abordagem semiótica na transmissão direta da TV. A autora descreve

a teoria de John Ellis, que propõe dois regimes de visão ou de fruição: o regime do

olhar fixo – fitar, contemplar e dar olhadela, que acontece quando a TV está ligada,

mas o espectador sequer para diante da tela, ele apenas monitora a televisão

enquanto faz outras atividades, dedicando a ela uma atenção intermitente ou

esporádica –; e o regime do “olhar” – o espectador é completamente absorvido pelo

que vê na TV. O primeiro modo é chamado pela autora de atividade primária e o

segundo, de atividade secundária. Como opera em “tempo real”, o simples fato de

115Dominique Wolton é doutor em sociologia e diretor do Centro Nacional de Pesquisas Científicas

em Paris. Em eventos no Brasil, defendeu as teorias publicadas em livros, algumas consideradaspolêmicas, como a que considera a TV uma propiciadora de modernização nas sociedades menosfavorecidas. Mas, neste trabalho, já se discutiu que o acesso à mídia ou equipamentos não tornaninguém mais ou menos moderno (PINHEIRO, 2006, p. 30).

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ver TV cria o contato – “vejo o que os outros estão vendo no momento em que eles

estão vendo” (FECHINE, 2008, p. 109).

Para o peão pantaneiro, que se desloca até um lugar específico para ver TV,

o estar junto tem realmente um duplo sentido: ele está em um mesmo espaço físico

assistindo televisão, compartilhando com outras pessoas esse momento e, por

intermédio dela, compartilha essa experiência com milhões de outros

telespectadores, em lugares distintos. E aí, se cria um espaço simbólico, vivido

coletivamente por meio da transmissão. Fechine (2008, 109) descreve:

É sincronizando o ‘passar do tempo’ do meu cotidiano (esfera

privada) com o de grupos sociais mais amplos (esfera pública) que a

TV instaura um sentido de ‘estar com’ ou ‘fazer juntos’ que se

manifesta unicamente na copresença que essa similaridade da

programação (todos veem a mesma coisa) e essa simultaneidade da

sua transmissão (ao mesmo tempo) propiciam.

E, assim que a TV é desligada, a duração é interrompida, o contato, desfeito.

No Pantanal, principalmente para os peões solteiros que vão voltar para o galpão, a

TV ganha “ares” de cinema, pois, para eles, ir ver TV é como o ato de ir ao cinema

para o morador das cidades, e essa experiência é comunitária, possibilita uma

vinculação social diferenciada, mais duradoura que quando assistem em casa,

sozinhos, isolados. Dificilmente se faz outra atividade enquanto a TV está ligada.

Seja entre os solteiros ou casados, a televisão no Pantanal ainda reúne as pessoas,

como fazia logo após sua chegada aos lares brasileiros, nas décadas de 1960 e

1970, quando ela reinava na sala. E como ainda acontece nos bairros populares,

nas periferias das grandes cidades e no interior, onde existe apenas um aparelho

em cada residência. Nesse sentido, ver TV é um ato social que permite o encontro, a

troca de opiniões sobre o que se vê na tela, pois todos estão no mesmo espaço e,

por mais que tenham opções de canais116, veem a mesma programação, pois é um

só aparelho para todos, o que implica a escolha de uma única sintonia. E ali, juntos,

aplaudem, vaiam, vibram, silenciam.

116No período em que a pesquisa foi realizada, em todas as fazendas visitadas o sinal da TV era

captado por antenas parabólicas que podiam captar o sinal direto de transmissoras do Rio de Janeiroou São Paulo ou da retransmissora da TV Morena de Corumbá.

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Foi em uma situação similar a essa, assistindo a um filme com professores da

universidade e moradores da periferia de Cali, que Martín-Barbero (2002) teve uma

ruptura epistemológica que o levou a reforçar algumas das teorias já citadas aqui.

Eles riam do filme grotesco que estava na tela enquanto todos os espectadores

permaneciam em total silêncio. O fato é narrado na introdução de Ofício de

cartógrafo: depois de quase ter sido expulso da sala de cinema, passou a observar

não o filme, mas a reação das pessoas que estavam no cinema. Percebeu que o

filme que eles viam não tinha nada a ver com o que ele via. A partir do episódio,

para o pesquisador mudou o lugar de onde se formulam as perguntas – um ponto

fundamental de todo o trabalho de Martín-Barbero, que busca, então, uma

aproximação etnográfica e um distanciamento cultural que permita ver com as

pessoas e contar às pessoas o já visto. Esse deslocamento metodológico permite

traçar um novo mapa para as mediações, em que se rediscutem conceitos como

hegemonia e o papel do que é “popular” no processo comunicacional:

Um mapa que sirva para questionar as mesmas coisas –dominação, produção e trabalho, mas a partir do outro lado: asbrechas, o consumo e o prazer. Um mapa que não sirva para a fuga,e sim para o reconhecimento da situação a partir das mediações edos sujeitos (MARTÍN-BARBERO, 2006, p. 290).

É com esse mapa, noturno, que permite ver o que não está dito que, ao final

da pesquisa que estava sendo realizada naquela sala de cinema da periferia de Cali,

se pôde perceber o uso social da telenovela feito por aquela gente:

(...) do que falam as telenovelas, e o que eles [os pesquisadores]dizem para a gente, não é algo que esteja de uma vez dito nem notexto de telenovela nem nas repostas às perguntas duma pesquisa.Trata-se de um dizer tecido de silêncios: os que tecem a vida dessagente “que não sabe falar” – e muito menos escrever – e aquelesoutros com os quais está “entretecido” o diálogo da gente com o queacontece na tela (MARTÍN-BARBERO, 2002, p. 29, tradução nossa).

Para ele, a telenovela fala mais a partir dos intertextos que formam suas

leituras do que a partir de seu texto. E as pessoas desfrutam mais da telenovela

quando a contam do que quando a assistem, porque, ao contar, misturam o episódio

às suas próprias vidas. Esse exemplo torna claro também que a mediação não

acontece apenas naquele momento em que o espectador está diante da TV, é um

processo atemporal.

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A oralidade pantaneira diante da mediação televisiva

Acredita-se que, principalmente em sociedades orais como a pantaneira, a

mistura do conteúdo da telenovela com fatos cotidianos também acontece com

outros formatos televisivos, como o telejornal. E essa característica é bastante

acentuada no Pantanal por causa da cultura oral do pantaneiro. Viu-se que, ao

contar um causo, o narrador vai incorporando à memória coletiva relatos com a sua

própria história e retira dela, pelo esquecimento, o que não quer ou não tem

interesse em dar continuidade. Assim como essa literatura oral atualiza a cultura do

pantaneiro por meio dos causos, a TV se apropria do que lhe interessa. E usa

artifícios, como os narradores, para dar destaque ou esconder o que é ou não

conveniente. O que se vê na TV é resultado de um processo de seleção, a escolha

de uma ou mais versões, a edição de determinados acontecimentos, num jogo

constante de memória e esquecimento. Assim como os narradores pantaneiros, a

mídia televisiva é mais do que simples relatora dos fatos, age como ator fazendo uso

da montagem. Na afirmação de Martín-Barbero e Rey (2004, p. 100):

A visibilidade que mídias como a televisão oferecem é quasesempre paradoxal: não responde a um ideal de total transparência,mas é o resultado mais ou menos ambíguo da interseção entreinformação e desinformação, verdade e artifício, montagensritualizadas e espontaneidade.

Ao analisar a mediação por meio da cotidianidade, a TV deixa de ser vista

como a corruptora das tradições familiares para estabelecer uma concepção que vê

na família um espaço fundamental para a leitura de codificação da televisão. O

próprio discurso televisivo se apropria disso, colocando na tela sempre personagens

com os quais grande parcela do público possa se identificar:

(...) os rostos da televisão serão próximos, amigáveis; nemfascinantes, nem vulgares. Proximidade dos personagens e dosacontecimentos: um discurso que familiariza tudo, torna “próximo”até o que houver de mais remoto e assim se faz incapaz deenfrentar os preconceitos mais “familiares” (MARTÍN-BARBERO,2006, p. 297).

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Claudete, mulher do peão Jonas, adora as telenovelas da Globo e não perde

um capítulo da novela Belíssima117, que mostra triângulos amorosos, traições e

cenas de muita sedução gravadas em Atenas, São Paulo e Rio de Janeiro. Ela

afirma que agora coisas da cidade estão no Pantanal:

Antes a gente não tinha uma TV, aí você não sabia como era omundo lá fora, você achava que não podia fazer uma coisa e àsvezes pode (...) achava que não tinha condições de fazer algumascoisas e às vezes tem. De primeiro eu achava que o marido falava,você escutava e ficava quieta, hoje em dia não, você vê que temdireito de muitas coisas118.

Detalhe da TV no quarto do casal Jonas e Claudete, com cena da novela, 2005.

Pela telinha, portanto, o telespectador se conecta, passa a fazer parte do todo

– ela traz as coisas da cidade para o Pantanal. Os espectadores sentem-se

inseridos no mundo, mesmo que não sejam retratados na tela – será abordada essa

questão ainda neste capítulo. Mas ao verem ali, tão próximos deles, realidades tão

distantes, novos ritmos, outras formas de comportamentos sociais, permitem-se

romper, recriar ou mesmo aguçar o sentido da identidade do que é ser pantaneiro,

117Belíssima, novela de Sílvio de Abreu, foi exibida de 7/11/2005 a 7/7/2006, às 20 horas. Fonte:

http://memoriaglobo.globo.com/Memoriaglobo/.118

Entrevista gravada no Pantanal da Nhecolândia, fazenda Fazendinha.

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ser urbano, ser global. Isso fica claro no depoimento do seu Alonso, gravado em

2005:

Aquele tempo, como fala o pessoal antigo, o pantaneiro era maisbobo. Eles fala da gente, que hoje em dia é tudo sabido, já vêtelevisão, já sabe o que tá acontecendo no país estrangeiro.

Para Martín-Barbero, o sentido identitário, de pertencimento ao lugar, surge

porque a TV consegue “recuperar memórias e tecer novos laços de pertencimento

ao território” e, por isso, “permite ‘novas maneiras de estar junto’ pelas quais se

recria a cidadania e se reconstitui a sociedade” (2006, p. 21). Para Eugênio Bucci e

Kehl, “a televisão não mostra lugares, não traz lugares de longe para muito perto – a

televisão é um lugar em si” (2009, p. 31). Segundo ele, isso se dá porque a televisão

tem um discurso de distanciamento e, diante da tela da TV, o que o espectador

enxerga não é a própria tela, nem o discurso, e sim a paisagem que se apresenta ao

lado dela. E o lugar da TV é o novo espaço público ou uma esfera pública

expandida.

Não se trata apenas de ver a TV, o rádio ou a mídia como agentes capazes

de dominar ou mesmo contaminar sociedades puras com o conteúdo perverso que

vem das sociedades mais evoluídas, mas sim de ver instituições como a escola, a

igreja, a literatura de cordel e do melodrama e a própria organização da produção

industrial e do espaço urbano como mediadores socioculturais. Nesse novo cenário,

os meios de comunicação de massa são “espaços-chave de condensação e

intersecção de múltiplas redes de poder e de produção cultural” (MARTÍN-

BARBERO, 2006, p. 20). Contra o pensamento corrente de que a tecnologia seria o

grande mediador entre as pessoas e o mundo, o autor argumenta que a tecnologia

é, sim, o grande mediador, de forma acelerada e intensa, mas da transformação da

sociedade em mercado e deste em principal agenciador da mundialização. Esse

processo começou a se desenvolver antes mesmo dos meios eletrônicos.

Canclini, ao estudar como se deu o processo de globalização das sociedades

latino-americanas, mostra que a noção de cultura massiva surge quando as

sociedades já estavam massificadas e que, na América Latina, as transformações

promovidas pelos novos meios de comunicação se entrelaçam com a integração das

nações. Ele lembra que muitos teóricos acreditavam que os meios de comunicação

massiva eram a grande ameaça para as tradições populares, mas que, a

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(...) rigor, o processo de homogeneização das culturas autóctonesda América começou muito antes do rádio e da televisão: nasoperações etnocidas da conquista e da colonização, nacristianização violenta de grupos com religiões diversas – durante aformação dos Estados nacionais –, na escolarização monolíngue ena organização colonial do espaço urbano (CANCLINI, 2008, p.253).

O surgimento e a rápida expansão do rádio, do cinema e da televisão,

portanto, não substituíram as tradições por novas formas de controle social, como se

pensava: “Impressionados com o crescimento súbito de leitores de jornais e revista,

da audiência de rádio e televisão, os comunicólogos acreditaram que as

transformações simbólicas eram um conjunto de efeitos derivados do maior impacto

quantitativo da informação (CANCLINI, 2008, p. 256). Para ele, as transformações

que os meios de comunicação promoveram na América Latina se entrelaçam com a

integração das nações. E cita o exemplo do México, onde a população teve o rádio e

o cinema desenvolvendo um papel fundamental na criação da identidade nacional,

que transcendeu as divisões étnicas e regionais:

(...) modos de falar e vestir-se, gostos e códigos de costumes, antesdistantes e dispersos, juntam-se na linguagem com que a mídiarepresenta as massas que irrompem nas cidades e lhes dão umasíntese da identidade nacional (MONSIVÁIS apud CANCLINI, 2008,p. 256).

O urbano e o rural na tela da TV

Como mostrou Canclini, muitos teóricos creditam à televisão transformações

sociais que já estavam em processo antes da chegada dela. E o mesmo acontece

no Pantanal: viu-se que o rádio já havia sido inserido no cotidiano do homem

pantaneiro – desde a década de 1940 há registros da presença dele na região. As

relações trabalhistas entre os peões pantaneiros e os proprietários das fazendas

também não eram as mesmas. O emprego passou a ser sazonal para grande parte

da mão de obra, e essas mudanças provocaram aumento no trânsito entre o

Pantanal e as cidades do entorno, como demonstrou Banducci Jr. (2000). Portanto,

quando as antenas parabólicas começaram a mudar a paisagem pantaneira, já não

havia ali uma cultura pura, de origem, sem contato com a civilização que viria pelas

ondas da TV, mas uma sociedade em transformação. Todo o País passava por

mudanças políticas estruturais na década de 1950, quando começaram as primeiras

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transmissões. Mas essas mudanças não foram ao ar, ao contrário, a TV serviu para

“mascarar” o que acontecia de fato.

Seu Alonso, peão conhecido como Paraguaio, assiste TV em escola pantaneira, 2005.

Seu Alonso assiste TV com outros peões e moradores da fazenda Aguapé. Na mesa, as lanternaspara voltarem para casa ou para o galpão depois que o motor for desligado, Pantanal do Aquidauana,2005.

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Apesar de a televisão manter as caracterizações das mesmas transformações

sofridas pelos meios de comunicação de toda a América Latina, no Brasil ela teve

um processo um pouco particular, passando de uma situação de total dependência,

seja da verba do mercado publicitário ou do governo, para a autossuficiência na

produção e até exportação de programas. Surgida no final dos anos 1950, mais

especificamente em 18 de setembro de 1950, a TV Tupi Difusora, em São Paulo, foi

a primeira estação de televisão da América do Sul. Ao contrário da TV norte-

americana, que se apoiou na indústria cinematográfica para se desenvolver, a TV

brasileira se inspirou no rádio, usando não só o mesmo formato de programação,

mas também sua estrutura e até os mesmos profissionais. No Brasil, a TV mantém

uma característica peculiar desde o início: todas as geradoras e retransmissoras em

funcionamento até o ano de 2000 estão sediadas em áreas urbanas, com

programações voltadas para as populações das cidades, orientadas para o lucro,

com raras exceções, como o caso das televisões educativas, e o controle acionário

está nas mãos de grupos familiares, funcionando com forte dependência de verba

publicitária (MATTOS, 2002, p. 50).

Ao contrário da TV mexicana, que funcionou como difusora para a criação de

uma identidade nacional, a TV brasileira desempenhou o papel de difusora do

sentimento nacional que articula os espectadores, incluídos e excluídos, em torno da

ideia básica de Brasil, que existe ao mesmo tempo como unidade e diversidade. No

dizer de Priolli, “se são muitas as identidades nacionais, nem todas passam na TV

(2000, p. 14, grifo nosso). Para ele, a TV brasileira é controlada por

(...) uma elite majoritariamente branca, radicada na região Sudeste,mas exógena, voltada para a Europa e os Estados Unidos (...). Essaelite, que vive de costas para o restante do Brasil, cria a sua peculiarimagem do país, quase sempre folclorizando e discriminando índios,negros e asiáticos... (Priolli, 2000, p. 15).

O autor argumenta, ainda, que essa visão da identidade nacional, construída

a partir do Sudeste, gerou críticas como a “ipanemização” do modo de falar do

brasileiro, com a difusão da linguagem carioca, e gerou uma mediação fortemente

arraigada pelos costumes característicos e ponto de vista dos moradores do Rio de

Janeiro e de São Paulo para todo o restante do País. Ainda hoje, quando se têm

outros falares na telinha da TV, como o nordestino, por exemplo, geralmente ele

vem carregado de folclore, como apontou Priolli. E o que se procura propagar na

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televisão é uma visão única de um país com tantos falares e tantos sotaques. Uma

mostra disso é que a programação a que o peão pantaneiro assiste no Pantanal da

Nhecolândia, do Taquari ou de qualquer outra região em estudo não é muito

diferente daquela a que o morador de cidades como São Paulo, Manaus ou Porto

Alegre tem acesso. A programação diferenciada, regional, para qualquer um desses

espectadores raramente passa de 10% do total119. A grade de programação é

resultado direto de acordos entre as emissoras: a “cabeça de rede”120 oferece a

programação para a “afiliada”121, e essa pode abrir determinado tempo de produção

local. Falaremos mais sobre o funcionamento desse processo ainda neste capítulo.

Em estudo sobre a formação da Rede Matogrossense de Televisão, Toniazzo (2007,

p. 69) mostra que, entre as afiliadas da Rede Globo, apenas a Anhanguera, no

Centro-Oeste, dedica 35% da sua programação aos temas regionais.

Mesmo sendo tão pouco, os 10% de programação local da Rede

Matogrossense de Televisão resultam de grandes mudanças, realizadas

principalmente a partir da década de 1990, com a regionalização da programação

mediante, entre outros fatores, o fortalecimento das redes regionais. Para entender

como isso aconteceu, vamos analisar como se deram a criação e a consolidação da

Rede Matogrossense de Televisão, a emissora regional que abrange o Pantanal do

Mato Grosso do Sul, ligada à Rede Globo de Televisão.

A chegada da TV ao Pantanal

É difícil precisar a data exata da chegada da televisão ao Pantanal. Mas,

segundo depoimentos, as primeiras antenas parabólicas foram instaladas nas

fazendas pantaneiras a partir da década de 1960. Fonseca Jr. (1998, p. 85) aponta

que a TV chegou ao Pantanal no final dos anos 1960. O relato curioso de Ueze

Zahran, empresário responsável pela criação da Rede Matogrossense de Televisão,

sobre o impacto das primeiras transmissões no estado, também dá conta da

presença das antenas parabólicas no Pantanal:

119A porcentagem é a mesma se o peão pantaneiro estiver sintonizado com a emissora da TV

Morena, de Campo Grande, ou de Corumbá (antiga TV Cidade Branca).120

“Cabeça de rede” é um termo usado para definir a emissora geradora da programação, a quereúne os conteúdos produzidos por outras emissoras e coloca-os em uma mesma grade.121

“Afiliada” é a emissora que tem um contrato com uma rede e se compromete a transmitir comexclusividade o conteúdo produzido por ela.

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Uma fazendeira havia “perdido” a comitiva com a sua boiada. Osvaqueiros tinham locais costumeiros para o descanso do gado, masquando souberam que, à noite, por volta das sete horas, haveriaprograma na televisão, andaram por mais quatro horas, para poderassistir a novidade (TONIAZZO, 2007, p. 139).

A “novidade” chegou ao estado em 1965, com a instalação da TV Morena, em

Campo Grande. Em 1970, veio a TV Morena de Corumbá, antigamente também

conhecida como TV Cidade Branca. Hoje, são oito emissoras regionais, mas como

as antenas situadas nas fazendas pantaneiras em estudo captam o sinal das

emissoras de Campo Grande e Corumbá, este trabalho se aterá aos dados

referentes apenas a essas duas. A Rede Matogrossense de Televisão foi criada por

iniciativa dos irmãos Ueze e Eduardo Elias Zahran, empresários da área do gás122. A

ideia inicial era instalar uma repetidora da TV Record por meio de um consórcio com

prefeitos do interior de São Paulo, mas não deu certo. Ueze decidiu, então, montar

uma emissora. Um transmissor de 100 watts foi instalado na casa da família e 10

televisores da marca Michigan foram montados e espalhados em pontos comerciais

da cidade.

A primeira exibição foi de um filme, projetado na parede da casa da família,

registrado pelas câmeras e transmitido aos aparelhos existentes, de forma

clandestina, em 1964. O sucesso continuou com filmes e programas da Record, Tupi

e Excelsior. Foi feito então um pedido de concessão para o Conselho Nacional de

Telecomunicações e, em 1965, Ueze Zahran obteve a concessão. A TV Morena

começou a transmitir em 25 de dezembro daquele ano com a programação da TV

Record, com shows de variedades, musicais e programas humorísticos. A

programação era anunciada nos jornais diários para atrair os telespectadores. A do

dia 30 de dezembro anunciava: 18h50 – Abertura, 18h55 – Momentos de Paz,

19h00 – Desenho animado: Gasparzinho, 19h25 – Noticiário, 20h00 – Filme juvenil:

Ramar das selvas, 20h25 – Crônica Social, 20h30 – Filme para adultos: O Fugitivo,

21h30 – Encerramento123.

A expansão da rede começou logo depois da instalação da emissora em

Campo Grande, por via terrestre. A primeira cidade a receber o sinal da ampliação

da TV Morena foi Aquidauana, a 150 km, já atingindo a área do Pantanal. Pouco a

122A empresa Copagaz é de propriedade da família ainda hoje.

123Anúncio do Correio do Estado de 30 de dezembro de 1965, arquivo do jornal (TONIAZZO, 2007, p.

139).

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pouco, o território estadual foi sendo coberto pelo sinal da televisão regional, até

chegar a 98% do estado. Depois, foi instalado o primeiro satélite e, em 2006, o

segundo, o que permitiu substituir toda a cobertura terrestre pelo sinal digital.

Atualmente, todos os municípios do estado recebem sinal de uma das emissoras da

Rede Matogrossense via satélite124.

O período em que a TV chegou ao então Estado de Mato Grosso era

conhecido como a fase populista da televisão brasileira. Para Sérgio Mattos, o

primeiro período foi chamado de elitista por causa da programação mais cultural e

do acesso restrito em virtude do alto valor dos televisores: de 1950 a 1964. Era

marcado pelo improviso, uma programação esporádica e poucos investidores, sendo

que a maior parte era de estrangeiros. As empresas já possuíam experiência com a

televisão em seus países de origem e passaram a investir no veículo aqui no Brasil.

Uma mostra disso é que muitos programas levavam o nome do patrocinador, como o

Repórter Esso, Telenotícias Panair ou Telejornal Pirelli. As empresas influenciavam

também na produção – o Repórter Esso, por exemplo, era uma adaptação de um

radiojornal transmitido pela United Press Internacional feita pela Tupi Rio por meio

de uma agência de publicidade, que entregava o programa pronto para a exibição na

TV (NOGUEIRA apud MATTOS, 2002, p. 85).

A interferência das empresas estrangeiras na televisão nacional era exercida

também na produção de telenovelas. Um levantamento da revista Veja mostrou que

em 1969, das 24 telenovelas produzidas e veiculadas, 16 tinham o patrocínio de

multinacionais como Gessy-Lever, Colgate-Palmolive e Kolynoss-VanEss (MATTOS,

2002, p. 71). O autor mostra, ainda, dados sobre como o desenvolvimento da

publicidade multinacional tem afetado o crescimento dos meios de comunicação dos

países do Terceiro Mundo, especialmente da televisão.

Essa característica pode ser percebida também na programação da TV

Morena de Campo Grande, com programas locais que levavam o nome do

patrocinador, como o infantil Faça uma criança sorrir. O programa era apresentado

por Marizeth Chita e tinha o patrocínio da Casas Vítor, de móveis e

eletrodomésticos. Por exigência do patrocinador, a assinatura do programa levava o

nome da empresa e o dele: “Faça uma criança sorrir, um patrocínio das Casas Vítor

de Nelson Borges de Barros”. O proprietário, que era candidato a vereador, foi eleito

124Depois da Rede Amazônica, a Rede Matogrossense de Televisão é a que mais cobre o território

(TONIAZZO, 2007, p. 149).

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por quatro mandatos. Outro programa da televisão local com assinatura semelhante

era o Rumo Novoeste, um programa de cinco minutos patrocinado pela imobiliária

Novoeste Crédito Imobiliário (TONIAZZO, 2007, p. 152).

A segunda fase, período em que são instaladas as emissoras que compõem a

Rede Matogrossense de Televisão, começa a partir do golpe de 1964, pois ele

afetou os meios de comunicação de massa, que passaram a sofrer as

consequências do modelo econômico e político adotado para o desenvolvimento do

País, e vai até 1975. A televisão passou a exercer o papel de difusora da ideologia

do regime militar e Mattos (2002, p. 89) chega a afirmar que o “regime militar

contribuiu para o desenvolvimento da televisão brasileira”. Como era preciso

industrializar o País e, ao mesmo tempo, ampliar a audiência para fortalecer a

televisão e, por conseguinte, a influência do Estado por meio dela, havia até

financiamento do governo para a venda de televisores a prazo para aumentar o

número de telespectadores. Muniz Sodré aponta que a estratégia de financiamento

também servia para sustentar a “nova sociedade moderna brasileira” que se formava

nas cidades, e houve também um boom na venda de aparelhos de televisores.

Segundo ele, só

(...) no final de 1971, às vésperas do lançamento da tevê em cores(uma diversificação do produto-serviço, que não pudera serimplantada em 1963, em virtude da estagnação econômica doperíodo 62/67) venderam-se perto de um milhão de aparelhos pretoe branco (SODRÉ, 1989, p. 90).

A família Zahran, logo no início da Rede Matogrossense de Televisão,

também usou dessa estratégia e vendia aparelhos de TV na tentativa de formar um

público para o “produto” que passava a oferecer. A família chegou a montar uma

fábrica da Michigan na cidade. No ano em que instalaram a TV Morena em Campo

Grande, venderam 800 unidades da marca que fabricavam, além de outros 1.200 da

marca Philco.

No Brasil, a TV continuava a ser financiada pela publicidade das empresas

privadas e chegou a se tornar dependente da verba das anunciantes estrangeiras.

No final dos anos 1960 e início de 1970, o Brasil era o quarto país do mundo em

gastos com anúncios na TV. Segundo Mattos (2002), nessa época houve o que se

poderia chamar de boom da televisão – foram 67 licenças para novas emissoras só

entre 1969 e 1977. Apesar de ter o controle das empresas de radiodifusão, até 1970,

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o governo se preocupava mais com os aspectos tecnológicos da televisão, alocando

frequências e concedendo licenças para ampliar o alcance da TV. A partir daí,

começa a se preocupar com o conteúdo – é o início da censura. A violência dos

programas e filmes é criticada e o governo federal passa a cobrar um padrão cultural

para a televisão. O que se reverte na tentativa de as emissoras nacionalizarem seus

programas. A verba publicitária vinda do Governo aumenta na mesma proporção do

controle da programação. A Globo se beneficia do favoritismo do governo, com

acordos que garantiram à emissora as melhores localizações e facilidades na

importação de equipamentos (SKIDMORE apud TONIAZZO, 2007, p. 40).

O período de 1964 a 1975 foi conhecido também como o de

profissionalização, com a TV adotando os padrões de administração norte-

americanos. A busca por qualidade e a censura propiciaram a consolidação do

gênero da telenovela, assumindo o perfil de veículo de audiência nacional. O

noticiário ficava com o rádio, que ganhava em instantaneidade. Na TV, o que se

tinha era, além do Jornal Nacional, lançado em 1969, programas como Amaral Neto,

o Repórter, sem isenção político-partidária, um “autêntico show de propaganda

ufanista, vitrine do governo militar” (TONIAZZO, 2007, p. 41). A telenovela trazia

temas amenos, voltados para o entretenimento, que distanciavam o público da

reflexão sobre o cotidiano do País e ela “era uma espécie de compensação para a

população, já que até 1975 a programação da televisão era extremamente castrada

pela censura” (MATTOS, 2002, p. 103). Grande parte do que a TV exibia, apesar da

intenção de ter uma programação mais nacionalista, era de “enlatados”, programas

e filmes produzidos no exterior que vinham sem nenhum critério cultural. A vida

cultural do País nessa época era concentrada na capital, Rio de Janeiro. O que

acontecia no restante do País pouco importava para a programação da TV, mas o

interior interessava, e muito, como público e como mercado, para a política

expansionista do governo.

Foi nesse cenário que surgiram as redes regionais de televisão. Além das

condições políticas favoráveis, a favor delas estavam ainda algumas novidades

tecnológicas: o uso do videoteipe, que possibilitava a cópia e o transporte de fitas

para outros mercados, que tinha surgido nos Estados Unidos em 1956 e passou a

ser usado no Brasil na década de 1960, o sistema de micro-ondas, que permitia a

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transmissão em tempo real e, nos anos 1970, o sistema de transmissão via

satélite125 (TONIAZZO, 2007, p. 48).

O início da TV em Corumbá: uma matéria que não foi arquivada

A primeira transmissão da TV Morena de Corumbá foi em 21 de setembro de

1970, em caráter experimental126. Era o aniversário de Corumbá e estavam

presentes empresários, autoridades locais, como representantes da igreja, da

prefeitura e do governo e moradores da cidade. A antena retransmissora foi

instalada no morro de Santa Cruz, um dos pontos mais altos do entorno, totalizando

1.064 metros de altura. O sinal de Campo Grande era captado pelo canal 5 e a

transmissão acontecia pelo 12. A partir de 4 de outubro do mesmo ano, a

programação passou a ser diária. A exemplo da TV Morena de Campo Grande, a de

Corumbá também retransmitia a grade da TV Tupi. Não existem dados oficiais,

nenhuma parte da transmissão foi arquivada, mas segundo depoimento de Tyrone

Rorys, produtor comercial que acompanhou a instalação da televisão na cidade, em

1972, a emissora passou a transmitir a programação da TV Globo127. A produção

local se restringia a um jornal de trinta minutos de duração, que ia ao ar às 19h45,

de segunda a sexta. “Eram dois apresentadores que liam as notícias, não havia

imagens de cobertura, nem mesmo reportagens, gravações externas, tudo era feito

em estúdio”128, relata o funcionário. Na época, era o coordenador-geral da TV

Morena de Campo Grande e foi para Corumbá para ajudar a viabilizar a implantação

da emissora.

Aos sábados, o telejornal dava lugar ao Noite Social, programa de entrevistas

e shows musicais, gravado também no estúdio da emissora. Não existe nenhum

registro dessa época. Muitas fitas foram queimadas e os arquivos, jogados fora:

“Nosso arquivo foi organizado a partir de 1998, nós aqui na TV não temos nenhum

125O sistema de transmissão via satélite começou em 1962 com o lançamento do satélite Telstar nos

Estados Unidos e no Brasil foi iniciado oficialmente com a criação da Embratel, em 1965 (MATTOS,2002).126

Informações obtidas em entrevistas com funcionários das emissoras da Rede Matogrossense deTelevisão.127

Não existe registro oficial sobre essa data. Essa informação foi colhida em entrevista com TyroneRorys, antigo funcionário da TV Morena de Corumbá. Toniazzo (2007, p. 155) aponta que a dataprovável para esse início, para a TV Morena de Campo Grande, seja de 1975 a 1977.128

Entrevista feita pela autora em Corumbá, em 5 de janeiro de 2010. Tyrone Rorys tem 70 anos deidade e trabalha há cinquenta anos para a família Zahran e, segundo ele, é um dos funcionários maisantigos da Rede Matogrossense de Televisão.

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registro de épocas anteriores a isso”129, relata o editor regional André Navarro, que

trabalha na TV Morena de Corumbá desde 1993. Ele conta que conseguiu “salvar”

parte do material que estava sendo queimado e começou a organizar o arquivo, mas

muita coisa não pôde ser aproveitada porque as fitas estavam mofadas, pois não

foram guardadas em condições adequadas.

Quando foram iniciadas as transmissões, Corumbá era uma cidade em

crescimento, com 48.600 habitantes130. Mais de 60% da população do município

morava na área urbana. Apesar da importância da pecuária, grande parte da renda

vinha do setor industrial, com indústrias de extração e produção131 de minérios e

calcário, instaladas a partir de 1940. A proximidade com a fronteira também

influenciava na economia, com a presença de 180 exportadoras e escritórios de

despachantes aduaneiros. O País vivia nesses anos em plena fase conhecida como

o “milagre econômico” – depois da inflação descontrolada e movimentos políticos

revolucionários, o período de 1969 a 1974 foi marcado pela implantação de um

modelo econômico autoritário, com forte controle dos meios de comunicação,

censura que se traduzia em atos como o Institucional nº 5, a Lei de Segurança

Nacional e outras medidas restauradoras que foram responsáveis pelo crescimento

não do País, mas do Sudeste, mais explicitamente de São Paulo (BETHEL apud

MATTOS, 2002, p. 40).

Apesar do empobrecimento de parte da população, principalmente da área

rural, que passou a migrar para as cidades que se industrializavam e se

modernizavam, a renda per capita do País como um todo cresceu. Saíam da cena

central as antigas elites, ligadas aos setores agrários, e entravam em jogo os

tecnocratas e novos industriais. Nesse cenário de acelerada urbanização e

industrialização, a televisão passou a significar o “futuro” tecnológico dos meios de

informação no País, pois representava a ideologia modernizadora do modelo de

crescimento econômico – ser moderno aqui significa reproduzir os “padrões de vida

da sociedade urbano-industrial (consumo, educação, etc.) mesmo nas regiões rurais

ou interioranas onde inexistia renda importante” (SODRÉ, 1989, p. 101).

129Entrevista feita pela autora em Corumbá, em 5 de janeiro de 2010.

130Corumbá registrou no período de 1960 a 1970 o maior crescimento de sua história, com 1,34% ao

ano. De 2000 a 2006 esse índice foi de 1,07%, segundo dados do IBGE. Hoje a cidade tem poucomais de 100 mil habitantes.131

Dados do IBGE apontam que o parque industrial de Corumbá registrava 125 indústrias. Em 1995,o número caiu para 54.

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Em Corumbá, apesar do polo industrial, não havia se formado uma sociedade

urbano-industrial como se via em outras cidades e capitais brasileiras. Mas houve

um movimento político que se opunha ao poder das oligarquias rurais. Abílio de

Barros (1998, p. 127) registrou esse momento em Gente pantaneira, em que ele

conta que “em um desfile popular, que se comemorava vitória [a derrota da UDN nas

urnas], assisti ao povo, em passeata, cantando nas ruas: ‘Fazendeiro, fazendeiro, de

que valeu seu dinheiro?’”. A classe ruralista local era conhecida como os

“quatrocentões papabananas” – quatrocentões porque, a exemplo da aristocracia

paulistana, sustentada principalmente pelo café, ela estava alicerçada pela

aristocracia bovina, da qual faziam parte os representantes das primeiras famílias

que formaram fazendas no Pantanal, vindos da região de Cuiabá, entre eles,

aventureiros que tinham ido atrás da descoberta de ouro e gente ligada à nobreza,

barões e descendentes que receberam posses de terra. Tinham título de nobres,

mas não dinheiro. O apelido “papabanana” vem do modo de vida que levavam, pois

ocupavam as margens dos rios e plantavam banana.

No Pantanal, a maioria enriqueceu com a prosperidade das fazendas

pantaneiras, como foi mostrado no primeiro capítulo. A partir da década de 1950, os

proprietários de terras passam a trocar ou alternar a moradia nas fazendas e nas

cidades, compram aviões, seus filhos vão estudar fora, principalmente no Rio de

Janeiro. No Pantanal, os proprietários de terras ganham título de “doutor” antes do

nome, independentemente de terem estudado ou não132. A própria imagem que o

pantaneiro criava para ele mesmo trazia a divisão entre o rural e o urbano, tão

presente na programação da televisão. Uma divisão tão forte que, no carnaval em

Corumbá, as pessoas se fantasiavam de fazendeiros (BARROS, 1998, p. 131).

Segundo Abílio de Barros, isso acontecia primeiro porque, apesar de a maior parte

da verba da cidade vir da área rural, Corumbá era uma cidade muito mais ligada à

atividade mercantil. Depois, porque, para o morador urbano, o fazendeiro tinha a

imagem associada ao lazer, de boa-vida, do ricaço gozador, pois sempre era visto

divorciado do seu “fazer”, que acontecia no campo. E conta uma passagem que, ao

se encontrar um sapato tipo mocassim na bagagem de um vaqueiro (chamado neste

trabalho de peão pantaneiro, como já foi justificado), ele argumentou que o sapato

132O fato é observado por Abílio de Barros a partir de um mapa de localização das fazendas

pantaneiras, feito por Renato Rabello Vaz, de 3 de abril de 1952, no qual muitos proprietários sãoidentificados com a palavra doutor antes do nome.

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era para as férias, pois, se usasse botas em Corumbá, ninguém olharia para ele

(BARROS, 1998, p. 131).

Além de aproveitar o momento econômico para ampliar a rede por intermédio

das afiliadas, a televisão passou a desenvolver uma programação popular para

conquistar a audiência dessa população que chegava às cidades. Isso fica claro

principalmente na grade da TV Globo a partir de 1967, que exibia programas

populares de auditório, como os do Chacrinha133, com base no eixo Rio-São Paulo.

Mais do que uma programação popular, a televisão, principalmente a Globo, passa a

desenvolver uma linguagem popular, chamada por Muniz Sodré de a estética do

grotesco134 (SODRÉ; PAIVA, 2002).

Essa linguagem da estética do grotesco liderou a audiência de 1968 a 1972,

período em que se formou a Rede Matogrossense de Televisão, e é definida por

Muniz Sodré como uma singular “aliança simbólica da produção televisiva com os

setores pobres ou excluídos do consumo nas ‘ilhas’ desenvolvidas do país (Rio e

São Paulo)” (SODRÉ, 1989, p. 103). Ela garantia a manutenção dos aspectos

simbólicos interioranos na esfera urbana tecnologizada por meio da tela da tevê.

Para ele, o aparelho de TV significa a contradição entre campo e cidade, entre

pobres e ricos e, com uma estética que consegue se distanciar do próprio objeto

temático, cria “identidade” com o público das classes C e D – os trabalhadores

rurais, migrantes, assalariados.

Por meio do riso, da linguagem popular, do ridículo – a distribuição dos

abacaxis e bacalhaus e as buzinadas dos programas do Chacrinha, por exemplo –,

a televisão conseguia traduzir o universo oral da cultura popular para o novo público

urbano-industrial como se ele fosse uma realidade distante, irreal, grotesca portanto.

E para trazer para perto de si, para conquistar a audiência, a televisão passa a

colocar em foco os personagens que não tinham espaço na mídia desde então:

(...) se nas páginas coloridas das revistas destinadas ao público derenda elevada não apareciam negros nem pobres, a televisãopermitia-se agora a incluir a imagem dos socialmente excluídos,mas sob o índice do desvio, do prodigium

135. E quando o fatum136

133Chacrinha (José Abelardo Barbosa) apresentava dois programas na Globo: “A buzina do

Chacrinha”, no qual distribuía abacaxis para calouros eliminados e bacalhau para a plateia, e a“Discoteca do Chacrinha”. Fonte: http://oglobo.globo.com/. Acesso em 1 de janeiro de 2010.134

Grotesco foi o termo usado por Mikhail Bakhtin ao analisar obras de arte e imagens doRenascimento nas quais havia componentes míticos da cultura popular que, com propensão aobizarro e ao vulgar, subvertiam o sentido estabelecido das coisas.135

Prodigium, do grego protizemi, no sentido de dizer em lugar de outro.

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ajudava, podia-se até ganhar um prêmio, um eletrodomésticoqualquer” (SODRÉ, 1989, p. 104).

A estratégia deu tão certo que em 1971 as classes C e D representavam 70%

do público da televisão. E, em vez das empresas estrangeiras, os principais

anunciantes eram supermercados em busca de consumidores que compravam nas

feiras livres e nos armazéns. Para o público já conquistado anteriormente, a TV

produzia programas mais intelectualizados, como Hebe Camargo e Flávio

Cavalcanti, que exaltavam “as fabulações de ordem moral, do bom-mocismo, da boa

aparência, das campanhas filantrópicas – enfim, de todo o suposto código normativo

das camadas médias” (SODRÉ, 1989, p. 107).

Em 1976, a TV Globo já produzia 75% de sua programação, um fato único no

mundo todo na época (SODRÉ, 1989, p. 100). E essa “vitória” é outro fruto da

adaptação da fórmula norte-americana, além dos citados anteriormente,

principalmente na questão de comercialização do tempo na TV: em vez de vender

programas inteiros, como fazia antes, passou a vender os intervalos entre eles.

Depois de ter conquistado audiência – a Globo chegou a ter 70% de participação no

mercado no final dos anos 1980 e início dos 1990, o que quer dizer que de dez

aparelhos ligados sete estavam sintonizados na emissora137 –, a Globo passa a

buscar qualidade técnica, uma preocupação que também era influenciada pela

televisão norte-americana.

A consolidação das redes de TV: a Globo e a Matogrossense de Televisão

Desde 1969 a TV Globo já era uma rede, com emissoras no Rio de Janeiro,

São Paulo e Belo Horizonte, e transmitia parte da programação ao vivo para elas.

Em 1970 se integraram a ela a TV Oeste Paulista, de Bauru, em 1971, a de Brasília

e, em 1972, as emissoras de Recife, Curitiba e Uberlândia (MATTOS, 2002, p. 178).

Mas ainda não existia, nessa época, o conceito de rede como existe hoje. As

emissoras funcionavam como regionais, mas talvez o melhor nome fosse locais, no

sentido de cada uma produzir a programação local, em grande parte noticiário e

programas de entrevistas, em estúdio, pois não havia condições técnicas nem

136Fatum, do latim, significa destino.

137Dados pesquisados em Memória Globo, em 22 de dezembro de 2009. Disponível em:

http://memoriaglobo.globo.com/Memoriaglobo/0,27723,5270,00.html.

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financeiras para realizar produções mais elaboradas. E o alcance delas era o

alcance das torres de transmissão, bastante restritas. Priolli (2000, p. 17) comenta

esse fato em Antenas da brasilidade: “A televisão brasileira, portanto, nasceu local e

assim permaneceu por uma década, antes que a evolução técnica a projetasse além

das fronteiras municipais”. Segundo entrevista de José Bonifácio de Oliveira

Sobrinho, o Boni138, para Silvia Fiúza, Carla Siqueira e Adriana Vianna, registrada na

Memória Globo139, o nome de Rede Globo de Televisão foi criado por ele:

A palavra “rede” não era usada no Brasil e eu tive a ideia de usá-laporque no Ibope de São Paulo aparecíamos como “TV Paulista

Canal 5”, quando nós fazíamos parte de uma empresa chamada TVGlobo. Mas, em São Paulo, a emissora não podia se chamar TVGlobo, porque sua razão social era TV Paulista. Então, resolvi criarum nome-fantasia e inventei Rede Globo de Televisão, que seriausado nacionalmente.

As integrantes da Rede Globo transmitiam a programação utilizando fitas

gravadas com os capítulos das telenovelas e dos programas produzidos no Rio de

Janeiro e São Paulo, que percorriam as emissoras de outras localidades. A ideia de

rede de TV começou a existir de fato, como mostrado anteriormente, com a

implantação da rede da Embratel, que permitiu a transmissão de um mesmo

programa para todo o País, e o primeiro programa a ser transmitido nacionalmente,

ao vivo, foi o Jornal Nacional, a partir de 1969. Para Mattos (2002, p. 184), esse fato

introduz o conceito de rede e marca o início das operações da Rede no Brasil. Como

já mostrado, o Brasil vivia o “milagre econômico”, o governo militar queria mostrar

que o Brasil era um país de primeiro mundo e a Globo queria aumentar sua “cartela”

de clientes. É Boni, na mesma entrevista citada anteriormente, quem explica o

contexto em que foi criado o Jornal Nacional:

Montou-se a Embratel e nós então imaginamos que a primeirautilização óbvia dos links de micro-ondas seria o telejornalismo.Começamos a pensar num programa nacional. (...) Nós achávamosque havia um interesse comercial muito grande e, paralelamente,que era o primeiro serviço que a televisão realmente prestaria nosentido de dar um passo além do simples entretenimento. Então, oJornal Nacional foi concebido inicialmente pelo setor comercial deuma maneira muito primária porque eles imaginavam que otelejornal seria apresentado pelo locutor de cada cidade dando as

138Boni ingressou na TV Globo em 1967 e durante duas décadas foi o responsável pela programação

da emissora.139

Dados disponíveis em: http://memoriaglobo.globo.com/Memoriaglobo/. Pesquisado em: 16/1/2010.

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notícias. Já nós – eu, Armando Nogueira e Alice-Maria –conhecíamos a experiência americana e formatamos o Jornal

Nacional praticamente do jeito que ele continua sendo feito até hoje,copiando as emissoras ABC, NBC e CBS: recebendo matérias dosestados, avaliando essas matérias, editando e colocando no ar comapresentadores na central da emissora e repórteres nas cidades.

Apesar de ter todas as condições técnicas de receber as matérias produzidas

pelas afiliadas, com uma vinheta que dizia “a notícia unindo o Brasil”, na prática não

foi bem assim que funcionou. Poucas praças140 geravam matérias para o Jornal

Nacional (TONIAZZO, 2007, p. 55). E quando geravam, nem sempre elas eram

utilizadas, pois não tinham a qualidade exigida ou não se enquadravam no

“espelho”141 proposto para o jornal, pois o próprio Boni afirmou na entrevista que as

matérias recebidas eram avaliadas e editadas. E foi criada uma série de critérios

para essa avaliação e edição: as matérias deveriam ser de interesse geral, e não

regional, para despertar interesse de telespectadores de todo o País, os repórteres

tinham que ter uma maneira de falar livre de qualquer sotaque e um texto bem

redigido. Alfredo Singh, gerente de jornalismo da TV Morena de Campo Grande,

conta a experiência de quando era repórter da mesma emissora:

(...) era dia do meio ambiente, fui fazer uma matéria sobre asituação do rio Taquari, o rio estava tão assoreado que euatravessava com água pelo joelho, eu fiquei muito indignado comaquilo, pois conhecia o rio antes e ver daquela forma foi triste.Quando a gente mandou a matéria para o JN, eles disseram “ah,interessante, mas a gente queria mostrar coisas bonitas – não haviaum consenso de que a denúncia era importante142.

A matéria gerada entrou como nota coberta – formato televisivo em que se

utiliza locução em off, geralmente do apresentador do telejornal, com imagens sobre

o assunto – e, logo depois, o Caco Barcelos veio fazer uma matéria sobre o rio

Taquari. “A gente servia de pauta para a produção de matéria na rede, hoje não é

mais assim”, afirmou o gerente de jornalismo. Na verdade, nessa época poucos

profissionais apareciam no Jornal Nacional, com passagens, abertura,

encerramento, em suma, com uma participação presencial, pois estavam em

140Praças são as emissoras afiliadas de uma rede. A TV Morena de Campo Grande é uma das

praças da Rede Globo, e assim por diante.141

“Espelho” é o documento que descreve todas as matérias que serão veiculadas no telejornal, quefunciona como um cronograma, dando a ordem de entrada e o formato de cada uma, se é umareportagem, nota coberta, vinheta ou outros.142

Entrevista gravada pela autora em julho de 2009.

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sintonia com a linguagem da Globo. Esses repórteres estavam alocados

principalmente no Rio de Janeiro e São Paulo, faziam também a cobertura das

principais matérias nas praças de outros estados e cidades, usando muitas vezes a

estrutura das emissoras afiliadas, como o repórter-cinematográfico e outros

integrantes da equipe de gravação de externas. Só o repórter, às vezes o produtor,

viajava até onde estava a notícia. Depois começou o que se chama de “repórter de

rede” – um profissional que era contratado e treinado para fazer as matérias para o

Jornal Nacional e outros telejornais nacionais. Na Rede Matogrossense de

Televisão, a repórter é Cláudia Gaigher, mas outros profissionais também

conseguem colocar matérias em rede.

Cláudia Gaigher, repórter da TV Morena, emissora integrante da Rede Matogrossense de Televisão,

afiliada da Rede Globo, em matéria no Pantanal. Reprodução da reportagem exibida pela TV Morena,

2008.

A TV Morena está entre as cinco que mais participam com produções locais

dentro da Rede Globo. E o que mudou para ocorrer esse quadro? O aumento da

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participação da emissora na rede não é resultado de um fato isolado, mas, sim, fruto

de uma série de ações, investimentos e estratégias que vêm sendo adotados nos

últimos anos. A participação maior da afiliada na rede aponta para dois pontos

fundamentais na história das televisões regionais e da própria televisão brasileira, já

que o processo que se deu na Rede Matogrossense de Televisão é muito

semelhante ao de outras redes em todo o País143: por um lado, está a formação e

consolidação das redes regionais de TV, que traz à tona a discussão do que é uma

rede regional, de fato, com programação regional, e por outro, está a segmentação

perante a hegemonia da Rede Globo, conquistada principalmente pelo “padrão

Globo de qualidade”. São pontos que geram muito debate, pois implicam vários

aspectos de análise. Tentar-se-á detalhar um pouco melhor cada um deles, pois se

acredita que a análise de como a mídia televisiva, por intermédio do jornalismo da

TV Morena, vê o peão pantaneiro passa pela compreensão desse processo.

A implantação do “padrão Globo de qualidade”

Considerado um conjunto de regras e diretrizes que as emissoras

pertencentes à Rede Globo seguem, a expressão “padrão Globo de qualidade” tem

sido tão debatida que faz parte da Wikipédia, a enciclopédia livre da internet, que, ao

permitir liberdade de acesso para a edição dos internautas, perde em credibilidade

científica. Mas o fato de estar ali mostra que o interesse pelo assunto não está

restrito à comunidade científica. Há consenso entre os estudiosos de televisão de

que o “padrão” estabeleceu o modelo de organização e o nível de qualidade da

programação da Globo. Segundo Mattos (2002, p. 98), ele foi colocado em prática a

partir dos anos 1970, uma época em que predominava um baixo nível dos

programas transmitidos, o que chegou a fazer com que o governo nomeasse uma

comissão para estudar o conteúdo da televisão. Berno (2009) afirma que “tal padrão”

“determinava modelos e condutas a serem seguidos por atores, personagens e

demais funcionários da emissora e podia ser percebido nos mais diversos

programas como novelas, séries e telejornais”.

143De forma direta ou indireta, a formação das redes regionais tem sido objeto de pesquisa em

muitas universidades brasileiras. Neste estudo, foram utilizados como fonte vários desses trabalhos,como se pode ver nas citações e na bibliografia.

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Para a revista Veja, foi Boni, ao lado de Walter Clark, quem “definiu a

identidade da principal emissora do país, estabelecendo uma programação bem-

sucedida e aquilo que passou a ser conhecido como ‘Padrão Globo de Qualidade’”

(VALLADARES, 2003). Em entrevista para Memória Globo, Boni afirmou que a

expressão “padrão de qualidade” é um apelido criado pela própria imprensa e, no

conceito dele, significa “a busca pela qualidade, a preocupação em fazer melhor”.

Afirma que, na prática, não existia um processo estabelecido, mas um espírito dentro

da empresa de que tudo tinha que ser feito da melhor maneira possível, fazendo

uma ficção popular com a melhor qualidade possível e cobrindo a realidade com a

maior isenção e a maior honestidade em todos os eventos: “A Globo tinha

compromisso com a qualidade na cabeça de cada um de seus funcionários. Você já

tinha esse controle disseminado dentro da empresa” (OLIVEIRA SOBRINHO,

Entrevista Memória Globo, s / d).

Mas, longe de ser apenas uma preocupação, existe até um “departamento”

para cuidar do assunto: a Central Globo de Afiliadas e Licenciamento, a CGAL, que

atua em dois campos: licencia as marcas, personagens e conteúdos dos programas,

e faz a interlocução entre a Globo e as afiliadas. Em texto do site da Rede Globo144

está descrito: “a área de Afiliadas é o elo entre a Globo e as afiliadas da rede,

garantindo que o Padrão Globo de Qualidade esteja presente em todo o Brasil e que

as produções regionais tenham espaço em nossa grade de programação”. Em uma

entrevista publicada no Mídia Dados, a diretora Cláudia Quaresma revelou que a

principal função da Central é garantir que o modelo e o padrão da Globo sejam

conhecidos e replicados nas praças em todas as ações, desde a programação do

jornalismo até no fomento do mercado publicitário (TONIAZZO, 2007, p. 70). E para

isso são feitos constantemente investimentos em treinamento e qualificação

profissional, aquisição de novos equipamentos e sistemas e desenvolvimento de

ferramentas de gestão e instrumentos de comunicação. Entre as afiliadas da Rede

Globo, como a Rede Matogrossense de Televisão, esse conceito foi sendo

disseminado ao longo dos anos. E não é um processo que interfere apenas no modo

de fazer, quer dizer, na linguagem, na estética, na qualidade das imagens, mas

também no conteúdo dos programas de reportagens jornalísticas.

144Disponível em: www.memoriaglobo.globo.com/.

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Dezenove horas no Pantanal da Nhecolândia e, pontualmente, entra no ar o

MSTV 2ª Edição, com sua vinheta que exibe a logomarca na qual estão a sigla do

estado e a abreviação TV, tudo entoado por uma trilha sonora com ritmo eletrônico,

que poderia ser o do MSTV 2ª Edição, de Campo Grande e, se a sigla do estado

passar desapercebida, os peões que estão ali como telespectadores não

conseguem saber ao certo onde foi produzido e de onde está sendo transmitido

aquele telejornal. Nem mesmo o “boa-noite” da apresentadora Bianca Celoto traz

certezas: não há sotaques e a forma de ler as notícias segue um ritmo cadenciado

bem característico do jornalismo das afiliadas da Rede Globo. Para os que estão do

outro lado, na execução do produto televisivo, essas semelhanças todas não

causam espanto e nenhuma estranheza. Apesar de o jornal ter sido produzido pela

TV Morena em Corumbá, ele segue as mesmas diretrizes de fechamento que a

equipe da TV Morena, que, por sua vez, segue as que vêm da Rede Globo. E todas

estão relacionadas, direta ou indiretamente, ao “padrão Globo de qualidade”, pois,

no dia a dia dos profissionais da Rede Matogrossense de Televisão, ele está muito

presente, mesmo que o termo não apareça.

Não existe mesmo um acordo, um protocolo assinado ou algo assim, mais

consistente, mais formal. Nos depoimentos registrados por Toniazzo (2007), os

funcionários da TV Morena de Campo Grande entendem que o “padrão” funciona

como um modelo adotado para garantir qualidade desde a transmissão de conteúdo

até a aceitação pelo público, o que é feito pela medição de audiência. Na

transmissão, a padronização começa pelo uso de mesma tecnologia que a rede.

Como em televisão o tipo de equipamento usado determina, e muito, a qualidade do

produto final, são feitos investimentos em parceria com a Rede Globo para que as

emissoras regionais, que têm menor aporte financeiro, consigam diminuir a

defasagem. A renovação deles é feita em cadeia: quando a “cabeça de rede”, que é

a TV Morena de Campo Grande, compra novos equipamentos, os antigos vão para

as emissoras afiliadas, como a de Corumbá, até que todos possam ser totalmente

substituídos. Atualmente, a TV Morena de Campo Grande já tem equipamentos

digitais, ainda usados para produções especiais, até que todos os analógicos, que

precisam de fitas Betacam, possam ser substituídos. Um dos projetos em

desenvolvimento, em parceria com a Rede Globo, é o que prevê gravar imagens do

Pantanal em HDTV, sigla para TV em alta definição, do inglês high-definition

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television, ainda pouco usada pelas emissoras de televisão no Brasil, para serem

exibidas pelo Globo Repórter145.

Em termos de linguagem, o que está por trás desse aparato tecnológico é a

homogeneização dos padrões estéticos, pois assim se diminuem as diferenças de

qualidade técnica entre a emissora afiliada, que pode estar na fronteira com a

Bolívia ou no nordeste brasileiro, e as de grande porte, situadas principalmente no

Rio, São Paulo e sul do País. E se conquista audiência, claro, porque ninguém quer

ver, por exemplo, uma cena da novela ou de futebol com chuviscos na tela. Por isso,

a busca incessante pelo padrão de qualidade, não só da Globo, mas de todas as

redes de televisão. Ao mesmo tempo em que a emissora afiliada se beneficia dos

aportes tecnológicos e da excelência de produtos da matriz, perde em

independência ao ter de se submeter às diretrizes dela (TONIAZZO, 2007, p. 156). E

um dos principais pontos em que isso fica explícito é na grade de programação, já

que ela vem praticamente pronta, é muito semelhante para todas as regionais,

independentemente da capacidade de produção que cada uma tenha. E um dos

grandes trunfos creditados à conquista de audiência da Rede Globo foi a instituição

de uma grade que intercala as telenovelas com noticiários, com horário rígido,

fazendo com que principalmente a família criasse o hábito de ver televisão, que

também faz parte do “padrão Globo de qualidade”. E essa nacionalização da grade

gera tensões, pois tira o poder de decisão das emissoras menores. A contradição

fica clara no depoimento de um funcionário da TV Morena de Corumbá que “sente a

perda de um programa local, mas entende que ele não cabe na grade em função da

extensa programação nacional”146. O programa citado é o Momento Pantaneiro, um

informativo diário, de um minuto, que entrava antes do MSTV 1ª Edição, mostrando

“tudo o que acontece no campo”, segundo a definição de Tyrone Roryz, que foi

retirado em 2008, depois da exibição de 25 programas.

A padronização passa também pela maneira como os eventos são gravados e

transmitidos, o que implica seguir uma descrição detalhada chamada de ordem de

serviço – uma lista com as atribuições de cada técnico, uso dos equipamentos,

profissionais do jornalismo que vão cobrir o evento e o plano de comercialização

para ele (TONIAZZO, 2007, p. 160). E também pela profissionalização da equipe: a

145Entrevista gravada em julho de 2009 com Alfredo Singh, gerente de jornalismo da RMT.

146Entrevista realizada em janeiro de 2010 com o funcionário Tyrone Roryz, da TV Morena de

Corumbá.

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parceria entre as redes tem facilitado o treinamento de pessoal. Alfredo Singh147

revela que a vontade de participar dos telejornais da rede faz com que os

profissionais façam uma espécie de intercâmbio, que vai além do treinamento

convencional que acontece por meio das palestras, encontros e conferências

realizadas para esse fim: “temos profissionais aqui [na praça de Campo Grande] que

cobrem férias no Rio, em São Paulo, e participam de produções de lá e isso ajudou

a capacitar uma mão de obra que eles passaram a confiar um pouco mais e, quando

tem um assunto de interesse, eles dizem: ‘Dá para Campo Grande que eles fecham

bem’, então estamos conseguindo cada vez mais colocar matérias locais na rede”.

Fechar bem aqui significa que a equipe de Campo Grande consegue realizar as

suas produções de acordo com as expectativas da rede, como se o material

estivesse mesmo sendo fechado, editado, pela redação da Globo no Rio de Janeiro.

É esse entendimento do conjunto de normas, procedimentos e investimentos

que faz com que, na prática, uma partida de futebol, uma matéria factual do

jornalismo ou uma produção regional, apesar de serem produzidas em locais bem

diferentes, tenham praticamente as mesmas características: mesma maneira de falar

entre os repórteres, de segurar o microfone, enquadramentos muito semelhantes

entre si, enfim, parecem ter sido feitas por uma mesma equipe. E o padrão é

seguido desde a origem, ou seja, desde a pauta dos telejornais, na forma de olhar

os assuntos a serem abordados e na avaliação do que vale ou não uma matéria.

Todos os dias é feita uma reunião de pauta entre as afiliadas – chamada de reunião

de caixa, nome dado porque o aparelho que permitia a conexão via Embratel tinha o

formato de uma caixa de sapato. Apesar de a tecnologia ter mudado – as reuniões

hoje entre a Globo Rio, São Paulo, Brasília, Belo Horizonte e Nova York acontecem

por videoconferência –, o “velho” sistema da Embratel ainda é muito utilizado e é

por intermédio dele que os espelhos dos telejornais são decididos e onde começa a

se delinear a participação ou não das afiliadas.

Assim, uma matéria completa sobre a cheia no Pantanal com proporções bem

maiores do que o normal por causa do assoreamento do rio Taquari pode virar uma

nota coberta, como acontecia há mais de dez anos. Isso se ela estiver pronta. Se for

uma pauta ainda em discussão para ser viabilizada, pode nem sair da “gaveta”,

como se diz no jargão jornalístico, o que significa que ela não será produzida. A

147Entrevista realizada em julho de 2009 com Alfredo Singh, gerente de jornalismo da RMT.

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Rede ainda procura um “olhar exótico” para os assuntos regionais. Segundo Alfredo

Singh148, já não com a mesma intensidade, mas ainda existe:

Você não faz um Globo Repórter, por exemplo, só com temasexóticos, tem que ter um tema mais pesado, mas você também nãofaz um só com denúncia se não colocar um molho ali, como eleschamam, que é o charme da matéria, que é uma coisa bacana, umbom exemplo, uma novidade, uma coisa que ainda não foimostrada, isso eles pedem muito, mas ainda tem o olhar romântico,até pela distância que eles têm.

Na verdade, o que está em jogo nas reuniões de pauta entre a Rede Globo e

as afiliadas e o que resulta delas é uma negociação simbólica entre o global e o

local na produção de sentido: é a estética global pautando a transmissão de

conteúdos de interesse regional. Para o olhar nacional, o regional tem que vir

revestido de exótico, de diferente, ter um molho. Em um trabalho que analisa como

se dão essas relações na TV TEM, uma rede regional no interior de São Paulo,

Médola149 mostra que, a partir do momento em que se cria essa dicotomia entre a

produção local e a nacional, o que se tem é uma axiologização em diferentes níveis

e que é uma “lógica colonialista” que rege essa relação: “O centro do mundo é

sempre o centro do mundo, em qualquer que seja a época. É dele que se propaga o

‘melhor’, em diferentes escalas de reprodução” (2006, p. 61). Segundo a autora, é

sob essa lógica de dominação centralizadora que se justifica o “padrão Globo de

qualidade”:

(...) justificando internamente as ações de controle técnico no planoda expressão e de controle ideológico no plano do conteúdo, aomesmo tempo em que se estabelecia, perante o públicotelespectador, uma imagem institucional de que era esse padrão dequalidade o responsável por tornar a Rede Globo a melhor rede detelevisão do país (MÉDOLA, 2006, p. 61).

O “padrão Globo de qualidade” foi e é bastante estudado em vários trabalhos

de comunicação e gera críticas, como a de Eugênio Bucci, que considera que ele foi

um padrão de socialização do brasileiro pela TV. Em um artigo publicado no

Observatório da Imprensa150, ele argumenta que o padrão não foi uma escolha

148Entrevista gravada em julho de 2009 com Alfredo Singh, gerente de jornalismo da RMT.

149Ana Sílvia Lopes Davi Médola é docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da

Universidade Estadual Paulista (Unesp).150

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 5/5/2002, pesquisado em 8 de janeiro de 2010 emhttp://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos/asp080520029.htm.

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intencional dos gerentes, mas um padrão ideológico tornado possível pelo regime

autoritário: “o Estado autoritário distribuía as concessões como se fossem capitanias

hereditárias, privilegiando certos grupos econômicos em detrimento de outros e

inibindo a concorrência”. Concordando com o brilho indiscutível que a Globo teve no

processo, afirma que era preciso dar uma cara unificada para o Brasil e que o

“padrão Globo de qualidade” foi a “face da integração nacional sob a ditadura” e ele

foi definido por uma

(...) necessidade imperativa de mostrar ao Brasil qual era a cara doBrasil. Era um Brasil de notícias governistas, de regionalismos decartão-postal, de ufanismos futebolísticos e, por favor, sem negrosnas novelas, sem evangélicos no horário nobre, sem excluídosdesdentados no auditório. (...) O “padrão Globo de qualidade” era aexpressão do bom gosto da classe média (BUCCI, 2002).

As afirmações de Eugênio Bucci geraram polêmica. Em um artigo publicado

na Folha de S. Paulo e postado pelo Observatório de Imprensa, Luís Nassif

discordou, alegando que o fato de o “padrão Globo” agradar aos militares não

significa que ele tenha sido criado para atender à lógica do regime militar e, sim,

para atender à lógica do novo mercado (NASSIF, 2002). Na opinião do jornalista, o

padrão transformou a Globo na maior empresa de mídia do País e conferiu

reputação mundial a seus produtos. Para basear sua defesa, pontua uma série de

pontos positivos do “padrão Globo”. Entre eles, está a noção de grade de

programação e a conquista de público para os diversos horários com uma estratégia

montada para cada um deles, um trabalho de planejamento sem paralelo nas

empresas brasileiras da época.

O “padrão Globo de qualidade” também é considerado por alguns como um

entrave ao desenvolvimento das programações regionais no Brasil, pois, por um

lado, a produção local acabou tendo pouco espaço na grade, apesar da legislação

vigente151, e esse tempo é geralmente usado em faixas de horário de pouca

audiência, o que, segundo César Bolano (apud MÉDOLA, 2006, p. 63):

(...) contribuía para inviabilizar o desenvolvimento de uma estruturacomercial capaz de cobrir o custo de produções mais elaboradas,compatíveis com as geradas pelas “cabeças de rede”. Por outrolado, as condições impostas pela rede às afiliadas “desobrigavam”

151Segundo a legislação, as emissoras têm que veicular cerca de duas horas de programação para a

produção local.

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as emissoras de desenvolverem programas de interesse local, oque, de certa forma, era vantajoso, pois não havia necessidade deinvestimentos em produção, além do mínimo necessário parapreencher somente os espaços abertos pela rede.

A regionalização da Globo por intermédio da afiliada em M.S.

Para falar sobre regionalização, se voltará agora para o Pantanal da

Nhecolândia, onde os peões da fazenda Baía das Pedras estavam reunidos para

tomar tereré, prosear e assistir televisão. Está no ar o MSTV 2ª Edição. Depois da

abertura e da apresentação inicial, em que nenhum tipo de sotaque ou diferença

regional pode ser percebido, entram as primeiras matérias. Aí sim, com as imagens

das ruas, dos bairros, do rio Paraguai, das fazendas pantaneiras, o aspecto local

começa a se sobrepor ao nacional. A entrada das entrevistas, com o jeito de falar

tão característico do corumbaense, deixa claro que é uma emissora local.

Dependendo do espelho do dia, pode-se até assistir a uma entrevista em

castelhano, já que existem muitos paraguaios e bolivianos que vivem em Corumbá e

a proximidade da fronteira com o Paraguai e com a Bolívia faz com que muitas

reportagens sejam produzidas do outro lado da fronteira152.

O primeiro bloco do telejornal dura, no máximo, uns cinco minutos. A

apresentadora se despede dizendo para os telespectadores: “Fiquem agora com as

notícias do Estado”, ou um texto semelhante e, depois dos comerciais, entram mais

três blocos de notícias. As imagens das ruas com paralelepípedos, palmeiras-

imperiais e casas avarandadas dão lugar às cenas de Campo Grande, de onde

passa a ser transmitido o telejornal. Até alguns anos atrás, a cidade de Corumbá

não aparecia nem mesmo no primeiro bloco de notícias locais, e essa mudança da

linha editorial é uma das consequências trazidas com a implantação da rede. André

Navarro, editor regional da TV Morena em Corumbá, conta que:

Depois da rede, o foco passou a ser o povo, o Pantanal – hojefazemos link [transmissão ao vivo] do meio do Pantanal, imagine! –e o percentual de matérias sobre o Pantanal, sobre o modo de vida

152Em entrevista concedida a Gladis Toniazzo (2007, p. 182), o gerente de jornalismo da TV Morena

de Campo Grande, Alfredo Singh, conta que “a notícia local vai além da fronteira de Pedro JuanCaballero e até Puerto Suarez na Bolívia (...). Constantemente, a gente tem sonora com paraguaios,com bolivianos e a gente não tem nem legenda por que a gente entende que o telespectador tanto delá quanto de cá já tem uma afinidade com a linguagem deles no vídeo”.

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do pantaneiro é grande, antes o nosso jornal era só política, muitasentrevistas e a maior parte delas feita dentro do estúdio153.

Apesar de tanto a Rede Globo quanto a Rede Matogrossense de Televisão

terem começado a se consolidar nos anos 1970, as mudanças trazidas pelo “padrão

Globo de qualidade” começaram a ser mais percebidas pelo jornalismo das

emissoras envolvidas por volta de 1990. Nessa época, a RMT passa a trocar a

administração familiar pela profissionalização, implantando, de fato, um

gerenciamento de “rede”. Antes, o sentido de “rede” era dado simplesmente pelo

fato de as emissoras afiliadas passarem a programação no mesmo horário e

pertencerem ao mesmo grupo empresarial. A partir desse momento, começa a ser

implantada uma gestão com planejamento integrado. Os orçamentos de cada uma

passaram a ser vistos em conjunto e, dentro deles, estavam todos os investimentos

e metas para o período em questão. Como os programas jornalísticos são o principal

produto das emissoras da rede, eles foram os principais personagens dessas

mudanças.

Isso tudo acontece ao mesmo tempo e, até mesmo em decorrência, da

regionalização da Rede Globo. E ela não foi feita por espontaneidade, mas, entre

outros fatores, como resultado da busca por mais audiência, pois com assuntos da

realidade da comunidade, a televisão poderia atrair mais espectadores. Para Martín-

Barbero & Germán Rey (2004, p. 35), “a própria televisão se converte em uma

reivindicação fundamental das comunidades regionais e locais, em sua luta pelo

direito à construção de sua própria imagem, que se confunde com o direito à sua

memória”.

A regionalização da produção jornalística é uma preocupação presente até

mesmo na Constituição Brasileira, que no capítulo da Comunicação Social, no artigo

221, estabelece, entre os princípios da programação das emissoras de radiodifusão,

“a regionalização da produção cultural, artística e jornalística”154. A regionalização é

uma questão complexa, pois implica ter condições, localmente, de realizar

produções regionais e competir com as grandes redes, com muito mais condições

financeiras e, portanto, tecnológicas, de realizar produções de boa qualidade para

153Entrevista gravada pela autora com André Navarro, em Corumbá, em janeiro de 2010.

154Segundo texto da Constituição Federal, disponível em

http://www.dji.com.br/constituicao_federal/cf220a224.htm, pesquisado em 2/1/2010.

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conquistar o público. Priolli (2000, p. 16) mostra esse desequilíbrio no sistema

audiovisual do País:

(...) em busca do melhor, os telespectadores de todos os rincõesvoltam os olhos para Meca e Medina – o Rio e São Paulo –, antesde olharem em torno de si, para imagens mais próximas, geradaspor antenas fincadas em seu próprio solo.

No início da década de 1980, a Globo realizou ações em busca da

regionalização, por meio do que o então diretor-geral do Jornal Nacional, Armando

Nogueira, chamou de jornalismo comunitário. A programação se dividia em dois

segmentos distintos, com uma produção mais voltada para as comunidades de cada

uma das afiliadas e outra nacional. Foi nessa época que a Globo criou os telejornais

locais, como o MSTV, o telejornal local da Rede Matogrossense de Televisão. Mas

não houve uma busca por uma linguagem regional, e o conteúdo seguia uma

produção bastante padronizada nacionalmente. Na década de 1990, novos fatores

fortaleciam a necessidade de criar vínculos mais duradouros com as audiências

regionais. Por um lado estava um mercado já pulverizado, de certa forma, pela

“abertura democrática”, nas palavras de Gabriel Priolli, das câmeras domésticas que

permitiam que os grupos sociais até então desprezados pela programação das

grandes redes passassem a produzir “um novo imaginário que contestava o

monolitismo da cultura televisiva comercial” (PRIOLLI, 2000, p. 21).

Foi nessa época que a TV a cabo começou a se instalar, trazendo mais

instabilidade e concorrência. A Globo, pela regionalização, poderia suprir o aumento

de demanda de produção, já que tinha um projeto grandioso de TV a cabo. Mas ele

não prosperou e, para ela, a regionalização acabou se restringindo à produção para

cobrir o espaço do noticiário local e dos anúncios publicitários. Cassiano Ferreira

Simões, que apresentou dissertação de mestrado na Universidade Federal da Bahia

sobre o processo da Rede Globo, sustenta que

(...) regionalização e segmentação são temas contrapostos pelasOrganizações Globo nos anos finais da década de 1990 como partede seus planos de manutenção da hegemonia no setor audiovisualbrasileiro, até um momento impreciso entre os anos de 2002 e 2003,devido à virtual falência do seu projeto de TV a cabo e, em

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consequência, a evidência de uma grande dívida155 (SIMÕES, 2004,p. 9).

3.2 - O Pantanal na TV: a inserção do peão pantaneiro na tela

Apesar da presença da TV no Pantanal há mais de quarenta anos, primeiro

com as transmissões da Globo, depois com as das emissoras da Rede

Matogrossense de Televisão, o Pantanal demorou muito a ocupar espaço na telinha.

Como nos primeiros anos as televisões regionais não tinham condições de realizar

gravações externas156, quem fazia essa cobertura era a Globo. E o Mato Grosso do

Sul era mais lembrado nos telejornais para fonte de matérias como o tráfico de

drogas, o contrabando e atividades ilícitas, comuns em razão da proximidade do

estado com uma grande extensão de fronteira seca com o Paraguai e a Bolívia. Em

programas mais elaborados, como o Globo Repórter, a primeira vez que o Pantanal

foi citado157 foi em novembro de 1971, em um programa chamado a Agonia da

natureza, que, entre outros temas, mostrava espécies animais e vegetais do lugar. O

primeiro programa que falava exclusivamente sobre o Pantanal foi ao ar em 1982 e

quem estava em primeiro plano era a paisagem, e não o homem.

Como o homem pantaneiro era visto nas primeiras reportagens feitas pelo

telejornalismo das emissoras instaladas na região em estudo é uma incógnita. Nessa

pesquisa, não se conseguiu localizar material de arquivo com essas reportagens. A

TV Morena de Corumbá tem um arquivo muito recente – já foi citado aqui que o

arquivo estava deteriorado e foi queimado como “material velho” e parte dele foi

“salvo” – e só as matérias consideradas mais importantes são arquivadas, por causa

do alto custo desse processo. Não há arquivo nem mesmo do material impresso,

como os espelhos dos telejornais locais. Na TV Morena de Campo Grande, esse

processo também ocorreu: as pastas com os espelhos e roteiros dos telejornais

estavam deterioradas e foram eliminadas, assim como muitas fitas. As fitas que

ainda apresentavam condições de uso agora estão guardadas em condições ideais

155A dívida a que ele se refere é a de mostrar a “cara” do Brasil para todo o Brasil, ou seja, as

diversas faces da ampla diversidade cultural brasileira.156

Mesmo com os equipamentos portáteis, as gravações no Pantanal eram raras. Não existe nenhumtipo de registro das primeiras reportagens realizadas lá, mas o depoimento do editor regional AndréNavarro, da TV Morena de Corumbá, mostrado anteriormente, deixa claro a dificuldade que se tinha:“hoje até link a gente faz do meio do Pantanal”. Entrevista feita pela autora em janeiro de 2010.157

Segundo pesquisa feita em Memória Globo.

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e estão sendo digitalizadas. O material a partir de 1993 já foi todo digitalizado e faz

parte de um arquivo com 4.993 fitas.

O material anterior a essa data está guardado, à espera de condições para a

digitalização. Ele está em fitas U-Matic, um formato criado pela Sony e lançado

comercialmente em 1974, que trouxe praticidade à televisão158, permitindo

gravações externas – as reportagens, antes disso, eram filmadas, e os filmes,

revelados e montados. Com o novo sistema, começou a edição eletrônica. No

entanto, um ano depois, a mesma empresa lançava a Betamax, um sistema ainda

mais ágil, com máquinas menores, que ficou mais tempo em uso no mercado –

algumas emissoras ainda usam esse sistema. Assistir ao arquivo em U-Matic exige

um equipamento especial, considerado obsoleto159. Portanto, a visão que a televisão

regional tinha sobre o Pantanal e o homem pantaneiro antes do projeto de

regionalização que está sendo estudado aqui está ali, inacessível, nas 2.319 fitas U-

Matic, cada uma com 60 minutos de duração. Nelas, não há nenhuma ficha ou

identificação sobre o conteúdo160.

Por causa dessas dificuldades, partiu-se para outro caminho nesta pesquisa

para conseguir os mesmos objetivos – analisar como se deu a construção do olhar

da televisão regional sobre os assuntos locais e, a partir disso, estudar a visão dela

sobre o peão pantaneiro em matérias recentes, as quais, inclusive, foram escolhidas

pela equipe da TV Morena de Campo Grande. Já foi visto que a Rede

Matogrossense de Televisão se pautou em seu desenvolvimento pelo “padrão Globo

de qualidade” e tem pouco espaço em sua programação para os temas regionais.

Mas cada vez mais os temas ligados ao Pantanal e ao universo do pantaneiro vêm

ganhando destaque, em um movimento contrário do fluxo da informação, como se

vai detalhar a seguir.

O olhar do telejornalismo sobre o peão e o Pantanal

Com um espaço predeterminado e “apertado” dentro da grade para a

produção local – a Globo destina para as afiliadas, em média, 95 minutos de

158Dados disponíveis em: http://www.tudosobretv.com.br/grava/. Acesso em: 20 jan. 2010.

159O único equipamento nesse formato que a TV Morena de Campo Grande possui estava em

manutenção na fase da pesquisa.160

Vale ressaltar o apoio recebido da equipe da TV Morena, principalmente de Alfredo Singh eGilberto Juvenal, que não mediram esforços para disponibilizar o equipamento, mas os problemastécnicos não puderam ser contornados.

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segunda a sexta-feira, 75 minutos aos sábados e 90 minutos aos domingos –, a

Rede Matogrossense de Televisão vem trilhando um caminho contrário para garantir

mais tempo na programação: aumentar a inserção da produção local nos programas

de veiculação nacional. Esse mecanismo é chamado de contrafluxo, pois provoca

uma inversão no fluxo da informação, que geralmente vai do centro para a periferia.

O termo foi usado inicialmente para explicar a troca de papéis no imperialismo

cultural, um fenômeno que acontecia entre “países que no passado foram os

destinatários do imperialismo cultural (...) passaram a exportar com sucesso

programas de televisão para aqueles países considerados como o centro” (FADUL

apud TONIAZZO, 2007, p. 196). O sentido de contrafluxo pode ser aplicado ao caso

da Rede Matogrossense de Televisão, pois é uma televisão regional que, com

investimentos e inovações tecnológicas, como a Rede Embratel e o uso de satélites,

passou a produzir localmente e a interagir com outras regiões, mudando o fluxo

anteriormente estabelecido (LIMA, 2004):

Ou seja, no Brasil concentram-se grupos midiáticos na regiãoSudeste, mais precisamente, no eixo Rio-São Paulo. Agora,evidenciamos surgimento de novas empresas, de caráter regional ecom perspectivas nacionais, que transmitem sua programação paraoutros estados do país.

O contrafluxo, ainda reduzido, em torno de 10% da programação total, já

coloca a Rede Matogrossense de Televisão em um grupo seleto do qual participam

apenas 5 das 121161 afiliadas da Rede Globo – o das que mais colocam matéria em

rede nacional. E essa grande contribuição é resultado dos eventos, como visto

anteriormente, que começaram há quase vinte anos – a passagem da “gestão

familiar” para uma reestruturação administrativa, a adoção do “padrão Globo de

qualidade” e o fortalecimento da parceria com a Rede Globo – e de alguns mais

recentes, como a criação do núcleo de rede, em 2002, em mais uma parceria com a

Globo. Esse núcleo funcionava de forma embrionária desde 1998 e era formado por

um repórter de rede, outros repórteres locais, produtores e coordenadores. A equipe

trabalhava com foco na rede, buscando matérias que poderiam render rede, como

explica o gerente de jornalismo da TV Morena de Campo Grande, Alfredo Singh162:

161Segundo dados disponíveis em: http://redeglobo3.globo.com/institucional/. Acesso em: 21 jan.

2010.162

Entrevista gravada em julho de 2009 pela autora, em Campo Grande.

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A coordenação local já sabe, ao olhar as pautas, já visualiza o quedá rede. Nos telejornais, na imprensa, tem o assunto da moda, ostemas que são a “bola da vez”. E o núcleo fica atento a isso etambém ao que a Rede [Globo] está trabalhando no momento, o queeles estão discutindo. E a gente vai atrás.

O trabalho do núcleo de rede conseguiu aumentar a participação das

emissoras da Rede Matogrossense de Televisão em muito pouco tempo. Um

trabalho minucioso de acompanhamento da produção e da programação da TV

Morena de Campo Grande feito por Toniazzo (2007, p. 205) mostra essa conquista.

Só no Globo Repórter, o crescimento foi surpreendente: em apenas um ano (2005),

as equipes da Rede Matogrossense de Televisão participaram da realização de oito

programas – para efeito comparativo, a RBS, a maior rede afiliada da Globo,

participou de apenas um. Entre os anos de 2003 e 2005, a participação aumentou

em todos os outros telejornais e programas nacionais da Rede Globo:

(...) no ano de 2003 foram 194 inserções; em 2004, foram 266; e em2005 totalizaram 385 inserções. Tomando por base o ano de 2003,em 2004 as inserções tiveram um crescimento relativo de 37,1%. De2004 para 2005, o crescimento chegou aos 44,7% e, em relação a2003, quase dobrou, atingindo a marca de 98,5% (TONIAZZO,2007, p. 205).

Além de aumentar a participação, o núcleo está conseguindo mudar o foco

das matérias. Apesar de ter uma produção tão voltada para uma visão colonialista,

que reproduz modelos considerados os melhores a partir dos olhos de quem está no

centro do mundo – “o centro do mundo é sempre o centro do mundo, em qualquer

que seja a época” (MÉDOLA, 2006, p. 61), como já se discutiu neste trabalho –, ele

se apoiou em cartas, telefonemas e e-mails que chegavam à redação, de

telespectadores descontentes com o conteúdo negativo das matérias sobre o

estado, para colocar outros assuntos em pauta. E assim, o contrabando de animais

silvestres, a apreensão de drogas e temas correlatos passam a dar lugar a matérias

ligadas ao agronegócio, turismo e Pantanal. Nos anos estudados por Gladis

Toniazzo, agricultura e pecuária estão em primeiro lugar entre as inserções; turismo,

Pantanal, Bonito e meio ambiente, em segundo; e MST e questão fundiária, em

terceiro (TONIAZZO, 2007, p. 221). Temas ligados a fronteira, tráfico de drogas,

armas, animais e contrabando estão em quinto lugar. Essa inversão de valores

temáticos também é fruto do trabalho do núcleo de rede, que atua na busca de

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pautas para oferecer à rede, criando o contrafluxo, como demonstrado, mas também

reforçando os laços com a comunidade, pois, ao dar mais visibilidade para aquilo

que é considerado autêntico na cultura local, ganha em credibilidade. Essa

preocupação está presente no depoimento do gerente de jornalismo, Alfredo

Singh163:

Mato Grosso do Sul é um estado curioso. Por ser novo, tem umamiscigenação de imigrantes, você tem aqui uma formação demineiros, de gaúchos, paulistas, e agora, uma nova geraçãochegando, que já é resultado dessa mistura, é uma cidade que temum comportamento diferente. E a gente tem esse olhar, porque MSbusca pela sua identidade, e a gente começa a ter essa visão para acidade, porque, às vezes, as próprias pessoas que estão aqui nãoenxergam isso (grifo nosso).

Enemir e Renê na travessia do Taquari (à esquerda). Renê na parada para almoço (à direita), 2005.

É esse olhar estrangeiro, que vê o Mato Grosso do Sul como um estado novo

que ainda busca sua identidade, que aparece não só na forma de atuação do núcleo

de rede, mas também nos textos das matérias pautadas por ele. Neste trabalho

serão analisadas cinco reportagens produzidas pela TV Morena de Campo Grande e

exibidas pelos telejornais da Rede Globo. Elas foram selecionadas pela própria

equipe da Rede Matogrossense de Televisão, atendendo ao nosso pedido de

163Entrevista gravada pela autora em julho de 2009 pela autora, em Campo Grande.

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matérias que mostrassem o peão pantaneiro, sob qualquer enfoque. A descrição

completa das matérias está anexada no final deste trabalho. Em uma delas,

realizada pela repórter de rede Cláudia Gaigher, essa mesma visão aparece. A

matéria, de 4 minutos e 31 segundos de duração – um tempo considerado alto para

os telejornais, nos quais dificilmente as reportagens passam dos dois minutos –,

mostra um pouco do universo em que vive o homem pantaneiro e a forma como ele

vive, sem mostrar claramente nenhuma imagem dele – são turistas, pantaneiros,

filhos e netos de pantaneiros que participam de uma cavalgada de dois dias pelo

Pantanal. A reportagem começa situando o telespectador, com a imagem de um

tuiuiú cortando o céu, depois seguem imagens de um trator atolado na baía164, que,

por sua vez, estava ajudando a desatolar uma caminhonete. O Pantanal é descrito

como um lugar que reserva surpresas, onde a lama e os atoleiros surpreendem os

motoristas: “Até quando está secando, o Pantanal reserva surpresas”, diz a repórter.

Entra um sobe som do motor do trator atolado, com o áudio do motor e da água, a

repórter continua: “A lama é uma armadilha para o trator que veio desatolar a

caminhonete. O dia vai chegando ao fim e os atoleiros continuam surpreendendo os

motoristas. É noite escura quando os aventureiros chegam à fazenda”.

A descrição é bastante semelhante às dos primeiros narradores do lugar e de

reportagens da mídia impressa, como demonstrado no primeiro capítulo, que mostra

o Pantanal como um lugar a ser desbravado. Esse olhar da mídia repete a antiga

dicotomia dos românticos e ilustrados, na oposição entre “culto” e “popular”,

“civilizados” e “bárbaros”, no “movimento traiçoeiro das traduções que impedem de

ver o jogo das diferenças e as contradições entre os diversos imaginários que

mobilizam” (RIBEIRO apud MARTÍN-BARBERO, 2006, p. 38). Essa visão folclórica

capta a separação entre dois mundos – o rural e o urbano, o primeiro configurado

pela oralidade e o segundo, pela escritura –, colocando uma ordem linear entre

tradição e modernidade.

A reportagem continua, descrevendo um pouco a paisagem do lugar: “O

amanhecer preguiçoso aos poucos vai clareando o campo”. O amanhecer é sempre

o mesmo, tanto faz na cidade ou no campo, o que muda é a forma que se olha para

ele, e a conotação de preguiça aponta mais uma vez para a dicotomia campo e

cidade, a divisão entre o ritmo acelerado dos que vivem na cidade e o tempo lento

164Baía, como explicado no primeiro capítulo, é uma lagoa que se forma nas áreas mais baixas da

planície pantaneira. Ela pode ser permanente ou temporária, secando depois das cheias.

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dos que vivem no campo. O hábito rotineiro da lida dos peões com os cavalos

também aparece na tela, repetido agora por: “Amantes de cavalgada vieram de

várias partes do País. (...) A gauchada viajou quase 2 mil km só pra isso”. E o texto

explica os preparativos: “Estribo nas mãos, manta de pele de carneiro pra poupar os

animais. (...) Enfileirados, 185 cavaleiros e amazonas recebem as orientações”.

A divisão entre campo e cidade aparece novamente: “A cavalgada sai pelo

campo da Baía das Pedras165. Muitos aqui são filhos e netos de pantaneiros que

vivem nas cidades e voltaram em busca das raízes”. Uma das proprietárias da

fazenda justifica o texto com a entrevista: “Hoje em dia nossos filhos já têm um

contato de cidade, já moram na cidade, estudam, então acho que esse resgate

precisa ser feito dentro da nossa família pra que nossa cultura seja preservada”.

Esse movimento, dos filhos de pantaneiros irem estudar na cidade, já acontece no

Pantanal com grande frequência desde 1950, quando os proprietários passaram a

ter duas moradias, na cidade e na fazenda, e seus filhos passaram a estudar nos

grandes centros, sem que isso representasse o fim de sua cultura, mais de

cinquenta anos depois.

Repórter acompanha cavaleiros no Pantanal da Nhecolândia. Reprodução feita a partir de matéria

veiculada pela TV Morena, Campo Grande, 2008.

165A fazenda Baía das Pedras fica no Pantanal da Nhecolândia e, coincidentemente, faz parte da

pesquisa de campo deste trabalho.

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Ao dizer que os filhos voltaram em busca das raízes, também fica implícita a

dicotomia que vê a separação entre a cultura do centro em relação à periferia,

coloca a cidade como o lugar da civilização e o campo como o lugar das raízes, da

pureza da cultura que se manteve livre do contato com as impurezas da civilização.

Nesse conceito de cultura pura, de algo que se perdeu, está pressuposta a

“concepção evolucionista da diferença cultural existente até hoje, aquilo que olha

para trás, um estágio talvez admirável, porém atrasado do desenvolvimento da

humanidade e, por essa razão expropriável por aqueles que já conquistaram o

estágio avançado” (MARTÍN-BARBERO, 2006, p. 41).

Essa mesma noção da mistura cultural – a pura e a que contamina –, da

trajetória linear da cultura, como algo que cresce por estágios, aparece também

neste trecho da matéria: “Modernidade no controle da tropa, radinho de

comunicação”. Como se portar equipamentos fosse a tradução de ser moderno. E,

de novo, na passagem166 da repórter, o texto mostra o Pantanal como algo a ser

desbravado, que exige esforços:

Já são mais de seis horas de cavalgada pelo Pantanal e nãoestamos nem na metade do caminho. A dor no corpo começa aaparecer, mas faz parte do passeio. A maioria das pessoas aquiquer conhecer de perto, reviver o que é a vida do homempantaneiro.

Vale destacar que o fato de a repórter estar a cavalo, junto com os

participantes da cavalgada, com a voz aparentando cansaço pelo esforço físico, é

uma técnica do jornalismo que tenta criar intimidade com o telespectador,

transportando-o para o lugar onde a repórter está. Caso as reportagens de televisão

fossem divididas por gênero, como faz o cinema, aqui se teria o modo de

representação chamado de participativo ou interativo – uma “linguagem permitida

pelo surgimento de novos e práticos aparatos cinematográficos. (...) O cineasta

deixa o papel autoritário e compartilha situações com os atores sociais” (EMÉRITO,

2008, p. 36). Mas não se trata de cinema, e reportagem reporta os fatos, relata-os

aproximando da verdade, com veracidade.

166Passagem é o momento da matéria de TV em que o repórter aparece para dar mais veracidade e

credibilidade ao texto – mostra que ele está participando da ação relatada. Serve como passagementre duas informações, para destacar a mais importante e também como apoio para o texto.

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Repórter em cavalgada no Pantanal. Reprodução de matéria exibida pela TV Morena, 2008.

No discurso usado na reportagem, o que acontece, na prática, é o que está

contido em uma das teorias já citadas de Martín-Barbero neste trabalho, quando diz

que a televisão recorre a dois intermediários fundamentais para facilitar o trânsito

entre a realidade cotidiana e o espetáculo ficcional que ela propõe: “um personagem

retirado do espetáculo popular, o animador ou apresentador, e um certo tom que

fornece o clima exigido, coloquial” (2006, p. 296). Assim, a repórter, mais do que

transmitir informações, age como uma interlocutora, aquela que “usa a mesma

linguagem” que ele, está próxima dele. O uso desse dispositivo é que permite

organizar o espaço da televisão sobre o eixo da proximidade e da magia de ver: “na

televisão, nada de rostos misteriosos ou encantadores demais; os rostos serão

próximos, amigáveis. (...) Proximidade dos personagens e dos acontecimentos: um

discurso que familiariza tudo, torna ‘próximo’ até o que houver de mais remoto e

assim se faz incapaz de enfrentar os preconceitos mais ‘familiares’” (MARTÍN-

BARBERO, 2006, p. 297).

Tanto texto quanto imagens são organizados para dar essa sensação de

proximidade com o telespectador e, para isso, o discurso televisivo é simples, direto,

claro, como se fosse um diálogo, uma conversa entre as pessoas. Essa economia

narrativa fica clara em outro trecho da reportagem, em que a câmera mostra um

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pantaneiro procurando a sua tropa, que está misturada com outras, mas tudo é tão

natural, gravado como se a câmera não estivesse ali, com a luz ambiente,

registrando o movimento natural das pessoas. Recorrendo novamente aos gêneros

do cinema, esse seria o observacional, em que a câmera acompanha os

movimentos em seu tempo e da forma mais discreta possível, como fez João

Moreira Salles em Entreatos (EMÉRITO, 2008, p. 32). E assim, observando os

aventureiros, a câmera mostra a montagem do acampamento e proximidade com a

linguagem do peão pantaneiro: “O pouso é acampado mesmo”. E volta a fazer parte

daquele universo que o telespectador está acessando pela tela da TV, colocando-se

mais uma vez entre eles: “Os primeiros 20 km derrubaram muita gente”.

No último minuto da reportagem, de novo a comparação, muito sutil, entre o

modo de vida moderno, dos que estão ali cavalgando, com o dos antigos moradores

daquele lugar: “No dia seguinte, os deuses parecem saudar os participantes

[imagens do amanhecer]. Lá vão eles pelos campos pantaneiros refazendo os

caminhos dos pioneiros que desbravaram o Pantanal”. Mais uma vez, o Pantanal

como um lugar hostil, que tem de ser desbravado. E o texto continua, novamente

com uma passagem da repórter: “Uma volta às origens – atravessar o Pantanal

exatamente como os desbravadores fizeram há quase duzentos anos. E essa busca

pela identidade pantaneira atrai gente de todas as gerações. O Pantanal foi

colonizado assim, montado a cavalo”.

O tema da volta às origens, recorrente, mostra novamente a concepção

populista da cultura que remete à busca da “‘essência’, às raízes, à origem, isto é,

não à história de sua formação, e sim a esse lugar idealizado da autenticidade que

seria o campo, o mundo rural” (CANCLINI apud MARTÍN-BARBERO, 2006, p. 244).

Assim, buscar a identidade é resgatar essa cultura perdida em algum lugar do

passado – uma visão dicotômica da mídia que não permite ver as mestiçagens que

estão ocorrendo no Pantanal nos últimos séculos, que começaram a ocorrer muito

antes de os primeiros visitantes passarem pelo lugar. A cultura de origem já não é a

do pantaneiro, ela se mesclou a ponto de perder o seu caráter do que era natural,

inerente à cultura de origem. Para Santos, existe mestiçagem sempre que “duas ou

mais referências, ações ou identificações sociais e culturais se misturam ou

interpenetram a tal ponto e de tal modo que as novas referências daí emergentes

patenteiam a sua herança mista” (2006, p. 69).

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A identidade do pantaneiro, portanto, está nessa herança mista, e não mais

no passado. Gruzinski afirma que o conceito de identidade é uma armadilha, uma

cilada, pois ele implica uma “noção de identidade que atribui a cada criatura ou a

cada grupo humano características e aspirações igualmente determinadas,

supostamente fundadas num substrato cultural estável ou invariante” (2001, p. 52).

Já se discutiu no primeiro capítulo que cultura não é algo estanque, que se herda,

mas um arranjo que “mais se aparenta a uma nebulosa em perpétuo movimento do

que a um sistema bem definido” (AMSELLE apud GRUZINSKI, 2001, p. 52). Dentro

desse movimento nebuloso, a identidade se define também a partir de relações e

interações múltiplas, e não de uma realidade homogênea que poderia ser

restabelecida pelo resgate cultural, como propõe a reportagem: “e essa busca pela

identidade pantaneira atrai gente de todas as gerações”. Segundo Gruzinski, existe

um pensamento profundamente arraigado no nosso modo de ver que nos leva a

separar o que não pode ser separado e a passar ao largo de fenômenos que

transpõem as divisões clássicas (2001, p. 55). Um modo de ver que leva à criação

de clichês e estereótipos, como o que finaliza a reportagem: “Dois dias no lombo de

cavalo, desbravando a paisagem pantaneira. Até pra quem conhecia a região, a

cavalgada foi um reencontro com as raízes. Uma declaração de amor ao Pantanal”.

Ao som da trilha musical regional, entram as paisagens deslumbrantes do Pantanal.

Outras reportagens, a mesma forma de olhar

A dicotomia entre a brutalidade de uma região que precisa ser desbravada, a

separação das sociedades com acesso à tecnologia e sem acesso, entre civilizados

e primitivos e o resgate de culturas perdidas no passado aparece, em maior e menor

grau, em outras matérias que são objeto de análise deste trabalho. Com a retranca

Ervas medicinais, a reportagem feita por Cláudia Gaigher mostra um conhecimento

antigo: o uso das plantas nativas para a cura das doenças. Uma sabedoria que vem

desde a época que os índios habitavam a região do Pantanal, mas que está se

perdendo. Para mostrar o costume entre os mais antigos, a repórter acompanha

uma pantaneira que vai apontando as plantas e o poder de cura delas: “Cajueiro do

mato não dá fruta não. A folha é um santo remédio”. E a pantaneira explica: “A gente

ferve, faz um chá pra pressão alta, já pega a casca também é bom pra disenteria, é

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bom pra diabete”. E assim, de planta em planta, ela vai mostrando o resultado de

uma pesquisa no Pantanal:

Gente simples que revela sabedoria de quem nasceu longe doconforto da cidade. A bióloga Ieda Bortoloto passou três anosentrevistando moradores de Albuquerque, no Pantanal. Com elesdescobriu os segredos dos remédios naturais, usados pelospantaneiros.

Pantaneira explica uso de chás para repórter Cláudia Gaigher. Reprodução feita a partir de matéria

exibida pela TV Morena, 2008.

Com uma linguagem simples, de quem está acostumada a transitar também

por aquele ambiente, a repórter mostra o conflito de gerações, a substituição de

costumes antigos pelos hábitos urbanos, mais modernos. Com uma passagem,

constata:

É, mas o conhecimento e a tradição de se tirar os remédios danatureza estão se perdendo a cada geração aqui no Pantanal. Umexemplo está na casa da dona Ramona. Ela sempre usou remédiosnaturais. A neta dela, Rosilaine, de 20 anos, não conhece ospoderes das plantas medicinais. Em caso de uma doença...

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A neta da pantaneira é quem responde: “Penso logo em uma farmácia, tomar

um comprimido, nunca na natureza, não penso em ferver um remédio”. Enquanto a

avó argumenta: “Minha farmácia é esse mato aí, saio procurando até encontrar, faço

meu chá, tomo, já saro”. Andando pelas casas do povoado, distante 60 quilômetros

da farmácia mais próxima, a repórter conversa com pessoas que têm “82 anos de

lucidez e saúde”, sem nunca terem tomado remédio. “A bióloga descobriu que os

mais velhos conhecem a aplicação medicinal de cerca de 240 plantas no Pantanal”,

diz a repórter. E completa que essa sabedoria está se perdendo: “A bisneta da dona

Maria José mal sabe os nomes das plantas”. De novo, a reportagem traz à tona a

questão da pureza cultural, de um conhecimento que se perde com as novidades

vindas dos centros urbanos.

Diferentes gerações mostradas na reportagem de Cláudia Gaigher. Reprodução de matéria exibida

pela TV Morena, 2008.

Outra reportagem da mesma repórter também coloca a questão da tecnologia

versus o primitivismo do meio rural. Em 3 minutos e 15 segundos de duração, ela

registra uma viagem feita ao Pantanal para a realização de uma entrevista com o

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violeiro Almir Sater. Na verdade, é um making of167 dos preparativos para a

participação ao vivo dele no programa Mais Você, apresentado por Ana Maria

Braga. Além da equipe de reportagem, formada por repórter, repórter

cinematográfico, motorista e assistente, há uma segunda equipe, que vai montar o

equipamento para o link168. A reportagem começa com os carros sendo carregados

com os equipamentos ainda na madrugada. O texto vai indicando a direção que

seguem. O tempo e as dificuldades da viagem ficam claros em expressões como

“cansaço”, “encaramos a estrada de terra”, “tem boiada na estrada” – a equipe

realmente encontra uma boiada na estrada, fato bastante corriqueiro nas estradas

do Mato Grosso do Sul – e, ainda, “abrir passagem”.

Repórter cinematográfico registra as dificuldades para gravar no Pantanal. Reprodução a partir de

matéria exibida pela TV Morena, 2008.

A música é a mesma usada na abertura da novela Pantanal, Sagrado coração

da Terra, de Marcus Viana, na versão instrumental. Tem também sobe sons com

167“Making of” é um jargão usado pelo cinema e pela TV para descrever o que acontece nos

bastidores de uma gravação ou evento.168

“Link” é um termo usado pelo jornalismo televisivo que indica a entrada ao vivo do repórter ou deevento.

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berrante e o BG169 da boiada. Nesse contexto, são inseridos os desafios impostos

pela geografia do lugar: “desafio de assustar qualquer peão”. O texto é confirmado

pela entrevista feita com o peão, em cima do cavalo, chapéu na cabeça: “Às vezes,

a gente fica meio com medo”. “Medo de quê?”, pergunta a repórter. “O gado pula,

atola, é fundo”. E, nesse meio inóspito, aparece a figura do herói: “Comitiva

pantaneira de heróis do pasto. 25 dias no trecho e mais 13 para chegar”. Mas a

comitiva não é pantaneira: “É a primeira viagem deles pelo Pantanal”, diz o texto, e

em depoimento o peão, estranho no lugar, confessa: “Nóis já se perdimo muito, duas

veiz já. Que a turma dá a informação, nóis vamo pela informação, né. Então às veiz

vamo ino no caminho, às veiz erra a estrada, procura informação, nóis tem que

vortar de novo. E assim nós vamos seguino”.

Peão pantaneiro é entrevista pela equipe em viagem ao Pantanal. Reprodução feita a partir de

reportagem exibida pela TV Morena, 2008.

169“BG”, sigla para “background”, é o termo técnico que designa o som ambiente ou trilha usada nas

gravações.

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De volta à estrada, é hora de a equipe enfrentar novos obstáculos

pantaneiros. O caminho certo para as equipes de gravação é garantido pelo guia.

Sem ele “dificilmente conseguiríamos fazer o trajeto sem se perder”. Depois de sete

horas de viagem para percorrer 100 quilômetros de estrada, de enfrentar

atolamentos na areia, a poeira e o calor, vêm os encantos: ipê-rosa, vazantes,

animais, chamados de “moradores nativos”, e a ponte, a “imagem da vitória”, que

representa o final da viagem. A repórter contabiliza: “foram mais de sessenta

porteiras e colchetes abertos pela nossa equipe nessa aventura pantaneira”. E, já na

fazenda do cantor, entre “centenas de metros de cabos”, começa outra “aventura” –

montar uma “miniestação de TV no meio do mato”. E, “como uma delicada flor”,

surge a antena que “vai captar o sinal do satélite para enviar ao vivo tudo o que for

filmado”.

Equipe monta antena para transmissão ao vivo no Pantanal. Reprodução de reportagem realizada

pela TV Morena, 2008.

Todo o cansaço da equipe é reconfortado pela paisagem do lugar: “O visual

do rio Negro alivia o cansaço. (...) A paisagem é o sonho de qualquer repórter

cinematográfico. Muitas locações a escolher, jacarés...”. E, no making of, a

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revelação de que o ao vivo também é ensaiado: Almir afina a viola e, como se já

estivesse conversando com Ana Maria Braga, diz: “Todo pescador gosta desse

toque e eu estou tocando pra você, sei que você é uma pescadora, consciente.

[Vira-se para a repórter:] Vou brincando com ela assim”. No dia seguinte, no horário

previsto, entra no ar, ao vivo, do meio do Pantanal, o link com o cantor Almir Sater. A

reportagem termina com sobe som do Almir cantando e imagens do Pantanal, Ana

Maria prestando atenção, não fica dito no texto, mas implícito no contexto – a

tecnologia venceu as barreiras para quebrar a distância imposta pela geografia do

lugar.

Ana Maria Braga, no estúdio do Mais Você, em São Paulo, entrevista Almir Sater no Pantanal, ao

vivo. Reprodução a partir de reportagem exibida pela Rede Globo, 2008.

Cláudia Gaigher também é quem registra o fenômeno que ficou conhecido na

região como o arrombamento do Taquari – por causa do assoreamento, o rio saiu do

seu leito natural e inundou as terras ao redor, criando um alagamento bem maior do

que seria normal na época da cheia do Pantanal. A matéria, de 6 minutos e 30

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segundos de duração, pode ser considerada uma reportagem especial, por ter

duração tão longa, e descreve a desolação provocada pelo arrombamento:

Arrombados é da costa. Mais da metade da água do rio Taquari saido leito do rio e vai parar na planície. Onde passamos de barco erauma fazenda. As estradas viraram rios. As pastagens hoje sãobrejos. Nenhum animal à vista. Silêncio de morte. Nas colônias daregião viviam cerca de trezentas famílias. Muitos abandonaram ascasas. Poucos insistem em ficar. Dona Berenice mostra o caminho.Só passa de barco. A fazendeira, dona de 7 mil hectares que jácriou 5 mil cabeças de gado hoje vive nesse barraco de madeira deum cômodo só, cercada de água.

E continua, dizendo que quem insiste em ficar tem que obedecer às leis das

águas. O mesmo Pantanal ameaçador, que invade tudo e expulsa os moradores:

“Uma terra fértil, histórias de fartura, vidas destruídas pelo avanço das águas.

Centenas de famílias virando miseráveis. Quilômetro e quilômetros de fazendas se

transformando em pântano. Alagados permanentes. Sem vida”. A reportagem,

apesar de mostrar o resultado do que poderia ser chamada uma catástrofe

ambiental, não usa esse tom. Registra a agonia dos moradores que perderam terras,

lembra um tempo de fartura. Mas não toma partido, não se posiciona. Como alegou

o gerente de jornalismo da TV Morena, Alfredo Singh, ao dizer que não se faz um

Globo Repórter só com temas exóticos ou com denúncia, tem que ter um “molho” ali.

E isso a repórter Cláudia Gaigher faz com muita competência, conseguindo uma

grande inserção de suas reportagens nos telejornais nacionais da Rede Globo.

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Cláudia Gaigher no Pantanal da Nhecolândia. Reprodução do telejornal exibido pela TV Morena,

Campo Grande, 2008.

Para mostrar como vive o peão no Pantanal, o repórter Carlos Voges

acompanha uma comitiva pantaneira. Ele não é repórter de rede como Cláudia

Gaigher, mas as matérias dele também entram em grade nacional. E, em muitos

pontos, as reportagens são parecidas: o texto direto, que descreve as ações, a

linguagem que cria cumplicidade com o telespectador, a mesma câmera que

acompanha as cenas de forma natural. Ao som de música instrumental, o repórter

fala, em off: “O sol ainda está nascendo quando o trabalho começa. Os peões

preparam os cavalos da tropa e os cavaleiros, de primeira viagem, recebem as

noções básicas de montaria”. O peão explica ao turista: “Não vai soltar muito as

rédeas, tem que afirmar ela, se ele quiser embalar assim, cê puxa ele”. E entre

imagens grandiosas do Pantanal e do trabalho duro com o gado, a reportagem

segue descrevendo como é um dia na vida do peão pantaneiro. Mas, dessa vez, é

programa para turistas:

O programa é para quem curte campo, ecologia, natureza. Espíritode aventura é fundamental para participar do passeio. A fazendatem 50 mil hectares. Uma área equivalente a 80 mil Maracanãs. Ogado vai ser transportado para uma região onde o pasto está em

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melhores condições. A distância é de 30 quilômetros, dois dias deviagem tocando 1.200 cabeças de gado.

E entra um sobe som dos peões tocando o gado. As semelhanças no texto e

na linguagem do trabalho feito pelos repórteres é, em parte, resultado das

orientações do “padrão Globo de qualidade”, que, como se viu, são reforçados pelo

núcleo de rede da Rede Matogrossense de Televisão. Ensinamentos que partem da

Central Globo de Jornalismo, em um período em que Alice-Maria e Armando

Nogueira implantaram uma grande preocupação com o texto no jornalismo do Jornal

Nacional. Em 1975, chegaram a “sistematizar algumas normas básicas de redação

em um pequeno manual” (MEMÓRIA GLOBO, 2004, p. 62). Mesmo os jornalistas

que não tiveram acesso ao manual tinham, todos dos dias, em cadeia nacional, o

Jornal Nacional, que fez escola nas redações. Em 1984, uma edição impressa do

manual, redigida por Luís Edgar de Andrade, circulou entre as redações para

disseminar o conceito de um texto com linguagem direta, coloquial, sem

adjetivações ou supérfluos, com períodos mais curtos e as informações distribuídas

em frases curtas.

Em Campo Grande, Corumbá e outras cidades de Mato Grosso do Sul onde a

Rede Matogrossense de Televisão tem emissora, os jornalistas seguem as regras do

núcleo de rede que, por sua vez, seguem as da Rede Globo, anteriormente citadas.

O objetivo é colocar a matéria em rede nacional, como já mencionado, mas

conseguir atingir o “padrão” é uma vitória. Alfredo Singh explica que as matérias que

vão entrar nos telejornais em rede nacional são negociadas antes, o texto é enviado

para o editor, que pode ou não sugerir alterações (TONIAZZO, 2007, p. 204): “o

maior prazer do repórter não é nem ver a matéria entrar no Nacional , é ver quando

ele lê o texto para o editor e ele diz assim: pode gravar, aí ele se realiza. Por que

eles dizem: puxa, cheguei lá, cheguei no padrão”.

A linguagem também segue um padrão. A RMT tem uma fonoaudióloga

contratada para atender aos profissionais e seguir o padrão requerido pela Globo. A

fonoaudióloga Ariane Cássia Nunes explicou (TONIAZZO, 2007, p. 177) que o

trabalho busca “manter o regionalismo, suavizar o sotaque e trabalhar as diferenças

pra manter todos os profissionais num nível de qualidade ideal”. Um nível de

qualidade que agrega credibilidade – transfere a competência da Rede Globo para a

Rede Matogrossense de Televisão. Mas gera homogeneização, pois, ao seguir a

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lógica do mercado e conquistar audiência, a televisão deixa de lado as diferenças

regionais – nem mesmo sotaques são permitidos. Para Martín-Barbero (2006, p.

253), ao ficar de olho nos índices de audiência, a televisão adota a “tendência a

constituir-se em um discurso que, para falar ao máximo de pessoas, deve reduzir as

diferenças ao mínimo, exigindo o mínimo de esforço codificador e chocando

minimamente os preconceitos socioculturais das maiorias”.

Essa homogeneização não é percebida com clareza pelo telespectador, ao

contrário. A tela da TV está sempre revestida de pluralidade, de diversidade, de

integridade – por ela, o público tem acesso a grande variedade de linguagens,

formas de vida, variedade de experiências de todos os cantos da terra. Os slogans

das televisões geralmente refletem isso, como o da Rede Globo “A gente se vê por

aqui” ou o da Rede Matogrossense de Televisão “Mato Grosso do Sul unido por

nossa imagem”. A TV exibe as diferenças livres de tudo aquilo que as impregna de

conflitividade – e esta é a sua forma de negar as diferenças. Ela transforma o

espetáculo da notícia em algo cotidiano, próximo do telespectador ou então o mostra

de forma exótica, completamente distante da realidade dele. Por qualquer um dos

caminhos, a televisão impede que o diverso detenha o telespectador. Para Martín-

Barbero (2006, p. 254), esse é um

(...) dispositivo paradoxal de controle das diferenças: umaaproximação ou familiarização que, explorando as semelhançasartificiais, acaba nos convencendo de que, se nos aproximarmos obastante, até as mais distantes, as mais distanciadas no espaço eno tempo, se parecem muito conosco; e um distanciamento ouexotização que converte o outro na estranheza mais radical eabsoluta, sem qualquer relação conosco nem sentido para o nossomundo.

O caminho escolhido por Carlos Voges em sua reportagem sobre a comitiva

pantaneira é o da familiarização – ao criar intimidade com o mundo do peão,

traduzindo tudo que é novo de forma coloquial, com muita simplicidade e segurança,

coloca o telespectador “ao lado” dele, na cena: “Acompanhar a comitiva do gado é

uma boa oportunidade de conhecer os mistérios do Pantanal, vivendo por alguns

momentos a profissão de peão”. Entra o sobe som do berrante. E o repórter vai

narrando o que acontece, traduzindo:

O ponteiro vai na frente tocando o berrante. O gado acompanha. Ospeões controlam a boiada com o arreador, um chicote comprido que

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com a própria ponta faz um barulho parecido com um tiro. Derepente, surgem voluntários. Um é o jornalista José Maria Tomazela,que acaba descobrindo o peão que existe dentro dele.

Repórter Carlos Voges grava passagem no Pantanal durante cavalgada. Reprodução a partir de

matéria exibida pela TV Morena, 2008.

É mais um jeito de criar proximidade com o telespectador. E o turista credita a

façanha à paisagem pantaneira, algo tão diferente que é capaz de gerar mudanças:

“Há muitos anos eu não subia num cavalo e talvez seja essa imensidão toda, essa

natureza, esse contato tenha favorecido esse lado de peão”. Mesclando a beleza da

paisagem com as dificuldades do lugar, Carlos Voges vai mostrando tradições

pantaneiras: “O calor castiga. Na hora da sede, o tereré entra na roda, bebida típica

da região com erva-mate e água fria”. E ainda: “No acampamento, cada um arma

sua própria rede. Quem não tem prática, se enrola com o mosquiteiro. O churrasco

servido no jantar é feito no chão. Tudo faz parte da cultura do peão pantaneiro”. Ao

som de viola, de boiadas e berrantes, a comitiva segue na estrada sob o olhar atento

dos turistas e do repórter:

A comitiva segue e os turistas vão desfrutando as belezas doPantanal. São mais de seiscentas espécies de aves e noventa de

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mamíferos. Uma terapia pra se desligar da rotina do dia a dia. Ogado chega ao destino final. O peão que vai atrás, chamado deculatreiro, entrega a boiada. Os turistas agradecem a chance deterem conhecido um pouco da vida de peão.

Para finalizar a matéria, o repórter dá voz aos turistas: “Entender o que é uma

comitiva, como se toca o gado, como se fazem as coisas por aqui”; “Cê esquece a

conta no vermelho, os problemas em casa e curte a paisagem, curte a comida, a

música, vale a pena”. E entra o sobe som final com música regional.

3.4 - O peão na tela de todo o Brasil: a novela Pantanal

(...) enquanto os noticiáriosse enchem de fantasia tecnológicae se espetacularizam a si próprios,

é nas telenovelas e programas dramáticosque os país se relata e se deixa ver.

(MARTÍN-BARBERO & REY, 2004, p. 161)

Foi valorizando esses elementos destacados nas reportagens do

telejornalismo: o jeito simples de viver, a beleza da paisagem pantaneira e o ritmo da

vida no lugar, que a novela Pantanal conquistou a audiência de todo o País. Com

mais de 40 pontos no Ibope170, colocou em rede nacional, com um destaque nunca

visto antes, a figura do homem pantaneiro. A maior planície alagável do planeta, que

já chamava a atenção dos ecologistas desde a década de 1970, passava a ter

outros moradores, além dos animais comumente captados pelas câmeras de

televisão. Eram os pantaneiros, proprietários de terras, seus peões e mulheres,

personagens que interpretam a história escrita por Benedito Ruy Barbosa171, um

autor que já tinha 19 telenovelas em seu currículo quando escreveu Pantanal.

Relatar a vida da gente simples, cabocla, e dos imigrantes que chegavam ao País

era um dos temas mais constantes no trabalho dele. Construiu o eixo condutor de

Pantanal com a saga de três gerações de uma mesma família que vivenciam a

ocupação do Pantanal, a implantação das fazendas de pecuária nos anos 1940, os

conflitos e tensões do choque cultural entre esse mundo rural e o da cidade grande

nos anos 1990.

170A correspondência entre pontos no Ibope e telespectadores varia de região para região, mas o

mercado publicitário usa a equivalência de 60 mil domicílios para cada ponto. Pesquisado em:http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=304VOZ004. Acesso em: 25 jan. 2010.171

Dados pesquisados em: http://www.teledramaturgia.com.br/benedito.htm. Acesso em: 12 jan.2008.

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Com uma linguagem que se aproximava da do cinema172, com cenas

contemplativas que quebravam o ritmo costumeiro da edição vista na TV, uma luz

bem cuidada e as paisagens pantaneiras como cenário principal – grande parte das

cenas foi gravada em ambiente natural, aproveitando a luz natural –, Pantanal

mostrava aos brasileiros um Brasil que poucos conheciam, segundo o próprio slogan

publicitário da emissora Manchete na época: “O Brasil que o Brasil desconhece”

(HAMBURGER, 2005, p. 124). Nesse bordão publicitário estava um Brasil mestiço,

feito de lendas indígenas e de mitologias que permite gente que vira onça como

Juma Marruá (Cristiana Oliveira), que vende a alma ao diabo como Xeréu Trindade

(Almir Sater) e que protege a natureza como o Velho do Rio (Cláudio Marzo). Para a

pesquisadora Beatriz Becker, que analisou a novela em sua tese de mestrado173,

depois publicada em livro, Pantanal fez com que o País rural que se escondia nos

programas de música sertaneja fosse integrado ao cotidiano das grandes cidades:

(...) o Brasil da região pantaneira, tão bem expresso na poesia deManoel de Barros. Desmitificou um padrão pasteurizado deteledramaturgia, baseado em cenários, figurinos e situaçõescanônicas, quase sempre ligadas a uma história urbana deascensão social. Por fim, provou que índices de audiênciaexpressivos não precisam estar vinculados apenas a produtospadronizados e estereotípicos, mas podem provir também depropostas de inovação e de desenlaçamento de rotinas (BECKER;MACHADO, 2008, p. 37).

Com a proposta de novos conteúdos e novos arranjos estéticos, o modo de

viver, as crenças, a música e o ritmo do peão pantaneiro ganharam destaque nas

telas. Falar dele virou moda, pois, como se viu, o jornalismo também se pauta pelos

assuntos da moda. Reportagens sobre o homem e a cultura pantaneira ganharam

capas nas revistas de maior circulação do País174, espaço nos maiores jornais e no

telejornalismo. Era a ficção despertando a atenção para a realidade. Um dos motivos

que chamou a atenção da mídia para Pantanal foram os números do Ibope – pela

primeira vez, uma novela quebrava a hegemonia da Rede Globo na teledramaturgia.

Além de ter sido líder de audiência em 1990, quando foi ao ar pela primeira vez, de

172Essa afirmação é contestada por Gustavo Dahl (apud BECKER; MACHADO, 2008, p. 41), que diz:

“não se trata de cinema, da mesma forma que quando os filmes expressionistas alemães dos anos1920 incorporavam as invenções de iluminação ou de encenação do teatro de Max Reinhardt nãoestavam fazendo teatro”.173

Tese defendida em 1992 na UFRJ – O sucesso da telenovela Pantanal: um fenômeno de mídia.174

A revista Veja trazia em sua capa, em 9 de maio de 1990, pouco mais de um mês após a estreiada novela: “Como Pantanal está abalando a vida da televisão”, com foto de Juma, a personagem deCristiana Oliveira.

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27 de março a 10 de dezembro, na TV Manchete, também conquistou liderança na

reprise feita pelo Sistema Brasileiro de Televisão, o SBT, 18 anos depois, entre 9 de

junho de 2008 e janeiro de 2009, passando as concorrentes com picos de 18 pontos

durante alguns minutos175. Esses números e o fato de ter superado a supremacia da

Globo ajudaram a fazer da novela um marco da telenovela brasileira e um fenômeno

de mídia.

São muitos os pontos que levaram a essas conquistas. Segundo alguns

especialistas, foram as cenas de nudez, para outros, a revolução na linguagem da

telenovela brasileira – em vez do ritmo rápido imposto na edição das cenas urbanas,

as tomadas longas e imagens fartas da natureza, editadas no ritmo lento de um pôr

do sol, ou, como afirma o autor, Benedito Ruy Barbosa: “a novela tem o ritmo do voo

do tuiuiú, do movimento das águas, é outro ritmo, diferente do clipe das novelas, que

é sempre mais rápido”176. Segundo o diretor-geral, Jayme Monjardim177, a maioria

das cenas da TV naquela época tinha de 20 a 60 segundos, no máximo. As da

novela chegavam a ter 1 minuto e 30 de duração. Para Beatriz Becker e Arlindo

Machado, o sucesso foi creditado ao encanto desse mundo selvagem que

funcionava como uma redenção para esquecer uma das principais mazelas da

política do País naquele momento: o confisco da poupança pelo então presidente

Fernando Collor de Mello – com esse gesto, ele

(...) confiscava também todos os seus sonhos relacionados com asideias de liberdade e modernidade, de pertencimento ao mundourbano de felicidade através do consumo, de todos esses valoresque a Rede Globo celebrava nas suas telenovelas e que apublicidade vendia nos intervalos (BECKER; MACHADO, 2008, p.11).

175Segundo dados pesquisados em: http://www.teledramaturgia.com.br/pant.htm. Acesso em: 13 jan.

2009.176

Entrevista gravada pela autora, por telefone, em 13 de janeiro de 2009, em São Paulo.177

Jayme Monjardim assina a direção-geral da novela, que contou também com a direção de CarlosMagalhães, Marcelo de Barreto e Roberto Naar.

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Visibilidade para o peão pantaneiro

Apesar da importância de todos esses itens, vale lembrar que a inclusão da

novela como parte integrante do corpus desta pesquisa passa por uma questão

essencial: foi a novela quem deu visibilidade ao homem pantaneiro. A partir dela, o

pantaneiro passou a existir para a mídia. Da fase da “inexistência”, Abílio de Barros

(1998, p. 10) relata em uma das crônicas de Gente pantaneira:

O Pantanal foi descoberto por volta dos anos 70, quando aportaramos primeiros navegantes. Viram muito, entenderam pouco, caçarammuito do que viram (...). Ninguém mais soube deles (...).Turistas e,principalmente, ecologistas e naturalistas. (...) Foi por esse tempoque, maravilhados, começaram a chamar o Pantanal de “santuárioecológico”. Nós, gente, não fazíamos parte do santuário. Nós nãoexistíamos na paisagem. (...) E foram fotografando os jacarés delânguidos olhares, garças de elegante alçar, tuiuiús, capivaras deolhares dissimulados e mais jacarés. E nós, fora de foco. (...) Nós aíjá estávamos, por mais de 100 anos, convivendo com essesanimais, botando o boi junto deles e vivendo. (...) Não eram só osecologistas que não nos viam. Ninguém sabia de nós; o governo,por exemplo, nos ignorava... Hoje já nos descobriram. Não somenteestamos saindo na fotografia, mas até já fomos tema de novela emtelevisão (grifo nosso).

Os primeiros navegantes a que o autor se refere são os caçadores de peles,

de onças, jacarés e aves. Como se viu, antes do projeto de regionalização das redes

Globo e Matogrossense de Televisão, que coincide com a data da exibição da

novela, o estado interessava como pauta principalmente por causa das atividades

ilícitas. O contrabando de peles e animais estava entre elas e é disso que ele fala.

Depois é que vieram os turistas, ecologistas e naturalistas. Viu-se também que em

1999 a revista Veja trazia a matéria A descoberta do Paraíso, referindo-se à

descoberta do Pantanal pelos turistas. É claro que a mídia impressa já falava do

lugar antes da novela – como as edições de Veja de 1968 e 1970178 –, mas esse

material era esporádico e não circulava entre os peões pantaneiros, como referido

no primeiro capítulo.

178Dados disponíveis em: http://www.veja.abril.com.br/acervodigital/home.aspx. Acesso em: 12 jan.

2008.

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Seu Japão atravessa baía na fazenda Rio Negro, onde foi gravada a novela Pantanal, 2005.

O curioso é que a novela, que ajudou a dar visibilidade ao Pantanal e ao peão

pantaneiro, também foi ignorada e chegou a ficar na gaveta por um período de

quase sete anos. Benedito Ruy Barbosa trabalhava na Rede Globo quando

escreveu a trama. Acostumado a ver suas novelas no horário das seis, queria que

Pantanal, na época chamada de Amor pantaneiro, fosse para o horário nobre das

telenovelas e tivesse como cenário o próprio Pantanal. Chegou a fazer uma viagem

ao local para convencer a direção da emissora sobre as possibilidades de gravar a

novela lá. Não conseguiu – as fotos que registrou só mostravam água e mato, sem

as deslumbrantes fauna e flora. Recebeu a proposta de ambientar a novela em uma

fazenda carioca ou paulista. Convidado pelo diretor Jayme Monjardim, foi para a TV

Manchete com a promessa de gravar a novela no Pantanal179. Como não havia

referências sobre o homem pantaneiro, o autor voltou muitas vezes ao Pantanal

179Dados disponíveis em: http://www.teledramaturgia.com.br/pant.htm. Acesso em: 9 jan. 2009.

Informações confirmadas pela autora em entrevista com o autor.

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para realizar a pesquisa dos personagens. Grande parte da novela foi escrita in loco.

A inspiração veio da vida real:

Foi através de observação pessoal minha. Fiz muitas viagens,sobrevoei muito o Pantanal, foram horas e horas de voo, fiquei muitona fazenda Rio Negro e só comecei a escrever quando tinhadomínio sobre o assunto. Para falar sobre o homem pantaneiro temque conhecer o jeito dele. Não inventei nada, escrevi sobre o que vi.Ficava no meio dos peões, nas rodas que eles fazem, andava acavalo com eles... Prestava atenção no jeito deles falarem, nasexpressões que usavam, um jeito meio arrastado de falar, tranquilo.Fiquei lá ouvindo as músicas deles180.

As músicas que Benedito Ruy Barbosa ouviu na fazenda Rio Negro181, onde a

novela foi gravada, provavelmente saíram do violão do seu Japão182, um pantaneiro

nascido e criado ali, filho de japonês – que construiu a sede da fazenda onde foi

gravada a novela –, e da sanfona do Picolé de Onça183, que trabalha como

motorista, dirigindo um carro que transporta turistas, apelidado de pata choca porque

tem pneus semelhantes aos de um trator e trafega pela água, como um carro

anfíbio. Ele faz suas próprias composições – diz que não consegue imitar ninguém –

e quase sempre toca chamamé184, um ritmo comum no Pantanal, na área de

fronteira e na Argentina. Entrevistas deles já foram citadas em vários trechos deste

trabalho. Eles estavam na fazenda na época da gravação de Pantanal e fizeram

parte da equipe de apoio, da produção local, para as gravações. Seu Japão

acompanhou toda a novela:

Eu que ajudei desde o começo até o final. Eu que era piloteiro debarco, nas salinas, desde o começo até o fim. Eu saí nas cenas.Quando o galpão era aqui [aponta para o atual escritório dafazenda], saí no jogo de truco com Sérgio Reis, saí com Almir Satercontando uns causos com ele. Aí no rio tem umas quantas cenas nobarco. Fiquei muito amigo desses atores e atrizes185.

180Entrevista gravada pela autora, por telefone, em 13 de janeiro de 2009, em São Paulo.

181A fazenda Rio Negro fica na Nhecolândia e é mantida por uma ONG, a Conservação Internacional.

182Japão é o apelido de Pedro da Costa.

183Picolé de Onça é o apelido de Hélio Antônio Martins.

184É difícil precisar a origem do ritmo. Alguns creditam a uma música criada na Província de

Corrientes, na Argentina, outros dizem ser um nome de diferenciação criado em Buenos Aires. Dadosdisponíveis em: http://viola-chamamecera.blogspot.com/2009/04/polca-correntina-de-viola-antonio-c.html. Acesso em: 11 jan. 2010.185

Entrevista gravada pela autora na fazenda Rio Negro, em 2005.

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Seu Japão toca viola no final de tarde. Fazenda Rio Negro, Pantanal da Nhecolândia, 2005.

Picolé também fez amizades na época da novela e, por isso, sente-se

famoso, inserido em um mundo sem limites:

Eu posso ser um bom sanfoneiro, mas daqui. (...) Cada pessoa temo seu território. Na verdade, eu não me importo com dinheiro. Tudoque eu faço, que quero é que vira sucesso. Meu negócio é nome.Me perguntam se eu ganhei dinheiro andando com o pessoal da TV,eu não me importo, ganhei fama. Meu nome foi lá pro Rio deJaneiro, pra Miami, isso que importa (...) Porque de repente você taesquecido do nada, que nem o repórter do National Geografic,vieram recomendado que eu tinha que ser o guia de campo deles,quando veio o seu Jaime [Monjardim], não queria que eu saíssenem um minuto de perto186.

Os contatos feitos por intermédio dos diretores e equipe da novela ampliaram

tanto os limites de Picolé que ele chegou a afirmar: “O mundo é pequeno agora”,

como demonstrado no primeiro capítulo. Fundamentada no contato com as equipes

de gravação – técnicos e atores –, vale lembrar que a afirmação de Picolé dá conta

também de características fundamentais do que acontece com a mediação: a

experiência audiovisual modifica a percepção do telespectador em relação ao

186Entrevista gravada pela autora na fazenda Rio Negro, em 2005.

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espaço e ao tempo, porque a TV desterritorializa os modos de presença e relação,

as formas de perceber o que está próximo e o que está longe, que torna mais

próximo aquilo que é vivido a distância do que aquilo que cruza o nosso espaço

físico, no cotidiano (MARTÍN-BARBERO; REY, 2004, p. 34).

O processo é semelhante também na percepção de seu Japão, um peão

viajado que, antes de a novela chegar, já estava transformado, mas percebe que

elas existem: “Essa novela mesmo, Pantanal, quando chegou aqui, já deixou muita

gente civilizada, eu já conhecia, que viajava”. Ser civilizado aqui é ter contato com a

cultura da cidade, com as coisas da cidade, com o que aconteceu na fazenda Rio

Negro não pelo que eles viram na TV, mas pelo contato que tiveram com as pessoas

da cidade. É a antiga cisão entre campo e cidade, o primeiro como o lugar do atraso

tecnológico, do primitivo; o segundo como o espaço do conhecimento, da civilização.

Pertencer a um ou outro remete a uma operação antropológica que reativa uma

lógica evolucionista perversa, binária, arraigada no modo de ver da mídia, no

pensamento ocidental:

O que nos constitui é o que nos falta, o que nos constitui é acarência. E o de que carecemos, o mais nos faria falta hoje seriaisto: a tecnologia produzida pelos países centrais, esta que vai nospermitir afinal dar o salto definitivo para a modernidade (MARTÍN-BARBERO, 2006, p. 257).

Esse fio condutor de pensamento é o mesmo que guia a forma como a mídia

vê o Pantanal e o peão pantaneiro, que separa os cidadãos da cidade e os do

campo, o lugar da cultura, de um lado, e o das raízes, da pureza, de outro, um mais

evoluído que outro, como se viu nas matérias analisadas anteriormente. E também

está em Pantanal, em cenas que mostram o conflito entre o selvagem e o moderno,

a vida telúrica e a urbana (BECKER; MACHADO, 2008, p. 69). No Pantanal onde a

novela foi gravada, o grande movimento na fazenda, o vai e vem dos peões entre a

cidade e o campo, essa dicotomia já não existe há muito tempo. Dona Iolanda

Costa, mulher do seu Japão, mora na fazenda Rio Negro desde os 9 anos de idade.

Já foi e voltou para a cidade algumas vezes, “pra se tratar”, e conta que o

movimento ali sempre foi grande: “aqui vem muita gente, antes não era hotel, era só

gado, toda vida foi um movimento, era difícil o dia que não tinha um avião”187.

187Entrevista gravada com dona Iolanda Costa, na fazenda Rio Negro, Pantanal da Nhecolândia, em

2005.

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Acostumada a lidar com os hóspedes – ela é cozinheira e atendeu as equipes da

novela Pantanal, da TV Manchete, e de América, da Rede Globo –, fala com

sabedoria: “a gente veve aqui e o pessoal que chega não sabe disso aqui, chega pra

trabalhá e com a gente que vão aprendendo alguma coisa”.

O que a novela mostrou já faz parte do passado do lugar. No final do primeiro

capítulo, foram mostrados depoimentos que relatam transformações que estão

acontecendo na fazenda Rio Negro e em todo o entorno com a chegada da TV,

energia, outras relações trabalhistas – a sede onde moravam o pantaneiro Zé

Leôncio, a empregada que se torna a mulher dele, seus filhos Zé Lucas de Nada,

Tadeu e Joventino e a nora, Juma Marruá, e onde se passava grande parte da trama

é agora a parte central da pousada, onde fica a sala de estar, o restaurante, a

cozinha e alguns apartamentos. O galpão onde os peões Trindade e Tibério,

personagens de Almir Sater e Sérgio Reis, apareciam com violões e violas em

punho deu lugar ao escritório, com telefone, internet, cartão de ponto – digital – para

os funcionários. Sobre passar o cartão pela máquina, seu Baiano contesta:

Cê acorda, se tiver vício de tomar alguma coisa, mate, café, cêtoma, aí vai pra lá, 7 hora, passa o cartão, quando cê vai almoçá,passa o cartão, quando torna a trabalhá, uma hora, cê torna a passao cartão, quando é 5 hora passa de novo, aí cê já ganho o dia, ahfrescura, só aqui to veno passa o cartão188.

Seu Ezídio, peão conhecido como Baiano, passa cartão. Fazenda Rio Negro, 2005.

188Entrevista gravada com seu Ezídio de Arruda, peão conhecido como Baiano, em 2005.

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Ali, a lida com gado, a carneada, a caçada e a pescaria também se tornarem

raras – foram muito encenadas para a gravação da novela, por outros atores. São

cenas que eles, personagens reais, ainda têm de cor em suas memórias. A fazenda

se transformou em uma reserva ambiental que atrai pesquisadores do mundo todo.

O caráter preservacionista é uma marca do pantaneiro. Na vida real, aparece com

frequência na fala dos pantaneiros, tanto dos peões como Picolé – “Quem veve aqui

sempre cuidou, que senão não existia mais nada, né, se quem mora aqui num

cuidasse, não existia mais nada” – quanto dos patrões. Abílio de Barros (1998, p.

10) escreve em suas crônicas:

Convivendo com o santuário sem destruí-lo, mereceríamos, porcerto, alguma admiração, apesar de que, aos olhos de algunsecologistas, parece um escândalo que possa existir uma atividadeeconômica convivendo com a preservação ambiental. E láestávamos nós, criando boi no santuário.

Baiano caminha na fazenda Rio Negro. Ele trocou a lida com o gado pelo turismo, 2005.

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O caráter preservacionista do homem pantaneiro também povoa a forma

como a mídia o vê e foi um dos aspectos mostrados em Pantanal. Por enfrentar o

ambiente inóspito, selvagem e todas as dificuldades impostas pelas condições

geográficas do Pantanal, o pantaneiro comumente é visto como um herói. Nas

reportagens da Rede Matogrossense de Televisão, analisadas neste trabalho, o

pantaneiro aparece descrito com expressões como “comitiva pantaneira de heróis do

pasto”, “desbravadores”, “aventura pantaneira”, “aventureiros” ou “pioneiros que

desbravaram o Pantanal”. E é valorizando esse aspecto do pantaneiro que a novela

Pantanal começava, mas ela, ao contrário da mídia, reconhecia a sabedoria dele.

Em um tom épico, misturando imagens realistas com computação gráfica, a abertura

trazia na trilha uma música189 que exaltava o grande conhecimento do homem que

vive no Pantanal:

Gente que entende e que fala a língua das plantas, dos bichos.Gente que sabe o caminho das águas, da terra do céu. Velhomistério guardado no seio das matas sem fim, tesouro perdido denós, distante do bem e do mal, filho do Pantanal.

E logo depois, coloca a questão do desbravador, os pantaneiros como seres

que, entre “os rios que trançam o coração do Brasil, levando a água da vida do

fundo da terra ao coração do Brasil”, eram como “deuses que descem do espaço no

coração do Brasil redescobrindo as Américas quinhentos anos depois. Lutar com

unhas e dentes pra termos direito a um depois”. Para Hamburger (2005, p. 125),

aqui se retoma o tema de desbravamento, a conquista do Oeste, em um sentido

inverso ao que foi explorado pelo cinema norte-americano, onde o mito da

construção da nação alimenta a identidade nacional dos Estados Unidos ainda hoje.

No Brasil, ao contrário, a conquista do Oeste, da região onde está hoje o Pantanal,

começou logo após o Tratado de Tordesilhas, como mostrado no capítulo 1, e foi

marcada por uma relação massacrante entre colonizadores e colonizados. Na

abertura da novela, o que se quer mostrar é o tom da redenção, da redescoberta do

Pantanal:

Sintonizado com discursos contemporâneos, quando as condiçõesde representação nacional no mundo globalizado já não são asmesmas e o ideal de desenvolvimento é visto com desconfiança, otom é de arrependimento pela negligência para com a natureza, as

189Música Sagrado coração da Terra, de Marcus Viana.

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populações nativas, os deuses, as terras selvagens (HAMBURGER,2005, p. 125).

Segundo Becker e Machado (2008, p. 25), não foi por acaso que a TV

Manchete resolveu investir 7 milhões de dólares na telenovela Pantanal justamente

em 1990, pois esse era o Ano Internacional da Ecologia, o que deixaria o tema em

grande evidência. A novela não se transformou em um folhetim ambientalista, mas,

ao discutir os temas ecológicos ligados à região, como o contrabando de peles de

animais, o desmatamento para aumentar a área de pastagens, entre outros, acabou

pautando a agenda do meio ambiente no País naquela época e chegou a ser

acusada pela mídia de oportunista (BECKER; MACHADO, 2008, p. 30). Oportunista

ou não, acabou funcionando como uma espécie de manifesto, popularizando de

certa forma a discussão ambiental. Nesse contexto, vale lembrar o final: depois da

morte do Velho do Rio, o protetor dos rios, da mata, enfim, da natureza, entram os

caracteres, em tom de poesia:

O homem é o único animal que cospe na água em que bebe; ohomem é o único animal que mata para não comer; o homem é oúnico animal que derruba a árvore que lhe dá sombra e frutos. Porisso, ele está condenado à morte. Palavras do Velho do Rio, meupai.

O personagem, segundo o autor Benedito Ruy Barbosa, foi a única invenção

da novela: “Eu disse que não inventei nada, mas inventei o Velho do Rio, um

personagem que eu criei para defender tudo aquilo. Ele foi o primeiro a falar sobre

ecologia na TV brasileira”190.

Mitos e lendas na tela da TV

Benedito Ruy Barbosa poderia ter buscado no universo de mitos e lendas que

cerca a cultura pantaneira a inspiração para criar o Velho do Rio. Mãozão, pé de

garrafa, pai da mata, minhocão, são alguns dos seres imaginários que povoam o

imaginário pantaneiro. Eles, como o Velho do Rio, também guardam as matas, os

rios, os caminhos, os moradores do lugar... Mas, ao contrário dele, podem assumir

características assustadoras e até mesmo afugentar os que ameaçam. Por terem

acesso a esse repertório, os pantaneiros não devem ter estranhado a presença do

190Entrevista feita pela autora em 13 de janeiro de 2009, em São Paulo.

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Velho do Rio nas telas. Interpretado por Cláudio Marzo, o mesmo ator que fez o

papel de Zé Leôncio, o filho dele na novela, o Velho é um misto de curandeiro e

protetor da natureza, um ser que aparece nos momentos de perigo, que vive no

ninhal, o lugar de procriação de aves no Pantanal.

Cercado por uma aura de sobrenatural, o Velho do Rio era visto pelos netos,

por Juma Marruá, mas nunca pelo filho. No último capítulo, a revelação – ele não via

porque não acreditava. A edição dava ao Velho do Rio um certo ar sobrenatural –

ele surgia e desaparecia sob raios de luz muito fortes, como clarões. A esse espírito

ancestral, como nomeia Hamburger (2005, p. 125), eram direcionadas as ações de

proteção do lugar. Ele podia se transformar em cobra. Em uma das cenas, quando

um pistoleiro desaparece sem deixar rastro, Juma diz: “O Veio do Rio virou cobra e

engoliu o sujeitinho”.

Outro mito que a novela traz para as telas é o do bom selvagem (BECKER;

MACHADO, 2008, p. 46), por intermédio de Juma, a mulher que vira onça como a

mãe, Maria, morta nos primeiros capítulos da novela. Juma aprendeu a se defender

com unhas e dentes como os felinos e ataca quando se sente ameaçada. Também

deu à luz como nasceu – na beira do rio, sozinha, de forma semelhante aos animais,

bastante integrada à natureza. Para se proteger, está sempre lançando olhares

selvagens, de arma em punho e tem um gestual de guerreira, da mulher sempre

pronta para lutar. É claro que não se trata aqui somente de mitologia pantaneira – a

novela é ficção e, como tal, mistura aspectos mitológicos e lendários com traços

românticos e caricatos, mas, mesmo com essa mescla, traz à tona um aspecto da

cultura do Pantanal que não havia sido mostrado antes.

Já se viu que os textos culturais do pantaneiro estão fortemente ligados à

oralidade e como eles se expressam por meio dos causos. E as narrativas

pantaneiras em grande parte estão associadas à fauna. Primeiro, por causa da

riqueza e da diversidade, depois, da mitologia indígena, basicamente construída

nesse universo e muito presente na cultura do Pantanal. A onça e a sucuri estão

entre os animais que mais aparecem nos causos pantaneiros, como mostra o

trabalho de Câmara (2007). E, ao tentar encontrar uma tipologia para os causos, ele

coloca os desses animais em primeiro lugar.

A onça, tão presente nos causos e tão famosa na novela, representa a

essência do selvagem e desperta o respeito e o temor do pantaneiro. Não é por

menos – é o maior felino do continente americano. Muitos turistas vão ao Pantanal

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na tentativa de vê-la como se via na tela da novela, assim, bem de pertinho. Quem

conseguia capturá-la, na época em que a caça ainda era permitida, era tratado com

distinção entre os pantaneiros por causa da coragem e ousadia (BANDUCCI JR.,

2000, p. 123). Muitos peões se vangloriam das caçadas do passado: “Eu matei 88

onça pintada e 275 onça parda. Em 1977 parou a caçada de onça, por lei, se fosse

por nós, ia tudo o tempo, mas como é lei, vamos parar com a caçada, parei”191.

Quando seu Celestino se aposentou e foi morar na cidade, passou a guardar a

zagaia encostada ao lado da cama.

Seu Celestino, ao lado dos netos, mostra foto da época em que caçava onça. Aquidauana, 2005.

Seu Silvério, um dos contadores de causo pantaneiro, conta que os índios

velhos, de tão velhos, viravam onça (CÂMARA, 2007, p. 91). O autor aponta ainda

que, na Ásia, África e Austrália, havia essa tradição de se transformar em animais

como tigresas, lobas, panteras: uma forma de as mulheres velhas regressarem à

humanidade com a luz do sol. Na novela, ao contrário, o fato de Juma virar onça

191Trecho do documentário Terra das águas, editado a partir de entrevista gravada pela autora em

Aquidauana, em 2005, com seu Celestino Prudente da Silva.

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representava uma explosão de força e juventude. A atriz Cristiana Oliveira virou

ícone de beleza nacional ao dosar a personagem com feminilidade, leveza e

sensualidade. E também com cenas de nudez que chegaram a causar polêmica na

época e, segundo alguns pesquisadores, elas foram um dos motivos que levaram a

novela a bater índices recordes de audiência. O que interessa analisar nessa

questão é como foram inseridas as narrativas pantaneiras na trama da novela.

A sucuri também aparece nos causos como uma ameaça ao pantaneiro, mas

nesse caso o que ele precisa ter é habilidade para escapar da cobra,

reconhecidamente perigosa pelo seu tamanho. Apesar de ter picado a personagem

Juma na novela, ela não é venenosa – quando faz uma presa, a sucuri a engole

inteira e mata por constrição. Foi assim que uma sucuri matou Roberto (interpretado

por Eduardo Cardoso), filho do fazendeiro Tenório (Antônio Petrin). O adolescente

foi criado na cidade e passou a viver no Pantanal depois que a família descobriu que

o pai tinha uma amante, a Bruaca (Ângela Leal). Nesse caso, o episódio tangencia o

mito do bom selvagem, pois ele estava ajudando o pai, um dos vilões da trama, a

encobrir as maldades e nem mesmo gostava do Pantanal. Se para o telespectador

pode parecer exagero uma cobra engolindo uma pessoa, no universo mítico, essa é

a característica é muito acentuada. Em um dos causos relatados por Ricardo

Câmara (2007), a sucuri engoliu 250 vacas, 80 carneiros, 300 cavalos e 100 porcos,

de uma só vez. Ficou com 1.100 metros de comprimento e 500 metros de altura.

O mito do Aqueronte, descrito por Jorge Luis Borges e Margarida Guerrero,

também é revestido dessa proporção descomunal: “Este es mayor que una

montaña. Sus ojos llamean y su boca es tan grande que nueve mil hombres cabrían

en ella” (BORGES; GUERRERO apud CÂMARA, 2007, p. 96). Com todos esses

elementos e personagens, a trama de Pantanal se aproxima do que na literatura se

chama realismo mágico e, apesar de tão presente em autores latino-americanos,

tem escassa repercussão na televisão brasileira: “No mundo mágico do Pantanal

mato-grossense, os seus habitantes creem, de fato, que Maria e Juma Marruá

transformam-se em onças, que Xeréu Trindade tem pacto com o Cramulhão e que o

Velho do Rio transforma-se em sucuri” (BALOGH apud BECKER; MACHADO, 2008,

p. 67).

A atmosfera mítica da novela começa desde a vinheta de abertura. Feita com

imagens reais e computação gráfica, a vinheta mostra uma onça caminhando

lentamente, depois ela sobe no tronco de uma árvore caída, sob um céu azul. Do

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outro lado do mesmo tronco, uma cobra. Troca de olhares entre elas. O azul do céu

dá lugar ao pôr do sol, que tinge de vermelho toda a tela. Depois, em posição de

ataque, como uma fera, a onça se transforma em uma mulher, com a utilização do

recurso de chroma-key – grava-se em estúdio, em fundo verde ou azul, e essa

imagem é recortada e aplicada sobre outro fundo. A cena é intercalada pelo

mergulho da mulher, nua, em águas cristalinas, que lembram os rios de Bonito.

Na exibição pelo SBT, em 2008, a vinheta foi substituída, sob a alegação de

problemas técnicos192, de defasagem em relação ao chroma-key. Mesclando

imagens reais do Pantanal com cenas gravadas em estúdio e cenário inspirado nas

paisagens pantaneiras, a vinheta trazia novos elementos, como cenas de pesca,

chalana cortando o rio, jacaré, mulheres carregando bacias, peões a cavalo e

tocando berrante. Algumas cenas foram gravadas em estúdio, também com a

técnica chroma-key, com atores e figurantes. A vinheta trazia também a onça – um

close do olhar – e a nudez feminina, mas agora mais contida: a mulher apenas solta

o vestido, em uma ação mais velada que a versão anterior. Ao final, a palavra

Pantanal escrita com caracteres de fonte verde no fundo da cena e a câmera vai até

ela em movimento subjetivo.

A construção da imagem do peão pela telenovela

Foi se inspirando na vida real, portanto, que o autor Benedito Ruy Barbosa

criou a ficção. E, ao chamar a atenção da mídia e do público, a ficção ajudou na

construção da imagem do peão pantaneiro. Ele passou a existir de fato. Ganhou

visibilidade pela tela da TV, mesmo na figura de outros personagens. Seu Baiano,

da fazenda Rio Negro, tem uma passagem interessante de como a novela tentava

se aproximar do real na construção dessa imagem:

Quando vieram gravar a novela, tudo aquele povão, tinha avião prabesteira, tinha gente na beira daquela baía que parecia formiga. (...).Levava essas traia, punha um pau lá na beira, amarrava e enchia detraia... (O senhor apareceu na novela?) Eles filmava a gente todahora, mas quando ia aparecer, eles cortavam, ficava só aquelastraia, a gente não saía193.

192Segundo entrevista de Fernando Pelégio, diretor de criação visual do SBT, concedida à repórter

Ana Volpe, exibida pelo Jornal do SBT em 22 de julho de 2008. Disponível em:http://www.youtube.com/watch?v=QHmGWTcrTc&NR=1. Acesso em: 18 jan. 2009.193

Entrevista gravada pela autora no Pantanal da Nhecolândia em 2005.

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Traia da peonada arrumada perto de rancho onde comitiva espera pelo leilão, 2005.

Esse é um processo fundamental na construção da imagem do peão

pantaneiro, pois, ao ganhar visibilidade, na tela da TV, ele se reconhece, se sente

integrado. Um processo semelhante ao que aconteceu no cinema mexicano, que,

segundo Martín-Barbero (2006), é a expressão mais nitidamente identificável como

nacionalista e mais popular-massiva do latino-americano. Não que o mesmo se

desse com a novela Pantanal em relação ao peão pantaneiro, mas o processo tem

semelhanças. No México, foi o cinema quem permitiu que as pessoas se

reconhecessem na tela:

Não se ia ao cinema para sonhar; ia-se para aprender. Através dosestilos dos artistas ou dos gêneros da moda, o público foi sereconhecendo e transformando, apaziguou-se, resignou-se e seufanou secretamente (MONSIVÁIS apud MARTÍN-BARBERO, 2006,p. 235).

O aprendizado no cinema mexicano vinha nas sequências de imagens que

mostravam gestos, modos de falar e caminhares que permitiam ao povo se ver e se

reconhecer – era o cinema mexicano ensinando as pessoas a “serem mexicanas”,

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no dizer do autor. Nesse sentido, a novela Pantanal fez muito pelo peão pantaneiro.

Fez com que ele valorizasse seu estilo de vestir, de contar causos, de viver.

Inspirada na cultura dele, a novela promoveu a música sertaneja e repercutiu, para

todo o País, a moda country (HAMBURGER, 2005, p. 126).

Depois da novela, mesmo os peões de outras regiões chegavam ao Pantanal

já vestindo calça de couro, chapéu de couro ou de palha, faixa e guaiaca na cintura,

da mesma forma que os peões Tibério, Tadeu, Zé Lucas de Nada194 apareciam na

novela. Para os da vida real, ficou a necessidade de diferenciar quem é, de fato,

peão pantaneiro, já que outros podem se vestir igual. Esse sentimento fica claro em

vários depoimentos já mostrados neste trabalho: “porque vestiu uma calça de couro

e um chapéu na cabeça e fala que é um peão”195. Não é só a forma de vestir que

importa: “O bom peão pantaneiro tem que aprendê com os mais veio”196. Jonas, o

peão que é capataz da Fazendinha, também deixa clara a diferenciação ao explicar

como escolhe um peão: “O peão tem um estilo, a gente olhano a gente já vê que o

companheiro é bom, a traia não voga, porque muito companheiro tem uma traia boa

barbaridade, bem arrumada, mas vai vê, ele mesmo não...”197.

Peões cortam cabelo na fazenda Curva do Leque enquanto esperam leilão de gado, 2005.

194Eram, respectivamente, os personagens de Sérgio Reis, Marcos Palmeira e Paulo Gorgulho na

novela.195

Claudete, mulher de peão, em entrevista gravada no Pantanal da Nhecolândia, em fevereiro de2005.196

Entrevista com seu Wandir, na fazenda Nhumirim, Pantanal da Nhecolândia, em julho de 2005197

Entrevista com Jonas, gravada no Pantanal da Nhecolândia, em fevereiro de 2005.

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A forma de se vestir do peão pantaneiro também mudou, principalmente

quando vai à cidade. Depois de vinte dias viajando pelo Pantanal, usando o chapéu

de carandá ou de feltro preto, dependendo das condições climáticas, o cozinheiro da

comitiva diz que, quando chegar à cidade, vai “primeiro dar o trato na gente, que

aqui a gente tem que ser comum, não tem como se perfeiçoá”.

Rosalino, o Careca, cozinheiro da comitiva de seu Renê. Pantanal da Nhecolândia, 2005.

Careca, “aperfeiçoado” como ele pretendia, passeia com o peão Francisco em Corumbá.

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Na cidade, os peões trocam a roupa da lida pela urbana: jeans, tênis e boné.

Em volta deles, nas ruas da mesma cidade, muitos que, talvez nunca tenham ido a

uma fazenda, usam chapéus, botas e cinto de couro. Assim como a novela ajudou a

construir a imagem do peão pantaneiro, o peão, através da tela da TV, ajudou a

construir a imagem do cidadão urbano do entorno do Pantanal, e também das

cidades mais distantes, que nenhum contato tem com a região, a não ser pela

mediação. Segundo a socióloga Dayse Stepansky, um dos grandes motivos do

sucesso de Pantanal foi mostrar que todos são rurais, inclusive a sociedade dita

urbana: “Esse resgate talvez seja até um resgate da nossa sociedade identidade

social. Que sociedade é essa, de 1990, que há 20 ou 30 anos atrás ainda era um

grande Pantanal, quer dizer, uma grande sociedade rural, uma grande fazenda?”

(STEPANSKY apud BECKER; MACHADO, 2008, p. 34).

Denis, condutor de comitiva, vai visitar a família depois de entregar o gado. Campo Grande, 2005.

A novela Pantanal tornava visível outra contradição, que mais profundamente

desorienta e desarticula a modernidade do brasileiro: o desencontro entre o nacional

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e o regional. Essa constatação, feita por Martín-Barbero & Rey, ao estudarem a

novela da Colômbia, serve também para o caso brasileiro:

(...) em um país fragmentado e excludente, tanto social quantoculturalmente, a telenovela juntou, resolveu e mesclou o rural com ourbano, o novo com o velho, e os diversos países que fazem essepaís, reconstruindo o imaginário nacional (2004, p. 158).

Com relógio, celular e roupa urbana, seu Davino e outros peões dançam em bar de Corumbá.

Pantanal não teve a proeza de misturar os diversos países que fazem este

País, mas mostrou, com muita força e mobilização, que as interações entre

pantaneiros, cariocas, paulistas e tantos outros personagens da novela fazem do

Brasil um país mestiço, não só na ficção, mas na realidade cotidiana de todos nós.

Afinal, como disse Alejo Carpentier, “o melodrama é nosso alimento cotidiano” (apud

MARTÍN-BARBERO e REY, 2004, p. 151). A inspiração para o melodrama, tão bem

expresso na telenovela brasileira, vem da nossa realidade, uma realidade novelesca,

no entender de Pedro Almodóvar:

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A vida brasileira é muito novelesca, extrema. Pede para ser contada.É perfeita para a ficção. E na própria cultura diária há algo que meinteressa muito: tem perigo, tensão, beleza. Há também umasensualidade evidente que está nas ruas, nos corpos. Se há um serhumano nascido para gostar de seus sentidos é o brasileiro. Alémde ser um país belíssimo com contrastes sociais – que também sãobons temas –, há também os contrastes simplesmente geográficos,visuais, como vemos no Rio de Janeiro e na Bahia, os dois lugares

que conheço mais. Cenários fantásticos para rodar (ALMODÓVAR,2009).

Continuando a citação do início deste subtítulo, que diz que “é nas

telenovelas que o país se deixa ver” (MARTÍN-BARBERO & REY, 2004, p. 161):

(...) nas telenovelas, nas dramatizações semanais, é onde se fazpossível representar a história (com minúscula) do que acontece,suas misturas de pesadelo com milagres, as hibridações de suatransformação e de seus anacronismos, as ortodoxias de suamodernização e os desvios de sua modernidade.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Menino observa movimento de gado nos preparativos do leilão da Curva do Leque, 2005.

Um mapeamento das mestiçagens da cultura pantaneira

Manoel de Barros (1985, p. 13) foi citado na introdução deste trabalho para

dizer que este seria uma “anunciação, enunciados como que constativos. Manchas,

nódoas de imagens”, tal a abrangência que teria. E agora, para encerrar, essa

afirmação é retomada, pois, sem ela, ficaria muito difícil colocar um ponto final, já

que muitos são os caminhos que ainda podem ser percorridos para ampliar o

entendimento de como se deu e como se dá a construção da imagem do peão

pantaneiro – considerando que esse é um processo ainda em formação. Portanto,

mesmo tendo cumprido os objetivos a que se propôs, este trabalho tencionou fazer

uma anunciação, um mapeamento da cultura do peão pantaneiro a partir da imagem

que ele tem de si e daquela que vem sendo construída pelas mídias TV e rádio. E

muito ainda pode ser feito a partir disso, talvez em um trabalho posterior de

doutorado que complemente este.

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Diante da abrangência da pesquisa, gostaríamos aqui de retomar os

principais aspectos levantados por ela. Para traçar tal mapa, começamos a

investigação percorrendo os passos daqueles que estiveram no Pantanal antes

mesmo de ele ser denominado como tal. Nos registros e relatos desse período, já se

percebem as mesclas culturais que começaram a esboçar a imagem do Pantanal,

como as que aconteciam entre os índios que habitavam a região ou suas

proximidades. E aqui também outro aspecto importante é apontado pela pesquisa: a

dicotomia como esses primeiros relatos descreviam o lugar e sua gente é repetida

mais de trezentos anos depois na visão da mídia sobre o Pantanal e o peão

pantaneiro. Palavras como inferno e paraíso são usadas tanto nas descrições dos

navegantes e visitantes que estiveram no Pantanal entre os séculos XVI e XVIII

quanto pelos repórteres dos séculos XX e XXI.

Depois, o Pantanal foi dividido em fazendas, que foram ocupadas por

pessoas vindas de outros lugares, trazendo novos costumes, novas formas de viver

e de pensar. Acompanhando o processo histórico da região e analisando os dados

de forma interdisciplinar, fomos mapeando essas intercorrências, as novas misturas

que foram se incorporando aos textos culturais produzidos pelo peão pantaneiro.

Muitas delas já vinham mescladas de seus locais de origem, como o uso do couro e

do cavalo, o costume de tomar erva-mate, e tantos outros elementos, também

presentes em processos culturais de outras localidades da América Latina. Ainda

hoje, quando as grandes áreas de terras pantaneiras continuam a ser divididas entre

herdeiros e passam a ser propriedade de gente vinda até de outros países, com o

crescente fluxo dos peões entre as fazendas e as cidades do entorno e o acesso às

mídias, esse processo de miscigenação se faz muito presente.

O peão pantaneiro visto pelo peão pantaneiro

No Pantanal, longe dos clichês que resultam da visão redutora que valoriza o

exótico (GRUZINSKI, 2001, p. 29), a pesquisa mostra que não se trata de ver na

imagem do peão pantaneiro os traços, sejam eles originais ou não, das culturas que

a compõem, como se a faixa paraguaia que ele usa na cintura fizesse da cultura

dele uma cópia da cultura paraguaia; ou simplesmente detectar a presença dos

Guarani no Pantanal em razão do hábito de tomar mate que o peão pantaneiro

mantém ainda hoje. O que o trabalho mostra é que na construção dessa imagem o

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que está em jogo é o resultado dessas mesclas culturais, dos traços que foram se

incorporando uns aos outros formando um desenho bem diferente do que se tinha

antes. Um não foi abandonado para ceder lugar ao outro, mas houve confronto,

houve diálogo e, por meio deles, interação, coexistência, renovação.

Trata-se de misturas tão fortes que o pesquisador Cláudio Vasconcelos

(1999, p. 32) chega a se perguntar, referindo-se à presença da cultura indígena na

região: “Que misturas são essas que sobrevivem a tanta opressão e grade dos

presídios?”. São misturas que resultam do enfrentamento de culturas, da

mestiçagem entre elas. E elas são tão presentes na cultura do peão pantaneiro que

afloram em muitos depoimentos gravados durante a fase da pesquisa de campo e

transcritos no trabalho, indicando o enfrentamento do novo com o velho. Até mesmo

o nome do lugar, que sofreu tantas modificações na descrição dos primeiros

narradores, ainda é questionado hoje com as mudanças mais recentes, como

aponta seu Alonso, o Paraguaio, no Pantanal do Aquidauana: “Eu não falo que vai

acabar o Pantanal, o nome dele vai ficar, mas tem lugar que o capim nativo não tem

mais”198.

Assim, a pesquisa aponta que, com novas pastagens e formas diferentes de

lidar com o gado, chegaram também outras linguagens e roupagens que foram

sendo assimiladas pelos peões no jeito de se vestir, falar, contar histórias, cantar, se

expressar... Essas assimilações acontecem em um ambiente cheio de

especificidades que pode ser considerado como uma semiosfera (LOTMAM, 1996,

p. 30), espaço semiótico onde esses textos, de origens e épocas tão distintas, estão

continuamente se misturando. E é nesse sentido que a pesquisa caminha,

mostrando que a cultura do Pantanal se inscreve no peão pantaneiro por meio das

informações que ele recebe, armazena, reelabora e transmite.

E nesse universo semiótico, houve e há – é importante frisar mais uma vez

que esse processo ainda está em formação – um clima de constante crise e tensão.

Ao mesmo tempo em que o peão pantaneiro percebe as mudanças culturais que

estão chegando, como na fala de seu Alonso, o Paraguaio: “Ta vindo muita gente

estrangeira (...) hoje em dia é tudo moderno”, ele também tem a sensação de perda

de pertencimento que vem da cultura, como demonstram os peões Márcio e Vandir,

ao afirmarem que “O bom peão pantaneiro tem que aprender com os mais velho (...)

198Depoimento gravado pela autora em 2005.

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vai pegá um peão lá da cidade e traz ele aqui, ele munta a cavalo, mas não sabe

fazê traia”. Na fala deles, a presença tão arraigada da ideia da tensão do diálogo

entre duas culturas, do tensivo e da crise gerada a partir desse confronto, nos afasta

da tendência de querer atribuir a toda uma região uma identidade cultural única,

fechada e imutável, como se o novo fosse minar e contaminar a pureza cultural

deles.

Os próprios peões apontam as mestiçagens do lugar: “hoje em dia somos

tudo hermano meio misturado, alemão, italiano, francês, paraguaio”, afirma seu

Alonso. Outro exemplo do trânsito feito por eles nessa crise de tensão e diálogo vem

do Picolé, o peão que é sanfoneiro e guia de turismo na fazenda Rio Negro, onde

foram gravadas as novelas Pantanal e América. Ele fala: “eu posso ser um bom

sanfoneiro, mas daqui, cada pessoa tem o seu território (...) me perguntam se eu

ganhei dinheiro andando com o pessoal da TV, eu não me importo, ganhei fama.

Meu nome foi pro Rio de Janeiro, pra Miami, isso que importa (...) O mundo é

pequeno agora”. Um mundo pequeno onde se instalam antenas de rádio e TV que

os conectam com outras interferências, outras sintonias, novas mesclas, na ideia

difundida por McLuhan de aldeia global (MCLUHAN, 1964 apud BIANCO, 2005).

O olhar do outro

Depois de mostrar o olhar que o peão tem sobre ele mesmo, a pesquisa parte

para uma nova busca: como ele é visto pelas mídias TV e rádio. Afastado da mídia

impressa por causa das dificuldades de acesso e das limitações impostas por não

ser alfabetizado, o peão pantaneiro se aproxima do rádio e da TV. No primeiro,

encontra o meio ideal para a sua oralidade. A pesquisa mostra que o rádio se

incorpora de tal forma na cultura pantaneira que é como se fosse mais um

personagem a participar de uma roda de tereré, em que se contam os causos, uma

das expressões mais contundentes da cultura pantaneira.

Assim, o Programa Alô Pantanal mantém, há quarenta anos, um diálogo

diário com o peão pantaneiro. E mais que uma rede de serviços, cria uma rede de

sincronizações que conecta corpos que partilham o mesmo tempo, o mesmo

espaço, os mesmos vínculos. É por essa rede que o rádio se insere no Pantanal,

trazendo novas mesclas, novas possibilidades de interação, e não homogeneizando

uma cultura pura, por estar simplesmente distante dos grandes centros, com

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dificuldade de acesso a determinadas tecnologias e, portanto, considerada,

equivocadamente, mais atrasada em relação à outra, urbana, do centro.

Ao acompanhar a trajetória da televisão desde a instalação das primeiras

antenas transmissoras em Campo Grande e Corumbá, para analisar como o homem

pantaneiro é retratado por ela, a pesquisa mostra como se deu a criação de uma

linguagem-padrão pelo telejornalismo, quase sempre movida pela busca de maior

audiência. Partimos das primeiras inserções sobre a região, ainda na década de

1970, quando o homem era um ser inexistente e o personagem maior das

transmissões e dos programas da TV era sempre o meio, o Pantanal, o paraíso

terrestre recém-descoberto pela mídia. Pouco a pouco o homem foi sendo inserido

no contexto do telejornalismo até ganhar espaço nos telejornais e programas

nacionais. Mesmo conquistando espaço, o peão pantaneiro ainda era visto a partir

de uma dicotomia, como se percebe nas reportagens analisadas no terceiro capítulo.

Mas a maior conquista – de espaço na mídia – veio pela novela Pantanal. Ela

coloca o peão em rede nacional empunhando berrante, conduzindo boiada e

emoldurando a paisagem montado em seu cavalo (vale lembrar que em algumas

das reportagens analisadas, os repórteres também montam a cavalo para

demonstrar proximidade com o assunto que estão relatando). Ao se inspirar na

realidade para criar a ficção, a novela Pantanal acabou mudando até a percepção

que o peão tinha dele mesmo. Além disso, colocou em pauta para o telejornalismo e

para a mídia impressa a figura do homem pantaneiro; mostrou um Brasil

desconhecido, que vivia em outro ritmo; e minou o monopólio estabelecido pela

Rede Globo, mudando o jeito de fazer telenovela.

Um novo olhar para o peão pantaneiro

Aqui está um dos maiores pontos de abertura para a continuidade da

pesquisa. A ideia original era analisar o material veiculado pelo jornalismo antes e

depois da década de 1990, época em que foi gravada e transmitida a novela

Pantanal. Período também em que se fez a regionalização da programação da Rede

Globo, em um movimento que permitiu que as TVs regionais ampliassem o espaço

de transmissão para os temas locais. Analisar os dois períodos e compará-los seria

uma forma de verificar possíveis mudanças na forma de a TV ver o peão pantaneiro.

No entanto, a pesquisa se deteve mais ao segundo período, o da regionalização. O

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primeiro não foi possível pela abrangência e pelas dificuldades técnicas – na Rede

Matogrossense de Televisão, responsável por essa cobertura jornalística, as

reportagens estão arquivadas em um sistema incompatível com os equipamentos

atuais.

Será preciso encontrar outros meios e métodos para fazer essa investigação.

E seria interessante também saber dos peões como eles se veem hoje na mídia,

tanto no telejornalismo quanto na ficção. Eles mudaram a percepção que têm deles

mesmos com tantas intercorrências mais recentes? Como é a audiência de cada

uma dessas mídias? – seria preciso definir um universo de trabalho e fazer a

medição que não desperta o interesse dos grandes institutos de pesquisa. Enfim,

nesse universo tão particular, cheio de especificidades, encontramos muitas

respostas que nos ajudam a mapear um pouco a imagem do peão pantaneiro, enfim,

conhecer um pouco mais a imagem do homem latino-americano. Mas ali estão ainda

muitas outras perguntas que pretendemos fazer na continuidade deste trabalho.

Talvez caiba aqui uma referência ao antropólogo Carlos Castañeda (1971).

Quando narra experiências que teve como aprendiz de um feiticeiro, o autor afirma

que tudo o que sabemos do mundo é apenas uma descrição, abrindo a possibilidade

de haver mais de um modo de perceber e interpretar a realidade: “Aprendemos a

pensar sobre tudo [...] e depois exercitamos nossos olhos para olharem como

pensamos a respeito das coisas que olhamos. [...] O mundo, quando você não o vê,

não é o que pensa que é agora. É antes um mundo veloz, que se move e se

modifica” (1971, p. 79-108)

Filho de peão pantaneiro toma tereré durante pausa na lida com o gado. Nhecolândia, 2005.

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ANEXO I – TRANSCRIÇÃO DO PROGRAMA DE RÁDIO ALÔ PANTANAL

CORPUS MÍDIA RÁDIO

DECUPAGEM DO PROGRAMA (PGM) DO DIA 31/3/2009

Abertura

(Começa música: Meu Mato Grosso do Sul, de Carlos Fábio e Carlos

Marinho, sem vinheta)

Andando pelos quatro cantos

Desse nosso estado

Eu pude descobrir

O quanto a natureza é sábia

E o que oferece pra gente sentir

Tem rios mata fauna e flora

Que nos surpreende

A cada renascer

Do dia quando o sol levanta

Como que chamando

A gente pra viver

Se ouço Helena Meireles

Zé Correia ou Zacarias Mourão

Lembro de um baile na fazenda

Sob um pé de cedro

Como isso é bom

Mas se você quiser saber

O quanto há de beleza

Em nosso pantanal

Se deixe levar na poesia

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De Manoel de Barros

Tudo é tão real

Meu Mato Grosso do Sul

Meu canto é todo pra você

Meu canto é pra cada cidade

Pra cada poeta

Cada amanhecer...

Locutor:

12 horas e 5 minutos agora em Corumbá.

12 horas e 5 minutos na capital do Pantanal.

Boa tarde meus amigos aqui de Corumbá, aí de Ladário, aí da zona rural.

Graças a Deus já estamos aqui iniciando o nosso Alô Pantanal.

É a maneira mais fácil do pessoal aqui da cidade se comunicar aí com os

moradores aí dos sítios, chácaras e fazendas.

Sonoplastia a cargo do Aguinaldão.

Hoje é dia 31, 31 de março ano 2009.

Hoje é terça-feira, véspera de mais umas vitórias da seleção canarinha.

12 horas e 5 minutos em Corumbá.

A lancha Vinte de Janeiro está com saída confirmada amanhã 12 horas. Vai

até lá no porto Santa Vitória, ainda tem vaga para cargas e para passageiros...

Lancha Vinte de Janeiro sai amanhã.

Maiores informações é só ligar (dá número), falar com comandante Everton,

que agradece a preferência.

Alô Pantanal pela Difusora.

Alô Fazenda Nova Esperança. Alô Jorge, o Sebastião manda avisar que

segue viagem com o Jeferson. Tá seguindo agora. Favor esperar no porto como o

combinado. A Tita sobe também. É recado do Sebastião de Arruda.

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Atenção, está confirmada a partida da Lancha Nova Laurinha para hoje às 19

horas e vai até o Porto Zé Viana. Ainda tem vaga para cargas. O retorno da lancha

Nova Laurinha será na sexta-feira cedo. E no retorno da lancha Nova Laurinha vai

ter vaga para gado. Melhores informações é só ligar (número). É recado do amigo

João Pinheiro, que agradece a preferência de todos.

Alô Pantanal. Atenção sítio Fortaleza. Alô Jeferson e Valdevino. O pai de

vocês avisa que ele está seguindo hoje. Assim que escutarem esse aviso, é pra

vocês irem ao meu encontro lá no sítio São Roque e é pra levar o meu mosqueteiro,

mosqueteiro de rede.

Esse mesmo aviso vai para o Florizo, no sítio Limãozinho, é recado do

Robertinho Ramalho.

Alô Pantanal. A lancha Santa Maria está com saída marcada para sexta-feira,

uma hora da tarde, saindo do Porto Geral, lá da Prainha, tem vaga para

passageiros, vai até o porto Figueira. O retorno é na segunda, 7 horas da manhã,

saindo do porto Figueira direto para o porto do Corumbá. Melhores informações é só

ligar.

A Rodeio tem vacinas, a Rodeio tem produtos veterinários em geral, a Rodeio

tem preço bom, bom atendimento, entregas rápidas (dá endereço).

O Verdurão da Cabral tem frutas, tem legumes, tem verduras e tem a melhor

mandioca da cidade. Verdurão da Cabral (endereço).

Atenção porto Paraíso. Alô Maria José, mando falar para o Reginaldo vir na

próxima condução, porque o bebê não passa nada bem. O médico já desenganou.

Peço para você vir pra gente dar mais (se enrola)... dar jeito (silêncio, se enrola),

estamos precisando da sua presença aqui, venha com urgência, antes que seja

tarde demais. No mais, tudo bem. Abraço para todos aí. Quem manda o alô é (se

enrola) Auxiliadora. Ave-Maria.

É Alô Pantanal pela Difusora.

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Atenção, os frequentadores do Sertanejão Cidade Branca pediram e os

proprietários vão atender: mais uma promoção. (Começa música) Churrasco de

novilha gorda. Aquele panelão de cozido. E também aquele concurso de chamamé

com prêmio em dinheiro para o primeiro lugar. É no dia 12 de abril no Sertanejão

Cidade Branca. A Jandira, o Miguel e o Cássio estão convidando os amigos, as

amigas e as simpatizantes.

(Rola chamamé)

12 horas e 14 minutos. Super queima de estoque na Novitá Modas. Desconto

de 30%, 40% e 50%. Desconto no cheque, desconto no cartão, desconto no

crediário. Faça suas compras e ganhe um ingresso para ver o show de Eduardo

Costa (endereço).

(Sobe música do Eduardo Costa)

É Eduardo Costa, no dia 14 de maio.

Atenção fazenda Rancho Alegre, atenção João Bosco. Lourenço manda

avisar que por aqui está tudo bem. Pai, não deu pra mandar as peças que você

pediu; assim que eu puder eu vou mandar. Mãe, as crianças estão bem. O Leandro

está estudando. Nós não temos notícias do Paulo, diz que ele está na fazenda. Nós

nos encontramos (se enrola) com muitas saudades. Nós estávamos com saudades

de vocês. Quem manda esse recado é a filha, Jane, que pede que seja tocado o

hino Adoração. Daqui a pouco a gente lê de novo e toca o hino.

A Dominique continua sendo amiga do homem do campo e da cidade. Para

bem servir ao povo pantaneiro a Dominique oferece produto veterinários, artigo de

montaria, artigos para pesca, roupas feitas, secos e molhados em geral (endereço).

Atenção porto Aparecida. Atenção Antônio. Sua esposa avisa que fez boa

viagem e avisa que por aqui está tudo bem. Não fique preocupado, seguiremos

viagem amanhã à noite. É recado da sua esposa Geralda.

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Alô Pantanal pela Difusora.

Atenção Fazenda Liberdade, atenção Maxson Soares. Favor comparecer na

fazenda, na fazenda, na fazenda Abate. Comparecer hoje ou amanhã, eu estarei

esperando.

O mesmo aviso vai pro senhor Itito, lá no campo do Metro. Estarei no rodeio

na quinta como foi combinado. É aviso do Sebastião Soares.

12 horas e 18 minutos agora em Corumbá.

12 e 18.

A drogaria Santa Tereza tem medicamento e perfumaria (descreve os

produtos). Drogaria Santa Tereza é do meu sobrinho Paulo (endereço).

12 horas 19 minutos agora em Corumbá.

Atenção Barra do São Lourenço. Atenção Wando e todos aí. Mando dizer que

o Wesley foi desenganado pelo médico, mas ele está em casa. Peço que os irmãos

em Cristo ajudem em oração, porque ele está desenganado pelo médico, mas não

está desenganado por Deus. Wando, mande a certidão de nascimento do Josias.

Abraço para as crianças, da Creuza.

12 e 20. Vamos ouvir os comerciais daí a gente continua com os anúncios do

Alô Pantanal.

(Entra vinheta da Difusora)

(Entram comerciais: Colégio Salesiano Santa Tereza / curso / Pax Cristo Rei /

Casa dos Presentes / Liquigás / Difusora )

(Música – curtinha)

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12 horas e 20 minutos agora em Corumbá. Grêmio Recreativo Escola de

Samba do Sapucaí. Edital de convocação. O presidente em exercício, Odete Bueno,

convoca os associados do GRESS para apresentação de chapas para nova eleição

da diretoria (dia e hora).

Alô Pantanal. A lancha Cidade Branca ta com saída confirmada para hoje 7

da noite, saindo do porto de Ladário e vai até onde tiver carga e passageiro. Quem

for viajar na lancha Cidade Branca favor reservar passagem com antecedência. No

retorno da lancha Cidade Branca vai ter vaga para gado (dados).

Festa de São Benedito. Hoje dia 31, hoje dia 31 é o sexto dia da novena. O

tema “Políticas públicas devem assegurar a justiça e a solidariedade”. Hoje, 18 e 30

récita do terço, hoje 19 horas missa, tendo como convidado a comunidade Nsa. Sra.

de Cacupé, amanhã dia primeiro sétimo dia da novena, o tema “A missão da igreja

na promoção da Paz”. Amanhã, dia primeiro, 18 e 30, récita do terço, amanhã, dia

primeiro, 19 horas missa, tendo como convidado a comunidade Legião de Maria.

Alô Pantanal.

Atenção fazenda 3 Marias. Alô senhor Luiz Magno, a sua filha Rosa pede que

o senhor vá sem falta à fazenda Manduri, tem lá um recado pra entregar para o

senhor. É recado da filha Rosa.

Atenção, a lancha Ipê vai sair amanhã 7 horas da noite e vai até o porto Zé

Viana. Tem vaga para cargas e passageiros. Lancha Ipê sai amanhã, maiores

informações, só ligar (dados).

Atenção sítio Nova Providência, atenção Jonilson. A sua mãe manda

encomenda com o Coca, hoje 11 horas, é pra esperar ele hoje à noite lá na Boca do

Felipe.

Quem já tem um terreno, já tem meio caminho andado para ter a casa

própria. Se você meu amigo, não tem um terreno, ta na hora de agir, compre um

terreno, procure o compadre Dobes, ele tem terreno muito bom. A imobiliária vende

terrenos a partir de 100 reais por mês, é moleza (endereço).

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Atenção Fazenda São Bento, alô Fazenda São Bento, atenção Erico França.

Hoje, por ser seu aniversário, nós te parabenizamos, e pedimos a Deus que te

abençoe, que te dê muitos anos de vida, paz, luz e prosperidade nessa vida.

Parabéns meu filho, seus irmãos também mandam parabéns. Escuta, o neném da

Camila nasceu ontem, dia 18. Quem manda esse aviso são seus irmãos e sua mãe.

Beijos na Melissa e na Sebastiana. Quem manda o alô é a Neusa.

(Sobe som de música que parabeniza)

Atenção porto Seráfico, aviso que está seguindo compras, duas caixas, e uma

com diversos, um filtro e uma caixa de água de 500 litros, seguindo na lancha 20 de

Janeiro, que sai amanhã. Não deixe embaixo, deixa na altura que sua mãe possa

tirar água, água da (se enrola), ah, água da torneira e lava de 15 em 15 dias. É aviso

(repete) da tia Alice.

Atenção fazenda Boa Vista no Cedro. Alô Paulo Amaro, mando avisar que

vou seguir viagem hoje 11 horas com o Jeferson, peço levar condução amanhã cedo

no porto do Acurizal. Por aqui estamos todos bem, com a graça de Deus, só com

muita saudade de vocês. Seus filhos pedem benção. É recado da sua esposa

Divina.

Alô Pantanal pela Difusora.

Super queima. Super queima de estoque na Novitá Modas, só não aproveita

quem não quer (repete texto já dado anteriormente).

(Sobe som música do Eduardo Costa, Cachaceiro: Dizem que eu sou

cachaceiro, cachaceiro eu não sou, cachaceiro é quem fabrica a pinga, eu sou só

consumidor – repete – to virando pé de cana, toda noite to bebendo, to bebendo por

amor, por amor to sofrendo. A marvada me largô, e disse que não vai voltar, e se ela

não vier correndo, meu Deus, eu sei que não vou aguentar – repete estrofe)

12 horas e 34 minutos agora em Corumbá.

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Alô Pantanal. Atenção retiro do Waldir, atenção senhor Antônio e dona

Zenaide. Resolvemos unir (silêncio) suas mãos e dobrar seus joelhos, do senhor

Antonio e da dona Zenaide, dia 31, fazendo 40 anos de casados, pedimos as

bênçãos de Deus para essa união do casal. São os votos de sua filha Cecília, do

genro Édio e dos netos Erik, Remler, Eduardo, Camelen e Junior. Parabéns e muitas

felicidades pela data.

(Repete lancha 20 de Janeiro).

Alô Pantanal. Atenção fazenda Santa Tereza. Alô Rudney Tertualiano, a Rose

avisa que pegou apenas 50 reais no escritório, sobre os 200 ele não falou nada. Me

ligue à noite. Um abraço para a dona Célia e para a Shirley, para Lilian e

Auxiliadora, lá na Piratininga. É aviso da Rose, é aviso da Rose.

Alô Pantanal pela Difusora.

(Repete lancha Santa Maria).

Alô Pantanal pela Difusora. Atenção localidade da colônia São Domingos,

Porto Figueira, Porto Divino, Porto Saíru, Porto Santo Antônio, Porto Rolon, está

confirmada a saída da lancha Nove de Julho, para quarta-feira, amanhã, ainda tem

vaga para carga e para passageiro. Os fregueses, o senhor Branco e o senhor

Florízio, se tiver mandioca pode arrancar, umas dez bolsas, e umas dez canas, se

tiver mandioca pode arrancar, e também uma dez dúzias de cana. O retorno é para

quinta-feira. O recado é do Anúbio Martins.

(Repete Rodeio).

20 minutos para as duas horas da tarde. Vamos ouvir os comerciais com o

Aguinaldo e depois a gente continua com o Alô Pantanal.

(Vinheta musical – curtinha)

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(Comerciais – funerária / Liquigás / justiça eleitoral / Difusora)

(Vinheta musical – curtinha)

12 horas e 42 minutos agora em Corumbá.

(Repete casal).

(Repete os 50 reais).

Alô Pantanal.

(Repete Sertanejão - comercial).

(Sobe som chamamé)

15 minutos para uma da tarde.

Atenção sítio Cosme e Damião. Atenção Dalmon, atenção, mando avisar que

seguiremos viagem hoje com o Jeferson, às 12 horas, já estamos seguindo, peço

para vir ao meu encontro no porto Capão do Pilão amanhã no primeiro horário e

dorme na casa do senhor Joselino e traz um cavalo puxado. Quem manda esse

aviso é Avelino Castelo.

(Repete Dominique - comercial).

Atenção fazenda Mangabinha, atenção José Carlos mais conhecido como

Tico, mando esse aviso para dar nossa notícias, nós por aqui vamos indo bem com

a graça de Deus, só com saudade de vocês, Tico, fico feliz por você lembrar de nós,

Maria Edite ligou ontem à tardezinha, estão todos bem, mandou lembranças, sem

mais para o momento, mando lembranças e abraços dos seus irmãos, eu e seu pai

mandamos um forte abraço pra você. Quem manda esse alô é o seu pai, Alfredo

Ramos.

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Alô Pantanal.

(Repete Drogaria Santa Tereza - Comercial).

Atenção retiro da fazenda Flor da Liberdade. Atenção Durvalino e Linda. Seus

pais avisam que suas compras seguem hoje com o Jone. E avisam que a Constança

continua internada. Quando ela tiver alta do médico, mando outro aviso. Lembranças

a todos E benção também, principalmente para a Isaura. É recado do papai Alegário

e mamãe.

Alô Pantanal.

(Repete edital do grêmio).

Alô Pantanal pela Difusora.

Atenção Cedro. Atenção Flávia. Mando avisar que segui viagem hoje 11

horas da manhã, estou seguindo, peço para ir no Porto, quem manda esse aviso é

Josiano e Castelo.

Alô Pantanal pela Difusora.

(Repete lancha Cidade Branca).

Atenção Cedro. Atenção Sítio Proteção do senhor Divino. Alô Edemir, sigo

viagem hoje ao meio-dia, peço ir com Davalno amanhã no porto do Pilão, é recado

de Rose... Rosema Xavier Castelo.

Alô Pantanal.

Atenção sítio Proteção de São Sebastião, na colônia São Domingos. Atenção

senhor Eurico e Elemir, seu genro e filha avisa que segue viagem hoje 4 horas da

tarde, na lancha Vilma, é, do Domingão, peço levar condução no porto Vira

Brequinho, é recado do Juliano e da Ligia.

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(Repete lancha Ipê).

Alô Pantanal. Atenção sítio São Bento. Alô senhor Zecão, o seu tio Nério

avisa que segue viagem na lancha Vilma hoje 4 horas da tarde do senhor Domingão,

pede pra você levar uma condução no porto Figueira. Sem mais, lembranças a

todos. Quem ouvir favor avisar. É recado do senhor Nério Vilalva.

Atenção Vanderson, na Liberdade, peço para você venha me buscar no porto

amanhã, chego hoje na lancha Vilma, que sai 4 horas da tarde, é aviso do Severino.

Precisa-se, precisa-se de uma cozinheira, precisa-se de uma cozinheira com

experiência em fazenda, precisa-se de uma cozinheira com experiência em fazenda,

tratar (endereço).

Alô Pantanal, vamo trazer a música com Eduardo Costa, a carta, vamos tocar

agora.

Atenção Colônia São Domingos, sítio Primavera, (se enrola) atenção Diego, o

Adelson avisa que vai seguir amanhã na lancha Nove de Julho, pede levar condução

no porto, e oferece a música A carta, com Eduardo Costa, quem está mandando é o

Adelson, capricha a música, Aguinaldo.

(Sobe Som música - Estou escrevendo esta carta meio aos prantos / ando

meio pelos cantos / pois não encontrei coragem / de encarar o teu olhar / está

fazendo algum tempo / que uma coisa aqui por dentro / despertou e é tão forte que

eu não pude te contar / quando você ler / eu vou estar bem longe / não me julgue tão

covarde / só não quis te ver chorar / perdão amiga são coisas que acontecem /

de um beijo nos meninos / pois eu não vou mais voltar / como eu poderia dar a ela

esta carta / como eu vou deixar / pra sempre aquela casa/ se eu já sou feliz / se eu

já tenho amor / se eu já vivo em paz e por isso decidi / que eu vou ficar com ela / a

minha passagem por favor cancela / vá sozinha não vou mais / quando cheguei no

portão da minha casa / como se eu tivesse asas

me senti igual criança / deu vontade de voar / quase entrei pela janela / minha

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esposa ali tão bela / dei um forte e longo abraço

e comecei a chorar / e com as lagrimas as palavras vinham

e rolavam como pedras / e ela só a me escutar / ao enxugar minhas lagrimas com

beijos / revelou que já sabia / mas iria perdoar / como eu poderia...)

(Vinheta Difusora)

(Comercial - Rádio Difusora Matogrossense, ZYI 1360 kwz, a pioneira, uma

emissora do Grupo Pantanal, o forte da comunicação na fronteira oeste do Brasil /

Clarividentes / Pax / Liquigás).

(vinheta)

Uma hora da tarde mais 3 minutos agora em Corumbá.

Atenção fazenda Santa Maria, alô Androlaje, peço que me ligue, o telefone

está com crédito. Abraço do Edinho. Abraço do Edinho.

Atenção retiro Joazel. Atenção retiro Joazel. Alô Zequinha e Carlos Daniel,

aviso que por aqui estamos todos bem com a graça de Deus, vou fazer esforço de

seguir amanhã na condução que está seguindo para a Santa Natália, aguarde novo

aviso. Ofereço o hino com Eliane de Jesus, como pérola... É aviso da esposa Silene

e da Vitória, abraço e beijo para você.

Alô Pantanal. Atenção Fazenda Santo Amaro, alô Jair, favor vir me buscar no

porto, estou seguindo hoje na lancha Nova Laurinha. É aviso do Joselino, aviso do

Joselino.

Atenção colônia São Domingos, sítio Fortaleza, atenção Jeferson, aviso que

eu não vou seguir viagem hoje, porque a lancha vai sair na sexta-feira, eu vou na

lancha Nove de Julho, você aguarda a confirmação da lancha, e se você não

arrancou a mandioca, não precisa arrancar. Que Jesus abençoe vocês aí. É aviso

da sua mãe, a Nadir Ramos de Almeida.

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Alô Pantanal. Atenção sítio Nova Senhora do Carmo, alô Abílio, Max e Arci,

aviso que sigo viagem hoje 4 horas da tarde, vou na lancha Vilma do Domingão. É

aviso da dona Pulguéria.

Alô Pantanal. Atenção Baía Alegre, Atenção Baía Alegre. Alô Edvanio, peço

pra você me ligar hoje, 6 hora da tarde, quem ouvir esse aviso, favor avisar o

Edvanio, é aviso da esposa, Maria Antônia.

Atenção retiro do senhor Geraldo, alô dona Maria de Fátima, aviso que a

Sandra vai seguir hoje à tarde. Favor esperar ela na porteira. Ela está levando sua

encomenda. Beijo e abraços para todos. É aviso de, é aviso, é aviso de Daia.

Larilálá, heim, será isso mesmo?

Atenção Retiro São José, fazenda Santa Anatália, alô dona Benedita, seu

esposo, Geraldo, avisa que por aqui está tudo bem, graças a Deus, amanhã ele vai

ao médico consultar, vai às seis horas da manhã, e se o doutor liberar ele ele estará

seguindo aviso com o doutor Abílio, caso contrário, aguarde novo aviso. Quem

manda esse aviso é sua filha Marta.

Alô Pantanal pela Difusora.

(Repete aviso do mosquiteiro de rede).

Alô Pantanal pela Difusora.

Vou trazer agora o hino Adoração.

(Repete aviso das peças).

O hino, Aguinaldo, Adoração.

(((Sobe Som música - Nós viemos Te adorar, Senhor! Nós viemos ministrar o

louvor / Nós estamos aqui pra dizer a Ti: Que o Teu nome é Santo! Que o Teu nome

é Santo! Eu quero olhar pra o meu irmão / Com olhar de amor (de amor) / Eu quero

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transmitir / O que há em mim, este amor. O amor que vem de Ti Senhor!... Eu quero

amar, amar. Eu quero esquecer todo ódio / Me ensina a ser assim, Senhor! Somente

assim! Porque vivo pra Te adorar / De joelhos quero lhe dizer: Que o Teu nome é

Santo! Nós viemos te adorar, Senhor! Nós viemos ministrar o louvor, aqui. E

estamos reunidos pra dizer a Ti: Que o Teu nome é Santo! Santo Pai, Santo Espírito

Oh Deus Santo, glorioso / Nome lindo, puro / Santo, Santo Pai / Viemos aqui para Te

adorar / Tu és Santo, Verdadeiro!...)))

Uma hora da tarde agora em Corumbá.

(Repete o terreno - comercial).

Alô Pantanal.

(Repete fazenda Liberdade).

(Repete Wesley desenganado pelo médico).

(Repete fazenda 3 Marias).

(Repete aviso do Coca).

(Repete aniversário).

(Repete porto Seráfico).

(Repete fazenda Boa Vista).

(Repete casal).

Alô Pantanal.

(Repete os 50 reais).

(Repete Mangabinha).

(Repete Cedro).

(Repete São Bento).

(Repete telefone com crédito).

Vamos trazer a música, o hino com Eliane de Jesus, como Pérola, é o título?

(Repete Zequinha).

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O Hino, Aguinaldo.

(((Sobe Som Música – É como pérola escondida no mar / A tua vida é um

tesouro que só Deus sabe cuidar / Aqui no mundo, não não é teu lugar / Há uma

terra que te espera e Jesus vem te buscar / Sobre o muito Deus já te colocou / Você

não é cauda, você é cabeça aonde quer que for / As promessas de Deus não vão

morrer

Se ele prometeu confia, Ele não vai te esquecer. Mesmo que o azeite se acabe /

Deus ainda vai fazer milagres / Deus dá providência e faz a esperança renascer /

Mesmo que não haja frutos na videira / E as ovelhas venham perecer / Deus ainda

faz o teu celeiro se encher / É como pérola escondida no mar / A tua vida é um

tesouro que só Deus sabe cuidar / Aqui no mundo, não não é teu lugar / Há uma

terra que te espera e Jesus vem te buscar /

Providências Deus toma por você / Você chora, Ele ouve e manda alguém te

socorrer / não há dúvidas quando ele diz "Eu sou

Tua Providência, teu Socorro, teu Refúgio e Protetor")))

(Comercial – igreja / Pax / MMX / Casa dos Presentes)

(Vinheta)

Uma hora da tarde mais 34 minutos agora em Corumbá.

(Repete Pulguéria, Sandra, Santa Antália).

(Repete comerciais de festa e Novitá Modas).

(Sobe som música – Cachaceiro)

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ANEXO II – TRANSCRIÇÃO DAS REPORTAGENS DA TV MORENA

CORPUS MÍDIA TV

MATÉRIA 1

Comitiva Pantaneira (4’43”)

(Sobe som música instrumental)

Repórter / Off:

(Imagens de cobertura conforme o texto)

O sol ainda está nascendo quando o trabalho começa. Os peões preparam os

cavalos da tropa e os cavaleiros, de primeira viagem, recebem as noções básicas de

montaria.

Peão / Vivo:

Não vai soltar muito as rédeas, tem que afirmar ela, se ele quiser embalar

assim, cê puxa ele.

Turista / Vivo:

Se eu puxar pra cá ele para?

Peão / Vivo:

Ele para. Não pode afrouxar, senão ele dispara.

Turista / Vivo:

Ah, ta.

Repórter / Off:

(Imagens de cobertura conforme o texto)

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O programa é para quem curte campo, ecologia, natureza. Espírito de

aventura é fundamental para participar do passeio. A fazenda tem 50 mil hectares.

Uma área equivalente a 80 mil Maracanãs. O gado vai ser transportado para uma

região onde o pasto está em melhores condições. A distância é de 30 quilômetros,

dois dias de viagem tocando 1.200 cabeças de gado.

(Sobe som dos peões tocando o gado).

Repórter / Off:

Para os peões isso aqui é trabalho, para os turistas, lazer. Acompanhar a

comitiva do gado é uma boa oportunidade de conhecer os mistérios do Pantanal,

vivendo por alguns momentos a profissão de peão.

(Sobe som berrante)

O ponteiro vai na frente tocando o berrante. O gado acompanha. Os peões

controlam a boiada com o arreador, um chicote comprido que com a própria ponta

faz um barulho parecido com um tiro. De repente, surgem voluntários. Um é o

jornalista José Maria Tomazela, que acaba descobrindo o peão que existe dentro

dele.

Turista / Vivo:

Há muitos anos eu não subia num cavalo e talvez seja essa imensidão toda,

essa natureza, esse contato tenha favorecido esse lado de peão.

(Sobe som dele no meio da boiada)

Turista / Vivo:

Repórter / Off:

O calor castiga. Na hora da sede, o tereré entra na roda, bebida típica da

região com erva-mate e água fria. Um aperitivo para o almoço servido no campo. No

cardápio, carreteiro, arroz com carne de sol preparado pelo cozinheiro que sempre

vai na frente da comitiva.

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(Sobe som almoço)

A viagem continua, agora o gado dá trabalho. Os animais ariscos se

desgarram do lote. Este peão foi correr atrás de um touro, na perseguição o cavalo

escorrega e a queda é inevitável.

(Sobe som peão falando que o cavalo vai ficar bom, afirmou mais)

O dia acaba. No acampamento cada um arma sua própria rede. Quem não

tem prática, se enrola com o mosquiteiro. O churrasco servido no jantar é feito no

chão. Tudo faz parte da cultura do peão pantaneiro. Na comitiva tem sempre um

violeiro que comanda o ritmo da noite.

(Sobe som violeiro)

No dia seguinte o privilégio de acordar com o canto dos pássaros. A comitiva

segue e os turistas vão desfrutando as belezas do Pantanal. São mais de seiscentas

espécies de aves e noventa de mamíferos. Uma terapia pra se desligar da rotina do

dia a dia. O gado chega ao destino final. O peão que vai atrás, chamado de

culatreiro, entrega a boiada. Os turistas agradecem a chance de terem conhecido

um pouco da vida de peão.

Turistas / Vivo:

Entender o que é uma comitiva, como se toca o gado, como se fazem as

coisas por aqui...

Cê esquece a conta no vermelho, os problemas em casa e curte a paisagem,

curte a comida, a música, vale a pena.

(Sobe som final, música de peão de comitiva)

MATÉRIA 2

Making Of Almir Sater (3’15”)

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Repórter / Off:

(Imagens de cobertura conforme o texto)

3 e meia da manhã, carros carregados, hora de pegar a estrada.

(Sobe som carros saindo)

Escuridão e rodovia vazia. Os faróis dos nossos carros iluminam a BR 262.

Pelo retrovisor, as primeiras luzes da manhã. A lua ainda está imponente no céu. É

a primeira parada. Cansaço. A explosão avermelhada precede a bola de fogo – o

sol.

(Sobe som nascer do sol – música instrumental – a mesma da abertura da

novela Pantanal).

Dia claro. Encaramos a estrada de terra. E tem boiada no caminho.

(Sobe som boiada e berrante)

Berrante pra juntar o rebanho e abrir passagem para as camionhetes. Mais de

500 cabeças de gado e um desafio de assustar qualquer peão.

Peão / Vivo:

“Ah, às vezes a gente fica meio com medo”.

(Medo de quê?)

“O gado pula, atola, é fundo...”.

Repórter / Off:

(Imagens de cobertura com cenas do Pantanal e equipe montando o

equipamento de transmissão – antenas, fios...)

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Comitiva pantaneira de heróis do pasto. 25 dias no trecho e mais 13 pra

chegar.

Peão / Vivo:

Com certeza dá muita saudade da família da gente, mas é a lida da gente,

tem que seguir no mundo, né?

Repórter / Off:

É a primeira viagem deles pelo Pantanal.

Peão / Vivo:

Nóis já se perdimo muito, duas veiz já. Que a turma dá a informação, nóis

vamo pela informação, né. Então às veiz vamo ino no caminho, às veiz erra a

estrada, procura informação, nóis tem que vortar de novo. E assim nós vamos

seguino.

Repórter / Off:

Vai com Deus, seu Nilson. E nós também. Ipê rosa é um presente pantaneiro.

Viajar por aqui é dar passagem para os moradores nativos. Pantanal secando é sinal

de vazante na estrada.

(Sobe som carros passando pela água).

E não é o único obstáculo (outra água). Carros carregados de equipamentos,

pesados, atoleiro é ameaça.

Repórter / Vivo:

Nós saímos de Campo Grande às 4 horas da manhã, já são 7 horas e meia

de viagem ainda não chegamos ao nosso destino, já percorremos mais de 100 km

de estrada de chão pelo Pantanal e se não fosse o peão Francisco que a gente

encontrou pelo meio do caminho e está nos servindo como guia, dificilmente

conseguiríamos fazer o trajeto sem se perder.

Peão / Vivo:

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Quem não tem prática de andar, fica atolado.

Repórter / Off:

Viagem com dois repórteres cinematográficos é assim mesmo, nada escapa,

nenhum detalhe da entrevista com Francisco, o nosso guia.

(Sobe som saída dos carros).

Seguimos viagem. Pra quem saiu na madrugada fria o agasalho já é um

incômodo. Blusa de lã e olha o sol. To derretendoooo. Mais poeira. A ponte sobre o

rio Negro é uma imagem, a imagem da vitória. Estamos chegando. Mas dá tempo de

parar e escolher o melhor ângulo da passagem dos carros da equipe.

(Sobe som carros passando na ponte).

É, mais ainda tem estrada. E porteiras.

(Sobe som peão abrindo porteira).

Foram mais de sessenta porteiras e colchetes abertos pela nossa equipe

nessa aventura pantaneira. Opa, areia e caminhonete pesada, isso não combina

(motorista brinca com o outro). Bom humor é fundamental pra encarar uma viagem

assim. Uma da tarde quando chegamos ao quintal da casa do cantor Almir Sater. E

o trabalho continua. Agora é hora de descarregar as caminhonetes. Centenas de

metros de cabos, cabos de áudio, cabos de imagem, uma parafernália. Caixas

pesadas protegem os equipamentos. Incansável, a equipe monta uma miniestação

de TV no meio do mato.

(Sobe som da equipe montando equipamento)

A base de ferro vai sustentar a antena. Como uma delicada flor, as pétalas

vão sendo encaixadas. E é essa antena que vai captar o sinal do satélite e enviar ao

vivo tudo o que for filmado. O visual do rio Negro alivia o cansaço. Tem que ter

paciência pra acertar (eles conversam). Antena montada é hora de alinhar sinal,

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testar áudio (teste de equipamento). A paisagem é o sonho de qualquer repórter

cinematográfico. Muitas locações a escolher, jacarés... E muito trabalho pela frente.

O dia acaba e estamos nós. Com paciência o cantor Almir Sater acompanha tudo. O

sol vai embora e continuamos acertando os detalhes. Conversa sobre o que vamos

falar na entrevista. Teste de áudio do som da viola.

(Sobe som da viola do Almir).

Sonora Almir / Vivo:

Todo pescador gosta desse toque e eu estou tocando pra você, sei que você

é uma pescadora, consciente. Vou brincando com ela assim.

Repórter / Off:

Tudo pronto para o dia seguinte. O dia amanhece trazendo aquele sol

pantaneiro que parece caprichar, se mostrar, exuberante.

(Sobe som com bg da passarada).

Hora de testar tudo de novo. Daqui a alguns minutos estaremos no ar, ao

vivo, direto do Pantanal. Tamanho trabalho e o resultado foi esse (Efeito de edição,

vai para Almir Sater na tela)

Sonora Almir / Vivo e Off, com imagens da Ana Maria Braga prestando

atenção nele:

Eu queria te convidar pra você vir pessoalmente, você que já esteve aqui

embaixo, no rio Negro, mas eu quero te receber aqui em casa.

Sonora Ana Maria Braga / Vivo:

Obrigada, você também.

(Sobe som do Almir cantando, imagens da Ana e do Pantanal)

MATÉRIA 3

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Fazendas inundadas (6’30”)

Repórter / Off:

(Imagens de cobertura conforme o texto – aéreas do rio mostrando grandes

áreas alagadas)

Arrombados é da costa. Mais da metade da água do rio Taquari sai do leito do

rio e vai parar na planície. Onde passamos de barco era uma fazenda. As estradas

viraram rios. As pastagens hoje são brejos. Nenhum animal à vista. Silêncio de

morte. Nas colônias da região viviam cerca de trezentas famílias. Muitos

abandonaram as casas. Poucos insistem em ficar. Dona Berenice mostra o caminho.

Só passa de barco. A fazendeira, dona de 7 mil hectares que já criou 5 mil cabeças

de gado hoje vive nesse barraco de madeira de um cômodo só, cercada de água.

(Sobe som do lugar, bg de água).

Quem insiste em morar aqui tem que obedecer as leis das águas. Elas

avançam, engolem casa, plantação, animais... Nos últimos quatro anos Onéssimo já

mudou várias vezes, fugindo da inundação. Não tem mais nada, só uma roça no

quintal. A lavoura foi alagada.

Pantaneiro / Vivo:

A gente tem que ir pra cidade, a gente não tendo onde morar, tem que ir pra

lá, abandonar tudo aqui.

(Porque constrói, a água invade?

Invade, essa aqui é a quinta casa que eu construí.

Repórter / Off:

Os que não aguentam ficar tem um só destino: abandonar as próprias terras.

Repórter / Vivo:

150 famílias foram expulsas das próprias terras pela invasão das águas,

algumas conseguiram abrigo na casa de parentes e amigos na cidade, outras estão

morando assim, acampadas. E a ameaça da água continua.

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Repórter / Off:

Misturados a sem-terras, ex-donos de pequenas fazendas vivem como

miseráveis.

Pantaneiro / Vivo:

Então ta difícil aqui, ó, nós só tem isso aqui pra dois dias.

(Quantas pessoas?)

Oito.

Repórter / Off:

A cesta básica é o que sustenta a família. O sogro tinha terra e 500 cabeças

de gado. Uma vida tranquila arrasada pelo Taquari. Ele se lembra do tempo de

fartura.

Pantaneiro / Vivo:

A minha vida antes de vir pra cá? Era trabalhar na roça, plantar, só isso,

trabalhava na roça, na agricultura. Plantava banana, mandioca, de tudo.

Repórter / Off:

Nas barracas de lona as crianças se protegem da chuva. Seu Paulo nasceu e

sempre viveu no Pantanal. Aos 73 anos ele tem que recomeçar. As terras estão

debaixo d’água. Restam apenas as lembranças e a esperança.

Pantaneiro / Vivo:

Tamo aqui embaixo dessa lona esperando o que Deus quer, né, fazer.

Repórter / Off:

Uma terra fértil, histórias de fartura, vidas destruídas pelo avanço das águas.

Centenas de famílias virando miseráveis. Quilômetro e quilômetros de fazendas se

transformando em pântano. Alagados permanentes. Sem vida.

(Sobe som bg barco, imagens das árvores secas na água)

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MATÉRIA 4

Ervas medicinais (5’49”)

Repórter / Off:

A imensidão verde guarda o segredo da saúde. Plantas nativas com poderes

medicinais. No mato dona Ramona colhe os remédios para o que precisa. Cajueiro

do mato não dá fruta não. A folha é um santo remédio.

Pantaneira / Vivo:

A gente ferve, faz um chá pra pressão alta, já pega a casca também é bom

pra disenteria, é bom pra diabete.

Repórter / Off:

Prá limpar o sangue uma planta com um nome estranho.

Pantaneira / Vivo:

Essa aqui que é japecanga, a gente tira a raiz dela, ferve e toma no mate. Ou

então faz o chá e toma direto.

Repórter / Off:

A folha é áspera (som da folha). Tem peão que usa pra lixar dente e casco de

cavalo. Mas também é remédio.

Pantaneira / Vivo:

Esse aqui é a lixeira, a gente ferve e é bom pra fazer gargarejo e pra infecção

na garganta.

Repórter / Off:

Gente simples que revela sabedoria de quem nasceu longe do conforto da

cidade. A bióloga Ieda Bortoloto passou três anos entrevistando moradores de

Albuquerque, no Pantanal. Com eles descobriu os segredos dos remédios naturais,

usados pelos pantaneiros.

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(Sobe som da bióloga com os pantaneiros)

O marido da dona Ramona tem 67 anos e dá a dica de saúde.

Pantaneiro / Vivo:

Eu vou no broto, faço o chá e tomo, né.

Repórter / Off:

A pesquisadora ouve atenta as receitas: pra verminoses, erva de Santa Maria.

(Sobe som da conversa deles)

A casca do açoita cavalo vira xarope contra a tosse. A folha de bocaiúva chá

pra baixar pressão. Dona Ramona mostra sua receita pra acabar com a dor de

estômago.

Pantaneira / Vivo:

Paxolino do Paraguai. Olha o cheiro dele (é forte, parece boldo). Parece, mas

eu tenho boldo, a folha dele é comprida.

Repórter / Vivo:

É, mas o conhecimento e a tradição de se tirar os remédios da natureza estão

se perdendo a cada geração aqui no Pantanal. Um exemplo está na casa da dona

Ramona. Ela sempre usou remédios naturais. A neta dela, Rosilaine, de 20 anos,

não conhece os poderes das plantas medicinais. Em caso de uma doença...

Neta de Pantaneiro / Vivo:

Penso logo em uma farmácia, tomar um comprimido, nunca na natureza, não

penso em ferver um remédio.

Repórter / Vivo:

Já a dona Ramona...

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Pantaneira / Vivo:

Minha farmácia é esse mato aí, saio procurando até encontrar, faço meu chá,

tomo, já saro.

Repórter / Off:

O povoado de Albuquerque fica a 60 km da farmácia mais próxima. O jeito é

confiar na natureza.

Moradora / Vivo:

Cê ta com uma dor, já corre no quintal e vai fazer o chá.

Repórter / Off:

Comodidade que preocupa a pesquisadora.

Pesquisadora / Vivo:

Eles preferem ir no quintal buscar algo que foi plantado do que ir na mata

buscar algo mais natural. Corre-se o risco de valorizar menos as plantas nativas da

região, as matas, os locais que poderiam ser preservados para que eles pudessem

encontrar essas espécies.

Repórter / Off:

A busca por plantas medicinas que não são nativas do Pantanal ameaça

deixar no esquecimento a opção das plantas da região. A prova disso está no jardim

da dona Enil.

Moradora / Vivo:

Aqui é Saião que serve pra bronquite.

(Mais o que tem no canteirinho?)

Tem Cravo de defunto que serve pra pneumonia.

Repórter / Off:

O princípio ativo de muitas plantas usadas pelos pantaneiros ainda não foi

isolado e não há confirmação científica se essas plantas são eficazes no combate às

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doenças. Dona Iracema garante que as ervas funcionam. Ela tem 82 anos. Como se

trata quando fica doente?

Moradora / Vivo:

Santo remédio do mato (risos).

(E funciona?)

Funciona. Como não?

Repórter / Off:

Os cabelos já estão brancos, as marcas do tempo riscaram o rosto da dona

Maria José. Ela tem 82 anos de lucidez e saúde.

Moradora / Vivo:

Toda vida eu tive planta de remédio em casa. É boldo, outras coisas...

(Não vai ao médico?)

Eu não.

Repórter / Off:

Sabedoria que está se perdendo. A bisneta da dona Maria José mal sabe os

nomes das plantas.

(Sobe som da menina falando bordo...)

A bióloga descobriu que os mais velhos conhecem a aplicação medicinal de

cerca de 240 plantas no Pantanal. Esse número é 3 vezes menor entre os jovens.

Infelizmente está havendo uma inversão de valores.

Pesquisadora / Vivo:

Nos grandes centros urbanos há um retorno de valorização, principalmente

das plantas medicinais, aqui, esse conhecimento está se perdendo.

Pesquisadora / Off:

E é justamente aqui, onde as pessoas estão em mais contato com a natureza

que esse conhecimento poderia ser conservado e mais valorizado.

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MATÉRIA 5

Cavalgada (4’31”)

Repórter / Off:

(Imagens de um trator atolado na baía).

Até quando está secando, o Pantanal reserva surpresas.

(Sobe som do motor do trator atolado, bg de água)

A lama é uma armadilha para o trator que veio desatolar a caminhonete. O dia

vai chegando ao fim e os atoleiros continuam surpreendendo os motoristas. É noite

escura quando os aventureiros chegam à Fazenda Baía das Pedras.

(Sobe som com bg de fogos de artifício)

Às 4 da manhã os peões começam a buscar os animais. Amantes de

cavalgada vieram de várias partes do País. É tanto cavalo que dá até pra confundir.

Pantaneiro / Vivo:

Essa tropa aqui não é da nossa não. O outro mangueiro é prá lá.

Repórter / Off:

Estribo nas mãos, manta de pele de carneiro pra poupar os animais. O

amanhecer preguiçoso aos poucos vai clareando o campo. Enfileirados, 185

cavaleiros e amazonas recebem as orientações.

(Sobe som com pantaneira dando instruções para a saída, para não

assustarem os cavalos)

A gauchada viajou quase 2 mil km só pra isso.

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(Sobe som do gaúcho falando que veio cavalgar no Pantanal)

Uma oração e, com a benção de Deus, lá vão eles. A cavalgada sai pelo

campo da Baía das Pedras. Muitos aqui são filhos e netos de pantaneiros que vivem

nas cidades e voltaram em busca das raízes.

Pantaneira / Vivo:

Hoje em dia nossos filhos já tem um contato de cidade, já moram na cidade,

estudam, então acho que esse resgate precisa ser feito dentro da nossa família pra

que nossa cultura seja preservada.

Repórter / Off:

Modernidade no controle da tropa, radinho de comunicação.

Repórter / Vivo (a cavalo):

Já são mais de seis horas de cavalgada pelo Pantanal e não estamos nem na

metade do caminho. A dor no corpo começa a aparecer, mas faz parte do passeio. A

maioria das pessoas aqui quer conhecer de perto, reviver o que é a vida do homem

pantaneiro.

Repórter / Off:

Enquanto os cavaleiros atravessam os campos, a equipe de apoio corre pra

preparar a comida. Arroz carreteiro não pode faltar.

(Sobe som do almoço)

O pantaneiro Leonardo e a carioca Adriana fizeram da cavalgada um passeio

de férias para os sete filhos.

Turista / Vivo:

Nós viemos porque esse é um passeio bem familiar e as crianças curtem à

beça.

Repórter / Off:

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O pouso é acampado mesmo. Barracas, carrocerias dos carros de apoio e até

os caminhões de transporte de animais viram casas. Os primeiros 20 km derrubaram

muita gente.

(Sobe som pessoa dormindo, ronco)

A noite chega e o povo ainda tem animação pra dançar o baile.

(Sobe som música)

No dia seguinte os deuses parecem saudar os participantes. Lá vão eles

pelos campos pantaneiros refazendo os caminhos dos pioneiros que desbravaram o

Pantanal.

Repórter / Vivo:

Uma volta às origens – atravessar o Pantanal exatamente como os

desbravadores fizeram há quase duzentos anos. E essa busca pela identidade

pantaneira atrai gente de todas as gerações. O Pantanal foi colonizado assim,

montado a cavalo.

Repórter / Off:

Os jovens já entenderam e se renderam a essa tradição.

Turista / Vivo:

Os caras de cavalo, de charrete, machete na mão, levava um mês pra chegar,

pra ver se era bom, pra voltar e chamar os outros. Eu penso – se aquele fez tanto,

porque a gente não pode fazer só um pouquinho só pra conhecer e gostar? Porque

todo mundo diz que é bom, né.

Repórter / Off:

Nos dois dias no lombo de cavalo, desbravando a paisagem pantaneira. Até

pra quem conhecia a região, a cavalgada foi um reencontro com as raízes. Uma

declaração de amor ao Pantanal. (Sobe som final).