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1
Maria Helena Franco de Araujo Bastos
Variâncias: O corpo processando identidades provisórias.
PUC/SP
2003
2
Maria Helena Franco de Araujo Bastos
Variâncias: O corpo processando identidades provisórias.
Tese apresentada à Banca Examinadora
Da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo como exigência parcial
Para obtenção do título de Doutora em
Comunicação e Semiótica sob
Orientação da Profa. Dra. Christine Greiner.
PUC/SP
2003
3
Bastos, Maria Helena Franco de Araujo
Título. Variâncias: O corpo processando identidades provisórias.
Maria Helena Franco de Araujo Bastos. São Paulo, 2003.
Tese – Doutorado – Programa de Comunicação e Semiótica - Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo.
1. Dança 2. Arte 3. Comunicação 4. Corpo 5. Criação 6. Cognição 7. Educação.
4
Banca Examinadora
______________________
______________________
______________________
______________________
______________________
5
Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a
reprodução total ou parcial desta tese por processos de
fotocopiadoras ou eletrônicos.
________________________________
(Maria Helena F. de A. Bastos)
6
Resumo:
A partir dos estudos do corpo e de seus movimentos, a tese propõe a dança. Como
um processo de comunicação altamente especializado e que produz conhecimento
testando diferentes competências motoras.
Reconhece-se, neste caso, que o conhecimento e os processos de comunicação se
desenvolveu a partir do fazer. A pesquisa teórico-prática evidencia que, tanto nos
processos criativos como nos educacionais, todo procedimento requer atitude estética na
relação com os espaços em que circulamos e com os outros com os quais convivemos. A
hipótese principal é a de que a dança produz conhecimento a partir do fazer. É na ação
que se estimulam conexões entre as estruturas de atividades corporais e operações
cognitivas superiores (raciocínio, concentração, etc) Tal hipótese é amparada por
pesquisas realizadas acerca da comunicação corporal, do sistema sensório-motor e da
elaboração de metáforas (e. g: Lakoff e Johnson 1999, Thelen e Smith 1997, Katz e
Greiner 2002).
A dança provoca no corpo processos organizativos em cadeias sígnicas a partir de
suas intervenções no meio ambiente. Um ambiente que não é o “outro”, o “fora”, o “lugar
passivo”. Não existimos fora dele. A comunicação se dá no fluxo contínuo, construindo
novas possibilidades de existência.
7
Abstract:
From studies and researches about the body and its movements, this thesis
proposes dancing as a communication process highly specialized and able to produce
knowledge through testing different motor skills.
It is recognized, in this case, that cognition and communication processes are
developed through practical action. The theoretical and practical researches demonstrate
that, in artistic and educational processes as well, every procedure demands an esthetical
attitude towards the various spaces and locations in which we move and in relation to
people with whom we share these territories. Therefore, the central hypothesis of this work
is that the act of dancing produces cognition through practice. It is only the action that
stimulates the connections between the structures of the physical activities and the
superior cognitive operations (inner thought, reasoning, concentration, etc.). Such
hypothesis is subsidized by the recent scientific investigations about body communication,
sensorimotor system and elaboration of metaphor (Lakoff and Johnson, 1999; Thelen and
Smith, 1997; Katz and Greiner, 2002).
Dancing provokes in our bodies symbolic net organizational processes through its
intervention in the environment. This environment cannot be defined as the “other” or the
“outside” or even the “passive place”. We do not exist outside of it. Communication takes
place in a continuous flow and builds new possibilities of existence.
8
Agradecimentos:
Este trabalho inicialmente foi gerado por uma alegria particular: ensinar a criar danças.
Por isso, dedico muito do que escrevi a todos aqueles alunos que compartilharam de
minhas aulas neste tempo de doutorado, sejam estes do CAC na ECA, da Comunicação
das Artes do Corpo na PUC e do ensino médio do Vera Cruz. O som das falas, risadas e
rabugices geradas entre nós, ficarão sempre na minha memória.
Hoje, a escolha de ser professor implica em condutas que exigem coragem e
discernimento pautado por determinados princípios. Assumi-los publicamente é um ato
corajoso. Um bom professor desafia nossas rotinas na implementação de sonhos, desejos
e utopias. Agradeço aos colegas da ECA, PUC (Cohen - in memorian) e VERA.
Agradeço a bolsa a mim concedida pela PUC. Sem ela este trabalho não seria
possível.
Reconheço o meu fazer artístico contaminado essencialmente por quatro mestres. Na
verdade, me sinto uma privilegiada nesta trajetória artística. Hoje, o que construo é
decorrência principalmente dos ensinamentos de Klaus Vianna – in memorian (que me
apontou a importância, no processo de formação do intérprete, da necessidade da
observação para o conhecimento do corpo), Helena Katz (na minha construção de um
instrumental interteórico voltado para dança), Ruth Rachou (na implementação de um
trabalho técnico e competente no corpo, a partir de uma fala moderna) e Célia Gouvêa
(que, do seu jeito foi a primeira pessoa que me indicou a possibilidade de coreografar a
partir de investigação para pesquisa de linguagem). Uma longa “révérense” a vocês.
Chris, suas aulas foram preciosas na elaboração deste trabalho. Obrigada! Guardarei
como lembrança uma relação povoada de interjeições... Bom!...Não está claro!...Tira
isso!...Não entendi!...Corta!...Desenvolva!...Cadê a fonte?... Lindo!...Isso!...Companheira!
A todos do “Centro de Estudos do Corpo” muito obrigado. Para minha querida Ledinha
- in memorian, guardarei eternamente o tom expressivo de sua voz e seu sorriso. Para os
queridos capetas, Vera, Fabiana, Maíra, Mônica, Wagner, Lenira, Thelma, Maria, Gaby,
Lela, Dora, Gícia, Bérgson, Rosana e Ivany, um brinde especial.
Rosa, Cleide, Maurício e Sobrinho! Amizade e respeito profissional, criados entre
espaços, linhas, pausas, escutas e falas. Obrigada.
Querido Raul compartilho esta escuta do corpo contigo. Que juntos, continuemos a
nos aventurar nesta dança de dois. Espero que um “entre” permaneça sempre no nosso
jeito de se mover.
9
Tomás e Davi, meus filhos, ofereço a vocês toda a poesia de minha dança. Desejo
sempre que vocês, no dia a dia, entre braços amigos, entre falas doces, olhares ternos
construam forças para não abandonarem seus sonhos. Vão em frente, sejam pianistas ou
roqueiro-guitarristas. Se lá na frente de suas vidas esta vontade mudar, não se
preocupem. É assim mesmo. Tudo muda, nós mudamos. Vocês me mudaram. Todo dia
alguma coisa aprendo com vocês. Meus filhos, muito obrigada!
Rogério. É difícil te agradecer. As palavras somem e meu corpo estremece. É o
estado do “entre” que neste instante invade meu corpo e modifica a percepção do meu
entorno. Que nossos mundos - dança e música - continuem povoando reinos entre
diferentes núpcias. Que entre estes dois reinos exista sempre um leve sopro e que
eternamente ele nos refresque em gostos.
10
Sumário:
Variâncias n0: Estado Inicial..........................................................................................12.
1 Do que trata esta pesquisa:.................................................................................................13.
2 Os objetivos são:..................................................................................................................15.
3 A hipótese principal:.............................................................................................................16.
4 Como e onde esta hipótese está sendo testada:...............................................................16.
Variâncias n1: A Escuta do Corpo...............................................................................17.
1 Uma prontidão cênica a partir da Escuta do Corpo...........................................................18.
2 Corpo – ambiente – cena – contemporaneidade................................................................21.
3 Ação........................................................................................................................................23.
4 O silêncio gerando percepções...........................................................................................30.
5 Partituras/Notações... Ilhas:.................................................................................................33.
Variâncias n2: Dança e Ensino Universitário..........................................................36.
1 Dança e Educação.
De onde surgiu a idéia e a escolha da grade teórica..................................................................37.
2 Um começo... O corpo aprendiz..........................................................................................45.
3 Contaminações... Inventando com o ambiente..................................................................52.
4 Movimento de Dança:
Reconhecê-lo. Também se passa pela aprendizagem de um olhar..........................................54.
5 Cada dança tem seu jeito. Cada inventor descobre um jeito...........................................58.
6 Iniciando um pensar...Laboratório de criação....................................................................64.
7 Um procedimento de aprendizado para criação................................................................68.
8 Construindo ações................................................................................................................72.
9 Conteúdos e estratégias.......................................................................................................73.
10 Criando em rede...Coreografia...........................................................................................74.
11 Entre fronteiras borradas...O intérprete- criador............................................................ 80.
11
Variâncias n3: Musicanoar..............................................................................................83.
1 Histórico.................................................................................................................................84.
2 Espaço de dança Ruth Rachou: Um ambiente de ateliê...................................................86.
2.1 Ruth Rachou: referência de uma mestra em caminho diversificado................... 86.
3 Ambiente Musical..................................................................................................................90.
4 Ambiente de parceiros: Intérprete-criador.........................................................................95.
5 Outras Incursões.................................................................................................................101.
Variâncias n4: Um breve repouso..............................................................................106.
Variâncias n5: Cartas.......................................................................................................113.
Bibliografia:............................................................................................................................135.
Dicionários:.............................................................................................................................138.
Índice Onomástico:.............................................................................................................138.
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Entre campos, dançamos. Entre danças, conhecemos.
Entre atos, aprendemos. Helena Bastos
1Do que trata esta pesquisa:
Este trabalho foi construído aos poucos. A cada passo surgiam possibilidades para
diferentes direções, até a escolha pelos processos que compõem o espaço criativo e
investigativo. Nesta ação, foi a dança que pontuou diferentes percursos. A partir do ato de
dançar, a percepção do corpo em relação aos espaços que ocupa se transformou,
ampliando entendimentos sobre outras possibilidades de relações do corpo com o espaço
e vice-versa.
Assim, se impôs a necessidade de olhar em várias direções ao mesmo tempo e, a
partir da dança, organizar estes olhares lado a lado. Neste procedimento, uma visão mais
ampla tomou forma na medida em que não nos limitamos a reagir àquilo de que gostamos
ou não gostamos e passamos a nos interessar por aquilo que podemos descobrir.
Uma das tarefas deste trabalho é, portanto, a de apontar que a dança é um processo
de comunicação altamente especializado e que produz conhecimento através de ações
que testam diferentes competências do corpo. Reconhece-se, neste caso, que o
conhecimento se desenvolve a partir do fazer. Nesta abordagem, assume-se também
que, no próprio fazer estão implícitos vários níveis de compreensão do corpo e que estes,
sempre atuam de forma simultânea em relação ao que se pretende conhecer.
Nestes trajetos foi surgindo a idéia de uma prontidão cênica a partir do que chamamos
como escuta do corpo. A idéia de uma escuta voltada para o corpo na relação com o
espaço cênico é um conceito aqui criado para atender a necessidade de uma prontidão
do artista do corpo na sua relação com os processos que envolvem a criação e o fazer
cênico. Este conceito de escuta será aprofundado no decorrer deste trabalho, porém, é
possível apontar neste momento, como esta idéia da escuta do corpo foi se configurando
enquanto uma prontidão cênica.
Temos hoje uma série de problemas onde a escuta está indisponível. Seja a escuta
com o outro, a escuta com o próprio corpo ou a escuta com o espaço que nos cerca. A
questão da escuta se complica numa sociedade performática, em que se priorizam
determinados resultados ou estes se resumem a determinadas metas, abrindo mão de
entender no percurso que outras relações estão implícitas neste contexto.
14
Acreditamos que ao nos disponibilizarmos para o que acontece no momento de cada
ação e identificarmos qual a necessidade da intervenção daquele ambiente, colaboramos
para uma configuração no espaço em que o corpo torna-se um agente modificador de
toda a nossa percepção neste espaço. Neste sentido, o espaço se modifica a cada ação
deste corpo.
Geralmente, o desconhecido são as fronteiras com outros conhecimentos. Por isso,
idéias foram se formalizando na medida em que vivenciávamos com dança possibilidades
de diálogos com outras áreas do conhecimento, tendo sempre como ponto de referência a
escuta do corpo numa relação cênica. É importante esclarecer que este trabalho usa
várias reflexões teóricas na feitura do trabalho artístico, mas a feitura desse trabalho
também colabora na revisão de determinadas reflexões teóricas. Assim a escolha de
teóricos como Thelen (1994), Varela (1987), Lakoff (1999) e Juarrero (1999) vem para
confirmar que teoria só se faz praticando. Teoria não se faz só lendo livros, mas testando
hipóteses. A arte não é diferente e nosso fazer artístico é um fazer na teoria.
Em decorrência de todos esses procedimentos, com o tempo foi surgindo a idéia do
termo “variâncias”, em que uma razão está intrinsecamente ligada a possibilidades de
combinações num determinado percurso. Como um catador que perambula entre
diferentes ruas e nestas caminhadas vai recolhendo de diferentes espaços e, a partir de
uma necessidade íntima, cria combinações de acordo com o que as estruturas dessas
“coisas” e o que suas circunstâncias permitem.
Existe um ciclo na estrutura deste trabalho, isto é, um processo de trocas em que
diferentes espaços são testados a partir de um pensamento. No decorrer destas trocas, o
pensamento proposto sofre variáveis em relação a um estado anterior e ao lugar em que
o experimento acontece.
Neste ciclo de variâncias a primeira é a “Escuta do Corpo”, um projeto artístico cujo
centro é a prontidão do corpo em relação ao espaço que o cerca. O silêncio aqui, se torna
um exercício fundamental de auto-percepção das interações desse corpo com o ambiente
que o invade. Persegue-se esta escuta como um modo de perceber estados e caminhos
no corpo no momento em que se processam e precisamos criar. Este silêncio está ligado
a uma percepção que dialoga entre variáveis de tempos e espaços. Essas variações
invadem nossa percepção no instante em que o corpo precisa criar soluções no espaço.
Estas soluções são entendidas como ações. Ações que nos levam a descobrir outras
possibilidades de organizar o corpo no espaço.
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A fim de estabelecer outras relações neste fazer artístico a partir de uma escuta do
corpo surgem as variâncias n°2 com aplicação pedagógica a partir da convivência
universitária.
A variância n°3 relata o processo de produção artística do grupo Musicanoar e as
contaminações que a convivência universitária provocaram em suas criações.
A variância n°4 é uma reflexão final sobre todo este processo investigativo.
Finalizando este ciclo, a variância n°5 surge como cartas. Na verdade, são
comunicações para alunos que vêm sublinhar de outros modos as idéias desenvolvidas
nesta tese.
2Os objetivos desta pesquisa são:
-Apontar através de experiências práticas de dança contemporânea, relações cênicas que
se produzem a partir das diferentes possibilidades interativas com o ambiente, tendo
como ponto de partida a diversidade dos corpos;
-Atuar em diferentes espaços, a fim de estabelecer dados comparativos e,
conseqüentemente, averiguar a sustentação e permanência destas propostas;
-Demonstrar que a prática artística em dança na vida universitária é estratégia conectiva
entre diferentes saberes;
-Propiciar um instrumental prático-teórico para a formação dos alunos, a partir do qual
eles terão condições de inventar um projeto artístico, adequado às questões do mundo
em que cada um deles percebe-se inserido.
3A hipótese principal:
Como foi dito anteriormente, todo este procedimento requer uma atitude estética em
relação ao mundo que é central para a educação de nós mesmos, dos outros e para a
educação do próprio mundo. A hipótese principal deste trabalho é a de que dança produz
conhecimento a partir do fazer, isto é, a dança na sua ação estimula conexões entre as
estruturas de atividades corporais e operações cognitivas superiores (raciocínio,
concentração, etc).
É através da projeção empática que passamos a conhecer o nosso meio ambiente,
entender que somos parte dele e como ele é parte de nós. Esse é o mecanismo corporal
pelo qual participamos da natureza como parte de uma realidade mais ampla na qual há
muito, estamos envolvidos.
16
Este pensamento está ancorado nas possibilidades de trocas, somas e avanços
obtidos a partir de vivências práticas. No caso de um “artista do corpo” que atua no
universo da dança, a escolha de criar interações entre diferentes grades teóricas e suas
novas tendências, colabora na expansão de um fazer artístico. Este “fazer” elege
contaminações proporcionadas por novos entendimentos de mundo. Nesta construção, o
pensamento artístico estruturado em redes integra diferentes universos.
A partir deste panorama, a proposta é que o indivíduo construa um fazer a partir de
suas relações com o mundo. Estas geram condutas coerentes no mundo entre o ser e a
prática do ser. Na verdade, não existe separação. O “ser” e o “fazer” estão
indissoluvelmente entrelaçados.
4Como e onde esta hipótese está sendo testada:
No período dos quatro anos deste doutorado, a hipótese foi testada em três ambientes
onde, de alguma forma, a dança vem sendo vivenciada como produtora de conhecimento.
4.I)ambiente: Ensino Universitário →
“Comunicação das Artes do Corpo”, na PUC/SP.
O vínculo se estabelece através da coordenação das disciplinas de “Laboratório de
Criação” e “Coreografia”.
4.II)ambiente: Ensino Universitário →
“Escola de Comunicação e Artes”, na ECA/USP, a partir de 2002.
O vínculo se estabelece através da coordenação das disciplinas de “Técnica de Dança I”
e “Técnica de Dança II”.
4.III)ambiente: Produção Artística→
O vínculo se estabelece a partir de estudos cênicos com colegas coreógrafos, além de
novas criações coreográficas com o Grupo Musicanoar.
18
1Uma prontidão cênica a partir da Escuta do Corpo.
Propomos em nosso trabalho uma metodologia para trabalhar a Escuta do Corpo.
Esta proposta foi construída no contexto de nosso trabalho de investigação e criação
artística. Pretendemos assumi-la enquanto uma espécie de proto-teoria da abordagem do
corpo em suas interações num espaço cênico.
Nesta escuta do corpo nosso foco é levar o intérprete - um artista do corpo - a tornar-
se atento, isto é, a experienciar o que a mente está fazendo enquanto ela o faz. Sem
dúvida, estamos falando de uma prontidão cênica. Este estado de prontidão pode ajudar
alguns intérpretes a melhorar a qualidade de sua performance no espaço da cena. Ou
seja, capacitá-lo a pensar e resolver de forma original problemas ligados a um
determinado assunto. Como assunto, entendemos uma diversidade de temas que podem
estar ligados a uma indagação filosófica, a uma frase poética, a uma sonoridade ou um
simples deslocamento ou queda do corpo.
Este artista deve partir de um material organizado. Um exemplo pode ser uma
coreografia. A partir desta coreografia, o intérprete reinventa. Recombina o pensamento
coreográfico em uma variedade de formas. Ele procede em várias direções com uma
mesma informação e muda com facilidade de um conjunto de tópicos para outro. Todas
essas possibilidades pressupõem que o indivíduo pode organizar informações em um
grande número de formas complexas e flexíveis. O professor em psicologia cognitiva e
neuropsicologia, Howard Gardner comenta:
E pode ser por isso que muitas pessoas criativas monitoram seus processos de
pensamento constantemente e buscam formas mais eficientes de registrar suas
concepções mais notáveis. O trabalho resultante é altamente individual,
idiossincrásico e impermeável a fórmulas. (1999:222)
Para termos uma noção deste estado de prontidão vale a lembrança do quanto
geralmente, as pessoas são desatentas em relação aos seus atos. Em nosso fazer
artístico propomos um caminho que privilegia possivelmente uma via singular pela qual o
intérprete expressa de forma autoral suas idéias compartilhando com outros sua
percepção e visão de mundo.
Sobre que prontidão cênica estamos falando?
A idéia deste termo - prontidão - surge com a vontade de organizar
metodologicamente uma relação de investigação cênica que toma por base a relação do
19
conhecimento com a experiência em uma mesma escala temporal. Desta forma,
examinando a experiência como um método de atenção/consciência, percebemos que
existem muitas atividades do corpo que pressupõem este tipo de relação. Dentre elas
aparecem determinadas práticas budistas como a meditação. Os cientistas ligados às
ciências cognitivas Varela, Thompson e Rosh escrevem que:
A palavra meditação, no seu uso geral na América moderna, tem uma série de
diferentes significados populares proeminentes: (1) um estado de concentração no
qual a consciência enfoca um objeto apenas; (2) um estado de relaxamento que é
psicológico e medicamente benéfico; (3) um estado dissociado no qual o fenômeno do
transe pode ocorrer; (4) um estado místico no qual realidades superiores e objetos
religiosos são experienciados. Todos esses estados alterados de consciência : a
pessoa que medita está fazendo algo para se afastar de seu estado habitual de
realidade-mundano, não-concentrado, não-relaxado, não-dissociado, inferior. A prática
budista da atenção/consciência pretende promover exatamente o oposto disso. Seu
objetivo é levar a pessoa a tornar-se atenta, estar junto com a própria mente. (2003: 40)
A concentração exigida nesta prática criativa gera estados de atenção que pretendem
trazer a pessoa para mais perto de sua experiência. Neste sentido, apontamos a
importância desta ação na relação com o auto-conhecimento. Gerar este estado de
prontidão a partir da escuta é disponibilizar o corpo para que ele não se isole e consiga
organizar-se em direção a alguma coisa, interagindo com um fluxo dos acontecimentos ao
redor de si, que se envolve com o meio ambiente e com os estímulos vindos não só do
corpo mas, das relações estabelecidas com o ambiente.
Como se desenvolve esta prontidão?
De acordo com Varela, Thompson e Rosh essa questão nos traz para o cerne
metodológico da interação entre a meditação, a atenção-consciência, a fenomenologia e
as ciências cognitivas. Eles sugerem:
Uma mudança na natureza da reflexão de uma atividade abstrata desincorporada para
uma reflexão incorporada (atenta) aberta. Por incorporada queremos nos referir à
reflexão não é apenas sobre a experiência, mas ela própria é uma forma de experiência
– e a forma reflexiva de experiência pode ser desempenhada com
atenção/consciência. Quando a reflexão é feita dessa forma, ela pode interromper a
cadeia de padrões de pensamentos habituais e preconcepções, de forma a ser uma
reflexão aberta – aberta as possibilidades diferentes daquelas contidas nas
representações comuns que uma pessoa tem do espaço da vida. Nós denominamos
essa forma de reflexão atenta, aberta. (2003:43)
20
Nossa idéia não é desenvolver uma técnica meditativa, mas captar o modo pelo qual a
pessoa disponibiliza o corpo para adquirir este tipo de relação diferente com o espaço e o
tempo em que ele se percebe atuante e interagindo. Pensamos aqui numa espécie de
“transposição” de alguns procedimentos presentes nas práticas de meditação e averiguar
como disponibilizar o corpo para viabilizar este estado de prontidão – condição para a
escuta do corpo - condizente com o nosso projeto de atuação cênica.
Para ampliar o entendimento sobre este ponto, vamos abordar duas maneiras de
comentar sobre o desenvolvimento da reflexão incorporada anteriormente. Um modo seria
uma abordagem de principiantes: isto é; compará-la aos primórdios do desenvolvimento
de uma habilidade. Consideremos o aprendizado de dança. Mostra-se à pessoa,
determinadas posições básicas do corpo na relação com o espaço a fim de garantir a
construção de um pensamento coreográfico. Este aluno repete várias vezes até adquirir
uma idéia básica da coreografia. No início, a relação entre o desejo de fazer a coreografia
e a condição técnica necessária para aquela realização aponta níveis diferentes na
apreensão desta nova dança. Ao longo da prática de ensaios, a sensação de
descompasso diminui.
A abordagem dinamicista (Alicia Juarrero (1999), Esther Thelen e Linda Smith (1994),
entre outros) gerada dentro das Ciências Cognitivas aponta um estudo teórico que nos
mostra que o conhecimento se dá com e no corpo, sendo a ação, a forma primordial da
cognição.
21
2 corpo – ambiente – cena – contemporaneidade.
Até esse ponto, chamamos muita atenção para uma prontidão corporal na relação
com o espaço/tempo a fim de organizar no espaço da cena experimentos que apontam
outras possibilidades de construção cênica a partir da escuta do corpo. Existem aqui duas
questões importantes que devem ser esclarecidas: qual a idéia de corpo que defendemos
nesse trabalho e sobre que construção cênica estamos falando.
Vamos iniciar respondendo a primeira questão. Aqui, o corpo é entendido como um
tipo de organização que processa diferentes informações. Outro ponto é que qualquer
corpo ocupa um espaço numa determinada temporalidade. Este corpo no tempo, aprende
a negociar em diferentes instâncias no ambiente que lhe couber. A esta altura, podemos
perceber que para cada pessoa que conhecemos, existe um corpo. O neurologista
Damásio examina planos de uma construção criados em torno de uma necessidade:
Quando descobrimos de que somos feitos e como somos construídos, vislumbramos
um processo incessante de construção e demolição, e percebemos que a vida está à
mercê desse processo ininterrupto. Como os castelos de areia que construíamos
quando crianças, ele pode desmoronar. É espantoso que contemos com um sentido
do self, que tenhamos – a maioria, ou alguns de nós – uma continuidade de estrutura
e função que constitui a identidade, algumas características estáveis de
comportamento que denominamos personalidade. É verdadeiramente espantoso, que
seja eu e que você seja você. (2000:189)
Podemos perceber uma vulnerabilidade do corpo na sua relação com o meio ambiente
em que ele se percebe envolvido. Existe sempre uma interação do corpo, com o que está
dentro e fora dele. Nesse sentido, o termo melhor a ser empregado é “contaminação”.
Concordamos com as Professoras Doutoras em Comunicação e Semiótica Christine
Greiner e Helena Katz que entendem o corpo como sendo um contínuo entre mental,
neuronal, o carnal e o ambiental. Elas lembram da impossibilidade de pensar em corpo
sem ambiente pelo fato de ambos serem desenvolvidos em co-dependência.
O corpo é produto de inúmeros acordos entre diferentes informações com o ambiente
e transfere esse seu jeito de acontecer para outras instâncias de seu funcionamento. Ou
seja, a ação criativa de um corpo no mundo recria os modos que o produziram como uma
onda que chega e parte, qualificada por favorecer e quebrar contatos. Retomando Greiner
e Katz:
22
Os processos de troca de informação entre corpo e ambiente atuam, por exemplo, na
aquisição de vocabulário e no estabelecimento das redes de conexão. Há algumas
evidências em teoria de sistemas dinâmicos de que o ato de aprender um movimento
implica em acoplamento entre sistemas de referência que vão mudando gradualmente
de moldura. (2002:94 e 95)
Autores (Thelen e Smith, 1993) que investigam os sistemas dinâmicos1, consideram
as ações mentais e os atos comportamentais como processos emergentes e
comprometidos com os diversos contextos em que estão inseridos.
Uma vez que os processos de contaminação com o mundo são co-evolutivos, corpo e
ambiente, não apresenta uma relação causal unilateral. Um contamina o outro.
Quanto à segunda pergunta que diz respeito à construção cênica, há muitos pontos
importantes:
1)Esta construção lida com um fazer preocupado com as relações contemporâneas, numa
investigação contínua que busca no corpo confrontos entre o ser, o fazer do ser e as suas
interações.
2)Para este tipo de construção a arte não é assumida como um suporte para alguma
coisa, mas incorporada como uma necessidade de existência. É um modo de vida, um
caminho para se relacionar com o mundo. É uma escolha.
3)Estas construções cênicas podem ser vistas como coreografias quando lida com
estruturas estáveis ou eventos performáticos quando as soluções motoras não partem de
estruturas dadas a priori. Basicamente, o processo de construção passa por duas fases:
Para começar, uma preparação que envolve muitos estudos. Sem preparação geralmente
uma coreografia torna-se medíocre. Mas é preciso observar que não se trata de
estabelecer uma forma. Tem a ver com testar, organizar, arrumar, “limpar”. E uma
segunda fase que é o nascimento do trabalho quando este estréia. É o momento que
escolhemos para compartilhar publicamente uma idéia com outros. Estas coreografias
são obras abertas, isto é, mesmo depois de sua estréia elas continuam em transformação
e mutação.
4)Entre os papéis de criador e intérprete existe um espaço que cada vez mais apresenta
seus limites borrados.
1 Os sistemas dinâmicos partem do estado das ações no tempo presente. Questionam conceitos como os de
representação, categoria e matrix. Agrupam pesquisadores como Robert Port, Timothy Van Gelder, Esther Thelen e Linda Smith, entre outros.
23
3 ação.
A escuta do corpo pede por uma abordagem técnica que é construída na relação do
corpo com o meio ambiente a partir de intervenções práticas. Essas intervenções são
ações. Aqui, ação pode ser entendida como variações que invadem nossa percepção no
instante em que o corpo precisa criar soluções no espaço. Estas soluções nos levam a
descobrir outras possibilidades de organizar o corpo no espaço. A crítica de dança Helena
Katz, na sua tese de doutorado cita o cientista e filósofo norte-americano Charles Sanders
Peirce quando este fala de uma razão criativa em permanente estado de crescimento nas
descobertas de outras soluções que interagem no corpo quando este cria a necessidade
de se descobrir outras formas:
Peirce nos fala da razoabilidade, nome que dá para uma espécie de “razão criativa”,
encontrável na natureza humana. Uma razão em permanente estado de crescimento,
que não se confunde com o racionalismo, pois inclui os aspectos afetivo e dinâmico.
O ideal dessa razoabilidade há de se cumprir, independente de uma possível falência
da espécie humana. Outras formas de inteligência levariam esta tarefa adiante neste
Universo que é bem maior do que o homem. Katz (1994:84)
Nesta ação, o movimento se realiza por operação deste tipo de razoabilidade. Um
ambiente criativo e em constante modificação. A ação do movimento é uma razoabilidade
que se faz concreta, enquanto resultado do corpo em se empenhar para a sua
continuidade.
Inserido neste viés, o movimento pode ser decifrado como a matriz cinética do
pensamento do corpo. A hipótese de que o corpo, tal como o cérebro, também possui
um pensamento, permite que se desloque a ênfase usual do entendimento da dança.
Pensamento, aqui, deve ser entendido como uma ação movida por um propósito. Katz
(1994:84)
Não existe ação que não esteja ligada a um propósito. O propósito é muitas vezes o
da ação do corpo e não relativo a algo externo. Dança, nesse contexto, é entendida como
um ambiente que interage entre diferentes questões provocadas por necessidades que o
corpo cria em relação a si mesmo. O corpo pode criar coreograficamente a partir de
instruções. Estas instruções quando invadem o corpo sofrem variações que dependem de
uma coerência estabelecida entre o momento de uma determinada ação, o modo como
24
provocamos esta ação no corpo e a nossa percepção do espaço que está no entorno de
toda esta ação.
Por tudo isso, pensar a ação é uma questão básica para qualquer pessoa que
trabalha com dança. No caso de quem coreografa, este fato se torna ainda mais
imperativo.
Um foco no momento em que criamos é averiguar como determinados padrões
surgem no ambiente a partir de questões que lançamos para nós mesmos. Tal
provocação, de alguma forma cria no corpo uma atitude diferente em relação ao espaço.
Esta atitude traz uma prontidão no corpo que podemos entender como um estado
corporal gerado por aquela ação.
Este estado transforma o corpo em algo diferente, tanto para o ambiente como para
nós mesmos. Não é mais o corpo que levantou, caminhou e escovou os dentes. O corpo
agora tem uma tensão diferente. Este estado corporal está interligado num fluxo de
informações entre diversos estágios e níveis de diferentes sensações e percepções. O
corpo, neste momento, cria uma necessidade diferente em relação ao tempo e ao espaço.
A partir de comandos precisos estabelecemos ignições no corpo. Elas são provocadas
pela própria necessidade estabelecida entre uma idéia e o pensamento de um corpo.
Neste procedimento, alguma coisa é construída. No processo de construção cênica, cada
ação está carregada de diferentes sensações, percepções e emoções. Nesse diálogo,
uma idéia vai criando forma no espaço, gerando novas ignições no corpo, que estão
contaminadas por aquelas sensações, percepções e emoções.
Vamos iniciar falando de um entendimento sobre sensação. Varela, Thompson e Rosh
definem:
A sensação agradável, desagradável ou neutra - surge a partir do contato. Toda
experiência tem uma sensação – ela é também um fator onipresente. A sensação tem,
como base, um dos seis sentidos. No momento da sensação a pessoa fica, na
realidade, perplexa com o mundo – em linguagem fenomenológica, poderia se dizer
que somos lançados no mundo. (2003:124)
Sentimentos como medo, impaciência, vontade, insegurança, disciplina, raiva,
autonomia, dependência, frustração, alegria, surgem na medida em que criamos. É
nestes diferentes estados corporais que o corpo cria intervenções no espaço, que agora
chamamos de ações.
Neste ambiente complexo construímos danças.
25
O contexto criativo é este estado geral de ações que irá produzir movimentos. Neste
processo muitas vezes não sabemos se o que surge são movimentos de dança. De
qualquer modo, quando caminhamos para o ensaio, existe uma intenção de transformar
qualquer ação em dança. Esta intenção gera uma necessidade diferente na nossa relação
com o corpo e conseqüentemente, muda o nosso jeito de agir e observar.
A professora e pesquisadora dinamicista Alicia Juarrero apresenta uma possível teoria
da ação abordando o movimento como conseqüência de todas aquelas causas.
Uma seqüência de dinâmicas neurais crescentemente diferenciadas incorporando
pensamentos, sentimentos, emoções, e outras coisas também se auto-organizam. (...)
Quanto mais complexo o meio ambiente, mais complexo é o organismo e seu
potencial comportamental e vice-versa. Os dois envoluem. (1999:178)
Este entendimento é resultado da interatividade do corpo com o ambiente naquelas
condições. Uma possibilidade de entendermos o que acontece é usarmos o conceito de
evento. Entender a causa como evento significa que a causa não tem somente uma
razão. Significa que são várias as causas e que elas ocorrem de forma eficiente naquele
momento. Isto é, ela é efetiva naquela circunstância singular. Greiner (1998:23):
sistemas em sua maioria são abertos, sofrem perturbações através do meio ambiente
e, por sua vez, são capazes de perturbar o ambiente. Tais perturbações, quando
percebidas como unitárias são chamadas de eventos. Os eventos em cadeia são os
processos. (Greiner,op.cit:38)
Entender esta atitude como um estado corporal gerado por determinados padrões de
movimentos, colabora para percebermos que neste fazer coreográfico contemporâneo a
construção de uma dança não está fechada em descobertas de passos ou movimentos.
Cabe ao coreógrafo descobrir como acionar determinados comandos no corpo de seus
intérpretes, para finalmente alinhavar entre a idéia lançada na criação coreográfica e
aquilo que surge dos corpos dos bailarinos no momento da ação.
A idéia é estar discutindo na estrutura coreográfica, possibilidades de encontrar outras
resoluções de ações na própria atuação coreográfica a partir de um fazer que é gerado
por um estado corporal. Este estado transforma o corpo em algo diferente, tanto para o
ambiente como para nós mesmos. O corpo agora tem uma prontidão diferente.
O desejo nesta pesquisa é discutir possibilidades de organização no corpo e no
espaço provocadas por esta atitude corporal em relação à cena. Entendemos que esta
atitude corporal estabelece uma prontidão no corpo provocada por uma necessidade que
26
a princípio não existia. A proposta é apontar em alguns trabalhos coreográficos, ligados à
contemporaneidade, a consideração na cena deste estado corporal como um agente
transformador da partitura original. Isto significa que neste pensamento coreográfico a
cena sofre variáveis, quer dizer, agrega possibilidades de mudanças e nuances na
performance cênica.
Um exemplo é o espetáculo “Cães”2 que sempre em todas as suas apresentações
mostrou necessidade de interagir e resolver duas questões:
-entender no pensamento coreográfico proposto aquilo que é lei, que apesar das
circunstâncias, deverá sempre ser respeitado.
-perceber aquilo que se organiza na estrutura do pensamento coreográfico como
possibilidade, entender a necessidade do momento e interver no espaço de acordo com a
partitura proposta, que neste caso sofre variações sobre o mesmo tema.
Trata-se de um pensamento coreográfico que se organiza interagindo entre duas
maneiras de abordagem coreográfica. Uma é aquela que lida com uma partitura pré-
estabelecida e a outra, uma partitura que se cria pela necessidade de inventar a partir da
circunstância do momento. É um diálogo entre o pré-estabelecido e aquilo que surge ao
acaso na relação de necessidades que à princípio, não estavam previstas.
O corpo se organiza repetindo e inventando. Aqui, o pensamento coreográfico se
envolve com a idéia de que o intérprete lida com dois focos na sua intervenção cênica.
Um deles é de se trabalhar com a repetição de determinadas células coreográficas
construídas a partir de instruções lançadas pelo coreógrafo. Estas instruções são
compartilhadas entre todos os intérpretes a fim de estabelecer um diálogo comum entre
todos os envolvidos na cena. A partir do momento em que estas soluções são construídas
fica perceptível que cada intérprete resolve de modo diferente. Este fato é decorrência de
que cada intérprete é um corpo, com suas especificidades. Apesar de todos estarem
falando de um mesmo assunto, na cena ficam nítidas suas diferenças. Cada corpo capta
de um jeito particular as instruções lançadas pelo coreógrafo. A repetição está ligada à
necessidade de se buscar nesta construção coreográfica um discurso coerente. Um
encadeamento de idéias, articuladas de forma competente no corpo no instante da cena e
compartilhada entre os envolvidos da performance. Quanto mais repetimos determinadas
2 Cães: Espetáculo de dança. Estréia em maio de 2001, no Centro Cultural Vergueiro, na sala Paulo Emílio.
Coreografia, concepção e direção: Helena Bastos. Intérpretes-criadores: Helena Bastos e Raul Rachou. Este espetáculo foi apresentado em São Paulo (Centro Cultural Vergueiro, C.Cultural B. B.), Florianópolis (Tubo de Ensaio), Belo Horizonte(FID/2003), Caxias Do Sul(Casa de Cultura), Uberlândia(Palco Aberto), Araraquara (Teatro Municipal), além de outros espaços.
27
instruções, neste fazer contínuo, mais criamos possibilidades de acionar outros acordos
no corpo.
O segundo foco está dirigido à possibilidades de inventar a partir de improvisações. A
partir de repetições, determinadas células coreográficas aprimoram certas resoluções do
corpo no espaço. A idéia é a de que neste aperfeiçoamento um estado de prontidão se
refina enquanto percepção do intérprete em relação ao ambiente que ocupa. O intérprete,
nesta conduta cênica, exercita diferentes níveis de sua percepção. Exercitar neste
propósito, colabora na construção de um corpo inteligente e criativo, isto é, um corpo que
resolve com competência e de formas variáveis diante dos diferentes problemas e
desafios que uma cena propõe a um intérprete. Quando no fazer se instauram
possibilidades de outras soluções do corpo, diferentes daquelas inicialmente colocadas,
surge a oportunidade para o intérprete improvisar e inventar. Neste ambiente direcionado
por uma idéia, vão-se formalizando outros acordos no espaço sobre uma mesma
coreografia.
Na medida que dançamos nesta estrutura coreográfica fica mais claro o papel entre
parcerias que vão se estabelecendo entre criador e intérpretes. O intérprete cria e resolve
na cena aquilo que está colocado pelo coreógrafo. Porém, como o espetáculo tem uma
estrutura que possibilita novos acordos a cada apresentação, o papel deste intérprete se
modifica. A obra dependerá muito dos discernimentos deste artista. Um intérprete-criador
com condições de resolver e inventar na cena a partir do que ele capta enquanto uma
possibilidade entre outras. Este intérprete cria e resolve necessidades de um instante.
Estas mudanças surgem em diferentes locomoções, variações no tempo, entre novos
contatos físicos ou com outras ocupações no espaço. Às vezes, o novo acontece inclusive
a partir de “erros” na cena. Neste ponto, percebemos que o intérprete se torna um co-
criador do coreógrafo. É ele, que irá apontar novas soluções neste ambiente coreográfico.
Ele transformará a obra.
A relação entre intérprete e criador exige muita confiança entre as partes envolvidas.
A fronteira entre criador e intérprete é tênue. Nesta relação criativa, se houver deslizes,
dependendo do que for, seja de que lado for, pode ruir um pensamento coreográfico por
inteiro.
Quando descrevemos este ambiente coreográfico, tentamos explicitar que para
qualquer ação existe uma intenção conectada com algum propósito. Não existe
pensamento deslocado de propósito. O nosso exemplo é o fazer coreográfico. O ator e
28
diretor Luís Otávio Burnier cita o coreógrafo Laban3 e o diretor Grotowski4. Ambos
concordavam que toda intenção é decorrência que se manifesta muscularmente no corpo.
A intenção se configura, portanto, tanto para Grotowski como para Laban, como algo
de físico e corpóreo, de muscular. É importante sublinharmos que toda intenção é filha
de uma oposição ou contradição que se manifesta muscularmente no corpo. Por
exemplo: vemos uma pessoa muito bela, queremos tocá-la, mas ainda não podemos.
Temos a intenção do toque. Se essa vontade for aliviada rapidamente, ou seja, se, no
momento em que o desejo corporificado de tocá-la se manifestar, ele for realizado,
essa intenção, agora “aliviada”, não existirá mais. Mas se, ao contrário, ela persistir,
não for aliviada, então provavelmente guiará a maioria das ações realizadas durante o
encontro. Um detalhe importante tem a ver com o termo corporificado que usamos. Só
podemos sentir algo na medida em que coisa sentida se transformar em corpo, em
micro ou macrotensões musculares, e temos acesso a esta informação por meio de
um dos nossos sentidos, no caso específico o tato, não o da pele, mas o tato interior
dos músculos. (2001:39)
Nesta escuta do corpo, dança é entendida como um ambiente que se constrói a todo
instante a partir de soluções que o corpo define e organiza no espaço do tempo real. De
alguma forma, o estado corporal estabelecido a partir de uma intencionalidade de ações
provoca outras necessidades de padrões de movimentos que sofrem variações. Estas são
recorrências do momento em que se configura a ação no espaço. Consideramos que
estas variações são negociações importantes que devem ser relevadas na construção
coreográfica.
Este estado corporal, gerado pela escuta, provoca uma prontidão cênica facilitando
incorporar outros diálogos, que, à princípio, não estavam previstos. Este ambiente
coreográfico se constrói num fluxo de informações entre diversos estágios e níveis de
diferentes sensações e percepções. O corpo, neste momento, cria uma necessidade
diferente em relação ao tempo e ao espaço. A partir de comandos específicos
estabelecemos ignições no corpo. Elas são provocadas pela necessidade entre uma idéia
e o pensamento daquele corpo. As ações que resultam neste ambiente repleto de
possibilidades entre uma escolha, são conquistas do intérprete que nunca deve esquecer
um princípio: interagir no espaço da cena perseguindo sempre, coerência. Esta acontece
quando construímos, no fazer, relações fiéis com o pensamento da obra. Não quer dizer
3 LABAN,Rufolf (1879-1958): Dançarino, coreógrafo, maître de ballet e teórico austro-húngaro alemão.
4 GROTOWSKI, Jersy : Diretor de teatro polonês.
29
que existe uma camisa de força, na contenção de determinados valores nesta construção.
Nossa idéia é a de que estes fazeres se complementam nas necessidades e percepções
do modo como cada corpo envolvido neste percurso cênico se percebe interligado. Estas
interligações também agregam outras necessidades impostas em diferentes momentos da
cena pela obra. O desafio é perceber na coreografia o que está para se reinventar e o que
está para permanecer. A identidade existe e precisa ser preservada, porém ela se
transforma e é sempre compartilhada.
Estes experimentos surgem enquanto ressonâncias de um trabalho sistemático e
criativo direcionado para a pesquisa de linguagem cênica de dança contemporânea que
dialoga com o pensamento de que nossas relações e percepções com o mundo
dependem de nossas experiências. Um mundo que se constrói em rede. Um mundo
habitado por corpos que se organizam de forma entrelaçada em uma densa rede
emaranhada de 100 trilhões de conexões em constante mudança.
O neuropsiquiatra Dr. John Ratey5 comenta que estas conexões guiam nossos corpos
e comportamentos, mesmo quando cada pensamento que formulamos e cada ação que
realizamos modificam fisicamente seus padrões.
À medida que o mundo faz seus pedidos e exigências, muitas das conexões são
recrutadas para executar serviços específicos: ver, balbuciar, recordar, arremessar
uma bola. As conexões que não são usadas acabam sendo desbastadas. Na ausência
da estimulação apropriada, uma célula cerebral morrerá, mas ofereça-se-lhe uma dieta
de experiências enriquecidas e suas sinapses neurais germinarão novos ramos e
conexões.
Os neurônios que sobrevivem comunicam-se mediante rápidas estimulações por meio
de sinapses. Quanto maior for o potencial excitatório que ocorre por meio de uma
conexão específica, mais forte se torna o caminho. Milhões desses câmbios ocorrem
continuamente em todo o cérebro. Algumas conexões transmitem e recebem sinais
com muita freqüência, outras só ocasionalmente, e as mensagens mudam de forma
constante. A rede exata de conexões entre neurônios num dado momento é
determinada por uma combinação de constituição genética, meio ambiente, soma de
experiências que impusemos aos nossos cérebros e a atividade com que a estamos
bombardeando agora e a cada segundo no futuro. O que fazemos de momento a
momento tem enorme influência sobre o modo como a rede continuamente se refaz.
(2002:36)
5 John Ratey é professor adjunto da clínica psiquiátrica da Escola Médica de Harvard. Neuropsiquiatra que se
destaca no campo da pesquisa e métodos de tratamento.
30
4 O silêncio, gerando percepções.
A questão do silêncio na escuta do corpo, gera um exercício fundamental de auto-
percepção das interações desse corpo com o ambiente que o invade, conforme
apontamos inicialmente neste trabalho. Nesta conduta cênica, assumimos o silêncio como
estratégia para relacionamento com um ambiente repleto de possibilidades, em que uma
escolha acarretará a exclusão das outras. Este silêncio não é aquele que sugere o senso
comum: um ambiente sem sons ou ruídos. É um silêncio que esbarra na imobilidade. Uma
imobilidade que, vista de fora, parece sinônimo de não movimento, mas interiormente,
quem participa da cena, vive neste instante muita turbulência. Esta turbulência funciona
como instantes neste ambiente coreográfico, em que são colocadas para o intérprete,
necessidades de escolha - um caminho entre vários - apontadas nesta paisagem difusa.
O silêncio do movimento, aproxima-se do que propunha o músico John Cage. É uma
impossibilidade diante da presença de um corpo.
Trazer os silêncios nesta escuta do corpo, acentua um nível de concentração para o
intérprete que se faz necessário neste ambiente, uma vez que ele selecionará uma
intervenção no espaço que, a priori, será construída a partir da sua percepção. Esta está
comprometida na referência daquilo que foi possível de ser captado pelo intérprete na
fluência da coreografia e que uma ação será requisitada.
O silêncio até aqui mencionado, esgarça o tempo na cena como uma pausa
suspensa no espaço. Nesta pesquisa, é uma necessidade imposta aos intérpretes pelo
coreógrafo. Os intérpretes precisam discernir no momento que dançam um modo,
resultante de uma escolha, e vivenciar uma determinada célula coreográfica neste
ambiente de dança. Dependendo das relações impostas pelo coreógrafo, os intérpretes
conviverão com muitas possibilidades nesta atuação: pode ser um tempo mais lento para
resolver os percursos, pode ser uma textura corporal diferente ou a percepção de outros
modos de locomoção. Existem implicações no modo da atuação deles. Determinadas
ações sofrem variações sutis no instante em que os envolvidos (intérpretes) se
relacionam no ambiente desta dança.
Os discursos promovidos aqui, agregam na estrutura coreográfica a importância de
autonomias entre aqueles que ali habitam. Apesar da existência de um coreógrafo, é o
intérprete que estará na cena. Dependendo do dia, do humor e da concentração do
intérprete, a obra terá resoluções diferentes. O desafio é uma equalização entre o
pensamento da obra proposta pelo criador e a autonomia com que o intérprete compõe.
31
Muitas ações são descobertas no momento em que os intérpretes dançam. Elas são
conseqüências de relações propostas neste pensamento que estão implícitas no modo
como os intérpretes convivem em uma cena. Cabe a eles, resolver no corpo, o problema
colocado pelo coreógrafo. Existe uma vulnerabilidade, tanto do intérprete, quanto do
coreógrafo e da obra. Todos criam um nível de dependência entre si. Todos se
transformam em parceiros.
Apesar desta parceria a vulnerabilidade nos traz uma sensação de vazio. Este vazio
não se relaciona com um ambiente oco, sem voz ou possibilidades de arranjos. É o
contrário. Um ambiente que se mostra repleto de possibilidades de escolhas. O vazio é a
sensação de percebermos que precisamos escolher um caminho entre muitos. Sem a
presença do vazio é impossível haver movimento. Existe aqui uma idéia de exclusão.
Neste momento, podemos nos referir metaforicamente ao mundo pós-atômico e à Física
Quântica com o princípio da exclusão de Pauli. Este princípio foi descoberto em 1925 pelo
físico teórico Wolfang Pauli conforme nos lembra o físico teórico Stephen Hawking:
O princípio da exclusão de Pauli afirma que duas partículas semelhantes não podem
existir no mesmo estado, ou seja, ambas não podem ocupar a mesma posição e ter a
mesma velocidade, dentro dos limites dados pelo princípio da incerteza. (1997:89)
De acordo com Hawking, Pauli era uma pessoa arquetípica. Dizia-se dele que sua
simples presença na mesma cidade fazia as experiências darem errado. A teoria quântica
não prevê o estabelecimento de uma linha clara entre ações que são “possíveis” e ações
que são “impossíveis” pelo fato de que este mundo funciona com regras muito diferentes
das quais estamos acostumados a observar no universo visível, macroscópico, a que
temos acesso. Penrose (apud Greiner) esclarece:
Quando a mecânica clássica vê uma partícula se deslocando ao longo de uma linha
reta, ela pergunta a posição X e a velocidade V. Na Quântica, a partícula aparece
descrita por amplitudes de probabilidade. Ao estudar os acontecimentos, X está aqui
ou x está lá. Há probabilidades de achar a tal partícula em diversos lugares. Há outra
exatidão, diferente da que estamos acostumados no mundo clássico. Não se é capaz
de determinar simultaneamente a posição e a velocidade das partículas subatômicas,
como explicou Werner Heisenberg (1901-1976) no Princípio da Incerteza. Por isso se
diz que a Quântica é uma teoria probabilística. A sua “carne” está nas regras e na
aplicação dessas regras a problemas específicos e não na compreensão dos
mecanismos físicos que daí decorrem. (1988:48)
32
Aprendermos a direcionar nossa conduta cênica nesta relação com o ambiente
assumindo intervenções como probabilidades naquele contexto que re-educa e amplia
entendimentos na aplicação dessas intervenções. Organizar o corpo tendo como
referência este mundo quântico é assumirmos a complexidade que a dança
contemporânea o é, a um só tempo, ordem e desordem.
Somos responsáveis pelas nossas intervenções. Desejamos que nossas escolhas
sejam corretas, precisas, satisfatórias. Neste sentido, um medo é inevitável, pesa com a
responsabilidade de nossas intervenções. Não existem garantias de sucessos. A
estratégia é a de continuarmos nos exercitando. Quanto mais nos exercitamos, mais
acordos são disponibilizados neste aprendizado. Quanto mais experimentamos, mais
treinamos o corpo a digerir noções básicas que lidam com seleção, abdicação,
construção, invenção e configuração. Sempre é um aprendizado a partir do qual
resolvemos, no espaço, a escolha adequada entre várias possibilidades de direções. No
nosso caso, isso acontece dançando.
33
5 Partituras/Notações... Ilhas:
Articulações que promovem diferentes tramas sobre um ambiente coreográfico.
Na elaboração e criação de uma nova coreografia implicada nesta escuta do corpo, de
alguma forma sempre estamos no deparando com questões ligadas a limite e liberdade. A
Profa. Dra. Cecília Almeida Salles em Comunicação e Semiótica fala que o conhecimento
das leis seria a verdadeira liberdade:
Músicos, arquitetos, pintores, poetas ou quaisquer outros artífices não podem ter
somente suas próprias técnicas sem estudar primeiro as leis básicas de suas
respectivas artes. Inevitáveis são as regras em que eles devem, em última instância,
basear a construção de suas técnicas. (1998: 63)
A criação de uma coreografia vai se dando por meio de uma seqüência de ações e, ao
acompanharmos o processo de perto, percebemos determinadas estratégias que surgem
sistematicamente no modo de o coreógrafo organizar e encadear uma determinada
coreografia. Nesta construção contemporânea, uma estratégia que aparece no
desenvolvimento de um novo trabalho é a partitura corporal. A partitura acontece como
um conjunto de instruções direcionadas pelo coreógrafo a seus intérpretes. Existe um
problema e este é compartilhado entre todos que participam da cena. Cada intérprete terá
como tarefa descobrir no corpo, um jeito específico de discorrer sobre o problema
proposto pelo coreógrafo na cena.
Existem partituras com maior ou menor grau de precisão mais ou menos abertas a
uma intervenção criativa por parte do intérprete. Um bom exemplo é a música no período
barroco, por exemplo, em Vivaldi, onde vários parâmetros do projeto composicional –
andamentos, ornamentações, dinâmicas - ficavam relativamente em aberto na partitura e
pressupunham uma atitude ativa dos intérpretes no sentido da realização.
O procedimento de se criar a partir de determinadas instruções colabora para
entendermos, na cena, relações que resvalam numa compreensão diferente entre
identidade, limite, autonomia, sincronia, diversidade, coletividade, simultaneidade,
precisão e liberdade. Cabe ao intérprete trazer respostas em relação ao que é proposto
pelo coreógrafo, porém estas respostas sofrem variações. Estas se correlacionam na
maneira como nos mergulhamos no corpo que depende da forma que a instrução é
solicitada, da maneira que o artista entende a solicitação do coreógrafo e da maneira com
que diferentes relações vão se configurando e conseqüentemente estruturando este
34
ambiente. Katz propõe assumir a dança em um trânsito permanente entre Biologia e
Cultura, uma vez que a possibilidade de dançar se constrói através de sensório-motor do
corpo que, como qualquer outro organismo se transforma pela informação que agrega.
Dança representa o resultado de um conjunto de informações que materializam-se
como corpo, mas não como instrução codificada no seu DNA. O DNA codifica
instruções para a construção e manutenção de organismos vivos e as idéias de corpo
que um corpo produz ou recebe parecem resultar de processos análogos. Se a dança
acontece de informação que encarna no corpo, há um acordo que permite que um
corpo aprenda a realizar movimentos que vêm de fora, mas que ele, através do próprio
aprendizado, se torna um reprodutor de movimentos. (2002:85)
Não é à toa que falamos em provocar no corpo um estado de prontidão nesta
construção cênica. Neste fazer, perseguimos possibilidades de intervenções que
disponibilizam diferentes níveis de percepção em relação ao ambiente que nos envolve.
Greiner fala desta relação com o meio ambiente também como uma questão de
sobrevivência:
Mas, para evitar os perigos e garantir a sobrevivência, é preciso sentir o meio
ambiente (cheirar, saborear, tocar, ouvir, ver) a fim de construir respostas eficientes.
Daí a conclusão de Damásio: Percepção é tanto atuar sobre o meio ambiente como
receber sinais dele. (1998:77)
O corpo aprende a partir de experimentos. Cada aprendizado provoca no corpo uma
rede específica de conexões. Provocar no corpo situações que o obrigue a descobertas
de soluções que a priori são desconhecidas é dimensionar novas referências na relação
com o espaço que ele ocupa e vice-versa.
Uma questão fundamental nesta interlocução entre criador e intérprete é a da
necessidade de uma profunda compreensão sobre aquilo que é solicitado. E esta surge
do experimento. Este passa pela repetição de uma mesma partitura, muitas vezes. Neste
movimento contínuo e repetitivo temos possibilidades de entender os diferentes níveis das
relações implicadas neste fazer. O diretor e produtor teatral Peter Brook comenta que a
tarefa do ator é extremamente complexa neste processo:
Ele só encontra o caminho quando percebe que a presença não se opõe à distância.
Distância é o compromisso com a significação total; presença é o compromisso total
com o momento vivo; as duas caminham juntas. Por isso, o ecletismo absoluto nos
exercícios durante os ensaios – para desenvolver o ritmo, a capacidade de escutar, o
tempo, o tom, o pensamento de equipe e a consciência crítica – é muito valioso, desde
35
que nenhum dos exercícios seja considerado um método. O que podem fazer é
aumentar a percepção – física e espiritual – do ator em relação às questões da peça.
Se o ator senti-las verdadeiramente como suas, terá uma necessidade inevitável de
compartilhá-las – necessidade de público. Desta necessidade de um vínculo com o
público origina-se outra necessidade. Igualmente forte, de absoluta clareza. É esta
necessidade que finalmente produz os meios. É ela que forja um vínculo vivo com a
matriz do poeta, que é por sua vez, o vínculo com o tema original. (1994:96)
37
1 Dança e Educação.
De onde surgiu a idéia e a escolha da grade teórica.
Recentemente, no Brasil, o universo da educação tem se constituído como uma
estratégia de sobrevivência para a prática de muitos artistas.
Muitos artistas resolvem conciliar a sua prática com uma trajetória acadêmica, na
tentativa de continuar ampliando as investigações ligadas ao conhecimento. A
necessidade de gerar mais informações exige um aprendizado que estabeleça conexões
entre vários “saberes”. Neste ponto, uma base de sustentação para essa pesquisa está
nas ciências cognitivas que o filósofo Jean-Pierre Dupuy6 apresenta-nos da seguinte
forma:
As ciências cognitivas apresentam-se de bom grado como a nova retomada, por parte
da ciência, das questões filosóficas mais antigas acerca da mente humana, sua
organização, sua natureza, as relações que ela mantém com o organismo (o cérebro),
com outrem e com o mundo. Mas a identidade do que se dá como ciência da mente
permanece profundamente filosófica. Essa ciência que fala em nome das ciências e
das técnicas que compõem a área (mais uma vez, principalmente as neurociências, a
inteligência artificial, a chamada psicologia cognitiva e a lingüística), e às quais ela
oferece esse suplemento de alma (ou de espírito) que as reúne umas às outras, é, na
realidade, uma filosofia. (1996: 114)
Aos poucos fomos percebendo que as ciências cognitivas eram portas de vai e vem
que abriam possibilidades de diálogos com o universo da dança entre diferentes
universos de conhecimento como a Filosofia, a Sociologia, os Estudos Culturais, a
Antropologia, a Neurociência e a Psicologia. Através das ciências cognitivas criamos
relações para um novo entendimento de corpo.
Para muitos pesquisadores de arte, a partir dos anos 60, inicia-se um diálogo entre
vários pensamentos artísticos reconhecido como fenômeno da pós-modernidade. Este
fenômeno é percebido não apenas em relação às artes cênicas como dança e teatro, mas
envolvendo artes performáticas, artes visuais, vídeo-arte e outras tecnologias. O
entendimento de corpo, nos últimos 20 anos, transformou-se. Não é visto apenas, como
um “instrumento” da arte, quer dizer, um meio para alguma coisa. Existe a necessidade
6 Dupy é filósofo, dirige o Centro de Recherche en Épistémologie Appliquéé (CREA), da Escola Politécnica de
Paris, onde é também professor.
38
de um diálogo com outros universos de conhecimento como aqueles dos Estudos da
Cultura e das Ciências Cognitivas. Neste sentido, é preciso reconhecer as novas
dramaturgias do corpo nas quais, níveis diferentes de descrição estão inteiramente
entrelaçados, do biológico ao cultural.
Nos últimos 20 anos, termos como “embodied” e “embedded mind”, “situated mind” e
“situated cognition” aparecem com mais freqüência, fundamentando a necessidade de
que os processos cognitivos precisam ser estudados em relação a seus contextos
biológicos, culturais, históricos e sociais.
Nesta perspectiva surge uma nova síntese: o processo cognitivo passa a ser tratado
como forma de comunicação. O corpo se constitui como a mídia dos processos em curso
e a arte como uma relação co-evolutiva entre corpo e as realidades construídas em
diferentes ambientes a partir de conexões corporais. Na verdade, esta idéia foi
apresentada por Greiner e Katz no artigo “Corpo e Processos de Comunicação”7:
O objetivo desta comunicação é tornar-se uma aplicação do entendimento do corpo
como mídia e apontar para as mudanças necessárias na concepção de cultura, a partir
dos estudos interteóricos que dão suporte a essa proposta de tratamento do corpo.
No cruzamento de disciplinas como Filosofia, Psicologia, Biologia, Semiótica e
algumas vertentes das chamadas Ciências Cognitivas, a relação entre corpo e
ambiente ganha uma nova configuração, onde a ênfase está nas questões dos
processos de cognição que tenha como prioridade o trato da questão da informação.
Revê e sugere novas possibilidades de estudo da cultura como um processo
complexo, onde não se distingue de forma dual e absoluta interna e externamente,
cultura e não-cultura, sujeitos e objetos. Nesse mundo, o corpo se constitui com a
mídia dos processos em curso. (2001:65)
É a vontade de permanência e continuidade no mundo que nos proporciona a
necessidade de construir outro a partir de nós mesmos. Isso é possível pela razão de
habitarmos um mundo em que informações tendem a operar dentro de um processo
constante de comunicação e, nessa relação de trocas freqüentes, enquanto se
transformam, as informações vão também transformando o ambiente que ocupam.
Retomando a convivência do artista com a academia, outra evidência nesta pesquisa
é a de que o diálogo entre prática e teoria sempre foi um vetor determinante no trajeto
deste percurso que procura ressaltar o processo de contaminação entre dois sistemas: o
universo do mundo da ciência introduzido pela universidade e o outro, o universo artístico
7 Vol. III N2 – Dezembro de 2001. Revista Fronteiras - estudos midiáticos.
39
ligado à linguagem de dança. Neste sentido, a proximidade com ambientes que
perseguem uma reflexão entre um produto criado a partir das relações estabelecidas no
trânsito prático-teórico, sempre nos instigaram e influenciaram na construção de
percursos artísticos e conseqüentemente na elaboração de vários projetos artísticos.
Chegando a este ponto, na medida em que produzíamos novas coreografias,
sentíamos a necessidade de incorporar as novas idéias nos vários espaços de trabalho.
Entre estes, incluíamos os espaços destinados às aulas de dança, onde era possível
compartilhar com alunos parte dessas novas realidades apreendidas.
Nesta trajetória de construção, um encontro feliz: as idéias de Esther Thelen e Linda
Smith. De acordo com estas psicólogas e cientistas dinamicistas, ação e cognição eram
compreendidas numa mesma escala temporal.
Geralmente, a atitude estabelecida com o conhecimento é a de uma relação
cumulativa, isto é, o conhecimento é apreendido quando trabalhamos com a idéia de
organização de mundo numa escala hierárquica. Como se, inicialmente, precisássemos
conhecer para depois criar algum tipo de intervenção.
A pesquisadora de dança Cleide Martins8 comenta em sua tese de doutorado:
novas habilidades tomam forma num processo de ajustamento dinâmico criado pela
própria atividade exploratória. (2002:80)
Esta idéia vai de encontro à proposta da teoria dos sistemas dinâmicos. O
pensamento e o comportamento são construídos como padrões dinâmicos de atividades
que nascem enquanto necessidades de determinada ação a serem realizadas e das
relações intrínsecas do indivíduo no momento desta ação. Contudo, a estrutura
educacional está apoiada em determinados modelos que acabam entrando em choque
com esta estrutura de raciocínio. Sabemos que a educação é um processo inevitável.
Ninguém vive só. Viver é compartilhar e qualquer partilha se faz através de negociações.
Dessa forma, temos que aprender sempre no corpo estratégias inseridas nos contextos
em que vivemos e que lidam com permanência e continuidade. O problema é que o
sistema educacional, apesar de muitas reformas, tem a sua estrutura ainda calcada na
tradição grega. Muitos historiadores afirmam que com os gregos se originou a filosofia e a
ciência, isto é, aquilo que se convencionou chamar de pensamento ocidental. O
antropólogo Carlos Brandão afirma:
8 MARTINS, Cleide (2002). Improvisação Dança Cognição. Os processos de comunicação no corpo.Tese de
doutoramento defendida no Programa de Comunicação e Semiótica da PUC/SP.
40
O que se ensina e aprende entre os primeiros pastores, mesmo quando eles começaram
rusticamente a enobrecer, envolve o saber da agricultura e do pastoreio, do artesanato de
subsistência cotidiana e da arte. Tudo isso misturado, sem muitos mistérios, com os princípios
de honra, de solidariedade e, mais que tudo, de fidelidade à polis, a cidade grega onde começa e
acaba a vida do cidadão livre e educado. Esta educação grega é, portanto, dupla, e carrega
dentro dela a oposição que até hoje a nossa educação não resolveu. Ali estão “normas de
trabalho” que, quando reproduzidas como um saber que se ensina para que se faça, os gregos
acabaram chamando de “tecne” e que, nas suas formas mais rústicas e menos
enobrecidas, ficam relegadas aos trabalhadores manuais, livres e escravos. Ali estão
“normas de vida” que, quando reproduzidas como um saber que se ensina para que
se viva e seja um tipo de homem livre e, se possível, nobre, os gregos acabaram
chamando de teoria. Este saber que busca no homem livre o seu mais pleno
desenvolvimento e uma plena participação na vida da “polis” é o próprio ideal da
cultura grega e é o que ali se tinha em mente quando se pensava na educação.
(1981:36 e 37)
De acordo com Brandão, de tudo o que pode ser transformado, o homem educado
ainda é o grande desafio de todo esse processo. Comparava-se este homem educado a
uma obra de arte perfeita.
Nos primeiros tempos, mais do que filósofos ou matemáticos, os gregos foram
guerreiros, músicos e ginastas. Assim, mais do que jurídica ou científica, a educação
do cidadão livre era ética e artística (no pleno sentido que estas duas palavras
possuíam na “paidéia” grega), dentro de uma cultura pouco acostumada a separar a
verdade da beleza. Mais tarde, sob a influência de Sócrates e Epicuro é que a
educação começa a ser pensada como formadora de espírito. Por muitos séculos ela
aponta para a harmonia que existe na beleza do corpo (e a destreza para a luta) ao
lado da clareza da mente (e a fidelidade à pólis dos cidadãos livres). Mesmo no nível
da cultura letrada dos nobres, a civilização clássica não conservou sempre um único
modelo ou estilo de saber, logo, de educação. Ela oscilou entre duas formas de algum
modo antagônicas: a filosofia, cujo tipo dominante pode ser Platão, e a oratória
(retórica), cujo tipo dominante pode ser Isócrates.(1981:43)
Como seria possível construir um resumo dos princípios que orientaram toda a
educação clássica inventada pelos gregos? Ela sempre foi compreendida como um
grande percurso pelo qual a cultura da cidade é incorporada à pessoa do cidadão. Um
caminho de crescimento e formação a ser trilhado, cujo produto final é o adulto educado e
perfeito na relação com um modelo idealizado de homem. A idéia de que existe um
41
modelo perfeito que devemos alcançar, nos afasta de perceber o que a vivência de um
momento no seu tempo presente provoca, ensina e surpreende. A escola seja ela de que
modelo for, é um lugar provisório, num tempo provisório. A insistência de que todos
precisamos nos adequar a um mesmo modelo implica esquecer da condição de que
apesar de sermos todos humanos, há muitas diferenças. Nesse sentido, precisamos criar
possibilidades na escola de conviver com diferentes possibilidades de organização. Por
isso, precisamos trabalhar com outras idéias de temporalidade. Thelen e Smith trazem um
outro conceito de tempo, sugerindo o cruzamento entre diferentes habilidades cognitivas
como agir, aprender e desenvolver.
Os processos de perceber, agir e pensar não podem ser separados em camadas ou
níveis, porém pertencem a uma mesma escala dinâmica de tempo. (Thelen; 1994:74)
O que torna interessante este pensamento de tempo é que mudanças acontecem em
escalas de tempo diferentes. Nesta moldura, existe um reconhecimento de que o corpo
trabalha como um sistema e que diferentes instâncias se auto-organizam cada vez que
existe a necessidade de solucionar um problema. Por isso faz sentido pensar que, ação e
cognição se processam juntas, numa mesma escala temporal, e não hierarquicamente.
Quem primeiramente considerou a ação como formadora da cognição foi Jean Piaget.
Ele introduziu a relação das ações humanas no processo de conhecimento. No livro “Arte,
Mente e Cérebro”, Gardner fala deste pesquisador da seguinte forma:
A pesquisa de Piaget, na década de 30, deu duas viradas não antecipadas, mas,
mesmo assim, relacionadas. Para testar sua hipótese de que todo o conhecimento
deriva de ações humanas sobre o mundo, Piaget começou a investigar os sinais
primordiais da inteligência humana durante as primeiras semanas e meses de vida. E,
de fato, ao estudar atividades tão singelas quanto sugar e olhar, ele confirmou, para
sua satisfação, que os primeiros atos motores e discriminações sensoriais do bebê
constituem as manifestações mais precoces do intelecto.
Ao mesmo tempo, no entanto, Piaget não se contentou em meramente esboçar um
conjunto geral de estágios de desenvolvimento. Antes, ele queria sondar o
desenvolvimento do conhecimento em cada um dos principais domínios definidos
pelo pensamento ocidental – números, causalidade, tempo, geometria e similares.
Então não diferente do relojoeiro que pacientemente monta cada roda dentada no
instrumento, Piaget inaugurou um grande conjunto de estudos de “domínio
específico”, nos quais os estágios do conhecimento poderiam ser mapeados e seu
lugar localizado dentro da mente humana. Esses estudos documentaram que as ações
42
possivelmente ocorreriam “dentro da cabeça” - de fato, tais “operações mentais”
formam as molas mestras do que usualmente denominamos pensamento. (1999:22)
Reconhecemos a importância do trabalho de Piaget na introdução de que todo o
conhecimento é derivado das ações humanas a partir de uma ação. Porém, a crítica em
relação à teoria de Piaget relaciona-se à progressão do pensamento concreto para o
abstrato. Thelen lembra:
O conceito de desenvolvimento pode ser visto como algo que está sempre mudando e
seus diferentes estados podem adquirir diversos graus de estabilidade e instabilidade,
em vez de uma série prescrita de estágios estruturalmente invariantes, que conduzam
a uma melhora progressiva. (1994:77)
Segundo Thelen e Smith, o foco é olhar o tempo presente, averiguando como as
redes de informação agem no corpo no instante da ação. A idéia delas é a de que existe
cognição quando um corpo é retirado de um ambiente e colocado em outro ambiente.
Neste caso, distinguimos que é criado no corpo um outro entendimento a partir das
relações no novo ambiente.
Outra moldura teórica nesta relação da ação geradora de conhecimento foi levantada
pelo professor e diretor do Departamento de Filosofia da Universidade de Oregon Mark
Johnson. Este autor pretende mostrar como padrões de experiência corporal trabalham e
se encarregam do entendimento e da razão dos nossos conceitos mais abstratos. Para
Johnson, o corporal tem três níveis:
1-Neurofisiológico: Toda nossa experiência, toda nossa capacidade de pensar e
conceitualizar são realizadas “neuronialmente”. Neste sentido, nossas experiências
estão incorporadas em conjuntos neurais e suas respectivas interações. Entretanto,
uma explicação adequada da base corporal do significado e da racionalização nesse
nível, não pode estar apoiada somente nos modelos de redes neurais. As nossas
redes neurais se desenvolvem somente através das nossas interações dentro dos
ambientes em que nos encontramos. Portanto, mesmo neste nível aparentemente
básico da estrutura, nós devemos evitar imaginar os conjuntos neurais enquanto
unidades independentes que simplesmente recebem –input – informação, e geram -
output - informação. Nós devemos ver estas redes neurais em relação ao organismo
como um todo corporal em sua operação em situações concretas. Restrições nos
significados vêm tanto dos nossos corpos (de nossos mecanismos perceptivos e
motores) quanto dos ambientes nos quais nossa experiência acontece. Esses
ambientes são ao mesmo tempo físicos, sociais, morais, políticos e religiosos.
43
2-Inconsciente Cognitivo: A vasta maioria dos nossos conceitos, mecanismos
sintáticos e outras estruturas cognitivas operam para nós automaticamente de
maneira não reflexiva. Nós podemos, evidentemente, conscientemente refletir a
respeito e modelar generalizações a respeito dessas estruturas de pensamento e
linguagem, que é o que fazemos nas ciências cognitivas. Mas, geralmente os nossos
sistemas conceituais operam, como se espera, abaixo de um nível consciente. O corpo
é crucial neste nível, pois todos os nossos mecanismos e estruturas cognitivas se
baseiam em padrões de experiências e atividades corporais tais como nossas
orientações espaciais e temporais, os padrões dos nossos movimentos corporais e as
maneiras pelas quais manipulamos objetos. Imagens mentais, esquemas, metáforas,
metonímias, conceitos e padrões de inferência estão todos ligados direta ou
indiretamente a estas estruturas corporais das nossas atividades sensório-motoras.
3-Fenomenológico: O terceiro nível de explicação se relaciona ao sentimento de
qualidade da nossa experiência. Descrições desse nível almejam nos trazer o
conhecimento de como nossa experiência é sentida por nós e como o mundo se
revela. Uma importante tarefa em tal descrição é desvendar a presença inconsciente
dos nossos corpos naquilo que experimentamos, sentimos e pensamos. O objetivo é
desvendar a dimensão tácita da experiência, que é mediada por nossa incorporação e
sem a qual nós não teríamos pensamentos significativos ou expressão simbólica de
qualquer tipo. (1999:82)
Estas idéias ampliaram o nosso entendimento de que qualquer formalização, seja esta
a da criação de uma nova coreografia ou a da elaboração de determinados conceitos,
parte de formas de estruturas básicas de atividades sensório-motoras e suas respectivas
interações com o ambiente e suas circunstâncias. Johnson argumenta que esquemas de
imagens são criados a partir de atividades sensório-motoras, oferecendo uma estrutura
conceitual prévia da nossa experiência. Os biólogos Varela, Thompson e Rosch
compartilham deste raciocínio e defendem:
Esses conceitos têm uma lógica básica que confere uma estrutura aos domínios
cognitivos nos quais eles são imaginativamente projetados. Finalmente, essas
projeções não são arbitrárias, mas são realizadas através de procedimentos de
mapeamento metafórico e metonímico que são, eles mesmos, motivados pelas
estruturas da experiência corporal. (1991, 2003:181)
Motivados pelas estruturas da experiência corporal, criamos representações internas
no corpo. A relação com o mundo é diferenciada e entendida através das experiências
44
dos nossos corpos. São qualidades sentidas pela nossa experiência. Surgem como
inscrições no corpo. Nada está pronto, isto é, existe uma interação do corpo com o que
está dentro e fora dele.
Neste panorama, o aprendizado acontece provisoriamente, uma vez que o corpo
continua se modificando. Entendemos, a partir de procedimentos práticos, que existem
momentos em que a informação ganha estabilidade no corpo e o conhecimento atua em
situações específicas. Neste caso, precisamos descobrir o tácito, o “background” do
conhecimento.
As questões acima levantadas vêm sendo aplicadas, testadas e formalizadas em
trabalhos práticos, integrados a experimentos sistemáticos, direcionados para uma
produção e formação de um pensamento em dança contemporânea que agrega uma
visão de mundo que se constrói num ambiente repleto de diversidades. Buscamos
associar neste fazer, questões no corpo que propiciam organizações no espaço de formas
rigorosas e vigorosas, sem nunca esquecer da necessidade de respeito profundo pela
história da natureza de cada um dos seus integrantes.
Não é gratuito o nosso diálogo artístico com a educação. Nestes novos tempos,
acreditamos, que a incorporação de atos que agregam um olhar educador na relação com
o ambiente em que vivemos é uma questão de sobrevivência. Precisamos refletir sobre
possibilidades de intervenções que emergem de um grande respeito ao próximo. Nesta
conduta, existem possibilidades de modificar o ambiente a partir dos limites do próprio
corpo em uma convivência generosa com aquilo que nos cerca. Eis aí um grande desafio:
agregar diferentes formas e descobrir o que nos ensinam enquanto possibilidades de
novos acordos.
45
2 um começo... O corpo aprendiz.
É certo que muitos artistas têm procurado um diálogo maior com a ciência,
interessados em promover outras relações e acordos com o discurso artístico. Por outro
lado, é interessante indagar a direção inversa, ou seja, em que pode acrescentar ao
mundo da ciência, uma convivência mais próxima com o universo que trabalha a arte?
Uma possibilidade é pensar a arte enquanto ponto de conexão para diferentes
acordos. Desta forma, ela permitiria criar associações com diferentes formas e níveis de
conhecimento. Neste sentido, a arte, assim como a ciência, tornam-se cúmplices, uma
vez que cada um desses universos, vasculha a seu modo outros entendimentos com
relação ao que cerca o nosso mundo e, conseqüentemente, o modifica.
Ilya Prigogine, professor da Universidade Livre de Bruxelas e da Universidade do
Texas, e Prêmio Nobel de Química em 1977, chama atenção para como as ciências
influenciam os indivíduos numa atuação de mundo:
As ciências participam da construção da sociedade de amanhã, com todas as suas
contradições e suas incertezas. Elas não podem renunciar à esperança, elas que, nos
termos de Peter Scott, exprimem de maneira mais direta que “o mundo, o nosso
mundo, trabalha sem cessar para estender as fronteiras do que pode ser conhecido e
do que pode ser fonte de valor, para transcender o que é dado, para imaginar um
mundo novo e melhor”. (1996:196)
Aliada a essa busca, outro ponto importante é que, tanto o mundo da ciência quanto o
da arte fazem da experimentação uma possibilidade concreta na manipulação com o
problema a ser averiguado. A experimentação aqui é a elaboração e a criação de outros
caminhos que ajudam a elucidar dúvidas sobre o que se deseja conhecer ou averiguar.
Retomando Prigogine e Stengers9:
A experimentação não supõe a única observação fiel dos fatos tais como se
apresentam, nem a única busca de conexões empíricas entre fenômenos, mas exige
uma interação da teoria e da manipulação prática, que implica uma verdadeira
estratégia. Um processo natural se estabelece como chave possível duma hipótese
teórica: e é nessa qualidade que é então preparado, purificado, antes de ser
interrogado na linguagem dessa teoria. E assim temos um empreendimento
sistemático que volta a provocar a natureza, a obriga-la a dizer sem ambigüidades se
obedece ou não a uma teoria. (1997:3)
9 Isabelle Stengers, jovem químic e filósofa da Ciência, colabora na equipe de Progogine em Bruxelas.
46
Nessa interação entre uma determinada idéia e a sua manipulação prática com o
mundo em que vivemos, a ação colabora na incorporação de outros conhecimentos.
Nesta ação, o empreendimento deve ser sistematizado, quer dizer, constituído de
diferentes relações de conceitos reunidos a partir de uma organização, de forma
responsável, coerente e competente. O sociólogo e antropólogo Edgar Morin, define
sistema enquanto um ambiente de idéias do seguinte modo:
Um sistema de idéias tem um certo número de caracteres auto-eco-reorganizadores que
garantem a sua integridade, a sua autonomia, a sua perpetuação; eles permitem-lhe
metabolizar, transformar e assimilar os dados empíricos que são da sua competência;
(1991:123)
Assim, este ambiente enquanto organização de um sistema de idéias com sua teoria
sobrevive. Ele existe enquanto criar diálogos articulados entre regras de um jogo
competitivo e crítico a fim de mostrar capacidade de adaptação e transformação nas
interações entre seus acontecimentos que aí se manifestam.
Estas manifestações sistêmicas criam interferências que modificam nossas relações
com o mundo, assim como o mundo modifica-nos a partir destas nossas novas
manifestações. Por isso, conhecer é produzir um mundo articulado entre diferentes
saberes.
Quando afirmamos que o conhecimento produz um mundo, significa que o ato de
conhecer sempre promove ações que interferem e conseqüentemente modificam o
ambiente em que vivemos. Relembrando os biólogos Maturana e Varela:
Todo ato de conhecer produz um mundo. (1987:68)
O educador Paulo Freire, no seu projeto pedagógico também reconhecia que o
homem não correspondia a um fechamento dentro de si mesmo:
O homem, qualquer que seja o seu estado, é um ser aberto. (...)
Por isso mesmo que, existir, é um conceito dinâmico. Implica numa dialogação eterna
do homem com o homem. Do homem com o mundo. (1979:60)
Freire falava de uma pluralidade nas relações do homem com o mundo, na medida
que responde às variedades dos seus desafios. Ele defendia que estas relações do
homem com o mundo não se esgotavam em um tipo padronizado de resposta:
A sua pluralidade não é só em face dos diferentes desafios que partem do seu
contexto, mas em face de um mesmo desafio. No jogo constante de suas respostas,
47
altera-se no próprio ato de responder. Organiza-se. Escolhe a melhor resposta. Testa-
se. Age. Faz tudo isso com a certeza de quem usa uma ferramenta, com a consciência
de quem está diante de algo que o desafia. Nas relações que o homem estabelece com
o mundo há, por isso mesmo, uma pluralidade na própria singularidade. E há também
uma nota presente de criticidade. A captação que faz dos dados objetivos de sua
realidade, como dos laços que prendem um dado a outro, ou um fato a outro, é
naturalmente crítica, por isso, reflexiva e não reflexa, como seria na esfera dos
contatos. (1979:40)
De fato, precisaremos criar estratégias em parcerias como propósito de clarificar
aquilo que, a princípio, não entendemos. Estas parcerias agregam conexões entre
diferentes universos que, pela necessidade de conhecer mais o que os cercam, são
obrigados a criar outros diálogos a partir de uma cooperação.
Quanto aos experimentos, sejam estes teóricos ou práticos, tais estratégias estão
sempre cooperando de alguma forma no esclarecimento de mudanças significativas do
universo e daqueles que estão inseridos neste contexto.
No caso da graduação da “Comunicação das Artes do Corpo”, credita-se ao aluno no
decorrer da trajetória universitária, que ele adquira condições de inventar um projeto a
partir desses novos conhecimentos. Este curso defende a criação de projetos que
correspondam às novas relações entre o corpo e o mundo em que este se encontra
mergulhado. Quer dizer: propiciar um instrumental adequado para a formação dos alunos
a partir do qual eles tenham condições de inventar. Neste caso, as invenções passam por
um projeto pessoal: com métodos distintos e pensamentos claros. A idéia é que os alunos
construam formalmente diálogos artísticos (teóricos-práticos) que elucidem questões de
mundo em que cada um deles se percebe inserido.
Com essa perspectiva, cria-se a possibilidade de outros conhecimentos como um
percurso baseado em contaminações. Estas acontecem entre o mundo-objeto e o
indivíduo (observador) que conhece. Um conhecimento dá-se essencialmente, através da
atenção quanto às contaminações comportamentais dos seres vivos em seus respectivos
ambientes a partir do fato de percebermos que tais contaminações são “imprescindíveis”
à sobrevivência de cada espécie viva.
Não é questão de crença. Uma argumentação pertinente é a de Maturana e Varela de
que a forma de organização de qualquer ser vivo (independente de sua complexidade)
faz-se em uma interação ou seja, agrega diferentes aprendizados entre um determinado
48
ambiente, um sujeito e na relação entre o ambiente e o sujeito sem “quebras” entre o
social e o humano e suas raízes biológicas:
Nosso ponto de partida foi a consciência de que todo conhecer é uma ação da parte
daquele que conhece. Todo conhecer depende da estrutura daquele que conhece.
Como o conhecimento se produz na ação? Quais são as raízes e os mecanismos
desse operar?
Diante dessas perguntas, o primeiro passo de nosso roteiro é o seguinte: o fato de o
conhecer ser a ação daquele que conhece, está enraizado no modo mesmo de seu ser
vivo, em sua organização. Sustentamos que as bases biológicas do conhecer não
podem ser entendidas somente pelo exame do sistema nervoso. Parece-nos
necessário entender como esses processos estão enraizados no ser vivo como um
todo. (1995:76)
Esse “conhecimento” surge mediante a implicação no mundo em que organismos
vivos operam a partir de mecanismos seletivos (que dizem respeito à percepção do
próprio mundo e da filogenia10 da espécie) e processos adaptativos (relacionados a limites
possíveis a partir de uma compreensão individual à sua própria sobrevivência).
Para exemplificar o processo de formação deste “conhecimento”, citamos uma
conversa entre duas professoras da PUC depois de um espetáculo de dança. A
coreografia era “Moebius Strip”11 de Gilles Jobin (Grã-Bretanha/Suiça) apresentada no
Teatro do SESC Pompéia, dentro da “Mostra Internacional SESC de Dança”, 2001.
O comentário de uma delas sobre o espetáculo:
Adorei! Havia muito tempo que não assistia algo que me instigasse tanto. Além disso,
compreendi a estrutura do trabalho. Eles constróem todo um ambiente na cena. Aos
poucos, os intérpretes envolvem o espectador com toda aquela construção. Esta se
faz no corpo e na cena, simultaneamente.
O comentário da outra professora:
Na verdade não me empolguei muito. Percebi que muitas pessoas ligadas à dança
gostaram bastante. Talvez me falte instrumentos para a leitura deste espetáculo.
Sinceramente, acho “cerebral” demais. O meu estilo ainda é Pina Baush.
10
História evolucionária das espécies. (Novo dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, 2a. ediç.)
11 Moebius Strip: Uma tira de moebius é uma construção que não existe na natureza; trata-se de um anel
retorcido, uma figura geométrica que representa o infinito. Nessa coreografia, onde Jobin direciona o foco para a qualidade do movimento, o trabalho onde se desenvolve a dança é dividido em partes, os corpos são como linhas no espaço.Os movimentos estão ajustados para serem contínuos, fluídos. Gilles Jobin dançou com Philippe Saire, Laura Tanner, Fabienne Berger e Angels Margarit. Desde 1995, desenvolve seu próprio trabalho.
49
É importante percebermos a maneira como um mesmo objeto ressoou de forma
distinta para cada uma das professoras. Uma certeza é que, cada corpo apreendeu de
uma forma específica. Cada corpo interagiu de um jeito particular com a obra de Jobin.
Ambas assistiram o espetáculo, mas as relações estabelecidas neste encontro de palco e
platéia foram muito diferentes. É nesta diferença que se cria um ponto particular e
privado. É neste espaço privado que as relações captam variações e que tornam a
vivência de qualquer experimento intransferível.
Retomando a proposta do curso “Comunicação das Artes do Corpo”, o projeto de
formação propõe estabelecer condições de atuação que independam de modelos
estéticos determinados a priori. O que significa que os alunos aprendem a conhecer a
história mas sem transformá-la em uma prisão.
Na busca de caminhos diferentes, um depoimento significativo em dança é o da
dançarina e pedagoga e argentina Maria Fux12, que organizou a partir do próprio corpo
outra maneira de dançar:
Aos quinze anos a influência de um livro que chegou às minhas mãos, A vida de
Isadora Duncan, foi decisiva nessa busca aberta que sentia palpitar dentro de mim
através de tantas improvisações. Descobri que, além da dança clássica que estudava,
existiam outros caminhos desconhecidos que se foram povoando de Isadora. Ela
simbolizou meu rio em direção à liberdade. Tratei de buscar outros meios que
estivessem dentro do meu corpo, sem centrar minhas preocupações naquelas
piruetas ou no equilíbrio na ponta do pé que estava aprendendo.
Foi assim que aprendi a encontrar-me com novas músicas que não eram clássicas.
Intuitivamente cheguei ao impressionismo e à natureza de Ravel, Fauré, Debussy, Erik
Satie, os quais conseguiram desmoldar-me e fazer sentir meu corpo em um mundo de
imagens novas. Comecei a mergulhar, a escavar no mundo do silêncio posto que pela
primeira vez surgiam em mim formas sem som que me davam a impressão, porque
não se apoiavam na música, de serem danças novas. Essas danças no silêncio foram
pontes de comunicação que me ajudaram, anos mais tarde, a encontrar-me através do
espaço com o surdo. (1983:24)
Quando Fux fala sobre a busca de outros meios de expressão em dança que estariam
dentro13 do seu corpo, ela está afirmando através de um discurso típico da dança
12 Dançarina, Coreógrafa, pedagoga e terapeuta Argentina. Fux criou um método de dança-terapia que coloca
a ênfase sobre a dimensão artística no trabalho com deficientes e implanta os Centros de Dança-Terapia na Itália(Florença e Milão) e na Espanha (Madri).
50
moderna, que existem outras possibilidades de acordos que dependem da disponibilidade
do artista-criador em querer inventar, isto é, organizar no corpo uma dança diferente
daquelas apoiadas em modelos conhecidos, e que possa integrar no tempo novidade,
coerência e competência.
Uma das possibilidades de construção no mundo em que atuamos é a da criação de
regras e modelos para estabelecermos diálogos com outros e vice-versa. Com esses
acordos movimentamos e modificamos o mundo. O desafio é aprender a lidar com esses
acordos sem nos tornarmos prisioneiros deles. Nestas relações “diferentes” surgem
possibilidades de acontecimentos enquanto novidades no corpo. Neste caso, o corpo é
obrigado a inventar outros acordos. A cada novo acordo, o corpo é obrigado a interagir
com outros conhecimentos. Conseqüentemente, toda essa ação produzirá outras relações
de conhecimento com o mundo que o cerca.
Cada corpo, do seu jeito, abriga uma maneira de pensar, de organizar, de se
relacionar com o mundo que no tempo, de acordo com suas experiências, vai modificando
e especializando o próprio corpo. Vão sendo estabelecidos novos acordos a partir da
experiência. Na verdade, é tanto do ambiente do corpo para o ambiente em que o corpo
está envolvido, como vice-versa.
Reavendo o diálogo daquelas professoras na relação com o espetáculo, cada uma
tinha um tipo de competência no corpo e, na interação com a obra, cada uma do seu jeito
reagiu de modo fiel. Esta fidelidade mostra a interação possível entre cada corpo e um
mesmo objeto. Neste caso, o objeto era uma coreografia.
Quando afirmamos que o conhecimento produz outros mundos, é pelo fato desta ação
provocar um conjunto de atividades no corpo de forma cooperada em relação a alguma
coisa. São acordos e regras criados para interagir com o mundo em que vivemos. Em
outras palavras, criamos disponibilidades no corpo para toda essa ação cooperada. Na
verdade, esta disponibilidade já existe no corpo.
Neste sentido, podemos afirmar que a lembrança de um determinado objeto que cada
um de nós observa em seu próprio corpo não corresponde a réplicas, mas a interações
entre o que foi possível mobilizar no nosso próprio organismo em relação a um objeto e
deste em relação ao organismo. A cada relação são realizados novos acordos, que se
transformam pelo aprendizado. O próprio viver habilita o nosso organismo a estar sempre
aprendendo. Nosso corpo nunca é o mesmo, está sempre se transformando. Por
13
O entendimento de dentro do corpo que Fux aborda não é o mesmo que Varela fala. Ela coloca este dentro na relação de uma construção no corpo por um criador que lida com vários níveis de escolhas que são subjetivas.
51
exemplo, quando iniciamos um estudo de dança e resolvemos nos dedicar a ele, no
tempo, nosso corpo se modificará. O mesmo acontece quando entramos na universidade.
O corpo é um quando entramos e, quando saímos da universidade, esperamos que esteja
diferente.
O mesmo procedimento acontece com um projeto teórico de pesquisa acadêmica.
Quantos de nós entramos na pós–graduação com uma idéia e no decorrer do curso ela se
modifica? Somos contaminados pelas novas idéias, pelo espaço, pelas pessoas que ali
convivem, pela estrutura da instituição. Apesar das nossas escolhas neste processo,
também somos escolhidos pelas idéias, pela forma como elas nos são apresentadas.
Podemos afirmar que tudo o que acontece no corpo enquanto conhecimento se dá em
um tempo e em um espaço relativo ao momento no tempo em que o corpo ocupa e ao
lugar do espaço encontrado pelo corpo.
Uma suposição é que o processo de construção em qualquer percurso artístico traz à
tona, de maneira ampliada, a informação de como um corpo produz conhecimento.
Qualquer processo de construção artística é obrigado a administrar convivências que
resvalam nos limites e desejos da competência de um corpo e na possibilidade de
produção de outros caminhos de conhecimentos em relação a alguma coisa.
Quem trabalha com arte, no processo de elaboração e formatação de seus projetos,
de alguma maneira está sempre obrigando o corpo e o meio que este ocupa, a
estabelecer diferentes formas de relações. Nestas relações são gerados conhecimentos.
Para conhecer precisamos inventar. Por isso, podemos propor que um projeto para o
“artista do corpo” visando uma maior fluência, organicidade, simultaneidade, diversidade e
dinâmica, decorre de uma estimulação a partir de experimentos que conduzam este corpo
a uma constante invenção. Quanto mais inventamos, mais relações com o meio são
estabelecidas. Conseqüentemente, mais conhecimento parece ser processado em
relação ao mundo.
52
3 Contaminações... Inventando com o ambiente.
O artista do corpo entende a dança como um pensamento do corpo. Quando o corpo
formaliza o seu pensamento na forma de um movimento ele dança. Na verdade, esta é a
hipótese principal da tese de doutorado “Um, Dois, Três. A Dança é o Pensamento do
Corpo”, defendido por Helena Katz em 1994. De acordo com Katz:
Quem esculpe é o movimento. Quando essa escultura se organiza na forma de
pensamento, o corpo dança. Quando não, faz ginástica, mímica, pedala, patina, pratica
esporte – qualquer outra atividade igualmente presidida pelo movimento, mas que não
é dança.
Para tomar a forma de um pensamento, o movimento reproduz plasticamente a
circuitação neuronial do pensamento no cérebro. Atenção: isso não significa, em
hipótese alguma, que a dança se diferencie de todas as outras qualidades de
movimento por ser aquela que “faz pensar”.
Ao enunciar a dança como o pensamento do corpo, a ênfase recai na reprodução da
estrutura neuronial do pensamento pela musculatura do corpo. Essa estrutura se
espalha no corpo como uma teia de aranha. Não apenas as três etapas da percepção
(percepto, percipuum e juízo perceptivo) ficam lá registradas, como também se
comunicam por pertencerem a um mesmo tipo de fluxo. A característica básica da
dança que se quer salientar aqui é a semiose: ação inteligente do signo de gerar outro
signo. (1994:72)
Há portanto, atuação do nosso cérebro em quase todas as ações do nosso corpo e a
dança pode colaborar nas descobertas sobre o funcionamento destas relações a partir da
invenção de movimentos. O movimento é o fundamento do conhecimento e a dança
ganha existência no corpo a partir de movimentos. É na ação que a dança constrói o
corpo para que possamos entender o seu funcionamento e conseqüentemente, conhecer.
De acordo com o neuropsiquiatra John Ratey (ver página 28), se pudermos entender
melhor o movimento, poderemos entender as relações com o sistema motor, que também
tem responsabilidade pela formação dos nossos pensamentos, palavras e gestos:
Durante séculos, o homem definiu-se como “acima” dos animais porque pode
“pensar”, ao passo que os animais apenas “agem”. Ação - movimento – era
considerada uma função cerebral “inferior” e a cognição uma função cerebral superior
que somente os humanos tinham desenvolvido. Até poucos anos atrás, a maioria das
pessoas não pensava que qualquer porção do “cérebro motor” fizesse outra coisa
além de reagir aos estímulos que chegam e instruir as funções motoras de acordo
53
com esses estímulos. Mas estamos descobrindo rapidamente que regiões como os
córtices parietal e frontal desempenham um importante papel na atividade relacionada
com o planejamento, cálculo e formação de intenções. (2001:167 e 168)
Como vimos de acordo com estudos dinamicistas (Thelen e Smith, 1997), movimento
e conhecimento estão numa mesma escala temporal. As redes neurais que são ativadas
e fundamentadas em funções motoras durante os processos de conhecimento para o
movimento físico são as mesmas que se compõem quando organizamos, planejamos,
pensamos, calculamos, deliberamos ou agimos, assim como nossas emoções. Emoção
significa pôr em movimento.
Ratey mostra que o movimento é condição fundamental para a própria existência de
um cérebro. Ele nos lembra de um fato interessante:
Só um organismo que se movimenta de um lugar para o outro requer um cérebro. As
plantas aumentam suas chances para a fotossíntese voltando as folhas para o lado do
sol, mas isso é feito através do crescimento de células, não por mudança de posição.
Uma minúscula criatura marinha, a ascídia, ilustra esse ponto. Na primeira parte de
sua vida, a ascídia nada como um girino. Tem um cérebro e o cordão neural para
controlar seus movimentos. Entretanto, quando amadurece, fixa-se permanentemente
a uma rocha. Desse momento em diante, o cérebro e o cordão neural são
gradualmente absorvidos e digeridos. A ascídia consome o seu cérebro porque este
deixou de ser-lhe necessário. (2001:177)
O corpo se oferece ao movimento. No espaço, corpo e movimento se complementam.
Juntos, expandem diferentes campos que lidam com cálculos, volumes e formas. O que é
processado no cérebro é incorporado no corpo e relacionado no ambiente. Assim,
podemos perceber cognição como produto de um corpo e do modo como este se
locomove no espaço.
54
4 Movimento de dança.
Reconhecê-lo. Também se passa pela aprendizagem de um olhar.
A dança acontece num suporte especializado: o corpo. Como aquele que aprende a
partir de movimentos. Mas o que é que nos dá o entendimento de que o que observamos
no espaço são movimentos de dança? Relembrando Katz:
Quem observa o corpo, percebe que nele ocorrem tanto os aprimoramentos quanto
saltos evolutivos. Qualquer pessoa que tenha experimentado praticar tecnicamente
com o corpo – seja dançando, pulando corda, andando de bicicleta, jogando bola, etc
– já sentiu as duas formas de ocorrência. A habilidade que se treina melhora
gradualmente através de exercício que burila os erros. No entanto, eventualmente,
irrompem novas circuitações, que surpreendem o controle. Como se o corpo
desenvolvesse uma “inteligência” não regida pela consciência.
Isso ocorre, muito provavelmente, porque as várias qualidades do movimento que um
corpo produz e abriga são todas formas de qualidade do pensamento do corpo. A
mais completa, aquela a que se pode identificar com o nome de pensamento do corpo,
essa é a dança. (1994:24)
O movimento cria o encadeamento das idéias de uma fala. O que é entendido como
preciso fora do corpo, nele, ganha outras especificações. Caso o movimento se faça
funcionar num rastro de dança, passa a fazer parte de um contexto. O movimento faz o
contexto e, ao mesmo tempo, dele depende. Complementando: dança pode ser
compreendida como um ambiente construído das diferentes relações e percepções de
processos. O corpo é o meio deste ambiente que aprende a gerenciar e articular entre
diversas comunicações e informações replicando determinados padrões de movimentos
ou inventando outros padrões de movimento no espaço. Seguindo esta linha, podemos
afirmar que dança propicia criação de novos padrões. O neurologista Gardner aponta num
extremo:
Diz-se que assim como o mestre bailarino Balanchine forjou o vínculo entre a dança e
a narrativa, o coreógrafo contemporâneo da dança moderna Mercê Cunningham
cortou o nó entre a música e a dança. Cunningham, de fato está interessado no
movimento puro e simples; ele gosta de observar insetos em microscópios e animais
em zoológicos. Ele é um dos principais formalistas da dança, um inveterado
investigador de como o peso e a força interagem com o tempo e o espaço, um
paladino da idéia de que a dança é uma arte independente que não requer qualquer
55
apoio a música, nenhum fundo visual e nenhum enredo. Suas danças, portanto,
fornecem uma oportunidade para que observemos a inteligência corporal em sua
forma mais pura, não contaminada com a sobrecarga representativa. (1994:173)
Gardner fala de inteligência corporal. Ele explica que uma grande parte da atividade
motora apresenta interações sutis entre o sistema perceptual e o motor. Este apresenta
um funcionamento extremamente complexo que exige uma coordenação de uma grande
variedade entre componentes neurais e musculares de uma forma diversificada e
cooperada. Por outro lado, como poderia uma inteligência corporal e mecânica refinada
ocorrer? Gardner defende que de todos os usos do corpo, nenhum atingiu ápices maiores
ou foi mais variavelmente desenvolvido pelas culturas do que a dança.
A dança data de muitos milhares de anos com toda probabilidade da época Paleolítica,
pois feiticeiros e caçadores dançarinos mascarados encontram-se retratados nas
antigas cavernas da Europa e nas cadeias de montanhas da África do Sul. De fato, de
todas as atividades retratadas nas cavernas, a dança é a segunda mais proeminente,
logo após a caça, com a qual é bem possível que estivesse associada.
Não conhecemos todos os usos aos quais a dança foi dirigida, mas as evidências
antropológicas sugerem pelo menos que a dança pode refletir e validar a organização
social. Ela pode servir como um veículo de expressão secular ou religiosa; como uma
diversão social ou atividade recreativa; como um meio para dar vazão a sentimentos;
como uma afirmativa de valores estéticos ou de um valor estético em si; como um
reflexo de um padrão de subsistência econômica ou como uma atividade econômica
em si. A dança pode servir a um propósito educacional em um rito de iniciação,
marcando transformação pela qual um indivíduo eventualmente passará; ela pode ser
usada para incorporar o sobrenatural, como quando curandeiros dançam para invocar
os espíritos; ela pode até mesmo ser usada para a seleção sexual, nos casos nos
quais as mulheres podem discriminar os homens em termos de desempenho em
dança e sua resistência. (1994:173)
Quando subscrevemos esta definição de Gardner, demonstramos possibilidades da
dança interagir, quer simultaneamente ou não, em diferentes meios e contextos de uma
sociedade e conseqüentemente colaborar nas relações entre diferentes padrões corporais
no espaço numa determinada temporalidade. Os diferentes meios e contextos de uma
sociedade podem ser compreendidos como a cultura que reúne diversos saberes que são
transmitidos entre aqueles que ali convivem num determinado momento. Morin lembra:
56
Desde a nascença, todo o indivíduo começa a receber a herança cultural, que
assegura a sua formação, a sua orientação, o seu desenvolvimento de ser social. A
herança cultural não vem unicamente sobrepor-se à hereditariedade genética.
Combina-se com esta. Determina estimulações e inibições que contribuem para cada
ontogênese individual e modulam a expressão genética no fenótipo humano.
(1991:165)
Desta maneira, cada cultura, por meio dos seus escritos, das suas escolas, dos seus
medos, das suas práticas alimentares, dos seus valores, dos seus talentos, dos seus
consumos, das suas escolhas de padrões de comportamento entre grupos e
individualmente, acaba construindo e transmitindo a qualquer sociedade um capital
técnico e cognitivo de saberes.
Morin chama a atenção para o fato de que este conjunto de saberes por meio de
regras, normas e estratégias asseguram uma existência da sociedade de modo a
assegurar uma complexidade social, exercendo pressões sobre o conjunto do
funcionamento cerebral:
Cada cultura, por meio de seus imprintings,..., reprime, inibe, favorece,
sobredetermina, a atualização de tal ou tal aptidão, de tal traço psicoafetivo, exerce as
suas pressões multiformes sobre o conjunto do funcionamento cerebral, exerce até
efeitos endócrinos próprios, e, deste modo, intervém para co-organizar e controlar o
conjunto da personalidade. (1991:165)
Estes temas têm, de fato, sido abordados há muito tempo. Marcel Mauss (1934) foi
um dos primeiros etnólogos a se preocupar em observar as diferenças entre os modos
nos quais de sociedade para sociedade os homens sabiam como usar os seus corpos.
Por exemplo, nas suas pesquisas de campo, ele observa que o fato de todas as pessoas
caminharem, de lugar para lugar, as caminhadas são diferentes. Sua preocupação é olhar
como as ações no corpo se processavam e a partir destas observações identificá-las
fisiologicamente. Neste período, ele escreve um texto com a expressão “Técnicas do
corpo”, que já apontava que para criarmos uma idéia abstrata, é preciso partir de alguma
coisa concreta. Hoje sabemos que nem sempre existe uma progressão seqüencial do
concreto para o abstrato. Porém, naquela época, ele não tinha informação para organizar
desta maneira.
Mauss estava interessado no pensamento cultural desses diferentes povos e como
esse pensamento cultural surgia de formas diferentes nas ações mais simples das
57
pessoas, nos seus movimentos do cotidiano. Ele afirmava que enquanto a ciência natural
faz os seus avanços, ela segue na direção do concreto e ao mesmo tempo, este concreto
é desconhecido. Ele diz que o desconhecido são as fronteiras entre as ciências.
Quando ele faz esta afirmação é no sentido de entender o corpo nos estudos da
cultura. Para isso, necessitava criar pontes com outros estudos da ciência. Sua grade
teórica era a etnologia. Apesar desta contribuição inicial da relação do corpo com a
cultura, Mauss sugere que o corpo se modifica pelo fato de conviver com convenções
criadas e estabelecidas por uma sociedade e vice-versa.
Mesmo Morin, em seus estudos de complexidade permeada por um diálogo entre
natureza e cultura, carrega uma certa dualidade, quando fala primeira natureza - é a
instância do dia a dia, do cotidiano, de uma sobrevivência. Segunda natureza – é o
universo simbólico.
Uma outra alternativa seria entender cultura enquanto um ambiente14 do corpo. Um
corpo é sempre diverso, múltiplo e poroso em relação aos ambientes em que ele se
encontra. Sabemos que o corpo está sempre cruzado por tempos simultâneos e
diferentes. Não parece pertinente falar em naturezas distintas. O universo simbólico
também é existente.
Os neurocientistas George Lakoff e Mark Johnson (1999) em estudos mais recentes,
mostram em alguns experimentos, que a distinção psicológica entre o perceptual e o
conceitual é uma distinção ilusória. Neste contexto, tanto as características conceituais
como as lingüísticas sobre o espaço, são criadas usando mecanismos neurais de
percepção espacial. A palavra criada é importante pelo fato destas categorias conceituais
de relação espacial serem criadas como resultado de uma estrutura do nosso cérebro,
somada a experiência do nosso corpo.
Entendemos que diferentes padrões co-existem no corpo, um corpo que acontece em
movimentos. Cabe a nós aprendermos com esse corpo, nas suas diversas instâncias e no
ambiente que lhe couber. Neste sentido, nossa tarefa é virar inventores de experimentos
para descobrir de que somos feitos e como somos construídos. Precisamos manter vivo
um plano de construção para nos tornarmos donos do nosso corpo. Conhecer é construir.
Em dança, este conhecimento se dá com o movimento no espaço – caminhos no corpo
enquanto matrizes cinéticas que se fundem no próprio corpo e que todas as suas ações
estão movidas por um propósito.
14
Variância n1: A Escuta do Corpo. Capítulo 2 (ver página 20): Corpo, Ambiente, Cena, Contemporaneidade.
58
5 Cada dança tem seu jeito. Cada inventor descobre um jeito.
Um conhecimento é formado como decorrência de diferentes relações estabelecidas
entre o ambiente do corpo e os ambientes de suas diferentes convivências como as de
sala de aula, ensaios, pesquisas, criações, coreografias, apresentações públicas,
workshops, assistir espetáculos, e muito mais. Um conhecimento de dança é construído
como decorrência das relações estabelecidas entre o corpo (o artista), o ambiente que
este corpo se insere e o projeto artístico (relações articuladas de forma cooperada em
uma direção entre corpo e ambiente).
Nesta interação muitas vezes caberão regras e normas pré-estabelecidas ou não. Na
passagem do livro da coreógrafa e bailarina Maria Fux, ela comenta um encontro com a
coreógrafa Martha Graham15 que pode clarear esta abordagem:
Um dia, ao sair de uma aula, finalmente a gigantesca, inalcançável Martha Graham
ficou a sós comigo. Foi no elevador. Então, no meu entrecortado e mal falado inglês
supliquei-lhe – só faltavam alguns dias para voltar à Argentina – que visse minhas
danças. Acedeu, olhando seu relógio: me concedia meia hora no dia seguinte. Essa
noite foi infernal, revisei em mente cada uma das minhas danças e todas me pareciam
muito pobres. Por fim, chegou o momento. Ela me esperava e eu, com meus discos
riscados, comecei a bailar frente à Martha. Já não me importava nada, era minha meta.
Ela, a que tinha a sabedoria da dança, olhava realmente!
Sem se fixar em seu relógio, foi pedindo mais e mais, até que, depois de uma hora, eu
não tinha mais nada para dar-lhe e me sentei no chão frente a ela.
Então, com sua voz gutural, disse-me pausadamente: És uma artista, não busque
mestres fora de ti. Não tenhas medo de fazer danças teatrais, és atriz. Continua para
dentro de ti o mais que puderes. Volta à Argentina e não esperes nada de professores.
Teu mestre é a Vida.
Compreendi seu idioma e agora depois de muitos anos suas palavras ainda têm
vigência em mim e sigo aprendendo. (1983: 27)
Quando Maria Fux compreendeu o idioma, na verdade foi o ponto exato em que
Graham a tocou ao ver sua dança. Aqui será chamado de “poética pessoal”.
Por que, ao assistirmos uma coreografia, geralmente, sabemos quem foi seu criador
ou pelo menos alguns traços evolutivos que mostram familiaridades com um pensamento
específico? Que relações estão implícitas na cena, quando vemos uma coreografia? O
15
Martha Graham (1894-1991) foi dançarina, coreógrafa e pedagoga americana.
59
que relaciona a coreografia a um determinado coreógrafo apresentando um traço que é
específico daquele artista?
Existem três termos chaves importantes apontados acima para refletir e que
colaboram com quem pretende criar com dança. São eles sistema, idioma e poética
pessoal.
Vamos começar abordando a relação entre sistema e dança.
O aprofundamento desta hipótese desenvolvida na dissertação de mestrado Dança:
Fronteiras. Uma ponte entre a prática e teoria, num diálogo entre arte e ciência.16 é que
esse “Sistema Dança” é um sistema aberto. Um sistema que se transforma a partir de
acontecimentos significativos, reformulando e modificando todo o sentido deste mesmo
sistema, numa trajetória contínua. Esta trajetória se manifesta em níveis diferentes, desde
as mais simples até outras, mais complexas. Portanto, estamos mergulhados em uma
mistura em que simples e complexo convivem sem oposição, mas em complementação.
No pensamento sistêmico, buscam-se estratégias que venham a permitir uma
irradiação maior entre vários universos, isto é, na tentativa de expansão, o “sistema
dança” interage com outras linguagens e discursos que também atuam em processos de
aprendizagem. Quando esses universos coexistem, surge o novo que, na verdade, é
muito mais do que simplesmente a soma de cada um.
Mas como acontece o discurso da inter-relação de dança com universos diferentes?
Existem possibilidades de experimentar o cruzamento de alguns pensamentos que,
utilizam-se de um mesmo corpo para a construção de uma obra em dança enquanto
resultado desse cruzamento. Surgem algumas perguntas como por exemplo: Quando
reforçamos a possibilidade de um plano estético que se formaliza no fazer, é possível
assumir dança como um sistema de entendimento universal, quer dizer, identificada por
todos de maneira similar? É possível uma mesma abordagem para as danças com seus
pensamentos românticos, clássicos, modernos ou contemporâneos? São os mesmos
joelhos que realizam as danças dos “axé-music” com os joelhos dos “pliès e relèves” das
danças clássicas e modernas? A dança criada no desenho do vôo das abelhas no espaço
também tem o mesmo entendimento daquelas dos axés e dos românticos?
Observando com cuidado, torna-se evidente que cada uma destas danças relaciona-
se com o movimento de forma diferente, comprometida com um determinado contexto.
Assim como o movimento das abelhas, quadris e joelhos se constróem num contexto
16
1999: Dissertação para o título de Mestre em Comunicação e Semiótica da PUC/SP, sob a orientação da Profa. Dra. Helena Katz.
60
específico e dele dependem. Para a identificação de cada um destes acontecimentos,
criaram-se ferramentas com competências para manipular as aptidões de cada ambiente.
Uma realidade é a metáfora da dança das abelhas, outra muito diferente é a dança dos
axé-music e ainda outras são as realidades apontadas na dança romântica, na dança
moderna e contemporânea. São taxas diferentes de complexidade com propósitos,
acionamentos e representações distintas.
Todos estes fatos pertencem a realidades singulares. As danças são diferentes.
Existem especificidades que, dependendo da moldura precisarão ser conhecidas e, com
certeza, apreendidas e transmitidas. As abelhas passarão informações a suas sucessoras
a fim de que elas continuem na produção de mel. Professores de dança continuarão
propagando pliès para que alunos possam vir a trabalhar com pausas e explosões. Com
relação aos quadris-axé-music, se durante o processo de evolução se mostrarem
imprescindíveis para a mecânica do corpo, perpetuarão. Caso este fenômeno seja
descartável, logo será alterado ou simplesmente “deletado”, sobrevivendo como resíduos.
Neste pensamento sistêmico, uma práxis voltada para a dança obriga o criador a se
abrir para vários mundos. Afirmar que tudo faz parte de um mesmo universo torna-se
insustentável. Cada lugar expõe um contexto diferente, conseqüentemente um
aprendizado específico.
Os joelhos de “pliès” deverão ter usos distintos que dependerão das molduras que irão
trabalhar. Estas surgem clássicas, modernas ou contemporâneas. São esboçadas aos
poucos, criando sulcos num corpo que é carne, osso, líquido, massa e impulsos
eletroquímicos.
Retomando ao “artista do corpo”, quando observamos de forma mais atenta é nítida a
diferença de organizar um corpo na cena de uma coreografia entre vários criadores de
dança. Apesar de todos criarem em dança, são muitas as possibilidades de relações e por
isso mesmo, são grandes as diferenças entre tantas escolhas. Não são os mesmos
olhares que entendem a diversidade dos vários mundos e discursos que alimentam a
dança.
Precisamos aprender a lidar com informações que não temos. No caso de quem
dança ou daquele que cria dança precisa relacionar-se com os discursos específicos da
dança, que aqui denominamos de vocabulário. Tem o vocabulário da dança moderna, da
dança clássica, da dança contemporânea, do samba, do folclore, do Rap, e muitos mais.
61
A dança tem vocabulários que precisam ser corporificados, a partir de ensinamentos
que são construídos no tempo. Gardner nos lembra de Mikhail Baryshinikov17 quando este
comenta que a dança pode vir em muitas formas:
Dançar é como muitas línguas novas, que expandem nossa flexibilidade e alcance. O
dançarino, assim como o estudioso da linguagem precisa de tantas quanto possível;
nunca é bastante. (1994:175)
A dança surge no espaço criando interações em redes. Nada é fácil ou simples.
Segundo Katz, como um DJ, o dançarino também aponta, a partir de movimentos
simples e triviais, a produção de novas habilidades. Neste pensamento em rede, uma
dança desponta de um trabalho a partir de materiais pré-existentes na criação de novas
realidades, como num processo de bricolagem. Nestas descobertas a dança surge, num
movimento contínuo, entre diferentes fronteiras.
Agora, povoamos um mundo-rede que é também mundo-serial. Mundo que reúne
sistemas paralelos (redes) a seriais (hierárquicos). Como o corpo. Onde o
conhecimento não descobre segredos, e sim dialoga com mistérios. (1994:66)
Talvez, uma maneira de entender esse aprendizado é pensar a dança como um
oceano. O oceano é um ambiente que o tempo inteiro está se transformando. Suas
mudanças variam de acordo com o tempo, o sol, a temperatura, as profundidades, as
correntes, os ventos, etc. O oceano nunca é igual, porém de longe, tudo parece uma água
azul. Cuidado! Não é um mundo pré-dado, que está pronto para ser descoberto. O
oceano cria diálogos e sofre mudanças em função do contexto que se percebe inserido.
O tempo inteiro o oceano se cria em função de diferentes relações que se dão em rede.
Além disso, existem leis concretas nesta coe-existência oceano-ambiente que nos dão
certeza da existência de uma realidade oceânica. Como a dança, existem leis e relações
construídas num decurso de tempo que não nos fazem duvidar de que uma realidade em
dança é sistêmica. Esta se faz de forma concreta.
O modo como selecionamos a interação neste outro ambiente, pode aqui, ser
entendida como um novo vocabulário a criar.
Neste vocabulário cabe um jeito de movimentação que assumimos como específica,
quer dizer, competente para o novo ambiente no qual desejamos conversar.
17
Mikaïl Baryshnikov ( nascido em 1948) é dançarino americano de origem soviética.
62
No caso do oceano, para um homem, o vocabulário pode ser qualquer tipo de nado,
desde que colabore com algum tipo de deslocamento. O aprendizado de um determinado
nado, pode ser compreendido como uma informação imprescindível para quem com o
oceano deseja dialogar. A diversificação e ampliação de vocabulários são estratégias de
transformação e sustentação para novos acordos. Na ampliação de outros acordos
construímos possibilidades de transformações e novas criações.
Na verdade, há vários mundos que convivem com este oceano. Cada mundo se
distingue em relação ao outro. De longe, tudo vira um oceano. De perto, percebemos que
são muitos os mundos que alimentam o oceano. Quantos idiomas co-habitam esse
oceano? Nessa convivência múltipla de mundos, quantos aprendizados se fazem
necessário?
Este mundo faz parte de outros mundos, que vivem tanto na terra como no céu.
Universos coexistem e cooperam entre si. Esta cooperação é construída. No caso de
quem dança essa construção também passa pelo aprendizado de algo específico do
universo da dança. Quando assumimos o termo vocabulário é por defendermos que
existe um idioma próprio do mundo da dança. Este idioma precisa ser construído no corpo
e será com este vocabulário que o artista terá condições de transformar qualquer dança.
Cada corpo é responsável pelo gerenciamento das diferentes informações que nele
venham a transitar.
Como vimos anteriormente, tal procedimento passa por uma percepção que, de algum
modo, colabora na estruturação de uma rede. Esta surge a partir de informações e da
interpretação dos diferentes sinais: tanto do corpo como do ambiente, criando novas
coligações ou não.
Neste processo, cada escolha pertence a um. Existe uma singularidade. Nos
vocabulários existem regras que colaboram para organizarmos e aprendermos a
manipular determinadas ferramentas e conceitos. São nestas escolhas, na maneira de
agrupar, na forma de relacionar com as diversas possibilidades de caminhos que fica
claro para o outro a relação do indivíduo com seu mundo. Nestas relações se estabelece
uma poética. Esta poética está contaminada com uma visão de mundo que é pessoal. No
meio de tantas normas, a poética pessoal, faz com que vejamos o indivíduo. Dela emerge
a visão do artista na relação com o mundo que ele habita.
Se a dança aqui é referida como um oceano, cada criador coopera criando um mundo
próprio coerente com o que lhe cerca. Caberão mundos nesse mundão que com
harmonia conviverão, mas também haverão ruídos entre alguns. Por questão de
63
sobrevivência, a distância para estes será uma solução. Porém, de longe, contemplando
esse oceano, todos sempre causam uma impressão: todos dançam, todos criam.
São com estratégias de convivências que temos condições de crescer, sobreviver e
aprender para transformar e criar. Cada artista cumpre um espaço. Este espaço co-habita
com outros espaços de diferentes ordens, formando um único sistema. As ordens são as
possibilidades que construídas formatam diferentes falas criando vários idiomas. Nessa
atmosfera conjunta, cada corpo precisa manter uma autonomia. Esta autonomia constróe-
se num dançar que surge de muita ação. Pode ser ação de leituras, ação de aulas
práticas, ação de dançar em conjunto, ação de dançar em grupo, ação de dançar em
solos ou duos, ação de assistir, ação de coreografar, ação de ensinar, ação de
confabular, ação de refletir, ação de escrever, ação,... Ação.
Cabe a cada um, descobrir quais são as suas escolhas neste mundo. Cada escolha
provoca uma determinada ação no mundo. Precisamos nos responsabilizar por estas
ações. Aqui, a responsabilidade é a de um artista que quer contaminar outros corpos que
pensam dança e dançam.
64
6 Iniciando um pensar...Laboratório de criação.
Este projeto de doutorado nasceu junto com a disciplina “Laboratório de Criação”
oferecida dentro da graduação “Comunicação das Artes do Corpo” PUC/SP.
Em relação a esta disciplina são propostas interações entre diferentes ambientes que
a princípio parecem pertencer a mundos distintos: a prática e a teoria. Acreditamos que
não existem separações. Não existe um corpo sem pensamento assim como não é
possível um pensamento sem corpo. Na verdade, o que os mantém juntos é o fato de
cada parte necessitar de um trabalho sistemático e cooperado que reflita as necessidades
de um mesmo corpo. Neste caso, o laboratório de criação torna-se um espaço
fundamental para elaboração, reflexão e experimentação de outras possibilidades de
organização do corpo no espaço. Nestes experimentos, muitas vezes se criam comandos
que provocam diferentes ignições no corpo, modificando conseqüentemente a relação
dele com todo o espaço.
Estes experimentos práticos propiciam condições para a construção de projetos
artísticos consistentes e pessoais. A idéia é que cada corpo manifesta, na sua atuação,
uma história pessoal e social: conflitos, escolhas, competências, acasos, turbulências,
negociações, adaptações e construções. Um ato criativo observado sob o foco de sua
continuidade demonstra as diversas práticas em uma cadeia de relações. São formadas
redes de operações muito ligadas entre si.
Neste sentido, existem formas de entendimentos que estão enraizados nos padrões
da atividade corporal. Varela, Thompson e Rosch lembram que recentemente Lakoff e
Jonhson produziram uma espécie de manifesto do que eles chamam uma abordagem
experiencialista da cognição:
Estruturas conceituais significativas surgem de duas fontes: (1) da natureza
estruturada da experiência física e social e (2) de nossa capacidade inata de projetar
imaginativamente aspectos bem estruturados da experiência corporal e interacional
em estruturas conceituais abstratas. O pensamento racional é a aplicação de
processos cognitivos muito gerais – focalização, perscrutação, superimposição,
inversão figura-fundo, etc – nessas estruturas. (2003:181)
No pensamento de Jonhson e Lakoff (op. cit) torna-se claros a relação do
desenvolvimento conceitual ou dos esquemas conceituais por estarem implicitamente
ligados às nossas experiências vividas, sejam estas práticas ou reflexivas. Neste
65
contexto, cognição depende dos tipos de experiências decorrentes de se ter um corpo
com diferentes competências sensório-motoras. Além disso, essas competências
sensório-motoras individuais estão inseridas em um contexto biológico, cultural e
psicológico bastante abrangentes.
A partir da idéia de que é um corpo que define a “conceituação” e a nossa forma de
atuação no mundo, precisamos entender uma série de pressupostos filosóficos que
venham a garantir como verdades, parte dessas “experiências vividas”.
É através das interações corporais que criamos um mundo e aprendemos a entender
e agir nele, com graus diversos de adequação. Pode-se afirmar que o corpo define a
possibilidade de conceituação. Lakoff e Jonhson afirmam que:
Sistemas vivos devem ser categorizados. Na medida em que somos seres neurais,
nossas categorias são formadas através de nossa “incorporação”. O que isso
significa é que as categorias que construímos são parte de nossa experiência. São as
estruturas que diferenciam aspectos de nossa experiência em espécies discerníveis.
Categorização não é, portanto uma matéria puramente intelectual que ocorre depois
do fato da experiência. De outro modo, a formação e o uso das categorias é o cerne da
experiência. É parte daquilo em que nossos corpos e cérebros estão constantemente
engajados. Não podemos, ao contrário do que sugerem algumas tradições
meditativas, “ir além” das nossas categorias e vivenciar uma experiência não
categorizada e não conceitualizada. Seres neurais não podem fazer isso. (1999:19)
Este termo “incorporação” é uma tradução possível para o termo “embodied”, que está
ligado a uma ação incorporada. Para Varela, Thompson e Rosch (2003:177) o uso do
termo ação significa enfatizar novamente que os processos sensoriais e motores. A
percepção e a ação são fundamentalmente inseparáveis na cognição vivida. De fato, os
dois não estão apenas ligados contingencialmente nos indivíduos: eles também evoluíram
juntos.
Por tudo isso, o termo escolhido daqui em diante será o “encarnado”. “Incorporado”
nos dá a impressão de que somente o ambiente modifica as relações do corpo. Como se
esta interação acontecesse em uma única mão. As relações estabelecidas entre
diferentes naturezas estão diretamente ligadas nas condições e competências em que
cada ambiente se percebe inserido. É uma via de duas mãos: assim como o ambiente
modifica o corpo, este também intervem no ambiente que ocupa.
O corpo é entendido como mídia, não mais como um instrumento ou um suporte para
um determinado fim. Sob este viés, existe uma relação co-evolutiva entre corpo e os
66
diferentes ambientes em que este se percebe inserido. A informação que chega de fora,
no corpo, não permanece a mesma. Ela é transformada. Por isso fala-se de “uma
incorporação”. Não existe a idéia de preservação, nem do que está dentro e nem do que
está fora. O que se pressupõe é que neste contato corpoambiente existem
contaminações: tanto do corpo pelo ambiente como do ambiente pelo corpo. Greiner e
Katz apontam:
Sabe-se hoje que o corpo porta certas habilidades motoras que são inseparáveis de
outras competências suas, tais como as de raciocinar, emocionar-se, desenvolver
linguagem, etc. Vários cientistas da robótica, neurociências, lingüística, filosofia e
ciências cognitivas têm convergido seus interesses para entender a cognição como
encarnada, carnificada (embodied, embedded), entre os quais estão Varela et al. 1991,
Sheets-Jonhstone 1999, Damásio 1994, 1999, Clark 1997, 1999 etc. Tal modo de
enunciar encontra sintonia nos escritos do etólogo Richard Dawkins, que propõe o
meme como sendo a unidade da cultura. Residente no cérebro, o meme, essa undade
de informação, estende-se em fenótipos diversos criando uma conexão singular entre
corpo e ambiente, assim como entre corpo e artefatos e entre corpo e cultura.(2002:85)
O corpo é uma mídia, um processo constante, permanente e transitório, de
assentamento dessas trocas inesgotáveis com o ambiente onde mora. E a dança como
um pensamento que transita entre Biologia e Cultura, uma vez que assumimos a
habilidade de dançar se formar a partir do sensório-motor do corpo que, como qualquer
outro organismo se transforma pela informação que agrega.
A partir das questões abordadas acima, como é possível relacioná-las na prática de
um laboratório de criação?
Uma tendência no pensamento contemporâneo é a de que o criador precisa “dar
conta” de diferentes estratégias assumindo diferentes papéis na construção e
formalização de uma idéia. Neste sentido, o corpo gerencia uma série de problemas
provocados por questões que estão implícitas entre idéias e ações corporais no espaço.
Por tudo isso, a necessidade de gerar mais informações nesses novos tempos é conduta
obrigatória, o que exige do aluno um aprendizado de forma conectiva entre diferentes
universos.
Criar um espaço de investigação na linguagem cênica torna-se importante para o
aluno testar no corpo outras construções. No mundo contemporâneo, estas configurações
surgem num ambiente que está entre diferentes fronteiras cujos limites estão cada vez
mais borrados. O desafio é construir algo no corpo de modo singular e específico do
67
universo da dança, ao mesmo tempo em que se dialoga com outros universos, sejam
estes, da física, biologia, psicologia, teatro. Helena Katz defende que um corpo ao
aprender a dançar, promove uma das mais extraordinárias assembléias entre as suas
aptidões evolutivas, uma vez que dançar implica na montagem de uma teia
sofisticadíssima de acordos entre os sistemas envolvidos na formação do corpo humano.
Buscamos estabelecer uma relação direta entre o corpo e o espaço cênico que implica
diferentes atitudes, a partir de conexões inusitadas. Estas perpassam a disponibilidade de
trocar idéias com outros, como também uma prontidão: ao escolher, percorrer e resolver
publicamente um problema. Dançar é um problema!
O interesse neste momento é explicar como a disciplina “Laboratório de Criação”
interligou as idéias abordadas anteriormente18 aos experimentos práticos de classe.
No mundo contemporâneo lidamos com diferentes modelos de corpos, muitos deles
com experiências bastante diversas. Este panorama também se reflete na sala de aula.
Somamos ainda a esta diversidade de histórias corporais um nível técnico diversificado
com diferentes graus de complexidade.
De antemão, um grande desafio é, como implantar no outro um pensamento de
criação cênica, tendo como referência que o outro tem uma história específica e que
também faz parte de um conjunto de pessoas com grande taxa de variações entre si.
Refletindo sobre estas questões, a idéia na formatação desta disciplina foi propiciar um
ambiente de convivência que agregasse de fato as diferenças e, ao mesmo tempo, se
dirigisse pela singularidade de cada estudante.
A partir destas considerações acima levantadas, tentaremos demonstrar como fomos
organizando e, conseqüentemente formatando a disciplina “Laboratório de Criação”.
18
Ver páginas 57,58,59,60,61 e 62.
68
7 um procedimento de aprendizado para criação.
Uma preocupação foi criar neste espaço de aula, possibilidades conectivas entre
diferentes realidades. Aqui, realidade é compreendida como uma possibilidade de recortar
no tempo e no espaço um grupo de idéias e valores com relação a alguma coisa. É
importante, para este ambiente, legitimar como verdade possível, o reconhecimento de
um determinado objeto19. Por exemplo: uma realidade pode ser observada em um grupo
de alunos que, a partir de um convívio, vão apresentando regras, atitudes e valores como
extensões de seus pensamentos em relação à dança.
É como se esta realidade fosse sendo construída a partir das possibilidades de uma
apreensão de mundo, e em função da evolução delas. Esta idéia nasce do conceito de
“Umwelt” proposto por J. Uexkul e citado na tese de Jorge Vieira20:
O fato de dependermos de fenômenos para não somente “conhecer” a realidade, mas
sobreviver nela; de dependermos de codificações inicialmente só possíveis através de
transdutores biológicos gerados e adaptados por otimização às exigências de um
meio ambiente não vivo; de cada um de nós como sistema e indivíduo, sofrermos
histórias diferentes, mesmo pertencendo a uma mesma espécie; e além de tudo isso,
imersos em nossos Umwelten, herdarmos uma complexidade que permite a
emergência de “mundos mágicos” ( ST:377), tudo isso em conjunto fala de uma fusão
entre fenomenalismo, relativismo, perspectivismo e ficcionalismo, este último a raiz
biológica evolutiva das formas de pragmatismo, inclusive a de Peirce.”(1994:116)
Esta realidade está sempre carregada de algum significado. Pode ser de um
significado mitológico, de um significado sociológico, de um significado teórico ou outros
mais. O grupo aprende a legitimar, nesta convivência mútua, uma realidade como uma
verdade a partir destas representações, que fazem parte de um conjunto de idéias e
valores. É uma estratégia de comunicação para que a sala de aula continue crescendo e
se entendendo. Complementando:
Um Umwelt particular é uma construção perspectivista imposta pela história evolutiva
de um sistema vivo. Quando o signo surge como mediador entre sujeito e realidade,
ele reflete algo desta, pelo mero fato do sistema ter conseguido sobreviver! O que
Uexkull diz é que, quanto mais complexo é o sistema vivo, mais complexo é o seu
19
Objeto se refere a mais do que habitualmente se pensa como objeto, ou seja, pode ser desde uma idéia até uma estratégia prática. 20
VIEIRA, Jorge (1994). Semiótica, Sistemas e Sinais. Tese de doutoramento defendida no Programa de Comunicação e Semiótica da PUC/SP.
69
Umwelt, no sentido de conter mais e mais signos coerentes com a realidade. O Umwelt
de um verme ou de uma pulga é realmente bem mais simples que o nosso, mas essa
simplicidade é construída com traços selecionados da realidade que garantem
segurança ao sistema. E aí, para nós, o que surge com o nosso conhecimento
aparentemente “sem objetivo” (mas segundo um plano, conforme ele bem diz) é uma
dilatação de Umwelt, que através da intersubjetividade significa uma construção da
espécie e não de um indivíduo. Notar que nos animais inferiores, essa construção já
existe, possivelmente a nível genético, como é o caso de pássaros e seus vôos
migratórios. Todos os pássaros de uma certa espécie partilham um vôo (inato, talvez
controlado externamente por índices ambientais) que garante sua permanência. Há
assim o Umwelt particular, construído em torno de experiências e histórias
particulares e há esse, básico, geral e partilhado, internalizado e manifestando-se
como inato.” (1994:117)
Voltando ao exemplo da classe de aula, podemos afirmar que na medida em que ela
convive, a sua realidade, o seu Umwelt, dilata-se e se torna cada vez mais complexo. A
realidade desta classe depende: 1) do grupo de alunos que ali convivem; 2) de quais as
regras que este grupo estabelece na convivência do dia a dia com seu professor; 3) do
espaço físico onde a classe está inserida na universidade - sala grande, sala pequena,
sala apertada, pouca ventilação, chão adequado ou não - a arquitetura e o lugar da sala
de aula referente a espaço, influencia os corpos que ali convivem e suas relações.
Uma noção de realidade sempre depende de muitos fatores e por isso mesmo sua
compreensão será sempre muito relativa e objeto de grandes discussões teóricas e
práticas.
Realidade pode ser considerada como um tipo de conhecimento especial, construído
a partir de certas convivências apreendidas, que proporcionam aprendizados e vivências
diferentes, tendo como referência um mesmo objeto. Um exemplo, talvez, seja o de
lembrar a trajetória de um aprendiz em dança. Dependendo do envolvimento que tem com
este universo, este aluno, aos poucos, vai entrando em contado com um vocabulário que
é específico do mundo da dança, como os nomes dos passos, das diferentes técnicas,
dos diferentes pensamentos e estratégias que circulam nesta linguagem artística.
O estudante vai se dando conta dos diferentes níveis de aprendizados e das muitas
opções possíveis para a construção de uma trajetória artística/profissional. Ele precisa
aprender a selecionar técnicas mais adequadas ao seu biotipo e às suas expectativas em
relação à dança, e, para tal, é importante a escolha de uma escola em que a abordagem
70
da dança esteja em acordo com o que ele, enquanto aprendiz, gostaria de desenvolver.
Este aluno deverá ficar atento e se perguntar porque alguns espetáculos agradam mais
que outros. Neste percurso, nada permanece imóvel, estático. O meio da dança vai se
modificando e o envolvimento deste aprendiz também; as mudanças e escolhas
acontecem em vários níveis e, muitas vezes, de forma simultânea.
Aqui, saberes e universos são entendidos de forma interligada. Se não sabemos, fica
impossível ampliar uma relação de entendimento com o que nos cerca. Devemos
aprender a estabelecer comunicações entre saberes e diferentes universos. Acreditamos
que o aprendizado de forma contínua e interligada proporciona tais comunicações. Sejam
estas entre universos artísticos, científicos, psicológicos e sociais. Prigogine e Stengers
em seu livro “A Nova Aliança”, escreve:
Que mundo é esse a propósito do qual reaprendemos a necessidade do respeito?(...)
O que dizer do nosso mundo que alimentou a metamorfose contemporânea da
ciência? É um mundo que podemos compreender como natural no próprio momento
em que compreendemos que fazemos parte dele, mas do qual, se desvaneceram, de
repente, as antigas certezas: que se trate de música, pintura, literatura ou de
costumes, nenhum modelo pode mais pretender a legitimidade, nenhum é mais
exclusivo. Por toda a parte vemos uma experimentação múltipla, mais ou menos
arriscada, efêmera ou bem sucedida. (1984:225)
Voltando à estruturação da disciplina, buscamos provocar com as experiências de
classe a compreensão de que fazemos parte de um mundo que não se fecha às antigas
certezas de determinados modelos. Outra necessidade foi discutir na prática com
exercícios de criação, que nenhuma organização ou estabilidade é garantida.
Desejávamos despertar no aluno a necessidade da invenção com o espaço e com o
corpo enquanto estratégia de um diálogo mais humano com o mundo e
conseqüentemente com a própria criação.
Estimular um ato criativo no outro é ensinar o gerenciamento de atitudes em que o
sujeito se sente pertencente a um lugar. Quando percebemos que estamos integrados a
um contexto, nos tornamos responsáveis por ele. Esta qualidade de relação contribui para
uma interação mais livre com o outro, mas nem por isso, descomprometida. Retomando
Prigogine e Stengers:
Devemos aprender, não mais julgar a população dos saberes, das práticas, das
culturas produzidas pelas sociedades humanas, mas a cruza-los, a estabelecer entre
eles comunicações inéditas que nos coloquem em condições inéditas, que nos
71
coloquem em condições de fazer face às exigências sem precedentes da nossa época.
(1984:225)
Nosso desejo é despertar articulações inéditas. Aos poucos, entendemos que um dos
suportes importantes nesta disciplina é provocar um entendimento de investigação
corporal no aluno num fazer cênico. Este fazer tem uma competência prática, mas toda a
ação decorrente destes atos, cursaria por diferentes culturas, outros saberes, outras
histórias, muitas tentativas e alguns acertos.
72
8 Construindo ações.
Aliada às questões anteriores, outro desafio é encontrar uma forma que instigue a
cada aluno na sua investigação corporal uma ação carregada de, pelo menos, dois
objetivos comuns.
O primeiro o da implantação de determinadas instruções no corpo que provoque no
aluno a possibilidade de organizar uma partitura corporal de forma autoral. Quer dizer, a
partir de determinadas instruções, o aluno é estimulado a formatar de um jeito próprio e
pessoal, partituras de movimentos que dialogam entre a ordem solicitada e o repertório
corporal que cada um carrega para a sala de aula. Este repertório lida com a natureza
psicológica e emocional de cada aluno e o histórico na formação que o aluno apresenta.
Este histórico passa pela trajetória familiar e social do estudante, além do que, o corpo
deste aprendiz carrega uma formação que geralmente veio do ensino fundamental, ensino
médio, ensino técnico, cursos de extensão, cursos de formação e muito mais.
Outro objetivo é o da possibilidade de interagir de forma criativa no mesmo espaço
com outros assumindo as diferenças entre cada um. As instruções são compartilhadas
igualmente como uma estratégia para se construir um diálogo comum entre todos, mas
que, ao invés de escamotear as diferenças ou desníveis, reforçar o quanto é possível
construir junto, assumindo as diferenças. É um trabalho que exige paciência, humildade e
honestidade em relação ao próprio corpo e ao outro corpo, de cada aluno envolvido no
processo de classe.
O que está implícito nesta forma de implantação, focando um pensamento criativo no
outro e com outros, é permitir outras possibilidades de organizar o corpo cenicamente que
aposta na liberdade para sair das eventuais regras ou modelos pré-estabelecidos e que
de algum modo aglutinam o conhecimento como algo compartilhado.
De que maneira seria possível implantar uma instrução no corpo do outro e, de
alguma maneira, deixar que esta provoque em cada aluno uma ação enquanto
confluência da história específica do aluno?
Trata-se de investigar a existência ou não de uma regra geral para trabalhar de forma
simultânea as interfaces dos ambientes artístico e científico. Eles têm as suas
especificidades, mas quando experimentados no contexto da dança, fornecem
possibilidades amplificadas de criação.
73
9 Conteúdos e Estratégias.
Em relação aos conteúdos e suas estratégias, procuramos extrair outros padrões a
partir das interações dos diferentes corpos entre si e destes com o ambiente, utilizando a
respiração como porta de entrada e de saída.
Focar a mecânica do sistema respiratório na relação de uma construção cênica tem
contribuído para que o aluno organize no espaço, um conjunto de ações físicas corporais
que surgem de diferentes negociações no corpo. O procedimento de prestar atenção ao
movimento de expirar e inspirar, acarreta uma escuta diferente em relação ao próprio
corpo e as suas relações com o ambiente. Na verdade, esta escuta obriga o aluno a
entender o que é que está acontecendo com o corpo no momento em que ele aciona uma
determinada instrução.
Toda essa atenção na escuta, a partir de movimentos respiratórios, tem provocado
uma atitude diferente do corpo em relação ao ambiente em que ele está inserido. No
momento da implementação das instruções é instaurado um estado de percepção
diferente em relação ao corpo, ao espaço e nas resoluções que o aluno escolhe para
intervir no espaço.
Essas intervenções acontecem da seguinte maneira: cria-se um plano no espaço em
que qualquer que seja a atitude corporal escolhida pelo aluno (seja esta, deitada, sentada,
de pé, sobre uma perna só, etc) deverá sempre respeitar que no movimento de inspiração
do corpo o aluno não faça nada no espaço. Simplesmente assiste o que acontece à sua
volta. No movimento de expiração é o momento em que ele deve intervir no espaço a
partir de uma atitude corporal diferente a anterior. Nesta seqüência, entre pausas e
ataques, uma prontidão se aguça no espaço daquele corpo. O aluno é obrigado a dialogar
com rigor entre o que acontece no corpo e a instrução solicitada pelo professor.
Este estudo tem possibilitado relações diferentes entre os corpos e os sons que são
gerados neste processo e que podem dar lugar a novas atitudes corporais. Assim, estes
corpos diferentes que invadem e são invadidos por este ambiente, provocam nele sons,
ruídos e “barulhos”. Os ruídos, no sentido lingüístico, são as mutações que ocorrem por
pequenas deformações próprias das repetições, e que no decorrer do tempo podem vir a
apontar novas formas a partir desta interação do ar/corpo/som. Neste contexto, são
trabalhadas também diferentes dinâmicas de movimentos que partem de algumas
abordagens práticas sonoras/corporais.
74
Este pensamento vem sendo construído e sistematizado enquanto possibilidade
estratégica na formalização e construção de um corpo cênico contemporâneo.
10 Criando em rede...Coreografia.
Nesta disciplina, algumas palavras em diferentes momentos, sempre aparecem. Elas
surgem quando se cria uma necessidade de clarear para o grupo de alunos algumas
implicações que coexistem na manipulação e criação de uma composição coreográfica.
Vale relembrá-las, pois são referências que, de alguma maneira, colaboram na
construção de um vocabulário compartilhado com aqueles que estão discutindo,
experimentando, refletindo e transformando o tratamento de um corpo no espaço da cena
no dias de hoje.
Para a elaboração e construção de um corpo na cena contemporânea, usamos, com
freqüência, palavras como acaso, ambiente, corpo, conectividade, conjunto, construção,
diversidade, escuta, foco, instrução, modelo, partitura, rede, silêncio, simultâneo, todo e
outras. Por que esses termos direcionam e colaboram nessa organização de um
pensamento cênico na contemporaneidade? Uma hipótese é que neles estão implicadas
“questões chaves” de qualquer elaboração contemporânea.
Em 1997, a coreógrafa Susan Buirge convidou a crítica de dança Laurence Louppe
para participar de um encontro num ateliê sobre a produção de composição da arte
moderna e contemporânea, voltada para a composição coreográfica. A questão principal
deste encontro era conduzir uma reflexão sobre as condutas de elaboração que ligam as
artes entre si e suas diferentes tendências.
É essencial para compreender os fins e os meios de que são feitas as danças
modernas e contemporâneas, captar o conjunto do campo artístico onde ela se inscreve e
as problemáticas que elas atingem (ou não, e por quê) com as outras atividades artísticas.
Os dançarinos descobrem suas ferramentas específicas para aplicar à dança os objetivos
e os procedimentos elaborados em outros campos. Partem de um questionamento
expressivo, filosófico, em que eles se cruzam e nos quais eles estão inscritos.
A bela idéia de Buirge foi integrar um discurso histórico a um ateliê de composição e
fazer os estagiários entrarem nas diferentes construções (ou desconstruções, figuras
sintáticas contemporâneas a serem colocadas na mesma perspectiva das outras) que a
dança e as artes têm compartilhado nas diferentes etapas da sua modernidade.
75
Não é evidente que o dançarino no presente, mais do que nunca, necessite conhecer
e explorar esse grande manancial de recursos? Não somente para forjar ferramentas,
mas também, para poder assumir sua condição de artista contemporâneo, para quem as
escolhas não emanam somente de resoluções imediatas e instintivas, o que o deixa
muitas vezes desarmado diante dos modelos vigentes. A idade contemporânea, assim
definida pelo Historiador de Arte Paul Ardenne, pede, ao contrário, um olhar distanciado
de todo o gesto artístico:
o recurso ao tempo e o ecos do tempo que é também para o artista um instante dado
da arte, porque quão uniforme, suscita a emergência de temporalidades íntimas,
variáveis, moldadas pelo reservatório proteiforme de referências que atravessam os
campos da arte viva. (1998:12)
Assim sendo, esta história não deverá relevar a transmissão normativa ou monolítica.
Somente o ateliê de composição pelas experiências dos corpos, pela aproximação íntima
e integrada deste reservatório de referências pode conduzir à profundidade “de uma
história singular derivada da história: uma história da história da arte à escala do artista”.
Cada ateliê, portanto, se faz no trampolim desta “história singular” que o dançarino
reconduz (e transforma) a cada instante no seu próprio movimento.
Mais enigmático, mais perturbador que uma simples enumeração histórica, se faz
necessário o mistério dos isomorfismos21, a idéia de uma sintaxe generalizada que
poderia se propagar de uma prática à outra, como se ali houvesse já as estruturas de
desenvolvimento nas quais um gesto, um som ou um ato poderiam traçar seu próprio
caminho.
Desde o início do século XX, a contestação de uma “mimesis” como imitação do
gesto, voz ou palavras de outrem, dos modos tradicionais de uma representação clássica
foram tão importantes para o nascimento da dança moderna como para o conjunto das
artes plásticas. Foi um primeiro cruzamento. Isso será importante para tudo que se segue.
Ainda hoje, esta necessidade permanece ardente e forte. Diferentes ligações mostram
trocas de um estado visível, como dos corpos de outros espaços de manifestações. Todo
o início do século XX pensou a arte como um dispositivo revelador do invisível; tradução
de uma realidade que escapa provisoriamente à percepção mas que, seguida a um certo
trabalho, poderia extrair esta realidade de um grupo que se guarda e se dedica no
secreto.
21
Correspondência biunívoca entre os elementos de dois grupos que preserva as operações de ambos.
76
As razões destas invisibilidades são de diversas ordens: para os expressionistas, por
exemplo, seria a “necessidade interior” interrogada na existência de um campo subjetivo –
a criação.
Ao discorrer nestas reflexões a professora e atriz Sônia de Azevedo nos lembra da
coreógrafa e bailarina Doris Humphrey22, ex-aluna da escola Denishawn23 entre uma de
suas falas sobre composição:
Concebo o movimento utilizado pelo dançarino como resultado de um equilíbrio. De
fato, toda a minha técnica resume-se em dois atos: afastar-se de uma posição de
equilíbrio e a ela voltar. Trata-se aqui, de um problema bem mais complexo do que
manter-se em equilíbrio, o que está ligado à força muscular e à estrutura corporal. Cair
e refazer-se fall-recovery constituem a própria essência do movimento, deste fluxo
que, incessantemente, circula em todo ser vivo, até em suas partes íntimas. A técnica
que decorre destas noções é surpreendentemente rica em possibilidades.
Começando-se por simples quedas no chão e voltando-se à situação vertical,
descobre-se diversas propriedades do movimento que se acrescentam à queda do
corpo no espaço. Uma é o ritmo. Ao efetuar uma série de quedas e voltas à posição,
fazemos aparecer tempos fortes que se organizam em seqüências rítmicas. Um outro
dado é o dinamismo, ou seja, a mudança de intensidade. O terceiro elemento é o
desenho. (2002:77)
Humphrey sistematiza a composição coreográfica focando o movimento em três
dimensões: desenhos no corpo, ritmos e dinâmica.
Humphrey e Martha Graham (ver página 57) representaram duas matrizes do
pensamento da dança moderna americana. Ambas foram integrantes da Companhia
Denishawn, dotada de um repertório bastante eclético, sob a direção de Ruth Saint-Denis
e Ted Shawn. Apesar da experiência na Companhia Denishawn, tanto Graham, como
Humphrey, optaram por se desligar da companhia e construir, cada uma, a seu modo, um
outro sistema de dança.
22
Doris Humphrey (1865-1958) foi dançarina, coreógrafa e pedagoga americana. 23
Escola e companhia de dança americana instalada em Los Angeles (1915-19310) – A primeira escola que formou os principais criadores de dança moderna foi a Denishawn, fundada e dirigida por Ruth Saint Denis e Ted Shawn.
A união destes precursores trouxe para o desenvolvimento da dança duas contribuições fundamentais: -um enriquecimento do vocabulário, pela integração das contribuições das danças do oriente ou, mais exatamente, não ocidentais. -uma teoria e uma técnica sistemática da dança enquanto expressão dos sentimentos e vontade do homem. (1980:73)
77
Apesar das diferenças, ambas apontam para a necessidade de se permitir que
referências históricas e sociais de seu país e a sua época contaminem o próprio fazer
artístico. A dança não é para Graham um espelho da vida, mas sim uma participação na
vida, uma libertação da vida. Ela define sua técnica da seguinte forma:
A minha técnica é fundamentada na respiração. Tenho baseado tudo que faço na
pulsação da vida, que é para mim a pulsação do fôlego. Toda vez que se inspira ou se
expele vida, realiza-se uma liberação ou uma contração. Isso é essencial para o corpo.
A pessoa nasce com esses dois movimentos e conserva ambos até morrer. Mas o
bailarino começa a usá-los com consciência para que sejam dramaticamente
proveitosos para a dança. Deve-se animar essa energia dentro de si mesmo. A energia
é o que sustenta o mundo e o universo. Ela anima o mundo e tudo dentro dele.
Reconheci no início de minha vida que existia essa energia uma centelha animadora...
(1993:43).
Graham e Humphrey fazem parte da chamada dança moderna. As suas danças eram
construídas a partir de significações universais. Ambas viveram uma época de angústia e
revolta e, para poderem expressá-la, criaram outras ordens de dança. A Primeira Guerra
Mundial e a terrível crise de 1929 fizeram vir à tona diferentes horrores. Nada disso
deveria ser omitido.
Uma das tarefas do coreógrafo é nutrir-se da seiva do mundo em que vive, penetrar
na sua cultura e no ardor de sua civilização. Nesse sentido, o pensamento moderno de
uma construção coreográfica procura pôr em evidência o desenho das grandes formas
em crescimento e das linhas de força de uma vida diária: as cidades imensas onde
dominam a linha e os ângulos retos, onde surgem novas máquinas, novos projetos, novos
confrontos.
Doris Humphrey quis inocular estas forças na dança, sem com isso refleti-las apenas
passivamente, satisfazendo-se com as formas do nosso tempo. Ela achava ao
contrário, que se devia participar plenamente do dinamismo deste mundo para criar
uma arte capaz de contribuir para sua humanização. Garaudy (1980:125)
Um traço fundamental nas invenções de Graham e Humphrey foi o fato de ligarem as
suas danças e técnicas à própria lei da vida. Pode-se afirmar que o conflito maior da
dança de Graham originava-se dentro do homem e o ponto de maior tensão na proposta
de Doris Humpphrey partia do conflito entre o homem e o seu meio.
78
Trazendo para a dança contemporânea de agora, um interesse maior em relação a
uma estética cênica não estaria centrado unicamente em determinadas formas ou
determinados resultados de movimentos específicos, mas no que estas formas produzem
no corpo no momento em que estamos dançando. Isto é assim desde o início da
modernidade e agora parece mais ressaltado. É por isso que ao olhar para a
modernidade dizemos: além da forma nos interessa o que ela gera no corpo dançante. O
diretor teatral Peter Brook comenta:
Não é suficiente que o ator encontre sua própria verdade – não é suficiente que siga
cegamente os impulsos que provêm de seu interior e que ele não consegue entender.
Precisa de uma compreensão que, por sua vez, deve aliar-se a um mistério mais vasto.
Só poderá descobrir esse vínculo através de um profundo respeito para com aquilo
que chamamos forma. Forma é o movimento do texto, bem como seu próprio modo
individual de captar esse movimento. (1994:95)
Em diferentes técnicas sistematizadas, como as do pensamento romântico ou
moderno, a repetição é parte do treinamento e do processo criativo. Essas vivências
passam pela repetição diária de exercícios e de seqüências pré-estabelecidas. Para
muitos coreógrafos, a repetição de determinados esquemas corporais são estratégias
utilizadas na construção de determinadas composições coreográficas. A professora Ciane
Fernandes24 lembra que no processo criativo da coreógrafa alemã Pina Bausch, a
repetição torna-se instrumento de outras ignições no espaço coreográfico:
A repetição torna-se instrumento criativo por meio do qual os dançarinos
reconstroem, desestabilizam e transformam suas próprias histórias como corpos
estéticos e sociais. O método é inicialmente usado para fragmentar as experiências
dos dançarinos e a narrativa de suas frases de movimento. Eventualmente, produz
uma continuidade distinta, transformando as histórias daqueles corpos, bem como
nossos (pré) conceitos e percepções de nossa própria história corporal como platéia.
(2000:42)
Na cena, a repetição de movimentos referentes a determinados contextos
socioculturais, promove no ambiente cênico uma reinvenção dos seus significados. Neste
caso, repetição não é entendida como reprodução integral de uma determinada partitura
para se aproximar cada vez mais da referência estética de um modelo específico ou
24
Ciane Fernandes é professora adjunta do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas e da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia (UFBA), MA (1992) e PH.D. (1995) em Artes & Humanidades para intérpretes das Artes Cênicas pela New York University.
79
produto final e perfeito. Repetição, aqui, é entendida como estratégia para
experimentações, permitindo construções a partir de outras percepções. Essas colaboram
no acionamento de novas ignições no corpo, modificando nossas relações com o
ambiente que ocupamos. A partir deste viés, no corpo, a repetição provoca padrões
emergentes, relações são transformadas no ambiente corporal enquanto necessidades de
soluções encontradas pelo corpo no momento do acionamento de suas ações. Diz Katz:
A cada vez que faz/refaz cada passo, simplesmente está realizando o fantástico
mecanismo de recriar, simultaneamente, tanto as leis que permitem a cada
acontecimento ser processado, como o próprio acontecimento. (1997/98:14)
Nesta reflexão, Katz chama atenção para uma aventura maior: pensar a dança como
um traço evolutivo. No caso do espaço coreográfico, o coreógrafo tem a necessidade de
inventar outras possibilidades de comunicação do corpo. O espaço da cena é uma
espécie de laboratório em que suas hipóteses são testadas. Uma linguagem coreográfica
é muito mais que a enunciação formal de um determinado vocabulário. Reflete uma
filosofia do corpo, uma abordagem corporal específica a partir de uma prontidão em
relação ao espaço e a relação estabelecida a partir de uma visão de mundo que o
coreógrafo estabelece. A pesquisadora de dança Laurence Louppe comenta:
Para que uma mistura de fato ocorra, é necessário trabalhar no aspecto qualitativo da
dança, a relação do dançarino com o mundo. Isto pode levar uma vida inteira. Observe
como os dançarinos de jazz combinam a pulsação vertical e a síncope barroca
ocidental com o poder lateralizado do movimento africano. O resultado é uma nova
cultura expressa em novos “modos”, e não apenas a enunciação de figuras motrizes
justapostas. (2000: Lições de Dança 2)
Louppe reforça que não basta a manipulação do corpo que dança ocorrer
simplesmente como uma intervenção a determinadas circunstâncias: sejam estas
respostas no caso de uma dança permanecer mimética e os movimentos não serem mais
que uma auto-figuração sem interesse, ou ainda, no caso de ultrapassar essa extensão
formal, a consciência do intérprete mostra-se fragmentada e as referências que
organizam a prática do seu corpo se mostram dispersas.
As origens históricas dessa situação nos levam ao início dos anos 80, quando houve
uma quebra na tradição da dança em que a criação de condições corporais estava
geralmente associada às coordenadas estéticas e filosóficas dos grandes criadores
(inventores de coreografias, que também inventavam corpos). Explica Louppe:
80
Os anos 80 foram testemunhas da emergência do que a escritora e dançarina Dena
Davis chamou de “corpo eclético”: um corpo híbrido engendrado pela mistura de
aprendizados, acolhendo em si elementos díspares ou mesmo contraditório, sem que
lhe sejam dadas as ferramentas necessárias à leitura de sua própria diversidade. Davis
vê uma conexão entre a emergência desse “corpo eclético” e a perda do ideal da
Gesamkunstwerk (conceito wagneriano da obra de arte total), onde a coerência dos
materiais reunidos, inclusive a constituição dos corpos, parecia ir por si só. Perda em
proveito do que ela chama de “a estética da era satélite” (citando Rose Lee Golberg),
onde a pulverização dos dados produz, por precipitação inesperada, obras pontuais,
destituídas de qualquer permanência em sua referência. (2000: Lições de Dança 2)
11 Entre fronteiras borradas... O intérprete- criador.
A partir dos anos 60, no espaço da cena, instaura-se o intérprete-criador. Hoje, cada
vez mais nos deparamos com o perfil deste intérprete de dança que agrega certas
características na sua atuação. A princípio, esta atuação conflui num fazer integrado e
interligado de ações inventivas. Estas transitam nos mais diferentes processos de
construções coreográficas entre sensíveis criadores: o coreógrafo e seus intérpretes.
Apesar da inventividade de ambos no percurso coreográfico, em cada intervenção estão
implícitas diferenças entre esses dois papéis. O coreógrafo é o principal formulador do
plano geral do pensamento coreográfico e o intérprete neste caso, cria soluções locais,
singulares a partir das propostas colocadas pelo coreógrafo.
Neste sentido, a substituição de um intérprete numa obra que se relaciona com este
tipo de construção, sempre é problemática: tanto para o coreógrafo quanto para o
pensamento implícito neste acontecimento coreográfico. Tal circunstância é decorrente de
dois aspectos: um é o fato de que a maneira pela qual o discurso é desenvolvido na cena
coreográfica depende do entendimento da proposta por parte do intérprete. Esta
compreensão passa pela competência do seu corpo. Outro aspecto é que o
encadeamento da obra está diretamente ligado e determinado por esta intervenção do
intérprete.
Nesta construção coreográfica cada vez mais se tornam distantes as estratégias de
audição pública para angariar intérpretes. Este coreógrafo assume seus intérpretes como
parceiros. Ele escolhe seus companheiros. Como um casamento, viver a dois pode vir a
ser muito bom ou não. Tudo dependerá do modo como conviveremos com o outro. Tal
81
convivência está intrinsecamente ligada à competência de cada corpo, à história e à
trajetória de cada corpo e o que tudo isso produz na relação com o outro. Além disso, as
atitudes corporais dependem das nossas posturas a partir de outros conhecimentos.
Estas passam por um olhar filosófico em relação ao mundo que cada intérprete carrega, o
que não está dissociado de uma prática corporal.
Voltando ao início desta tese: só podemos criar conceitos porque temos experiências
e vivências com o corpo. Tal afirmação define a conceituação daquilo que pretendemos
fazer. Varela, Thompson e Rosch consideram:
Então esse agente – o Construtor – solicita a ajuda dos subagentes Iniciar,
Acrescentar e Terminar, e esses subagentes requisitam ainda outros agentes, como
Encontrar e Pegar. As atividades de todos eles se combinam para realizar a tarefa de
construir uma torre. (2003: 119)
Um olhar neste tipo de construção coreográfica corresponde a uma descentralização
do papel do próprio coreógrafo. Existe aqui, a necessidade de criar diferentes parcerias
enquanto possibilidades interventoras em uma mesma obra coreográfica. As
especificidades são decorrências de diferentes diálogos proporcionados por uma equipe
que colabora na construção de uma obra coreográfica.
Voltemos para o intérprete. Ele se torna co-responsável numa cadeia de eventos que
jamais teriam ocorrido não fosse por seu modo de intervenção no espaço da cena. Esta
intervenção é decorrente de um corpo treinado. A maneira como este corpo resolve os
problemas, no percurso da elaboração deste modo de coreografar, colabora no
surgimento de outros modos de organização no espaço do corpo, como no espaço da
cena. Nos estudos do coreógrafo Rudolf Laban25 sobre movimento, apontava-se a
responsabilidade de cada ação pelo fato dela gerar conseqüências:
“As coisas são o que são e as conseqüências serão o que serão”, conforme já dizia
Butler, o grande escritor inglês. O homem vai criando o seu destino mais ou menos
consciente, mas os atos e omissões de seus companheiros interferem e modificam a
luta criativa e particular do indivíduo. (1978:157)
Cada vez mais se torna complexa uma referência ao intérprete –criador: um intérprete
que está intrinsecamente ligado ao surgimento de outros padrões de movimentos em uma
construção coreográfica. Na ficha técnica de uma determinada coreografia, pelo fato
deste intérprete aglutinar na sua condução cênica diferentes fazeres, ele também
25
Rudolf Laban ( 1879-1958) foi dançarino, coreógrafo, maître de ballet e teórico austro-húngaro e alemão.
82
colabora com o autor na construção de uma obra coreográfica. Tal colaboração está
associada na busca de outros padrões de movimentos e de certo modo na edição destes
vocabulários na cena coreográfica. Não quer dizer que não exista o diretor ou coreógrafo.
Porém, neste pensamento contemporâneo, o intérprete é também criador.
O perfil do intérprete–criador se instaura nos anos 60 pelo ingresso de um indivíduo
no espaço cênico que é sujeito e autor. É provável que esta intervenção na cena nascida
ao mesmo tempo enquanto sujeito e autor origina-se na performance. O criador de acordo
com o artista – performático e professor Renato Cohen:
Privilegia-se, na nova cena, o criador – em presença -, sua voz autoral, em que se
acumulam as funções de direção, criação da textualização de processo e linkage da
mise-en-scène. Desloca-se, na verdade, os procedimentos da performance, em que
criador-atuante partituriza seu corpo, sua emoção, subjetividade, suas relações com a
escala fenomenal, com o espaço, tempo, materiais, para a extensão grupal, a operação
cênico-teatral. (1998:28)
Um aspecto fundamental no treinamento deste intérprete-criador é intervenções no
próprio corpo. Este artista precisa penetrar no próprio corpo para conhecer. Neste caso,
conhecer é criar, isto é, dar existência ao que não existia antes. Não sabemos que
aparência uma obra terá, até o ponto em que o processo vai configurando no espaço seus
diferentes caminhos.
Ao intérprete–criador caberá compreensões e coerências na resolução de novos
problemas. No espaço, o corpo apontará possibilidades de diferentes construções. Neste
sentido, este intérprete deverá aguçar uma escuta corporal em relação a diferentes focos
na linguagem de movimentos. Estes focos são ocorrências que dependem da execução e
entendimento do intérprete de acordo com o projeto poético do coreógrafo.
84
1 Histórico.
Neste momento, nossa fala se transporá para a primeira pessoa do singular. É um
breve relato, a partir do que foi possível captar com um olhar. Meu corpo dança, meu
corpo percebe o espaço se movendo. Existe uma necessidade própria que está
mergulhada em muita curiosidade toda vez que dirijo o meu olhar para algum lugar,
pessoa ou alguma coisa diferente. Essa atitude em relação ao que me cerca provoca um
desejo grande de aprender algo sobre este diferente.
Nesse tempo de muitos estudos acadêmicos, as idéias que me eram apresentadas
num primeiro instante me causavam um certo estranhamento devido à sua complexidade.
Porém, com a minha paciência e disciplina, escutava sempre. O interessante é que
muitas vezes eu acabava elegendo determinadas linhas de pensamentos porque os
professores, sem querer, nas suas explanações, deixavam escapar suas paixões,
desafetos, críticas, e nesse momento algo diferente acontecia na minha percepção. Se
alguém pedisse explicações sobre as teorias apresentadas, eu teria dificuldades para ser
precisa. Em contrapartida, quando ensaiava, aquelas sensações invadiam os meus
gestos. Nesse momento os gestos me dirigiam para leituras. As leituras me provocavam
diferentes conversas com colegas e professores. De alguma forma, eu captava em
movimento estas idéias apresentadas na universidade.
Hoje não é mais possível falar do Musicanoar sem assumir esta minha contaminação.
Todos os integrantes do grupo convivem de alguma forma com muitas das reflexões que
a universidade provocou em mim.
Formei o Musicanoar com o músico Rogério Costa em 1992. Este nome foi criado a
partir da idéia de que qualquer corpo em movimento está sempre estabelecendo um atrito
com algum corpo no espaço. Nesta linha de raciocínio, eu assumia que mesmo tendo um
espaço a princípio vazio, neste se agregavam partículas do ambiente que não
necessariamente são visíveis a olho nu, por exemplo, poeira, ácaros, átomos. Minha
percepção estava direcionada para a idéia de que, já que havia algum tipo de fricção
neste ambiente, o corpo neste contato devia criar algum tipo de ruído. Daí, a atenção a
estes diferentes ruídos me levavam a querer absorvê-los, organizá-los e nesta ação
assumi-los musicalmente. O pensamento formulado era de que o corpo quando dança
cria sons. Atenção! Não é uma relação de prisão entre música e dança. Defendia que o
corpo dançando deveria construir outros sons. Desde este momento venho
85
experimentando relacionar o corpo com uma “voz”. Esta seria criada na relação com
aquele ambiente. Com outra coreografia, construímos outras vozes.
Musicanoar é a música de um corpo que se move com ar. O ar nos invade e nós o
invadimos. Mais à frente, descreverei mais detalhadamente esta parceria com o Rogério.
Outro desejo neste percurso era de conseguirmos um crescimento e consolidação de
um trabalho artístico que incorporasse diferentes experimentos voltados para a pesquisa
cênica contemporânea e que assumisse dialogar de alguma maneira com o pensamento
científico. Este direcionamento confirma-se quando vemos que, desde 1995, foram
gerados vários espetáculos criados a partir da convivência com alguns pensamentos
teóricos apresentados pelo programa de Comunicação e Semiótica da PUC/ SP.
Neste percurso do Musicanoar tenho sido coreógrafa, diretora e intérprete. Outra
pessoa fundamental nesta trajetória a quem considero parceiro, professor e criador é Raul
Rachou. Este se integrou ao grupo em 1993.
Juntos nestes anos, nós três viemos elaborando, resolvendo e construindo em
diferentes níveis, muitas questões ligadas à cena e ao corpo de quem dança.
86
2 Espaço de dança Ruth Rachou: Um ambiente de ateliê.
Nestes últimos 20 anos, com a escassez de uma política cultural pública em dança
mais ampla e efetiva, o “Espaço de Dança Ruth Rachou” tem sido, de forma sistemática
um lugar de referência no fomento a diferentes produções artísticas, dirigidas à pesquisa
de linguagem cênica em dança contemporânea.
O “Espaço de Dança Ruth Rachou”, sem muito alarde, de fato tem-se configurado
como um ateliê coreográfico para muitos criadores. Um ponto fundamental para o artista é
um endereço fixo para o seu trabalho. O espaço de ateliê é o lugar que o criador
necessita no seu cotidiano para experimentar, sistematizar, trocar e configurar um
pensamento. Qualquer investigação artística no momento da construção lida com
hipóteses de diferentes naturezas. Estas vão sendo levantadas e testadas de várias
maneiras. O “Espaço de Dança Ruth Rachou”, de forma generosa, vem compartilhando o
seu teto com diferentes coreógrafos. Entre nós, muitas vezes brincamos que somos os
maiores abandonados, que por uma grande necessidade de criar, apesar da falta de
infraestrutura, ainda não abandonamos esta ação. Em parte, quem nos garante essa
sobrevivência é a escola da Ruth26 (é um jeito carinhoso de como nos referimos a esta
casa).
Desde a formação do Musicanoar ensaiamos semanalmente na Ruth Rachou.
Geralmente, nos encontramos três vezes na semana em ensaios com a duração de três
horas aproximadamente. Em vista das necessidades desse tipo de trabalho, sabemos que
é pouco, mas é o possível para que a escola amplie este gesto também para outros
colegas. Este lugar de ateliê nunca nos cobrou nada – nem dinheiro, nem aulas, nem
créditos, nem tarefas, nem contrato. Simplesmente abriu suas portas para muitos ali
criarem. Por isso, ele cumpre um lugar de ateliê coreográfico. Com este gesto, o Espaço
de Dança Ruth Rachou cria contaminações entre os diferentes coreógrafos que ali
convivem, no tempo que necessitarem.
Talvez o único contrato implícito nisso tudo é o de uma grande confiança e respeito
entre todos os artistas que ali convivem de forma independente. Atualmente, além do
Musicanoar as coreógrafas Vera Sala, Marcos Sobrinho, Juliana Rinaldi e Daniela Stasi
usufruem deste espaço como um lugar de ateliê.
26
Ruth Rachou é dançarina, professora e coreógrafa.
87
2.1 Ruth Rachou: referência de uma mestra em caminho diversificado.
Parte da minha trajetória na formação de dança enquanto intérprete e criadora está
contaminada por muitas aulas e cursos oferecidos por Ruth Rachou em sua escola. Conto
isto para dimensionar o quanto Rachou vem se dedicando à dança e apontando para o
fato de que entre teoria e prática não existe distinção – um bom intérprete precisa
entender o que acontece com seu corpo quando dança, assim como também um
professor precisa aprender a lidar com as diferentes naturezas de corpos que convivem
na sua aula. Por isso, a necessidade da pesquisa se torna um imperativo por toda a
nossa vida. Sabemos que o corpo muda, as regras se transformam e o mundo nunca é
igual.
Rachou, nos últimos 31 anos, desde que fundou a sua escola em 1972, vem se
dedicando a um trabalho extremamente sério, inicialmente voltado para uma formação
artística em dança moderna. Falar sobre seu percurso é assumir publicamente sua
importância na formação de muitos criadores da cidade de São Paulo. Ela tem propiciado
a muitos artistas que ali convivem ou conviveram, diferentes diálogos conectados com as
constantes mudanças em relação aos novos pensamentos e transformações do corpo.
Por suas aulas já passaram várias gerações de criadores. Entre estes podemos citar João
Maurício, Thales Pan Chacon (falecido em 1998), Suzana Yamuchi, J.C. Violla e outros.
Rachou pertence à geração pioneira da dança moderna brasileira. Uma geração que,
em São Paulo, tem como ponto de partida o histórico “Ballet do IV Centenário”, de 1954.
Quando esta companhia se dissolveu em 1956, Rachou dançou em vários outros grupos,
entre os quais, o “Ballet do Museu de Arte de São Paulo”. Nesta época também participou
de filmes musicais produzidos nos estúdios da extinta “Vera Cruz”. De 1960 a 1967
dançou no ”Ballet da TV Record”, então a emissora de maior prestígio no Brasil, com uma
programação voltada principalmente aos musicais. Em 1963, como coreógrafa do ”Ballet
da TV Record”, ganhou o prêmio Roquete Pinto.
Sua viagem para os Estados Unidos em 1967 marcou seu encontro com o
pensamento moderno. Ela vai especializar-se em dança moderna com os principais
nomes da dança moderna americana: Martha Graham, Merce Cunningham e José Limon
entre outros.
No seu retorno ao Brasil, Rachou continou expandindo seu fazer artístico entre novas
construções coreográficas, outras coreografias para a TV Cultura, além de expandir o seu
lado de intérprete trabalhando em diferentes espetáculos, entre diferentes coreógrafos e
88
diretores teatrais como Célia Gouveia, Ivaldo Bertazzo, Rennée Gumiel, Mara Borba,
Ademar Guerra, Naum Alves de Souza e José Possi Neto.
É interessante percebermos aqui, que entre as décadas de 40 e 60 surgiram no Brasil
outros espaços enquanto estratégias de sobrevivência para o artista de dança, como os
musicais, o cinema e a televisão. Este período apontou a necessidade do bailarino
expandir o seu fazer em outros ambientes de trabalhos. A orientação de mercado
funcionava de outro jeito e na evolução deste ambiente tal perfil se transformou também.
Hoje, a orientação que predomina está voltada para um mercado cada vez mais atrelado
a estrutura de marketing. Reconhecemos que, existe muita sofisticação, porém, são
bases fundamentadas e dirigidas a percentuais lucrativos e quantitativos. O “sucesso” é
ligado àquilo que vende e o “bom”, àquilo que todos entendem. Neste raciocínio, o artista
se torna refém de um mercado que menospreza o diferente, o diverso e novos
conhecimentos.
Intervenções artísticas ligadas à experimentação, investigação e pesquisa tem cada
vez mais dificuldades de permanência. É preciso muita resistência! Cabe ao artista se
colocar no mundo, também politicamente, para defender o seu modo de existência. Na
década de 80, Ruth nos ensinou esse papel quando assumiu sua eleição em assembléia
da classe, exercendo a presidência da Comissão de Dança da Secretaria Estadual de
Ciência, Tecnologia e Cultura. Depois é convidada a ser assistente do bailarino,
coreógrafo e professor Klauss Vianna (falecido em 1992), na direção do “Balé da Cidade
de São Paulo”. Consciente e ativa, ela ocupou espaços em movimentos artísticos
compartilhados por uma classe, além de assumir posições em diferentes papéis públicos
e politicamente estratégicos em decorrência de uma consciência de classe adquirida
nestas vivências.
A partir deste momento, Rachou introduziu em sua escola vários cursos inéditos em
escolas de dança, dirigidos à reflexão da dança, entre eles o curso multidisciplinar “Corpo
Inteiro”, um projeto piloto para o ensino da dança no 2º Grau. Posteriormente, produziu e
dirigiu a mostra “Inventores da Dança”, um espaço pioneiro para a revelação de novos
coreógrafos. Nestas mostras surgem novos intérpretes–criadores. Entre eles destacamos
Vera Sala, Thelma Bonavita, Maria Mommensohn, Lela Queiroz, Beto Cidra, Ana
Galmarino, entre outros.
Quando Ruth apóia novos criadores e novos pensamentos, se constróem novas
referências entre passado e presente. Com suas propostas de cursos e mostras ela
89
possibilita encontros entre diferentes gerações. Entre paisagens de danças, questões
esquecidas são constituídas e preconceitos enraizados são re-elaborados.
Desde 1989, ela é responsável pelo ensino da dança moderna na Escola de Bailados
da Prefeitura de São Paulo. Como professora de dança moderna tem se destacado como
uma das principais divulgadoras da técnica de Martha Graham. Nesta condição, tem sido
presença constante em festivais de dança, como os de Joinville, Belo Horizonte e
Uberlândia.
Apesar de ter tido contato com a escola de Rachou em outros tempos (nas aulas de
técnica clássica, com meu querido e saudoso mestre Klaus Vianna), é em 1990 que inicio
um contato mais próximo com essa escola, quando sou convidada pela direção a dar
aulas para crianças. Ainda na década de 90, em cooperação com o “CENA - Centro de
Encontro das Artes”, o “Espaço de Dança Ruth Rachou” realiza o projeto “A Técnica
Conta a Dança”, onde a história da dança moderna é ensinada de forma prática por
integrantes das companhias “históricas”.
Ao expor este panorama da escola e da carreira de Ruth, está o meu desejo de
sublinhar que o que nos tornamos está diretamente relacionado com significações
geradas nos lugares em que passamos, freqüentamos, buscamos e perseguimos. Neste
sentido, a instituição com seus diretores, professores e alunos são também co-
responsáveis pelo nosso caminhar. Quando nos sentimos inseridos em um contexto,
conseguimos estabelecer trocas. Por isso, é importante estudarmos aonde nos sentimos
bem. A pedagoga Ana Angélica Albano, na sua tese de doutorado reforça esse
pensamento:
Quando o aluno sintoniza esta freqüência desencadeada pelo “professor” não se fala
mais, está estabelecida a troca (...) O artista se cumpre naquele que é, não
necessariamente em quem pensamos ser. Isso quem elabora é o tempo. (1998:168)
90
3 Ambiente Musical.
Rogério Costa tem sido o parceiro das criações musicais com quem o Musicanoar
nestes 11 anos vem conversando, trocando, aprendendo, escutando e dançando. Além
de compositor e instrumentista, atualmente Rogério é professor do Departamento de
Música da ECA/USP.
Esta parceria começa em 1991, antes da formação do Musicanoar com a coreografia
“O Cérebro da Bruxa” apresentada no Sesc Vila Nova, no “Movimentos de Dança” um
evento que estimulava a pesquisa de linguagens. Neste primeiro trabalho, a parceria se
desenvolveu em torno de um solo coreográfico. A idéia surgiu a partir de uma análise da
peça “32 Variações de Diabelli”, do compositor Ludwig V. Beethoven. Neste momento,
tratava-se de estabelecer as ressonâncias desta obra com o entendimento sobre espaço
que eu dispunha.
A coreografia foi sendo construída a partir de um diálogo com a obra de Beethoven e
com a análise desenvolvida. À medida que determinados procedimentos formais eram
configurados pela análise, estes geravam desdobramentos na construção do espaço
coreográfico. Neste ponto, a música serviu de estratégia para estruturação desta
coreografia.
Em 1992, com a coreografia “A Dama de Bambuluá”, um outro solo também
apresentado no Sesc Vila Nova, no “Movimentos de Dança”, começamos a modificar a
maneira de construir e conseqüentemente o modo de interagir entre esses dois
ambientes: a dança e a música. O Musicanoar nasce neste momento. Nesta coreografia,
resolvemos experimentar a construção de um trabalho em que a formalização
acontecesse simultaneamente entre música e dança. Em encontros sistemáticos, a partir
de improvisações, fomos delineando um pensamento coreográfico. Os dois ambientes,
tanto da música como o da dança foram construídos juntos. Apesar de formalizar no final,
uma composição em fita “cassete”, a trajetória da música de Rogério se delineou a partir
de um ambiente de improvisação, o que igualmente ocorria na dança. Houve
improvisação interativa entre os dois ambientes. A coreografia e a música surgiam na
medida em que experimentávamos. Utilizávamos como elemento cênico um pano de 15
ms de comprimento cujas extremidades estavam amarradas - de um lado, no meu corpo
e, do outro, a algum apoio da sala que sustentasse o meu peso.
Em 1993, com o espetáculo “Alameda das Orquídeas” a composição foi estruturada
de forma que a música estava a serviço da dança enquanto clima. O ambiente cênico era
91
invadido por uma música de forte apelo retórico (enquanto expressão de sentimentos) e
em outros momentos por músicas que funcionavam como organização do tempo (pulsos,
ritmos, andamentos, etc).
Até este momento, no nosso processo criativo não existia uma convivência com o
ambiente universitário. Com exceção da coreografia “A Dama de Bambuluá”, é
interessante percebermos que os diálogos gerados até então entre estes dois universos
estavam ainda presos a antigas formulações que colocavam a dança e música numa
relação mais causal, linear e de dependência. Neste raciocínio, um ambiente serve de
suporte ao outro. O modo de organizarmos desta forma revela a grande influência que
sofremos de modelos desenvolvidos desde o ballet de corte. A professora e pesquisadora
Marianna Monteiro lembra, em seu livro, do teórico francês Noverre27 e de suas Cartas
sobre Dança:
É preciso que a dança se submeta à música para que expresse sentimentos e se torne
falante. Toda vez que a dança é considerada fala, na verdade, ela o faz valorizando
sentimento mediante a aproximação com o padrão musical. Os três elementos – sentir,
falar e cantar – não se dissociam; é nesse sentido que se deve compreender a
afirmação de Noverre de que dança deve muito de seu progresso a essas
conversações espirituosas reinantes nas árias. A metáfora lingüística é essencial à
explicitação dessa nova retórica, que pensa a expressão de sentimentos em função da
simbiose entre a dança e a música.(1998: 98 e 99).
Cursando o mestrado no Programa de Comunicação e Semiótica na PUC, algumas
contaminações teóricas (Ciências Cognitivas e Teoria Geral dos Sistemas) trouxeram
grandes modificações nas nossas intervenções em parcerias ligadas à construção
coreográfica. Aos poucos, fomos entendendo que dança e música podem compor um
mesmo ambiente assumindo outras leis de convivência.
Em 1997, com o espetáculo “Sopa de Serpentes” desenvolvemos um discurso de
interação cuja proposta estrutural era transpor a idéia do Évolon28, nos ambientes da
27
NOVERRE, Jean Georges (1727-1810) – Dançarino, coreógrafo, maître de ballet e teórico francês. 28
O efeito do Évolon, Mende e Peschel, na “Structure-Buildng Phenomena in Systems with Power- Product
Forces” explicam da seguinte maneira:
A transição de um nível de estabilidade para o próximo nível, nós chamamos de um passo
elementar evolutivo (Evolon). Dentro de cada passo, nós podemos distinguir fases diferentes,
numa evolução consecutiva. Uma seqüência de cada um dos passos constituem numa escada
evolucionária de uma repetição transitória de um estado estabilizado para um outro. Esta
92
música e da dança a partir da idéia de um furacão. Houve um diálogo estrutural, assim
como na música, na dança também. Trata-se, como diria Deleuze, de captar as energias
e não a forma. Tornar música o que é vento. Tornar espacial aquilo que é ar.
Em 1998, o espetáculo “Navegança” teve o mesmo procedimento de “Sopa de
Serpentes”. Porém, neste caso, trabalhamos de forma mais independente. O acaso
interveio. A música tinha maior autonomia. Existia uma simultaneidade de ações e co-
relação entre os dois ambientes. Porém, esta relação acontecia num outro nível.
O espetáculo “Cães” em 2001 radicaliza a idéia de interação entre diferentes
ambientes que a princípio são independentes, porém buscam uma convivência.
Nesta parceria com Rogério existe a construção de um diálogo estético que, cada vez
mais, busca captar as energias do nível “molecular” de uma conversa profunda naquilo
que acreditamos mover ambientes diferentes voltados para um propósito. No nosso caso,
é a criação e a relação de contaminações entre minha dança e a música de Rogério.
Nesta convivência tem sido um grande desafio trabalharmos juntos, pelo fato de que,
cada vez mais, nossos mergulhos estão mais aprofundados, com diferentes níveis de
exigência. Nesse sentido, muitos dos nossos diálogos nesta construção são conflitantes –
grandes discursos estéticos, questionamentos extremamente complexos. Cada um, na
sua visão, defende um olhar. Este modo de ver instiga no outro um saber. Em uma
relação de convivência constante, um novo saber provoca surpresas no outro.
Dependendo do que surge, o novo provoca um estranhamento na relação com todos os
ambientes envolvidos. Surgem muitas crises. Difíceis de entender e elaborar. Porém,
passado o momento crítico, percebemos um grande aprendizado. O que nos confirma
que, qualquer processo criativo ensina a lidar com problemas.
Entre Rogério e eu, cada um no seu papel, está sempre se pensando o que é possível
fazer em relação a um novo projeto. Toda esta conversa a dois, configura uma espécie de
núcleo provocativo. Construímos identidades num pensamento que vai se formulando e
acontecendo a partir das fricções entre o meu modo de pensar dança e no jeito dele de
entender sua música.
Retomando o processo de “Cães”, acredito que, entre muitos aspectos, o mais
importante foi que conseguimos criar um discurso de interlocução entre esses diferentes
escada pode ser considerada como um longo passo (Evolon) dentro da seqüência evolutiva, de
um envolvimento com um sistema mais desenvolvido num próximo nível. (1999:79)
93
ambientes, música e dança. Uma certeza é que minhas solicitações anteriormente eram
imprecisas. Elas davam pistas erradas para o compositor. Um exemplo é “Sopa de
Serpentes”. Neste caso, solicitei a criação de um pequeno rock, num determinado
momento da coreografia. Minha descrição sobre como queria aquela música era que
fosse pesada, pulsante e dissonante - o interessante é que quando estou pedindo, de
alguma forma eu tenho já a sensação do que quero. Posso não saber ao certo, porém a
sensação desta paisagem difusa é tão forte que eu sei quando me trazem algo identificar
que este algo, não é aquilo que quero. O resultado deste momento foi que a música
apresentada, apesar de sua boa qualidade, não servia para aquilo que eu sentia como
coerência naquele momento da coreografia. O problema foi que o meu discurso – de uma
dançarina - não estava afinado com o discurso dele - de um músico.
No tempo, aos poucos viemos afinando nossos discursos. Em 2001, quando Rogério
entra no Programa de Comunicação e Semiótica da PUC/SP para o seu doutorado, nossa
conversa para criação do ambiente sonoro do espetáculo “Cães” foi diferente.
Conseguimos criar um discurso cujo entendimento entre os dois lados era estabelecido
com entendimentos mais similares e aproximados. Para se ter idéia, fomos ter contato
com a música do espetáculo “Cães” no ensaio geral, isto é, um dia antes da estréia.
Nessa interação entre “dois reinos”, nossa idéia era que a dança não estava atrelada
a um tempo musical e vice-versa. Trabalhávamos pensando em ambientes. Em
conversas sistemáticas, no meu papel, estipulava determinadas instruções para o
Rogério. Por exemplo: existe um ambiente que é formado por sonoridades internas de um
corpo que acontece num fluxo contínuo (eu, pensava em como seria o som do sangue
quando percorre minhas veias) e que cria soluções neste espaço enquanto ondas
ininterruptas. Da forma como Rogério captava esta informação, ele tinha total liberdade e
autoridade para criar uma música do seu jeito. Outra instrução minha era que, tal
ambiente deveria penetrar em três “ilhas” (no caso trabalhamos com três Réquiens29 –
Fauré, Verde e Mozart – sempre no mesmo trecho, “Kyrie” que abordava a fala “Senhor,
tende piedade de nós”). A idéia era que quando o som do corpo invadisse a primeira ilha,
que era a de Fauré, o som sofreria contaminações com aquele ambiente diferente. Desta
forma, ao partir desta primeira ilha, o som do corpo estaria alterado, contaminado pelo
ambiente novo, a partir de interações naquele lugar diferente. Este é um pequeno
exemplo. Não cabe aqui fazer um apanhado histórico de todo o procedimento criativo na
29
Réquiem: Missa de morte.
94
interação entre música e dança do espetáculo “Cães”, porém, é importante demarcar que
esta criação inventou uma conversa diferente. Esta colaborou para o êxito do trabalho.
Enquanto coreógrafa, o fato de inventarmos uma conversa que transponha para cada
um de nós, a necessidade de um pensamento coreográfico específico, que respeita a
natureza da dança e da música, com suas específicas necessidades e singularidades,
tem contribuído na solução de muitos problemas ligados a parcerias entre ambientes que
são diferentes. Neste momento, com a construção do espetáculo “Buracos Brancos”
(2003) nossa conversa está mais afinada e nossa parceria está mais especializada e
competente neste tipo de diálogo.
Neste tempo de experimentar constantemente diferentes intervenções no espaço
cênico em que, no caso do Musicanoar, muitas questões levantadas e discutidas surgiram
a partir de nossas diferentes realidades - a música e a dança - e o modo como elas
estavam inseridas em nossas vidas, provocaram descobertas e organizações em um tipo
de conversa que ajuda a equacionar diferentes problemas, entre lugares diferentes, que
carregam ações específicas, mas que, desejam continuar juntos, pelo simples fato de
percebermos que unidos, assumindo as diferenças e conflitos, aprendemos muito mais
sobre o que é convivência. Conviver, o nome diz, é viver com algo ou alguém que é além
de nós mesmos. É estimulante conviver com pensamentos e parceiros similares, porém,
será aquilo que nos invade enquanto diferente que nos provocará transformações, nos
obrigando a outros níveis de revisão e elaboração.
95
4 Ambiente de parceiros: Intérprete-criador.
Nestes onze anos de trabalho de criação coreográfica no Musicanoar, o entendimento
sobre o papel do intérprete neste tipo de pensamento contemporâneo, ampliou-se.
Transformou minha visão sobre determinados requisitos deste intérprete. Hoje, o perfil
deste artista (vide páginas 25, 26, 79, 80 e 81) na relação com uma obra coreográfica,
exige uma intervenção diferente tanto no momento da construção, produção e execução
do espetáculo.
Nesse tempo de Musicanoar, cada nova coreografia me lançava a outras diferentes
investigações no corpo e na relação com o ambiente cênico. A partir daí, convidei outros
colegas de dança para que compartilhassem desta minha viagem, com suas percepções
e interações. Estas surgiam a partir de instruções e propostas no espaço, lançadas por
mim e sintonizadas com a minha nova pesquisa coreográfica, a qual, eu havia proposto
para explorarmos juntos. Dependendo da maneira que este diálogo ia se formalizando
nos nossos ensaios, eu desenvolvia um olhar - entender também relativo às diferentes
naturezas de corpos que povoavam o meu fazer naquele experimento específico. Esta
compreensão passava por uma escuta corporal. Precisava captar naquele fazer em
grupo, o modo como cada artista resolvia no corpo o problema por mim lançado neste
ambiente. No meu caso, esta observação facilitava negociar entre minhas projeções e
aquilo que o outro (meus parceiros) resolvia na cena a partir das suas possibilidades e
entendimentos. As resoluções no espaço, construídas por estes parceiros, surgiam
contaminadas entre os meus pedidos e projeções na relação com o novo trabalho. As
diferentes formações corporais que cada um dos intérpretes apresentavam. As histórias
de vida que cada um deles trazia e os entendimentos que cada um deles captava no
momento que minha instrução era solicitada. Enfim, a cada nova coreografia, sinalizava
para quem estivesse convivendo com este processo, um diferente experimento que se
arriscava em outras ordens de investigações nas relações do corpo e o seu ambiente
cênico.
O Musicanoar nunca teve uma estrutura econômica que bancasse e produzisse todo
este processo investigativo entre seus envolvidos, por isso, a questão de uma certa
rotatividade de parceiros, tornou-se um fato. Sempre é difícil e complicado aglutinar
pessoas em volta de um projeto artístico sem uma estrutura mínima de sobrevivência. O
que de fato agrega sob esta “falta de condições” é a necessidade constante entre alguns
de nós, de direcionar este ambiente de trabalho para investigações experimentais
96
voltadas para um pensamento estético. A necessidade de se manter uma construção
estética permanente de forma independente, sem respaldo financeiro, ninguém prevê. No
tempo, as pessoas envolvidas se olham e se percebem que elas se encontram juntas em
mais um novo projeto no mesmo ambiente de trabalho. Novamente, estes colegas, a seu
modo, criam uma forma de sobrevivência e continuam participando da investigação da
nova proposta lançada. Quando surge alguma verba – geralmente são prêmios estímulos
ou espetáculos agendados - nós a dividimos em cotas entre todos os envolvidos.
A observação sobre rotatividade de parceiros, não é nenhuma crítica a colegas que
passaram pelo grupo. Ao contrário, entre nós, existe um grande respeito, carinho e
reconhecimento por todos aqueles que passaram pelo nosso espaço de criação. O
correto seria que Musicanoar tivesse adquirido uma infraestrutura mais condizente com
seu nível de trabalho e as pessoas envolvidas nele. Se há crítica, esta se refere à
escassez de leis públicas de fomento que atendam em parte as necessidades de vários
projetos entre diferentes grupos de dança, inclusive o nosso.
O Musicanoar apresenta um perfil que lida com uma conduta investigativa, em que
determinados padrões de movimentos se formalizam, a partir do modo como construo o
espaço deste ambiente num passo a passo. É um modo de construção, que para aquele
que está envolvido no ambiente enquanto intérprete-criador é muito difícil. Em conversas,
durante ou depois de uma coreografia ser concluída, muitos destes intérpretes,
desabafavam comigo ou com outros que, uma das maiores dificuldades era a da
sensação de se mover num ambiente escuro e desconhecido – eles tinham dificuldades
de nomear este “dançar”, perdiam referência sobre o chão desta dança, o encadeamento
desta fala era recebido com estranhamentos e conseqüentemente geravam preocupações
como e aonde tudo isso iria levá-los?
Esta maneira de construção exige uma disponibilidade imensa. O chão inicial é a idéia
da pesquisa coreográfica que surge com um padrão de movimento. A partir deste passo,
inicia-se um processo em rede – a idéia se amplia, o padrão inicial de movimento vai se
tornando mais preciso no espaço, desenhos espaciais em deslocamento vão surgindo
nestas conversas e um ambiente musical vai-se configurando. A coreografia anda para
frente, apesar de sensações que lidam com perdas, ganhos, avanços e retrocessos.
Estes parceiros, intérpretes-criadores, marcaram o Musicanoar com atos de imensa
generosidade no propósito de criar outros mundos, cheios de significados, num ambiente
que a princípio nada está configurado.
97
Falei tanto do perfil destes intérpretes-criadores que fica a pergunta: Quem são os
artistas que passaram pelo Musicanoar? Bárbara Santos, Sheila Arêas (1997- “Sopa de
Serpentes”) Sérgio Mendes (1997), Ricardo Fornara (1998 – “Navegança: Primeira
Paisagem”), Edu de Paula, Lara Pinheiro Dau, Lela Queiroz e Maíra Spanghero (1999 –
“Navegança: Segunda Paisagem”). Atualmente, contamos com Marcos Sobrinho que
desde 2002, compartilha conosco a criação do novo espetáculo “Buracos Brancos” (2003)
que é uma extensão desta tese junto com o espetáculo “Cães” (2001).
Existe uma pessoa entre estes intérpretes-criadores que não citei. Desde 1993, Raul
Rachou pôs os pés neste grupo e, aos poucos, suas longas pernas, contaminaram o meu
caminhar com o Musicanoar. Ele é o meu grande companheiro de cena. Sem
premeditação, simplesmente uma construção mútua, contínua, de uma imensa
caminhada. Por isso, me dedicarei agora, a falar sobre seu processo de intérprete, porque
é uma excelente oportunidade para refletir mais profundamente acerca da evolução deste
papel - o de intérprete-criador, nos anos 90.
Apesar de Raul, na sua trajetória de vida, ter passado por várias aulas e cursos de
dança, é a partir de 1990 que se lança a uma dedicação mais profunda e sistematizada
na sua formação corporal. Esta construção abarca vários cursos da “Escola de Dança
Ruth Rachou”, além de, entre 1992 e 2000, participar como intérprete do Grupo de Dança
Ruth Rachou. Junto a este trabalho de formação, é ele com Ruth Rachou que têm dirigido
a escola. Atualmente, tem se dedicado ao trabalho de professor baseado na técnica do
método “Pilates”30.
Depois do espetáculo “Navegança: segunda paisagem”31, em 1999, decidi que o
próximo trabalho seria com a participação de poucos intérpretes. Esta escolha surgiu a
partir da minha necessidade em averiguar mais profundamente no corpo, o que acontece
quando provocamos criação de outros padrões de movimentos e o que esta relação
provoca no resto do ambiente. Neste momento, poderia ter escolhido a direção de um
solo coreográfico, porém, gosto de compartilhar a cena com alguém. Neste caso,
perguntei ao Raul se ele concordava que a próxima aventura, fosse somente entre eu e
ele. Juntos, decidimos ir além, mais fundo na busca de outros entendimentos de corpo
que lidam com a criação cênica.
30
Joseph Pilates (1880-1967) foi um pedagogo americano de origem alemã. Ele praticou diversos esportes como a ginástica e o Box. Durante a primeira Guerra Mundial, ele inventou um aparelho de reabilitação para os feridos. Por volta de 1920, ele se instala em Nova York, onde abre um estúdio freqüentado por inúmeros bailarinos. 31
“Navegança: segunda paisagem” (1999): faz parte da trilogia de dança, enquanto extensão da minha dissertação de mestrado “Dança: Fronteiras. Uma ponte entre a prática e teoria, num diálogo entre arte e ciência”.
98
Sabemos que, cada ensaio nos prepara enquanto intérpretes. E nós, intérpretes, com
nossos entendimentos e atuações preparamos o novo pensamento que está se
configurando. No caso de “Cães”, o nosso ponto de partida foi a morte. Esta direção
confluía para uma pergunta: Como um corpo se constitui? No nosso caso, a idéia de
iniciarmos o espetáculo morrendo, nos instigava a experimentar posteriormente na cena,
possibilidades de transformação e construção de um outro diálogo com o corpo. Dialogar
com o corpo, interagindo com ele como se fosse um novo ambiente, diferente daquilo
conhecido anteriormente, provocava outras possibilidades de ações e condutas neste
espaço. Neste momento, a idéia de levantar um pensamento coreográfico à partir de
instruções, tornava-se mais clara. Neste caso, a primeira instrução lançada para nós dois
era - dois corpos em um eixo vertical que, aos poucos, constróem uma queda, até que
ambos estejam totalmente inertes no chão. Neste ponto, entrava uma segunda instrução
- uma vez deitados, precisávamos pensar que o corpo virou uma massa sem definição ou
identidade que, se move no espaço num fluxo contínuo, percebendo em cada
acionamento muscular o peso do corpo e a relação desta parte acionada com o resto do
corpo e o entorno deste. O tempo era lento. Com isso, estabelecíamos neste espaço um
estado de profunda escuta corporal. O corpo era mediado também por uma respiração
(vide página 72) denominada “anunciada” – no meu procedimento de criadora. Neste
trabalho nomeei três modos de respiração. Antes de especificá-los, é importante destacar
a interação com o ambiente que exige sempre no momento da inspiração uma grande
observação do espaço a sua volta e, na expiração, o movimento no espaço surge
enquanto diálogo do corpo criando outras soluções com o lugar que ele ocupa. Neste
contexto, criei três famílias: o anunciado (numa golfada da expiração, ele anuncia o
movimento. Ele o cria na medida que o ar invade o espaço e a musculatura do corpo), o
estacato (num único golpe, o movimento surge no espaço. No momento da expiração, o
movimento configurado no espaço é resultado de uma intervenção única, compacta e
precisa da solução gerada pelo corpo); e, finalmente, o reverberado (um golpe no espaço
gerado por um movimento. Na sua trajetória é transformado. Neste trajeto, o corpo elege
um caminho produzindo leves ressonâncias no espaço do corpo – movimentos repetitivos,
com texturas leves e sutis, num mesmo segmento corporal).
Retomando as instruções da coreografia “Cães”, a terceira partia de uma grande
observação em relação ao entorno dos nossos corpos, a partir da escuta do ambiente.
Neste momento, havíamos gerado um novo estado no corpo. A partir desta prontidão,
iniciávamos pequenas ignições em partes diferentes do corpo, como se, aquela massa
99
criada entre choques provocados pelo próprio corpo, propiciasse a invenção de um novo
ambiente. Deste ponto em diante, nossos corpos construíram paisagens diversas que, de
algum modo, estavam sempre apontando para um tipo de sobrevivência de padrões de
movimentos. Estes ocorriam pelo modo de cada corpo instigar no outro, uma nova
realidade no espaço.
Todo este processo exigiu muito de nós dois. Porém, o resultado disso tudo foi que,
além do trabalho ter ficado muito bom, Raul, se descobriu enquanto um excelente
intérprete. Apesar de saber que, assino a coreografia deste espetáculo, não é possível
falar de “Cães” sem a intervenção do Raul. O corpo dele, o entendimento com que ele
captava minhas instruções e as resolvia no espaço, acabaram influenciando minha
movimentação, como as minhas próximas instruções nesta coreografia. Nossa interação
corporal no espaço propiciava novos rumos para este espetáculo.
Esta convivência com Raul foi ampliando o meu entendimento sobre o papel do
intérprete-criador. Na realidade, ao montar os espetáculos, no início da minha convivência
com o Programa de Comunicação e Semiótica, eu achava que uma mistura de
referências poderia dar conta desta conduta contemporânea. Hoje é claríssimo, que não
basta misturar e ficarmos no nível de inúmeras colagens. A crítica de dança Laurence
Louppe nos fala da idéia de hibridação:
Mistura evoca uma idéia de universalidade que está em harmonia com o tipo de
abertura cultural oferecida por correntes mundiais de pensamento com suas idéias
sobre alteridade, identidade de grupo e diálogo inter-grupal. Contrastando com isso, o
híbrido foge dessa babel intercomunitária ou inter-minoritária, esse movimento entre
raças e sexos. Esse híbrido não se situa em nenhum lugar, não é nada.
Freqüentemente, ele é totalmente isolado e atípico, o resultado de uma combinação
única e acidental. A hibridação funciona muito mais do lado da perda. A hibridação
age mais na nucleação dos genes ao subverte-los e deslocá-los. (2000: L. Dança2)
Outro dia, conversando com Raul e a nossa consultora de improvisação Cleide
Martins, nos questionamos sobre o que é que há, nesta nossa parceria, que colabora
nesta configuração de dois, enquanto ótimas condições de trabalho, voltado para uma
produção de pensamento investigativo e cênico? Levantei a seguinte hipótese: A
necessidade de ocupação. Dessa forma, o meu olhar lida com composição. Busco
decifrar na relação do pensamento lançado, possibilidades de diversas ocupações no
ambiente que lidam com diferentes níveis de criação. Neste caso, falo de vetores,
deslocamentos, aceleração, produção de outros padrões de movimentos e desenhos no
100
espaço, por exemplo. É como se, eu fosse criando toda uma geografia deste lugar com
seus inúmeros relevos e apontando as necessidades destas diversas relações.
O Raul tem a mão de um cirurgião. No momento que proponho uma investigação de
padrão de movimento no corpo, o seu mergulho gera uma obsessão profunda de auto-
investigação na relação com tudo que começa a povoar o nosso ambiente. Tal rigor
contamina todo o fazer cênico. Ele libera interações neste ambiente em que, todo um
trabalho exploratório no próprio corpo, ilumina as necessidades das minhas solicitações,
liberando um aspecto poético e filosófico. Dessa maneira, como o corpo híbrido
apresentado por Louppe, Raul absorve as instruções sem abdicar de todos os seus
ensinamentos específicos.
Ao tornar-se um tipo de sistema semiótico o corpo híbrido, junto com todas as
escolhas estéticas que ele representa, evita o questionamento da própria ação do
corpo sobre si mesmo. Como um produtor de significado e de símbolos, o “eu”
escapa da autoridade dos modelos corporais recorrendo a uma semântica pré-
estabelecida. (2000: Lições de Dança2)
Neste tempo de convivência com Raul, a sua dedicação ao trabalho de professor
baseado na técnica do método de “Pilates”, aguçou nele, um grande entendimento do
corpo. Hoje, ele me ensina sutilezas deste nível de disponibilidade corporal, em um
caminho povoado de diferenças. A cada vez que proponho uma fala, sua primeira ignição
é a da necessidade de um grande mergulho na experimentação. A conversa entre
palavras surge depois. Percebemos que, por mais estranha que seja a minha solicitação
de coreógrafa, a formulação de qualquer dúvida se tornará mais precisa, após diferentes
experimentações e elaborações neste processo criativo que demanda tempo. Enquanto
um reino se configura, entre nós, se exige paciência, constância e elaboração de outros
discernimentos deste fazer.
101
5 Outras inserções de ambientes.
À medida que o Musicanoar avança nos seus projetos, ao longo destes anos, nos
inserimos em diferentes movimentos representativos de profissionais de dança, que
propiciaram diferentes estratégias de atuação conjunta na cidade de São Paulo. Se,
enquanto artistas, não nos envolvemos e elaboramos outras estratégias coletivas de
organização e condução que venham a atender nossas necessidades, quem irá criá-las?
No nosso caso, um exemplo é lutar por subvenções públicas e leis que garantam a
subsistência e manutenção de diferentes grupos em projetos de criação, circulação e
produção. Sobre este ponto de vista, farei agora, um apanhado geral destes onze anos da
nossa existência, onde nos inserimos em alguns movimentos na cidade que, aglutinaram
diferentes coreógrafos com suas respectivas escolhas estéticas, sob um aval
contemporâneo. Juntos, de forma coletiva, criamos diversas estratégias que agregavam
determinadas soluções, mesmo que provisórias, para as nossas necessidades de criação
nestes diferentes espaços no decorrer destes anos, em diferentes momentos.
Inicialmente, o “MTD90” – Movimento Teatro-Dança dos anos 90. Nos anos 90, em
São Paulo, surgem os intérpretes que desenvolvem uma dança de autoria. O “MTD90”
ocorreu em novembro e dezembro de 1993, no teatro da FAAP. Durante todo o ano, nos
encontramos, discutindo sobre a organização e produção de uma programação específica
de ocupação do teatro da FAAP, que traduzisse em parte, o nosso perfil artístico. Hoje, a
sensação que me ficou deste tempo, foi a de um grande manifesto “artístico-político” entre
nove coreógrafos. Todos criadores e intérpretes de seus espetáculos. Além de mim, Ana
Mondini, Humberto da Silva, João Andreazzi, Márcia Bozon, Mariana Muniz, Miriam
Druwe, Sandro Borelli e Vera Sala. Durante dois meses, ocupamos de segunda-feira a
quarta-feira, o Teatro da FAAP com uma programação de dança. Esta abrigava a cada
semana a estréia de um dos nossos espetáculos, workshops e palestras. Além disso,
todas às terças-feiras e quartas-feiras, às dezenove horas, tinham os “Ensaios
Coreográficos” - experimentos de improvisação livre – em que convidávamos outros
colegas para contracenarem conosco. Por estas improvisações, passaram também
Denise Namura, Célia Gouvêa, José Maria Carvalho, Ray Costa e muitos outros. Foi um
imenso aprendizado para todos os envolvidos, este processo do “MTD-90”, em 1993.
A reverberação deste movimento em nossas vidas foi tão forte, que em 1995
fundamos a “CPBC” – Cooperativa Paulista dos Bailarinos-Coreógrafos. Éramos 11
102
coreógrafos: Ana Mondini, Célia Gouvêa, Gaby Imparato, Humberto da Silva, João
Andreazzi, Márcia Bozon, Mariana Muniz, Renata Melo, Suzana Yamauchi, Vera Sala e
eu. Posteriormente, fomos saber que uma cooperativa só existe a partir de 21 integrantes.
Até hoje é um mistério o entendimento de como o nosso pedido naquela época foi
aprovado, porém, de fato, ele foi aceito juridicamente. A partir daquele momento, criamos
várias intervenções em diferentes estratégias coletivas como mostras e eventos. Naquele
período, espaços importantes para a “CPBC” foram o “Centro Cultural Vergueiro – Sala
Jardel Filho”, O “Teatro da Cultura Inglesa” e o espaço do “Nova Dança”32. Nestes
espaços tivemos possibilidades e condições de apresentar nossos trabalhos, trocar
diferentes idéias e ampliar nossa atuação no circuito paulistano.
A “CPBC” está de pé até hoje. No meu caso, em 2000, solicitei desligamento.
Em 2002, foi gerado o movimento “Mobilização Dança” na cidade de São Paulo. Os
artistas envolvidos inicialmente foram Carlos Martins, Célia Gouvêa, Fabiana Brito,
Fernando Lee, José Maria Carvalho, Raul Rachou e Sofia Cavalcante. Este movimento
vai-se configurando a partir de muitas conversas entre nós, além de encontros
sistemáticos na Câmara dos Vereadores. Juntos, tentamos a aprovação de uma lei
municipal específica para o nosso perfil de produção artística. Nossa preocupação é
legitimar e garantir posteriormente, o compromisso municipal de uma política pública para
a sobrevivência destes diferentes grupos. Atualmente, somos mais de 50 grupos
envolvidos, tendo à frente na organização desta mobilização Eliana Cavalcante, José
Maria Carvalho, Marcos Morais e Sofia Cavalcante. Apesar do movimento ter crescido e
amadurecido em muitos aspectos, os desafios e dificuldades continuam imensos. Não
cabe agora explicitá-los, porém, existe um aspecto comum entre nós que vale apontar -
cada um destes grupos lidam com uma produção investigativa num fazer contemporâneo.
Esclarecemos que o termo contemporâneo não está associado a uma técnica ou estilo de
dança. O termo contemporâneo traduz uma ação investigativa na relação das nossas
propostas coreográficas que passam por um pensamento e o modo singular como cada
grupo ou coreógrafo constrói seus espetáculos. Os espetáculos gerados por estes
32
O “Nova Dança” foi fundado em 1995 por Adriana Grechi, Lu Favoretto, Thelma Bonavita e Tica Lemos. É um espaço de referência na cidade de São Paulo em formação de dança contemporânea. Atualmente, a direção permanece praticamente a mesma, com exceção de Paoli Iquito que se agregou e esta equipe e Thelma Bonavita que desvinculou-se deste trabalho de coordenação. Este espaço agrega três companhias: O “Núcleo Artérias Nova Dança” dirigido por Adriana Grechi com a participação dos seguintes intérpretes-criadores: Tarina Quelho, Eros Valério, Tatiana Militello, Sheila Arêas, Mara Guerrero, o músico Dudu Tsuda, e o videomaker Rodrigo Gontijo. Tem a “Companhia do Nova Dança 4” dirigido em parceria por Paoli Iquito e Tica Lemos. Estes dois grupos são produzidos por Dora Leão. Finalmente tem a “Companhia Oito Nova Dança” dirigido por Lu Favoretto e produzida por Fernanda Rapi.
103
diferentes criadores nunca são produtos prontos, quer dizer, as apresentações públicas
são oportunidades deles testarem suas investigações. Uma vez que estes criadores
buscam invenções com outros modos de construção, geralmente, seus espetáculos
funcionam como protocolos de laboratórios, resultantes de pesquisas direcionadas para
uma linguagem cênica.
Tem sido muito difícil a defesa pública e o entendimento por outros segmentos da
sociedade, inclusive de outros setores de dança, deste modo de pensar e organizar
dança. Parte da nossa dificuldade passa pelo entendimento e reconhecimento de arte que
a maioria das pessoas assumem ou tem acesso. Geralmente, elas apontam uma
ignorância ou resistência na relação da existência de outras formas de intervenções no
espaço, diferente das assumidas e reconhecidas pela mídia e o mercado. Em função
destes problemas, arte e educação devem se aliar num programa diferente de formação e
interação entre si, a partir de outros critérios de interlocução. Precisamos construir
interlocuções mais competentes, que esclareçam necessidades comuns a esses dois
ambientes (artístico e educacional) de acordo com suas especificidades. É urgente
aprendermos a lidar com outros modos de produção sem nos fixarmos a determinados
modelos. Este aprendizado precisa ser exercitado. O movimento “Mobilização Dança” é
um bom exemplo desta necessidade. Os colegas do “Mobilização Dança” fazem arte de
ponta. Existe um risco naquilo que eles estão construindo se entendidos como um
“resultado de produto artístico”. O que criamos não pode ser fixado como resultados e
produtos finais de alguma coisa. Tudo o que construímos são decorrências de um
processo investigativo, suscetível a acasos, achados, encontros, escolhas e
desencontros.
Assim, para encerrar este capítulo, gostaria de registrar a importância do “Centro de
Estudos do Corpo” da PUC/SP como importante espaço de construção enquanto
referência de outros modos de elaborarmos dança a partir de reflexões entre arte e
ciência. Estas fronteiras estão mais borradas, cada um desses ambientes estão mais
contaminados pelo fazer do outro. A artista plástica Cláudia Amorim nos reforça esta
impressão:
A ciência vem produzindo imagens cada vez mais arrebatadoras. O encontro da
ciência com a arte estimula perguntas sobre a interpretação e o domínio destas
imagens. O caminho da ciência é o do conhecimento, revelação e muitas vezes do
controle. A arte segue caminho oposto, se fazendo necessária sem função definida.
Durante muito tempo a arte serviu à ciência ilustrando e ajudando a desvendar os
segredos do corpo e do mundo. Hoje a ciência ilustra a si própria produzindo imagens
104
muitas vezes sedutoras e atraentes, entrando no domínio da arte não por ser
ilustração, pois a arte não o é, mas, por pretender ir além da sua necessidade e
função: tentando dar a estas imagens conteúdos e interpretações poéticas e não
lineares. (2003:17)
Na convivência entre estes dois ambientes – arte e ciência - o artista quando se vale
da contaminação entre as diferentes informações que por ele circula, cria algo diferente
que pode ser híbrido, porém algo que convive com novas surpresas, sem se comprometer
com uma rota fixa ou um único fim.
Foi este centro que inicialmente nos apresentou as idéias do criador da Semiótica
americana Charles Peirce, diferentes grades teóricas das Ciências Cognitivas e alguns
conceitos da Teoria da Informação acolhendo semanalmente pesquisadores, participantes
e ouvintes. A maioria dos integrantes do Musicanoar freqüentam este núcleo já algum
tempo, como Cleide Martins (consultora de improvisação), Maurício Gaspar (consultor de
cena) e Rosa Hércoles (consultora coreográfica). A idéia de um núcleo de estudos que
produzisse um fórum de discussão permanente nasceu na década de 80, tendo à frente a
professora e crítica de dança Helena Katz. Ela tem sido uma pessoa preciosa neste
contexto da dança. Com seu olhar sensível e generoso nestes vinte anos vem aglutinando
diferentes tribos desta cidade e de outros estados do Brasil, instigados pelo exercício
constante da importância de um aprendizado voltado por uma profunda reflexão e
inserção na sociedade sobre o ensino e o fazer artístico de dança. Aqui, existe um crédito
importantíssimo nesta determinação de Katz. Do seu modo, conseguiu implementar uma
conduta em dança, tanto pedagógica como artística, associada ao entendimento de
outras coerências na construção de corpo que passa por um pensamento.
Cabe investigar e entender a própria natureza dos nossos corpos, porém, com outros
parceiros temos a oportunidade de aprender a trabalhar com aquilo que nos é diferente. O
“Centro de Estudos do Corpo” nos exercita a nomear aquilo que a princípio nos parece
“indizível”, isto é, se reconhecemos uma existência é porque estamos captando uma
realidade específica no tempo. Neste caso, se existe a dificuldade de nomeação, esta
pode se relacionar a dois aspectos: um deles talvez seja a nossa ignorância. Neste caso,
aprendemos. O outro, pode ser que algo de fato seja diferente daquilo que todos
conhecemos, neste caso, este espaço nos dá condições de nomear pelo fato de
construirmos aparatos instrumentais que sustentam uma discussão. É errada a crença de
que gosto não se discute. Gosto se discute, porém, precisamos aprender a argumentar.
105
Qualquer argumentação precisa de vivência que passa pela experiência. O grupo de
estudos vem nos ensinando a articular e conviver entre diferentes caminhos. Ancorá-los
num discurso cênico, também passa por um instrumental teórico. Este não está
dissociado do modo como construímos nossos espetáculos, ao contrário, este
instrumental contamina a nossa ação. Quem nos propiciou a formalização de um
instrumental de discussão foi o “Centro de Estudos do Corpo” da PUC. Até hoje é
reconhecido carinhosamente entre muitos de nós, como o “o núcleo”.
107
Um breve repouso.
Quando iniciamos o projeto deste trabalho, nosso foco era testar outras possibilidades
de organização cênica num fazer contemporâneo a partir da convivência com as idéias
apresentadas pela universidade. Um desejo era de que algo novo viesse a ser construído
neste contato. De fato foi possível criar muitos trabalhos que incluíram diferentes
parceiros nesta pesquisa que gerou a escuta do corpo (vide pg. 10). No ensino
universitário, foram realizados vários experimentos com alunos de diferentes lugares
como, por exemplo, no curso de Comunicação das Artes do Corpo - da PUC/SP, no
Departamento de Artes Cênicas – CAC – da ECA, e do Departamento de Artes Cênicas -
da EDUSC. Surgiram ainda, dois espetáculos: “Cães” e “Buracos Brancos” 33 – este ainda
em processo. Com estes pensamentos coreográficos o Musicanoar circulou entre
mostras, circuitos, eventos e festivais como a “Mostra Internacional de Dança do SESC” –
2001, “Circuito 1,2 3” –2002/2003, “FID – Fórum Internacional de Dança” –2003, entre
outros. Com estes dois espetáculos, percorremos também outros circuitos além de São
Paulo como, Araraquara, Belo Horizonte, Caxias do Sul, Florianópolis, Santos e
Uberlândia. Em todos estes espaços coordenamos oficinas de dança entre diferentes
faixas etárias e níveis técnicos.
Construção é uma palavra chave em todo este trabalho. Configurar uma forma no
espaço demanda tempo. Aqui, qualquer intervenção no mundo passa pela idéia de
construção. No nosso caso, é uma intervenção cênica que se realiza coreograficamente
experimentando possibilidades de outros padrões de movimentos e organização. Este
doutorado colaborou na invenção de uma conduta neste fazer coreográfico que confluiu
nesta escuta do corpo.
Quando sublinhamos o termo construção, a questão de uma aprendizagem se torna
imperativa. Algumas aprendizagens nos conduzem a uma automação, porém, outras nos
provocam invenções e autonomias. Por isso, pontuamos a importância de um ensino que
passa pela investigação e pesquisa na direção de um sonho ou uma inquietude.
Na trajetória deste ensino exigem-se muitas negociações. Aliás, negociação foi outro
termo chave neste processo. Negociar é extremamente difícil e muito trabalhoso. Esta
dificuldade aponta a carência, nos processos de ensino, de procedimentos que equalizem
a articulação entre diferentes vontades e condições, na relação com um mesmo ambiente.
33
“Buracos Brancos” – estréia a ser programada em São Paulo para 2004.
108
Conforme um contexto é envolvido por um pensamento, precisaremos absorver ou
inventar novos procedimentos que nos levem a encadeamentos coerentes na interação
entre algumas escolhas. Estas lidam com determinadas circunstâncias na formatação de
um mesmo espaço. Neste aspecto, muitas tentativas em experimentos de laboratórios de
criação e coreográficos se fazem necessários nesta construção contemporânea. Todos
são formatados num processo a partir de erros, acertos e acasos.
Por tudo isso, qualquer construção nunca pertence a um. Qualquer construção parte
de um conjunto de escolhas na ocupação de um lugar comum. Neste sentido, construção
é lidar com composição. Para compor, precisamos também aprender a abraçar aquilo que
nos é diferente ou de difícil resolução. Em composição, geralmente, o diferente traz um
vislumbre na paisagem que a princípio não é previsto. O músico e compositor Flo
Menezes nos lembra que os gregos já afirmavam que harmonia originalmente lida com
relações entre diferentes proporções (2002:28). Nesta ação compartilhada, o indivíduo se
percebe quando capta uma necessidade naquele ambiente específico e propõe algo que
se resolve em encadeamentos, de acordo com o contexto de forma competente. Quanto
mais nos exercitamos neste tipo de intervenção, mais vamos descobrindo acordos
originais. Esta originalidade capta uma lógica. Geralmente ela é fruto da intervenção de
um olhar. Pode ser o olhar de um criador, editor, diretor ou coreógrafo. Nesta conduta
criativa não há chefes, existem papéis específicos. Um coreógrafo ou diretor
simplesmente capta, resolve, transforma e traduz no espaço uma necessidade que não é
somente a dele.
Uma idéia pode inicialmente ter sido lançada e provocada pela concepção de um
criador, porém, no decorrer, as soluções encontradas serão decorrências das diferentes
percepções e relações entre todos os envolvidos no projeto e as condições apresentadas
pelo ambiente. Neste fazer coreográfico, no papel de criador vale a lembrança de que
invenção também passa por uma escuta aguçada. Aqui, qualquer construção coreográfica
aponta que, levantar uma forma de encadeamento coerente no espaço passa por
diferentes “escutas”. Neste caso, o pensamento musical nos ensinou que escutar também
é ouvir direções”34.
Um olhar neste doutorado foi se especializando para entender o que acontece na
interação e convivência entre dois ambientes diferentes como o da arte e educação.
34
Flo Menezes nos lembra: Daí já ter afirmado na introdução do meu texto sobre direcionalidades na obra de Anton Webern (“Micro-Macrodirecionalidade em Weberg”, escrito entre novembro de 1982 e março de 1984; Menezes, 1992, p.21), que “escutar é ouvir direções” (2002:31).
109
Neste percurso, o universo da educação também foi promovendo outras ações neste
fazer artístico e vice-versa. Ambos iniciaram-se cúmplices, uma vez que, o nosso
entendimento era que arte e educação em muitos aspectos caminhavam lado a lado,
juntas, objetivando questões ligadas à autonomia, construção, convivência, diversidade,
simultaneidade, responsabilidade e tolerância. Tornou-se mais claro que apesar de
compartilharmos os mesmos princípios, as condutas artísticas e educacionais são muito
diferentes. Podemos chegar ao mesmo lugar, porém, no percurso, o modo de atuação é
muito distinto. E isso, muda tudo.
No universo da educação sempre aparece uma necessidade de adequação daquilo
que se mostra diferente. Por isso, não é à toa que o sistema educacional elege um
modelo. Este agrega normas de condutas fixadas em determinados objetivos a serem
alcançados por um grupo. Existe a necessidade de legitimar como verdade toda esta
condução. Por isso, não é à toa que a pontuação neste percurso com métodos avaliativos
serve como prova legítima e legal das diferentes etapas neste processo de construção.
No universo da arte, é claro que buscamos legitimação. Porém, a forma de condução
é muito diferente. O importante não é estar direcionado para uma normalização de
condutas. Ao contrário, precisamos legitimar também aquilo que é diferente. O psicólogo
Oliver Sacks nos chama a atenção que, ao invés de se pensar em curar seus pacientes
ou se pensar em normalizá-los, sua atitude sempre foi de permitir que eles
desenvolvessem uma habilidade artística.
Acredito que José, um autista, e também deficiente mental, tem um dom tão grandioso
para o concreto, para a forma, que ele é, a seu modo, um naturalista e um artista
instintivo. Apreende o mundo como formas – sentidas diretas e intensamente – e as
reproduz. Possui excelente capacidade para a reprodução exata, mas também
capacidade para o figurativo. É capaz de desenhar com notável precisão uma flor ou
peixe, mas também pode desenhá-los como personificação, um emblema, um sonho
ou uma brincadeira. E ainda se julga que os autistas carecem de imaginação, senso de
humor e arte. (1997:251)
As habilidades artísticas, no caso de José, apontavam novos espaços em diferentes
condutas. Sacks defende que, de fato, existem outras possibilidades de construção, numa
convivência múltipla que é a de se apostar não somente no que é igual.
“Nenhum homem é uma ilha, isolada do resto”, escreveu Donne. Mas é isso
exatamente que é o autismo – uma ilha separada do continente. No autismo
“clássico”, que é manifesto, e com freqüência total, no terceiro ano de vida, o
110
afastamento se dá tão cedo que pode não haver lembrança do continente. No autismo
“secundário”, como o de José, causado por doença cerebral em uma fase mais
adiantada da vida, existe alguma lembrança, talvez alguma saudade do continente.
Isso pode explicar por que José era mais acessível do que a maioria e por que, pelo
menos quando desenhava ele é capaz de mostrar a ocorrência de uma interação.
(1997:252)
Procuramos também enfatizar neste trabalho, o problema que a educação coloca
quando assume a necessidade de um modelo único. A arte nunca é um modelo
educacional. Apesar de uma formação artística passar pela educação dos sentidos, do
espaço, do ritmo, de uma fluência, de um encadeamento, cada um destes aspectos são
vivenciados sem uma ordem hierárquica ou como um objetivo para uma conclusão final. A
arte educa, porém esta educação é decorrência de um processo de construção em que o
artista atua para manter viva a sua singularidade. Um projeto artístico não tem como
compromisso chegar a um lugar específico. A artista plástica Cláudia Amorim fala do fazer
artístico como uma ponte entre a “explosão neural” e o “caos interno” (2003:24). Por isso,
podemos afirmar que o objetivo da arte não é educar. O artista persegue uma coerência
que é criada por ele mesmo. Assumir um caminho de invenções é absorver também o
inusitado, o diferente ou o estranho. Obviamente, existem critérios. O próprio artista
inventa na ação do seu fazer uma coerência para o seu projeto criativo. Sacks nos traz
uma reflexão:
Isso nos conduz à nossa questão final: haverá algum “lugar” no mundo para um
homem que é uma ilha, que não pode ser aculturado, tornado parte do continente?
Pode o “continente” acomodar, dar espaço ao singular? Existem aqui semelhanças
com as reações sociais e culturais aos gênios. (Evidentemente, não estou afirmando
que todos os autistas têm genialidade, apenas que eles compartilham com os gênios o
problema da singularidade.) Existirá algum “lugar” para ele no mundo que venha a
empregar sua autonomia, porém deixando-a intacta? (1997:253)
Arte e educação não podem assumir parcerias se obrigando às mesmas condutas.
Prover esta convivência colabora numa reflexão para reinventarmos uma interação mais
competente e menos burocrática entre esses universos. Geralmente as escolas não
abrigam “Josés”, porém sabemos da existência de alunos em nossas classes com uma
série de dificuldades cognitivas na apreensão de determinados conteúdos entre diferentes
111
disciplinas pelo fato de apresentarem distúrbios em diferentes níveis como afazia35 e
dislexia36, por exemplo. Qual deve ser a nossa conduta, neste caso? Devemos nos
relacionar com estes alunos reivindicando os mesmos critérios? Que condutas podemos
construir com estes alunos, afim de estimulá-los de forma honesta, competente e criativa
numa interação de conhecimento? E os alunos em que os problemas são de outras
ordens como, deficiência física, desajuste social, depressão, stress, anorexia nervosa?
Existem também aqueles alunos que, simplesmente duvidam daquilo que a escola tem a
lhes oferecer - uma formação com uma convivência mais democrática. Como podemos
colaborar para modificar a vivência escolar destes alunos e a relação assumida por eles
diante do processo de construção de conhecimento numa instituição formal? A escola, a
universidade, precisa transformar suas condutas. Precisamos ter coragem de assumir que
modelo é referência de algo que já aconteceu. Quem trabalha com ensino, deveria
trabalhar como artista. O artista trabalha sempre inventando. Invenção lida com
conhecimento. Lembremos das escolas de danças mencionadas anteriormente como o do
Espaço de Dança Ruth Rachou37 e do Espaço do Nova Dança38. Ambas formalizam
conhecimento, com um perfil próprio, inseridas em contextos de formação artística e
profissional.
Quando o universo educacional escolhe abarcar e agregar a arte na sua grade de
formação, a idéia é que existe uma solicitação para se desvincular de um eixo “normativo”
ou “autoritário” por parte da sua organização. Por outro lado, o movimento inverso que vai
do universo artístico ao educacional exprime a certeza de que a arte é também área de
construção de conhecimento. Neste sentido, tais parcerias e relações entre esses
diferentes universos - o educacional e artístico - são extremamente pertinentes. A
instituição precisa agregar a conduta artística na sua grade e se deixar contaminar por
sua forma de ação menos burocrática. Em contrapartida, o universo artístico precisa
inventar uma formalização das suas condutas que esclareça para a instituição o percurso
35
Afasia motora - Distúrbios de linguagem caracterizada pela incapacidade de falar embora a linguagem seja compreendida. 36
Dislexia – De acordo com Ratey: O termo disléxico tem sido excessivamente usado e supersimplificado, e passou incorretamente a significar pessoas que transpõem letras ou números adjacentes. Clinicamente, a dislexia abrange um leque muito mais amplo de transtornos de linguagem. Alguns disléxicos têm dificuldade em processas o som, outros têm problemas para processar a palavra visual e ainda outros acham difícil extrair um significado de palavras impressas. Alguns que estão lesionados no trajeto acústico podem ainda reconhecer palavras completas, mas não podem decodificar ou articular palavras desconhecidas ou pseudopalavras. Outros, que sofreram uma lesão no trajeto visual, podem decodificar palavras usando a fonética, mas não podem reconhecer palavras completas com a mesma rapidez. (2002:313)
37 Vide página 86.
38 Vide página 102.
112
desta construção e que seja condizente com as etapas evolutivas de um pensamento que
gera conhecimento, fazendo arte.
Neste ponto a ciência pode ajudar a entender o que é arte. As ciências cognitivas,
conforme Cláudia Amorin, estão investigando o que acontece com o cérebro no momento
da criação.
Os trabalhos de neurologistas como Ramachandran ou Semir Zeki, por meio de
protocolos científicos, iluminam alguns aspectos dos fenômenos da consciência e da
percepção, tentando fazer a conexão entre o córtex cerebral, o olhar do artista e sua
mente e cultura. (...) A arte é encarnação das experiências, dos protocolos e das
pesquisas feitas em laboratório. (2003:24)
Este trabalho da escuta do corpo enquanto um procedimento artístico, nesta
construção, desaguou em ambientes coreográficos gerados por interlocuções interativas
em modos de pensar arte a partir de determinados acordos no espaço. Neste mover
dançante, ciência e educação foram contaminações preciosas. Nossa arte como aquilo
que escolhemos enquanto intervenção neste mundo. Na ciência buscamos outros
entendimentos do espaço – seja aquele que invade nossos corpos ou aqueles que nos
invadem entre outros corpos. Com a educação, nosso desejo era provocar nos outros,
ignições que os levassem a criar.
Criação: eis aí algo que nos ensina a lidar com diferentes etapas de um
conhecimento. Nestas empreitadas aprendemos a configurar algo entre ordens e
vertigens. O ambiente criativo é um reino permeado sempre de muitas dúvidas. Não
sabemos ao certo aonde iremos chegar e muito menos se estamos fazendo as melhores
escolhas no processo. O importante é experimentar um caminho. O ato de criar nos leva a
entender melhor o que está a nossa volta e colabora para que percebamos melhor o
outro. Criar nos ensina a amar. Amar também é um ato de resistência e tolerância. O
amor nos obriga a sair de nós mesmos e olhar o que acontece a nossa volta. Ensina
sobre convivência. Por isso amor é construído o tempo inteiro. O amor é o entre. Este
entre cria trânsitos provisórios. É nesta paisagem híbrida que a dança se faz. Em
instantes a dança se torna ela mesma e em sopros se transforma, em novas e breves
paisagens.
114
Vera Cruz – Ensino Médio - 2003.
Aos alunos do segundo ano que escolheram dança.
Ora encanto – Riso – ora desencanto.
Na nossa última aula uma onda de tristeza invadiu meu corpo. Neste estado triste,
sinceramente, no meu lar refleti bastante sobre o acontecimento infeliz do nosso último
encontro. Por isso, agora escrevo. É uma tentativa de desafogar neste corpo e dividir com
vocês: alunos-parceiros.
Quero falar sobre o riso. O que é que nos faz rir? Qual a necessidade da existência do
riso? Temos necessidade de rir? Rimos, por quê?
Queridos, não se assustem, não é uma tese sobre o riso. Mas, foram os risos de
alguns de vocês que provocaram toda esta reflexão.
Voltando ao meu doce lar, lendo um livro para o meu caçula me inspirei nas falas de
Saint-Exupéry39:
-Quando olhares o céu de noite, porque habitarei uma delas estarei rindo, então será
como se todas as estrelas te rissem! E tu terás estrelas que sabem ri!
E ele riu mais uma vez.
-E quando te houveres consolado (a gente sempre se consola), tu te sentirás contente
por me teres conhecido. Tu serás sempre meu amigo. Terás vontade de rir comigo. E
abrirás às vezes a janela à toa, por gosto...E teus amigos ficarão espantados de ouvir-
te rir olhando o céu. Tu explicarás então: “Sim, as estrelas, elas sempre me fazem rir”.
(1915: 87)
Quando trago esse olhar para as estrelas é porque acho possível criarmos uma
analogia do saber com o céu sobre nossas cabeças. O céu nos evidencia que existe noite
e dia. O céu nos ensina o claro, o escuro. O céu nos proporciona diferentes treinos:
proporção, forma, abstração, cor, conjunto, velocidade, e muito mais. No meu caso, o céu
sempre apontou que tenho muito que aprender a partir dele, na condição de ser humano.
Talvez, essa percepção infinita me traga uma tranqüilidade na relação com o outro:
são muitos os fatores juntos que nos deslocam a novos patamares. Neste caso, existe um
crescimento nesta ação conjunta de aprendizados.
39
Antoine Saint-Exupéry (1900-1944) foi um piloto de carreira militar e escritor.
115
Na sala de aula, professor e alunos são parceiros. Entre ações, ambos, constroem
falas. Entre falas, ambos, constroem ações. Nestes atos compartilhados, ir além exige
confiança, disponibilidade e respeito.
É neste ponto que chegamos ao cerne da nossa questão: o riso.
Neste contexto de sala de aula, quando rimos é porque de algum modo sabemos que,
juntos, saímos de um lugar comum. Como uma orquestra, cada um com seu rigor e
singularidade colabora para o conjunto avançar na referência de um determinado saber.
Confabulamos com outros, um plano. A seguir, este plano tem êxito. Por isso rimos. Tal
riso é compartilhado e comemorado entre todos os envolvidos.
Neste ambiente generoso também existe o riso que surge do nada. Com uma direção
certeira ele desautoriza qualquer fala. Como uma flecha que escapa sem querer e fere.
Este riso certeiro desmorona e ridiculariza vários cuidados nesta ação conjunta. Este riso
descuidado é perigoso. Ele mina o acolhimento necessário em qualquer conduta de troca
e respeito.
Retomando o mundo estelar, uma idéia é perceber cada estrela como uma área de
conhecimento. Por isso, quando olhamos o céu ele nos ensina. Este céu nos mostra que
um humano é mais feliz quando aprende variadas convivências.
A disponibilidade corporal para qualquer aprendizado passa por uma apurada escuta
em relação ao outro. A dança pode ser entendida como uma dessas estrelas que
compõem este nosso variado céu azul. Ver essa estrela é estabelecer que conheço mais.
Neste caso conheço dança. Por isso, olho o céu e sorrio. Por isso, em aula: escuto, troco,
aprendo e sorrio. O riso nasce de um estado diferente que criamos no corpo a partir de
relações ou “novas sacadas”. Este estado é uma conseqüência compartilhada entre
parceiros, núpcias entre reinos. Reinos que haverão de pintar por aí, como fala o
compositor Gilberto Gil:
Há de surgir uma estrela no céu cada vez que “ocê” sorrir.
Há de apagar uma estrela no céu cada vez que “ocê” chorar.
O contrário também bem que pode acontecer:
De uma estrela brilhar quando a lágrima cair ou
Então de uma estrela cadente se jogar só pra ver a flor do seu sorriso se abrir.
(1980: Estrela)
116
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO - ESCOLA DE COMUNICAÇÃO E ARTES
Departamento: Artes Cênicas
Disciplina: Técnica de Dança I Sem/Ano: 1/2003
Na nossa disciplina, todas as intervenções criadas são entendidas como ações.
Nestas cabem o desejo de um determinado sucesso. Neste contexto cabem construções
de determinados padrões com a intenção de garantir certas estabilidades, tanto para o
conjunto que compartilha deste ambiente, como para o indivíduo que formaliza neste
lugar conjunto, algumas extensões de suas reflexões particulares e pessoais. Nenhuma
ação exclui a ação do outro, pois todas elas estão intrinsecamente ligadas a determinadas
escolhas que se complementam de forma interativa.
Nesta rotina de classe, experimentos práticos se alimentam com as ciências
cognitivas. Dupuy nos lembra:
De 1946 a 1953, dez conferências reuniram em intervalos regulares algumas das
maiores inteligências deste século. Organizadas pela fundação filantrópica Josiah
Macy Jr., elas entraram na história com o nome de Conferências Macy. Os membros
desse clube fechado –matemáticos, lógicos, engenheiros, fisiologistas, psicólogos,
antropólogos, economistas – tinham como ambição edificar uma ciência geral do
funcionamento da mente. (...)
No presente caso, o nome escolhido foi “cibernética”. (...) De uns quinze anos para cá,
a expressão que parece ter-se imposto é a de “ciências cognitivas” ou, às vezes,
“ciências da cognição”. (1996:9)
Existe uma história da natureza construída pelos homens que consegue ser contada
de diferentes formas. Por outro lado, existe uma história correspondente de idéias sobre o
auto-conhecimento humano. Hoje, podemos afirmar que a ciência percebe que a própria
indagação sobre as origens do conhecimento são legítimas, mas também entende o
conhecimento numa perspectiva ampla e interdisciplinar.
A idéia é a de que toda ação gera conhecimento e que este é gerado por uma ação
incorporada. Neste sentido, desejo chamar a atenção para dois pontos: primeiro que o
aprendizado depende dos tipos de experiência decorrentes de se ter um corpo com várias
capacidades sensório-motoras e segundo que estas estão embutidas em um contexto
biológico, psicológico e cultural mais abrangente. Estas idéias fazem parte do livro de A
Mente incorporada: Ciências cognitivas e experiência humana de Varela, Thompson e
Rosch que ampliam o significado do termo ação para enfatizar que os processos
117
sensoriais e motores – a percepção e a ação – são fundamentalmente inseparáveis na
cognição vivida, além de que, também evoluíram juntos.
Retomando a nossa rotina de classe, o movimento no nosso espaço de trabalho está
sempre ligado a uma intenção na interação com o espaço. Seja este o espaço do corpo, o
espaço da sala de aula ou o espaço entre diferentes corpos.
Nesta intenção estão implícitos diferentes modos de articularmos no corpo um
pensamento corporal numa perspectiva cênica. Este pensamento conflui para uma
atividade criadora que entra em ressonância direta com outras naturezas criadoras e
produtoras de formas. A nós, agentes criadores-intérpretes, desta sala de aula, cabe
diferentes aprendizados que acontecem ao mesmo tempo, checando nossas concepções
sobre a natureza que nos cerca, nossas relações materiais com esta natureza, os efeitos
que nela produzimos, e os processos que aí cultivamos sistematicamente.
Esta natureza para a qual chamo a atenção, aponta para o fato de que em todas as
nossas vivências de classe estão implícitas uma visão de mundo. Este olhar conversa
com um mundo que se transforma a partir de evoluções múltiplas e divergentes que nos
levam a pensar não num tempo à custa de outros, mas na coexistência de tempos
irredutivelmente diferentes e articulados. Prigogine e Stengers nos lembram:
Onde nos encontramos hoje? Gostaríamos de chamas a este livro “O Tempo
Reencontrado”, pois a natureza à qual a nossa ciência se dirige hoje não é mais
aquela que um tempo invariante e repetitivo chegava para descrever, nem, tampouco,
aquela cuja evolução era definida por uma função monótona, crescente e decrescente.
(...)Trata-se de duas posições que se afrontam: Newton nos Principia: “O tempo
absoluto, verdadeiro e matemático, em si mesmo e por sua própria natureza, decorre
uniformemente sem relação a algo exterior e, com outro nome é chamado de
Duração”. Bérgson, em L’Évolution Créatrice: “O universo dura. Quanto mais nos
aprofundarmos sobre a natureza do tempo, melhor compreenderemos que duração
significa invenção, criação de formas, elaboração contínua do absolutamente
novo”.Doravante essas duas dimensões se articulam em vez de excluírem. O tempo
hoje reencontrado é também o tempo que não fala mais da solidão, mas sim da aliança
do homem com a natureza que ele descreve. (1997:15)
118
Comunicação das Artes do Corpo: Corpo, corpo... O que é que me perguntas?
Outro dia, conversando com os alunos de coreografia, percebi que eles não tinham
clareza quando apontamos a importância de buscarmos na construção de uma obra
artística, uma relação poética.
Percebo que eles captam esta relação por outros sentidos: uma determinada fricção
no corpo enquanto co-relações de diferentes ações provocadas no processo da criação
de um experimento prático.
É neste ambiente de turbulências que criamos. Criamos formas para nos devolver em
significados aquilo que a princípio não entendemos ou simplesmente nos lançamos em
uma direção por uma necessidade gerada a partir de nós mesmos.
Em cada criação treinamos com o corpo maneiras de organizar o ambiente em que
vivemos com outros modos, resolvendo de outros jeitos o espaço de nossas convivências.
O processo de criação é um espaço que colabora para exercitarmos estas convivências
como outras possibilidades que surgem a partir de questões geradas por nós mesmos.
É no processo de criação que de algum jeito produzimos uma vontade grande de
aprender. Aprender para criar sentido à obra, num esforço de construir algo que se impõe
por si mesmo. Salles comenta:
À medida que o artista vai se relacionando com a obra, ele constrói e apreende as leis
que passam a regê-la e, naturalmente, conhece o sistema em formação. Modificações
são feitas, muitas vezes, de acordo com critérios internos e singulares daquele
processo. O artista conhece, nesse momento, o que a obra deseja e necessita.
(1991:131 e132)
Um desafio para o artista é perceber instantes em que o processo caminha por
coerências estabelecidas pelo próprio processo. Ao artista cabe neste esforço aprender,
estabelecendo coerências entre o que vê, o que o corpo pede e o que a obra exige. Como
uma teia, o processo devolve ao criador uma percepção de sua construção que envolve
projeto artístico, relação do artista com a matéria e o projeto poético. O poético é tecido
na medida em que esses pontos se relacionam: uma coerência estabelecida na
construção do projeto que capta um jeito singular pertencente a um corpo, com suas
próprias leis. Ao mesmo tempo, neste ambiente criamos referências de entendimentos
gerais para que amplie nossas possibilidades de trocas. Sejam estas com outros corpos,
sejam essas com outros espaços ou sejam estas com outras danças.
119
Vera Cruz - Ensino Médio.
Dezembro: Formatura do 3ano.
Queridos alunos.
Apesar de não estar de corpo presente, de outros jeitos, me sinto “encarnada” neste
instante.
Nossa sala deve estar cheia de brilhos. São reflexos das retinas entre pais, avós e
filhos que juntos a seus mestres e amigos permitem-se nesta comunhão.
Na verdade é um tempo solene. O solene casa-se com delicadeza, o respeito, o
humano.
Neste momento de “humano” até parece que levamos uma picada em nossos
corações. Talvez por isso, silenciosamente um veio de uma clara-lágrima surge em uma
de nossas faces. É o tal choro... Este brota no corpo que sem saber ao certo sua origem,
provoca muitas reações. Todas elas articuladas entre si. É uma revoada de águas que
deságuam na terra azul.
Se os olhos são janelas para o mundo, cada corpo aqui presente colaborou nesta
construção.
Querido aluno, por favor, escolha uma direção para esta construção. No tempo, caso
seu desejo seja olhar para outros lugares, sem nenhum problema, você cria outras
janelas. Mas cuidado, não seja voraz. Faça uma janela adequada para seu corpo. Nessa
janela, compartilhe uma paisagem com outro. No tempo, construa espaços entre outros,
Sejam felizes!
120
Comunicação das Artes do Corpo Sem/ Ano: 2/20001
Disciplinas de Laboratório de Criação e Coreografia
Carta aos jovens alunos: reflexão sobre uma avaliação.
A escrita, uma tradução em palavras, adquire neste momento um caráter solene. Na
hora em que começamos a colocar o preto no branco, com letras damos contornos, ligas
e ritmos a estruturas entre vários pensamentos. Estes povoam o nosso corpo.
Apesar de vocês pertencerem a disciplinas ou turmas de diferentes grupos, neste ano
letivo consegui mapear alguns contornos pertencentes a nossa comunidade de
aprendizes.Tentarei ser clara e objetiva desta vez.
Percebo três naturezas básicas nesta população de diversos. Cada uma delas
funciona como uma ilha, povoada por seu respectivo grupo. Ninguém é prisioneiro. Todos
escolhem ou sem saber são capturados. Mas, sempre podem circular e viajar.
A primeira ilha é habitada pelo “Evangelho das Lagartas”. Elas são lentas. Às vezes
feias, outras vezes esquisitas. Não sabemos se a esquisitice que cabe nelas é pelo fato
de serem feias ou simplesmente porque são diferentes. A certeza neste povo é que
chegam no tempo de uma maturação. Neste momento, um casulo é construído. Com
certeza, logo virá uma borboleta. Sua asa será de acordo com seu vôo. Seu vôo também
será competente com seu corpo. Aos alunos desta terra, a ordem é um belo “Dez”.
A segunda ilha é habitada pelo “Evangelho das Tartarugas”. Elas também são lentas
Às vezes sentem medo e se recolhem. Sem culpa, elas demoram em entender que
precisam mudar de ilha. É só mergulhar no oceano das águas claras. O casco faz o resto.
Aos alunos desta terra, conversar é uma ótima idéia.
A terceira ilha é habitada pelo “Evangelho das Sombras”. Eu tenho muito receio por
estes. Infelizmente eles nunca se revelam. Vivem ocultos. Sua especialidade é vigiar.
Acham que o mundo é feito só de tribunais. Falam com muita facilidade em nome e no
lugar de outros. Um grande problema é que quanto mais julgam menos criam.
Silenciosos, eles contaminam. Vivem às espreitas, tentando laçar o vôo daquela
engraçada lagarta ou simplesmente assustando aquela amável tartaruga. A este grupo
um papel.Tanto faz o seu tamanho ou a sua forma. Mas este espaço solene ficará branco,
só branco.
121
Vera Cruz - Ensino Médio – 2001
Aos alunos do 2ano que escolheram dança.
“As estrelas são todas iluminadas... Não será para que cada um possa um dia
encontrar a sua?... Mas como está longe...é preciso buscar com o coração...”
Saint-Exupéry, Antoine de ( 1977: 62 e 83)
Acredito que estas frases do livro “O Pequeno Príncipe”, introduzem pensamentos que
de algum modo, estão intrínsecos no nosso trabalho de classe. Tentarei esclarecer.
Uma abordagem relaciona-se com um auto-conhecimento. Este se estabelece num
espaço, entre vários colegas e professores, sobre os quais qualquer estudante curioso,
pode adquirir informações à respeito dele mesmo. Parece algo simples, mas é muito
complexo tal procedimento. Uma impressão é que muitos alunos assumem a escola como
um espetáculo. Quer dizer que se transformam testemunhas e assistem a certa distância
o que acontece a sua volta.
Um custo nesta abordagem é o tempo. A vida tem uma série de prazos. A percepção
e o comportamento em qualquer processo de formação carregam uma temporalidade.
Estas qualidades colaboram no processamento das informações a que temos acesso.
Outro fator diz respeito aos recursos. Uma certeza é que qualquer processamento de
informação requer energia. Pensar também é dispendioso. Pinker, Steven (1997: 150)
Na nossa convivência de dança ao que diz respeito às questões ligadas ao auto-
conhecimento, ao tempo e aos seus recursos, sobre o que devemos nos debruçar? Seria
a questão do passo, do encadeamento, do corpo ou do sentimento?
Creio que em qualquer escolha um todo está contido. Não existe ação sem uma
razão de ser. Nesta, cabe o movimento que por si agrega múltiplas possibilidades. Cabe
ao corpo negociar com seus desejos e limites.
Mais que a dança, matemática, ciência ou filosofia, o importante é a possibilidade de
descoberta entre muitas convivências. Eleger um caminho é uma necessidade na vida.
Este requer uma aptidão. Esta é aprendida e adquirida. A escola pode colaborar nesta
reflexão.
Ao aluno, dentre várias possibilidades, uma pergunta: Na construção de um sonho,
em qual dos caminhos você se percebe? O do artista, aquele que explora sua existência,
ou o do espectador, aquele que olha, deseja e torce, mas, não vive no corpo a
experiência.
122
Vera Cruz - Ensino Médio – 2001
Aos alunos do 3ano que escolheram “Dança”.
Percebo que este grupo demonstra respeito e carinho pelo professor. É claro, esta
sensação provoca no corpo de um docente, alegrias e delicadezas. Estas estimulações
num determinado tempo criam no mestre um compromisso perante o grupo. Tal atitude
nunca é premeditada. É construída num fazer diário de cada aula, desfrutada pelos
alunos e professor.
É neste momento do processo, que se instala uma identidade de trabalho entre as
pessoas diretamente envolvidas (professor e alunos). Nesta convivência, questões
ligadas a vários conhecimentos, vivenciadas em diferentes setores da sociedade, tornam-
se particulares e adquirem outras propriedades no espaço privado da sala de aula. Este
processo é marcado pelo compromisso que cada implicado cria com ambiente escolar.
Enquanto professor neste trimestre, algumas provocações transformaram-se em
desejo: tocar vocês através da dança, em uma qualidade: a sutileza, ou seja, a
possibilidade de se inventar com delicadeza.
Enquanto o mundo de Lucrécio se compõe de átomos inalteráveis, o de Ovídio se
compõe de qualidades, de atributos, de formas que definem a diversidade de cada
coisa, cada planta, cada animal, cada pessoa; mas não passam de simples e tênues
envoltórios de uma sustância comum que – se uma profunda paixão a agita – pode
transformar-se em algo totalmente diferente.
...Em Lucrécio como em Ovídio, a leveza é um modo de ver o mundo fundamentado na
filosofia e na ciência. Mas em um e outro caso, a leveza é algo que se cria no processo
de escrever, com os meios lingüisticos próprios do poeta, independentemente da
doutrina filosófica que este pretenda seguir.
Calvino, Italo40
(1988: 21, 22 e 24)
Viver exige muitas negociações. Estas se fazem num mundo plural que depende da
conduta de cada homem, seja este criança, adolescente ou adulto. Existem estratégias
específicas e direcionadas para cada etapa de nossas vidas, mas não quer dizer, que o
mais novo tem menos problemas ou que estes são menos complexos. A convivência é
difícil, tem que ser exercitada no dia a dia: em nossa casa, com nossos familiares e
amigos, na escola e na rua.
40
Ítalo Calvino (1923-1985) era escritor. Nasceu em Santiago de Las Vegas, Cuba, tendo ido logo a seguir para a Itália. Participou da resistência ao fascismo durante a guerra e foi membro do Partido comunista até 1956. Publicou sua primeira obra, em 1947.
123
Na conduta das diversas estratégias de trabalho ou de ensino, a leveza merece
destaque em contraponto a um tempo agressivo e estrondoso. Tal escolha colabora num
processo que contém muitas implicações. Dentre elas, a tolerância. Esta é conquistada
num fazer que é diário, com os limites do corpo e do outro. Em alguns momentos os
limites oferecem resistência a liberdade do aluno ou professor, mas em outros, revelam
horizontes propulsores como um navegante que se lança num desconhecido oceano, a
procura de uma terra prometida. Aos poucos, leves sinais de sombras, divulgam florestas
em um novo lugar.
Existem muitos caminhos. Cabe a cada corpo uma construção. Neste processo
corporal uma atitude perante a vida também é construída. Temos aí uma grande questão:
socializar, compartilhar essa construção ou morrer de tédio, falando a nós mesmos.
O futuro se anuncia por leves rumores. Estes aparecem nas velhas construções.
124
PUC – 2001
Comunicação das Artes do Corpo: “Coreografia”
Aos alunos do 3ano.
Estamos no meio do processo da disciplina “Coreografia”. Imagino que muitas
perguntas misturadas a diferentes sensações neste tempo apareceram.
O que torna difícil esta disciplina? É o que aparece? Ou será aquilo que não parece?
Na verdade, tem muitas questões envolvidas neste processo de implantação. Tentarei
aos poucos esclarecer alguns pontos obscuros neste nosso processo. É certo que
existem limites e estes estão envolvidos na relação direta daquilo que foi possível de
estabelecermos a partir da nossa convivência de classe. Entremos no problema.
Existe um grande sistema que é dança. No nosso caso, a dança é entendida como um
sistema aberto. Um sistema que se transforma a partir de acontecimentos significativos,
reformulando e modificando todo o sentido deste mesmo sistema.
Coreografia pode ser vista como um dos acontecimentos significativos que
transformam este sistema-dança. Os corpos que povoam este sistema também são
acontecimentos significativos.
Se existem concordâncias até aqui, vamos prosseguir.
Como colaborarmos para que este ambiente continue expandindo?
Existe uma cobrança com relação à ementa proposta no início do curso. Parece não
existir um reconhecimento daquilo que foi dito, com relação às vivências de classe.
Tentarei esclarecer parte dos objetivos de como esta disciplina foi estruturada:
O corpo pode ser tratado em vários níveis em relação às informações que entram nele.
A informação que chega de fora, no corpo não permanece a mesma; ela é
transformada. (...)
De imediato, assumo que a nossa relação será tratada no corpo. No corpo de quem
dança, no corpo de quem não dança, no corpo de quem gosta de dança e no corpo de
quem não sabe para que tem que ter dança.
É um diálogo entre diferentes corpos. Uma vez que elejo como um dos pontos de
partida deste diálogo, a diferença entre os corpos, é porque entendo que eles terão
disponibilidades entre si. Ambientes com muitas taxas de diferenças entre seus
integrantes podem revelar-se extremamente valiosos para o procedimento de qualquer
125
aprendizado, por outro lado, todos os envolvidos deverão saber da necessidade de muitas
negociações. E estas são construídas no processo.
No nosso trabalho essas negociações precisam acontecer no corpo. É na proposta de
cada aula, na experiência de cada exercício, na sensação que o corpo vive quando se
desloca numa diagonal. É no caminho de todas estas ações que o corpo tem chances de
formalizar e sistematizar “movimento” enquanto uma “estrutura coreográfica”.
Aos poucos, observando o grupo, fui selecionando questões como foco, conjunto,
eixo, espaço, tempo, simultaneidade, precisão, diversidade, prontidão e simetria. No
tempo, uma escolha pessoal. Enquanto um orientador, preciso ver para conhecer. O meu
conhecimento é estabelecido no contado. É o contato da ação no corpo.
O que a instrução provoca no corpo? Conhecimento. Por isso, resolvi instrui-los neste
momento com questões que perpassam o fazer de muitas danças, sem “fronteiras”.
No nosso trabalho é na ação dos corpos, na relação entre os corpos que
formalizaremos algumas questões, sejam estas coreográficas, criativas ou pedagógicas.
É a ação que irriga qualquer corpo. Por isso, o corpo o tempo todo cria. Ele vislumbra
no tempo, o “monte” e “desmonte” de muitas construções. Uma necessidade é a da
experimentação, uma dificuldade é a da negociação. Com o outro, com o corpo.
Compromete-nos a tomar uma atitude de permanente vigilância contra a tentação da
certeza, a reconhecer que nossas certezas não são provas da verdade, como se o mundo
que cada um de nós vê fosse o mundo, e não um mundo, que produzimos com outros.
Maturana e Varela afirmam:
Se sabemos que nosso mundo é sempre o mundo que construímos com outros, toda
vez que nos encontrarmos em contradição ou oposição a outro ser humano com quem
desejamos conviver, nossa atitude não poderá ser a de reafirmar o que vemos do
nosso ponto de vista, e sim a de considerar que nosso ponto de vista é resultado de
um acoplamento estrutural dentro de um domínio experiencial tão válido como de
nosso oponente, ainda que o dele nos pareça menos desejável. Caberá, portanto,
buscar uma perspectiva mais abrangente, de um domínio experiencial em que o outro
também tenha lugar e no qual possamos, com ele, construir um mundo. (1995:262)
126
PUC – 2001
Comunicação das Artes do Corpo: “Laboratório de Criação”
Como professor, percebo algumas dúvidas e muitas angústias no tempo universitário.
Com relação aos alunos deste curso, muitos escolhem entre outras direções, uma
comunicação do corpo em dança. Não cabe nesse momento discutir um “por que” desta
decisão. Por outro lado, uma vez que é iniciada a graduação, tornam-se inevitáveis suas
implicações. Daí surge uma pergunta: o que desejamos comunicar? Será a “nossa dança”
ou “aquela dança”? Por outro lado, o desejo da comunicação está no corpo daquela
dança ou na dança daquele corpo?
Cada uma destas indagações carrega propriedades importantíssimas para qualquer
aprendizado de dança. Além disso, elas sempre se cruzam nos diferentes momentos de
nossas vidas.
Acredito que entre várias possibilidades de caminhos em dança, pelo menos três tipos
de escolhas sempre aparecem. São elas:
1)Um tipo de escolha é aquela que parte de modelos pré-existentes. Tanto de um corpo
que dança como de uma dança que cabe num corpo. Lembremos de Martha Graham,
Paul Taylor, Doris Humphrey. Cada um destes criadores-coreógrafos construíram um
sistema específico dentro do pensamento da dança moderna. Cada um criou um corpo.
Cada um resolveu e organizou na cena, de acordo com suas idéias uma dança. Estes
coreógrafos criaram outros padrões de organização de corpo e da cena deste corpo.
Cada um deles criou um modelo de dança. Ainda hoje, Graham, Taylor e Humphrey são
referências para quem persegue em dança uma construção coreográfica e uma
adequação de um padrão cênico.
2) Um outro tipo de escolha é a que persegue um tipo de organização que não é pré-
existente. Uma construção estabelece-se a partir das relações que o corpo cria com o
meio. Cabe a cada corpo encontrar suas soluções sem partir de modelos apriori. Ao invés
de determinar uma seqüência de passos na estrutura coreográfica, este caminho é criado
da necessidade de uma ação corporal. A cada instante as atividades são selecionadas
pelo corpo. A dança contemporânea é um bom exemplo. Muitos artistas vêm organizando
e elaborando na cena e no corpo essa discussão.
3) Uma outra possibilidade de escolha é aquela que assimila as duas questões anteriores,
ou seja, trabalhar com modelos pré-estabelecidos e também com ações que não estão
127
programadas em modelos. Existe a noção de um trabalho em rede. A dança
contemporânea também serve de exemplo aqui.
Qualquer um dos caminhos acima apontado carrega em si uma atitude sempre
implicada com um pensamento de mundo. Qualquer escolha provoca uma atitude no
corpo que reverbera em todas as relações deste com o mundo. E o mundo, também
provoca o corpo nesta seleção. Vale a lembrança de Calvino, quando se refere a mente
do poeta, bem como o espírito do cientista em alguns instantes de decisões:
A mente do poeta, bem como o espírito do cientista em certos momentos decisivos,
funcionam segundo um processo de associações de imagens que é o sistema mais
rápido de coordenar e escolher entre as formas infinitas do possível e do impossível.
A fantasia é uma espécie de máquina eletrônica que leva em conta todas as
combinações possíveis e escolhe as que obedecem a um fim, ou que simplesmente
são as mais interessantes, agradáveis ou divertidas. (...)
Se incluí a Visibilidade em minha lista de valores a preservar foi para advertir que
estamos correndo perigo de perder uma faculdade humana fundamental: a capacidade
de pôr em foco visões de olhos fechados, de fazer brotar cores e formas de um
alinhamento de caracteres alfabéticos negros sobre uma página branca, de pensar por
imagens. Penso numa possível pedagogia da imaginação que nos habitue a controlar
a própria visão interior sem sufocá-la e sem, por outro lado, deixá-la cair num confuso
e passageiro fantasiar, mas permitindo que as imagens se cristalizem numa forma
bem definida, memorável, auto-suficiente, “icástica”. (1990: 107 e 108)
Os processos de comunicação com o mundo são diretos. O corpo se organiza dentro
de uma simultaneidade de caminhos, com vários níveis de complexidades em relação as
informações que entram nele. Por tudo isso, buscar uma identidade pessoal nessas
negociações é recriar qualquer pensamento, seja este prático ou teórico.
O “traço”, o “risco” de qualquer inventor consiste no ponto de inserção entre vários
planos de diferentes conhecimentos e percepções na relação “corpo-ambiente”. Esta
realidade também é construída no tempo com nossas fantasias. Não existe técnica que
defina o todo de um processo, seja este artístico ou científico.
Existe um privilégio de qualquer percurso criativo que é organizar diferentes saberes
de maneira pessoal. É uma oportunidade arriscar-se em qualquer experimentação com
outras formas, ou outras ordens, seguindo métodos a serem inventados cujas soluções
são imprevisíveis.
128
As pessoas são diferentes umas das outras, e há disposições individuais muito
variadas para aprender e criar.
A esta altura podemos falar da importância da relação existente entre uma pessoa e
um corpo ou uma mente e um corpo. Damásio aborda da seguinte forma:
Uma das razões porque admiramos os bons atores é que eles conseguem nos
convencer de que são outras pessoas, que possuem outra mente e outro self. Mas
sabemos que isso não é verdade, que eles apenas transmitem engenhosas
simulações, e valorizamos esse trabalho devido à sua dificuldade, porque o que eles
fazem não é natural. (1999:187)
Para dominar a ignorância precisamos descobrir de que somos feitos e como somos
construídos. Uma explicação a respeito desta abordagem é que tudo o que ocorre numa
mente, está moldada pelo corpo. Uma certeza é: Cada corpo diz respeito a uma mente,
assim como, cada mente diz respeito a um corpo. Essa interação acontece desde que
nascemos. Nesta trajetória existe um processo. Este abrange operações conscientes e
inconscientes.
Existe uma direção que é formalizada de modo contínuo e irrevogável pela
convivência de múltiplos sinais. Estes processamentos no tempo configuram-se numa
construção. Por isso, toda experiência ligada a novas convivências, se tornam
importantes. Elas evidenciam, ou melhor, podem colaborar na visibilidade de novos
acordos entre o corpo que é mente e a mente que cabe neste corpo.
No que diz respeito ao compromisso estabelecido entre corpo e mente, um fato é que
existe uma colaboração biológica desde as células que nascem no corpo aos próprios
desejos de cada corpo.
Estas operações acontecem em um fluxo contínuo de padrões mentais. Dependendo
de nossas ações, estas influenciam, por exemplo, na maneira como os neurônios
(unidade nervosa, incluindo célula nervosa, com prolongamentos e condutor do influxo
nervoso) se conectam a outros. Ainda Damásio:
Quando descobrimos de que somos feitos e como somos construídos, vislumbramos
um processo incessante de construção e demolição, e percebemos que a vida está à
mercê desse processo ininterrupto.
(...) Assim como ciclos de vida e morte reconstroem o organismo e suas partes em
conformidade com um plano, a cada momento o cérebro reconstrói o sentido do self.
Não possuímos um self esculpido em pedra, que, como a pedra, resista aos estragos
do tempo. Nosso sentido do self é um estado de organismo, o resultado de certos
129
componentes operando de certa maneira e interagindo de certo modo, dentro de
certos parâmetros. É outra construção, um padrão vulnerável de operações integradas
que tem como conseqüência a representação mental de um vivo individual. (1999: 189
e 190)
O conhecimento brota na história de qualquer pessoa a partir das suas experiências.
Estas são inerentes a um padrão neural recém construído. Um fato é que qualquer
elaboração de corpo para se manter vivo, até biologicamente, são necessários planos de
execução de um determinado projeto.
Retomando a questão do iniciante universitário, introduzida no início desta conversa,
este aluno, sem um projeto, dificilmente terá uma partida feliz ao final desta graduação.
Independentes do tempo precisamos nos interrogar com relação aos nossos desejos.
No caso do “Laboratório de Criação”, como professor, tenho curiosidades. Entre
muitas, escolhi duas para falar a vocês que freqüentam esta disciplina e que dizem
respeito a muitos experimentos de classe. São elas a “conexão” e o “foco”.
Neste contexto, o “foco” é a visibilidade da nossa relação de corpo com o espaço
cênico e “conexão” o modo como podemos criar esta visibilidade no corpo e na cena
(ambiente). Na verdade, uma está implicada na outra. Esta relação dá-se em vários
caminhos, trabalhados em comunhão. Desde a direção que escolhemos para dançar no
espaço como os espaços do corpo que são “grifados” na trajetória do movimento através
da fluência que a ação apresenta.
Outras possibilidades entre estas questões acima apontadas são as surpresas que
surgem nesta relação de corpo-ambiente, uma vez que o corpo também é invadido por
outras percepções que estão fora dele mesmo. Algumas vezes, estas invasões colocam
em cheque parte das nossas escolhas. A cada momento uma direção é eleita. Tal fazer
exige pelo menos duas operações: uma de exploração e outra de seleção.
Espero, que vocês estejam acompanhando meu raciocínio até aqui.
Agora, como explorar, como selecionar estas atividades no corpo?
Existem várias possibilidades. Uma idéia é de um aprendizado perceptivo a partir de
um “estado” gerado no corpo. Este estado surge a partir de uma necessidade do corpo
que lida com criação de soluções, de várias instâncias, com o cruzamento de diferentes
domínios.
No caso de quem dança, é como um corpo cria respostas em dança coerentes com a
sua estrutura biológica e com seu projeto artístico-poético-pessoal. Entre o desejo de uma
130
mente e a possibilidade de um corpo, muitas adaptações serão transcritas. No tempo, as
necessidades do corpo, na cena de quem dança, também se modificam. Continuamente
elas são construídas por processos complexos e dinâmicos de integração entre seus
componentes. Quais são os componentes complexos nesta integração? O corpo-
ambiente. Nesta relação estão contidas noções de peso, tempo, espaço, dinâmica e fluxo.
O aprendizado de uma poética corporal, passa por um processo fluido (fluente,
espontâneo e natural de um determinado corpo), não linear (não ser forçado a seguir) e
contingente (como podendo ser ou não ser). Todas estas relações dão-se no trânsito do
social no corpo-ambiente, sejam elas, das nossas aulas, universidade, cidade ou núcleo
familiar. Nossas atitudes dependem dos nossos engajamentos. Muitas de nossas ações
também são produzidas, a partir de nossas parcerias sociais, em que provocam muitas
conseqüências.
A singularidade de cada artista relaciona-se na capacidade que ele encontra da
combinação entre diferentes pensamentos. No caso da dança, cada corpo transforma-se
de um modo particular. Novas formas surgem a partir da metamorfose de formas
existentes ou não. Na seqüência de movimentos uma visão de mundo é compartilhada.
Na maneira de organizar uma seqüência de dança, o artista cria uma lógica particular na
composição de uma série de movimentos. No tempo, esta lógica pode apontar ou detectar
um novo padrão. No tempo, esta lógica transforma-se em rastros. Rastros de corpos,
pedaços de idéias, enfim, misturas que podem levar a uma nova dança.
Cada corpo que dança, possui rastros de muitas danças. São conquistas de um
momento. É o passo, é a linha, é o tempo,...Espaço! É o espaço, é o tempo, é a linha,
passo...
131
PUC – 2000
Comunicação e Artes do Corpo: “Laboratório de criação”
Neste primeiro semestre dividimos algumas experiências práticas que de várias
formas, foram acompanhadas de reflexões.
A partir desta convivência e do material organizado por vocês, resolvi trazer outras
idéias que pudessem somar neste processo que investiga e experimenta a dança, no
pensamento contemporâneo.
Neste sentido, vale lembrar a introdução do texto de Laurence Louppe, quando
comenta sobre corpos híbridos:
Que diferença há entre uma obra coreográfica de um “grande” mestre, como Merce
Cunnigham ou Trisha Brown, e as produções contemporâneas, sobretudo na França?
Nos primeiros, não há apenas uma estética permanente, mas também um “corpo”
construído à luz dos conceitos prévios criadores. Hoje em dia, ao contrário, o
dançarino, por um lado, refaz uma formação que lhe faz cruzar correntes múltiplas, e
por outro lado, ele se vê propor projetos pontuais, sem referência corporal
constitutiva. Sem dúvida essa situação é comum ao conjunto das práticas artísticas,
mas ela pode também se revelar perigosa para o dançarino, pois ele se engaja como
sujeito em sua prática.(2000: 27)
Reapresentar este trecho é, querer chamar a atenção sobre o compromisso do
“sujeito”, com relação às escolhas de suas experiências e como estas, no tempo, vão
somando práticas que de algum modo, irão devolver alguns esclarecimentos sobre o
corpo que se está construindo.
Percebo que muitos de vocês neste momento gostariam de ter respostas claras e
objetivas com relação a que tipo de projeto cênico está-se perseguindo, se o corpo
conseguirá atender as próprias expectativas, se ao final do curso sairá um profissional
com inserção no mercado de trabalho e talvez outras, bastante perturbadoras: “Será que
este é o meu caminho? Será que estou certo?”.
Infelizmente não temos o modelo do “sucesso” ou do “certo”. Quem irá descobrir esse
caminho será cada um de vocês. Todos somos responsáveis pelas escolhas que
fazemos. Na medida em que vamos construindo nossos percursos, de alguma maneira,
essas experiências nos devolverão novos aprendizados e outras realidades.
Neste discurso, a realidade pode ser considerada como um tipo de conhecimento
especial, que é construído a partir de certas convivências apreendidas, que proporcionam
132
aprendizados e vivências diferentes, tendo como referência um mesmo objeto. Um
exemplo, talvez, seja o de lembrar a trajetória de um aprendiz em dança. Dependendo do
envolvimento que tem com este universo, este aluno, aos poucos, vai entrando em
contado com um vocabulário que é específico do mundo da dança, como os nomes dos
passos, das diferentes técnicas, dos diferentes pensamentos e estratégias que circulam
nesta linguagem artística.
A informação que chega de fora, no corpo é transformada. Não existe a idéia de
preservação, nem do que está dentro e nem do que está fora. O que se pressupõe é que
neste contato entre corpo e ambiente, existem contaminações de que algo vai dar em
algo, que vai dar em outro algo, e assim por diante. Esse movimento é perpétuo e
contínuo, não para nunca. Como diria Heráclito (c. 540-480 a.C.) de Éfeso, não podemos
entrar duas vezes no mesmo rio porque suas águas não são as mesmas e nós não
somos os mesmos.
Esta discussão é importante de se trazer para um pensamento em dança, que traz o
“encarnado” enquanto algo que está no corpo, que é mediado pelo corpo. A idéia é da
“conceitualização” ou seja, da possibilidade de se entrar em esquemas conceituais porque
temos uma experiência corporal. É um corpo que define a “conceitualização” do que
vamos passar a fazer no mundo. Precisamos assumir que são as nossas atitudes que
deverão garantir como verdades parte dessas “experiências vividas”. É através do nosso
corpo, que teremos possibilidades de aprender, transformar, criar e sonhar.
Sem sonhos o homem não vive. Qualquer idéia para se concretizar geralmente surge
de um desejo. Foi do desejo que se fez um corpo. No corpo, criamos. Com o corpo,
partimos.
133
Vera Cruz - Ensino Médio- 2000
Dança.
Estamos iniciando o segundo trimestre deste ano letivo, e de alguma maneira, temos
compartilhado o universo da dança.
Ao escrever a vocês, minha tentativa é salientar o “lugar” deste espaço de aula, sua
representação em meio a tantos outros lugares, de tantas outras aulas.
Minha preocupação se insere na percepção de que muitos de vocês se distanciam de
algo que é extremamente valioso para a condição de se fazer parte de um mundo: a da
vivência prática.
Considerada uma das expoentes do pensamento moderno de dança do século XX,
Martha Graham fala assim no seu livro “Memória do Sangue”:
Acredito que aprendemos na prática. Quer isso signifique aprender a dançar na prática
da dança, quer signifique a aprender a viver na prática da vida, os princípios são os
mesmos. Em cada um, é a execução de um dedicado e precioso conjunto de atos,
físicos ou intelectuais, dos quais surge uma forma de realização, uma percepção do
próprio ser, uma satisfação do espírito.
Praticar significa executar, diante de todos os obstáculos, algum ato de visão, de fé,
de desejo. O exercício é um meio de atrair a perfeição desejada.(...)
O corpo é um traje sagrado. É o primeiro e o último traje de uma pessoa: é nele que se
entra na vida e é com ele que se parte dela; deve ser tratado com honra, e com alegria
e medo também. Mas sempre com graça. (1991: 11 e 14)
Minha tentativa é de mostrar a vocês que: nossas vivências e experiências se
produzem nas interações corporais que temos com o mundo em que vivemos. Neste
sentido, a escola, um lugar que cria diferentes fluxos de informações, promoverá
experiências de modo a nos apropriar de vários conhecimentos.
Tentarei explicar melhor. Um fato importante é que, dependendo da disciplina escolhida, o
professor respeitará uma moldura que deverá estar de acordo com o assunto proposto.
Por exemplo: se um professor de filosofia quer apresentar algumas idéias de Platão41
deverá enunciá-las de maneira que seja possível entender as relações com o mundo sob
o olhar idealista do pensador. Nesta apresentação de idéias, o professor está criando
operações. Ao explicar Platão, ele descreve uma visão de mundo. Nesta comunicação, o
41
Platão nasceu em 427 a. C. e morreu em 347 a. C. Sua família pertencia à antiga nobreza ou aristocracia ateniense.
134
professor revela outras possibilidades de se compreender e relacionar-se com o mundo.
Na dança ocorre um processo semelhante, só que é no corpo, de uma outra forma que se
constrói essa moldura. O que é, então, compreender o mundo?
É bastante interessante como a crítica Katz, Helena, na sua tese de doutorado, chama
a atenção para a dança, como um modelo para o entendimento dos acontecimentos do
mundo:
Muitos representam a dança como a expressão de um eu interior. Outros, com ligação
com o sagrado. Dança como aquilo que dá forma ao invisível. No entanto, ela também
poderia ser tomada como um modelo para o acontecimentos do mundo. Por se
constituir como evidenciação do trânsito entre o biológico e o cultural, modeliza as
questões permanentes ao homem, da evolução à tecnologia, dos sistemas auto-
organizados à temporalidade. Afinal, exatamente porque os cérebros inovam tanto, é
que o comportamento inventa primeiro e a anatomia muda depois Onde mais senão na
dança isso se explicita no próprio modo de fazer? (1994:111)
Quando falamos sobre algo, estamos usando instrumentos. Para lidarmos com um
tipo de objeto, precisamos criar uma forma de acessá-lo. A idéia é a de que fazemos uma
operação para descrevermos o mundo. Deste modo, acionar esta mecânica, um caminho
é pela linguagem, seja esta verbal ou não verbal (corporal).
No início deste texto, sublinhava o universo da dança como um lugar de
representação de mundo. Uma definição para o que é dança, seria que esta que surge no
corpo como uma nebulosa, aos poucos vai somando significados, que de alguma
maneira, promovem novos acordos com o mundo. Dançar é ampliar as possibilidades de
entendimento de mundo. Dançar é criar outros mundos, neste mundo.
Dançar é desenhar com o próprio corpo
os extremos: limites e possibilidades de
ser.
O bom dançarino ultrapassa-os de
maneira afinadíssima para ajudar o outro,
aquele que não tem essa habilidade, um
caminho para esse alcance.
(da professora Glória42
para Helena)
42
Professora de português do terceiro ano da Escola Vera Cruz - Ensino Médio.
135
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ZUMTHOR, Paul (1993). A letra e a Voz. São Paulo: Editora Scharcz Ltda.
139
Dicionários:
AURÉLIO, Novo Dicionário da Língua Portuguesa (1986). 2a. ed. Rio de Janeiro: Editora
Nova Fronteira.
LAROUSSE, Dictionnaire de La Danse (1999). Direção de Philippe Le Moal. Canadá:
Larousse –Bordas.
MORA, José Ferrater (2001). Dicionário de filosofia. Tradução: Roberto Leal Ferreira e
João Amaral. 4a. ed. São Paulo: Martins Fontes.
140
Índice Onomástico:
A ALBANO, Ana Angélica 88.
AMORIN, Claudia 102, 111.
ARDENNE, Paul 74.
B
BAUSH, Pina 77.
BRANDÃO, Carlos 38, 39.
BROOK, Peter 33, 34, 77.
BURNIER,Luís O. 27.
C
CALVINO, Italo. 121, 126.
CHOEN, Renato 81.
D
DAMÁSIO, Antonio 20,127,128.
DELEUZE, Gilles 81.
DUPY, Jean-Pierre 36, 115.
F
FERNANDES, Ciane 77.
FREIRE, Paulo 45,46.
FUX, Maria 48.
G
GARAUDY, Roger 76.
GARDNER, Howard 17, 40, 53, 54,60.
GRAHAM, Martha 57, 75, 76, 132.
GIL, Gilberto 114.
GREINER, Christine 20, 21, 24, 30, 33, 37, 65.
H
HAWKING, Stephen 30.
HERÁCLITO de Éfeso 131.
141
HUMPHREY, Doris 75, 76.
J
JOHNSON, Mark 41, 56, 63, 64.
JUARRERO, Alicia 13, 19, 24.
K
KATZ, Helena 20, 21, 22, 33, 37, 51, 53, 60, 65, 66, 78,133.
L
LABAN, Rudolf 80.
LAKOFF, George 13, 56, 63, 64.
LOUPPE, Laurence 78, 79, 99, 130.
M
MARTINS, Cleide 38.
MATURANA, Humberto 45, 47, 124.
MENEZES, Flo 107.
MONTEIRO, Mariana 90.
MORIN, Edgar 55, 56.
N
NOVERRE, Jean Georges 90.
P
PINKER, Steven 120.
PLATÃO 132,133
PRIGOGINE, Ilya 44, 69, 116.
R
Ratey, John 28, 51, 52.
ROSH, Eleanor 18, 23, 42, 63, 64, 80,115.
S
SACKS, Oliver 108, 109.
SALLES, Cecilia A. 32, 117.
SAINT-EXUPÉRY, Antoine 113, 120.
SMITH, Linda 19,21, 40, 41.