464
Projeto UNESCO no Brasil : textos críticos Titulo Oliveira, Waldir Freitas - Autor/a; Consorte, Josildeth Gomes - Autor/a; Maio, Marcos Chor - Autor/a; Reesink, Edwin - Autor/a; Heringer, Rosana - Autor/a; Figueiredo, Angela - Autor/a; Kottak, Conrad Phillip - Autor/a; Parés, Luis Nicolau - Autor/a; Pereira, Cláudio Luiz - Compilador/a o Editor/a; Caroso, Carlos - Autor/a; Lühning, Angela - Autor/a; Yelvington, Kevin A. - Autor/a; Farias, Edson - Autor/a; Wagley Kottak, Isabel - Autor/a; Agostinho, Pedro - Autor/a; Motta, Roberto - Autor/a; Guimarães, Antonio Sérgio Alfredo - Autor/a; Sansone, Livio - Compilador/a o Editor/a; Pereira, Cláudio Luiz - Autor/a; Oliveira, Lúcia Lippi - Autor/a; Bastos, Elide Rugai - Autor/a; Barros, Luitgarde Oliveira Cavalcanti - Autor/a; Santos, Myrian S. - Autor/a; Carvalho, Maria Rosário G. de - Autor/a; Pinho, Osmundo de Araujo - Autor/a; Sansone, Livio - Autor/a; Autor(es) Salvador Lugar EDUFBA Editorial/Editor 2007 Fecha Colección Relaciones raciales; Ciencias sociales; Historia; Congresos; UNESCO; Investigación social; Brasil; Temas Libro Tipo de documento http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/Brasil/ceao-ufba/20130403104247/projeto.pdf URL Reconocimiento-No comercial-Sin obras derivadas 2.0 Genérica http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/2.0/deed.es Licencia Segui buscando en la Red de Bibliotecas Virtuales de CLACSO http://biblioteca.clacso.edu.ar Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO) Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (CLACSO) Latin American Council of Social Sciences (CLACSO) www.clacso.edu.ar

Projeto Unesco 2007

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Análise do projeto Unesco sobre raça e discriminação racial

Citation preview

  • Projeto UNESCO no Brasil : textos crticos Titulo Oliveira, Waldir Freitas - Autor/a; Consorte, Josildeth Gomes - Autor/a; Maio,Marcos Chor - Autor/a; Reesink, Edwin - Autor/a; Heringer, Rosana - Autor/a; Figueiredo, Angela - Autor/a; Kottak, Conrad Phillip - Autor/a; Pars, Luis Nicolau -Autor/a; Pereira, Cludio Luiz - Compilador/a o Editor/a; Caroso, Carlos - Autor/a; Lhning, Angela - Autor/a; Yelvington, Kevin A. - Autor/a; Farias, Edson - Autor/a; Wagley Kottak, Isabel - Autor/a; Agostinho, Pedro - Autor/a; Motta, Roberto - Autor/a; Guimares, Antonio Srgio Alfredo - Autor/a; Sansone, Livio - Compilador/a oEditor/a; Pereira, Cludio Luiz - Autor/a; Oliveira, Lcia Lippi - Autor/a; Bastos, ElideRugai - Autor/a; Barros, Luitgarde Oliveira Cavalcanti - Autor/a; Santos, Myrian S. -Autor/a; Carvalho, Maria Rosrio G. de - Autor/a; Pinho, Osmundo de Araujo -Autor/a; Sansone, Livio - Autor/a;

    Autor(es)

    Salvador LugarEDUFBA Editorial/Editor2007 Fecha

    ColeccinRelaciones raciales; Ciencias sociales; Historia; Congresos; UNESCO; Investigacinsocial; Brasil;

    Temas

    Libro Tipo de documentohttp://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/Brasil/ceao-ufba/20130403104247/projeto.pdf URLReconocimiento-No comercial-Sin obras derivadas 2.0 Genricahttp://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/2.0/deed.es

    Licencia

    Segui buscando en la Red de Bibliotecas Virtuales de CLACSOhttp://biblioteca.clacso.edu.ar

    Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO)Conselho Latino-americano de Cincias Sociais (CLACSO)

    Latin American Council of Social Sciences (CLACSO)www.clacso.edu.ar

  • ProjetoUNESCOno Brasil

    Unesco2.pmd 8/8/2008, 16:011

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

    ReitorNaomar Monteiro de Almeida Filho

    Vice-ReitorFrancisco Mesquita

    EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

    DiretoraFlvia Goullart Mota Garcia Rosa

    Este livro o resultado do Colquio InternacionalO Projeto UNESCO no Brasil 50 anos depois.

    Sua publicao tornou-se possvel graas ao apoioda CAPES DOTAO 0552:05-04 de 2005.

    Organizao:Fbrica de Idias

    Programa de Ps-Graduao em Estudos tnicos e AfricanosCentro de Estudos Afro-Orientais

    Departamento de AntropologiaProgramas de Ps-Graduao em Cincias Sociais e Histria

    Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas

    Apoio:Associao Brasileira de Antropologia / ABA

    ANPOCSUNESCO

    CAPESFundao Ford

    FAPESP

    Conselho editorialAngelo Szaniecki Perret Serpa

    Carmen Fontes TeixeiraDante Eustachio Lucchesi Ramacciotti

    Fernando da Rocha PeresMaria Vidal de Negreiros Camargo

    Srgio Coelho Borges Farias

    Conselheiros suplentesBouzid Izerrougene

    Cleise Furtado MendesJos Fernandes Silva Andrade

    Nancy Elizabeth OdonneOlival Freire JniorSlvia Lcia Ferreira

    Unesco2.pmd 8/8/2008, 16:012

  • Cludio Pereira e Livio SansoneOrganizao

    PROJETO UNESCONO BRASIL

    Textos Crticos

    EDUFBASalvador, 2007

    Unesco2.pmd 8/8/2008, 16:013

  • 2007, by AutoresDireitos para esta edio cedidos EDUFBA.

    Feito o depsito legal.

    Projeto grfico e capaAlana Gonalves de Carvalho

    Editorao eletrnicaGenilson Lima Santos

    Reviso de textoOs Autores

    Biblioteca Central Reitor Macdo Costa

    EDUFBARua Baro de Jeremoabo, s/n

    Campus de Ondina, Salvador-BA40170-115

    Tel/fax: (71) 3283-6164www.edufba.ufba.br

    [email protected]

    Projeto UNESCO no Brasil : textos crticos / Cludio Luiz Pereira e Livio Sansone, organizao. - Salvador : EDUFBA, 2007. 462 p.

    Este livro o resultado do Colquio Internacional Projeto Unesco no Brasil 50 anos depois, realizado de 12 a 14 de janeiro de 2004, em Salvador-BA. ISBN 978-85-232-0505-8

    1. Unesco - Histria - Brasil - Congressos. 2. Cincias sociais - Brasil - Congressos. 3. Relaes raciais - Brasil. 4. Pesquisa social - Brasil. I. Pereira, Cludio Luiz. II. Sansone, Livio. III. Universidade Federal da Bahia. IV. Colquio Internacional Projeto Unesco 50 anos depois (2004 : Salvador,BA).

    CDD - 060

    Unesco2.pmd 8/8/2008, 16:014

  • Sumrio

    Apresentao 7

    A questo da memria e dos Arquivos vinculados ao ProjetoUNESCOModernidade e racismo Costa Pinto e o projeto Unesco de relaes raciais 11Marcos Chor Maio

    O Projeto UNESCO na Bahia 25Antonio Srgio Alfredo Guimares

    Gilberto Freyre, Ren Ribeiro e o Projeto UNESCO 38Roberto Motta

    Uma homenagem aos artesos: Charles Wagley e Thales deAzevedoThales de Azevedo e a etnologia indgena 63

    Pedro Agostinho

    Lembrana do Meu Pai, Charles Wagley 74

    Isabel (Betty) Wagley Kottak

    Recordaes de um aprendizado antropolgico 81

    Josildeth Gomes Consorte

    Grata lembrana de Marvin Harris 94Waldir Freitas Oliveira

    Redes, figuras chaves e contextos: o Projeto Columbia e oProjeto UNESCOTenses em um Projeto Civilizador Baiano 105

    Edson Farias

    Melville J. Herskovits e a institucionalizao dos Estudos Afro-Americanos 149

    Kevin A. Yelvington

    Verger e o Projeto UNESCO 173

    Angela Lhning

    Carlo Castaldi: o reencontro de um naufragado com a Antroplogia 185Carlos Caroso

    Unesco2.pmd 8/8/2008, 16:015

  • Contrapontos ao Projeto UNESCO: Guerreiro RamosO Primeiro Congresso do Negro Brasileiro e a UNESCO 207

    Cludio Luiz Pereira

    A sociologia de Guerreiro Ramos 228Lcia Lippi Oliveira

    A questo da memria e dos Arquivos vinculados ao ProjetoUNESCOPor um Centro de Documentao dos Estudos Afro-Baiano 243

    Luis Nicolau Pars

    UNESCO/ANHEMBI: um debate sobre a situao do negro no Brasil 251

    Elide Rugai Bastos

    Intelectuais em rede construindo as cincias sociais: o arquivo Arthur Ramose o Projeto Unesco no Brasil 270

    Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros

    Entre o tronco e os atabaques 321Myrian Seplveda dos Santos

    A relevncia do Projeto UNESCO e sua atualidade: uma voltaao campoO legado baiano da Universidade Columbia 347

    Conrad Phillip Kottak

    Bahia, terra de preto doutor? Mobilidade social dos negros em Salvador 360

    Angela Figueiredo

    A Chapada Diamantina em trs registros ou trs tempos 373

    Maria Rosrio G. de Carvalho

    Modernidade e Agncia Afrodescendente: o Negro no Rio de Janeirocinqenta anos depois 393

    Osmundo de Araujo Pinho e Rosana Heringer

    Desigualdades durveis, relaes raciais e modernidades no Recncavo: ocaso de S. Francisco do Conde 407

    Livio Sansone

    Revisitando Os Sertes: breves apontamentos sobre 50 anos de histriasertaneja 436

    Edwin Reesink

    Unesco2.pmd 8/8/2008, 16:016

  • 7Apresentao

    J se passou meio sculo desde que uma famosa realizao daUNESCO em parecerias com diferentes institutos de investigaonacionais, na Bahia, no Rio de Janeiro, em So Paulo e Pernambuco revolucionou a prtica de pesquisa social, tanto quanto as representa-es cientificas sobre as relaes raciais no Brasil.

    As pesquisas de comunidade, assim como os levantamentos decunho mais quantitativo, por sua qualidade intrnseca e por sua relevn-cia social e poltica, se tornaram paradigmticas nas cincias sociais bra-sileiras e, durante alguns anos, ajudaram a colocar o Brasil no bojo dasdiscusses internacionais sobre raa e etnicidade.

    Aproveitando-se hoje, por um lado, do fato de que 50 anos pare-cem ser um perodo justo para medir mudanas, autnticas e tpicas deuma poca, nos comportamentos como aquelas que dizem respeito snoes de cor e raa e, por outro lado, sensveis a uma nova aberturaexistente neste pas no que diz respeito ao tema das relaes raciais,tornou-se oportuno organizar um Colquio Internacional para refletirsobre o impacto do Projeto UNESCO no panorama intelectual e nascincias sociais no Brasil, assim como nos estudos das relaes tnico-raciais no plano internacional.

    Tratou-se, portanto, de um evento de carter interdisciplinar, emHistria e Cincias Sociais cujos objetivos foram:

    a) reconstruir a histria do projeto UNESCO no Brasil. Particularateno foi dada aos desdobramentos deste projeto na Bahia, sua organi-zao e seu lugar institucional e poltico na academia e no Estado, bemcomo suas pesquisas de campo no interior e na cidade de Salvador;

    b) repensar o modelo de pesquisa, nesse contexto observado e como mesmo carter minucioso, atualizando sua metodologia quando ne-cessrio, a fim de avaliar como poderia ser repetida tal pesquisa, e com omesmo porte, na atualidade.

    O intuito de uma nova pesquisa, alis cuja proposta foi consolida-da no intercurso do Colquio, seria mensurar o que mudou no Brasil,especificamente no campo investigado, em termos de relaes sociais e

    Unesco2.pmd 8/8/2008, 16:017

  • 8raciais. Dentre estas mudanas observar-se-ia, assim, os efeitos da mo-dernizao, da industrializao, da democratizao e, em poca maisrecente, da exposio globalizao.

    O contexto institucional do nosso Colquio foi, ademais, fortaleci-do pelo apoio formal que o projeto tem recebido da direo da ABA e daANPOCS. Ambas associaes j patrocinaram momentos de debate emtorno das pesquisas da UNESCO, como, por exemplo, no contexto dabienal da ABANNE em So Lus (MA), no encontro do SBPC em Reci-fe (PE) e no Encontro Anual da ANPOCS em Caxambu (MG). O Col-quio de Salvador, que ocorreu entre 12 e 14 de janeiro de 2004, represen-tou um momento de reflexo mais completo e, de alguma forma, deumargem a um novo ciclo de debates. Ademais, nosso Colquio provi-denciou uma oportunidade nica de homenagear de forma criativa asfiguras emblemticas de Thales de Azevedo e Charles Wagley, mentoresna Bahia do Projeto Columbia, que guardava uma relao direta com oreferido Projeto UNESCO.

    O grande ausente em nosso Colquio foi Octvio Ianni. Convida-do de honra e entusiasta colaborador de nosso projeto, Octvio, j doen-te quando aceitou nosso convite, teve uma rpida piora e a pedidos dosmdicos ficou impossibilitado de estar presente. Veio a falecer logo de-pois do Colquio. a Octvio Ianni que os organizadores querem dedi-car este livro.

    Unesco2.pmd 8/8/2008, 16:018

  • A questo da memriae dos Arquivosvinculados ao

    Projeto UNESCO

    Unesco2.pmd 8/8/2008, 16:019

  • Unesco2.pmd 8/8/2008, 16:0110

  • 11

    Modernidade e racismoCosta Pinto e o projeto Unesco de relaes raciais

    Marcos Chor Maio*

    Em carta a Paulo Carneiro, representante brasileiro na Unesco, svsperas da 5 sesso da Conferncia Geral em Florena, ocorrida emmaio e junho de 1950, quando o Brasil foi escolhido para sediar umapesquisa sobre relaes tnico-raciais, o socilogo Luiz de Aguiar CostaPinto apresentou sua verso sobre a origem da proposta da Unesco.Antes da partida do antroplogo Arthur Ramos para Paris, quando as-sumiu o cargo de Diretor do Departamento de Cincias Sociais da orga-nizao internacional, ele se reuniu com os professores do Departamen-to de Cincias Sociais da ento Faculdade Nacional de Filosofia (FNFi,atual IFCS/UFRJ), com o objetivo de colher subsdios para a sua novafuno. Na ocasio, Costa Pinto sugeriu um grande survey no Brasil afim de estudar as tenses sociais e as mudanas de estrutura social (...) deuma sociedade patriarcal e agrcola para uma economia industrial e ur-bana. Estudado no Brasil, o problema pode servir de amostra para o quese passa em todas as reas menos desenvolvidas.1

    Costa Pinto, em chave sociolgica, apresenta sinteticamente as pre-ocupaes que vo nortear parte significativa da produo das cinciassociais brasileira dos anos 1950 e 1960. O Brasil encontra-se em transi-o e exige, mediante o estudo das relaes sociais, a produo de conhe-cimento sobre os desafios que permeiam o processo de insero do pasna modernidade. Ele concebe o pas como modelo para tornar intelig-

    Unesco2.pmd 8/8/2008, 16:0111

  • 12

    vel o capitalismo perifrico. Os temas da industrializao, do desenvol-vimento, da modernizao e suas contradies fazem parte da pauta dootimismo sociolgico do ps-guerra incorporado tambm por agnciasintergovernamentais como a Unesco.

    comumente aceito que a imagem paradisaca das interaes tni-co-raciais no Brasil foi o principal pr-requisito para transformar o pasem objeto de interesse poltico e cientfico da Unesco. No entanto, umainvestigao sobre os agentes e agncias que estiveram envolvidos noprocesso de estruturao do leque de pesquisas desenvolvido no inciodos anos 1950 revela uma complexa ao concertada que resultou noprojeto Unesco de relaes raciais (Maio, 1999).

    Na segunda metade dos anos 1940, a Unesco espelhava a perplexi-dade e a nsia de inteligibilidade por parte de intelectuais, comunida-de cientfica e dirigentes polticos dos fatores que levaram aos resulta-dos catastrficos da 2 Guerra Mundial em nome da raa. Esse quadro setornou ainda mais dramtico com a persistncia do racismo em diversaspartes do mundo, o surgimento da Guerra Fria, o processo dedescolonizao africana e asitica, e a perpetuao de grandes desigual-dades sociais em escala planetria.

    Diante desse cenrio, a UNESCO, munida da razo iluminista,procurou encontrar solues universalistas que cancelassem os efeitosperversos do racismo. O Brasil foi escolhido, em perspectiva comparadacom a negativa experincia racial norte-americana, para ser um dos p-los de investigao dos dilemas vividos pelo mundo ocidental.

    O objetivo poltico da UNESCO, procurando apresentar a sociabili-dade brasileira como modelo para o mundo, no impediu que logo noincio da montagem do projeto resultado do trabalho conjunto entrecientistas sociais nacionais e estrangeiros este viesse a cumprir, de fato, aresoluo da UNESCO de organizar no Brasil uma investigao sobrecontatos entre raas ou grupos tnicos, com o objetivo de determinar osfatores econmicos, sociais, polticos, culturais e psicolgicos favorveisou desfavorveis existncia de relaes harmoniosas entre raas e grupostnicos.2 O posterior inventrio de dados e anlises sobre o preconceito ea discriminao racial em diferentes regies, nas zonas rurais e urbanas,atrasadas e modernas revelou um cenrio multifacetado (Maio, 1997).

    Unesco2.pmd 8/8/2008, 16:0112

  • 13

    A presena de Costa Pinto tanto na gestao do projeto quanto nodesenvolvimento do ciclo de pesquisas revela os caminhos sinuosos tri-lhados pelo projeto Unesco. Participante do frum da agncia interna-cional que debateu o estatuto cientfico do conceito de raa no final dosanos 1940 e protagonista da pesquisa sobre as relaes raciais na cidadedo Rio de Janeiro, Costa Pinto exerceu papel-chave na ampliao dodesenho original da iniciativa da Unesco que se limitava, em princpio, Bahia (Mtraux, 1950).

    Este artigo tem por objetivo abordar a participao de Luiz deAguiar Costa Pinto no programa de pesquisas sobre as relaes raciais noBrasil, patrocinado pela Unesco no incio dos anos 1950. Em princpio,descrevo a trajetria de Costa Pinto at sua insero no projeto Unesco.Em seguida destaco a atuao do socilogo no processo de estruturaodo ciclo de investigaes, no qual exerceu papel decisivo na transforma-o de uma imagem tradicional do Brasil como experincia civilizacionala oferecer lies de cooperao inter-racial humanidade, em plano depesquisa para desvendar os problemas, os dilemas da transio de umasociedade perifrica modernidade. Finalmente, analiso o estudo deCosta Pinto, O Negro no Rio de Janeiro, em dois planos: 1) as relaesentre raa e classe social; 2) os vnculos entre capitalismo e racismo.

    A Trajetria de Costa Pinto

    Luiz de Aguiar Costa Pinto oriundo de famlia abastada, propriet-ria de engenhos no Recncavo baiano. Seu av foi senador da Repblica eo pai, Jos de Aguiar Costa Pinto, mdico, trabalhou com Nina Rodriguesna Faculdade de Medicina da Bahia, alcanando o cargo de diretor dainstituio, e foi professor de Arthur Ramos. Com a morte do pai, CostaPinto abandona o segundo ano do pr-mdico, antigo curso secundrio, ese prepara para entrar na Faculdade de Direito. Em 1937, o futuro socilo-go veio para o Rio de Janeiro, junto com a famlia. No antigo DistritoFederal envolveu-se no movimento estudantil e militou na JuventudeComunista. No incio de 1939 ingressa no recm-criado curso de cinciassociais da Faculdade Nacional de Filosofia (FNFi) mas, pouco tempo de-pois, preso por oito meses por suas atividades anti-estadonovistas.3

    Unesco2.pmd 8/8/2008, 16:0113

  • 14

    No incio de sua trajetria acadmica e profissional, Costa Pintoteve o apoio de dois professores do Departamento de Cincias Sociais:Arthur Ramos e Jacques Lambert. Com o primeiro, houve fortes laosprofissionais e de amizade que tiveram reflexos definitivos em sua car-reira. No plano institucional, o ento aluno da FNFi esteve envolvidona criao da Sociedade Brasileira de Antropologia e Etnologia, em 1941,idia original de Arthur Ramos, que se propunha a incentivar as ativida-des acadmicas no interior da FNFi (Azeredo, 1986)4 . No perodo daSegunda Guerra Mundial, os dois estiveram juntos na luta contra onazismo (Ramos, 1943)5 . importante lembrar que as relaes entreArthur Ramos e Costa Pinto no se limitaram ao mbito da universida-de. Em 1946, em pleno perodo de democratizao do pas, os dois pro-fessores da FNFi ministraram cursos de antropologia e sociologia naUniversidade do Povo, uma instituio educacional sob liderana deintelectuais de esquerda. (Azeredo, 1986, p. 100)

    No caso de Jacques Lambert, a ascendncia sobre Costa Pinto sedeu tanto em termos tericos quanto no plano da insero profissional.Em 1937, Lambert chegou ao Brasil, onde lecionou, por dois anos,demografia e sociologia poltica na Universidade do Rio Grande do Sul(Pereira de Queiroz, 1996, p. 230). Em 1939, fez parte da misso francesaque ajudou a criar a ento Universidade do Brasil, na qual permaneceucomo professor de sociologia at 1945.

    Durante sua permanncia no Departamento de Cincias Sociais,Jacques Lambert influenciou Costa Pinto em, pelo menos, dois traba-lhos: o primeiro, foi um estudo sobre a ascendncia do domnio familialno perodo colonial. Ao tratar de algumas experincias histricas daslutas de famlias no Nordeste brasileiro, ele inspira-se no livro deLambert, La Vengeance Prive et Les Fondements du Droit PublicInternational (Costa Pinto, 1980 [1949])

    Em 1942, ao terminar o curso, Costa Pinto foi convidado a serassistente de Jacques Lambert na cadeira de sociologia. Em outro traba-lho, fruto de cursos dados na FNFi, de perfil demogrfico, os dois soci-logos elaboraram um amplo mapeamento da composio e dos proble-mas da populao contempornea (Lambert & Costa Pinto, 1944).

    Costa Pinto publicou diversos trabalhos em Sociologia, revista

    Unesco2.pmd 8/8/2008, 16:0114

  • 15

    pertencente Escola Livre de Sociologia e Poltica (SP). Seus estudosversam sobre o ensino das cincias sociais, a profissionalizao do soci-logo, aspectos tericos e empricos da pesquisa sociolgica, e relaesraciais. Em 1946, passa a acumular o cargo de professor da FaculdadeNacional de Cincias Econmicas da Universidade do Brasil e, de 1948a 1952, desenvolveu pesquisas nas reas de demografia e sociologia dasprofisses na Diviso de Pesquisas do Instituto Mau, rgo vinculado Confederao Nacional do Comrcio.

    Ainda nos anos 1940, Costa Pinto assistiu ao curso de Donald Piersonsobre mtodos e tcnicas de pesquisa em cincias sociais ministrado noDepartamento de Administrao do Servio Pblico (DASP)6 e mante-ve correspondncia com o socilogo da Escola Livre de Sociologia e Po-ltica (Pierson, 1987, p. 61; pp. 68-69; pp. 74-75). Em 1944, por interm-dio de Arthur Ramos, Costa Pinto pleiteou, sem sucesso, junto a Piersona possibilidade de vir a realizar o curso de doutorado em sociologia naUniversidade de Chicago. (idem, 1987, p. 81)7 Em 1947, defende tese delivre-docncia sobre o ensino da sociologia na escola secundria.

    No primeiro semestre de 1950, o socilogo foi convidado a partici-par do projeto Columbia University/Estado da Bahia, iniciativa de An-sio Teixeira, ento secretrio de Educao e Sade do governo OtavioMangabeira. Este projeto tinha por objetivo apresentar subsdios denatureza sociolgica e antropolgica colhidos em alguns municpios dointerior da Bahia com o intuito de modernizar essas reas no mbito dasade, da educao e da administrao pblica. Diversos estudos decomunidade foram realizados por cientistas sociais americanos e brasi-leiros sob a coordenao do antroplogo Charles Wagley e seus alunosde doutorado em Columbia (Harry William Huntchinson, MarvinHarris, Benjamin Zimmerman), e do mdico-antroplogo Thales deAzevedo. (Wagley et al., 1950) Costa Pinto prestou assessoria ao projetono s na formulao terica do mesmo (idem, p. 8-9) como tambm nosencontros com os pesquisadores que traziam relatrios de seus respecti-vos trabalhos de campo. (Costa Pinto, 1989, p. 26-28) Cabia tambm aosocilogo elaborar um trabalho sobre a zona do Recncavo. Este estudoteria inicialmente uma abordagem histrico-social e ecolgica da rea,para em seguida se ater especialmente a estrutura social de modo a

    Unesco2.pmd 8/8/2008, 16:0115

  • 16

    mostrar as mltiplas direes que a mudana social pode tomar na zonado Recncavo. (Wagley et al., 1950, p. 20)8

    Em agosto de 1950, Costa Pinto participou do 1 Congresso doNegro Brasileiro, ocorrido no Rio de Janeiro, sob o patrocnio do TeatroExperimental do Negro. O evento reuniu antroplogos e socilogos comoRoger Bastide, Darcy Ribeiro, Charles Wagley, dison Carneiro, Guer-reiro Ramos, militantes e simpatizantes de movimentos sociais com ointuito de discutir em diversos planos as condies de vida da popula-o negra (Nascimento, 1982).

    Neste perodo, Costa Pinto vinha estabelecendo contatos com aUnesco visando a sua insero na pesquisa sobre as relaes raciais noBrasil. Em correspondncia com o etnlogo Alfred Mtraux, Chefe doSetor de Relaes Raciais do Departamento de Cincias Sociais da Unesco,sugeria a realizao no Rio de Janeiro, dentro do plano da Unesco, [d]assondagens e anlises necessrias para a pesquisa das tenses raciais emrea metropolitana do Brasil, analisando a situao racial brasileira naperspectiva de uma sociedade em franco processo de industrializao.9

    Costa Pinto no Projeto Unesco

    No final dos anos 1940, Costa Pinto foi convidado por Arthur Ra-mos para participar de um debate sobre o estatuto cientfico do conceitode raa que resultou na Primeira Declarao sobre Raa da Unesco,divulgada em maio de 1950. Este documento era um dos desdobramen-tos da agenda anti-racista definida pela agncia internacional. Os pon-tos centrais do documento eram: 1) a capacidade mental das raas sosemelhantes; 2) a miscigenao no resulta em degenerao biolgica;3) no existe qualquer possibilidade em se estabelecer uma correlaoentre determinados agrupamentos religiosos e/ou nacionais e tipologiasraciais; 4) raa menos um fato biolgico do que um mito social; 5) asindagaes sobre a pertinncia da utilizao de conceito de raa comofundamento para a anlise dos fenmenos econmicos, sociais, culturaise psicolgicos vem acompanhada por uma viso que estaria baseadanum pressuposto darwiniano de que o homem naturalmente teria umavocao para a sociabilidade e a cooperao. (Costa Pinto, 1950, p. 7-12)

    Unesco2.pmd 8/8/2008, 16:0116

  • 17

    Em sua interveno no simpsio da Unesco em dezembro de 1949,Costa Pinto afirmou que o racismo guardava intima relao com asassimetrias numa sociedade de classes e, em escala mundial, com o po-der do imperialismo (idem, p. 17). Ele sugeriu que fossem realizadaspesquisas sobre relaes tnico-raciais, de perfil interdisciplinar, reu-nindo equipes de pesquisadores de diversos pases. Na sua perspectiva,

    [s]eria fcil encontrar por exemplo, para tais investigaes, exce-lentes pontos de observao no Brasil, nos Estados Unidos, nafrica do Sul, na Unio Sovitica, na ndia, no Mxico, na Pales-tina e em diversas outras regies desse tipo que Park denominoufronteiras raciais o que nos permitiria observar, sempre emligao com as diferentes estruturas sociais, os tratamentos e asdiversas solues encontradas para os problemas das minoriasnacionais e tnicas. (Costa Pinto, 1950, p. 18)

    Ao citar o Brasil como um possvel objeto de investigao sociol-gica, Costa Pinto marcava o incio do seu envolvimento com a idia doprojeto da Unesco que viria a ser realizado no Brasil no incio dos anos1950. Para o desenvolvimento da pesquisa sobre as relaes raciais noRio de Janeiro, Costa Pinto contou com a colaborao do jornalista eetnlogo baiano dison Carneiro (1912-1972).

    O trabalho da Unesco representou um novo patamar no padro depesquisa existente poca, superando a aventura pessoal, como diriaFlorestan Fernandes (1976 [1962], p. 66). At ento, o trabalho sociol-gico era realizado com ausncia de apoio financeiro, apenas com o tem-po que dispusesse do prprio lazer e de algumas sobras do prprio sal-rio. Raramente caa do cu uma oportunidade promissora, como acon-teceu com a pesquisa entre negros e brancos, suscitada pela UNESCO(idem, p. 66). O patrocnio da agncia internacional representava prest-gio, recursos e trabalho em equipe, alm de ser um passo a frente noprocesso de institucionalizao das cincias sociais no Brasil.

    Classe e Raa em O Negro no Rio de Janeiro

    Na primeira parte do livro O Negro no Rio de Janeiro, Costa Pintoapresenta um conjunto de crticas as pesquisas etnogrficas da fase afro-

    Unesco2.pmd 8/8/2008, 16:0117

  • 18

    brasileira (final do sculo XIX at os anos 1940). Ele se contrape aosestudos antropolgicos e histricos, que, a seu ver, estariam sintonizadoscom o passado, com o atraso das relaes sociais no pas. Ora interessadospelas investigaes acerca dos constructos raciais, destacando as caracte-rsticas intrnsecas s raas (fsicas e psquicas), os traos culturais e reli-giosas de origem africana, os processos de aculturao, ora buscando osfundamentos histrico-sociais que dariam substncia a uma enganosacrena de uma identidade nacional positiva, como seria o caso da ideolo-gia da democracia racial, os estudos histrico-antropolgicos espelhariama realidade de uma sociedade tradicional. Nesse sentido, s uma leiturasociolgica elucidaria os desafios ditados pelo cenrio advindo com odesenvolvimento capitalista e as novas relaes das classes sociais deri-vadas da passagem da condio de escravo de proletrio e da condiode proletrio de negro de classe mdia [...]. (Costa Pinto, 1953, p. 91)

    Costa Pinto critica tambm a tradio de estudos da Escola Soci-olgica de Chicago, que concebe as diferenas raciais como um proces-so em si mesmo ou a partir dos efeitos da dinmica das interaesintertnicas, lembrando o ciclo de relaes raciais (competio, con-flito, acomodao e assimilao) formulado por Robert Park (1950, pp.149-151), sem levar em considerao a estrutura das relaes sociais10, oude forma mais ampla, as especificidades do desenvolvimento capitalistano Brasil. (Costa Pinto, 1953, p. 32-33)

    Em seu estudo sobre as relaes raciais no Rio de Janeiro, o autorprocurou compreender as condies estruturais que, no bojo de umasociedade em mudana, geram, mantm e esto agravando os fatores detenso racial [...] (Costa Pinto, 1952, p. 86). Partindo da crtica ao visculturalista, Costa Pinto vislumbrou a oportunidade de investigar os as-pectos peculiares de um pas subdesenvolvido, na medida em que o co-nhecimento de uma realidade sob impacto recente do processo de urba-nizao e industrializao poderia oferecer alternativas aos padres vigen-tes nos pases capitalistas desenvolvidos (EUA, Frana, Inglaterra). Empleno contexto dos primrdios da Guerra-Fria e do avano do socialismono apenas na Europa como na sia, o socilogo acreditava que o Orientesuscitaria solues histricas mais atraentes face aos problemas experi-mentados pela sociedade brasileira (Costa Pinto, 1953, p. 21).

    Unesco2.pmd 8/8/2008, 16:0118

  • 19

    Na segunda parte do livro, ele centra sua anlise no quadro racialdo Rio de Janeiro mediante o estudo da demografia, da estratificaosocial, da ecologia e da situao cultural. Costa Pinto mostra as profun-das disparidades sociais entre brancos e negros. Em seguida, se atm aosesteretipos em relao ao negro com base na escala de distncia socialde Emory Bogardus, na qual evidencia forte preconceito em relao aoscasamentos inter-raciais, colocando mais uma vez em questo a ideolo-gia da democracia racial. Finalmente dedica-se ao estudo dos movi-mentos sociais negros.

    Para os objetivos deste artigo, vou me fixar nas interfaces entreestrutura social, preconceito racial e movimentos sociais de corte racial.Costa Pinto considera que as mudanas sociais ocorridas a partir do finaldo sculo XIX com o fim da escravido, a fundao da Repblica e avigncia das instituies liberais acrescida do desenvolvimento da in-dustrializao e da urbanizao levaram proletarizao de amplas par-celas de negros e pardos. Da condio de escravo de proletrio, eis ocaminho trilhado pela populao de cor na ex-capital do pas ao longode setenta anos de mobilidade social. (idem, p. 99)

    Foram essas transformaes que suscitaram a maior visibilidade dopreconceito racial. No quadro da sociedade tradicional, agrria, que teriaprevalecido at os anos 1930, o preconceito racial era difuso medidaque as posies sociais de brancos e negros na estrutura scio-econmicaeram to solidamente desiguais, que tornava dispensvel a utilizao demecanismos discriminatrios. (idem, pp. 183-184)

    Entretanto, com o avano do processo de desenvolvimento capita-lista, que gera situaes de competio e de mobilidade social, assiste-seao surgimento de atitudes reativas, com base no preconceito racial, porparte dos setores sociais dominantes, ameaados de perderem suas posi-es sociais. Desse modo, a fonte explicativa para as prticasdiscriminatrias contra negros e pardos, segundo Costa Pinto, no selocaliza no passado escravocrata, e sim, no presente, podendo assim so-frer injunes diversas de natureza econmica e social que acabem porcriar circunstncias agravantes em termos raciais (idem, p. 184). O peso dopassado escravocrata tem significado restrito na argumentao de CostaPinto a respeito das tenses raciais no Brasil moderno. Lembrando

    Unesco2.pmd 8/8/2008, 16:0119

  • 20

    Dumont (1997[1977]:303-316), no momento que a percepo hierr-quica do mundo cede lugar ao iderio igualitrio que o racismo emerge.

    Para ilustrar o seu argumento, o socilogo vai apresentar na ltimaparte de sua obra a anlise do associativismo negro. Costa Pinto classifi-ca as associaes em dois nveis: as tradicionais, voltadas s atividadesrecreativas, culturais, religiosas, apresentando a contribuio do africa-no esttica, msica, coreografia, mstica, em suma, cultura de folkbrasileira. (idem, p. 257, nfases do autor) e as de novo tipo, maisidentificadas com a histria viva e contempornea das aspiraes, daslutas, dos problemas, do sentir, do pensar e do agir de brasileiros, social,cultural e nacionalmente brasileiros, etnicamente negros. (idem, pp. 257-258, nfases do autor) nesse ltimo perfil de organizao social que oautor concentrar seus esforos de pesquisa e reflexo.

    Com a expanso do capitalismo ocorre uma diferenciao internaentre os negros com o surgimento de uma pequena parcela de classemdia, particularmente de intelectuais, formando uma elite negra(idem, p. 259). O socilogo concebe que a nova forma de ascenso dosnegros j no mais individual e nem tem interesse em branquear-se,como acontecia na sociedade tradicional, ditada pelo paternalismo, es-pecialmente no sculo XIX. Agora estaramos diante de novas elitesque buscam afirmar sua negritude (idem, pp. 269-70). Essa elite viveria odrama da ascenso e das barreiras advindas dos esteretipos. Tal situaofomentaria a criao de movimentos sociais de corte racial. Para darmaior substncia s suas reflexes, Costa Pinto detm-se especialmentena anlise do Teatro Experimental do Negro (TEN).

    Modernidade e racismo: a atualidade do ciclo depesquisas da Unesco

    Desde o final dos anos 1970, o projeto Unesco recebeu uma srie decrticas. Florestan Fernandes foi o principal alvo. Uma das interpelaesao socilogo paulista deve-se a sua interpretao do preconceito racialcomo um resqucio da herana escravocrata e, como tal, tendente a desa-parecer com o surgimento de uma sociedade capitalista, democrtica,aberta e competitiva. Carlos Hasenbalg (1979) se contraps a Florestan

    Unesco2.pmd 8/8/2008, 16:0120

  • 21

    Fernandes afirmando que preconceito e discriminao sofreram altera-es aps a abolio da escravido assumindo novas funes e significa-dos no contexto da estrutura social capitalista. Ao mesmo tempo, elepondera que manifestaes racistas do grupo racial dominante no sosobrevivncias do passado mas esto relacionadas com benefcios sim-blicos adquiridos pelos brancos no processo de competio edesqualificao dos negros. Assim, Hasenbalg sustenta que no h umalgica inerente ao desenvolvimento capitalista que gera uma incompa-tibilidade entre racismo e industrializao.

    Contudo, se Hasenbalg escolhesse Costa Pinto como interlocutorno plano do debate sobre as relaes entre modernidade e racismo, algu-mas afinidades emergiriam.11 Costa Pinto sugere que com o processo demudana social que gera situaes de competio e de mobilidade soci-al, assiste-se ao surgimento de atitudes reativas, com base no preconcei-to racial, por parte dos setores sociais dominantes, ameaados de perdersuas posies sociais. Indo alm, considera que a modernizao, noobstante suscitar limitadas possibilidades de ascenso social, contribuiupara o estabelecimento de distines internas entre os negros com aemergncia de uma classe mdia, que assume uma identidade racialcomo forma de organizao social e poltica de enfrentamento do racis-mo. Enfim, para Costa Pinto modernidade pode suscitar racializao eno o seu cancelamento.

    As reflexes de Costa Pinto sobre as relaes entre capitalismo eracismo ou acerca das interfaces entre mobilidade social e racializaorevelam a importncia de se revisitar o ciclo de pesquisas patrocinadopela Unesco. A sociologia das relaes raciais produzida h mais de 50anos ainda se constitui numa rica fonte de dilogo e de crtica em facedos dilemas que presenciamos neste incio de milnio em que questestnico-raciais vm adquirindo extrema relevncia para a interpretaodas desigualdades sociais em escala mundial.

    Notas

    * Pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.1 Carta de Costa Pinto a Paulo Carneiro, 31/5/1950, Fundo Famlia Carneiro,DAD/COC/Fiocruz.

    Unesco2.pmd 8/8/2008, 16:0121

  • 22

    2 The Programme Of UNESCO Proposed By The Executive Board. Part II - DraftResolutions For 1951. Paris, 1950, p. 40. UNESCO Archives.3 Sobre a biografia de Costa Pinto, ver: (Maio, 1997; 1998).4 Costa Pinto ministrou duas palestras patrocinadas pela SBAE: a primeira, em1944, sobre a obra de Robert Park, uma homenagem ao socilogo norte-americanoque havia recm-falecido. (Costa Pinto, 1944) A segunda palestra, intituladaSociologia e Mudana Social (Costa Pinto, 1947), versava sobre a sociologia doconhecimento.5 Em 1943, Costa Pinto fez parte da comisso que elaborou a segunda edio dolivro Quinta Coluna e Integralismo, editado pela Unio Nacional dos Estudantes.Trata-se de uma publicao de denncia das atividades integralistas no Brasil.6 Pelas informaes colhidas em Azeredo (1986, pp. 153-154) e Pierson (1987, p.61) o curso do DASP, do qual participou tambm o socilogo Guerreiro Ramos,provavelmente foi dado em 1942.7 Embora fosse aceito pela universidade e tivesse conseguido licena para seausentar do Brasil, o governo norte-americano negou o visto de entrada no pas,pois Costa Pinto tinha sido vinculado ao ento Partido Comunista do Brasil(PCB) e preso por atividades polticas. Depoimento de Luiz de Aguiar CostaPinto prestado ao autor (27/7/1995).8 Costa Pinto tinha uma viso extremamente crtica dos estudos de comunidade.Seu trabalho Recncavo: Laboratrio de Uma Experincia Humana (Costa Pinto,1997[1958]), alm de ser o resultado de seu compromisso com o projeto ColumbiaUniversity/Estado da Bahia, tambm uma resposta aos estudos de comunidadedesenvolvidos pela equipe de Charles Wagley.9 Carta de Luiz de Aguiar Costa Pinto a Alfred Mtraux, 31/7/1950, p. 1. Statementon race. REG file 323.12 A 102. Part I (caixa 146), Arquivos da Unesco.10 Nesse caso Costa Pinto lembra a mesma linha de reflexo crtica de Myrdal(1944) a respeito da Escola Sociolgica de Chicago.11 Hasenbalg (1999) tem um artigo sobre o estudo de Costa Pinto mas no consideraque sua perspectiva se aproxima da do socilogo baiano no que tange ao tema dasrelaes entre modernidade e racismo que ora apresentado neste artigo.

    Bibliografia

    AZEREDO, Paulo Roberto. (1986), Antroplogos e Pioneiros: A Histria da SociedadeBrasileira de Antropologia e Etnologia. So Paulo, FFLCH/USP.

    COSTA PINTO, Luiz de Aguiar. (1944), A Contribuio de Park SociologiaModerna, in Jornal do Commercio, ano 118, Tomo XXVIII, n 25, 29/10/1944.

    __________. (1947), Sociologia e Mudana Social. Sociologia, Vol.9, n 4, pp.287-331.

    __________. (1980[1949]), Lutas de Famlias no Brasil. So Paulo, CompanhiaEditora Nacional.

    Unesco2.pmd 8/8/2008, 16:0122

  • 23

    COSTA PINTO, Luiz de Aguiar. (1950), Sobre as Relaes de Raas. Sociologia,vol. 12, n1, pp. 3-21.

    __________. (1952), Introduo ao Estudo do Negro no Rio de Janeiro (NotaPrvia). Cultura, vol. III, n 5, pp. 85-102.

    __________. (1953), O Negro no Rio de Janeiro: Relaes de Raas numa sociedadeem mudana. So Paulo, Companhia Editora Nacional.

    __________. (1997 [1958]), Recncavo. Laboratrio de uma experincia humana. 2a

    edio.Salvador, Editora Costa Pinto.

    __________. (1989), Depoimento a Lucia Lippi Oliveira, Maria Stella Amorim eAlzira Alves Abreu, mimeo.

    __________. (1995), Depoimento a Marcos Chor Maio, mimeo.

    DUMONT, Louis. 1997[1977]. Homo Hierarchicus. So Paulo, EDUSP.

    FERNANDES, Florestan. (1976 [1962]), A Sociologia como Afirmao, in ASociologia numa Era de Revoluo Social. Rio de Janeiro, Zahar Editores.

    HASENBALG, Carlos. (1979), Discriminao e Desigualdades Raciais no Brasil.Rio de Janeiro, Edies Graal.

    __________. (1999) O Negro no Rio de Janeiro: revisitando o projeto Unesco, inCarlos Hsenbalg, Nelson do Valle Silva e Mrcia Lima (orgs.) Cor e EstratificaoSocial. Rio de Janeiro, Contra Capa Livraria.

    LAMBERT, Jacques et COSTA PINTO. (1944), Problmes DmographiquesContemporains. I, Les Faits. Les Publications Savantes de L Ecole Libre desHautes tudes au Brsil. Atlntica Editora. Rio de Janeiro.

    MAIO, Marcos Chor. (1997), A Histria do Projeto UNESCO: Estudos Raciais eCincias Sociais no Brasil. Rio de Janeiro, Tese de Doutoramento em Cincia Poltica,Instituto Universitrio de Pesquisas do Rio de Janeiro.

    __________. (1998[1953]), Costa Pinto e a crtica ao negro como espetculo(apresentao), in Luiz de Aguiar Costa Pinto, O negro no Rio de Janeiro: relaesde raas numa sociedade em mudana. 2 ed., Rio de Janeiro, Editora da UFRJ, p.17-50.

    __________. (1999). O Projeto Unesco e a agenda das cincias sociais no Brasildos anos 40 e 50, Revista Brasileira de Cincias Sociais, vol. 14, n 41, p. 141-158.

    MTRAUX, Alfred. (1950), UNESCO and the racial problem. InternationalSocial Science Bulletin, vol. II, n 3, pp. 384-390.

    MYRDAL, Gunnar. (1944), An American Dilemma. New York, Harper & Brother.

    NASCIMENTO, Abdias. (1982[1968]), in O Negro Revoltado. Rio de Janeiro,Editora Nova Fronteira, 2 edio.

    PIERSON, Donald. (1987), Algumas atividades em prol da Antropologia e outrascincias sociais, in M. Corra (org.), Histria da Antropologia no Brasil. So Paulo,Editora da Unicamp/Vrtice.

    PARK, Robert E.. (1950), Our Racial Frontier On The Pacific, in Race andCulture. New York, The Free Press.

    Unesco2.pmd 8/8/2008, 16:0123

  • 24

    PEREIRA DE QUEIROZ, Maria Isaura. (1996), O Brasil dos Cientistas Sociaisno Brasileiros, in A. I. Hamburguer et alii. (orgs.), A Cincia nas Relaes Brasil-Frana (1850-1950). So Paulo, Edusp/Fapesp.

    RAMOS, Arthur. (1943), Guerra e Relaes de Raa. Rio de Janeiro, DepartamentoEditorial da Unio Nacional dos Estudantes.

    WAGLEY, Charles; AZEVEDO, Thales & COSTA PINTO, Luiz de Aguiar.(1950), Uma Pesquisa Sobre a Vida Social no Estado da Bahia. Salvador, Publicaesdo Museu do Estado.

    Unesco2.pmd 8/8/2008, 16:0124

  • 25

    O Projeto UNESCO na Bahia

    Antonio Srgio Alfredo Guimares*

    A srie de estudos sobre relaes raciais que a Unesco patrocinouno Brasil entre 1950 e 1953 foi decisiva para que jovens cientistas sociaisbrasileiros e estrangeiros refletissem de modo articulado e comparativosobre a integrao e a mobilidade social dos negros na sociedade nacio-nal brasileira. Nomes que despontavam no Brasil tais como FlorestanFernandes, Thales de Azevedo, L. A. Costa Pinto, Oracy Nogueira, RenRibeiro ou jovens estudantes norte-americanos tais como MarvinHarris (1952), Hutchinson (1952) e Ben Zimermann (1952 , com acooperao de mestres j estabelecidos tais como Roger Bastide e CharlesWagley e o acompanhamento vigilante de outros tais como GilbertoFreyre e Donald Pierson , produzissem o mais importante acervo dedados e anlises sociolgicas sobre o negro brasileiro. O projeto UNESCO,como sabemos, no se deveu inteiramente iniciativa da UNESCO,nem mesmo ao seu exclusivo financiamento. Tanto a Revista Anhembi,em So Paulo, quanto, na Bahia, o Programa de Pesquisas SociaisEstado da Bahia Columbia University foram igualmente responsveispelo financiamento e, na verdade, j haviam dado incio aos estudosantes que a UNESCO decidisse realiz-los. Do mesmo modo, ainda quesem se responsabilizar pelo financiamento, o Teatro Experimental do Ne-gro e o I Congresso Nacional do Negro, atravs de seus principais intelec-tuais como Guerreiro Ramos, Abdias do Nascimento e Edison Carnei-ro influenciaram, ainda que indiretamente, seja o desenho do projeto,

    Unesco2.pmd 8/8/2008, 16:0125

  • 26

    seja a sua realizao no Rio de Janeiro, seja, principalmente, o modocomo tais estudos foram recebidos e divulgados no Brasil.

    Tal ciclo de estudos no apenas projetou internacionalmente jo-vens pesquisadores (que em sua maioria no tinham antes estudadorelaes raciais), como procedeu tambm a dois outros importantes fei-tos: primeiro, ampliou o foco espacial dos estudos de relaes raciais,incluindo o mundo rural brasileiro do norte e nordeste, e transforman-do o sudeste e o sul em reas privilegiadas desses estudos; segundo,contraps s autoridades monopolsticas de Gilberto Freyre e ArthurRamos e, secundariamente, de Donald Pierson, novas autoridades con-correntes, como Bastide, Florestan, Thales, Oracy e Ren Ribeiro. Amelhor sntese desse projeto est em dizer, como o fez o prprio Thalesde Azevedo, dezoito anos depois, que a constatao da existncia dopreconceito racial no Brasil fora uma das suas mais importantes desco-bertas. Vale a pena citar o trecho integral:

    A [na sua monografia Elites de cor] se verifica que, na maismestiada populao urbana do pas, apesar de um ideal fusionistae integracionista, o oposto moral do racismo, atua um preconcei-to tnico cautelosamente disfarado pela ideologia da no-discri-minao; outra verificao a da mobilidade individual a despei-to da cor (Azevedo 1969: 16)

    De fato, lendo os trabalhos realizados na Bahia, especialmente ode Thales, que melhor se pode apreciar a tenso gerada pelos desloca-mentos regionais e interpretativos ensejados pelo chamado projetoUNESCO. Sem terem dado uma resposta unvoca e peremptoriamentepositiva pergunta: existe preconceito racial no Brasil?, quepolemizasse com a literatura sociolgica j produzida por Pierson (1971)ou Frazier (1942), e sem rever a histria social j estabelecida por Freyre(1933, 1936), como procuraram fazer os estudos UNESCO em So Pau-lo; na Bahia, os estudos dirigidos por Wagley (1952) e Azevedo (1953),exploraram e aprofundaram pistas levantadas por Freyre, Ramos (1971),Frazier (1942), Herskovits (1942), Pierson (1971), Park (1971), e outrospioneiros, para avanar na compreenso do que era cor e o que poderiaser entendido como preconceito de cor.

    Unesco2.pmd 8/8/2008, 16:0126

  • 27

    Nessa comunicao procurarei estabelecer os seguintes pontos:primeiro, que os estudos UNESCO no podem ser vistos como os pri-meiros estudos de relaes raciais brasileiros, pioneirismo metodolgicoe terico que cabe ao estudo de Donald Pierson, orientado por RobertPark, havia uma dcada; segundo, que antes se tratava de seguir pistas everificar hipteses levantadas pelas geraes anteriores. Ademais, partode um pressuposto que era totalmente transparente na Bahia ouPernambuco daquela poca: no haveria tempo hbil ou expertise dis-ponvel para proceder reviso da histria social dessa regio, estabelecidapor Freyre havia duas dcadas.

    Donald Pierson, o pioneiro

    Pretos e Brancos na Bahia, publicado em portugus em 1945, foi defato o raio-em-cu-azul que veio alterar os hbitos metodolgicos e te-ricos da nascente antropologia cultural brasileira. Arthur Ramos, queescreve a introduo edio brasileira, nota com preciso:

    verdade que, desta vez, o plano de trabalho de Pierson era intei-ramente novo entre ns. Embora muita coisa estivesse escrita so-bre relaes de raa, o assunto foi mais estudado no plano dahistria social do que no da pesquisa regional, num dado tipo desociedade e na poca atual. De outro lado, o ponto de vista agoraabordado era inteiramente diverso dos objetivos propriamenteantropolgicos dessa j hoje extensa fileira de nomes, que vmdesde Nina Rodrigues. (Pierson 1971:68)

    Essa mudana fora gestada nos Estados Unidos desde os anos 1910,quando os primeiros cientistas sociais negros americanos, seguindo FranzBoas, desfizeram-se da armadilha da definio biolgica de raa, queexplicava a condio social dos negros a partir da hiptese de sua inferi-oridade inata, para realarem, analisarem e discutirem a heterogeneidadesocial, poltica e cultural do meio negro, concentrando-se na hiptesede que a discriminao racial era o principal obstculo paro o progressosocial, poltico e cultural dos negros naquele pas (Williams Jr. 1996). Aoutra vertente boasiana, aquela desenvolvida por Herskovits em seus

    Unesco2.pmd 8/8/2008, 16:0127

  • 28

    estudos de aculturao, fora paulatinamente sendo marginalizada pelasociologia que faziam os intelectuais negros, mais interessados em real-ar as oportunidades e as condies de vida como determinantes dasituao social e das atitudes pessoais e coletivas, em detrimento de fe-nmenos culturais.

    De fato, para esses intelectuais, entre os quais podemos citar DuBois, Monroe Work, Brooker Washington, Alain Locke, entre outros, otranspasse do paradigma de raa em Boas significava afirmar que as dife-renas raciais (biolgicas), ainda que no inteiramente negadas, no po-deriam ser responsabilizadas (a) pela falta de integrao do negro nassociedades americanas; (b) pelo seu desempenho inferior em relao aobranco. Os fatores explicativos mais importantes para ambos os fen-menos seriam, ao contrrio: o preconceito, a discriminao e a segrega-o raciais. A explicao pela cultura, que segundo Herskovits poderiaser um fator condicionante das dificuldades da integrao, adquirira,nos anos 1940, um carter conservador que s foi ultrapassado depoisdos 1960, quando a poltica de identidade passou a ser o principal focodo ativismo negro.

    A agenda de pesquisa que Pierson trouxe para a Bahia em 1935,como aluno de doutorado em Chicago, sob a orientao de Robert Park,incorporava j a preocupao principal com a integrao e a mobilidadesocial dos negros, a hiptese de que o preconceito racial seria o principalobstculo a essa integrao, em detrimento dos aspectos de aculturao,conforme os ensinamentos de Park, que teorizou o ciclo da assimilaosocial, e a teorizao peculiar de Herbert Blumer sobre o preconceitoracial.

    Quando Park introduz o livro de Pierson ao pblico americano muito claro em apontar o significado do Brasil como laboratrio derelaes raciais:

    Fato que torna interessante a situao racial brasileira, que ten-do uma populao de cr proporcionalmente maior que a dos Esta-dos Unidos, o Brasil no tem problema racial. Pelo menos o quese pode inferir das informaes casuais e aparentemente desinteres-sadas de visitantes desse pas que indagaram sobre o assunto [refe-rindo-se a James Byrce e Theodore Roosevelt]. (Park 1971: 82)

    Unesco2.pmd 8/8/2008, 16:0128

  • 29

    Esta tendncia [do Brasil absorver a gente de cor], entretanto,no simplesmente fato histrico e biolgico; antes manifesta-o de uma ideologia (policy) nacional, na medida em que se podedizer que o Brasil tem uma ideologia relativa a gente de cor. (Park1971: 82-3)

    Todos sabem, entretanto, que Pierson j encontrou aqui, entre osacadmicos brasileiros, uma histria social do negro, desenvolvida porGilberto Freyre, que fizera da miscigenao e da ascenso social dosmulatos as pedras fundamentais de sua compreenso da sociedade bra-sileira. Ou seja, para ser mais claro, eram fatos estabelecidos, j nos 1935,pelo menos entre os intelectuais modernistas e regionalistas, que (a) oBrasil nunca conhecera o dio entre raas, ou seja o preconceito racial;(b) as linhas de classe no eram rigidamente definidas a partir da cor; (c)os mestios se incorporavam lenta mais progressivamente sociedade e cultura nacionais; (d) os negros e os africanismos tendiam paulatina-mente a desaparecer, dando lugar a um tipo fsico e a uma cultura pro-priamente brasileiros.

    O quanto essas crenas proviam mais de desejos que de realidades,refletindo mais ideais do que prticas, notou-o tambm Park, na mesmaintroduo, denotando sem dvida a influncia que Radcliffe-Brown jexercia em Chicago (Stocking 1986):

    Na realidade, a atitude do povo brasileiro em relao ao problemaracial, no que diz respeito ao negro, parece ser, no seu todo, maisacadmica que pragmtica e real. H certo interesse etnolgicopelas sobrevivncias dos cultos afro-brasileiros, os chamados can-dombls, que parecem existir em nmero extraordinrio especial-mente nas cidades do Salvador e Recife e suas vizinhanas. [...]Uma vez que a maior parte destes candombls representam formasem pleno funcionamento de prticas religiosas africanas (emboraevidentemente em processo de assimilao ao ritual e mitologiado catolicismo local), talvez no devam ser classificados comosobrevivncias. (Park 1971: 84)

    As palavras de Park sero desdobradas, um pouco mais tarde,por um outro ex-aluno seu, Franklin Frazier, e daro origem polmicacom Herskovits em torno do carter da famlia negra na Bahia. O fato

    Unesco2.pmd 8/8/2008, 16:0129

  • 30

    que Arthur Ramos tinha razo: as idias de Chicago chegaram Bahiadepois das de Evanston e, se Herskovits pode ser incorporado facilmente tradio inaugurada por Nina Rodrigues, Pierson, no que pese ter sidoantecedido pela histria social de Freyre, iniciava uma nova sociologiaque apenas em 1950 seria retomada por Thales de Azevedo.

    Seria, todavia, enganoso se eu no apontasse o quanto da antigaproblemtica permanecia no novo mtodo e nas novas teorias de Pierson,presentes principalmente na idia de raa (que permitia que os mestiosfossem s vezes subrepticiamente tratados como negros) e na manuten-o de explicaes genticas. Ora, o mtodo gentico de explicao, quese confunde com o de estabelecimento de verdades fundacionais, temem Pierson trs fundamentos: (1) a existncia de raas diferentes; (2) amistura racial, ou miscigenao; (3) a mobilidade social de mestios.Pierson atribui esta ltima inexistncia do preconceito de raa, que ex-plicaria tambm, tanto a miscigenao, quanto a correspondente ascen-so social dos mestios. Restava, portanto, para entender os preconcei-tos de fato existentes, aquilo que ele chamou preconceito de classe. Nemmesmo a rgida estrutura de desigualdades na distribuio de riquezasentre brancos e negros pode contrariar o mtodo gentico, que v asdiferenas como resultado de pontos de partida diferentes e trata osmestios socialmente embranquecidos como negros que ascenderamsocialmente.

    A esse respeito, h que se fazer justia a Arthur Ramos, quando,introduzindo o livro de Pierson ao pblico brasileiro, em 1945, avana ahiptese de trabalho de que Thales se valer anos depois:

    Estas concluses podem ser comparadas com as do professor negroFrazier, [...] que tambm nos visitou recentemente, e que verificou aexistncia de um preconceito de cor que deveria ser distinto dopreconceito de raa. um assunto aberto discusso se estepreconceito ligado cor negra mais carregada coincide ou nocom o status social e econmico mais baixo, o que as pesquisas dePierson nos levam a admitir. (Ramos 1971:96)

    Em outras palavras: se no existia preconceito racial entre ns (talcomo Blumer (1939) o definia), existiria preconceito de cor (tal como de-

    Unesco2.pmd 8/8/2008, 16:0130

  • 31

    finido por Frazier (1942))? Ou teramos apenas preconceito de classe, comoqueria Pierson?

    Quanto a Park, escrevendo em 1942, em plena guerra, ele j anteci-pa a agenda que Arthur Ramos retomar em 1949, ao assumir o Depar-tamento de Cincias Sociais da UNESCO. Na Introduo j citada, Parkpensa na nova ordem mundial que surgiria depois da guerra e v ascincias sociais como responsveis por prover a base emprica, cientficae racional, sobre a qual se deveria edificar uma nova moral de convivn-cia entre povos, raas e culturas diferentes; reconhecendo no Brasil umcaso muito interessante a ser estudado pois aqui no existiria um pro-blema racial propriamente dito, apesar da grande presena de descen-dentes de africanos:

    Ao sugerir a possibilidade de estudos futuros em seguida a este,estou levando em conta o seguinte: 1) que o Brasil um dos maisimportantes melting-pots de raas e culturas em todo o mundo,onde a miscigenao e aculturao esto se processando; 2) que oestudo comparativo dos problemas de raa e cultura provavelmenteassumir uma importncia especial nesta poca, em que a estrutu-ra da ordem mundial parece estar se desintegrando devido dis-soluo das distncias fsicas e sociais, sobre as quais esta ordemparece repousar. Num mundo que est atualmente em guerra,porm buscando tenazmente a paz, tornou-se evidente apenas serpossvel erigir-se uma ordem poltica estvel sobre uma ordemmoral que no se confine s fronteiras dos estados nacionais. (Park1971: 82)

    Charles Wagley e o Projeto da UNESCO

    A monografia escrita por Thales para o projeto UNESCO teve,porm, um outro predecessor alm de Brancos e Pretos na Bahia. Trata-se da coletnea de ensaios, resultantes de pesquisas de campo etnogrficas,realizadas por Marvin Harris, W.H. Hutchinson e Ben Zimermann, naChapada Diamantina, no Recncavo e no serto da Bahia, orientadas epublicadas sob a organizao de Charles Wagley em Race et classe dans leBrsil rural (Paris, UNESCO, 1952), estudos que, realizados sob o guar-da-chuva do Convnio Estado da Bahia Universidade de Columbia,

    Unesco2.pmd 8/8/2008, 16:0131

  • 32

    foram eles tambm encomendados pela UNESCO, segundo nos ensinaMaria Brando (1996: 16).

    A qualidade dessas monografias e a agudeza da observaoetnogrfica de seus autores documentam as tenses raciais e a sutilezados mecanismos discriminatrios em jogo nessas comunidades, apesarde que, no plano da teoria e da poltica social, as concluses de CharlesWagley no se afastem em muito das de Donald Pierson. Diz ele:

    Concluindo, convm sublinhar que nosso estudo das relaes en-tre grupos raciais e entre classes sociais nas regies rurais doBrasil setentrional confirma as teorias de Donald Pierson a res-peito das relaes raciais em Salvador. (Wagley 1952: 162)

    Assim, as concluses de Pierson, concernentes essencialmente cidade de Salvador, no estado da Bahia, se aplicam de uma maneirageral ao conjunto da regio rural da regio norte do Brasil (Wagley1952: 163)

    Tais concluses, no entanto, no conseguem esconder o granderefinamento conceitual que comea a ser elaborado pela antropologiasocial feita no Brasil para compreender exatamente o significado da no-o nativa de cor, superando, seja a viso dicotmica de Frazier (cor versusraa), seja a dicotomia de Pierson (raa versus classe). Tanto assim queWagley j comea a teorizar sobre o que so as classes sociais, enquantocategoria nativa:

    Qualquer um que exerce uma profisso no-manual, que fez osestudos secundrios, que descende de uma famlia honrada e co-nhecida e que branco poder, por exemplo, ser colocado na classesuperior local, mesmo se pobre. Um negro dever preenchertodas as outras condies requeridas para ser admitido nesta clas-se a despeito de seu tipo fsico. (Wagley 1952:159)

    Do mesmo modo, o preconceito racial comea a ser percebido porbaixo da densa camada de etiquetas sociais:

    Todavia, existe uma marcada preferncia por certos tipos raciais,acompanhada s vezes por uma atitude de desprezo em relao aoutros tipos, o que denota a existncia de um preconceito racial em

    Unesco2.pmd 8/8/2008, 16:0132

  • 33

    todos os nveis da sociedade rural brasileira. A pouca importncia quese d a raa na classe inferior indica contudo que este preconceito, por assim dizer, latente e no se manifesta seno em caso decompetio pelo acesso a um escalo superior da hierarquia sociallocal. (Wagley 1952: 159)

    Para Wagley, o Brasil se moveria, no futuro, entre dois cenriospossveis:

    1. O desenvolvimento econmico do Brasil dever permitiruma elevao generalizada do nvel de vida de amplos setores dapopulao beneficiados pelo acesso instruo. Deste modo, asclasses inferiores da sociedade, compostas em sua maioria por pes-soas de cor, tendero cada vez mais a se confundir com a classemdia. A raa no constituindo um obstculo intransponvel aoprogresso e cada qual se beneficiando da melhoria de oportunida-des para ascender na hierarquia social, o contraste que existe doponto de vista social e econmico entre as classes inferiores, ondepredominam as pessoas de cor, e a classe superior, essencialmentecomposta de brancos, dever acabar por desaparecer.(Wagley 1952:164-5)2. Pde-se observar que, medida que mais negros e mestiosmelhoram sua condio econmica e adquirem instruo, a posi-o da classe superior branca se acha mais diretamente ameaada.Por reao, o critrio racial tende a ganhar importncia no planosocial; ao mesmo tempo, os preconceitos, as tenses entre gruposraciais e as medidas discriminatrias podem se agravar. Enfim, medida que os laos industriais e comerciais entre o Brasil e o Oci-dente se estreitam e que o pas melhora sua infra-estrutura, as ide-ologias das naes mais avanadas do ponto de vista cientfico etcnico ganham terreno aqui. Emprestando a outras culturas osinstrumentos, as tcnicas e as teorias teis, o Brasil se arrisca a to-mar emprestado tambm as atitudes, as idias e as invenes ad-ventcias. Os observadores, tanto brasileiros quanto estrangeiros,tm a impresso de que ao mesmo tempo que introduz seus pro-cessos industriais e tcnicos o Ocidente introduz no Brasil suasatitudes e suas teorias racistas. (Wagley 1952: 165)

    Unesco2.pmd 8/8/2008, 16:0133

  • 34

    Sente-se nitidamente nas palavras de Wagley alguns compromis-sos acadmicos incontornveis ou influncias duradouras, como a que seexprime na postura freyriana, que ele faz sua, de localizar na antiga cul-tura colonial luso-brasileira, particularmente viva na zona aucareira doNordeste, os valores positivos de nossa civilizao e representar a mo-dernizao como um risco constante de dissoluo, alquebramento econtaminao (Needell 1995).

    Thales de Azevedo e o Projeto UNESCO

    Pode-se imaginar agora, claramente, o grande desafio de Thales aoproduzir uma monografia original que dialogava com a histria socialde Gilberto Freyre, a sociologia de Donald Pierson e a antropologiasocial de Charles Wagley, seu parceiro no Convnio Bahia-Columbia.

    A influncia de Freyre j se manifestara no Povoamento da Cidadedo Salvador, de 1949, atravs da importncia explicativa de que ele dota-ra a miscigenao e a ascenso social dos mestios enquanto gnese dademocracia racial brasileira. Caberia agora prestar contas da herana dePierson.

    Mas o maior desafio de Thales, como o dos demais participantes doprojeto UNESCO, era posicionar-se enquanto homem de cincia, demodo crtico, diante da ideologia brasileira de relaes raciais, comobem definira Robert Park. Tal ideologia ganhara, no ps-guerra, o con-senso domstico de intelectuais e ativistas anti-racistas e j adquirira,naqueles anos de 1950, atravs do ativismo internacional de figuras comoGilberto Freyre e Arthur Ramos, projeo e reconhecimento mundiais,sob o nome de democracia racial, como alternativa de poltica de comba-te ao racismo. Como salientou Marcos Maio (1997) era alis esta a prin-cipal motivao do Projeto UNESCO.

    Talvez o melhor ndice do dilema em que Thales se viu envolvidoseja justamente a grande evoluo do seu pensamento entre a publica-o da verso francesa de 1953, pela UNESCO, e o seu texto terico maiscompleto sobre as relaes raciais na Bahia Classes sociais e grupos deprestgio que, segundo nos confidencia Maria Brando (1996: 17), fora

    Unesco2.pmd 8/8/2008, 16:0134

  • 35

    esboado, juntamente com dois textos de carter histrico, no mesmoano de As Elites de Cor, e excludo da edio final por receio de ser infielao esprito da demanda de Mtraux. J falei sobre isso h alguns anosatrs e no vou me repetir (Guimares 1999: 127-148) . Direi apenas quefoi em Classes sociais e grupos de prestgio que Thales refletiu teoricamen-te sobre os seus achados de campo de 1952, superando o esquemapiersoniano. Prefiro, para encerrar, apontar uma qualidade exemplar deAs Elites: o seu carter rigidamente etnogrfico e descritivo.

    Contou Thales a Mariza Correia, em depoimento ao projeto His-tria da Antropologia no Brasil (1930-1960), na UNICAMP, em 1984,gravado em vdeo, que Alfred Mtraux, retornado Bahia um ano de-pois de lhe ter encomendado a monografia, e examinando o seu esque-ma de redao e as primeiras 40 pginas escritas, lhe perguntara a ttulode comentrio; mas ser que brasileiro s sabe escrever histria?. Estaorientao de Mtraux certamente ter afastado Thales do mtodo ge-ntico, forando-o a manter-se no terreno da etnografia, mas no o obri-gava ou desobrigava a arriscar explicaes tericas, que teriam forosa-mente de ser muito refinadas e trabalhosas se ele quisesse se opor a Freyreou a Pierson.

    Na verdade, a etnografia de Thales, em minha opinio, tem comoobjetivo principal averiguar a hiptese j esboada por Arthur Ramos, apartir das leituras de Pierson, Park e Frazier: no sendo racial, no senti-do que lhe emprestava Blumer, seria o preconceito encontrado na Bahiaem relao aos pretos e mulatos um preconceito de cor, ou seria mesmo,como teorizara Pierson um preconceito de classe? Para responder a estapergunta, numa sociedade abertamente excludente e estratificada porclasses e grupos de prestgio, e sem ter a iluso piersoniana de que ossocialmente brancos eram negros bem sucedidos, Thales decide-se porum estudo da ascenso social de homens de cor na Bahia dos anos 1950.S um estudo deste tipo lhe permitiria observar, a um s tempo, aseventuais barreiras para a ascenso social dos pretos e mulatos, ou seja asua trajetria familiar ou pessoal, os seus instrumentos, mecanismos einstituies de mobilidade vertical, assim como o padro das relaessociais entre brancos e negros e as suas atitudes, uma vez inseridos nasclasses altas.

    Unesco2.pmd 8/8/2008, 16:0135

  • 36

    Evitando, na maior parte das vezes, tirar concluses que seu mate-rial emprico no lhe permitiria sustentar, Thales esmera-se na arte derelativizar as opinies de seus informantes, seja a partir de suas prpriasobservaes, seja a partir das opinies contrrias de outros informantes.Sua concluso sobre a existncia do preconceito de cor na Bahia exem-plar a esse respeito:

    A posio dos que negam inteiramente o preconceito a de quemformula um padro ideal de relaes, inspirado no desejo queno houvesse (o problema), ou no vo intento de contribuir paraque a sociedade o esquea [Rmulo Almeida]. Os que exageram aspropores da questo poderiam ser personalidades inadaptadas,o que no ocorre sempre; essa exagerao um poderoso meiopara chamar ateno para um problema que se supe inexistenteou sem importncia e funciona tambm como uma forma de agres-so contra o grupo discriminante. (Azevedo 1996: 154-5)

    Para que concluso mais atual, nos dias que correm, quando discu-timos a adoo de cotas para negros em universidades pblicas?

    Notas

    * Departamento de Sociologia USP.

    Referncias bibliogrficas

    AZEVEDO, Thales de. 1996. As Elites de Cor numa Cidade Brasileira. Um estudode ascenso social & Classes Sociais e Grupos de Prestgio, Salvador, EDUFBA.

    BLUMER, Herbert. 1939. The nature of racial prejudice, Social Process inHawaii, v, 11-20.

    BRANDO, Maria. 1996. Thales de Azevedo e o Ciclo de Estudos da Unescosobre Relaes Raciais no Brasil, in Thales de Azevedo, As Elites de Cor numaCidade Brasileira. Um estudo de ascenso social & Classes Sociais e Grupos de Prestgio,Salvador, EDUFBA, 1996, pp. 11-22.

    FRAZIER, Franklin. 1942. Some Aspects for Race Relations in Brazil, Phylon-Review of Race and Culture, III, 3.

    FREYRE, Gilberto. 1933. Casa Grande e Senzala, Rio, Schmidt Editor.

    FREYRE, Gilberto. 1936. Sobrados e Mucambos, Rio, Editora Nacional.

    Unesco2.pmd 8/8/2008, 16:0136

  • 37

    GUIMARES, Antonio Srgio A. 1999. Racismo e Anti-Racismo no Brasil, SoPaulo, Editora 34.

    HARRIS, Marvin. Les Relations Raciales Minas Velha Communaut Ruralede la Rgion Montagneuse du Brsil Central in C. Wagley, Races et Classes dansle Brsil Rural, Paris, UNESCO, 1952.

    HERSKOVITS, M.J. Pesquisas Etnolgicas na Bahia, Salvador, Museu do Estadoda Bahia, 1942.

    HUTCHINSON, H.W. Les Relations Raciales dans une Communaut Rurale duReconcavo (tat de Bahia) in C. Wagley, Races et Classes dans le Brsil Rurale, 1952.

    MAIO, Marcos Chor. 1997. A Histria do Projeto Unesco. Estudos Raciais e CinciasSociais no Brasil, Rio de Janeiro, IUPERJ, tese doutorado.

    NEEDELL, Jefrey D. 1995. Identity, Race. Gender, and Modernity in the Originsof Gilberto Freyres Ouevre, American Historical Review, volume 100, no. 1,February 1995., pp. 51-77.

    PARK, Robert. 1971 . Introduo 1. Edio americana, Donald Pierson,Brancos e Pretos na Bahia, So Paulo, Cia. Editora Nacional, 1971, pp. 79-86.

    PIERSON, Donald. 1971. Brancos e Pretos na Bahia, So Paulo, Cia. EditoraNacional.

    RAMOS, Arthur. 1971. Introduo 1. Edio brasileira, Donald Pierson,Brancos e Pretos na Bahia, So Paulo, Cia. Editora Nacional, 1971, pp. 67-70

    STOCKING, George W. (Editor). 1986. Malinowski, Rivers, Benedict, and others:essays on culture and personality. Jr. Madison, Wis. : University of Wisconsin Press

    WAGLEY, Charles. 1952. Race et classe dans le Brsil rural, Paris, UNESCO.

    WILLIAMS JR., Vernon J. 1996. Rethinking Race. Franz Boas and HisContemporaries, Lexington, The University Press of Kentucky.

    ZIMERMANN, B. Les Relations Raciales dans la Rgion Aride du Serto, inWagley, Races et Classes dans le Brsil Rural, Paris, UNESCO, 1952.

    Unesco2.pmd 8/8/2008, 16:0137

  • 38

    Gilberto Freyre, Ren Ribeiro e oProjeto UNESCO

    Roberto Motta*

    Introduo

    A realizao do projeto UNESCO sobre relaes raciais no Brasil,nos primeiros anos da dcada dos 50 do sculo XX, veio, como se sabe, arepresentar uma revoluo nos estudos sobre o tema. O paradigma dademocracia racial, associado a Gilberto Freyre, por algum tempo valo-rizado inclusive por causa de sua oposio acintosa s teses do nacional-socialismo, contestado nas bases epistemolgicas, na filosofia da hist-ria e no programa social e poltico nele implcitos. Entretanto, aindanum momento de transio, Gilberto Freyre convidado a participardo projeto em Pernambuco, delegando sua realizao ao antroplogorecifense Ren Ribeiro. Essa participao resulta no livro Religio e Re-laes Raciais.1 Ligado a Gilberto por laos de carter pessoal einstitucional, Ren, apesar do uso ocasional de uma metodologiaindutivista, que no combina com o estilo do mestre, retoma suas tesesfundamentais, associadas ao carter nacional portugus e ao Catolicis-mo colonial, aplicando-as ao Nordeste de meados do sculo XX sob aforma do conceito de etiqueta racial.2 Como cientista social, no sentidomais estrito e mais positivista da expresso, Ren Ribeiro denota tam-bm afinidade, na nfase, por exemplo, atribuda aos conceitos de ajus-tamento e alternativas culturais3, com Donald Pierson, do qual, como

    Unesco2.pmd 8/8/2008, 16:0138

  • 39

    diz em seu discurso autobiogrfico, travou conhecimento na dcada de40.4 Mas Ren tambm ligado a Melville Herskovits, de quem foi alu-no nos Estados Unidos, utilizando, em Religio e Relaes Raciais, anoo de foco cultural, atravs da qual reinterpreta o papel atribudo religio. Ren sofre ainda a influncia de Roger Bastide, do qual adota ateoria da romanizao do Catolicismo brasileiro. Embora, em certostrechos, prximo de Florestan Fernandes, salientando a ligao entre osistema de classes sociais e seu reflexo nas relaes raciais, Ren no adere revoluo paradigmtica que se configura na maior parte dos ensaiosresultantes do Projeto UNESCO.

    Observe-se que a este comentador interessa esssencialmente o re-passe das teses e observaes de Gilberto Freyre sobre nossa histriasocial (nas palavras j citadas de Ren) e no tratar dos resultados doteste de Bogardus, utilizado pelo nosso autor para medio da distnciasocial. Na verdade, Gilberto Freyre que objeto principal desta comu-nicao, passando e ultrapassando o uso que dele faz Ren Ribeiro.5

    Ren, Gilberto, Herskovits

    Ren Ribeiro fazia parte dos primeiros intelectuais que se articula-ram no Instituto Joaquim Nabuco, em torno de Gilberto Freyre. A essegrupo que, dentro da poltica de Pernambuco, tinha perfil nitida-mente udenista, oposto a Agamenon Magalhes e seus herdeirospessedistas imediatos6 tambm pertenciam Jos Antnio Gonsalvesde Mello Neto7 , Paulo Maciel, Antnio Carolino Gonalves e talvezoutros8 . Ren comea sua carreira como mdico (desde 1934 doutorem medicina, como dizia em seu currculo, pela Faculdade que depoisviria a fazer parte da Universidade Federal de Pernambuco). Completasua converso pesquisa metodicamente cientfica sob a influncia, emprimeiro lugar, de Ulysses Pernambucano,9 ele tambm mdico-psi-quiatra atento aos condicionamentos sociais das doenas mentais, quefaz de Ren, desde 1936, seu assistente no Servio de Higiene Mentalda Assistncia a Psicopatas, de que diretor. Nosso autor registra que

    Na biblioteca central dessa instituio, ento das mais completas,sobre psicopatologia, psicologia geral e experimental, servio so-

    Unesco2.pmd 8/8/2008, 16:0139

  • 40

    cial, sociologia, antropologia e mtodo de pesquisa (cientfica esocial), [... tinha ...] disposio o Tratado de Psicologia de GeorgesDumas [...] a coleo em traduo espanhola, das obras de HavelockEllis [...] e Regras e Conselhos para a Investigao Cientfica, porRamn y Cajal, o livro normativo, por excelncia, para todosquantos quisessem a essa poca se dedicar investigao cientficasria10.

    Ren tambm atribua ao Congresso Afro-Brasileiro, realizadono Recife em 1934, por iniciativa de Gilberto, estmulo adicional paraque se dedicasse aos estudos afro-brasileiros.11 E, em mais de uma oca-sio, recordou que seu interesse pela antropologia havia sido aguadopela convivncia com Gilberto Freyre, que chegou a emprestar-lheThe Mind of Primitive Man, de Franz Boas, mas tomando cuidado deacrescentar que no acompanhvamos os intelectuais e escritores queconstituam seu crculo ntimo de amigos.12

    Embora convivessem bem13 , no se pode dizer que Ren Ribeirotivesse sido discpulo de Gilberto Freyre, no sentido estritamente aca-dmico da expresso.14 Mesmo no que se refere pesquisa da UNESCO,no sempre o pensamento de Gilberto que se exprime nas pginas deRen. Na maior parte de seus trabalhos, Ren volta-se sobretudo paraproblemas concretos de aculturao e ajustamento social, nas fronteirasda Psiquiatria, da Psicologia e da Antropologia. Gilberto orienta-se parao delineamento de grandes snteses scio-histricas. Porm Religio eRelaes Raciais constitui exceo a essa regra, pois a o objetivo de Ren a interpretao de nosso sistema de relaes raciais luz de uma teoriageral da formao do Brasil, largamente baseada nos ensaios de Gilberto.

    Raas e Religies

    Vou o mais possvel deixar que Ren se exprima com suas palavras.A seguinte citao indica a influncia das idias, tpicas de Gilberto,sobre o Catolicismo festivo, pago, a seu modo tolerante e informal,matizadas pelos conceitos mais herskovitsianos de reinterpretao e fococultural:15

    O catolicismo que havia de vingar entre ns perderia muito da sua

    Unesco2.pmd 8/8/2008, 16:0140

  • 41

    rigidez, permitindo a incorporao de elementos das crenas dosndios e negros na sua reinterpretao em termos da religio dogrupo dominante. Com muita perspiccia, j assinalou GilbertoFreyre que a religio foi o ponto de encontro entre a cultura negrae a branca no Brasil. [...] A religio, segundo toda a evidncia, erao elemento capital, dominando e subordinando todos os aspectosda cultura. Em torno da religio giravam as preocupaes de tododia de seus membros; a ela deviam estar relacionados os atos prin-cipais da vida dos indivduos; em suas sanes se apoiavam ossistemas polticos e sociais e mantinha ela a unidade interna des-sas culturas. Era conseqentemente a religio o seu foco cultural.16

    Vamos agora atingir um conceito central da filosofia da histria deFreyre e de Ribeiro. Tolerncia, miscigenao, contacto e confraternizaono resultam de uma atitude progressista, tal como esse termo se entendeno pensamento ocidental, de um modo ou de outro influenciada pela Ilus-trao, nem possuem afinidades com a igualdade abstrata ou com aracionalidade, tal como as entendem as interpretaes marxista e weberianada modernidade, mas antes representam atitudes essencialmente arcaicas,dependentes de uma espcie de pensamento mgico:

    Em Portugal [...] a ignorncia do povo sobre a ortodoxia catlica[...] e a tolerncia dos procos para com muitas retenes de cren-as pags, supersties e abuses em que prdigo o catolicismo[...] os contactos e [...] a aculturao dos portugueses, desde osprimeiros tempos histricos, com os vrios povos que invadirama pennsula e entraram em sua formao social [resultaram n]umareligio mestiada, como igualmente mestio resultou o portugu-s do descobrimento. [...] Era [...] uma religio de tolerncia, [...]eivada de prticas pouco ortodoxas e at pags que facilitariam17

    [...] a incorporao de negros fetichistas e ndios pagos e ocontacto e confraternizao do portugus do descobrimento comas duas raas que lhe iriam ficar sujeitas no Novo Mundo.18

    O conceito de tolerncia tem de ser cautelosamente interpretado,no tendo, neste contexto, praticamente nada a ver com a tolernciaenquanto programa do pensamento progressista, qual a Igreja Catlicamanifestou forte oposio, ao menos no plano terico, at bem entradoo sculo XX. A tolerncia com relao a retenes de crenas pags,

    Unesco2.pmd 8/8/2008, 16:0141

  • 42

    supersties e abuses perfeitamente compatvel com a forte intole-rncia da Igreja com relao dissidncia, ao Judasmo, ao Isl e Refor-ma, que se configura inclusive no estabelecimento da Inquisio e dosestatutos de limpeza do sangue. A tolerncia de que falam Gilberto eRen ocorre no nvel dos ritos ou cultos populares, na medida em quetais ritos ou cultos, reconhecendo, ao menos de modo implcito, a pri-mazia da instituio eclesistica com sua hierarquia, no pretendam darorigem a igrejas ou religies alternativas19. Mesmo nesse nvel, tal tole-rncia, no perodo colonial, esteve longe de ser absoluta20.

    O trecho seguinte de Casa-Grande & Senzala exprime a quintes-sncia da concepo freyreana, retomada por Ren:

    A festa de So Gonalo do Amarante a que La Barbinais assistiu naBahia no sculo XVIII surge-nos das pginas do viajante francscom todos os traos dos antigos festivais pagos. Festivais no s deamor, mas de fecundidade. Danas desenfreadas em redor da ima-gem do santo. Danas em que o viajante viu tomar parte o prpriovice-rei, homem j de idade, cercado de frades, fidalgos, negros. Ede todas as marafonas da Bahia. Uma promiscuidade at hoje carac-terstica das nossas festas de igreja. Violas tocando. Gente cantando.Barracas. Muita comida. Exaltao sexual. Todo esse desadoro por trs dias no meio da mata. De vez em quando, hinos sacros. Umaimagem do santo tirada do altar andou de mo em mo, jogada comouma peteca de um lado para outro. Exatamente notou La Barbinais o que outrora faziam os pagos num sacrifcio especial anual-mente oferecido a Hrcules, cerimnia na qual fustigavam e cobri-am de injria a imagem do semideus. Festa evidentemente j influ-enciada, essa de So Gonalo, na Bahia, por elementos orgisticosafricanos que teria absorvido no Brasil. Mas o resduo pago carac-terstico, trouxera-o de Portugal o colonizador branco.21

    A esta citao de Gilberto parece deliberadamente ecoar o trechoem que Ren se refere a esse catolicismo [que] compreendia procissescomo aquela descrita pelo autor annimo das Revolues do Brasil[...] dos meninos penitentes, organizada pelos mulatos de Olinda, em1806, para edificar e mover compuno o povo do Recife, e turbainglesa, j ali estabelecida [...] assim descrita:22

    Unesco2.pmd 8/8/2008, 16:0142

  • 43

    Quase duzentos rapazes de nove a dezesseis anos com cabea e psdescalos, mas vestidos de saco ou cassa branca, desfilavam emduas compassadas alas. Em distncias medidas iam no centro vin-te ou trinta figuras alegricas, ou homens vestidos com os smbo-los de todas as virtudes crists. Toda esta encamisada [sic] eraprecedida de uma devota cruz, adiante da qual marchava um me-donho espectro, figurando a morte, com arqueada e longa fouce namo esquerda e feroz matraca na direita. sobressaia a toda estapenitente chusma um duendo [sic], sob a forma do Demnio, ouum diabo em carne, o qual, danando continuamente odesonestssimo lundum, com todas as mudanas da mais lbricatorpeza, acometia a todos indistintamente. Ora as graves e figura-das virtudes, ora os indivduos penitentes; ora a plebe espectado-ra, ora as mulheres e inocentes donzelas nas rtulas de suas casastrreas, tudo sem exceo era acometido pelo tal diabo. Por fim nasruas mais solenes e diante das galerias mais povoadas de senhoras,aqui se desafiava com o espectro da morte e danavam competn-cia do qual mais torpe, mais lbrico, mais desonesto se ostentarianos seus detestveis e ignominiosos movimentos23

    J possvel esboar a seguinte concluso, que se mostrar funda-mental para a comparao entre o paradigma adotado de religio e rela-es raciais, adotado por Ren Ribeiro na seqncia de Gilberto Freyre,e aquele que, com modulaes prprias a cada autor, prevalece nos de-mais participantes do projeto UNESCO. Do mesmo modo que tole-rncia, miscigenao, contacto e confraternizao, no contexto dosdois autores recifenses, muito pouco tm a ver com o ideal de igualdadee democracia da modernidade, a chamada democracia racial, tal comopor eles entendida (quer utilizem o termo democracia ou outro equi-valente), no resulta da adeso ao projeto igualitrio do pensamentoprogressista. E aqui se situa uma dificuldade fundamental para a inter-pretao e aceitao de Gilberto Freyre pelos que, de uma maneira ou deoutra, aderem a esse iderio. A igualdade racial, que, como a igualdadeem geral, deveria resultar do progressismo ideolgico e poltico, apre-senta-se, de modo inaceitvel para a epistemologia ou filosofia da hist-ria progressista, como resultante de uma cultura arcaica ou mesmo rea-cionria: a cultura luso-catlica.

    Unesco2.pmd 8/8/2008, 16:0143

  • 44

    Como exemplos imediatos dessa recusa, sirvam, em primeiro lugarCarl Degler, que, se, em termos estritos, no representa o pensamentosocial brasileiro, pelo menos o tangencia, ao afirmar que

    como em Portugal, a me-ptria, faltava ao Brasil a concepo dovalor moral do trabalho que vem sob o rtulo de tica protestan-te [...]. As diferenas no relacionamento racial do Brasil e dosEstados Unidos surgiram das muitas diferenas entre uma socie-dade dinmica, competitiva, protestante e socialmente mvel euma que era estvel, tradicional, hierrquica e catlica24.

    O segundo exemplo mais brasileiro e ainda mais ilustre. Trata-sede Antnio Cndido, comentando Srgio Buarque de Holanda:

    Num tempo ainda banhado de indisfarvel saudosismopatriarcalista, [S.B.H.] sugeria que [...] sendo o nosso passado umobstculo, a liquidao das razes era um imperativo do desenvol-vimento histrico. Mais ainda: em plena voga das componenteslusas avaliadas sentimentalmente, percebeu o sentido moderno daevoluo brasileira, mostrando que ela se processaria conforme umaperda crescente das caractersticas ibricas, em benefcio dos rumosabertos pela civilizao urbana e cosmopolita25.

    Estamos aqui diante de uma questo fundamental do pensamentosocial brasileiro ou brasilianista. Voltaremos a ela mais adiante.

    Ambivalncia da Modernizao

    Seguindo o ponto de vista de Gilberto Freyre, Ren conclui que

    miscigenao [...] e encontro de culturas foram os elementos capi-tais para a formao aqui de uma sociedade hbrida e ao mesmotempo tolerante dos contatos de raa que completavam e integra-vam os contatos de cultura26 ento havidos e ainda hoje em francoprocesso de fuso e integrao.27

    E arremata:

    do mesmo autor [G. F.] o conceito de que as diferenas relativass relaes raciais nas duas Amricas derivaram das atitudes dos

    Unesco2.pmd 8/8/2008, 16:0144

  • 45

    colonos em relao miscigenao e do tipo do cristianismo nelasintroduzido. Adotando os reformados, segundo ele, um cristia-nismo mais rgido e puritano [...] contrastando com o cristianis-mo luso, tolerante e submetido a influncias aculturativas anteri-ores sua transplantao para o Novo Mundo, haveriam de mos-trar-se aqueles menos tolerantes para com o contacto de raas eculturas, tolerncia que iria caracterizar a situao no Nordeste doBrasil durante o perodo de nossa formao social.28

    A tal tipo de catolicismo Ren ope duas outras formas de religio.Primeiro (como acabamos de ver), o puritanismo protestante norte-americano, o qual se opunha miscigenao, que representava infra-o das mais escandalosas ao cdigo de moral puritano29 [...] e par-ticipao no corpo da Igreja no s do fiel relapso, como do negroincompletamente assimilado ao cristianismo30.

    A outra forma de religio que se ope ao catolicismo tradicional ocatolicismo romanizado, representado por sacerdotes e bispos edu-cados na Europa,31 como Dom Vital, bispo de Olinda e protagonista,no incio dos anos setenta do sculo XIX, da chamada Questo Religi-osa. Ren tambm se refere a que, em contraste com as orientaes evalores da cultura luso-brasileira [...] as expresses de intolerncia re-ligiosa limitam-se a esferas mais influenciadas pela ortodoxia romanae vm-se desvanecendo ante a influncia do liberalismo e da tolern-cia democrtica32 das crenas.33

    Noutro trecho, assinala as restries relativamente ao ingresso depessoas de cor [...] por ordens religiosas compostas na sua maioria porfreiras estrangeiras.34 De modo muito explcito, Ren destaca que

    Modificadas as condies vigentes no perodo colonial, [...] emnosso meio manifestaram-se tendncias a uma menor tolernciaracial, no que no h negar a influncia da romanizao da igrejacatlica e das atitudes dos padres estrangeiros e brasileiros maisexpostos influncia da Europa moderna, como das novas condi-es que caracterizaram o nosso sculo XIX e princpios do sculoXX35.

    As consideraes de Ren sobre as transformaes do Catolicismobrasileiro esto fortemente influenciadas pelo artigo de Roger Bastide,

    Unesco2.pmd 8/8/2008, 16:0145

  • 46

    Religion and the Church in Brazil, que de onde provm o conceitode romanizao. A afinidade entre os dois autores, evidencia-se no se-guinte trecho de Bastide:

    Fazendo-se mais romana, no ser que a Igreja deixou de ser naci-onal? [...] O clero catlico passou a destacar-se por seu Catolicismoortodoxo, sua elevada moralidade; mas o que ganhou a, ele per-deu noutros aspectos. Tornou-se um corpo estranho no seio deuma populao saudosamente voltada para um Catolicismo maislusitano e mais festivo. Nas reas rurais esse clero entrou em lutacontra o folclore catlico, a unio do profano e do sagrado, asdanas dos negros nas portas das igrejas, congadas e maracatus. Etransformou as velhas procisses, que tinham sido ritos de comu-nho social, em puras demonstraes de f. proporo em que seromanizou, a Igreja se desnacionalizou.36

    Mas, no obstante as modificaes no Catolicismo, as influnciasantigas continuam a prevalecer. Comparando o Brasil, ou, ao menos, oNordeste do Brasil, aos Estados Unidos, Ren observa, que, enquantonos Estados Unidos,

    alargada a fronteira e estabelecida a competio econmica [...] adistncia entre negros e brancos tornou-se maior, como maiores asrazes de privilgio e ressentimento que passaram a entreter osesteretipos referentes ao negro, o preconceito e a segregao raci-al. Entre ns a industrializao tardia, a persistncia de formaspatriarcais de relaes interpessoais, a miscigenao, a mobilida-de moderada e a ascenso gradual e de pequenos nmeros de par-dos, o familismo na Igreja, as prprias caractersticas do Catolicis-mo colonial e o grau de aculturao de africanos, amerndios eportugueses, deram em resultado um tipo diferente de inter-rela-o entre negros, brancos e mestios [...] no Nordeste do Brasil [...]parece ter-se obtido um grau maior de integrao do homem decor e de harmonia nos contactos inter-raciais.37

    Mais adiante, colocando-se noutro esprito de interpretao hist-rica, acrescenta que

    [os] efeitos do primitivo sistema econmico como o paternalismonas relaes sociais, ainda hoje se refletem na cultura e nas condi-es de vida urbana do Recife, onde uma incipiente industrializa-

    Unesco2.pmd 8/8/2008, 16:0146

  • 47

    o no contrabalanou o estancamento das duas categorias deindivduos senhores de usinas ou de fbricas e proletrios urba-nos recrutados dentre o proletariado rural evadido do interior. Acirculao social das pessoas de cor, se bem que permitida pelaausncia de barreiras rgidas entre os vrios grupos tnicos, se fazem escala limitada pela estase desses grupos nas classes em que secontinham durante a vigncia do patriarcalismo escravocrata elatifundirio.38

    J no se trata da integrao do homem de cor e de harmonia noscontactos inter-raciais, porm nosso autor, num audacioso exercciode ginstica intelectual39, passa a falar do estancamento das duas cate-gorias de indivduos... E, parecendo agora situar-se a muitas lguas dedistncia do pressuposto freyreano da democracia racial, afirma que:

    a persistncia da escravido por longo tempo e sua abolio hmenos de um sculo; a extrema estratificao social resultante dosistema econmico e a conseqente reduo da mobilidade socialverificada ainda hoje; o pattern de dominncia masculina em nos-sa cultura e a importncia social da famlia resultaram em relativaimobilidade dos diversos grupos tnicos em determinadas cate-gorias scio-econmicas, da decorrendo sua hierarquizao se-gundo a cor e a posio social40.

    E esse quadro social, diz ainda nosso autor, junto

    tendncia dos mestios e dos negros em limpar a raa casandocom mulheres de nvel inferior ao seu, porm de tez mais clara, possvel que esteja resultando no em branqueamento de nossapopulao, mas em estabilizao de um tipo de mestio de cormais escura nas classes pobres e de cor mais clara nas classesprivilegiadas41.

    Desta ltima seco avulta a ambivalncia de Ren com relao modernidade e ao progresssimo. Buscando ser fiel aos princpios luso-tropicais de Gilberto Freyre, destaca, em primeiro lugar, a interpenetraodas culturas e das raas na sociedade brasileira. Mas cede, em seguida, aosprincpios de um iderio progressista que, representado o Zeitgeist quecircunda o seu trabalho de pesquisador, pode provir de vrias fontes, in-clusive dos estudos formais de Antropologia que realizou sob a direo de

    Unesco2.pmd 8/8/2008, 16:0147

  • 48

    Melville Herskovits. Observa-se tambm, em certas passagens do textode Ren, uma afinidade latente com o ponto de vista de FlorestanFernandes,42 segundo o qual o sistema de relaes raciais fundamental-mente reflete (ainda que com algum atraso), a base scio-econmica.

    Sob a influncia de Freyre e de Bastide, Ren sustenta que a mo-dernizao, atuando atravs de formas de religio a seu modo racionali-zadas, isto , o catolicismo romanizado e o cdigo de moral purita-no, constitui um poderoso fator de distanciamento racial. Muitos tre-chos de Ren e, bem entendido, de Gilberto43, contm crticas mais doque implcitas aos efeitos da modernizao no terreno das relaes raci-ais. E por a parece passar essa contradio fundamental do pensamentosocial brasileiro, a que tambm j aludimos. Como entender que ainterpenetrao de raas e culturas, supostamente existente no Brasil,possa derivar de pressupostos sociais e ideolgicos to acintosamentecontrrios modernidade liberal e igualitria?

    Etiqueta Racial

    Coexistem, no livro de Ren Ribeiro, um tratado de Filosofia daHistria (que o que essenci