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LIBERDADE E PROPRIEDADE A INERENTE E VERDADEIRA RELAÇÃO ENTRE DIREITO DE PROPRIEDADE E LIBERDADE
WAGNER LENHARDT BACHAREL EM DIREITO
MEMBRO DO INSTITUTO DE ESTUDOS EMPRESARIAIS DO RIO GRANDE DO SUL
GANHADOR, EM 2006, DO IV CONCURSO “DONALD STEWART JR”, PROMOVIDO PELO INSTITUTO LIBERAL DO RIO DE JANEIRO.
Duas palavras, dois conceitos. O entendimento humano apresenta como
ferramenta de interpretação e compreensão o que podemos chamar de capacidade de
relacionar. Ao aprendermos o significado de uma nova palavra, utilizamos
invariavelmente esse recurso para melhor compreender e memorizar a novidade. Nessa
linha, estabelecemos relações de similaridade, de antagonismo, de complementação e as
registramos em nossos arquivos mentais. Tais relações são frutos de nosso nível de
conhecimento e dos valores que acalentamos. Exemplo que muito bem pode ilustrar esta
assertiva é o caso de Shilock. Para alguns, o personagem da famosa obra de
Shakespeare, O Mercador de Veneza, está relacionado a uma reprovável conduta de
credor intransigente, a uma rotulação pejorativa da comunidade judaica. Para outros,
Shilock está relacionado com a figura de um pai magoado, de um homem que exige seu
direito e o respeito ao contrato assinado.1
1 SHAKESPEARE, William. O Mercador de Veneza. São Paulo: Abril Cultural, 1981.
Logo, as relações conceituais são construções pessoais, desenvolvidas por cada
indivíduo. Entretanto, a razão, a ciência e a experiência histórica são capazes de
fornecer subsídios que sustentam a correção de algumas relações, enquanto a ignorância
fornece o vazio intelectual que justifica as relações superficiais ou falaciosas. As
palavras propriedade (e quando falamos em propriedade nos referimos, como sugere
Hayek, a propriedade individual privada) e liberdade possuem indubitavelmente uma
estreita relação, ao ponto de não ser possível a existência plena de uma sem o respeito
da outra. Eis que o direito de propriedade é o guardião de todos os outros direitos e a
sua ausência ou desrespeito inviabiliza o gozo da liberdade.
A inseparável relação entre liberdade e propriedade
Nesse instante, vale ressaltar o que estamos querendo dizer quando falamos em
propriedade. Para tanto, utilizamos as palavras de Richard Pipes:
“Propriedade refere-se ao direito do proprietário ou proprietários, formalmente
reconhecidos por autoridade pública, tanto para explorar bens excluindo quaisquer
outras pessoas como para dispor dos mesmos para venda e demais fins comerciais. ‘O
que distingue propriedade de mera posse transitória é que a propriedade é uma
reivindicação que deverá ser reforçada pela sociedade, pelo Estado, pelos costumes,
pelas convenções e pela lei... A propriedade pode ser de dois tipos: produtiva, que pode
criar mais propriedade (ex.: terras, capital), e pessoal, que serve exclusivamente para o
uso (ex.: moradia, vestuário, armas, jóias).”2
Ainda:
“Possuo a mim mesmo, e, também, tudo o que eu crio. Mais do que isso: a noção de
que nossa propriedade elementar somos nós mesmos, nossas pessoas e nossos corpos,
significa que propriedade inclui necessariamente liberdade.”3
Porém, há quem não concorde com a inseparável relação entre propriedade e
liberdade. Karl Marx, por exemplo, acreditava que a libertação da classe trabalhadora
2 PIPES, Richard. Propriedade e Liberdade. Rio de Janeiro: Record, 2001. p. 19 3 PIPES, Richard. Propriedade e Liberdade. Rio de Janeiro: Record, 2001. p. 58
passava necessariamente pela abolição da propriedade privada dos meios de produção,
em suas palavras, da propriedade burguesa.4 Infelizmente, não precisaríamos recorrer
aos pensamentos do século XIX para exemplificar a imprecisão do raciocínio que
desconsidera a propriedade privada como a base sólida da liberdade, visto que
atualmente, em nosso país, são numerosos os atos, as declarações e as teses que
questionam a validade de tal vínculo. Nossa própria Constituição tomou a frente deste
movimento que entende a propriedade como um mal necessário, estipulando uma série
de brechas para que o poder público possa desconstituí-la. Na esteira da visão
dominante de nossa Assembléia Constituinte, a cultura de invasões executadas pelo
MST, de vandalismos praticados por delinqüentes e de crimes relacionados ao
patrimônio foi, de certa forma, aceita pelas autoridades governamentais e pela
sociedade.
A complacência dos governantes e a simpatia de parte da sociedade para com
agrupamentos que desrespeitam o direito de propriedade demonstram com singular
clareza a miopia brasileira. Provam a dura verdade de que a propriedade, no Brasil, não
é vista como baluarte da liberdade, da prosperidade e da dignidade humana, mas sim
como um instrumento de opressão, de favorecimento das classes mais abastadas.
Assim, como vimos, as relações traçadas entre palavras e conceitos não são
uniformes e variam de indivíduo para indivíduo, de momento histórico para momento
histórico. A ignorância, o raciocínio mal formulado e os interesses escusos podem
conduzir a vínculos distorcidos e interpretações equivocadas. Contudo, como assevera
Umberto Eco, no mundialmente reconhecido O Nome da Rosa, “... a verdade é
indivisa, brilha por sua própria perspicuidade, e não consente ser reduzida à metade
por nossos interesses e por nossa vergonha.”5. Desta forma, acreditando na relação
inerente e verdadeira existente entre propriedade e liberdade, é que traçamos essas
linhas e apontamos os argumentos que seguem.
4 MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. 9.ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1999, p. 80. 5 ECO, Umberto. O Nome da Rosa. Porto Alegre, RBS Publicações, 2003.
Um pouco da história
A umbilical relação entre liberdade e propriedade precede o estado moderno e
seus teóricos. Segundo consta, os autores da Constituição da antiga Creta colocavam a
liberdade como bem maior de um estado e, nesse sentido, entendiam que o homem livre
tinha o direito de propriedade sobre os bens por si adquiridos. Tal posição encontrava
paralelo contrário na condição de escravo, na qual o indivíduo, privado de liberdade,
encontrava-se despojado de qualquer escolha individual e do direito de propriedade.6
Na verdade, analisando a antiguidade clássica, podemos traçar de maneira
simplificada a seguinte afirmação: o ser humano podia ser classificado em duas
categorias; proprietário ou propriedade. O primeiro é o homem livre, que possui o
direito de gozar e dispor de seu corpo e dos seus esforços, que pode adquirir, trocar,
alienar, doar, escolher, mas que principalmente possui o direito de não ser coagido por
outro homem. O segundo é o escravo, que nada pode possuir e que, ao contrário,
apresenta-se como propriedade de outrem, como res, coisa. É o indivíduo em condição
inferior, privado do poder de escolha e submetido aos desígnios de seu Senhor. É com
clareza que a sociedade e a jurisprudência romana vinculavam a liberdade e a
propriedade, demonstrando que aquele que não tem o direito de ser proprietário acaba,
de uma forma ou de outra, sendo propriedade.
Há muito, o homem percebeu a profunda intimidade que permeia os conceitos de
liberdade e propriedade privada. Contudo, a história humana apresenta uma constante
tensão entre a autonomia individual e a servidão e, nessa interminável contenda, o
direito de propriedade, pilar essencial da liberdade individual, foi vítima recorrente de
ataques e questionamentos de toda ordem.
Após um período de obscurantismo intelectual e institucional, iniciado pela
conquista de Roma pelos bárbaros, no qual os conceitos de liberdade e propriedade
sofreram considerável retrocesso, uma nova onda de autonomia banhou as instituições
do mundo ocidental. No final da idade média, um movimento social influenciou
decisivamente a retomada e expansão da propriedade privada e dos direitos associados
6 HAYEK, Friedrich A. Arrogância Fatal. Porto Alegre: Editora Ortiz, 1995, p. 50.
com a posse no ocidente, qual seja, o desenvolvimento das comunidades urbanas.7 A
Inglaterra, país com um longo e gradual desenvolvimento da propriedade privada, foi a
primeira nação a fornecer aos seus cidadãos diversas esferas de liberdades individuais,
inclusive, a democracia. Contudo, foi no século XVIII e boa parte do século XIX que a
propriedade privada alcançou seu momento mais formidável na Europa e na América do
Norte. O direito de propriedade foi alçado a condição de instituição sacrossanta e a
correção e as benesses de sua aplicação tornaram-se inquestionáveis.
Mas não tardou para que as forças da servidão começassem a questionar a
propriedade privada, estabelecendo novamente o tencionamento com a autonomia
individual. Tal movimento começou na primeira metade do século XIX, entretanto, foi
o Manifesto Comunista de Marx e Engels que deflagrou definitivamente a guerra contra
o direito de propriedade. A segunda metade do século XIX e a íntegra do século XX
apresentaram um período de grande desvalorização desse direito elementar.8 Nos países
com maior tradição e apreço pela instituição da propriedade privada, ocorreu uma
revisão da sua supremacia, limitações foram regulamentadas e decisões judiciais
aceitaram com maior facilidade o seu desrespeito. Em outras sociedades, a influência
socialista conduziu as malfadadas e temerárias tentativas de aboli-la.
Em todas as tentativas de abolição da propriedade privada o que se constatou
foram experiências frustradas e perversas. O caos social, a fome, o autoritarismo, a
repressão marcaram de maneira indelével os experimentos coletivistas. A história, que
sabe ser sábia conselheira quando analisada com pragmatismo e racionalidade,
demonstra com singular clareza a real e inseparável relação entre propriedade privada e
liberdade. Além disso, comprova que a propriedade privada é condição basilar para
quatro capitais objetivos sociais, a saber, justiça, paz, prosperidade e, por óbvio,
liberdade.9
Mises afirmava que “... o programa do liberalismo, se pudermos condensá-lo
em uma única palavra, se resumiria no termo ‘propriedade’, isto é, a propriedade
7 PIPES, Richard. Propriedade e Liberdade. Rio de Janeiro: Record, 2001. p. 135. 8 BETHELL, Tom. “The Blessings of Property” in The Noblest Triumph: Property and Prosperity
Through the Ages. Palgrave MacMillan, 1999. p. 7-9. 9 BETHELL, Tom. “The Blessings of Property” in The Noblest Triumph: Property and Prosperity
Through the Ages. Palgrave MacMillan, 1999. p. 9.
privada dos meios de produção... Todas as outras exigências do liberalismo resultam
deste requisito fundamental.”10 E, de fato, é impossível conceber uma sociedade livre
sem que os indivíduos tenham o seu direito de propriedade respeitado. Contudo, apesar
das lições oriundas da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, da China, da Coréia
do Norte, de Cuba muitos ainda insistem na eliminação da propriedade individual.
Conduta prudente, neste caso, seria seguir o conselho de Churchill: “Russia cannot save
herself by her exertion, but she may at least save other nations by her example. The
lesson from Russia, writ in glaring letters, is the utter failure of this Socialistic and
Communistic theory, and the ruin which it brings to those subjected to its cruel yoke.”11
A relação entre liberdade e direito de propriedade atualmente
Iludem-se aqueles que acreditam estarmos livres do coletivismo totalitário. As
lideranças do MST nos lembram constantemente da persistência desse tipo de ideologia
e propagam abertamente sua repulsa ao sistema da propriedade privada. Porém, apesar
do barulho e da organização desses grupos, o que mais preocupa é que a sociedade
moderna parece ter chegado a algo muito próximo de um consenso que aceita com
naturalidade e alegria uma pesada intervenção do Estado na vida dos indivíduos, seja
através do roubo institucionalizado (tributação) ou das limitações impostas ao direito de
propriedade e a autonomia contratual.
Juristas do porte do Prof. Silvio de Salvo Venosa afirmam que “Toda
propriedade, ainda que respeitado o direito do proprietário, deve cumprir uma função
social... Cabe também ao Estado regular sua intervenção sempre que as riquezas não
forem bem utilizadas ou relegadas ao abandono, redistribuindo-as aos interessados e
capazes de fazê-lo.”12 Novamente o Estado aparece como panacéia universal. Cabe ao
sempre bem intencionado ente estatal definir o que significa utilizar bem a propriedade
ou definir quem é capaz de utilizá-la de modo mais adequado para a sociedade.
10 MISES, Ludwig von. Liberalismo. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1987. p. 22. 11 CHURCHILL, Winston. Never Give In! The Best of Winston Churchill’s Speeches. London: Pimlico, 2004. p. 81. 12 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil – Direitos Reais – Volume 5. 3.ed. São Paulo: Editora Atlas, 2003. p. 156 e 157.
Este senso comum que coloca o Estado, seus servidores e agentes políticos no
topo de um pedestal de razoabilidade e imparcialidade traz preocupação para todos
aqueles que vislumbram na propriedade privada não só a mais extraordinária instituição
na edificação de uma sociedade próspera, mas também e principalmente como principal
salvaguarda para a manutenção das liberdades individuais. Afinal, “O Estado é, pois,
inimigo da liberdade. Inimigo porque está nas mãos dos adversários da liberdade, mas
inimigo, também, porque, pela natureza das coisas – cumpre não esquecer – ‘o poder
vai até que encontre limites’.” 13
A crença de que cabe ao Estado estabelecer e zelar para que as propriedades
cumpram uma determinada função social ignora duas questões básicas. Primeiro, não
percebem que os governos não corrigem facilmente as eventuais “falhas” de mercado,
pelo contrário, suas estruturas burocráticas e interventoras tendem a piorar os
problemas. Isto ocorre, pois as informações e incentivos que tornam os mercados tão
dinâmicos e eficazes não estão disponíveis para a burocracia governamental, de modo
que o tão propagado interesse público acaba não sendo atingido e grupos de interesse
acabam recebendo privilégios ilegítimos.14 Nessa mesma linha, vale lembrar, que os
agentes políticos possuem interesses próprios e invariavelmente representam grupos
específicos, o que os faz tomar decisões e utilizar os recursos governamentais para
ofertar benefícios para aqueles que os elegeram. Segundo, esquecem que a melhor
maneira da propriedade privada executar sua função social é através do respeito
inequívoco dos direitos do proprietário, ou seja, a propriedade por si cumpre a mais
relevante função social. A sua existência e o seu respeito são, como já comentado, o
terreno fértil que oferece para a sociedade as melhores oportunidades de
desenvolvimento econômico e social.
A ilusão de que conceder ao governo poderes de limitação e intervenção sobre a
propriedade servirá como catalisador para o progresso social não passa disso, uma
ilusão. Afinal, pelas imperfeições inerentes à ação governamental o poder de coerção do
Estado acabará sendo usado em função de interesses individuais ou corporativos ou,
caso o ente público alcance um raro senso de imparcialidade, pela falta de estímulos e
13 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Estado de Direito e Constituição. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 3. 14 MITCHELL, William C. Para Além da Política. Rio de Janeiro: Topbooks, 2004. p. 99.
informações adequadas, acabará distorcendo a lógica econômica e gerando mais
ineficiência e, caminho natural, menos prosperidade.
Um exemplo ilustrativo
O Brasil é pródigo em exemplos do que foi comentado nos parágrafos anteriores.
Pincemos um deles. O processo de reforma agrária é aceito pela grande maioria da
sociedade brasileira como algo benéfico e desejável, entretanto, tal consenso não resiste
a uma avaliação pragmática de seus resultados e conseqüências. Os entusiastas
sustentam que a reforma agrária tem o condão de a) fixar o homem no campo; b)
estabelecer a justiça social através da consolidação da função social da propriedade; c)
incentivar a agricultura familiar; d) combater o latifúndio improdutivo; e) aumentar a
produção de alimentos.
Cada um desses argumentos é facilmente rebatido, senão vejamos:
a) A idéia de manter a população no campo é uma sentença de miséria. Está
muito claro que o campo não tem condições de gerar riqueza suficiente para trazer o
progresso e o desenvolvimento econômico almejados pela modernidade. Prova disto são
os países desenvolvidos. Atualmente, uma parcela residual das populações dessas
nações vive no campo. Mais, a representatividade do setor primário no PIB é
extremamente baixa nessas sociedades, o que obviamente significa a impossibilidade de
manter um grande número de pessoas com uma renda elevada. O fato concreto é que o
futuro da humanidade está no ambiente urbano, principalmente, no setor de serviços e
no trabalho intelectual. Tentar contrariar essa tendência só tornará possível um objetivo:
a manutenção da miséria nos países em desenvolvimento.
b) A tão comentada justiça social pode residir em uma sociedade livre, que
possui um marco institucional fundamentado no estado de direito, na propriedade
privada, nas liberdades individuais e na meritocracia ou pode encontrar seu ápice em
uma sociedade que estabelece, ou tenta estabelecer, a igualdade material entre os
indivíduos, que distribui a renda de maneira igual, extingue a propriedade privada e
fortalece o poder estatal. De maneira simplificada, o que pode ser justiça social para um,
pode não ser para outro. E é por isso que o liberalismo estabelece os direitos naturais
como a pedra angular de sua proposta de organização social.
O respeito à singularidade do indivíduo, a consciência de que cada ser humano é
um fim em si mesmo15, levou os teóricos liberais a sustentarem que uma sociedade justa
se baseia na autonomia individual, garantida por direitos negativos elementares como a
vida, a liberdade e a propriedade privada. Só assim o ser humano pode nutrir suas
idéias, trilhar seu caminho, fortalecer sua fé e alcançar seus sonhos sem retirar esses
mesmos direitos do seu próximo. Desta forma, a concessão de direitos positivos como,
por exemplo, “todos têm direito a uma renda elevada”, implica necessariamente na
negação de um direito negativo como “ninguém deve ter sua propriedade violada”. A
concepção liberal sustenta que, nem o Estado, nem os indivíduos devem ter o poder de
usar a força para privar os demais cidadãos desses direitos básicos. Assim, nem o
Estado, nem os indivíduos devem impor uma fórmula de justiça social ou de função
social da propriedade, pois a verdadeira justiça social encontra amparo no respeito à
pluralidade e, principalmente, à autodeterminação do indivíduo. E o indivíduo só
consegue exercer esta autodeterminação se tiver resguardado o direito de propriedade.
Ademais, a mais preciosa função social da propriedade está nela própria. E realmente a
conduta liberal ou “o individualismo é, assim, uma atitude de humildade diante desse
processo social e de tolerância para com as opiniões alheias, sendo a negação perfeita
da arrogância intelectual implícita na idéia de que o processo social deva ser
submetido a um amplo dirigismo.”16
c) A agricultura familiar é um modelo incapaz de gerar renda progressiva aos
seus praticantes, pois esbarra na inexorável necessidade de obter índices de
produtividade cada vez mais elevados que possibilitem uma melhora constante no
padrão de vida desses indivíduos. A falta de investimentos em tecnologia e a reduzida
escala de produção acabam tornando economicamente inviável a maioria das culturas
agrícolas em sistemas de cultivo familiar. Isto não significa a extinção desse modelo. A
15 RAND, Ayn. A Virtude do Egoísmo. Porto Alegre: Editora Ortiz, 1991. “O princípio social básico da ética Objetivista é que, assim como a vida é um fim em si mesma, assim também todo ser humano vivo é um fim em si mesmo, não o meio para os fins ou o bem-estar dos outros – e, portanto, que o homem deve viver para seu próprio proveito, não se sacrificando pelos outros, nem sacrificando os outros para si. Viver para seu próprio proveito significa que o propósito moral mais alto do ser humano é a realização de sua própria felicidade.” 16 HAYEK, Friedrich. O Caminho da Servidão. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1990.
agricultura familiar pode continuar existindo, produzindo alguns produtos específicos e
atendendo alguns mercados regionais. O que queremos apontar é que tal sistema, em
termos macroeconômicos é insipiente, e sua multiplicação está longe de ser uma
solução para os nossos problemas sociais.
d) Em primeiro lugar, os dados demonstram que a terra, no Brasil, não está
concentrada, eis que o tamanho médio das propriedades, em comparação com outros
países, possui dimensões bastante reduzidas.17 Além disso, o latifúndio, mesmo
improdutivo, não deveria ser objeto da coerção estatal, eis que, ao conceder ao Estado o
poder de definir quem terá ou não sua propriedade protegida, a sociedade está, em
primeiro lugar, colocando nas mãos dos governantes um poder excessivo e limitando
sua própria liberdade, em segundo, está autorizando o governo a intervir fortemente no
andamento econômico o que tradicionalmente gera distorções e prejuízos. Nesse
sentido, aproveitamos para citar valioso ensinamento de Adam Smith:
“O estadista que tentasse orientar indivíduos privados quanto à maneira como
deveriam aplicar seus capitais não apenas se incumbiria do mais desnecessário
cuidado, como ainda assumiria uma autoridade que não seria sábio confiar não
só a uma única pessoa, mas mesmo a qualquer conselho ou senado; autoridade
esta que não poderia ser depositada em lugar mais perigoso do que nas mãos de
um homem tolo e presunçoso o suficiente para se imaginar capaz de exercê-
la.”18
e) O último argumento é o mais absurdo ou, talvez, o mais ingênuo, dependendo
de quem o utiliza. A crença de que a pequena propriedade ou o modelo de agricultura
familiar irá aumentar e facilitar a produção de alimentos é uma fantasia. Acreditar nisso
é imaginar que o modelo de produção do século XIX é mais apto para produzir grandes
quantidades de alimentos e preços mais baixos do que o moderno sistema de produção
que utiliza tecnologia intensiva e gestão profissionalizada. A mecanização do campo, a
melhor gestão agrícola e administrativa, os avanços da biotecnologia, a produção em
escala industrial viabilizaram um crescimento vertiginoso na produção primária em todo
o mundo e uma redução expressiva nos preços dos alimentos básicos, basta comparar a
17 Fonte: “Tamanho médio das propriedades rurais (em hectares)”. Britannica, 1996. 18 SMITH, Adam. A Riqueza das Nações – Volume I. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 568.
parcela da renda que era destinada para a compra de alimentos de um trabalhador norte-
americano do século XIX e outro do século XX. O percentual gasto em alimentos hoje é
muito inferior ao do século XIX, ou seja, o homem contemporâneo possui mais recursos
para gastar em outras destinações de sua necessidade ou agrado. O problema da falta de
alimentos acontece justamente em países, nos quais o direito de propriedade não é
respeitado, que encontram-se em guerra ou que sofreram com catástrofes naturais, de
maneira que a referida argüição não faz sentido algum.
Conclusão
Quando nosso país irá refletir seriamente sobre estas questões? Quando irá
perceber a íntima relação entre propriedade e liberdade? Entre propriedade e
prosperidade? Infelizmente, o horizonte não se mostra promissor. Do pequeno grupo de
pessoas que defendem a extinção ou do grande grupo que aceita a limitação do direito
de propriedade, encontramos motivações específicas: há aqueles que anseiam com
sinceridade solucionar rapidamente os problemas enfrentados por boa parte de nossa
população; outros que receiam receber reprimendas e rótulos pejorativos por defender
de peito aberto a propriedade privada; também há aqueles que por ignorância aceitam os
aparentes bons propósitos apresentados por lideranças coletivistas; e, por fim, outros
que, cobertos pela cobiça e pela presunção, tencionam tomar as rédeas da sociedade e
fazer com que os indivíduos ajam segundo suas vontades e predileções pessoais.
Contudo, como já assinalado na presente reflexão, a liberdade não pode existir
sem a supremacia da propriedade privada. Conceder ao Estado o poder de limitá-la ou
expropriá-la é cercear a liberdade individual e fortalecer a ingerência dos governantes
em nossas vidas. A propriedade liberta, concede aos homens o poder de escolha e
oferece a possibilidade de buscar os meios que viabilizam a realização dos seus sonhos
e do progresso humano. A primeira propriedade do indivíduo é naturalmente a sua
própria vida e o seu corpo. Desta primeira e inquestionável idéia, se desdobram as
demais propriedades, a mais importante, considerada sagrada por Adam Smith, é a
propriedade sobre a força e destreza de cada ser humano. A capacidade de trabalho de
um homem é seu principal patrimônio, de modo que impedir este indivíduo de empregar
esta propriedade da maneira que melhor lhe parecer, desde que não cause prejuízo ao
próximo, é uma grave violação a sua liberdade.19
Da propriedade sobre sua força, destreza e engenhosidade, o homem torna-se
legítimo proprietário sobre os frutos decorrentes desse esforço, conforme conceitua
John Locke:
“Embora a terra e todas as criaturas inferiores sejam comuns a todos os
homens, todo Homem já possui uma Propriedade na sua própria pessoa. A isto
ninguém mais tem direito a não ser ele mesmo. O labor do seu corpo e o
trabalho das suas mãos, pode-se dizer, são completamente seus. Seja como for,
então, ele remove do Estado o que a Natureza tiver fornecido, e nele deixa o que
houver misturado com o seu labor, e acrescenta algo de sua posse, e daí cria
uma propriedade. Esta é por ele removida do estado comum em que a Natureza
a colocou, este tem pelo labor algo anexado a ela, o que exclui o direito comum
de outros homens. Sendo este labor a inquestionável propriedade do
trabalhador, nenhum outro homem tem um direito ao qual ele se associou, pelo
menos onde é suficiente, e como bem deixado em comum para os outros.”20
Portanto, o esforço e a inteligência individual utilizados em um determinado
bem tornam legítima a propriedade, pois agregam valor e pessoalidade ao objeto
utilizado. Além disso, a utilização da propriedade, seja a propriedade do trabalho ou a
propriedade de determinado bem, é capaz de gerar e multiplicar riquezas. Assim, em um
sistema de cooperação social e divisão do trabalho, os homens acabam interagindo
constantemente e transacionando com as suas propriedades.
O Prêmio Nobel de Economia, Douglass North, desenvolveu importante teoria,
segundo a qual a evolução humana e a prosperidade econômica ocorrem em função das
instituições que tornam mais fáceis, baratas e seguras as interações humanas. Logo,
aquelas sociedades que desenvolveram instituições que fazem com que as pessoas
tenham mais facilidade e confiança para interagir e transacionar, alcançaram maior
19 SMITH, Adam. A Riqueza das Nações – Volume I. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 155. 20 LOCKE, John. “Of Property” in the Second Treatise of Government. Kershaw Publishing, 1980.
desenvolvimento econômico e social.21 A propriedade privada, o respeito aos contratos,
o sistema de registro de propriedades, o estado de direito, o judiciário independente são
exemplos de instituições que tornam a cooperação social mais efetiva e, desta forma,
possibilitam um aprofundamento da especialização do trabalho, da criação tecnológica
e, por conseguinte, da conquista de maior produtividade e geração de riqueza.22
Na esteira dos ensinamentos do Prof. North, Hernando de Soto escreveu
precioso estudo, publicado sob o título de “O Mistério do Capital”. A teoria apresentada
por de Soto torna ainda mais clara a importância do direito de propriedade para o
desenvolvimento. De maneira breve, o argumento apresentado no referido estudo é que
os países em desenvolvimento não conseguem progredir com robustez, pois não
utilizam os ativos acumulados pelos seus cidadãos, já que estes encontram-se na
informalidade, sem registros, delimitações e garantias adequadas. Ocorre que a
legislação equivocada, a burocracia sufocante e a tributação excessiva afastam os
indivíduos do ambiente formal. Com isso, os ativos, que poderiam ser usados como
capital para financiar e garantir novos investimentos, acabam permanecendo na
informalidade, como se nunca tivessem existido. Isto bloqueia um imenso valor de
ativos que poderiam ser usados de maneira produtiva.23
As questões de ordem utilitária, abordadas nos dois parágrafos anteriores, são,
sem dúvida, extremamente relevantes, entretanto, ainda mais importante é a justificativa
moral que sustenta o direito de propriedade. A propriedade privada é o direito basilar
que sustenta todos os outros direitos. A consagração do conceito de que o homem é
proprietário da sua vida, do seu corpo, dos seus esforços e das suas idéias permite e
viabiliza não somente a propriedade sobre os bens corpóreos e tangíveis, mas também
sobre as preferências e opções pessoais. E isso é fundamental. O homem precisa e deve
gozar do direito de propriedade para fazer suas próprias escolhas. Jamais deveria ser
permitido ao Estado cercear esse direito elementar. O indivíduo, que respeita os direitos
naturais do próximo, não pode ser coagido a fazer, pensar ou usar sua propriedade em
fins outros que não aqueles por ele pretendidos. Para ser realmente livre, o homem
21 NORTH, Douglass. Custos de Transação, Instituições e Desempenho Econômico. Rio de Janeiro: Instituto Liberal/Instituto Millenium, 2006. 22 PIPES, Richard. Propriedade e Liberdade. Rio de Janeiro: Record, 2001. p. 87 23 DE SOTO, Hernando. O Mistério do Capital. Rio de Janeiro: Record, 2001.
precisa da garantia de que todas as esferas de sua propriedade serão garantidas pela
organização social.
Aos que acreditam no indivíduo e, consequentemente, na liberdade individual e
na propriedade privada, fica a mensagem de estímulo, representada pela constatação de
Thomas Friedman: “A demolição do Muro de Berlin em 9/11 foi levada a efeito por
pessoas que ousaram imaginar um mundo diferente e mais aberto – um mundo no qual
cada ser humano estaria livre para realizar todo o seu potencial – e que reuniram a
coragem para agir segundo aquela imaginação.” 24
___________________________________
24 FRIEDMAN, Thomas L. O Mundo é Plano. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005. p. 424.