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Prosa de paulista
Vera Moratta.
Lembranças do Cambuci
Vivi no Cambuci toda a minha infância. Na Rua Dom Duarte Leopoldo a rua passava
mansa na década de 60, com paralelepípedo, serena e silenciosa, apesar da proximidade
com a Lins de Vasconcelos. Foi ali que ouvi os primeiros relatos da violência urbana,
sem nada, com a cor da miséria humana, aos frangalhos. Eu nunca soube ao certo, mas
uma menina de 13 anos foi assassinada a bala. Deu no jornal, pessoas foram chegando
indignadas e tristes, num silêncio de alma estarrecedor. Da sacada da casa da vizinha
acompanhávamos o silêncio. Nunca me esqueci do sentimento de impotência desse dia.
Bem ao lado, passadas umas duas casas, tinha a vendinha do seu Altino. Vendia
vassouras, rodos, sabão Omo, cereais, uns docinhos de leite, outros de amendoim, que
eram entregues pelo caminhãozinho azul escuro escrito NEUSA. Também tinha
refrigerante, leite, pão, Tubaína. Foi ali que comprei uns docinhos quando, aos 6 anos,
ganhei um dinheirinho do tio Pedro, um velhinho muito amável, que usava chapéu,
quando o ajudei a ganhar uma partida de buraco, junto com o meu pai e outros parentes.
Do outro lado, a feira às quintas, com pastel do japonês, as laranjas doces, vendia-se
roupas lá no fim. O peixe, os cereais, a banquinha do baiano vendendo alho e pimenta
no meio de tudo, o coco ralado na hora. Eu respirava São Paulo e respirei com mais
intensidade a rua Albuquerque Maranhão e, de noite, pela janela, eu vivia a magnitude
das luzes da cidade. Nada mais lindo que São Paulo à noite. Um espetáculo
indescritível, vivo, cheio de energia, de força, literalmente, cheio de luminosidade de
alma. Ali, da janela do meu quarto, olhando para as luzes, eu preparava o meu futuro,
ouvindo a luz da lua, a quietude da noite... sonhava.
A janela era pintada a óleo cinza... como do passado...e a vida ia...
Bom mesmo eram os doces comprados na Lins de Vasconcelos, na loja de um japonês
chamado Shiguero. Doces de batata roxa, maria-mole em pedaços grandes, doces de
leite, balas de goma, delicados, chocolates. Eu ia lá até de noite, na hora da vontade do
doce. Um dia levei até uma multa por colocar o carro na contramão bem na porta da loja
do Shiguero. Mas eu já trabalhava, não era tão garota mais ... paguei a multa.
Freqüentei o Bixiga, vivi o doce cheiro do bairro com o maior amor desse mundo. Vivi
intensamente as festas italianas, a de Santa Acheropita, de São Genaro, na Moóca.
Jamais me esquecei, na festa de Santa Acheropita, num sábado à noite, um velhinho
italiano, de terno e gravata borboleta, ao som de violino, num pequeno palco, cantando
Funiculi Funiculà com uma alegria inebriante. As mulheres de origem italiana fazendo
Fogazza numa mesa imensa, cheia de farinha de trigo e as filas gigantescas se formando
para comprar essas maravilhas. Eu e meu então noivo estávamos lá e levamos um bom
prato de fogazza para comermos em casa com a vó, minha doce e sábia avó, filha de
imigrantes italianos.
Vivi São Paulo com o maior amor. Depois na Vila Sônia...
Hoje, vivo em Florianópolis, expulsa pela violência e pela poluição. São Paulo não me
saiu da alma. Hoje faço peças em mosaico lembrando a cidade, MASP, Mercadão e
tudo o mais.
Mas eu vou voltar, afinal o paulista pode sair de São Paulo, mas São Paulo não sai de
dentro do paulista. A saudade é visceral, mas positiva. Traz vida, sensibilidade e,
sobretudo, paixão.
No Cambuci - anos 70
Quando a avenida Lacerda Franco foi asfaltada, em 1971, eu caminhava até o meu
colégio, o Nossa Senhora da Glória, ali pertinho do Largo do Cambuci. Aquele cheiro
de pixe era insuportável, logo pela manhã. Aos poucos, os paralelepípedos iam
desaparecendo, meio que apagando aquelas imagens de São Paulo mais lento, dando
espaço para a fluidez do trânsito, uma espécie de abertura para o progresso mais rápido.
Era a época da ditadura, da infeliz ditadura, que falava que esse é o país que vai pra
frente, ô,ô,ô,ô,ô.
O colégio, o Glória, era aquele colégio marista tradicional, com azulejos marrons em
todos os corredores e com duas entradas. O seu João era o porteiro, com o seu infalível
sorriso dourado, magrinho e sempre bem educado. Ele carimbava as presenças e
ausências dos alunos nas cadernetas escolares. Há alguns anos estive ali de novo,
fazendo minhas habituais visitas, batendo foto do seu João e o meu antigo professor de
Física, o Irmão Leonardo, que muito contribuiu para a minha formação humana.
Naquele tempo os professores não empregavam a palavra ética, mas o comportamento
era ético o tempo todo. Por esse motivo e com absoluta certeza a vida de muitas
daquelas pessoas deu certo, sobretudo quando o assunto é dignidade e respeito para com
a vida e os demais.
Seguindo em direção à rua da Independência, havia uma pequena fábrica de chocolates,
a Toy. Era do lado esquerdo de quem ia. Era pequena, de fundo de quintal, mas o cheiro
chegava lá fora com toda a poesia que o chocolate traduz. Essa foi uma das lembranças
mais adocicadas da minha juventude - a fábrica da Toy, muito embora íamos até lá só
de vez em quando, pois o dinheiro era, para nós, um grande problema.
Com o Cambuci, com o Glória e com a Toy comecei a sonhar e a acreditar que o mundo
poderia ser bom e justo a partir do lugar de raiz, mais o conhecimento, e, junto dele, a
perseverança, a luta, a paixão pelo saber, o companheirismo dos mestres, sábios e
pacientes mestres, que serão aplaudidos de pé, com todas as honras, por todos os Santos
quando chegarem aos céus. Mas para se manter o amor pelo chão, para se dar o grande
valor à escola - essa escola chamada vida - o chocolate é mais que necessário, sobretudo
o chocolate da Toy, que também serviu para aplacar - um pouquinho, só um pouquinho
- o amargor da ditadura.
Na rua Albuquerque Maranhão
Quando saímos de mudança da Rua Dom Duarte Leopoldo para a Albuquerque
Maranhão, em 1967, a situação foi extraordinária. Era um doce dia de sol, íamos a pé: a
minha avó, a minha irmãzinha, então com três anos de idade, e eu, com nove. Era como
se estivéssemos crescendo, evoluindo, saindo de um apartamento alugado, de fundo,
para um sobrado. O sobrado era nosso! O meu pai havia comprado, com um largo
sorriso, com ar de vitorioso. Minha avó dizia que a minha mãe deixaria a casa “um
brinco”. Era um sobrado simples, sem garagem, geminado. Eram dois conjuntos de
cinco casas, separados no meio por uma vila extremamente simpática. Antes da
mudança, o pintor deu um jeito, pintou as portas a óleo, de cor cinza. Lá fora existiam
duas colunas. As janelas, mesmo a da sala, eram de veneziana, mas era a nossa casa, o
nosso espaço, pela primeira vez.
Uma vez por mês o antigo proprietário, senhor de idade, tocava a campainha para
receber uma parcela do pagamento. Era assim. Era lindo! Lá estava o dinheiro já
separado. Era só pagar. Não tinha financiamento no banco. Uma situação que cheirava a
credibilidade.
Muitas vezes, da janela, eu via passar os carros com a liberdade de enxergar, coisa que,
antes, não tínhamos, num apartamento de fundo. O JK, por exemplo, era um carrão. E lá
vinha a minha mãe falar bem do presidente Juscelino e da “implantação da indústria
automobilística no Brasil”.
Eu podia ver que o mundo tinha sua dinâmica própria, muito especial e enriquecedora,
as pessoas estavam realmente vivas, envolvidas com as suas famílias e a vida era
regular, os horários de aula, de trabalho. Tudo funcionava.
Eu ia sozinha ao PEG PAG no Largo do Cambuci comprar algum mantimento para
casa. Era supermercado simples, mas ainda novidade fora de São Paulo. Quando
vinham nos visitar, os parentes de Minas ficavam extasiados com um mercado que só se
pagava no final, de uma vez só. Eu achava o máximo, em termos de liberdade, ir até lá.
Ía à farmácia do Luís comprar remédios para o meu pai, comecei a aprender a falar com
as pessoas, olhava os vizinhos com curiosidade e respeito, querendo saber mais, me
tornar adulta e entendida do comportamento humano.
Aliás, nada mais complexo e encantador que o comportamento humano!
Numa tarde, voltando para casa, minha mãe e eu, com um pacotinho de café Moka
moído na hora, com aquele cheiro inebriante, uma vizinha, senhora viúva, exclamou
para minha mãe:
- Sem marido a gente vive, mas sem café...
Quando vou ao centro de São Paulo
Quando vou à minha doce Sampa, religiosamente uma vez ao ano, passeio pelo centro
da cidade, e passeio muito. É como se fosse a vontade imensa de abraçar toda a cidade,
me envolver em todas as situações, enxergar e entender todos os rostos, respirar todos
os ares, sentir o gosto de todas as comidas e, sobretudo, respirar cultura e o encontro de
todos os povos.
A catedral continua linda e incrivelmente poética, viva, com o alegre cheiro de
participar da vida de cada cidadão paulistano, independente da sua condição. Consigo
ainda, de alguns daqueles bancos, olhar para o altar e sentir a presença humana, ética,
sensível, comprometida de Dom Paulo Evaristo, que tem a cara de São Paulo como
ninguém. Aliás, a Rita Lee também tem a cara da cidade, como Henry Sobel, o saudoso
Pietro Maria Bardi, a Hebe Camargo e também uma grande amiga de mais de 30 anos
de convívio, a jornalista Neusa Barbosa... mas isso é outra conversa.
Ali, na catedral, bem na porta, gosto de contar para o meu filho Vinícius sobre as
mudanças do país que passaram por ali - as greves de fome pelo fim da ditadura, a missa
ecumênica de sétimo dia pelo assassinato do jornalista Wladimir Herzog em outubro de
1975, a longa luta pelas Diretas-já em 1984, os comícios... A Praça da Sé tem o cheiro
de vida no seu sentido mais belo - cheira a batalha por causas imensamente justas, é o
espaço da aproximação, do encontro, das buscas... para depois se continuar no trabalho.
Naquela mesma Praça da Sé existe um pequeno espaço gastronômico chamado La
Romana. Antigamente era a Romagnola. Quando eu era criança eu passava por ali com
a minha mãe e a gente comprava rosca, sonhos... essas coisas gostosas que enchem a
alma. Agora perdeu um pouco o charme, por ali tá cheio de coisa diet. Cruzes!
Muito interessante também é o espaço atrás da cadetral. Na Praça João Mendes tem a
Padaria Santa Tereza, do século XIX. Eu me lembro dela, nos anos 70, com cadeiras de
estofado verde escuro, giratórias. Uma vez tomei um guaraná Brahma ali, quando
voltava da USP à noite. Com empada de frango! Agora passo por ali, comemos - meu
filho e eu - a empada de frango, mas sem o guaraná Brahma, aquele primeiro, delicioso.
Bendito guaraná que começou a ser produzido em 1918 e resolveram dar um fim nele...
Aquele sebo ao lado da padaria é maravilhoso demais, completo, de dois andares, mas o
fantástico mesmo era a Gazeau. Tinha um gato branco na porta, que se chamava
Clarimundo e o seu Gazeau ficava por ali, com seus oclinhos redondos. Ele, sempre
arrumadinho, de terno escuro e gravata, mal atendida nos anos 70, mas a sua ajudante, a
Rosa, dava conta do recado. A Gazeau tinha a cara de livraria do após-guerra. Tinha
tudo ali, mas era escura, tinha muito pó, mas a gente sentia ali dentro o gosto pela vida...
apesar do silêncio do sr. Gazeau...
O prédio Martinelli
Quando eu fiz 15 anos ganhei da minha tia um anel de brilhante. Muito bonito, presente
simpático. Fiquei muito agradecida, mas na realidade eu nunca usei aquele anel. Eu
fiquei feliz mesmo foi com a caixinha que o envolvia. Na parte interna estava escrito:
Prédio Martinelli.
Na ocasião eu nem sabia bem o significado daquele prédio para a história de São
Paulo... E lá fui eu tratar de conhecê-lo.
Esse prédio é um exemplo fantástico de beleza, garra e de esperança. Um retrato fiel do
trabalho imigrante, dos italianos que vieram movidos pela miséria do século XIX,
quando da Unificação do seu país. A unificação e o pensamento republicano foram
muito bons para os proprietários de terra e para a burguesia local, mas para os mais
humildes, analfabetos e sem-terra , a história era outra. A fome obrigada, a partida dos
seus lares e a certeza de que a volta seria impossível. Afinal, mal havia dinheiro para a
comida, quanto mais para um eventual retorno. A única alternativa era imigrar, acenar o
lenço branco para os parentes que ficaram... E tratar de fazer a América. Cosa sarà
questa America?
E o Martinelli foi um exemplo de batalhador de primeira hora, que chegou, como os
demais, e foi direto para a Hospedaria dos Imigrantes, atual Memorial do Imigrante, no
Bresser. E lutou, lutou, plantou café, foi arrumando o seu suado dinheiro até que pôde
homenagear São Paulo que o acolheu com aquele prédio lindíssimo em plena Avenida
São João. Com certeza alguma coisa aconteceu no coração do Martinelli quando passou
pela Ipiranga com a São João. Dormia lá dentro quando da construção do prédio para
provar mesmo que não iria desabar. Por dentro, todo revestido em mármore de Carrara.
Numa das minhas idas a São Paulo fui ao topo do prédio. A visão panorâmica e uma
pequena exposição do café foram uma das mais belas experiências culturais que tive o
prazer de vivenciar nessa cidade ímpar e sempre viva.
Até porque São Paulo dos italianos tem a sua pulsação e a sua vibração
extraordinariamente forte que se traduz no abraço da esperança.
Na festa de Acheropita
Há anos não vou à festa de Acheropita. Pura falta de oportunidade. Vivo há 21 anos fora
da minha doce São Paulo, que nunca me saiu do coração. Mas que saudade, que coisa
saudável a lembrança e a idéia de união que aquela festa provoca!
Mas a festa de Acheropita, lá no Bixiga, representa uma das expressões mais belas do
ser italiano em São Paulo. A Igreja, no canto, quieta, olhando os festeiros, esperando
visitas, na sua imensa serenidade, branca, parecendo sorrir de braços abertos para os
descendentes daqueles que vieram fazer a América em meio a fome, incertezas e muito,
muito sofrimento.
Eu me lembro, há anos, de uma minissérie na televisão em que, dentro daquela igreja,
Lélia Abramo chorava dizendo que até, se necessário fosse, deixaria a família em São
Paulo e voltaria para a Itália. Era impossível viver fora daquele país. Era emocionante a
fala, o olhar, a expressão de saudade da Lélia, com aquela italianidade de quem muito
sofreu...
E a festa lembra todo o cheiro de família, de abraços, risos e a união que a comida
representa. Aquele macarrão, a pizza, a cepolla. Uma vez eu e o meu companheiro de
vida inteira, o meu Nelson, entramos na fila da fogazza. Era uma fila imensa. Eu queria
levar uma bandeja de fogazza para a minha avó, descendente direta de calabreses. Da
rua víamos as mulheres fazendo a iguaria em mesas imensas, de dentro de uma
garagem. Todas felizes, sorridentes, gordinhas, amassando o pão.
Na rua, num pequeno palco, um senhor - já de idade - de terno e gravata borboleta,
cantava emocionado, com voz vibrante, com a Itália toda no peito, ao som do violino, o
maravilhoso Funiculi Funiculà.
Eu não me lembro de ter visto um sorriso mais brilhante do que o daquele senhor. Era
uma história inteira contida no olhar, a esbanjar otimismo, o sentimento de vitória, de
amar a vida do jeito que foi, a alegria da sobrevivência resolvida a duras penas na eterna
São Paulo, com a bênção da Acheropita.
MASP
A primeira vez que fui ao MASP foi com os meus pais, a minha irmãzinha e a minha
prima, a Cidinha. Eu era pré-adolescente e não entendi nada daquele monumento de
beleza, conhecimento e pura arte. No entanto, aquele espaço muito me provocou.
Comecei a retornar ao museu com enorme freqüência. Levei a amiga Ana Isabel e
comprei, pela primeira vez, a revista Correiro da UNESCO, cuja matéria de capa tratava
sobre a exploração do trabalho infantil no mundo.
E passei a tentar compreender a profundidade do pensamento daqueles artistas, a
suavidade das cores, a complexidade das mensagens. Fiz um curso de Fundamentos da
Arte Contemporânea ali e fui, de vagar, me tornando gente, valorizando sentimentos e
paixão pelo saber, aliás, pra se tornar pessoa, algumas coisas são essenciais, como ler
Frei Beto, Drummond, Cecília Meirelles, Vinícius de Moraes, ouvir o Chico Buarque
e... Visitar o MASP. Li muito sobre o simpático fundador do museu, o sr. Pietro Maria
Bardi e sua esposa Lina. Apresentei um trabalho sobre Pietro num curso de Italiano que
fiz em Florianópolis, na sua forma e significado de montar o museu. A proposta do
trabalho era apresentar um personagem de relevância na cultura italiana. Assim, tratei
de apresentar o nosso Bardi para os estudantes daqui, falar do MASP, do grandioso
acervo, de uma das formas de identificar São Paulo. Eu me lembro de uma entrevista da
Lina Bo Bardi, quando dizia que, nos anos 20, quando era estudante de arquitetura na
Universidade de Roma, teve uma militância anti-fascista e que "cada minuto de vida era
sinal de grande vitória".
Todo ano quando visito a minha saudosíssima Sampa, me encontro no MASP com a
minha amiga de 30 anos de feliz convivência, a Neusa Barbosa. E dali saímos a colocar
a conversa em dia, resolvendo as saudades, caminhando pela Paulista. Isso é sagrado.
Hoje pinto telas, sobretudo paisagens. Quando, no ano passado, tive uma tela roubada
fiquei felicíssima, contei para várias pessoas. Deixando essa bobagem de lado, sou
muito grata àquelas portas sempre abertas que me incentivaram a ser pessoa.
São Paulo sempre encanta
Quando chego a São Paulo, perto do natal, a entrada da cidade, para quem vem do sul,
começa pela Av. Francisco Morato, nome de um professor, um dos mentores da
Revolução Constitucionalista de 32, luta essa declarada contra o novo poder de Getúlio
Vargas, contra o fim da velha República do café-com-leite.
E nesse pedaço da cidade, a história invariavelmente vai se definindo pelos nomes das
ruas, as Ruas Miragaia, Martins, Drausio, Camargo, a praça MMDC, logo mais a USP,
de tantas histórias, de tantas lutas contra todas as formas de opressão.
Conheci um ateliê recentemente na Vila Sônia. Quadros belíssimos, cerâmicas muito
bem trabalhadas, por um sujeito que, durante 30 anos, teve o seu espaço garantido em
Embu das Artes. O ateliê ficava numa rua tranqüila, sem o barulho dos ônibus, com os
quadros expostos com muita simplicidade. Como é bom parar e ter um tempo para
conversar, trocar idéias e saber que a cerâmica assimila muito bem a tinta a óleo, dessas
que a gente aplica diretamente nas telas.
As feiras da Vila Sônia são magníficas, me lembram aquelas dos anos 60 no Cambuci,
com as barracas com roupas, sapatos, o japonês vendendo pastel, bancas apenas com
bananas, as magas maravilhosas, esperando pelas festas de final de ano. Na rua da feira
de sexta-feira, bem pertinho da Francisco Morato, tem ainda a casa do sr. Yamamoto,
um excelente acupunturista que me salvou de dores horríveis nas costas, lá pelos meus
20 anos. Por conta do sr. Yamamoto me interessei pela Medicina Tradicional Chinesa e
hoje sou acupunturista também, inclusive professora dessa milenar arte, filosofia e
ciência. Sou grata a São Paulo por todas essas coisas, por ter me acolhido desde sempre,
por todas as cores e dores de alma, que me ensinaram a ser forte, a buscar mil formas de
sobrevivência, a valorizar o saber, a beleza e a ter um imenso amor pela memória, um
profundo respeito ao passado. Tenho São Paulo inteira como o maior espaço cultural
possível, para todas as horas, todas as possibilidades, adversidades... E felicidades.
D. Paulo Evaristo Arns, o comprometido rosto de São Paulo
Uma das grandes bênçãos que São Paulo recebeu foi ter D. Paulo Evaristo Arns como
cardeal-arcebispo durante os temíveis tempos da ditadura. Eu me lembro, ainda muito
jovem, de quando D. Paulo assumiu o posto, em substituição a D. Agnello Rossi.
Impossível, para aquele momento, escolha mais adequada.
Desde os primeiros momentos o cardeal optou por lutar febrilmente em defesa da vida,
dos excluídos, marginalizados, mas, nos anos de chumbo, nos tempos de AI-5, lutou
não somente em defesa da vida dos prisioneiros políticos, contra toda arbitrariedade e
torturas físicas e psicológicas, mas também em defesa dos seus familiares, enfrentando,
com toda a sua habitual elegância espiritual, aqueles que "inventaram o pecado e se
esqueceram de inventar o perdão", no dizer de Chico Buarque.
A missa de 7º dia pelo assassinato do jornalista Wladimir Herzog, em outubro de 1975,
se transformou num verdadeiro culto ecumênico e aquela belíssima catedral, onde
cabem 8.000 pessoas sentadas, não tinha como acolher mais nenhuma alma. Estava
abarrotada por pessoas indignadas, tristíssimas, amarguradas pelo assassinado fingido
de suicídio, que nenhuma pessoa com um mínimo de senso crítico acreditou ser
possível.
O Wlado, como era conhecido, era judeu nascido na Croácia. Veio quando garoto ao
Brasil com a família fugindo das atrocidades e da intolerância levadas à frente pelo
megalomaníaco Adolf Hitler. Incrível o fato de a família Herzog ter conseguido escapar
de Hitler, mas não dos carrascos brasileiros... Ele era diretor de jornalismo da TV
Cultura...
Mas em todos os momentos, D. Paulo se destacou como um verdadeiro religioso, pronto
a cumprir o seu dever para com o Evangelho, se expondo e sofrendo, na época,
recorrentes ameaças de morte. Aí está um pouco de D. Paulo Evaristo, já octogenário, o
mais brilhante catarinense da história. Já tive o feliz privilégio de orientar trabalhos de
alunos
a respeito dessa ilustre e singular figura da história social do Brasil.
Uma passagem pela Botica ao Veado de Ouro
Há muitos anos eu não tinha o privilégio de passar pela Botica Ao Veado de Ouro.
Dessa vez eu prometi para mim mesma. Eu me programei, fiz mentalmente o meu
roteiro histórico e também gastronômico antes de sair de Florianópolis - dessa vez tinha
que dar certo.
Tomamos o ônibus, descemos perto do Mercadão, aproveitei e fiz umas compras - o
damasco delicioso, a granel - para cobrir com chocolate, a castanha portuguesa, as
gomas sírias, mas, principalmente ali aproveitamos a visão magnífica de um mercado
vivo, tão cheio de cores, sabores e aromas, com os azeites extra-virgens pendurados aos
montes, de Portugal, da Itália, da Espanha... o cheiro das azeitonas e dos condimentos
por todos os lados. Fervia, como sempre, mas de energia vibrante, colorida, perene.
Dali meu filho e eu aproveitamos para caminhar... e fomos em direção à Rua São Bento,
aproveitamos um pouco do Canto Gregoriano, com aquele frescor inconfundível da
Igreja São Bento, bem aquela que, de tão próxima, quase dá pra colocar o pé no Viaduto
Santa Ifigênia, aquele que o doce Adoniran chamara a Eugênia para ver como tinha
ficado bonito.
Aí não teve jeito, entramos na Botica, que já tem 150 anos! Continua aquela entrada
estreita, lá no fundo, com os atendentes com os seus jalecos muito brancos, atendendo
respeitosamente, com muita atenção.
De pequena eu ia até lá com muita freqüência com o meu tio Dante, que é farmacêutico
de primeira linha, muito conhecedor da arte de curar e das boas leituras e do refinado
conhecimento da política nacional. Naquele tempo, ali no térreo, funcionava o
laboratório de manipulação, muito atraente, com um cheiro característico, sempre
abarrotado de clientes com as suas receitas, cada um buscando a sua cura, a eterna
vontade de viver na frente e atrás de cada balcão.
Hoje, no mesmo espaço, funciona com mais destaque a parte de cosmética, mas a
Botica mantém a sua importância, o seu charme, a sua tímida imponência mesmo
escondida em meio aos prédios de relevância para o mercado, em meio à pressa de
milhares de transeuntes com o tempo contado para entrar no trabalho ou para pegar o
ônibus de volta pra casa.
A Botica é parte integrante da identidade de São Paulo, pois em 1858, data do seu
nascimento, São Paulo ganhava destaque em função da grande produção do café.
Tempo do Brasil Imperial, do II Reinado, e a explosão da importância do Estado, então
Província, se deu em 1870, com o auge da produção do café no oeste, vindo daí a luta
pela proclamação da República, com o nascimento do Partido Republicano, clubes e
jornais, a imigração se transformando num grande projeto social e também econômico.
A abolição da escravatura ia ganhando significado mais amplo, também pelos gritos dos
estudantes das arcadas do Largo São Francisco.
A Botica estava ali, paradinha na Rua São Bento, lá no cantinho, só olhando o
movimento, saboreando as transformações, de olhos grandes e abertos e brilhantes, a
construção de um Brasil novo a partir de São Paulo... manipulando medicamentos,
eliminando feridas, tanto físicas quanto de almas, fazendo uma nova história,
contribuindo para a construção de um novo tempo.
Praça da República nos anos 70
O final dos anos 60 trouxe o chamado movimento da contracultura; isto é, a tentativa de
valorização de novos conceitos na arte, na sua expressão mais criativa, cheia de novas
cores e novas manifestações de harmonia diferentes dos padrões convencionais.
Época de Guerra Fria, da terrível guerra do Vietnã, a primeira a ser transmitida ao
mundo via satélite, chocando a opinião pública em função do lançamento das bombas
napalm - aquelas nefastas bombas incendiárias.
Época de movimentos culturais de juventude, tempos das calças jeans, cabelos
compridos, recheados de pensamentos capazes de privilegiar a proposta da Paz e do
Amor... De críticas ao capitalismo excludente, responsável pela geração de numerosas
situações de confronto entre os povos. Época em que também se produziu tantos futuros
equívocos...
A Praça da República se transformou, aos domingos, num espaço para feiras de
artesanato - uma grande novidade para a época, aquela enorme explosão de cores, muita
música, o destaque para a cultura indiana, com batas coloridas, incenso, pedrarias. Pela
primeira vez, um espaço alternativo. Alternativo a todos os padrões historicamente
estabelecidos, padrões cinzas, sem as grandes vibrações, criatividade e vozes da
juventude.
Era inevitável dar um passeio por ali, sobretudo naqueles domingos de sol. Eram
chamadas de feiras hippies que, no começo, provocaram muita indignação dos mais
tradicionalistas, capazes de dizer que aquilo não era trabalho, era tudo "coisa de
cabeludo" e que a "juventude estava perdida".
Felizmente a Praça da República era, de fato, um espaço democrático no meio da
ditadura, uma contestação colorida e viva, o espaço da juventude marcar a sua presença
através de um trabalho nada convencional, mas criativo, cheio de pulsação, de alegria de
viver, abrindo-se espaços para a diversificação dos saberes e de outras tantas numerosas
praças de artesanato pelo país. Assim, São Paulo já encantava como veículo de outras
tendências, com a imensa alegria de viver e de dizer.
Na Padaria Santa Tereza
No final de dezembro, na minha última viagem à amada São Paulo, tive o feliz
privilégio de caminhar pelas ruas do centro, acompanhada do meu filho Vinícius.
Tomamos o ônibus na Avenida Francisco Morato, descemos na estação Paraíso do
metrô e fomos caminhando até o Mercado Municipal, apreciando tudo – pela Vergueiro,
nos encantamos com a imponência do Centro Cultural, onde, na década de 30, nasceu o
nosso saudosíssimo Pedrinho Mattar. E lá estava, majestosa como sempre, a Igreja
Santo Agostinho. E fomos andando, respirando a possibilidade de, em férias,
caminharmos com tranqüilidade e prazer, observando as pessoas, o comércio dos
camelôs, as lojas já com pouco movimento após o Natal. E eu ia explicando
amorosamente o trajeto, as histórias daqueles pedaços, com tantas vidas sofridas pelo
caminho e tantas vitórias. Na Liberdade, a Rua São Joaquim, onde existe um templo
budista interessantíssimo... A Casa de Portugal, imponente. Pela Avenida Liberdade
tivemos o prazer de ver um grande Papai Noel japonês, de braços abertos e, confesso,
engraçado, tal era o rosto redondamente feliz.
Mas foi na Padaria Santa Tereza que sentimos um acolhimento que, quando eu vivia aí,
não tinha condições de perceber ou sentir, tal era a minha pressa e as aflições por
atender ao chamado do relógio. Na centenária padaria fomos atendidos pelo senhor
Pedroza. Uma educação, um zelo, que me chamou a atenção e senti o momento
oportuno para uma breve conversa. Ele me contou que trabalhava ali há 36 anos, com
um rosto tão calmo, sereno e feliz que me senti incentivada ao retorno dois adias após.
Pois ele nos reconheceu, cumprimentou apertando nossas mãos, respeitosamente. Aliás,
eu mesma aproveitei essa aproximação para mais um pouco de conversa: chegamos ali
no mesmo horário e conseguimos nos sentar no mesmo lugar. Falei para ele das minhas
saudades de São Paulo e que, no ano que vem, voltaria.
O senhor Pedroza me traduziu muito a cara de São Paulo – pronta para o trabalho, ano
após ano, decidido, forte e feliz pelo que faz, compenetrado, consciente da sua função.
Um senhor de cabelos brancos, não muito alto, atende lá na parte final da padaria do
século XIX – desde 1892. Gente, a padaria é do tempo do final da Monarquia, quando
Pedro II dava os suspiros finais como autoridade no país! Provavelmente ali algumas
discussões republicanas aconteceram - quem sabe, discussões acaloradas... A crença de
que a República nos traria o progresso, como sugeria o pensador francês Augusto
Comte.
Ali se respira uma história vibrante, com grandes painéis de São Paulo pelas paredes, na
parte mais alta. Sem contar a delícia da empadinha, da esfiha, do panetone, do
brigadeiro e de tudo o quanto ali se ofereça.
Obrigada, senhor Pedroza, a sua gentileza foi um convite para outros retornos, com
muita alegria e satisfação.
Dali nos dirigimos à Catedral, mas esse assunto é pra outro dia.
No Sebo do Messias
Uma recepção belíssima, amável e o máximo de simpatia aconteceu no Sebo do Messias
nessa minha última ida a São Paulo, em dezembro último. Saindo da Padaria Santa
Tereza, onde fomos muito bem atendidos, meu filho e eu entramos, bem ao lado, ali na
Praça João Mendes, no Sebo do Messias.
No mesanino, um rapaz, jovem ainda, de aparência simples tocando violino, recebendo
os clientes da loja como se fossem convidados esperados com afeto. E o rapaz tocava
bem, com muita dedicação, exalando suavidade e beleza.
Confesso que me emocionei e muito em função do inesperado.
Com mais facilidade começamos a transitar pelos corredores da loja. Um livro bom
aqui, outro ali, as revistas convidando ao deleite de uma boa leitura. Parece até que as
páginas estavam recheadas de saudades, de afeto e de boas conversas.
Entrando na sessão musical, fui rapidamente procurar um vinil contendo músicas
executadas pelo nosso Pedrinho Mattar, que tem a cara de São Paulo, e de Santos
também - sobretudo do Embaré. Encontrei ali, cada um por 1 real... Trouxe os dois
únicos exemplares que oferecem a maravilha do Brasileirinho, do Tico-Tico no Fubá,
do Apanhei-te Cavaquinho, da Travessia que, aliás, nunca havia ouvido música tão
magistralmente executada. Guardei intacto o plástico da loja que envolveu os discos -
um saco plástico amarelo.
Hoje ouço esses discos com muita freqüência. O som vai ecoando pelo meu
apartamento enquanto vou cuidando da vida, das plantas, das provas e apostilas do meu
centenário colégio jesuíta, onde leciono há 21 anos. Tudo fica mais macio, acolhedor,
incrivelmente humano ouvindo o Pedrinho... E lembrando do centro de São Paulo, a
catedral com tantas histórias e sua escadaria belíssima, palco de tantas manifestações
culturais e sociais, como a volta pela democracia, por exemplo, a padaria Santa Tereza,
o Bixiga, a Liberdade... O Sebo do Messias, lembrando de toda a São Paulo que se
oferece para uma alma apaixonada, pois, parafraseando Drummond, o paulista pode sair
de São Paulo, mas São Paulo não sai de dentro do paulista. Ah, não sai mesmo.
Memorial do Imigrante
A primeira vez que fiz uma visita ao Memorial foi em dezembro de 2006, tendo
retornado no final do ano passado. Impossível descrever com exatidão as emoções
vivenciadas ali.
O Memorial, antiga Hospedaria dos Imigrantes, localizado próximo à Estação Bresser
do metrô, era o espaço onde se fixavam os imigrantes provenientes da Europa, que
desembarcavam no porto de Santos, no final do século XIX. Eles vieram para fazer a
América (Cosa sara questa America?), movidos pela imperiosa necessidade de garantir
a sobrevivência. Época da grande produção do café, sobretudo no oeste paulista.
Na entrada do Memorial, a arquitetura, por si, já encanta. Os jardins – o espaço onde,
certamente, as crianças brincavam nos seus primeiros momentos e os recém-chegados
divagavam sobre as incertezas na nova terra.
Vieram esmagados pela miséria, sobretudo alemães e italianos com os seus países
recém-unificados, com o trágico aumento das cobranças de impostos e a
impossibilidade de honrar os compromissos. Vieram orientados pelas falsas
propagandas articuladas pelo Senador Vergueiro, de que aqui as terras seriam dadas,
bem como a passagem de vinda. Ledo engano! Tiveram de pagar todas as despesas, com
todas as dificuldades que a situação lhes impunha.
De imediato se avista a pequena capela ecumênica. Ali pode-se supor quantas lágrimas,
quantas saudades, quantas súplicas para que as coisas dessem certo, para que a comida
não lhes faltasse. Quantos anjos, santos e divindades invocados a ter piedade de todos
eles...
Saindo da capela, uma amostra: uma pequena fazenda de café, com as suas estradinhas
organizadas, com o fruto em flor e a casa dos colonos, com a sua arquitetura precária,
com os troncos de árvores cortados para que dessem razão de ser a pequenos bancos.
As imagens são comoventes, para dizer o mínimo. São retratos, alguns de família, ao
longo dos jardins, em tamanho natural. E aí percebe-se toda a insegurança no olhar,
medo propriamente, os trajes simples e a, diríamos, tentativa de preservação da imagem,
do que se é, das roupas, da cultura, das origens. Impossível esquecer o olhar de solidão
de muitos deles.
Do outro lado, está o terminal ferroviário onde todos eles desembarcavam. O trem está
parado ali – bem como o bonde, na entrada do Memorial. As estruturas inglesas, o
relógio de parede, proveniente de Londres. É o retrato do desenvolvimento possível
tendo como base a própria Revolução Industrial do século XVIII.
Tudo isso convivendo com o contemporâneo. Ainda no andar térreo pode-se ter acesso a
terminais de computadores em que, digitando o nome dos nossos antepassados e a data
provável de desembarque, podemos ter informações preciosas sobre o nosso passado.
Lá estava eu, procurando pelos meus, que vieram da Itália... É maravilhoso ver a fila de
pesquisadores só aumentando, com orientais, libaneses, alemães... Visivelmente com
fome de História e tradição.
Gostaria de prestar uma homenagem especial à senhora Filomena Matarazzo Suplicy,
mãe do conceituado senador Eduardo, que, com muita sensibilidade, doou um busto em
bronze do senhor seu pai, Francesco Matarazzo.
Matarazzo foi um dos imigrantes pobres do século XIX que conseguiu, com muito
trabalho, dedicação e talento construir um verdadeiro império. Um dos maiores
empreendedores da história de São Paulo. Foi o responsável pela criação das Indústrias
Reunidas Matarazzo. Assim que se sentiu verdadeiramente estabelecido, passou a enviar
dinheiro para a sua distante Itália no momento em que esta padecia dos horrores da I
Grande Guerra (1914-1918), recebendo, em sinal de reconhecimento, o título de Conde
do então rei Vitor Emanuel.
Na confeitaria Di Cunto
Conseguimos chegar ao destino: padaria e confeitaria Di Cunto, no bairro da Mooca,
depois da felicidade de termos conhecido e nos apaixonado pelo Memorial do
Imigrante, bem próximo dali.
A confeitaria Di Cunto é belíssima, uma das mais tradicionais da cidade de São Paulo.
Proveniente da Itália, Donato di Cunto deveria ter aportado em Montevidéu, mas, na
condição de iletrado, acabou mesmo desembarcando no porto de Santos, com todas as
dificuldades possíveis, ainda no final do século XIX. Em março de 1935, em meio a
inúmeras adversidades, fundou a confeitaria que leva o seu nome, que é um primor em
delícias e história.
Em primeiro lugar, a Di Cunto é um retrato maravilhoso da cidade, traduzindo o espírito
de luta e empreendedorismo do trabalhador italiano, ajudando a formar o bairro operário
da Mooca, com as diversas fábricas e as vilas com as modestas moradias dos
trabalhadores, normalmente, as cores das casas obedecendo à cor original da fábrica,
como sendo uma exata extensão da condição de proletário.
A confeitaria tem cheiro de memória familiar, alguma coisa feita com um sacrifício
muito grande, mas com as mãos cheias de amor e encantamento pela vida. É sempre
vital se encantar, e eu muito me emocionei ao ver nas paredes as fotos do patriarca, da
família, da primeira loja, das coisas do tempo.
Pedi para que a gerente me permitisse fotografar o ambiente. Expliquei a situação: sou
paulistana, mas moro há mais de vinte anos longe dali etc e tal e ela se convenceu –
quem sabe se comoveu com o brilho que eu carregava no olhar, tamanho o amor que
tenho pelo assunto: imigração.
As fotos estão aqui, armazenadas no computador e já foram mostradas para vários
outros, como eu, descendentes de italianos. E confesso que as lágrimas me vêm à tona
só de pensar nas dificuldades pela sobrevivência, nas incertezas e o nunca perder de
vista a vontade e a alegria de viver.
A dificuldade maior e mais amarga que a família Di Cunto passou foi, obviamente, por
ocasião da II Grande Guerra (1939-45), quando faltava, sobretudo, o trigo, matéria-
prima básica, e ingredientes estranhos eram adicionados à massa, provocando uma má
qualidade nos pães e pastifícios. Além do mais, quantos eram os devedores?
Trabalhadores que, marcando as despesas na caderneta para quitarem suas dívidas no
final do mês, acabavam nunca mais aparecendo...
Hoje é possível sentir a beleza de uma empresa familiar, em que a palavra zelo tem o
seu sentido mais amplo, no atendimento, no sentido da dedicação na elaboração dos
doces, pizza, calzones, panetones e o que for. E o que eu senti verdadeiramente foi
paixão pelo trabalho, pela manutenção da história, um olhar atento aos clientes, olhar
amoroso, de disponibilidade, de gosto de vida, do prazer pela boa mesa.
Fiquei feliz ao fotografar o patriarca Donato. O jeitão dele me lembrou o meu avô
Sartini que, na realidade, só conheci pelas fotografias. Comprei panetones, que foram
suave e lentamente digeridos, como num ritual.
Cheguei a guardar propositalmente um deles, para que, quando a minha mãe voltasse de
viagem, comesse comigo, conversando sobre as memórias, afinal, ela chegou a São
Paulo com o final da Guerra. O panetone sendo saboreado com o tradicionalíssimo Café
da Serra – o melhor da Terra – desde 1901. É bom lembrar que foi o senhor Donato o
responsável pela introdução do panetone no Brasil.
Olha só o que diz o senhor Mário Di Leggi, cliente da confeitaria há quase quatro
décadas:
A entrega era feita numa carrocinha, as ruas eram todas de barro. Depois, veio a
evolução do automóvel e a entrega passou a ser feita através de furgão. Mais tarde, a
gente mudou o sistema de vida e passou a vir comprar aqui.
Tia Norma - que tem a cara de São Paulo
Infeliz daquele que não tem uma tia Norma. Aliás, eu já disse isso a ela algumas vezes.
Na verdade, é minha madrinha, que me crismou na catedral ainda nos anos 60, quando a
gente andava pelo centro de São Paulo com mais facilidade. A gente chamava o Centro
de Cidade... Depois da crisma, a minha mãe e eu fomos comprar umas roscas doces na
confeitaria Romagnolla, na Praça da Sé. Hoje a padaria se chama La Romana. Naquele
tempo, as roscas eram bem cheias de açúcar e de creme, uma maravilha...
Mas a tia Norma é tão especial que é impossível arrumar um adjetivo simples para ela.
Primeiro: ela é descendente de portugueses, nascida em Santos há mais de 80 anos. Por
aí a gente já começa a perceber um pouco de como a história do Brasil foi construída.
Tem paixão pelo D. Pedro I e é dona de um amor à pátria sempre muito visível e muito
quente. Sempre capaz de se emocionar quando se executa o Hino Nacional e declama,
com facilidade, a Canção do Exílio, de Gonçalves Dias. Apaixonada, como eu, pelo
Érico Veríssimo, comentava, pelo telefone, com a minha mãe e comigo sobre alguns
personagens e comentava tudo com emoção.
Apavorou-se sinceramente ao ler, nos anos 70, algumas obras do escritor da antiga
União Soviética, o prêmio Nobel Alexander Soljhenitsin, que denunciava o
totalitarismo, as atrocidades cometidas pelo Estado contra os opositores, o inferno das
prisões políticas. Ela acreditava piamente que as torturas físicas e psicológicas
aconteciam só em países socialistas. Ela jamais imaginou que a ditadura no Brasil fosse
recheada de abusos, de barbáries de todas as formas, para os gostos mais sádicos do
mundo. Ela pensava que era só lá fora, com os comunistas. Quanto a isso, a tia Norma
nunca se emendou. Ela, na ditadura, achava o Brasil o máximo, e eu quase morria de
vontade de contar pra ela algumas coisas... Mas eu sabia que politicamente a gente não
se entenderia. Jamais, como até hoje, mas o meu amor por ela é tão grande, que às vezes
eu finjo que não escuto as suas considerações nesse particular.
Sempre com uma boa conversa, divertida e sempre pronta para a vida, a tia Norma tem
uma pequena biblioteca particular e tem um lindo brilho no olhar. Mesmo agora, com
idade mais avançada, ela conversa com muita facilidade com as pessoas na rua, e
provoca admiração. Leva um saco de balas, oferece para o motorista do ônibus que,
aliás, pára para ela subir e descer fora do ponto. Tia Norma conversa com a médica,
leva presentes, aliás, a tia Norma adora dar presentes e palpites.
Num verão terrível em São Paulo, alguns trabalhadores da Telefônica estavam
pendurados no poste na porta da sua casa. Ela olhou para eles candidamente, com pena
deles por aquele suor escorrido, daquele sol absurdo e perguntou – ela fala alto -: “ei,
vocês querem um Tang?”.
Eles olharam e só responderam: “se a senhora quiser dar, a gente aceita”. Então ela
contava que preparou uma jarra com o Tang laranja e bastante gelo e levou numa
bandeja, com os seis copos, e eles adoraram.
Passaram alguns dias, lá estavam os homens trabalhando de novo. E ela com o telefone
mudo. E nada de o telefone dar sinal. Ela não teve dúvida – e nem se lembrava mais do
Tang – “ei, vai demorar muito? A minha nora vai telefonar lá de Caxias e eu quero
atender!”. Lá do poste, um dos homens olhou para baixo e só perguntou: “a senhora não
deu Tang pra nós na semana passada?” Ela disse: “foi”. Lá veio a resposta: “peraí, dona,
que o telefone já vai”.
A tia Norma ficou com a linha pronta rapidinho... E parece que o bairro permaneceu em
silêncio telefônico por muito mais tempo...
No final de 2006, levamos, meu marido, meu filho e eu, a madrinha e o meu tio ao
médico na Rua Tabatingüera. Aproveitamos para dar uma volta pelo nosso saudoso
bairro do Cambuci... E ela olhava tudo, com atenção e admiração. Fomos subindo a
Avenida Lacerda Franco, onde moramos num apartamento, passamos pela Igreja Santa
Margarida Maria... E fomos até a casa dela, no Bosque da Saúde. No caminho, numa
avenida cheia de motéis, um carro bem à nossa frente deu seta e entrou num deles. Ela
rapidinho: “deixa eu ver quem está entrando no motel... deixa ver se eu conheço”... Essa
tia Norma...
Memorial do Imigrante II
Continuo afirmando apaixonadamente que o Memorial do Imigrante, antiga Hospedaria
dos Imigrantes, no Brás, é um dos locais mais especiais de São Paulo. Especial pelo
significado histórico de transformação da economia e da sociedade brasileira, pela
riqueza nos detalhes, pela beleza da arquitetura, pela amplidão dos jardins, pelo cuidado
e zelo pela documentação armazenada, pela organização do espaço, mas, sobretudo,
pela sensibilidade que as paredes, caladamente, guardam. Respira-se ali um sentimento
de busca de milhares de pessoas, de várias etnias, uma busca incessante e apaixonada
pela vida, junto da saudade da distante pátria e de quase impossível retorno. Respira-se
existência e o imenso desejo por deixar a história cravada nos corações das futuras
gerações com amor, humildade e honra, muita honra.
Antes de chegarmos ali, já pudemos perceber a garra pela sobrevivência e identidade
abraçando fortemente as almas. E foi nas ruas próximas. Era domingo o dia da nossa
última visita ao Memorial. Era perto do meio-dia, quando terminava a cerimônia
religiosa numa igreja vizinha. O público que saía do culto exibia uma feição humilde,
trabalhadora, nordestina, sofrida; exibia aquele olhar de pergunta sobre o dia de amanhã
e da necessidade de se saber forte para suportar todas as aflições que uma cidade tão
gigantesca oferece. Afinal, São Paulo, além da cultura, da vibração, dos excelentíssimos
restaurantes, museus, galerias, teatros, cafés, shows, oferece também amarguras, uma
violência sem par, inúmeras interrogações torturantes: às vezes as cores se confundem
com a feia fumaça que sobe apagando as estrelas, no dizer de Caetano.
Mas o andar de cima do Memorial oferece brilhantemente a atmosfera do mundo do
trabalho de São Paulo antigo. Imagens belíssimas formam painéis imensos nas paredes
que, tirando-se uma foto ali, podem fazer qualquer um se sentir em plenos anos 1930 ou
1940. Existe uma pequena barbearia, uma pequena farmácia, o café, tudo com as
representações do início do século passado. As prateleiras da farmácia antiga me
provocam lembranças da farmácia nos meus tios no interior do Paraná nos anos 1960.
Na barbearia o rádio também se exibe ao lado daquela cadeira grande, estofada,
tradicional. A “rua” do pátio é de paralelepípedo, com uma carrocinha de frutas e
verduras e lá está, infantil, o verdureiro empurrando o seu instrumento de trabalho.
Emociona e muito bater foto ao lado daquele menino-homem que também fez muito
para que a cidade crescesse. A empatia é imensa.
Por outro lado, é muito inteligente e correta a apresentação em bonecos de pano dos
imigrantes em tamanho natural com os seus trajes, cores e fisionomias típicas, uns
próximos aos outros, porém sem nenhum sorriso. E, um pouco mais à frente, numa
outra sala imensa, a riquíssima apresentação de São Paulo do café, com fotos
estarrecedoras de trabalhadores com até cinco sacas de café empilhadas nos ombros.
Fotos de fazendas imensas e informações históricas precisas em grandes painéis, sem
contar a apresentação das máquinas de moer os grãos, os instrumentos de pesagem, tudo
com a mais rigorosa precisão.
E sempre é tempo de homenagearmos esses homens e mulheres que deram o sangue e o
suor para a construção de uma nova realidade. Provavelmente colheram poucos frutos
do seu trabalho. Fiquei imaginando as dores no corpo de todos aqueles trabalhadores do
café. A literatura e a própria história não se debruçaram sobre essas questões tão
humanas, tão delicadas e sensíveis. Mas a fisionomia da dor estava ali, sim, presente.
Alguns estão arqueados com aquelas sacas nas costas, como que, de alguma forma,
carregando o peso do progresso e da prosperidade... Para os outros...
Posso afirmar que o progresso também trouxe dores insuportáveis – as dores do
crescimento. Por esse e mais uma centena de motivos, esses trabalhadores de São Paulo,
sobretudo os imigrantes, que abandonaram seu chão original, devem estar presentes no
nosso imaginário, nas nossas emoções e orações, agarrados ao orgulho de ser paulista.
O trabalhador de São Paulo merece um lugar na própria bandeira e na alma de uma
cidade-monumento que a todos abriga... Apaixonadamente.
Feira livre
Provavelmente não exista nada que me encante mais que as feiras livres de São Paulo.
Livres mesmo: tem espaço para todos os gostos e tipos. Chama a atenção especialmente
pela simpatia das pessoas que circulam por ali, pelos vendedores que sabem atender e
conversar. E como uma boa feira, tem a cara da cidade-monumento! Todos se fazem
representar ali.
É poética a figura do japonês do pastel, sempre fritando coisas gostosas, como os
pastéis de palmito, de frango e de queijo. É, no mínimo, maravilhoso. O bom mesmo é
levar o pastel pra casa, pra comer depois, numa hora qualquer, sem compromisso com
nada, mesmo frio, com o relógio de lado. Tem o baianinho ralando coco, o outro
nordestino que vende alho e pimenta moída a granel. E conversam entre si, com
freqüência e sempre de bom humor.
É um misto de aromas, cores e sabores inigualável! Não tem simpatia maior que a da
japonesa vendendo sapatos e sandálias, ou da outra, quietinha, vendendo roupas. Numa
das últimas vezes que fui à feira da Vila Sônia, aproveitei e comprei uma saia (linda, por
sinal) proveniente da Índia, toda colorida, que combina com túnica de qualquer cor, e a
gente fica elegante no último.
Numa das vezes, resolvi ousar. Pedi para que me deixassem fotografar e, pra variar, eu
sempre tinha que explicar a situação. Sou paulistana, mas moro fora se São Paulo há
anos e tal e coisa... Fotografei a banca do bananeiro, com o próprio arrumando as
bandejinhas de banana maçã e nanica. Aproveitei e fotografei os dois rapazes
provenientes do Nordeste ralando o coco. Esses ficaram meio envergonhados.
Muitos gritam, fazem rima, vendem chuchu (rico em vitamina A,B,C: casca, água e
bagaço) e oferecem os seus produtos como se fosse tudo o máximo em termos de
qualidade. E a japonesa vendendo calçados e o outro vendendo vassouras... E mais
outro vendendo aqueles docinhos deliciosos também a granel, as balas de goma, de
coco, aquelas geléias coloridas. Tem até pão italiano na feira, proveniente da Padaria
São Domingos, tradicionalíssima no bairro do Bixiga, com selo e tudo. Tem a banca do
peixe, do frango temperado. Tem até uma peça grande de fígado para ser fatiado
conforme a vontade do freguês. Nas bancas dos japoneses, haja bolinho de feijão e
alimentos coloridos que eu nem conheço... Agora, aqueles sacos de arroz, de feijão, com
uma tabuleta indicando o preço do quilo, têm a cara dos tempos anteriores à
industrialização, dos tempos que a vó contava de quando veio do sul de Minas e morou
na Cantareira, perto do Mercadão, de uma beleza ímpar, saudosa, com cheiro de um
tempo muito bom, mesmo com as dificuldades da época. Tem cheiro de tempo familiar.
Eu trouxe as fotos para casa, mostrei e comentei o seu significado com pessoas
importantes para mim, que também entendem de saudades. Ampliei todas elas, coloquei
em quadros e forrei duas paredes do meu apartamento. Essas fotos (todas) me serviram
de companhia nos momentos mais difíceis, em épocas de solidão, de revezes. Afinal,
uma feira em São Paulo, não importa se no Cambuci, na Aclimação ou na Vila Sônia,
traz sempre algumas mensagens sutis, como, por exemplo, a igualdade entre as pessoas,
a necessidade que umas têm das outras, o dinamismo da condição humana, a relação de
trocas, com muita freqüência, gentil. Depois que a feira acaba, os feirantes trocam, entre
si, muitas das mercadorias que sobraram e começa a limpeza. E as ruas retomam o seu
curso normal numa cidade fervilhante, que mistura o tradicional e o arrojado. E
continua surpreendendo. Sempre.
Na Lapa dos anos 1980
Para mim, a Lapa sempre foi um bairro belíssimo, cheio de charme, com muitas ruas de
paralelepípedos. Existe paisagem mais romântica do que rua de paralelepípedo,
sobretudo quando é à noite e com aquela umidade no chão depois de uma boa garoa?
Nos anos 1980, eu e meu então namorado, atual marido, com freqüência pegávamos o
ônibus a partir da Estação Vila Mariana do metrô e íamos até o bairro que, para mim,
tem cheiro de família reunida. Passeávamos pelas ruas... Apenas olhando os detalhes, as
ruas menos movimentadas. É incrível o quanto se vê quando as pessoas não estão à
nossa frente, correndo nervosas, reféns do relógio. Perto do ponto final, o ônibus já
quase vazio, olhávamos mais, buscando novos e preciosos detalhes. Os nomes das ruas
são interessantíssimos: tem a Rua Roma, a Tibério, a Faustolo, a Trajano, a Coriolano, a
Caio Graco... Enfim, estão concentrados ali imperadores e reformistas, como o próprio
Caio Graco, que na Roma republicana, lutou pela realização da reforma agrária... Mas
não conseguiu convencer os senadores e latifundiários a dividir a terra em benefício das
massas.
Na infância freqüentei muito a Rua Caio Graco. Ali, numa vila, morava o meu tio
Pedro, irmão da minha avó. Visitávamos a casa preferencialmente aos domingos e
sempre com muita conversa animada, harmonia e novidades. Meu pai, o tio Pedro e
alguns filhos e genros jogavam cartas animadamente. Eu achava aquela casa o máximo!
Tinha vida, alegria e uma longa história de luta. O tio Pedro era filho de imigrantes
italianos e havia sofrido muito em São Paulo. A família era numerosa e muitos filhos do
tio Pedro eram metalúrgicos. Na cozinha, um pingüim sobre a geladeira Frigidaire era o
maior charme. Até hoje adoro esses pingüins... Separando a cozinha da área de serviço,
uma cortina de plástico com tiras coloridas. E tomávamos café com um pão quentinho...
Ah! Não tem pão mais gostoso que o feito nas padarias da Lapa...
Mas uma vez, na casa dele, a tristeza se apresentou para nós com lágrimas amargas nos
olhos de uma das primas, que lutava para sorrir e receber as visitas. O irmão dela se
tornara preso político. Era o ano de 1969... E só quem viveu o período sabe o que é
terrorismo de Estado... Esse primo estava sendo torturado e eu, na época com meus onze
anos, não me esqueci mais daquele dia, daquela cena, dos olhos vermelhos e da
tentativa de dizer que tudo estava bem. Fiquei perturbada demais com tudo aquilo.
Durante um tempo, fiquei fora da casa, sentada sozinha na calçada daquela vila, com
um livro na mão, pois no dia seguinte eu ia ter prova e queria estudar um pouco mais.
Não consegui estudar e fiquei pensando no fato. E sei que, a partir daquele momento, a
palavra injustiça, para mim, passou a ser a mais perversa, a mais hedionda possível, a
mais abominável: a negação das liberdades individuais, a negação do ser em nome do
Estado. Muito das minhas decisões políticas e da minha visão de mundo tiveram origem
ali, na casa do tio Pedro, na Rua Caio Graco.
E nos anos 1980, meu atual marido e eu caminhávamos por ali... Procurando história
pelas placas de ruas, nas construções. Conhecemos uma pizzaria muito especial na Rua
Trajano. Eu nunca estive numa pizzaria tão simples. Com dois andares, fomos logo nos
acomodar no andar de cima e nunca comemos uma pizza de frango tão gostosa. E com
guaraná Brahma bem gelado! A outra metade era de calabresa, mas... Que tristeza...
Tinha muita cebola...
Hoje, passeando por ali, como fizemos nas férias de 2006, paramos numa das padarias
em pleno primeiro de janeiro... E comprei pão, inclusive pão de mel... E comemos no
carro mesmo. Eu não tive paciência de esperar chegar em casa para comer o pão com
cabe caboclo. Aliás, o gosto da comida é fundamental para sentirmos o sabor das almas,
o aroma, o gosto pelo lugar. Não é por acaso que o brilhante escritor, o dominicano Frei
Betto, aliás, um outro preso político da ditadura, diz que não é por acaso que, dentro da
boca, existe um pedaço chamado céu.
Céu da boca... Céu da Lapa... Céu de São Paulo... Tudo se junta, nem sempre
harmoniosamente, e me mantém viva, atuante, militante pela dignidade, pois foi aí que
também aprendi que corpo e alma se mesclam para a construção da beleza...
Infinitamente.
Cambuci da década de 60
Será que tem doçura maior que comer algodão doce – daqueles de carrinho – e
machadinho, daquele vendido por um senhor quieto, de roupa já gasta, com uma caixa
de madeira fechada e que se assentava num tripé?
Assim passavam, de vez em quando, alguns vendedores de doces no bairro do Cambuci
da década de 60.
O senhor que vendia algodão doce era simpático e quieto, mal conversava com as
crianças. Parava o carrinho e ia formando as argolas grandes do algodão que saíam da
maquininha. Eu gostava de vê-lo despejando o açúcar ali dentro de um pequeno círculo
e que logo começava a girar e as doces argolas iam se formando, poeticamente. Ele
puxava o doce numa beirada e ia organizando as tiras num pequeno pedaço de papel
branco. E como era bom! Quando ele tocava a buzina, a minha irmã e eu pedíamos:
“Manhê, pode comprar algodão doce?” E a dona Célia deixava, mas também não era
sempre. Eu segurava a mão da minha irmãzinha, que era linda, e íamos deleitar o
paladar. Era alguma coisa especial, meio divina, mágica e que logo acabava.
E no outro dia passava o senhor que vendia o machadinho. Na verde caixa de madeira o
doce era dividido em duas partes: uma parte do doce era cor-de-rosa e a outra branca. A
gente pedia para ele misturar um pouco de cada e ele cortava e também colocava num
pedacinho de papel branco. Numa mão ele carregava a caixinha, na outra, o tripé.
Quando algumas crianças o cercavam, ele parava no início da vila da Rua Albuquerque
Maranhão e montava o seu negócio, com humildade e boa vontade.
Na mesma época era comum, pela manhã, passar um senhor mais humilde, de origem
provavelmente libanesa – pelo sotaque – e ia cantarolando alto: “compra roupa velha,
roupa velha, roupa velha, roupa!” Era um senhor alto, sisudo, de barba cerrada, um falar
alto agudo, e eu tinha um pouco de medo. Eu não sei quem era esse senhor, mas por
muito tempo freqüentou aquela rua.
A Rua Albuquerque Maranhão era interessantíssima. Existia ali um conjunto de dez
sobrados iguais, sendo 5 de cada lado, separados pela vila onde parava invariavelmente
o Senhor que vendia o machadinho. Eram, na origem, casas dos operários que
trabalhavam na tradicional fábrica de chapéu Ramenzoni, que ficava nas proximidades,
na Rua do Lavapés.
E como a infância era feliz, na simplicidade e na ausência de malícia! Naquele tempo as
crianças não gritavam, viviam apenas.
Íamos à escola e respeitávamos muito as professoras. Tive muito orgulho quando a
minha primeira professora foi ao meu casamento, quase vinte anos depois de ter sido
aluna da dona Aurora. Dividíamos o nosso lanche sem nenhum problema e ninguém
ficava constrangido por não ter levado nada para comer na hora do recreio. Aliás,
minutos antes do intervalo, a dona Abigail, uma senhora negra, alta, que fazia a faxina,
passava com uma caixa de papelão de sala em sala, parava na porta e perguntava: “tem
lanche hoje?” Levávamos sempre um lanche a mais para oferecer a quem não tinha
nada. Naquele tempo não se falava em ética, ninguém se preocupava com isso, até
porque o nosso comportamento era ético, de partilha, de alteridade. À tarde fazíamos a
lição de casa sem nenhum mistério. À noite, tomávamos café com leite e pão com
manteiga e íamos dormir para acordar cedo e recomeçar a vida. No dia seguinte passava
o Senhor do algodão doce ou o Senhor do machadinho ou o Senhor da ”roupa velha,
roupa velha, roupa”. A vida se encharcava de poesia e de esperança.
A kombi do bolacheiro
A vida parecia mansa nos anos 60. Pelo menos até 64, antes do golpe. Aliás, o golpe,
que inventaram de dizer que era revolução e que o Brasil iria pra frente, provocou uma
anestesia profunda em grande parte da sociedade. A outra parte, consciente das perdas e
do tiro na alma, partiu para a luta em busca de direitos, de oxigênio, de dignidade,
enfim.
Mas quando se é criança e não se conhece a tragicidade que a ditadura provoca, a gente
contempla e vive.
E então, em dias comuns, sem nada de especial, sem data marcada, passava pela nossa
rua, a Albuquerque Maranhão, uma Kombi branca, muito limpa, e do alto-falante vinha
a grande notícia: “chegou o bolacheiro, chegou. É bolacha, biscoitos e macarrão direto
da fábrica...”.
O motorista, então, parava o carro e lá chegava a dona de casa para a compra do
macarrão, a bolachinha para o café da tarde, as balas para os netos. Mas o pacote de
macarrão talharim a gente via de longe, até porque paulistano adora comer macarrão e
as quintas e domingos é sempre com frango, que pode ser assado, ensopado, não
importa, mas é frango.
Após o simpático anúncio íamos correndo e o bolacheiro – que nunca soubemos o nome
do protagonista – abria também um gavetão da Kombi e lá tinha de tudo: chocolates,
balas, drops, chicletes. Era um delírio comprarmos um drops com balas mastigáveis
chamado Banda e eram várias as opções de sabores. O mais gostoso era Banda laranja,
mas tinha também de abacaxi e morango. Às vezes levávamos a Banda para o colégio,
para a hora do recreio. Continuávamos a vida depois da saborosa aquisição e o
bolacheiro ia embora, voltando somente no meio da semana seguinte.
Num desses dias, o meu pai chegou em casa exibindo, orgulhoso, um carro novo, zero.
Era um fusca 67 vermelho. Era no 11 de setembro, quinta-feira e o almoço foi muito
alegre. O macarrão com frango, naquele dia, desceu que foi uma maravilha. Afinal, um
carro zero quilômetro naquele tempo era sinal de vitória, o resultado de uma longa luta.
E com freqüência vinha a minha mãe falar do Juscelino, “que implantou a indústria
automobilística no Brasil”. A dona Célia sempre falou muitíssimo bem do conterrâneo e
ai de quem fizesse alguma crítica ao homem que gostava da música “como pode um
peixe vivo viver fora da água fria. Como poderei viver?”... Mas a chegada do carro foi
um deslumbramento só. Até hoje tenho esse carro, guardado na minha casa de São
Paulo, na vila Sônia, que guarda memória, várias viagens a Minas, quando voltava
abarrotado de coisas gostosas, até penca de banana verde, que amadurecia no caminho...
Rimar a voz do bolacheiro com o fusca vermelho me provoca a lembrança de uma
infância simples e humana, com a certeza de que viver era bom e necessário para se
construir felicidade. Aquelas gerações tinham uma visão de mundo encantadora: o
esforço para que a vida fosse plena deveria estar ao lado da beleza, da contemplação, do
olhar as luzes da cidade... E planejar... E sonhar.
Eu vivia intensamente e feliz ao olhar, da janela do meu quarto do sobrado da Rua
Albuquerque Maranhão, as luzes da cidade. São Paulo à noite vista de uma janela não
oferece riscos, medo ou apreensão. Oferece a imensa oportunidade de criar, imaginar e
se deslumbrar.
Minha avó morou na Cantareira
Desde criança eu ouvia falar na Cantareira. Quando a minha avó falava dali existia um
gosto de saudade e de ternura. Logo aparecia a minha mãe ou algum dos meus tios e
entrava na conversa, falando especialmente e com muito prazer do mercadão.
Eu ficava imaginando como era ali, as pensões, os bares, as pessoas andando
apressadamente cumprindo à risca os seus horários. Imaginava os homens com seus
ternos, muitas vezes puídos, e também o local sem muita cor. Eu sei o porquê da
ausência de cores no meu pensamento: é que a família da minha avó chegou para morar
naquela região no final da II Guerra, com o sentimento dividido, a insegurança de quem
sai do interior de Minas para uma cidade grande com os filhos ainda muito jovens e
todos precisando trabalhar. Fim de guerra, a ditadura do Getúlio dando os seus últimos
suspiros, como diria um dos meus tios, “no pau da viola”. Era hora da economia se
reorganizar, da vida se ajeitar em todos os aspectos, com todas as incertezas,
necessidades e expectativas. Tudo junto.
Ali a família da minha avó começou a ter uma nova visão de realidade. Já, naquele
tempo vinham buscando estudo para os filhos e, com muito orgulho, minha mãe foi
aluna do colégio Caetano de Campos, na Praça da República, onde também estudaram o
grande Sérgio Buarque de Holanda, a Cecília Meirelles e tantos outros notáveis da
cultura brasileira.
A minha avó era filha de imigrantes italianos. O sogro da minha avó, imigrante também,
figura na lista dos pioneiros da imigração italiana em Minas Gerais.
Trouxeram valores magníficos: amor ao trabalho, ao conhecimento, um enorme amor à
leitura e uma profunda manifestação de respeito ao próximo sem muitas palavras, sem
muitos detalhes, mas com atitudes pacíficas. Nunca vi nem ouvi a avó reclamando ou
desdenhando dos outros, apenas do governo militar, afinal lucidez nunca lhe faltou.
Tinha verdadeira compaixão pelos mais pobres, pelos sofridos.
Quando na Revolução de 30 paulistas e mineiros passaram a se desentender em função
da instabilidade política e econômica os meus avós souberam se posicionar a favor da
vida e da dignidade, e não a favor de diferentes segmentos políticos. Na ocasião o
governo do mineiro Antônio Carlos de Andrada se aliou a Getúlio Vargas do Rio
Grande do Sul para a formação da Aliança Liberal contra São Paulo de Júlio Prestes.
Era período eleitoral e o então presidente Washington Luís (“o paulista de Macaé”)
tentava dar um golpe a favor de São Paulo, com fraude eleitoral e tudo. Bem, aqueles
jovens soldados paulistas marchavam em direção a Minas e quando chegaram ao sul do
estado, cambaleando, enfraquecidos e famintos os meus avós cuidaram das suas feridas,
fizeram chás, não os vendo como supostos inimigos ou ameaçadores à ordem. Eram
apenas jovens soldados, “quase sempre perdidos de armas na mão”, diria Vandré.
Quando eu perguntava para ela das lembranças da guerra o Mussolini me vinha
rapidamente à memória. Eu perguntava para ela: “Vó, a senhora se lembra do
Mussolini?” Ela nem se dava ao trabalho de responder, apenas dava um leve sorriso
debochado e prolongado, mas se lembrava do rei Vitor Emanuel III, que antecedeu a
ditadura fascista...
Foi com minha avó que aprendi muito: o respeito à vida em qualquer circunstância, a
tolerância, a arte do encontro. O respeito e o profundo amor pelo mais velho.
Há alguns anos eu participava de um grupo que se reunia para debates de filosofia e
religião, análises de textos e então o nosso orientador pediu para que citássemos uma
pessoa com grande competência para viver. Falou-se muito, de São Francisco de Assis,
de Gandhi, de Chico Xavier. Quando o orientador me perguntou: “E aí,Vera, quem você
conheceu com grande competência para viver?”. Respondi, sem titubear: “minha avó”.
Procurei o rosto do paulistano
Faz alguns anos, numa das minhas tão esperadas férias em São Paulo, resolvi deixar o
meu filho, ainda garoto, na casa da minha sogra, onde nos hospedávamos, para que eu
pudesse sair sozinha, em paz, e fotografar a cidade. Durante vários dias, me pus a essa
interessante tarefa, de caminhar, andar de ônibus, metrô e muito, muito a pé. Olhando,
passando lentamente pelos lugares que eu poderia melhor observar e me apaixonar,
mais ainda, pelo rosto do paulistano.
Eu me lembro que comecei a observação e a busca pelas imagens pelo próprio bairro
onde me hospedava, a Vila Sônia. Fotografei um casal e uma criança, pessoas simples,
com aparência nordestina, que muito ajudaram no crescimento cultural e econômico da
cidade. Eu pedi licença, disse a eles qual era o meu objetivo e eles me atenderam
prontamente. Agradeci e continuei a minha jornada.
É fantástico fotografar o rosto do paulistano! Existem, naqueles olhares, todas as
misturas de sentimentos do mundo: tem o olhar do pouco sono, do cansaço, mas
também da esperança, da beleza, da ternura. Tem o olhar da apreensão, da compaixão,
da indignação, mas existe, muito profundamente, o olhar do amor pela vida. Isso a gente
percebe mesmo, com enorme freqüência, graças a Deus.
Tomei o ônibus em direção à Avenida Paulista e, em plena Avenida Rebouças, não me
contive, toquei a campainha e desci. Alguns pontos antes do Hospital das Clínicas,
numa transversal, avistei uma caminhonete azul escura, escrito DOCES NEUSA. Desci
na mesma hora com a determinação em fotografar o veículo. Quantas vezes eu vi esse
carro pelas ruas do Cambuci, na minha infância, passando suavemente. Eu nunca
consegui enxergar o rosto do motorista, mas o interesse era sempre o pedaço do céu que
existiria ali dentro. Doces de leite, em pedaços pequenos, pé-de-moleque, paçoca,
dadinho. Só quem conheceu o doce Dadinho sabe o que é sabor de infância, de sonho.
Eu não conheço a história desse docinho de amendoim, mas sempre achei o máximo ter,
anexo ao nome, a homenagem ao IV Centenário de São Paulo. Eu me lembro que lá
pelos meus 12 anos, quando morávamos na Rua Albuquerque Maranhão, um tio do
interior nos visitou com a família e, quando o caminhão passou, ele, cheio de doçura na
alma, comprou uma caixa fechada de Dadinho, contendo 50 docinhos... Para mim essa
experiência foi conhecer a ante-sala do paraíso. Na minha alma infantil, essa
experiência perdurou por muito tempo... E fui caminhando em direção à Paulista...
Como sempre, com o coração esbanjando encantamento pelo MASP, onde tantas e
tantas vezes aproveitei para visitar o Portinari, o meu querido Candinho de Brodosqui e
tantos outros grandes mestres. Entrei na Rua Frei Caneca, visitei a igreja onde me casei.
Bem, a verdade é que fui caminhando até o Bixiga. Fiquei felicíssima quando, em plena
13 de Maio, uma mulher me pediu informações e eu soube orientá-la qual caminho
seguir, mesmo depois de tantos anos vivendo fora dali.
No tradicional e interessantíssimo bairro italiano visitei a padaria Basilicata - desde
1914 - e comprei doces muito gostosos e levei um tanto para a minha avó - aquela que
morou na Cantareira. Na porta de uma das deliciosas vendas de alimentos de origem
italiana, solicitei ao proprietário, o Sr. Salvatore, que segurasse uma caixa de macarrão
Barila para que eu pudesse fotografá-lo. Pedi licença e entrei, na hora do almoço, na
cozinha de uma cantina próxima à igreja de Santa Achiropita e me deparei com uma
cena inesperada: todos os cozinheiros eram nordestinos e preparavam a magnífica
comida italiana. Esperava encontrar ali uma mamma gorduchinha, simpática, rosada ou
um nonno cheio de tradição e de experiente paladar. No entanto, existiu, sim, muita
beleza o que vi. Vi a São Paulo de todos, onde cabem todos os saberes, todas as formas
de se procurar a sobrevivência, todas as experiências de vida.
O resultado das imagens obtidas a partir dessas andanças foi mostrado para pessoas
amigas e o mais importante para mim foi o fato de eu ter ampliado essas fotos e
decorado a sala do meu apartamento em Florianópolis, esbanjando cores e abraços de
uma cidade que acolhe todos os povos, de todas as cores, saberes e paixões.
Meu Doce Adoniran
Comecei a me entender como pessoa crítica quando me apaixonei pelo trabalho de
Adoniran Barbosa. Sempre me chamou a atenção aquele senhor de refinado bom humor
- o humor dos sábios -, exibindo um português tão propositalmente incorreto. É bom
saber que o exagero nos erros veio por indicação do sexagenário conjunto musical Os
Demônios da Garoa, acreditando que, assim, as músicas chamariam mais a atenção do
público, teriam mais charme... E têm mesmo.
Tenho um imenso prazer ao utilizar as músicas de Adoniran na sala de aula, me
ajudando a explicar o progresso de São Paulo desde a década de 50. Podemos
compreender uma parte significativa da nossa história simplesmente analisando o
personagem assumido pelo filho de imigrantes pobres, o modesto João Rubinato.
A família de Adoniran veio de Treviso, na Itália, se fixando em Jundiaí para trabalhar
nas fazendas de café. Como a exploração era absurda, a família, como tantos outros
recém-chegados, acabou se dirigindo para a capital, na esperança de construir uma vida
mais honrada, pautada no esforço e no trabalho árduo. Ali, o então João Rubinato foi de
tudo:
entregador de marmitas, varredor numa fábrica de tecidos, trabalhou no carregamento
de vagões de trens suburbanos, foi tecelão, encanador, pintor, garçom, metalúrgico e
vendedor de meias, para depois abrir espaços para o rádio e se destacar como um dos
mais representativos sambistas do Brasil.
Suas letras tinham como ponto de partida a tragicidade do cotidiano de uma cidade
repleta de imigrantes pobres, que precisavam sobreviver à luz de tantas diferenças e
desigualdades. Costumava dizer que "Pra escrevê uma boa letra de samba, a gente tem
que sê em primeiro lugá anarfabeto".
"Saudosa Maloca", por exemplo, escrita em 1951, retrata uma cidade que se verticaliza,
relata o drama daquele que perde o pouquíssimo que tem e se refere ao problema da
falta de identidade do trabalhador pobre. "Foi aqui, seu moço, que eu, o Mato Grosso e
o Joca construímos nossa maloca". E, pior, retrata a impotência desses trabalhadores
frente às transformações da cidade em pleno momento de industrialização: "Peguemo
tudo as nossas coisa e fumos pro meio da rua apreciá a demolição".
E tudo isso preservando o romantismo, uma serenidade ímpar, sem nenhum traço de
rancor. "Cada tauba que caía doía no coração". "Os homi tá com a razão, nós arranja
outro lugar".
A simplicidade, o sentimentalismo de "Trem das Onze", de 1965, são inigualáveis. Ele,
sentindo muito, deixa a sua amada porque tem mesmo que tomar o trem, senão "só
amanhã de manhã" (mostrando a precariedade dos meios de transporte para os mais
simples. Afinal, ele morava em Jaçanã). Ao mesmo tempo, existe a responsabilidade
para com a mãe: "Sou filho único, tenho a minha casa pra olhar".
Eu sempre tive o imenso prazer em perceber o quanto se conhece Adoniran, mesmo os
mais jovens, que não resistem ao "Trem das Onze". Sinto uma imensa satisfação por
isso, sobretudo como paulistana conhecedora do Bixiga, local tão freqüentado pelo
nosso brilhante sambista.
Nas nossas últimas férias em São Paulo, tivemos o privilégio de, na casa de um primo,
passarmos o primeiro dia do ano na ilustre companhia de um senhor já idoso, com uma
grande beleza no olhar e maciez na voz, uma simpatia: o Sr. Oswaldo Silva, que
acompanhou com o seu teclado, durante quarenta anos, vários cantores na extinta casa
noturna Som de Cristal.
Ele já havia tocado com Jamelão, Nelson Gonçalves, Orlando Silva, Jair Rodrigues,
enfim, a nata da boa música de tempos atrás. Pedíamos e ele ia tocando e cantávamos
felizes, lembrando e vivendo com intensidade, respirando um pouco de arte e da
sabedoria dos mais velhos. Naquela tarde, a mais feliz no ano para mim, cantamos
muito as maravilhas de Mário Lago e de Adoniran, e eu, muitíssimo orgulhosa por ver
meu filho tão jovem sabendo cantar o "Trem das Onze".
Mesmo em meio a tantos problemas sociais, o elegante bom humor permaneceu
inabalável, merecendo destaque esse pequeno trecho extraído do "Samba no Bixiga":
Domingo nós fumo num samba no bexiga
Na rua major, na casa do nicola
A mesa não deu conta
Saiu uma baita duma briga
Era só pizza que avuava junto com as braxola
(...)
Num tem importância
Foi chamada as ambulância
Carma pessoal,
A situação aqui está muito cínica
Os mais pior vai pras clínica
Pela Sears
Desde a minha infância, ouvia as doces lembranças da minha avó. Uma delas era sobre
os passeios à Sears, bem ali, na entradinha da Avenida Paulista. Eu a ouvia com atenção
e ela sempre tinha um bom sorriso, ao contar que passeava por ali com o meu avô, a
minha mãe e a neta mais velha, a Suzi, quando moravam na Rua Abílio Soares, ali
mesmo no Paraíso.
As lembranças eram sempre tão prazerosas que, desde então, me apaixonei por aquele
lugar.
Quando vinham as primas do interior para um passeio em São Paulo, ficando
hospedadas na nossa casa, não tinha jeito: aos sábados à noite, tomávamos o ônibus em
direção à Avenida Paulista e nos dirigíamos ao local, que se destacava pelos dizeres
"satisfação garantida ou seu dinheiro de volta". Era uma delícia! Olhávamos tudo, todos
os departamentos com muita curiosidade e respeito. É sim, a Sears nos dava uma
dimensão de respeito; afinal, a minha avó freqüentava aquele lugar.
O dinheiro era sempre muito curto, mas nada disso nos aborrecia. Aquele lugar me
remetia a um tempo mais distante, com idealismo romântico, muito reconfortante e
bom, em que não se falava em medo, mas falava-se em andar de bonde, abrir espaços,
ter esperança. Era época de recordações com os tios, lembranças de propagandas
antigas, como "Dura lex sede lex, no cabelo só gumex". Tempo em que o meu tio Dante
usava Quina Petróleo (Juvênia - Petróleo Quinado) para evitar a queda de cabelo... Mas
o cabelo caiu do mesmo jeito.
Eu estava prestes a me casar e ganhei um dinheiro de presente de um dos padrinhos,
amigo do meu pai de longa data. Esse amigo era de um sorriso largo e encantador,
muito divertido, sempre solícito e muito pronto para atender, quando das terríveis dores
de estômago do meu pai. Eu sou eternamente grata a ele, não pelo dinheiro, mas pela
serenidade com que abraçou a mim e ao meu irmão, quando de uma das internações do
meu pai, na Beneficência Portuguesa. Ele que nos levou até lá para uma visita e saiu
abraçado conosco, sorrindo e tentando nos dar algum alento. Então foi o padrinho certo,
inesquecível e muito companheiro.
Mas então, os noivos ganharam um dinheiro, e fomos até a Sears comprar o nosso
guarda-roupa. Claro, não dava para comprar um dormitório inteiro. Mas eu fiquei tão
contente! Um móvel claro, com três gavetas, espelho, muito elegante e que hoje está no
quarto do meu filho, inteiro, marcando presença o carinho do amigo da família e da
Sears, com toda a simpatia e inteireza.
E assim passeávamos. A última vez que a minha avó esteve ali, com a minha mãe,
aproveitou e comprou para mim um recipiente de um plástico muito bonito, e que era
uma espécie de guarda-bolachas. Até hoje o tenho guardado, depois de muito uso. A vó
me deu o presente com muito sorriso, achando lindo. Já casada, um dia passei por ali
sozinha e comprei uma escovinha de cabelo para bebês - comprei azul. Eu pensava:
“Quando o meu Vinícius nascer, já tenho uma escovinha comprada na Sears.”.
Acredito ser dispensável dizer que a escovinha está guardada ainda hoje, juntamente
com o pacotinho verde da loja. O meu Vinícius nasceu depois de uns quatro anos da
compra. Ainda bem, pois a Sears acabou virando Shopping Paulista. Eu me nego a
entrar ali. Tiraram o lugar que a minha avó, o avô, orgulhosos pela neta, passeavam,
num tempo em que nem se falava em lazer. Era o único lugar onde minha avó poderia
descansar, depois de tanto trabalho que ela tinha, na pensão da Rua Abílio Soares.
No Museu de Zoologia
Recém-casada, lá estava eu tentando organizar a minha vida. Para mim, era
extremamente absurda a idéia de ter que cuidar de casa, usar liquidificador. Batedeira,
então, nem pensar. Tudo que cheirasse a submissão era tão abominável e estarrecedor
que nem era preciso gastar tempo com esses pensamentos esdrúxulos.
Saída recente da Faculdade de História da USP, sempre me orgulhei de pertencer à
geração dos anos 60, época de efervescência cultural, de feminismo, de busca dos
direitos humanos, de luta contra a ditadura, de participar de greves, assembléias e
passeatas. Tempos de “greve geral derruba general” em pleno Anhangabaú, com
milhares de pessoas comprometidas com a construção de um projeto de nação.
Então, eu continuava - como sempre - abraçando a cultura como objetivo maior de vida.
O saber representa a forma suprema de beleza, a vibração maior da vida, em todos os
momentos, com todos os encantos, encontros e paixões.
Estava matriculada num curso sobre cultura indígena no Museu Paulista - o Museu do
Ipiranga. Aprendi muitíssimo e sou imensamente grata à antropóloga Dra. Tekla
Hartmann, por tudo o que me orientou, com refinado bom humor, inclusive com o
inusitado passeio pelo teto do Museu. A paisagem lá de cima é completa. Os jardins se
tornam pequenos e, mais do que nunca, poéticos e coloridos. Aquela parte de São Paulo
vista de cima tem um aspecto elegante demais, em todas as dimensões, com um incrível
ar de serenidade e pureza.
Mas naquele sábado, as aulas foram suspensas. Algum problema ocorreu com a
professora. E eu pensei: “e agora?”. Eu havia acordado cedo, tomado dois ônibus, um
frio danado e, ainda por cima, nublado. São Paulo nublado não tem nada de poético. É
assustador! Então, para não perder a viagem e não voltar para casa do mesmo tamanho
que saí, sem ter aprendido nada, compreendi que a minha única alternativa era tentar
uma entrada no Museu de Zoologia, bem pertinho, na Avenida Nazaré.
Estava fechado. Bati e um funcionário jovem veio abrir a porta. Pedi licença, mas ele
não permitiu a minha entrada. Insisti, respeitosamente. E ele disse: "Não pode, moça, o
Dr. Paulo está lá em cima". Respondi: “Se ele reclamar, eu canto Ronda para ele...”.
Foi assim que entrei no Museu de Zoologia. O Dr. Paulo que estava lá em cima, e que
não poderia me ver, era nada mais que o diretor do museu, uma das maiores autoridades
no campo da Zoologia e, também, um dos mais respeitados sambistas do país: Paulo
Vanzolini.
Acredito ser impossível um paulistano não conhecer Ronda. "De noite eu rondo a
cidade a te procurar, sem encontrar. No meio de olhares espio, em todos os bares você
não está".
O paulistano Paulo Vanzolini passou a freqüentar as rodas boêmias de estudantes e a
compor seus primeiros sambas ainda quando estudante de Medicina, nos anos 40. Em
1945, compôs o samba Ronda, sendo a música gravada apenas em 53. Mas quando
perguntado sobre tal criação, afirma ter sido uma bobagem que fez aos 21 anos e que
não gosta da composição, alegando ser piegas. Diz: “Minha filha sempre fala que, já
que fez, agora agüenta!”.
Ronda é considerada, ainda hoje, uma das músicas mais solicitadas nas noites
paulistanas. E Vanzolini afirma que toda a sua biblioteca de Zoologia, que é uma das
melhores do mundo na área de répteis e anfíbios da América do Sul, foi comprada por
causa de Ronda e Volta por Cima. E Ronda continua lhe rendendo dinheiro até hoje.
Continua Vanzolini: “A coisa mais engraçada é que o povo acha que Ronda é um hino a
São Paulo, mas, na verdade, ela é sobre uma mulher da vida. Naquela época, servindo o
Exército, eu patrulhava o baixo meretrício. Uma noite, na saída, eu estava tomando um
chope, ali pela Avenida São João, quando vi uma mulher abrindo a porta do bar e
olhando para dentro. Imaginei que ela estava procurando o namorado. Ele pensava que
era para fazer as pazes, mas o que ela queria era passar fogo nele mesmo”.
Bem, quando ali, dentro do museu, eu manuseava documentos, olhando para as
exposições de répteis de todos os jeitos, é que me dei conta: o funcionário poderia ficar
numa situação embaraçosa caso o Dr. Paulo visse a intrusa. Assim que escutei o autor
de Ronda arrastar a cadeira no andar de cima, resolvi sair de fininho, agradecendo a
gentileza do rapaz, com um medo enorme que ele viesse a perder o emprego por minha
causa. Rápido estava eu, de novo, andando pela Avenida Nazaré, esperando o ônibus e
com um receio maroto de que "nesse dia então, iria dar na primeira edição: cenas de
sangue no bar da Avenida São João"
Da Janela do Ônibus elétrico
Eu me lembro muito bem do ônibus elétrico. Grande, azul escuro, imponente, elegante.
Quando pequena, confesso que tinha medo dele. Mas eu subia os degraus com o auxílio
da minha mãe, e íamos do Cambuci ao centro da cidade. Lento, quase sem nenhum
barulho, ele ia. Ao ser acionado, um pequeno solavanco. Eu achava engraçado: no fusca
vermelho do meu pai existiam três pedais e não havia solavanco. No ônibus elétrico,
existiam apenas dois. Esse fato aguçava em muito a minha curiosidade.
Eu achava o motorista sempre muito sério. Eu pensava: “Será que, para dirigir um
ônibus assim, o homem tem que ser sério?”. O cobrador também não era lá muito dado
a sorrisos... Mas andávamos nele uma vez por semana; isto era sagrado!
Ainda me recordo deles na zona leste, enfileirados na Avenida Celso Garcia, não
provocando fumaça, ruído. Apenas iam e vinham, levando muita gente. Foi numa das
janelas desses ônibus que vi, pela primeira vez, também na zona leste, uma casa com
uma tabuleta na porta anunciando o ofício da moradora: "parteira". Eu fiquei confusa
com isso: em plena década de 80 e ainda existiam parteiras anunciando seu trabalho
com muita tranqüilidade.
Também da janela do ônibus, presenciei faces de São Paulo nem sempre adoráveis. Mas
consegui ver também, das mesmas janelas, o anúncio da primavera, sorrindo feliz e
esperançosa a quem passava.
E lá dentro consegui perceber solidariedade entre os passageiros. Homens ainda cediam
os seus lugares a senhoras, e isso eu achava belo. Não me lembro de ter presenciado ali
alguma discussão ou mal-entendido. Muita gente aproveitava e lia. Como eu também,
algumas vezes, me deleitei com poemas e livros de humor. Numa das vezes, eu
gargalhei ao fazer as minhas leituras. Eram textos de caráter "esotérico", escritos pelo
Bussunda. O meu riso solto chamou a atenção, sem que eu quisesse. Fechei o livro,
obviamente.
Uma vez consegui chegar com um deles até a Penha e fiz ali um passeio
interessantíssimo. Comemos pizza de frango, meu marido e eu, pela primeira vez.
Mas, um dia, voltando da escola para casa, com a minha mãe e irmão, um senhor,
sentadinho, no auge da simpatia e que me lembrava Drummond, se ofereceu para
segurar o meu material escolar, enquanto eu ia em pé mesmo, me segurando como
podia. Quando eu pedi o meu material de volta, agradecendo, ele perguntou: "Ficou de
castigo hoje?". Balancei a cabeça negativamente, com muita vergonha. Afinal, eu era
comportada e me senti ofendida com a pergunta.
Pergunta possível só dentro de um ônibus elétrico, que tinha uma feição muito
cotidiana, um rosto sereno e macio de São Paulo.
Sesc - Fábrica da Pompéia
Freqüentei muitas vezes o Sesc da Pompéia. Já faz mais de duas décadas, quando eu
ainda morava na Vila Sônia. Ficava maravilhada com aquela construção, com a beleza
das formas, das possibilidades culturais que aconteciam - e acontecem - ali dentro.
Confesso que há anos não o visito. Pura falta de oportunidade, até porque tenho que
selecionar o meu roteiro cultural e administrar o tempo a cada ano que visito a minha
saudosa cidade. Para esse final de ano, a visita será prioridade. Vou visitar o Sesc, com
muito orgulho e enorme prazer, apresentar aquele espaço fantástico ao meu filho,
aprender muito, me encantar, saborear as lembranças que ficaram docemente gravadas.
Quando eu ia à Pompéia com o meu atual marido, sentíamos um imenso prazer ao
conseguir enxergar um espaço de muita história e muito trabalho. Aliás, como não
poderia deixar de ser, existiam - e acredito piamente que ainda existam - boas pizzarias
por ali, com aquele inconfundível cheiro da lenha. Cheiro de forno a lenha me remete a
uma vida extraordinária, familiar, amigável, cheia de afeto, mas um afeto duradouro,
pleno e muito sincero.
Voltemos ao Sesc. De longe, é possível enxergar aquelas formas magníficas, as janelas
desiguais e humanamente trabalhadas. Tudo projetado pela brilhantíssima arquiteta Lina
Bo Bardi.
Nascida na capital italiana no início da Primeira Guerra Mundial, estudou Arquitetura
na Universidade de Roma. Foi, lentamente, ganhando espaço, mas, nos anos 40, com a
Segunda Grande Guerra, teve seu escritório bombardeado. As dificuldades só se fizeram
aumentar. Ingressou no Partido Comunista Italiano, lutando na resistência ao Fascismo
de Benito Mussolini. Para mim, foi inesquecível uma entrevista sua na Folha de São
Paulo, ainda no final dos anos 80, em que afirmava: "para nós, da resistência ao
Fascismo, cada minuto de vida era sinal de grande vitória".
Chegou ao Brasil em 1946, carregando inúmeros traumas de guerra, com o marido
Pietro Maria Bardi. Passando a conhecer melhor o Brasil, encantou-se com a cultura
popular, deixando que a mesma influenciasse diretamente a sua produção. O seu
trabalho passou a agregar valores, promovendo um diálogo entre o Moderno e o
Popular. Assim, na sua visão de arquitetura, passou a deixar um espaço inacabado que
seria preenchido pelo uso popular cotidiano.
Ao conhecer a antiga Fábrica de Tambores na Pompéia, ou seja, o futuro Sesc, Lina
encontrou uma construção de alvenaria e de uso pioneiro de concreto. Ao mesmo
tempo, identificou um espaço que, durante os finais de semana, era freqüentado por
famílias, com crianças e jovens brincando. A arquiteta, percebendo a espontaneidade e a
funcionalidade do espaço, entendeu ser possível considerar o que já estava pronto.
Chegou a afirmar: "Pensei: isso tudo deve continuar assim, com toda esta alegria".
Assim, na organização do seu projeto, resolveu dar liberdade aos trabalhadores da
construção ao deixar claro que deveriam fazer as janelas como quisessem, de forma
aleatória mesmo. E ficou lindo! De todo o trabalho magnífico na nossa arquiteta, o
MASP, sem dúvida, merece o nosso aplauso entusiástico. Uma grande manifestação de
amor por São Paulo. Mas o Sesc é democrático, dinâmico, aberto, com uma
possibilidade imensa de grandes descobertas, de cursos que mexem com a curiosidade,
sobretudo de jovens, com a sua biblioteca exemplar.
Saudades do Sesc da Pompéia, saudades de São Paulo, saudades de mim.
Toquinho e Vinícius no TUCA
Quem não conhece a batida de violão de Toquinho e a doçura da poesia de Vinícius de
Moraes não está percebendo a primavera da vida. Mas foi no TUCA - Teatro da
Universidade Católica - que tive o maior de todos os privilégios: vê-los cantar numa
noite chuvosa de 1979.
O meu namorado (atual marido) comprou os ingressos e, para mim, era o maior de
todos os presentes naquele momento. Ver o Vinícius? Meu Deus! Para mim, ninguém
viveu tão plenamente a poesia como ele. O poeta de um amor maior, completo, "de tudo
ao meu amor serei atento"... e que o amor "seja infinito enquanto dure". O Toquinho,
um exímio violonista, impecável, beirando a perfeição, com toda a simpatia e afeto pelo
"poetinha", cuja "vida era pra valer".
Mas aquele show deve ser visto e vivido em toda a sua abrangência. Em primeiro lugar,
o espaço. O TUCA, dentro de toda a efervescência cultural da juventude universitária
nos últimos suspiros da ditadura, representou muito. Foi o local da encenação da peça
"Roda Viva", em que a polícia chegou para bater e bateu feio. Lá estava a Marília Pêra,
por exemplo, que correu muito e, ainda assim, apanhou um monte. Quantas bombas de
gás lacrimogêneo foram lançadas ali contra uma juventude que queria democracia, a tão
sonhada liberdade de expressão, a possibilidade do diálogo, a aurora.
Estudei em outra universidade, mas freqüentei aquela algumas vezes (embora eu não
tenha sido a chamada "filha da PUC"). Numa das idas a São Paulo, fiz questão de levar
o meu filho (que, obviamente, se chama Vinícius) para conhecer o local. Mostrei para
ele a belíssima capela e, sobretudo, o TUCA, cujas paredes guardam segredos, gritos,
sentimentos confusos de pânico, mas também a esperança, a criatividade, a irreverência,
o sonho, desejo de vida e, claro, toda a indignação de uma juventude que teve seus
melhores anos roubados pelo arbítrio. Ali foi um dos espaços possíveis para que a força
de uma juventude sonhadora pudesse ter o palco garantido.
Mas o Vinícius e o Toquinho estavam lá, com o banquinho e a platéia cantando junto,
comportada, de olhos fixos e aplausos quentes. "É que os momentos felizes tinham
deixado raízes no seu penar... depois perdeu a esperança porque o perdão também cansa
de perdoar".
Naquela noite, parece que o barulho da chuva era parceiro das batidas de violão do
Toquinho, porque estava mansa e compassada. Percebi que a chuva também gostava de
bossa-nova, porque ela soube muito bem nos abraçar, nos enxaguando de qualquer
amargor da vida. Nunca a chuva foi tão minha companheira, tão sincera e bendita.
Provavelmente foi um amontoado de lágrimas antecipadas, anunciando que, dentro de
muito pouco tempo, em julho de 1980, o nosso poeta iria partir. No dia seguinte, o
Jornal da Tarde anunciava que havia morrido a poesia brasileira.
Mas eu fiquei a imaginar o nosso poeta do amor demais brincando - como gostava - e
cantando para São Pedro, que gostaria da irreverência, da leveza do olhar, da alegria do
amor, do coração bonito e todos os anjos e santos sentadinhos, curtindo a bossa-nova, e
o Vinícius num banquinho celestial, encantando o paraíso.
Dia dos professores
A minha primeira professora foi a Dona Aurora. Eu a admirava muitíssimo. Na terceira
série ela voltou a dar aulas para mim, felizmente.
No primeiro dia recebemos cadernos, lápis e a cartilha "Caminho Suave", cuja primeira
lição era "A pata nada". Eu achava aquilo maravilhoso! Um livro para cada um de nós!
Naquela mesma noite, encapamos cartilha e caderno, com o meu nome completo na
capa, com a letra bonita da minha mãe e eu jamais tinha sentido tanto entusiasmo na
vida!
Hoje, os novos pedagogos dizem que lições desse tipo traumatizam. Confesso que não
fiquei nem um pouco traumatizada ao saber que a pata nadava. Muito menos que a
"macaca era má" - nossa segunda lição. Naquele tempo não existiam profissionais
especializados em culpar as escolas e os professores pelos nossos eventuais problemas
ou fracassos. Não traumatizava e pronto! Todas as professoras do primário foram
importantes demais para mim.
Com visível orgulho, levava eu a minha mala preta, com dois fechos metálicos e a
lancheira com pão com mortadela e a garrafinha com suco de laranja. De vez em
quando, também um bombom, uma pêra ou maçã. Às vezes um pedaço de bolo. E tudo
tinha um brilhante sabor de conquista.
Nunca me esqueci do dia em que aprendi a fazer a letra “s”. No canto esquerdo da
página, a professora colocou um carimbo com um sapo. Tínhamos que preencher toda a
página com o “s”. Orgulhosa, mostrei a página para o meu pai, à noite, quando ele
voltava para casa, engravatado do trabalho.
Não tínhamos dificuldade em dividir o lanche; ao contrário, sempre levávamos um
lanche a mais para ofertar a quem não tinha nada para comer na hora do recreio.
Jamais esquecíamos a data: 15 de outubro era o dia dos professores. Era um prazer
muito grande levar o presente na véspera. Numa das vezes, levei uma caixa de um quilo
de bombons da marca Sonksen, uma caixa branca, e quase morri de vontade de comer
um deles. Era sempre alguma coisa especial que levávamos. Jamais me esqueci o caso
de um aluno da minha mãe que levou para ela um copo com doce de frutas. Escondido
da própria mãe, ele levou uma colherinha no bolso e comeu um pouco. Senti, na época,
muita vontade de chorar por isso. Tanta vontade, tanta pobreza... Ele ainda pediu para
que, depois, ela devolvesse o copo. Senti muito orgulho pelo fato de a minha mãe fazer
também um doce e colocar no copo para devolver ao menino.
E apesar das dores, da pobreza de muitos dali, a vida continuava, e sem traumas e sem
críticas às professoras, que faziam de tudo para que a vida desse certo.
Somente em 1947, no governo Gaspar Dutra, ocorreu a primeira comemoração de um
dia dedicado ao professor; ou seja, 120 dias após a assinatura do decreto do então
imperador Pedro I. Por esse decreto, "todas as cidades, vilas e lugarejos deveriam ter
suas escolas de primeiras letras". O imperador assinou tal decreto justamente no dia 15
de outubro, data consagrada à grande educadora Santa Tereza D'Ávila.
E assim foi... Ginásio, colégio, universidade, pós-graduação, outras especializações...
Infelizmente não tenho como agradecer nominalmente a todos. São muitos e de um
significado muito profundo para mim.
O professor Antônio Pitorri, de Português, foi um verdadeiro mestre, com muita
competência e bom humor. O Sr. Leonardo foi um grande companheiro, aliado de
momentos difíceis, compreensivo e imensamente bom. Um sábio, de humor refinado e
fina elegância moral. O professor Ferrarini foi o que me ajudou a abrir os olhos para as
injustiças sociais e nos falava sobre "um mundo novo de esperança".
Todos indistintamente contribuíram com a sua paciência, consideração, conhecimento,
afetividade e sabedoria para a minha formação ética e profissional.
Fui muitíssimo privilegiada ao ter aulas, na universidade, com a professora Dra. Anita
Novinsky, a maior autoridade no Brasil sobre Inquisição. O professor Edgar Carone,
grande pensador marxista, autoridade em movimento operário no Brasil; o professor
Fernando Novais e tantos outros, com um brilhantismo invejável!
Hoje tenho uma mestra ao meu lado, durante quase todos os dias de trabalho: professora
Maria Luiza Perico. Uma pessoa ímpar na integridade, nos princípios de ética,
conhecimento, entendimento do humano, refinada percepção da realidade. Uma pessoa
que, com o olhar, diz tudo. Sinto-me fortalecida ao seu lado, sempre tentando beber um
pouquinho da sua sabedoria para que eu possa ter uma vida mais bela e correta. Quantas
vezes, em momentos difíceis, eu penso: "o que a Maria Luiza faria no meu lugar?". E
tento agir como ela agiria. Feliz aquele que tem uma professora Maria Luiza como
companheira de jornada! É uma luz na estrada, num caminho que nunca se acaba, como
é o caminho de uma professora.
Gostaria de homenagear a todos eles, professores e professoras desse país tão sofrido,
de coração pleno. Infinitamente.
Breve história do bairro do Cambuci
“A São Paulo
Terra da liberdade!
Pátria de heróis e berço de guerreiros,
Tu és o louro mais brilhante e puro,
O mais belo florão dos brasileiros!”
Fagundes Varela
Provavelmente o primeiro bairro da nossa cidade de São Paulo, o Cambuci, era caminho
de tropeiros e viajantes que vinham de Santos - antigo Caminho do Mar - e passavam
pelo Córrego do Lavapés. O córrego tem este nome justamente por ser, na época, o local
onde os viajantes lavavam os pés e descansavam por algum tempo, dando comida e
água aos animais de carga antes de entrarem na cidade propriamente dita. Importante
era o ato de lavar os pés, visto que, depois de um longo e suado percurso, os mesmos
haveriam de entrar na igreja, respeitosamente limpos.
No passado, a região era considerada uma divisa entre a cidade e a zona rural e o marco
divisório o córrego do Lavapés.
Aos poucos, principalmente a partir de 1850, desenvolveram-se ao redor da trilha um
pequeno comércio e algumas chácaras, sítios e fazendas.
O nome do bairro nasceu em função da grande quantidade da árvore chamada cambuci,
com um fruto azedinho, muito apreciado junto com aguardente. A árvore é nativa da
mata atlântica e atualmente está ameaçada de extinção... Foi explorada principalmente
para utilização de sua madeira de boa qualidade na fabricação de ferramentas e devido
ao desmatamento em conseqüência do crescimento da própria cidade. O fruto tem o
formato de um pequeno pote, daí o fato de o atual largo do Cambuci, no passado, ser
conhecido como Largo do Pote.
A valorização maior da região se deu a partir da construção do Museu do Ipiranga
(Museu Paulista) em 1890, e também da construção da linha de bonde que atravessava o
Cambuci, ligando o centro da cidade ao museu.
A riqueza produzida pelo grande cultivo do café, sobretudo com o auge da produção em
1870 no oeste paulista, atraiu a vinda de imigrantes para substituir a mão-de-obra negra
nos últimos suspiros da escravidão. Bairros como o Cambuci, o Braz e a Mooca
acolheram grandes levas desses imigrantes que, desembarcando no porto de Santos,
chegavam à capital e se dirigiram para a Hospedaria dos Imigrantes, atual Memorial do
Imigrante, e acomodavam-se em pensões e vilas.
Nessa mesma época, com a chegada de um grande número de imigrantes italianos,
aumentou o limite urbano do bairro, destacando a abertura de novas ruas e a construção
de novas casas. Várias fábricas também começaram a ser instaladas na região, como a
Chapéus Ramenzoni, a Nadir Figueiredo e a Villares.
Já no início do século passado, as manifestações operárias começaram a agitar o bairro.
Pelo fato de a região abrigar um grande contingente de imigrantes italianos, alguns
moradores afirmam que o Cambuci é o berço do anarquismo em São Paulo. O local de
encontro político da época era o Cine-teatro Guarani.
Esses imigrantes que não se fixaram definitivamente nas regiões produtoras do café do
oeste paulista e que se deslocaram para a capital, passaram a exercer várias funções.
Como os operários, os italianos deixaram sua marca inconfundível na dura crítica em
relação a todas as formas de exploração pelos patrões, sendo responsáveis pela
conscientização política da classe trabalhadora dentro dos princípios anarquistas.
Aos operários italianos atribui-se a responsabilidade pela eclosão, já na primeira década
do século XX, das primeiras e grandes greves em São Paulo, comandadas pelo Círculo
Socialista. Essa organização teve origem na transformação da Liga Democrática
Italiana, criada em 1900 e que reunia anarquistas, socialistas e republicanos. De seus
quadros dirigentes participava até mesmo o futuro industrial Dante Ramenzoni. O porta-
voz do Círculo era o jornal Avanti.
A fábrica de chapéus Ramenzoni foi fundada no Cambuci, em 1894, pelo italiano Dante
Ramenzoni, que emigrara de Parma seis anos antes, sendo que a produção chegou ao
auge nos anos 50. Na época, seus 1800 operários produziam 6000 unidades por dia.
Com o desuso da peça do vestuário masculino, a indústria entrou em decadência e os
Ramenzoni passaram a investir na produção de camisas (Bantan) e de papel, visto que
era necessário se produzir as embalagens para a comercialização do produto final. Em
1972, quando a fábrica foi vendida, a família mandou confeccionar 25 chapéus de pele
de castor e os distribuiu como lembrança aos amigos mais próximos.
Outro fato que tem um significado especial na história do bairro foi a tomada da Igreja
da Glória por rebeldes durante a Revolução de 1924. Liderados pelo general Isidoro
Dias Lopes, apossaram-se da igreja, que fica no ponto mais alto da região, de onde era
possível ver o movimento das tropas na cidade.
Foram vinte e três dias de pânico entre os moradores, quando os homens de Dias Lopes,
que queriam a queda do presidente Artur Bernardes, eleito de forma fraudulenta,
enfrentaram as tropas legalistas. Junto com o Braz e a Mooca, o Cambuci foi um dos
bairros mais atingidos pela luta que quase arrasou São Paulo.
Paralelo a todas as manifestações sociais ocorridas na época, o artista plástico Alfredo
Volpi retratou e recriou pela arte o bairro em seus quadros. Italiano de Lucca, Volpi
veio para o Brasil com dois anos e foi morar direto no Cambuci, de onde nunca saiu. Foi
considerado um dos maiores artistas brasileiros. Sua obra funde cores e formas
geométricas, ingênuas e essenciais, ao imaginário popular nacional. Volpi era
autodidata, construía as próprias telas. Os quadros de Volpi eram perfumados, porque
ele fazia suas tintas usando uma fórmula especialmente elaborada com este objetivo.
O artista robusto e de sorriso largo, de enorme simplicidade nas suas atitudes, que nunca
soube muito bem lidar com o dinheiro, veio a falecer em São Paulo, aos 92 anos de
idade, no ano de 1988, deixando um imenso legado cultural e, sobretudo, um legado de
solidariedade, pois tinha um desprendimento extraordinário dos seus bens.
E quem não se lembra do doce Waldemar Seyssel, o respeitável comediante "Arrelia",
que tanto contribuiu para a construção do imaginário infantil desse país? Arrelia foi o
primeiro palhaço brasileiro com um programa de televisão para crianças, em 1953. Por
tanto "arreliar", começou a trabalhar como palhaço em 1922 no bairro do Cambuci.
Um dia, seus irmãos o pintaram, fizeram com que se vestisse de palhaço e o
empurraram para o picadeiro. Assustado, o jovem Waldemar caiu de mau jeito, fez
trejeitos e muitas caretas. Machucado, levantou-se mancando enquanto o público ria e
aplaudia freneticamente, pensando que estava fazendo graça. O sucesso foi imediato,
nascendo então o palhaço Arrelia.
Somente em 1895 ficou concluída a Igreja da Glória, que se originou da Capela Nossa
Senhora de Lourdes, havendo uma pequena cruz de madeira conhecida por Santa Cruz
do Cambuci.
A desolação do lugar inspirou o escritor da segunda geração romântica, Fagundes
Varela, em 1861, a compor o poema "Ruínas da Glória". Na época, a outrora e
exuberante Chácara da Glória, localizada onde hoje estão as esquinas das ruas Clímaco
Barbosa e José Bento, estava completamente ao abandono, com suas construções em
total deterioração.
Entre aquelas instalações, estava uma capelinha de Nossa Senhora da Glória construída
por Dom Mateus de Abreu Pereira, quarto bispo de São Paulo, um dos muitos
proprietários que passaram pela Chácara da Glória. Depois da morte do bispo, em 1824,
a chácara passou a ser administrada pelo governo, mas o "Almanaque da Província de
São Paulo para 1857" já citava a sua capelinha como uma igreja "em ruínas". A imagem
de Nossa Senhora da Glória conservou-se, porém, muito bem preservada e foi
transportada para a atual igreja da Glória, quando da sua construção. Na parte baixa do
morro, onde o novo templo se ergueu, havia uma pequena cruz de madeira conhecida
popularmente como Santa Cruz do Cambuci.
O Colégio Nossa Senhora da Glória, dos Irmãos Maristas, foi um grande destaque na
formação intelectual, humana e cristã de um sem-número de jovens ao longo de 107
anos de história. Colégio tradicional, de um imenso valor cultural para a cidade de São
Paulo.
Gostaria, humildemente, de prestar uma homenagear ao meu antigo professor de Física
do meu saudoso colégio, Ir. Leonardo. Um verdadeiro mestre, de inteligência raríssima,
com humor refinado - o humor dos sábios -, amigo muito leal e sincero, presente na
minha vida em momentos muito difíceis. Italiano, nascido na época da I Guerra
Mundial, soube abraçar o Brasil como sua verdadeira pátria. O meu antigo mestre
faleceu nesse ano, no dia 25 de janeiro, no dia do aniversário de São Paulo.
Doce sorriso da Maria
Faz quase trinta anos que conheci a Maria. Pessoa doce, simpática, sempre com um
sorriso bom. Maria Carmem! É a prima do meu marido, prima querida.
Quando começamos a namorar fui conhecer a Maria, como todos os seus parentes,
mesmo os não tão próximos. Quando a conheci, a prima não passava por bons
momentos: a sua mãe, na época, era paciente terminal, mas ela tentava manter o sorriso
e nos recebeu bem.
Conversamos e percebi que ela era uma pessoa importante. Importante porque sincera,
amigável, ética, com um profundo respeito e amor pela família. Um dia me disse que
resolveu nem pensar em se casar para não ter de se afastar da família. Acreditei
piamente, porque ela era como um patrimônio nosso. Maria era ímpar. Pode-se andar
por São Paulo inteiro e não encontrar ninguém como ela.
E não faltam situações pitorescas para falar da Maria. Quando tentou aprender a dirigir,
por exemplo, não conseguiu jeito de engatar a segunda marcha e então andava só na
primeira. Qual o problema? Raramente atendia à chamada do celular, porque o mesmo
ficava no fundo da bolsa. Quando o celular tocava e até que ela o encontrasse, já tinham
desligado. Ela não sabia identificar a ligação e ficava tudo por isso mesmo. Ela achava
tudo engraçado e contava tudo isso sem nenhum vestígio de constrangimento. Tudo na
boa. Maria era da paz e da simplicidade.
No nosso último encontro, nas férias em São Paulo, ela me disse que freqüentava um
centro espírita próximo a sua casa, no bairro do Ferreira. Só que o seu cachorro sabia
disso e chegava antes dela e ficava deitadinho sob a cadeira onde ela se sentava. Isso
nos leva a crer que o orientador do seu grupo sabia por antecipação se a Maria iria às
palestras naquela noite ou não. O cãozinho avisava sempre, infalivelmente.
Um dia ela saiu para trabalhar, entrou no ônibus e, sem perceber, o amigo canino fez o
mesmo. O cobrador chamou a atenção gentilmente, até porque o mesmo a conhecia na
viagem de todos os dias. Ela teve de descer, levar o mudo amigo para casa e, assim,
chegou tarde no trabalho.
Na casa da minha sogra, num Natal, apareceu um panetone embrulhado de uma forma
inusitada. O meu marido achou esquisito e perguntou: "Quem trouxe um panetone
embrulhado no papel das Lojas Pernambucanas?". Eu respondi: "A Maria".
Rapidamente ele concluiu: "Tá explicado".
Tudo para ela tinha um final feliz, um sorriso gostoso. Quando a situação era meio
ruim, ela costumava concluir: "Ah!, deixa, vá; já passou".
Todos os anos a gente contava com ela para as festas de aniversário do meu filho. Ela
nunca faltou. Infalivelmente ela chegava e eu guardava bolo para ela.
Um dia, com pouco dinheiro, ela, de Natal, me deu apenas um sabonete Francis, de
caixinha, embrulhado para presente. Confesso que nunca recebi um sabonete de tão
boas mãos e tão perfumado. Parece que o sabonete roubava um pouco do perfume da
alma dela.
Mas ontem a Maria resolveu ir embora. Resolveu ir para a casa do pai, de repente, sem
dar trabalho, sem se despedir. Nós estamos chorando muito. Ela, além de tudo, tinha a
cara de São Paulo. Aposentada, continuava trabalhando e adorava a cidade.
Mas eu imagino a Maria conversando com São Pedro. Com certeza, ele deve estar
dando algumas boas risadas com ela. Ele deve estar curtindo muito aquela bondade,
aquela pureza, o sorriso sem malícia, a disposição. Quem sabe, lá no céu, ela vá passear
um pouquinho, visitar os parentes que já se foram, dirigindo o carro celestial, com São
Pedro de carona, apenas na primeira marcha... Até porque o santo não deve ter pressa.
Se tocar o telefone celular celestial e ela não atender... não faz mal... É porque ele ficou
no fundo da bolsa... Mas ninguém poderia ter pressa ou ficar bravo porque ela não o
atendeu...
O melhor do mundo era curtir o sorriso, a delicadeza e a bondade da Maria.
SESC - Rua do Carmo
Não me lembro como a coisa começou, mas foi interessantíssimo. Há aproximadamente
trinta anos foi criada uma alternativa de lazer para os paulistanos por uma iniciativa do
SESC. Na Rua do Carmo, todos os domingos pela manhã, havia a feira do troca. Podia-
se levar de tudo: livros, objetos de uso pessoal, discos de vinil, rádios, óculos, relógios...
Enfim, a única coisa que não valia era dinheiro.
Era um espaço gostosíssimo, um convite ao descanso pitoresco, com conversa,
interesses variados. Tudo ali, bem na porta do SESC da Rua do Carmo.
Algumas vezes freqüentei o lugar. Cheguei até a fazer alguns planos. Eu sempre tive
planos - tudo muito simples, divertido, inusitado -, mas planos, coisas diferentes, dentro
dos meus limites... E sempre valendo uma conversa, rápida, simpática e inesquecível.
Uma vez levei um par de óculos que não me serviam mais. Troquei por um livro com
um rapaz bem simpático. Eu via o movimento, observava as senhoras indo ali mais para
se divertirem, pois não precisavam de nada. Era visível isso.
Enquanto a feira acontecia, havia um pequeno espaço mais alto em que as pessoas
declamavam suas próprias poesias, com o microfone em punho, seguido de aplausos
quentes e interessados. Normalmente eram os mais idosos que subiam nesse pequeno
palco e contavam algumas histórias de vida, algumas memórias. Uma tia do meu
marido, a tia Amália, de saudosa memória, adorava escrever suas poesias e chegou até a
publicar algumas. O SESC era o seu espaço mais aberto e acolhedor.
Voltemos à feira. Aquele escambo aos domingos pela manhã me deu um prazer enorme
e me provocou muita curiosidade.
Assim que fiz o meu vestibular para História na USP e fui aprovada - depois de um
esforço desmedido -, resolvi me vingar do meu passado inglório na Matemática. Peguei
todos os livros dessa matéria e levei para a troca. Eu me sentia o máximo ao fazer isso.
Bem dizia o grande Mário Quintana: "Se quiser dormir bem, faça uma boa vingança".
Eu aceitaria qualquer coisa em troca daqueles livros. Tudo seria bem-vindo, desde que
eu não visse mais na minha pequena biblioteca o referencial para essa disciplina, que
tanto havia me tirado o sono e provocado pânico nas provas. Na longa Idade Média,
centenas de livros de Matemática foram lançados nas fogueiras da Inquisição, pois
acreditava-se que tal matéria era obra do demônio.
Desculpem a minha ignorância, mas, nesse caso, eu me sinto um verdadeiro ser
medieval, com medo do castigo eterno! Caso necessário, eu preferiria me auto-flagelar,
com chicote bifurcado nas pontas, depois passar urina e sal grosso nas feridas a ter que
fazer uma prova de tal disciplina...
Muito bem! Quando vi exposta uma máquina de moer café, verde, do século XIX, não
me contive: ofereci os meus livros, mostrando que estavam todos em excelente estado
de conservação. O senhor, então proprietário da máquina, aceitou a troca de bom grado,
visto que o mesmo tinha três filhas em idade escolar. Fiz o negócio na hora. Feliz,
encantada, radiante. Mas havia um imenso problema: o peso, para mim, era algo
monstruoso, do outro mundo, e eu estava de ônibus. Naquele domingo eu estava
acompanhada da minha grande amiga, Ana Isabel, que me ajudou a carregar o valioso
objeto histórico tão desejado. Não foi nada fácil. Digo: foi até desesperador. Mas eu
estava me sentindo a pessoa mais importante do mundo. Só eu teria uma máquina de
moer café do tempo dos imigrantes, do tempo dos italianos que ajudaram como
ninguém na construção de São Paulo. Aquela máquina cheirava a vida, trabalho, suor e,
sobretudo, esperança.
Desci do ônibus. Aí eu já estava sozinha. Fui subindo a rua que levava ao nosso
apartamento na Avenida Lacerda Franco, como uma penitente depois de uma numerosa
série de pecados mortais. Cheguei ao apartamento. Ufa! Mas quando abri a porta e
gloriosamente anunciei o feito, com brilho nos olhos, não sei por que cargas d'água a
minha irmã - bem mais nova do que eu - me esculachou de forma impiedosa que jamais
consegui compreender. Herdando as sobrancelhas em circunflexo da minha mãe -
mostrando a brabeza e o não espaço para a minha humilde defesa -, disse para eu
esconder aquilo do pai. Parecia que aquela pirralha era a minha mãe e que eu havia
cometido algo de terrível, macabro, assustador, que eu havia ludibriado alguém, tirado
proveito de alguma situação inusitada.
Aquela cena, aquele manancial de água fria que levei no meio de uma cabeça sonhadora
e cheia de romantismo pelo passado, me fez esconder a máquina debaixo da cama por
muito tempo... Até que me casei e a levei embora comigo. Hoje está aqui, na minha
casa, deitadinha no lado de cima da estante carregada de livros de História, de boas
memórias e de muita poesia.
No consultório do dentista quando criança
Desde pequena eu ia ao dentista sem medo. Aliás, o Dr. Hélio era amigo da família.
Homem distinto, parecia meu pai. Honesto, respeitador, acreditava nos outros com
enorme naturalidade e leveza.
Quando pequena, eu me sentava naquela cadeira alta e ele ia pedalando várias vezes até
que eu ficasse na altura conveniente para um bom trabalho. Ele fazia tudo sozinho. Não
havia ajudante para fazer as massas, organizar o espaço, nada disso.
E ele falava também, baixinho, educadamente. Quando ia começar os procedimentos,
dizia: "Verinha, abra beeeem a boquinha". E eu não tinha medo.
O pior de tudo era que o rádio estava sempre ligado. Coisa triste o rádio ligado! Nunca
suportei, mas o duro mesmo era quando chegava a Hora do Brasil. Eu ficava indignada
com o fato de ele não desligar. Era na época da ditadura e, para mim, o rádio deveria ser
desligado rapidamente, de forma frenética, indiscutível. Imagina só, em plena ditadura e
alguém, nas condições normais de temperatura e pressão, ouvir a Hora do Brasil... Só
podia ser o Dr. Hélio, que até acreditava que aquela galera do poder era honesta...
Uma vez ele viajou com a esposa e o único filho para os Estados Unidos. Coisa rara na
época, anos 60. Ele nos emprestou uma quantidade enorme de fotos e ficamos, em casa,
apreciando aquela viagem fantástica - pelo menos para nós, que sabíamos que era
impossível pisar em solo tão distante.
Um dia, enquanto eu aguardava o tratamento da minha irmãzinha, não sei por que
cargas d'água eu disse que não iria me casar. Eu tinha doze anos. Ele parou de preparar
a massa da restauração, olhou bem para mim e perguntou, estarrecido: "Você não vai se
casar?".
Fiquei tão assustada, me imaginando monstruosa, escabrosa, herege, passível de
julgamento no Tribunal da Inquisição, do eterno fogo do inferno, tamanho era o meu
pecado. Emendei e respondi rapidamente: "Vou sim!". E o assunto foi encerrado aí.
Passados outros doze anos ele foi ao meu casamento e me levou uma bandeja de aço
inoxidável, que tenho guardada até hoje.
Guardei muito respeito pelo Dr. Hélio Nogueira de Sá, que atendia na Rua Robertson,
no Cambuci. Homem íntegro, ético e prestativo. E que tem a cara de São Paulo dos anos
60.