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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X PROTEÇÃO SOCIAL E CUIDADOS: IMPACTOS DA REFORMA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL BRASILEIRA NA VIDA DE CUIDADORAS (ES) DE USUÁRIOS DO BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA Flávia Augusta S. de Melo Lopes 1 Resumo: O cuidado é parte integrante das relações em sociedade, estabelecidas entre sujeitos históricos. Seu reconhecimento, enquanto fenômeno necessário à sobrevivência e perpetuação da espécie é circunscrito de múltiplas perspectivas teóricas e contradições. O capitalismo, enquanto modo de produção, elimina o reconhecimento do cuidado como parte do mundo do trabalho. Neste sentido, a perspectiva neoliberal que se aprofunda em nosso país, com reflexos imediatos na retração da proteção social, reafirma a transferência dos cuidados da esfera estatal para a familiar, acirrando o recorte de gênero, com a histórica feminização do cuidado pautado nos reflexos das construções sociais que estabelecem a divisão e organização do trabalho em patamares que distanciam o espaço público e o âmbito privado, restando aos sujeitos do sexo feminino atividades relacionadas ao espaço doméstico e aos cuidados com “os seus” familiares e/ou próximos em momentos de dificuldades nas mais diversas áreas da vida, principalmente relacionadas ao campo da saúde. Este trabalho tem como foco, refletir teoricamente, a partir dos documentos oficiais publicados pelas instâncias do poder executivo e legislativo, especificamente sobre as alterações propostas pela reforma da previdência, em curso no Brasil através da PEC 287/2016, sua relação com o Decreto 6.214/2007 (alterado pelo Decreto 8.805/2016) e os impactos nos direitos sociais das (dos) cuidadores de beneficiários do Benefício da Prestação Continuada, especialmente das pessoas com deficiência ou doenças crônicas. De partida, a legislação estabelece que os beneficiários do Benefício de Prestação Continuada devem estar inseridos nos critérios de seletividade estabelecidos nos limites legais, considerando critérios socioeconômicos e de condições para o mundo do trabalho (pois o mesmo é benefício financiado pela política de assistência social), inserindo-se nesse leque de público potencial, idosos (a partir de 65 anos), pessoas com doença crônica ou deficiência. As cuidadoras de pessoas com deficiência ou doença crônica, habitualmente são mulheres (mães) que se dedicam ao cuidado deste beneficiário, e, em virtude do corte de renda familiar, ficam impossibilitadas de inserção no mundo do trabalho formal, comprometendo assim a possibilidade futura do reconhecimento da própria proteção social através de uma aposentadoria. Com as proposituras sinalizadas pela atual reforma da previdência, esse cenário se agudiza. Palavras-chave: Cuidado. Proteção Social. Previdência. Deficiência. A conjuntura que se apresenta O cenário que se desenha no Brasil, pelo menos nos últimos quatro anos (2013-2017), revela uma tendência do capitalismo que pode ser explicada a partir da lei geral da acumulação capitalista, 1 Graduada em Serviço Social e Mestre em Educação pela Universidade Federal de Sergipe. Doutoranda em Serviço Social pela Universidade Federal de Pernambuco. Assistente Social da Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão SE, Brasil.

PROTEÇÃO SOCIAL E CUIDADOS: IMPACTOS DA REFORMA … · organismos financeiros. O padrão de acumulação, a partir da década de 1970, sofre grande impacto com a estagnação da

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

PROTEÇÃO SOCIAL E CUIDADOS: IMPACTOS DA REFORMA DA PREVIDÊNCIA

SOCIAL BRASILEIRA NA VIDA DE CUIDADORAS (ES) DE USUÁRIOS DO

BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA

Flávia Augusta S. de Melo Lopes1

Resumo: O cuidado é parte integrante das relações em sociedade, estabelecidas entre sujeitos

históricos. Seu reconhecimento, enquanto fenômeno necessário à sobrevivência e perpetuação da

espécie é circunscrito de múltiplas perspectivas teóricas e contradições. O capitalismo, enquanto

modo de produção, elimina o reconhecimento do cuidado como parte do mundo do trabalho. Neste

sentido, a perspectiva neoliberal que se aprofunda em nosso país, com reflexos imediatos na

retração da proteção social, reafirma a transferência dos cuidados da esfera estatal para a familiar,

acirrando o recorte de gênero, com a histórica feminização do cuidado pautado nos reflexos das

construções sociais que estabelecem a divisão e organização do trabalho em patamares que

distanciam o espaço público e o âmbito privado, restando aos sujeitos do sexo feminino atividades

relacionadas ao espaço doméstico e aos cuidados com “os seus” familiares e/ou próximos em

momentos de dificuldades nas mais diversas áreas da vida, principalmente relacionadas ao campo

da saúde. Este trabalho tem como foco, refletir teoricamente, a partir dos documentos oficiais

publicados pelas instâncias do poder executivo e legislativo, especificamente sobre as alterações

propostas pela reforma da previdência, em curso no Brasil através da PEC 287/2016, sua relação

com o Decreto 6.214/2007 (alterado pelo Decreto 8.805/2016) e os impactos nos direitos sociais das

(dos) cuidadores de beneficiários do Benefício da Prestação Continuada, especialmente das pessoas

com deficiência ou doenças crônicas. De partida, a legislação estabelece que os beneficiários do

Benefício de Prestação Continuada devem estar inseridos nos critérios de seletividade estabelecidos

nos limites legais, considerando critérios socioeconômicos e de condições para o mundo do trabalho

(pois o mesmo é benefício financiado pela política de assistência social), inserindo-se nesse leque

de público potencial, idosos (a partir de 65 anos), pessoas com doença crônica ou deficiência. As

cuidadoras de pessoas com deficiência ou doença crônica, habitualmente são mulheres (mães) que

se dedicam ao cuidado deste beneficiário, e, em virtude do corte de renda familiar, ficam

impossibilitadas de inserção no mundo do trabalho formal, comprometendo assim a possibilidade

futura do reconhecimento da própria proteção social através de uma aposentadoria. Com as

proposituras sinalizadas pela atual reforma da previdência, esse cenário se agudiza.

Palavras-chave: Cuidado. Proteção Social. Previdência. Deficiência.

A conjuntura que se apresenta

O cenário que se desenha no Brasil, pelo menos nos últimos quatro anos (2013-2017), revela

uma tendência do capitalismo que pode ser explicada a partir da lei geral da acumulação capitalista,

1 Graduada em Serviço Social e Mestre em Educação pela Universidade Federal de Sergipe. Doutoranda em Serviço

Social pela Universidade Federal de Pernambuco. Assistente Social da Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão

SE, Brasil.

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mais especificamente, pelas crises cíclicas do capital. O contexto de “crise” é argumento muito

situado nas falas dos veículos de comunicação, dos analistas políticos e dos próprios políticos

profissionais que ocupam a esfera da política para manutenção de hegemonia de classe.

O discurso (e o cenário) da crise nos remete a um exercício reflexivo – mas, crise para

quem? Em um sistema onde as desigualdades cada vez mais se aprofundam, observamos que as

consequências desta “crise” são fortemente deslocadas para as camadas das classes trabalhadoras e

os cidadãos que necessitam de alguma proteção por parte do Estado.

O aprofundamento do que se convencionou chamar de crise, se particulariza em nosso país

com a transição na esfera da política entre os governos petistas e o atual governo Michel Temer,

processo este que vem sendo costurado desde as eleições presidenciais de dois mil e quatorze. O

impedimento da presidenta Dilma Rousseff, articulado por diversos interesses dos grupos de poder

insatisfeitos com as propostas conciliatórias que vigoraram outrora, é um arremate da conjuntura

política instaurada. Esta breve incursão na esfera política serve de ilustração para um projeto

econômico que se pretende reforçar através da perda de direitos conquistados historicamente no

campo das políticas sociais e do mundo do trabalho. As reformas da previdência, trabalhista e a lei

da terceirização somam um conjunto de ações estratégicas de implantação do projeto da “ponte para

o futuro” apresentado pelo Governo Michel Temer. Estas propostas ensejam, sobretudo, numa

orquestração perversa e de consequências deletérias para a vida de jovens que ainda não

ingressaram no mercado de trabalho, para trabalhadores que já estão vinculados e protegidos e, para

os cidadãos que necessitam das políticas de seguridade social para a manutenção da própria vida.

Nesse sentido, o que se observa é uma onda de aprofundamento do neoliberalismo enquanto

tendência do capitalismo, que insiste em mercantilizar as relações entre o estado e a sociedade, onde

a esfera da economia se hipervaloriza com relação a esfera social e o mercado regula as dimensões

da vida humana, que, nessa direção caminha em sentido ao retrocesso.

Deste modo, o presente trabalho tem como persurso, refletir sobre os impactos provocados

pela atual proposta de reforma da previdência, no que toca as mudanças para o Benefício de

Prestação Continuada (BPC) através da PEC 287/2016. A intenção se constitui tendo como recurso

à teoria crítica da tradição marxista, ou seja, o materialismo histórico-dialético como método de

análise teórica do objeto de pesquisa, levando-se em consideração as dimensões conjunturais e

histórica da realidade. O texto se organiza através de pesquisa teórica e documental a partir de

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referenciais teóricos que possibilitam o desvelamento crítico da realidade pesquisada, assim como

das legislações brasileiras que passam a interferir diretamente no objeto de estudo proposto. A

revisão de literatura foi elaborada com recurso a quatro artigos publicados em revistas nacionais

sobre o perfil de cuidadores de pessoas com deficiência, dois artigos sobre a categoria cuidado,

além de textos em livros correlatos à temática debatida. Os dados quantitativos foram coletados a

partir do portal da transparência e-sic, através de solicitação ao Ministério do Desenvolvimento

Social e Agrário e, os documentos utilizados foram o texto originário de projeto a emenda à

constituição PEC 287/2016 que atualmente ainda tramita na câmara de deputados federais, como

também os decretos 6.214/2007 e 8.805/2016 que altera o primeiro e dizem respeito diretamente à

regulamentação do BPC.

Sobre proteção social

A constituição de ações ou sistemas de proteção social se estabelece a partir da organização

do capitalismo como modo de produção, que se organiza e se mantém pela via da contradição dos

interesses de classe. Algumas literaturas apontam que legislações no âmbito do reconhecimento dos

direitos sociais passaram a vigorar a partir do final do século XIX, em países europeus. O Plano

Beverigde2, apresentado na Inglaterra no período da II Guerra Mundial, é amplamente mencionado

quando o assunto é proteção por parte do estado. Vale salientar que, durante muitos séculos, a

sociedade burguesa compreendia as “mazelas” e “misérias” produzidas pelas desigualdades, como

sendo resultantes de ordem do indivíduo, e, para tanto, deveria ser tratada de maneira punitiva,

coercitiva e excludente.

O conflito capital X trabalho, impulsiona a classe trabalhadora a reivindicar seus direitos e

pressionar o estado no reconhecimento das demandas, essa consciência é fundamental para as

organizações e movimentos dos trabalhadores que situam a questão social na arena pública dos

embates e a transformam em caso de política. Não há consenso entre os autores no que diz respeito

ao surgimento da proteção social, alguns explicam como fruto dos conflitos, outros como consenso

e antecipação da classe burguesa no processo de apassivamento das lutas.

2 É considerado referência no campo da seguridade social como estratégia estatal para garantir bem-estar social,

estabelecendo a responsabilidade do Estado, na área da saúde e assistência social, além do seguro social.

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No Brasil, as expressões da questão social também são concebidas de acordo com o

desenvolvimento capitalista, a particularidade nacional nos apresenta o trato filantrópico e caritativo

desde a colonização até a república, se considerarmos os avanços, ainda encontramos ranços

moralizadores do trato com as expressões da questão social até os dias atuais.

As legislações pioneiras que delinearam o princípio do reconhecimento de ações por parte

do estado situam-se nas primeiras décadas do século XX com a Lei Eloy Chaves (que instituía o

sistema de caixas e aposentadorias e pensões para os trabalhadores industriais) e o Código de

Menores (apesar de muito punitivo). Um salto importante é dado no Governo de Getúlio Vargas

com o reconhecimento de direitos trabalhistas através da Consolidação das Leis Trabalhistas CLT e

que atualmente está se reformulando e “modernizando”, conforme discurso daqueles que defendem

a reforma trabalhista nos moldes dos interesses do mercado e das classes detentoras dos meios de

produção.

Importante destacar que a seguridade social enquanto sistema de proteção, só é reconhecida

a partir da Constituição Federal de 1988 e fruto de muitos embates dos movimentos organizados e

da reabertura democrática. A seguridade se organiza a partir das políticas de previdência social,

saúde e assistência social, além deste tripé, a constituição garante um sistema amplo de direitos a

educação, ao trabalho e direitos sociais e de cidadania.

Apesar das conquistas no percurso do desenvolvimento capitalista, as crises de acumulação

são cíclicas, as contradições impõem padrões que se adequam e adaptam aos interesses de

organismos financeiros. O padrão de acumulação, a partir da década de 1970, sofre grande impacto

com a estagnação da economia mundial e é fortemente afetado com o crescente aumento de preço

do petróleo. Assim a partir dos anos 1980 os países capitalistas aderem a propostas que defendem a

não participação do estado na economia, com estimulo da total liberdade de comercio, muito

conhecido como neoliberalismo. Esse modelo impacta diretamente nos direitos sociais, a chamada

redução do estado implica em redução de direitos.

Os governos nacionais que adotaram o neoliberalismo como estratégia para o crescimento

econômico são caracterizados por Fernando Collor (1990-1992), Fernando Henrique Cardoso

(1995-2003), Michel Temer (2016-2017). Os governos petistas Lula (2003- 2010) Dilma Roussef

(2010-2016) não se auto avaliam como neoliberais, contudo, suas agendas conciliatórias são

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analisadas por especialistas como neodesenvolvimentistas por também preservarem características

híbridas do neoliberalismo junto ao desenvolvimento nacional.

Esse cenário de financeirização da economia e mercantilização da vida têm se revelado

perverso no que toca o direito de sobrevivência das classes subalternizadas, as investidas em

reformas, a destruição da dimensão do público, a negação de salários, a judicialização das lutas tem

se mostrado como batalhas urgentes e necessárias em nosso país.

Abordagens sobre cuidado

Numa perspectiva contextualizada pelo recorte de gênero, o cuidado se relaciona como

característica e ação que se desenvolve no espaço restrito, privado, doméstico, ou seja, aprendemos

desde a tenra idade que quando caímos, um adulto nos auxiliará a levantar, quando adoecemos

alguém nos levará ao médico. Em circunstâncias de fragilidade, dependência3, o cuidado é prática

presente.

Encontramos algumas referências históricas relacionadas à remissão das origens filológicas

do termo cuidado, ora como expressão de ação “de desvelo, preocupação e de inquietação pela

pessoa amada”, ou “uma preocupação e inquietação advindas do envolvimento e da ligação afetiva

com o outro por parte da pessoa que cuida” (Zoboli,2004, p.22), dando sentido ao aspecto relacional

que o processo exige.

Apesar de ser um tema escasso do ponto de vista da produção do conhecimento científico –

inclusive por conter elementos valorativos à moral de cada contexto -enquanto valor ético o cuidado

foi debatido na filosofia, na literatura, na psicologia. Ainda sob à luz de Zoboli (2004) observamos

que a autora demarca importante obra e marco referencial na produção sobre o cuidado e a relação

com os gêneros masculino e feminino, sinalizando assim a obra de Carol Gilligan como um marco

nos processos de compreensão do cuidado como referenciado de maneiras distintas nos discursos de

mulheres e homens, caracterizando assim o que se classifica como “ética do cuidado” relativa ao

feminino e a “ ética da justiça” ao masculino.4 O que se depreende das reflexões sinalizadas se

3 Nas diversas fases da vida humana há circunstâncias de dependência do cuidado, desde a amamentação à velhice. 4 No artigo “ A redescoberta da Ética do cuidado: o foco e a ênfase nas relações”, a autora sistematiza em quadro os

elementos diferenciadores da ética do cuidado a ética da justiça. Na primeira, a “abordagem contextual, conexão

humana, relacionamentos comunitários, âmbito privado, reforça o papel das emoções (sentimentos), é relativa ao gênero

feminino”, a segunda a “abordagem abstrata, separação humana, direitos individuais, âmbito público, reforça o papel da

razão, é relativa ao gênero masculino”.

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conforma num processo de compreensão da naturalização do cuidado enquanto valor atribuído ao

feminino, seja como elemento simbólico ou objetivo.

Para o pólo feminino, o estímulo devotado as preocupações com o outro desenvolvido no

ambiente doméstico (privado) gera disparidades nas relações e oportunidades confrontadas na

esfera pública. A obrigatoriedade da criação dos filhos como inerente às mulheres, as preocupações

com o trabalho doméstico e a fluência saudável nas relações familiares são cargas culturais de longa

duração que se perpetuam. Em famílias que possuem algum componente familiar com alguma

deficiência, o cenário da obrigatoriedade do cuidado por parte exclusiva das mães é mais presente,

de maneira ilustrativa situamos a realidade das mães de bebês que nasceram com microcefalia. Em

Recife- Pernambuco, estado com maior índice da epidemia que marcou o ano de dois mil de

dezesseis no Brasil, as mães verbalizam5 o abandono por parte dos pais, a sobrecarga na busca pelo

acompanhamento nos serviços de tratamento para seus filhos (as) e os grandes desafios

socioeconômicos vivenciados pelas famílias, grande parte das mulheres que tiveram seus bebês com

microcefalia estão situadas pelo corte de classe social.

Quando relacionamos o cuidado às abordagens feministas, encontramos forte eco nos

questionamentos à ordem patriarcal e às imposições das diferenciações entre comportamentos de

mulheres e homens no que toca aos posicionamentos sobre as tarefas do cuidar.

Esta perspectiva do cuidado remontada através da história e reforçada pela ordem patriarcal,

coaduna com a reflexão posta neste trabalho, no sentido de que, apesar dos avanços e das conquistas

realizadas pelas mulheres, as questões de classe e também da própria condição de ser mulher estão

imersas no debate da esfera pública e do campo privado, principalmente quando o estado se abstêm

do seu papel de protetor e responsabiliza a família ( em especial as mulheres) por agendas que são

fruto de disputa no campo dos direitos sociais e de cidadania.

Perfil das (os) cuidadoras (es) de pessoas com deficiência beneficiárias do Benefício de Prestação

Continuada.

5 Para maiores informações, ver VILLELA, Sumaia. “Mães de bebês com microcefalia contam dramas, desafios e

sonhos”, matéria publicada pela EBC Agência Brasil em 08 de maio de 2016. Disponível em

http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2016-05/maes-de-bebes-com-microcefalia-contam-dramas-desafios-e-

sonhos.

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O Benefício de Prestação Continuada é oriundo da Política de Assistência Social e,

operacionalizado pela Previdência Social, através do Instituto Nacional de Seguro Social, por isso,

na maioria das vezes confundido como “aposentadoria” não contributiva. É fruto de reivindicações

no processo de elaboração da constituinte ainda em finais da década de 1980 e garantido como

benefício de proteção social através da aprovação da Lei 8.742 de 07 de dezembro de 1993 que

institui a assistência social e regulamentado pelo Decreto 6.214 de 26 de setembro de 2007,

atualmente alterado pelo Decreto 8.805 de 07 de julho de 2016.

Apesar de ser devido “à pessoa com deficiência e ao idoso com 65 (sessenta e cinco) anos

ou mais que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida

por sua família”, resultando um salário mínimo (atualmente 2017, R$937,00), o BPC representa

sempre uma ameaça ao discurso que reforça o “gasto público” e contribui para o déficit da

previdência, argumentos que tentam manipular a origem da fonte dos recursos arrecadados, bem

como, a natureza e finalidade dos mesmos.

De acordo com dados informados pelo Suibe/ Dataprev, até maio de 2017 o Brasil atendia

4.463.333 pessoas com o BPC, sendo que destas 1.991.861 são idosos e 2.471.472 são pessoas com

deficiência. Nesse contexto, 33% das pessoas com deficiência beneficiárias pelo BPC são crianças

ou adolescentes até 18 anos incompletos, tendo como responsáveis tutores designados judicialmente

ou os próprios pais administrando o benefício, sendo que, os estados que apresentam maiores

índices de crianças e adolescentes com deficiência atendidos pelo BPC são, São Paulo, Bahia,

Minas Gerais, Pernambuco, Ceará, conforme demonstra o gráfico abaixo.

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Gráfico 1-Distribuição dos beneficiários do BPC por UF e

espécie

Espécie BPC PCD Espécie BPC Idoso

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Fonte:Suibe/Dataprev - maio2017

As informações acima caracterizadas implicam no que consideramos um retrato da

contradição no processo de proteção social, ou seja, apesar do benefício ser direcionado a pessoa, o

mesmo exige tanto do ponto de vista das condicionalidades para concessão, quanto da manutenção

destas condições, o envolvimento do grupo familiar, além do fato de que os maiores percentuais de

cobertura se concentram em estados do sudeste e nordeste que possuem características regionais

díspares e possibilidades de redes de apoio desiguais para o acompanhamento destas famílias que

precisam atender aos critérios de renda de até ¼ de salário mínimo por pessoa da família.

Em revisão de literatura, Masuchi et al (2012), Câmara et al (2016), Braccialli et al (2012),

Barros et al (2011), encontramos caracterizações que, combinadas, possuem elementos de

similaridades sobre o perfil das pessoas cuidadoras de pessoas com deficiência, beneficiárias do

BPC. Os artigos elaborados partem das análises de profissionais da saúde que acompanham através

da estratégia de saúde da família, os usuários de BPC, eles nos informam que as cuidadoras são

majoritariamente do sexo feminino atingindo porcentagens do público pesquisado que variam de

70% a 90%; possuem baixa escolaridade com conclusão de até o ensino fundamental; além do

tempo direcionado aos cuidados, em um dos trabalhos, observamos que, todas as cuidadoras são

mães trabalhadoras informais do lar; as faixas etárias giram em torno dos 30 aos 70 anos de idade;

os graus de parentesco entre o cuidador e a pessoa cuidada são em sua maioria primários tendo

como principais pessoas identificadas a mãe, seguido de avós e tias.

Impactos da contrarreforma da previdência

O perfil das cuidadoras nos direciona a inferir que essas mulheres já estão em desvantagem

do processo de busca pela cobertura previdenciária, do direito a inserção ao mercado de trabalho,

alijadas das oportunidades pela via da educação, como também prejudicadas pelo suporte ineficaz

do estado com ausências de creches, de serviços da rede de saúde que fortaleçam o processo do

cuidar. Essa linha de raciocínio se justifica, majoritariamente pela condição de classe à qual estas

mulheres estão inseridas. Para o indivíduo com deficiência ser beneficiado pelo BPC, além da

própria condição da deficiência ser elemento de avaliação, a renda é elemento de exclusão, já que os

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membros da família podem ter como valor declarado até R$234,00 por pessoa6, cuja família tenha

quatro membros.

Analisando o que a PEC 287/2016 propõe para o BPC, encontramos um debate que sugere

pela via da argumentação da “racionalidade” e manutenção do “equilíbrio” da seguridade social,

alterações na idade para concessão do benefício ao idoso, saltado de 65 para 70 anos, além da

desvinculação do valor do benefício ao do salário mínimo, com comparação a países que compõem

a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE onde “na maioria dos

países da OCDE o valor do benefício assistencial não é vinculado ao respectivo salário mínimo,

representando, em média, 45% do seu valor”. Ora, o que a proposta de reforma7 da previdência

assinala, corresponde a um movimento que representa a retração do estado e as tendências de

retrocessos e perdas dos direitos duramente conquistados. Quando relacionamos ao impacto destas

propostas aos usuários do BPC, especialmente para as pessoas com deficiência e as cuidadoras,

compreendemos que a desvinculação do benefício ao salário mínimo impactaria de maneira

negativa na manutenção da sobrevivência destes usuários e de suas famílias, além dos fatores que

diretamente afetam a não oportunização e possibilidades destas cuidadoras ingressarem no mercado

de trabalho e terem seus direitos e coberturas garantidas, já que, as condicionalidades de renda

impedem a ampliação dos vínculos de trabalho dos membros que compõem o grupo familiar das

pessoas com deficiência. Além dos elementos apontados, observamos que o Decreto 6.214/2007

que regulamenta o BPC, avançou na perspectiva da instituição da avaliação social como etapa

necessária à concessão, assim, o modelo biopsicossocial considera aspectos antes desconsiderados.

Contudo, com as alterações deste decreto, alguns pontos de retrocesso estão em vigor, ou seja, a

obrigatoriedade da vinculação ao Cadastro Único, que funciona a nosso ver como direcionamento

fiscalizatório, além da negativa de acumulação com outros benefícios no âmbito da seguridade

social, conforme pode ser demonstrado na tabela abaixo.

6 A composição da renda familiar não pode ultrapassar ¼ do salário mínimo por pessoa da família, o que equivale em

2017 a R$ 234,00 reais. 7 Utilizamos o termo reforma para acompanhar a linguagem vinculada pelos veículos de comunicação e do próprio texto

da PEC 287/2016, contudo, compreendemos que ela gravita em torno do movimento que compõe as contrarreformas do

estado nacional que caminham para o retrocesso dos direitos socialmente conquistados.

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Tabela 1- Benefício de Prestação Continuada (BPC/LOAS) - Propostas de Alteração

Fonte: Elaborado pela autora.

Considerações

A partir das análises, observa-se que:

1- Até abril de 2014 a porcentagem de pessoas com deficiência beneficiárias do BPC correspondia a

54.17% do total de 4.021.087 de pessoas (BRASIL, 2014);

2 - Em revisão de literatura, Masuchi et al. (2012) Câmara et. al. (2016), observa-se que o perfil de

cuidadores de pessoas com deficiência é majoritariamente feminino, com idades entre 40 a 50 anos;

3 - Por ser benefício assistencial, o BPC apresenta critérios de seletividade que comprometem a

inserção no mundo do trabalho das mulheres que cuidam das pessoas com deficiência, já que o

impacto de acréscimo à renda familiar pode vir a implicar em possível recorte do estabelecido para

¼ do salário mínimo por pessoa da família;

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4 - As propostas da PEC 287/2016 comprometem a sobrevivência e condição de cidadania dos(as)

usuárias do BPC e de suas famílias;

5 - As cuidadoras de pessoas com deficiência ou doença crônica, habitualmente são mulheres

(mães) que se dedicam ao cuidado deste beneficiário e, em virtude do corte de renda familiar, ficam

impossibilitadas de inserção no mundo do trabalho formal, comprometendo assim a possibilidade

futura do reconhecimento da própria proteção social, através de uma aposentadoria. Com as

proposituras sinalizadas pela atual reforma da previdência, esse cenário se agudiza;

6 - As sugestões de emenda à Constituição Federal de 1988 representam um retrocesso na

compreensão do “Estado Social” como garantidor de direitos;

7 - Como garantir condições de autonomia e inclusão das cuidadoras de pessoas com deficiência?

Referências

ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho: ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade no mundo

do trabalho. – 10. ed. – São Paulo: Cortez; Editora da Universidade Estadual de Campinas, 2005.

BRASIL. Lei Orgânica da Assistência Social, Lei 8.742/93.

______. Política Nacional da Assistência Social, 2004.

______. Decreto 6.214 que regulamenta o BPC, 2007.

______. BPC – BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA: Idosos e pessoas com deficiência

têm direito ao Benefício de Prestação Continuada da Assistência Social (BPC), 2014. Disponível

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SOCIAL PROTECTION AND CARE: IMPACTS OF THE BRAZILIAN SOCIAL

SECURITY REFORM ON THE LIFE OF CAREGIVERS (S) OF USERS OF THE

BENEFIT OF CONTINUED PROVISION.

Abstract: Care is an integral part of relationships in society, established among historical subjects.

Its recognition as a phenomenon necessary for the survival and perpetuation of the species is

circumscribed by multiple theoretical perspectives and contradictions. Capitalism, as a mode of

production, eliminates the recognition of care as part of the world of work. In this sense, the

neoliberal perspective that deepens in our country, with immediate repercussions on the retraction

of social protection, reaffirms the transfer of care from the state to the family sphere, intensifying

the gender cut, with the historical feminization of care based on the reflexes of Social constructions

that establish the division and organization of work at levels that distance the public space and the

private sphere, leaving to the female subjects activities related to the domestic space and the care

with "their" relatives and / or close in times of difficulties In the most diverse areas of life, mainly

related to the field of health. This paper focuses, theoretically, on the official documents published

by the executive and legislative branches, specifically on the changes proposed by the pension

reform in Brazil through PEC 287/2016, its relation with Decree 6,214 (As amended by Decree

8805/2016) and the impacts on the social rights of the caregivers of beneficiaries of the Continuous

Benefit Benefit, especially those with disabilities or chronic diseases. From the outset, the

legislation establishes that the beneficiaries of the Continuous Benefit Benefit must be included in

the criteria of selectivity established in the legal limits, considering socioeconomic criteria and

conditions for the world of work (since it is a benefit financed by the social assistance policy),

Inserted in this range of potential public, elderly (from 65 years), people with chronic disease or

disability. The caregivers of people with disabilities or chronic illnesses are usually women

(mothers) who dedicate themselves to the care of this beneficiary, and, because of the family

income cut off, they are unable to enter the world of formal work, thereby compromising the future

possibility of Recognition of their own social protection through retirement. With the proposals

signaled by the current pension reform, this scenario becomes more acute.

Keywords: Care. Social, Protection. Social Security. Disability.