3
O lugar das idéias nos campos político e social tem sido objeto de estudo cada vez mais analisado por cientistas de diversas áreas. A plasticidade e a mobilidade de idéias e conceitos e as diferentes significações que esses assumem em contextos diferenciados tem relação direta com sua apropriação e utilização pela coletividade, isto é, estão intimamente ligados a seu caráter, mais ou menos específico, de bem público. Afirmar que as idéias são patrimônio comum é dizer que elas podem ser acessadas, usufruídas, utilizadas, criticadas e transformadas por todos que pertencem a determinada comunidade. Mais do que isso, é afirmar que elas podem circular livremente de um ambiente a outro e que podem, inclusive, ser transladadas temporalmente. Se é fato que se pode afirmar, como o fez Sergio Buarque de Holanda em “Visão do Paraíso”, que as idéias se deslocam no espaço e no tempo, não é tão certo que o acesso e a utilização de conceitos e idéias faça-se de forma igualitária e justa. Para se observar a importância política da apropriação e difusão de idéias e a implicação disso para sua classificação como patrimônio comum, veja-se o caso da Revolução Francesa. Diversos conceitos e idéias utilizados correntemente no ambiente político do início do século XXI podem ter sua gênese encontrada na Revolução Francesa (1789). Não que muitas dessas idéias já não fossem de uso comum anteriormente, mas é no decorrer dessa revolução que eles tomam a forma e o conteúdo que ainda hoje os identifica. Dentre essas idéias, poder-se-ia destacar, para fins de análise, a de democracia e a de liberdade. A partir de uma perspectiva que se poderia chamar de histórico-materialista, dir-se-ia que essas idéias (democracia e liberdade) foram fruto de um determinado contexto histórico, político e social específico. Assim, é uma determinada estrutura observada – no caso da Revolução Francesa, o conflito entre a classe burguesa e a aristocracia do Antigo Regime – que permite a criação de determinados conceitos. Liberdade, nesse caso, era, para a burguesia, não estar sujeita à opressão dos senhores feudais e do monarca absoluto. Democracia, por outro lado,

Prova

Embed Size (px)

DESCRIPTION

prova prova

Citation preview

Page 1: Prova

O lugar das idéias nos campos político e social tem sido objeto de estudo cada vez mais analisado por cientistas de diversas áreas. A plasticidade e a mobilidade de idéias e conceitos e as diferentes significações que esses assumem em contextos diferenciados tem relação direta com sua apropriação e utilização pela coletividade, isto é, estão intimamente ligados a seu caráter, mais ou menos específico, de bem público.

Afirmar que as idéias são patrimônio comum é dizer que elas podem ser acessadas, usufruídas, utilizadas, criticadas e transformadas por todos que pertencem a determinada comunidade. Mais do que isso, é afirmar que elas podem circular livremente de um ambiente a outro e que podem, inclusive, ser transladadas temporalmente. Se é fato que se pode afirmar, como o fez Sergio Buarque de Holanda em “Visão do Paraíso”, que as idéias se deslocam no espaço e no tempo, não é tão certo que o acesso e a utilização de conceitos e idéias faça-se de forma igualitária e justa.

Para se observar a importância política da apropriação e difusão de idéias e a implicação disso para sua classificação como patrimônio comum, veja-se o caso da Revolução Francesa. Diversos conceitos e idéias utilizados correntemente no ambiente político do início do século XXI podem ter sua gênese encontrada na Revolução Francesa (1789). Não que muitas dessas idéias já não fossem de uso comum anteriormente, mas é no decorrer dessa revolução que eles tomam a forma e o conteúdo que ainda hoje os identifica. Dentre essas idéias, poder-se-ia destacar, para fins de análise, a de democracia e a de liberdade.

A partir de uma perspectiva que se poderia chamar de histórico-materialista, dir-se-ia que essas idéias (democracia e liberdade) foram fruto de um determinado contexto histórico, político e social específico. Assim, é uma determinada estrutura observada – no caso da Revolução Francesa, o conflito entre a classe burguesa e a aristocracia do Antigo Regime – que permite a criação de determinados conceitos. Liberdade, nesse caso, era, para a burguesia, não estar sujeita à opressão dos senhores feudais e do monarca absoluto. Democracia, por outro lado, era participar ativamente das decisões políticas tomadas no âmbito do Estado.

Se os dois conceitos aplicavam-se bem, do ponto de vista da burguesia, à situação vivenciada agudamente na França, não é menos verdadeiro que pudessem ser transladados e aplicados em contextos estruturais diferenciados daqueles que lá vigiam. De fato, com a própria expansão do Império Napoleônico, espalharam-se as idéias da Revolução Francesa ao redor do mundo, i.e., das partes do mundo que tinham contato regular com a Europa.

A vinda da corte portuguesa para o Brasil, em 1808, fruto direto da expansão napoleônica, é responsável, em parte, pela entrada definitiva dessas idéias na vida política brasileira. Com a independência e a promulgação da primeira constituição, em 1824, essas idéias materializam-se no arcabouço jurídico nacional. Há, porém, um parêntese. Assim como na Europa do século XIX, no Brasil, no mesmo período, só a liberdade parece ter encontrado terreno fértil, mas, assim mesmo, endereçada a uma parte específica da sociedade. A democracia foi idéia que se materializou timidamente, vagarosamente. Seu conceito foi apropriado pelas elites – na França, burguesas, no Brasil, rurais – e utilizado em seu favor. O voto, no Brasil, por exemplo, era censitário e indireto. Apenas pequena parcela da população podia participar ativamente da vida

Page 2: Prova

política. A liberdade, por seu turno, excluía mais da metade da população, uma vez que se vivia em uma sociedade escravista.

Percebe-se que as idéias trafegaram no espaço, saindo da Europa e aportando no Brasil, mas seus contornos e sua definição foram especificados e formalizados por aqueles que se encontravam no topo da sociedade brasileira, ou seja, uma classe muito assemelhada à classe contra a qual lutou a burguesia na Revolução Francesa. As mesmas idéias podem, assim, ser aplicadas em ambientes estruturados de maneiras diversas. Mais importante, sua apropriação e materialização dão-se com peso diferente nas diferentes classes.

Se bens públicos são aqueles não rivais (podem ser utilizados por mais de uma pessoa ao mesmo tempo) e não excluíveis (é impossível – ou custoso – impedir que alguém faça uso dele) poder-se-ia dizer, limitadamente, que as idéias caracterizam-se como tal, uma vez que a apropriação, como se observou, pode se dar de maneira desigual, o que indicaria certa “rivalidade” do bem. Entretanto, caracterizá-las como patrimônio comum, igualitária e justamente acessado, usufruído e compartilhado por toda a coletividade, seria ignorar sua distribuição e apropriação política desigual e disforme na sociedade.