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PRÁTICA PENAL PARA O MINISTÉRIO PÚBLICO Rogério Sanches Cunha Colaboração Daniel Novelli Pagoo 2020 5 5 ª ª edição edição Revista, ampliada e atualizada

PRÁTICA PENAL...sem ter noção de por que o sr. “B” deveria ser ouvido como testemunha do juízo e o que o ligava ao thema probandum! Assim agindo, o nobre magistrado inverteu,

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PRÁTICA PENALPARA O MINISTÉRIO PÚBLICO

Rogério Sanches Cunha

ColaboraçãoDaniel Novelli Pagotto

2020

55ªª ediçãoediçãoRevista, ampliada e atualizada

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Capítulo II

FASE JUDICIAL

1) PEDIDO DE EXTINÇÃO DE PUNIBILIDADE EM RAZÃO DA MORTE DO AGENTE

Promotoria de Justiça de _______

Pedido de extinção de Punibilidade em razão da morte do agente

Proc. nº

mm. Juiz:

Cuida-se de procedimento criminal em que “A” está sendo processado como incurso nas penas do art. 180, caput, do Código Penal.

Oferecida e recebida a denúncia, fez-se apresentar, nos termos do art. 396 do Código de Processo Penal, a devida resposta à acusação, na qual se destaca a morte do acusado em razão de acidente de trânsito ocorrido alguns dias antes. Em razão disso, postula-se a extinção da punibilidade.

A fls... foi juntada certidão de óbito original que atesta a morte.

Extingue-se a punibilidade pela morte do agente em decorrência do princípio mors omnia solvit (a morte tudo apaga) e do princípio cons-titucional da personalidade da pena, segundo o qual nenhuma sanção criminal passará da pessoa do delinquente (art. 5º, XLV, CF/88).

Assim sendo, comprovada a morte por documento hábil, requer o minis-tério Público a extinção da punibilidade na esteira do que estabelece o artigo 107, inciso I, do Código Penal.

Local, data.

Promotor de Justiça

Observações relevantes

u Há quem sustente (Damásio e Capez) que, se depois de transitada em julgado a sentença declaratória extintiva da punibilidade, ficar constatada a falsidade da certi-dão de óbito juntada aos autos, não mais poderá ser revista, vez que vedada a revisão

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criminal pro societate, remanescendo, porém, a possibilidade de se punir o autor pelo uso de documento falso, com previsão no art. 304 do Código Penal.

Ousamos, contudo, divergir.Entendemos, seguramente, que tal decisão, que reconheceu a extinção de pu-

nibilidade, é inexistente, não passa de “forma sem conteúdo”, logo, insuscetível de sofrer os efeitos da coisa julgada. Com efeito, quod nullum est nullum producit effec-tum. Dentro desse espírito, encontramos corrente lecionando ser possível o desfa-zimento da decisão extintiva do direito de punir (Mirabete, encontrando respaldo em decisões do STF).

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Capítulo II: Fase Judicial253

2) PEDIDO DE REVOGAÇÃO DA SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO

Promotoria de Justiça de _______

Pedido de revogação da susPensão condicional do Processo

Proc. nº

mm. Juiz:

Cuida-se de procedimento criminal em que “A” está sendo processado como incurso nas penas do art. 129, § 1º, do Código Penal.

Oferecida a denúncia, propôs-se a suspensão do processo desde que o agente cumprisse as seguintes condições: a) reparação do dano em até sessenta dias; b) proibição de frequentar bares e estabelecimentos similares; c) proibição de ausentar-se da comarca sem autorização do Juiz; d) comparecimento pessoal e obrigatório a juízo, mensalmente, para informar e justificar suas atividades.

Assumidos tais compromissos, foi concedido o benefício pelo prazo de dois anos, mas, passados cento e oitenta dias, não obstante reiterados chamamentos, o agente não comprovou ter efetuado a reparação do dano e, nesse período, compareceu em juízo apenas nos dois primeiros meses.

Assim sendo, considerando que se trata de benefício despenalizador baseado no senso de responsabilidade e de cumprimento de dever por parte dos que dele desfrutam, o que não foi demonstrado pelo agente, requer o ministério Público a sua revogação na esteira do que estabele-ce o artigo 89, §§ 3º e 4º, da Lei nº 9.099/95.

Local, data.

Promotor de Justiça

Observações relevantes

u De acordo com a orientação dominante, a suspensão condicional do processo pode ser revogada inclusive após o decurso do prazo, desde que o fato que motivara a revogação tenha ocorrido durante o período da suspensão (STJ: RHC 95.804/DF, j. 19/04/2018). Isso ocorre porque, incidente a causa, a revogação se dá automatica-mente, cabendo ao juiz apenas declará-la.

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3) PEDIDO DE SUBSTITUIÇÃO DE TESTEMUNHA

Promotoria de Justiça de _______

Pedido de substituição de testemunha

Proc. nº

mm. Juiz:

Cuida-se de procedimento criminal em que “A” está sendo processado como incurso nas penas do art. 157, caput, do Código Penal.

Oferecida e recebida a denúncia, fez-se apresentar, nos termos do art. 396 do Código de Processo Penal, a devida resposta à acusação, se-guindo-se a instrução.

Ocorre que, conforme se extrai da certidão de fls..., lavrada pelo sr. ofi-cial de justiça, a testemunha “D”, arrolada pelo Ministério Público, não foi localizada, pois, de acordo com informações prestadas por vizinhos do imóvel em que efetuada a diligência, “D” se mudou dali para outro estado da Federação sem deixar nenhuma informação a respeito do local em que poderia ser futuramente localizada.

Em razão disso, e para evitar que se tumultue a marcha processual com diligências para a localização daquela testemunha e com a eventual ex-pedição de carta precatória, o ministério Público requer, com fundamen-to no art. 451 do CPC/15 (aplicado subsidiariamente), sua substituição para que seja inquirido em seu lugar “E”, residente na Rua..., Bairro..., nesta cidade e comarca.

Local, data.

Promotor de Justiça

Observações relevantes

u Na redação original, o art. 397 do CPP trazia a possibilidade de substituição de testemunhas sempre que alguma não fosse encontrada, desde que não se tratasse de manobra para burlar o momento processual adequado para que o órgão acusatório e a defesa procedessem ao arrolamento. Com a entrada em vigor da Lei nº 11.719/08, o art. 397 passou a dispor sobre a absolvição sumária na instrução criminal, e o Có-digo se tornou omisso quanto à possibilidade de substituição. Entende-se, diante da omissão, que se aplica subsidiariamente o art. 451 do CPC/15, que permite à parte substituir a testemunha que falecer; que, por enfermidade, não estiver em condições de depor; que, tendo mudado de residência, não for encontrada pelo oficial de justiça.u O simples indeferimento do pedido de substituição não acarreta nulidade, espe-cialmente se a parte o fizer sem fundamentação numa das hipóteses estabelecidas: “1. Tanto a redação anterior do art. 397 do Código de Processo Penal – em vigor à

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Capítulo II: Fase Judicial255

época da apreciação do pedido de substituição de testemunha feito pelo impetrante – quanto o art. 408 do Código de Processo Civil (aplicado analogicamente ao caso após a entrada em vigor da Lei n.º 11.719/2008, conforme autoriza o art. 3º do Código de Processo Penal), restringem a substituição de testemunhas às hipóteses ali pre-vistas. 2. O impetrante ao requerer a substituição de testemunha que havia indicado na defesa prévia, não enquadrou seu pedido em nenhuma das hipóteses legalmente previstas. A despeito de o advogado requerente ser o mesmo que assinou as alegações preliminares do réu, justificou o pedido no fato de apenas ter tomado ciência da im-portância das testemunhas que pretendia substituir após a fase do art. 365 do Código de Processo Penal – redação anterior à Lei n.º 11.719/2008. 3. Dessa forma, decidiu com acerto o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro ao manter a decisão indeferitória do pedido de substituição, pois não foi apontado nenhum motivo que justificasse a excepcionalidade, sendo que decisão em sentido diverso violaria a regularidade do processo e a igualdade entre as partes, sobretudo quanto à produção das provas. Pre-cedentes. 4. Habeas corpus denegado” (STJ: HC 112.860/RJ, j. 13/03/2012).

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4) CORREIÇÃO PARCIAL

4.1) Petição de interposição

excelentíssimo senhor doutor Presidente do egrégio tribunal de Justiça do estado de são Paulo

Autos nº:

O ministério Público do estado de são Paulo, por seu órgão abaixo as-sinado, no uso e gozo de suas atribuições legais, vem, mui respeitosa-mente, à presença de Vossa Excelência, nos autos do processo-crime nº..., que move contra “A” pelo cometimento do crime estabelecido no art. 180, § 1º, do Código Penal, interpor correição Parcial por não se conformar com a r. decisão de fls... dos autos, proferida pelo d. ma-gistrado, a qual inverteu a ordem de produção da prova oral. Seguem anexas as razões de inconformismo.

Formam o presente instrumento cópias:

a) da denúncia (fls...);

b) da ata da audiência e da r. decisão tumultuária.

Nestes Termos

P. deferimento.

Local e data

Promotor de Justiça

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Capítulo II: Fase Judicial257

4.2) Razões que fundamentam a correição parcial

razões de recurso

recorrente: ministério Púbico do estado de são Paulo

recorrido: “a”

mm. Juiz (em seu r. Juízo de retratação)

egrégio tribunal

colenda câmara

douta Procuradoria de Justiça:

Cuida-se de ação penal promovida pelo Ministério Público em face de “A”, acusado de, nas circunstâncias de tempo, local e modo de execu-ção descritas na incoativa, haver praticado, no exercício de atividade comercial, receptação de coisa móvel (art. 180, § 1º, do CP).

Depois de colhida a prova oral, o advogado do réu, com fulcro nos prin-cípios da verdade real e da ampla defesa, requereu fosse ouvida a pes-soa de “B”, jamais citada nos autos, como testemunha do juízo, pleito que contou com a concordância do Ministério Público e que foi deferido pelo magistrado.

Entretanto, mesmo ciente de que o interesse na oitiva da referida teste-munha era da defesa (que requereu) ou do juízo (que julgou necessário ouvi-la), o nobre julgador, sem amparo legal, decidiu que o Ministério Público deveria inaugurar as perguntas. De acordo com a decisão, “a lei processual penal não mais estabelece a possibilidade de o juiz inau-gurar a inquirição de testemunhas e, ainda que a testemunha do juízo tenha sido indicada pelo defensor, como no caso, não cabe a este iniciar a produção da prova, pois não se trata de testemunha de defesa. Por isso, cabe ao Ministério Público dirigir os questionamentos em primeiro lugar” (fls...). Eis o objeto da presente irresignação.

Percebam Vossas Excelências que o Ministério Público foi obrigado a iniciar a produção de uma prova que não foi requerida pela acusação, sem ter noção de por que o sr. “B” deveria ser ouvido como testemunha do juízo e o que o ligava ao thema probandum!

Assim agindo, o nobre magistrado inverteu, de forma tumultuária, o procedimento de produção da prova, violando, sem dúvida, o direito à ampla acusação, tão sagrado quanto o direito de defesa (ou assim de-veria ser num ordenamento que garante a igualdade de armas entre as partes).

O contraditório (ou ciência bilateral das partes) é uma das bases do devido processo legal. A todo ato produzido por um dos personagens do processo caberá igual direito (de oposição) por parte do outro,

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possibilitando a este apresentar uma interpretação jurídica diversa da-quela feita pelo requerente da prova.

O procedimento correto (e esperado) do magistrado seria, com espeque no art. 3º do CPP, observando princípios gerais de direito (alguns já cita-dos), ainda que convencido de que não poderia inaugurar as perguntas para a sua testemunha (conclusão com a qual não se pode concordar), que delegasse tal tarefa para quem provocou a diligência, no caso, a defesa, parte que demonstrou intimidade com a prova a ser produzida, permitindo ao Ministério Público valer-se da garantia do contraditório com as reperguntas ao final.

Lamentavelmente não foi esse o procedimento seguido nos autos, em prejuízo da acusação. Depois de ouvir a testemunha do juízo e com-preender o que levou a defesa a requerer a sua oitiva, o Ministério Pú-blico vislumbrou questionamentos que não foram objeto das perguntas do advogado ou do juiz e que serviriam para desacreditar as escoteiras palavras do sr. “B”, o que poderia, inclusive, ensejar a caracterização de falso testemunho. Por exemplo: a testemunha, revelando ter acompa-nhado o réu na aquisição (dita lícita) dos objetos de origem espúria, não foi indagada a que título prestou tal serviço, se assim agira outras vezes, se conhecia a atividade exercida pelo réu etc.

Do exposto, alternativa não resta ao Ministério Público senão requerer seja renovado o ato processual, produzindo-se novamente a prova oral do juízo com a obediência da ordem lógica, de forma a que se assegure às partes o contraditório.

Deve ser alertado que, mesmo que à época do julgamento do presen-te recurso se tenha a notícia de condenação do réu em 1º grau, não desaparece o prejuízo para a acusação, pois não se pode ignorar que a prova (colhida sem o devido contraditório) já está nos autos e pode influenciar Vossas Excelências na apreciação de eventual recurso (sem olvidar que o equivocado procedimento eliminou a possiblidade de se explorar a veracidade das palavras da pessoa ouvida).

Ante o exposto, aguarda-se que o MM. Juiz a quo, em seu r. juízo de retratação, reconsidere a decisão impugnada.

Se acaso não for esse o entendimento do digno julgador, o ministério Público espera desse Egrégio Tribunal a reforma da r. decisão guerrea-da, com a restauração da ordem e a determinação para a renovação da produção da prova ora impugnada, por ser de Justiça.

Local, data

Promotor de Justiça

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Observações relevantes

u Parte relevante da doutrina sustenta a incompatibilidade da correição parcial com a ordem constitucional vigente. Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery, por exemplo, lecionam o seguinte: “Instituto inconstitucional, quer tivesse natureza administrativa (decisão administrativa não pode modificar decisão jurisdicional), quer tivesse natureza processual (o Estado não pode legislar sobre a matéria proces-sual: CF 22 I), não tem mais nenhum significado relevante no sistema do CPC de 1973, no qual se admite agravo contra toda e qualquer decisão interlocutória, quer tenha o juiz ocorrido em error in procedendo, quer em error in iudicando” (Código de Processo Civil Comentado, Revista dos Tribunais, São Paulo, 7ª edição, 2003). u O STF já decidiu ser impossível o ajuizamento de correição parcial para desarqui-var inquérito policial sob o argumento de ter havido irregularidade no arquivamento. No caso, o tribunal julgou habeas corpus em que se discutia o procedimento adotado num caso em que o Ministério Público Militar havia promovido o arquivamento de inquérito policial, ratificado pelo juízo militar, e em que o juízo corregedor, por en-tender irregular o arquivamento em virtude de ter ocorrido o crime apurado naquele feito, ajuizou correição parcial, deferida pelo Superior Tribunal Militar. O STF con-cluiu não ter havido, no caso, error in procedendo, o que impedia o desarquivamento do inquérito, e estabeleceu que a correição parcial não serve para retificar eventual error in judicando (HC 113.088/RJ, j. 17/04/2015). u Embora o que prevaleça seja o rito do recurso em sentido estrito para a Correição Parcial, a doutrina de forma majoritária leciona que o rito adequado deve ser o de agravo de instrumento, com prazo de 5 dias para interposição do recurso, contado a partir da data do despacho ou ato impugnado. Já se decidiu, porém, ser possível receber o recurso mesmo fora do prazo quando o objeto da Correição Parcial não é matéria preclusa.u Deve-se observar que, embora não seja a correição um recurso em sentido pró-prio, não pode o juiz deixar de recebê-la e processá-la, sob pena de cometer ofensa a direito líquido e certo do requerente, motivo pelo qual cabe da rejeição mandado de segurança, admissível sempre que do ato não caiba recurso ou quando cabível, este não tenha efeito suspensivo.u Salvo na situação de periculum in mora ou dano irreparável, a Correição Parcial não tem efeito suspensivo, este pode ser obtido com o mandado de segurança.

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Prática Penal para o Ministério Público | Rogério Sanches Cunha260

5) MUTATIO LIBELLI

excelentíssimo senhor doutor Juiz de direito da _______ vara criminal da comarca de _______

Proc. no

O ministério Público do estado de são Paulo, por seu órgão abaixo as-sinado, no uso e gozo de suas atribuições legais, vem, mui respeitosa-mente, à presença de Vossa Excelência, nos autos do processo-crime nº..., que move contra “A” pelo cometimento do crime estabelecido no art. 157, § 2º, inciso II e § 2º-A, inciso I, do Código Penal, para, com fundamento no art. 384 do Código de Processo Penal, aditar a denúncia oferecida e encartada aos autos a fim de que se confira nova definição jurídica ao fato, conforme se expõe:

Quando do oferecimento da inicial, o Ministério Público denunciou o acusado “A” pelo crime de roubo majorado. No entanto, realizada a ins-trução criminal, a vítima afirmou claramente que, contra ela, em direção à cabeça, o acusado efetuou dois disparos de arma de fogo, que so-mente não a atingiram porque os projéteis não deflagraram, embora a arma fosse apta. Disse, ainda, que não se referira a esta circunstância ao ser ouvida na ocasião da prisão em flagrante porque, em estado de choque e nervosa por ter de efetuar o reconhecimento do agente, aca-bou por narrar impropriamente a violência que sofrera (fls...).

Dispõe o art. 384, caput, do Código de Processo Penal, que o Ministério Público deve providenciar o aditamento à denúncia se, encerrada a ins-trução probatória, prova existente nos autos der conta de elemento ou circunstância da infração não contida na peça acusatória. No caso dos autos, a instrução apontou elementos relativos ao crime de latrocínio na forma tentada, afastando, consequentemente, o simples roubo majora-do de que trata a denúncia.

Diante do exposto, o ministério Público adita a denúncia para dela cons-tar que, no dia 10 de março de 2019, por volta das 21h, na Rua..., Bair-ro..., nesta cidade e comarca, “A”, agindo com identidade de propósitos e unidade de desígnios com outro indivíduo até o momento não iden-tificado, subtraiu, para si, mediante violência, um veículo VW/Gol, ano 2011, cor cinza, placa AAA-1111, avaliado em R$ 23.000,00 (vinte e três mil reais), de propriedade de “B”.

Consta que a violência empregada pelo agente para ceifar a vida da víti-ma consistiu em dois disparos de arma de fogo, e a morte somente não se consumou por circunstâncias alheias à vontade dele, considerando que os projéteis não deflagraram.

É dos autos que a vítima trafegava com seu veículo pela via pública quando, a certa altura, o acusado e outro indivíduo não identificado,

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Capítulo II: Fase Judicial261

ocupando uma motocicleta, abordaram-na e, ostentado armas de fogo, determinaram que parasse o veículo. A vítima tentou despistá-los, mas, ingressando em uma rua sem saída, teve de parar.

Naquele momento, o acusado desembarcou da motocicleta, foi até o veículo, retirou violentamente a vítima e, na direção de sua cabeça, efe-tuou dois disparos, cujos projéteis não deflagraram. Em seguida, sem mais munição, evadiu-se com o automóvel.

Logo depois, a vítima localizou uma viatura da Polícia Militar e relatou o roubo, iniciando-se imediatamente a busca pelo bem subtraído. Mo-mentos depois, o réu foi localizado trafegando com o veículo em uma estrada rural. Em seu poder, além do automóvel, foi apreendida a arma de fogo.

Sendo assim, o ministério Público denuncia a Vossa Excelência “A” como incurso no art. 157, § 3º, inciso II, c.c. o artigo 14, inciso II, do Código Penal, mantendo-se, no mais, os termos da incoativa. Requer a oitiva do defensor do acusado e a admissão do aditamento para que se cumpra integralmente o disposto no art. 384, § 2º, do Código de Pro-cesso Penal.

Local, data.

Promotor de Justiça

Observações relevantes

u A Lei nº 11.719/08 promoveu sensíveis alterações nas disposições relativas à muta-tio libelli. De acordo com a atual sistemática, se vislumbrar nova definição jurídica do fato apurado na instrução, em consequência de prova existente nos autos de elemento ou circunstância da infração penal não contida na acusação, o Ministério Público deve promover o aditamento. Caso o órgão da acusação não o faça, o juiz deve aplicar as disposições do art. 28 do Código de Processo Penal, segundo as quais os autos são remetidos ao Procurador-Geral de Justiça, que poderá aditar a denúncia, designar outro membro do Ministério Público para que o faça ou ratificar o pronunciamento de que o aditamento não é pertinente, quando, então, o juiz poderá absolver o réu ou condená-lo de acordo com a imputação inicial. Não é possível que o juiz, sem o aditamento, fundamente a condenação em outro delito.u Após o aditamento relativo à mutatio libelli, deve ser observado se ao novo crime se aplicam as disposições relativas à suspensão condicional do processo. E se a nova infração for de competência de juízo diverso, deve-se zelar pela devida remessa (art. 384, § 3º, do Código de Processo Penal).u Ainda que efetuado o aditamento por provocação do juiz, não estará ele adstrito ao novo delito no momento em que proferir a sentença. Se, por exemplo, a denúncia

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Prática Penal para o Ministério Público | Rogério Sanches Cunha262

narra um crime de furto, mas a instrução revela que a vítima sofreu violência, é possí-vel que o juiz, percebendo a discrepância entre os termos da acusação e o resultado da instrução, baixe os autos para que o Ministério Público promova o aditamento. Ainda que a acusação seja aditada, agora para constar o roubo, pode o juiz, analisando no-vamente o conjunto probatório, decretar a absolvição. A anterior decisão de baixar os autos não pode, de nenhuma forma, vincular o juiz na apreciação da prova. u O STJ já decidiu ser necessário que se promova a mutatio libelli ainda que a ins-trução revele a ocorrência de crime menos grave. Se, por exemplo, a denúncia narra um crime doloso, mas na instrução se apura conduta meramente imprudente, ainda assim deve haver o aditamento para adequar a imputação: “O fato imputado aos réus na inicial acusatória, em especial a forma de cometimento do delito, da qual se infere o elemento subjetivo, deve guardar correspondência com aquele reconhecido na sen-tença, a teor do princípio da correlação entre a acusação e a sentença. 3. Encerrada a instrução criminal, concluindo-se que as condutas dos recorrentes subsumem-se à modalidade culposa do tipo penal e ausente a descrição de circunstância elementar, atinente ao elemento subjetivo do injusto na denúncia, imperativa a observância da regra inserta no art. 384, caput, do CPP, ainda que a nova modalidade de delito co-mine pena inferior, baixando-se os autos ao Ministério Público para aditar a inicial, sob pena violação ao princípio da ampla defesa e contraditório” (REsp 1388440/ES, j. 05/03/2015).u O caput do art. 384 do Código de Processo Penal faz menção ao aditamento da denúncia ou da queixa. Trata-se, neste último caso, da queixa ofertada em ação penal privada subsidiária da pública, daí a expressão “se em virtude desta houver sido ins-taurado o processo em crime de ação pública”, contida no dispositivo. O Ministério Público não pode aditar a queixa em ação penal exclusivamente privada, em que vigoram conceitos de conveniência e oportunidade, de consideração exclusiva do ti-tular da ação penal.

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Capítulo II: Fase Judicial263

6) MEMORIAIS

Como regra, o Código de Processo Penal estabelece a oralidade para a manifes-tação final do Ministério Público e da defesa. Efetivamente, de acordo com o que estabelece o art. 403, produzidas as provas na audiência de instrução e julgamen-to, se não houver requerimento de diligências, ou, se houver, for indeferido, serão oferecidas alegações finais orais por vinte minutos, respectivamente, pela acusação e pela defesa, prorrogáveis por mais dez, proferindo o juiz, a seguir, a sentença. O propósito dessa regra é o de garantir maior celeridade ao processo, pois, na mes-ma audiência em que se colhe a prova, as partes se manifestam e o juiz profere a sentença. Excepcionalmente, é possível, considerada a complexidade do caso ou o número de acusados, que o juiz conceda às partes o prazo de cinco dias, sucessiva-mente, para a apresentação de memoriais. Nesse caso, terá o prazo de dez dias para proferir a sentença.

Na prática, todavia, a exceção tende a imperar diante da comum conversão dos debates orais em memoriais escritos. Em casos tais, alguns critérios devem ser ob-servados (conforme estabelece o “Manual de Atuação Funcional” dos promotores de Justiça do Estado de São Paulo):

a) recomenda-se que se faça um breve relato em que sejam elencados os prin-cipais eventos da marcha processual, como a citação, a resposta, eventuais requerimentos e seu contraditório, a audiência de instrução, a quantidade de testemunhas ouvidas, se arroladas pela acusação ou pela defesa e se o réu foi interrogado;

b) se houver nulidade ocorrida em prejuízo do Ministério Público, deve-se ar-gui-la em preliminar de mérito;

c) na análise do mérito, deve-se examinar, com precisão, expondo os funda-mentos de fato e de direito que formaram a convicção da acusação, a pro-va colhida durante a instrução processual. É possível que se faça menção a elementos de prova colhidos no inquérito policial que de alguma forma en-contrem respaldo na instrução processual (STJ: AgRg no AREsp 78829/SP, j. 28/04/2015);

d) nesta fase, é imprescindível a manifestação expressa acerca da caracteriza-ção de qualificadoras, majorantes e minorantes e circunstâncias agravantes e atenuantes. Isso se faz necessário porque, no memorial, deve haver menção à dosagem da pena que deverá ser aplicada em decorrência da condenação, o que se faz nos mesmos moldes da aplicação da pena (art. 68 do Código Penal):

1) fixação da pena-base, que terá como norte os limites da modalidade sim-ples ou qualificada do delito, e, em seguida, as circunstâncias judiciais do art. 59 do Código Penal;

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Prática Penal para o Ministério Público | Rogério Sanches Cunha264

2) incidência de circunstâncias agravantes e atenuantes. Neste ponto, deve -se atentar para a caracterização da reincidência e suas consequências na fixação da pena (segundo a súmula 636 do STJ, a folha de antecedentes criminais é documento suficiente a comprovar os maus antecedentes e a reincidência);

3) incidência das causas de aumento e de diminuição de pena, observando, se for o caso, o parágrafo único do art. 68 do Código Penal.

Além disso, é importante que se observe: 1) na incidência de qualificadoras diversas, que uma delas qualifica o delito

e as demais podem ser consideradas como circunstâncias judiciais ou, quando previstas, como circunstâncias agravantes;

2) nas causas de aumento de pena, qual a fração de acréscimo; 3) qual o regime inicial de pena cabível de acordo com as circunstâncias do

delito e as condições pessoais do agente; 4) se for o caso, o cabimento da substituição da pena privativa de liberdade

por multa ou restritiva de direitos, com requerimento das penas restriti-vas adequadas ao delito e às condições pessoais do réu;

5) se não for cabível a substituição, a possibilidade de suspensão condicio-nal da pena, com requerimento para que se estabeleçam as condições adequadas;

e) finalmente, deve-se analisar, caso tenha sido decretada a prisão preventiva ou tenha sido imposta outra medida cautelar, se é caso de manutenção. Se o acusado foi processado sem nenhuma restrição, impõe-se a manifestação sobre a decretação da prisão preventiva ou de outra medida cautelar que, no encerramento da instrução, tenha se mostrado necessária. O Ministério Público deve adotar esse cuidado porque, nos termos do art. 387, § 1º, do Código de Processo Penal, ao proferir a sentença o juiz deverá decidir sobre a manutenção ou, se for o caso, a imposição de prisão preventiva ou de outra medida cautelar;

f) é indispensável que o promotor de Justiça oficiante se manifeste sobre o mé-rito da ação penal, mesmo nos casos em que tenha arguido preliminar que, se acolhida, prejudique o julgamento do mérito.

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Capítulo II: Fase Judicial265

6.1) Homicídio qualificado em concurso com porte de arma de fogo

Processo crime n._______

autor: ministério Público do estado de são Paulo

réu: “a”

alegações Finais Por memorial do ministério Público

mm. Juiz:

“A”, qualificado nos autos, está sendo processado como incurso no arti-go 121, § 2º, incisos IV e VI, c.c. o artigo 14, inciso II, ambos do Código Penal, e no art. 16, § 1º, inciso IV, da Lei nº 10.826/03 porque, no dia 27 de janeiro de 2020, por volta das 15h e 40min, na Rua..., Bairro..., nesta cidade e comarca, com evidente ânimo homicida, agindo mediante re-curso que dificultou a defesa das vítimas e contra a mulher por razões da condição do sexo feminino, utilizando-se de arma de fogo, efetuou disparos contra “B” e “C”, causando-lhes as lesões corporais descritas nos laudos de exame de corpo de delito de fls..., somente não consu-mando as mortes por circunstâncias alheias à sua vontade, tendo em vista o eficiente atendimento médico prestado. Além disso, foi abordado, depois das tentativas de homicídio, portando uma arma de fogo, de uso permitido, com numeração suprimida.

Recebida a denúncia (fls...), foi o réu pessoalmente citado (fls...) e apre-sentou defesa escrita, oportunidade em que confessou a autoria, mas invocou legítima defesa (fls...).

Durante a instrução foram ouvidas as vítimas e uma testemunha de acu-sação (fls...).

O réu foi interrogado (fls...).

Encerrada a instrução, pelas partes nada foi requerido.

Por fim, determinou-se a conversão dos debates em memoriais.

Essa é a síntese do necessário.

Vencida a fase instrutória, a culpa do réu pelos graves delitos a ele im-putados emerge da prova coligida, sendo de rigor a pronúncia.

da materialidade delitiva

A materialidade do crime é incontestável, conforme demonstram os laudos de exame de corpo de delito (fls...) e de eficácia da arma de fogo (fls...).

da autoria

A autoria também é induvidosa.

É dos autos que, no dia dos fatos, as vítimas caminhavam pela via públi-ca quando se depararam com o acusado, que havia sido namorado de “B”, iniciando-se ali uma discussão por ciúme.

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Prática Penal para o Ministério Público | Rogério Sanches Cunha266

Ato contínuo, o acusado sacou da arma de fogo e efetuou disparos con-tra a vítima “B”, querendo sua morte, e a atingiu por três vezes. Em seguida, voltou-se contra “C”, que também foi por ele alvejado.

Em diligências, pouco tempo depois dos crimes, policiais militares o en-contraram transitando com seu automóvel e o prenderam em flagrante delito também porque, naquele momento, o agente portava arma de fogo, utilizada no homicídio, sem autorização e em desacordo com de-terminação legal e regulamentar.

O acusado, nas duas fases em que foi ouvido, embora tenha confessa-do a prática criminosa, alegou que estava sendo ameaçado pela vítima “C”. Disse, ainda, por ocasião de seu interrogatório em juízo, que no mo-mento dos fatos “C” teria sacado uma arma, o que originou sua reação. Todavia, a legítima defesa não restou indubitavelmente demonstrada, já que a prova oral coligida aos autos dá conta de que “C” não estava armado, sendo assim impossível a aplicação do disposto no art. 415 do Código de Processo Penal.

Na situação de que tratam os autos, incide o princípio in dubio pro socie-tate: “Absolvição sumária. Impossibilidade. Nos crimes de competência do júri, para que se reconheça a absolvição sumária, exige-se uma pro-va segura, incontroversa, de tal forma que em sendo o réu pronunciado, represente uma manifesta injustiça” (RJTJERGS 196/103).

Não bastasse, ainda que a vítima estivesse proferindo ameaças contra o réu, não podemos conceber o ataque por ele perpetrado como legí-tima defesa, tendo em vista não estarem presentes os seus requisitos. Efetivamente, o artigo 25 do Código Penal considera em legítima defesa “quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem” – grifamos. Como se pode notar, eventuais ameaças proferidas não são capazes de ensejar a justificante.

Além disso, as declarações prestadas pela vítima “B” rechaçam completa-mente a tentativa do réu de criar uma situação de legítima defesa. Isso por-que afirmou ela ter sido abordada, juntamente com “C”, no momento em que retornava da igreja, sendo que o réu os interceptou de inopino e, em seguida, passou a desferir disparos de arma de fogo contra “B”, que foi lan-çada ao solo, e se voltou contra “C”, que também foi atingido. Ato contínuo, o réu chegou a se retirar, mas voltou e efetuou novo disparo contra “C” (fls...). Vê-se, pois, que a dinâmica fática ocorreu de forma diversa daquela descrita pelo réu. Ainda de acordo com o relato de “B”, os fatos se deram em razão de ciúme nutrido pelo acusado e decorrente de anterior relação amorosa que ambos haviam mantido até alguns meses antes dos fatos.

No mesmo sentido, declarou a vítima “C”, conforme se infere do docu-mento de fls...

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Capítulo II: Fase Judicial267

Demonstrada, ainda, a incidência das qualificadoras, já que o réu ata-cou incessantemente as vítimas utilizando uma arma de fogo, dificultan-do, obviamente, sua defesa, pelo simples motivo de que nutria ciúme da ex-namorada (vítima “B”).

Assim, evidenciada a existência material dos fatos – homicídio doloso qualificado – e havendo fortes indícios da autoria, imperativa é a pronún-cia do acusado.

Impõe-se, também, a pronúncia pela prática do porte ilegal de arma de fogo, conexo ao crime de homicídio. Isso porque, conforme se extrai dos autos, o acusado portava a arma de fogo após a prática do homicídio. Ora, não se pode considerar absorvido o porte de arma pelo homicídio se ambos foram praticados em circunstâncias fáticas absolutamente distintas: após a cessação dos atos de execução dos crimes contra a vida, o acusado se evadiu e em sua posse foi encontrado o artefato be-licoso graças à ação de policiais militares que o interceptaram transitan-do com seu veículo pela via pública. Por isso, impõe-se a manutenção do delito insculpido no artigo 16, § 1º, inciso IV, da Lei nº 10.826/03, de forma autônoma e em concurso com os homicídios.

Vê-se, à saciedade, que o réu violou preceitos proibitivos do Código Penal, sendo de rigor sua submissão ao julgamento popular.

Ante o exposto, postula o ministério Público a pronúncia do acusado nos exatos termos da denúncia.

Local, data

Promotor de Justiça

Observações relevantes

u No caso de crime doloso contra a vida processado pelo rito especial do júri, o pro-motor de Justiça, em sede de alegações finais por memorial, não requer a condenação ou absolvição do réu. Deve pleitear:

a) pronúncia: quando convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação do réu no delito (art. 413 do CPP).

b) impronúncia: quando não convencido da materialidade do fato ou da exis-tência de indícios suficientes de autoria ou de participação (art. 414 do CPP).

c) desclassificação: quando entender que o delito apontado na acusação não se inclui dentre aqueles de competência do Tribunal do Júri.

d) absolvição sumária: quando provada a inexistência do fato, provado não ser o réu o autor ou partícipe do fato, o fato não constituir infração penal ou de-monstrada causa de isenção de pena ou de exclusão do crime.

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Prática Penal para o Ministério Público | Rogério Sanches Cunha268

u A absolvição sumária, por importar em exceção ao princípio geral que impõe ao Júri o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, deve ser reservada para os casos em que as excludentes de ilicitude (justificativas) ou culpabilidade (dirimentes) res-tarem absolutamente demonstradas. Ou que, em vista da redação do art. 415, a ine-xistência do fato, sua eventual atipicidade ou a prova de que o réu não foi seu autor, fiquem evidenciadas de forma cabal, sem nenhuma dúvida. Remanescendo alguma, ela deve ser resolvida em favor da competência do Júri, de índole constitucional, pro societate, cabendo ao juiz, portanto, a pronúncia do réu.u Comprovada a inimputabilidade do agente em razão de anomalia psíquica, deve o juiz absolvê-lo sumariamente. Em um caso, contudo, não poderá fazê-lo: exatamen-te quando, a despeito de tal incapacidade, outra tese defensiva tiver sido suscitada (negativa de autoria ou legítima defesa, por exemplo), quando, então, a pronúncia se impõe para que o Júri, juiz natural dos crimes dolosos contra a vida, julgue o fato (art. 415, parágrafo único, do CPP).

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Capítulo II: Fase Judicial269

6.2) Lesão corporal seguida de morte

Processo crime n._______

autor: ministério Público do estado de são Paulo

réu: “a”

alegações Finais Por memorial do ministério Público

mm. Juiz:

“A” está sendo processado, pois acusado de, no dia 29 de novembro de 2012, na Rua..., Bairro..., nesta cidade e comarca, ofender a integridade corporal de “B”, nele causando lesões que acabaram resultando na sua morte.

Recebida a denúncia (fls...), foi o réu pessoalmente citado (fls...) e apre-sentou defesa escrita, oportunidade em que alegou inocência quanto ao resultado qualificador (fls...).

Afastada a possibilidade de absolvição sumária, durante a instrução fo-ram ouvidas duas testemunhas de acusação (fls...).

O réu foi interrogado (fls...).

Encerrada a instrução, pelas partes nada foi requerido.

Por fim, determinou-se a conversão dos debates em memoriais.

Essa é a síntese do necessário.

Vencida a fase instrutória, a culpa do réu pela prática do crime contra a pessoa descrito na denúncia emerge da prova coligida, sendo de rigor sua condenação.

da materialidade delitiva

A materialidade do crime está comprovada pelo laudo de exame necros-cópico (fls...).

da autoria

A autoria não comporta dúvidas.

O acusado está sendo processado porque, no dia dos fatos, envolveu--se em um entrevero com a vítima e lhe desferiu socos no rosto, lançan-do-a com a nuca na guia da calçada. Em virtude das lesões sofridas, a vítima faleceu no dia seguinte ao das agressões.

Interrogado em juízo, o acusado confessou a ação delituosa dizendo, a exemplo do que já havia apontado na fase policial, que iniciou a conten-da porque a vítima havia tomado um copo de aguardente que pertencia a ele (acusado). Tentou, no entanto, afastar-se da qualificadora argu-mentando ter sido a morte fortuita (fls...).

Com o devido respeito, a tese não merece ser acolhida.

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Prática Penal para o Ministério Público | Rogério Sanches Cunha270

É sabido que o tipo penal culposo pressupõe a previsibilidade objetiva do resultado, traduzida na possibilidade de o portador de inteligência mediana ser capaz de concluir que sua conduta pode resultar no ilícito. A valoração da previsibilidade é feita pelo magistrado no momento em que aprecia a conduta mediante análise das características do homem médio, inseridas no caso concreto. Dadas as circunstâncias em que ocorreram os fatos tratados nestes autos, vê-se que o resultado qua-lificador evidentemente decorreu de culpa, pois o réu agrediu a vítima dolosamente, em região nobre (cabeça), e, ainda que não tenha querido ou aceitado o resultado, a experiência comum anuncia que a morte era previsível, isto é, possível de ser prevista.

O depoimento da testemunha “C” narra de forma inequívoca a conduta do acusado: “(...) Ato contínuo o depoente também saiu do bar e foi até onde citadas pessoas estavam. Dessa forma presenciou quando “A” desferiu um soco no rosto de “B”, derrubando-o no chão; “B” caiu de costas e bateu a nuca na guia da calçada” (fls...). Não foi diverso o depoimento de “D” (fls...).

Verifica-se, por conseguinte, que todas as provas produzidas conver-gem para a tese acusatória, razão pela qual requer o ministério Público seja julgado inteiramente procedente o pedido, com a consequente con-denação do réu nos termos propostos na inicial.

Na fixação da pena-base, os limites a se observar são aqueles estabe-lecidos para a lesão corporal qualificada pelo resultado. Analisadas as circunstâncias judiciais, a definição deverá ser no mínimo legal.

No que concerne às circunstâncias agravantes e atenuantes, é dos autos que, ao cometer esta lesão corporal, o acusado já havia sido condenado definitivamente ao pagamento de multa por crime culpo-so. Sabe-se que o tipo de crime cometido no passado (doloso ou culposo) e a espécie de pena imposta (prisão, restritiva de direitos ou multa) não interferem na reincidência, conclusão extraída da simples leitura dos arts. 63 e 64, ambos do Código Penal. São requisitos dessa agravante a condenação definitiva de crime passado e o cometimento de novo crime.

Além disso, incide a agravante relativa ao motivo fútil, pois, conforme o próprio acusado afirmou nas duas oportunidades em que ouvido, o mó-vel da agressão foi o fato de a vítima ter tomado um copo de aguardente que não lhe pertencia.

Não há causas de aumento e de diminuição de pena a se considerar.

A reincidência, aliada ao tipo e ao quantum de pena a ser aplicada, jus-tifica o regime inicial semiaberto, suficiente e necessário, à luz das cir-cunstâncias judiciais, para que se alcancem os fins da pena. Segue-se,

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Capítulo II: Fase Judicial271

com isso, o teor da súmula nº 269 do STJ: “É admissível a adoção do regime prisional semiaberto aos reincidentes condenados a pena igual ou inferior a quatro anos se favoráveis as circunstâncias judiciais”.

Além do fato de a pena superar os quatro anos em virtude da incidência de agravantes, o crime, ainda que preterdoloso, foi cometido com vio-lência dolosa contra a pessoa, razão pela qual é vedada a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos (art. 44, inciso I, do Código Penal). Perceba Vossa Excelência que a conduta básica é dolosa e preenche autonomamente o tipo legal. O resultado culposo de-nota mera consequência que, assim sendo, constitui elemento relevante em sede de determinação da quantidade da pena. O tipo fundamental de crime é o de lesão corporal dolosa, que não se altera em razão da morte, mas apenas tem acrescido um elemento de maior punibilidade.

Por fim, ressalte-se que toda a instrução criminal se desenvolveu com o acusado solto e não há motivo para, a esta altura, encarcerá-lo cautelar-mente, razão pela qual merece recorrer em liberdade.

Local, data

Promotor de Justiça