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Jornal de Psicanálise, São Paulo, 41(74): 239-247, jun. 2008. 239 PSICANÁLISE: ASPECTOS DE UMA CRISE ANUNCIADA Maria Tereza Mantovanini * RESUMO Neste artigo, a autora apresenta uma pesquisa realizada sobre a crise da psicanálise, seu sintoma epidérmico — a diminuição do número de pacientes, em especial dos que aceitam submeter-se à clínica-padrão — e sua manifestação mais profunda e subjetiva: a clínica atual apresenta características diferentes das de outrora. Essa mudança, porém, é percebida sem contornos definidos. Assemelha-se a um fantasma que incomoda e assusta, porque ameaça a viabilidade profissional dos psicanalistas e de sua identidade. Palavras-chave: Psicanálise. Crise. Clínica-padrão. Formação analítica. Todos os Institutos são mortos; portanto, como todos os objetos inanimados, seguem leis e subleis que são compreensíveis dentro dos limites do entendimen- to humano. Entretanto, como estas Instituições são compostas de pessoas e indivíduos, que são suscetíveis de desenvolvimento, a Instituição começa ceder à pressão. W. R. Bion Introdução No início de minha formação na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, em 1994, não encontrava nenhuma dificuldade para aten- der a diversos pacientes quatro ou mais vezes por semana, por longos períodos, de acordo com os padrões exigidos pela International Psycho- analytical Association. Em 2000, quando o núme- ro de pacientes começou a diminuir, atribuí o problema a uma dificuldade minha somente. Mas, conversando com colegas, percebi que os consul- tórios psicanalíticos, em geral, enfrentavam situ- ações semelhantes. * Psicanalista do Instituto de Psicanálise da SBPSP.

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PSICANÁLISE:ASPECTOS DE UMA CRISE ANUNCIADA

Maria Tereza Mantovanini*

RESUMO

Neste artigo, a autora apresenta uma pesquisa realizada sobre a crise da

psicanálise, seu sintoma epidérmico — a diminuição do número de pacientes, em

especial dos que aceitam submeter-se à clínica-padrão — e sua manifestação mais

profunda e subjetiva: a clínica atual apresenta características diferentes das de outrora.

Essa mudança, porém, é percebida sem contornos definidos. Assemelha-se a um

fantasma que incomoda e assusta, porque ameaça a viabilidade profissional dos

psicanalistas e de sua identidade.

Palavras-chave: Psicanálise. Crise. Clínica-padrão. Formação analítica.

Todos os Institutos são mortos; portanto, como todos os objetos inanimados,

seguem leis e subleis que são compreensíveis dentro dos limites do entendimen-

to humano. Entretanto, como estas Instituições são compostas de pessoas e

indivíduos, que são suscetíveis de desenvolvimento, a Instituição começa ceder

à pressão.

W. R. Bion

Introdução

No início de minha formação na SociedadeBrasileira de Psicanálise de São Paulo, em 1994,não encontrava nenhuma dificuldade para aten-der a diversos pacientes quatro ou mais vezes porsemana, por longos períodos, de acordo com ospadrões exigidos pela International Psycho-analytical Association. Em 2000, quando o núme-ro de pacientes começou a diminuir, atribuí oproblema a uma dificuldade minha somente. Mas,conversando com colegas, percebi que os consul-tórios psicanalíticos, em geral, enfrentavam situ-ações semelhantes.

* Psicanalista do Instituto de Psicanáliseda SBPSP.

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Maria Tereza Mantovanini

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Diante da amplitude do fenômeno,resolvi estudá-lo em minha dissertação demestrado (Mantovanini, 2007)1. Para tan-to, delimitei-me ao Centro Clínico e dePesquisa (CCP)2. Essa entidade, com-posta por analistas formados e analistasem formação, orientados por profissio-nais mais experientes, atende pacientescom interesse por psicanálise, mas semcondições financeiras. Escolhi o Centrocomo laboratório de pesquisa porquemuitos pacientes, apesar de encontraremali condições favoráveis de preço e fre-qüência, sequer compareciam à primeiraentrevista ou abandonavam o atendimen-to após algumas sessões. Apenas umaminoria permanecia em análise por maisde seis meses.

Vozes do Centro

Iniciei minha investigação entre-vistando os coordenadores de grupos eos analistas que participavam do Cen-tro. Durante essas entrevistas, procu-rei manter uma atenção flutuante, afim de que os temas relevantes emer-gissem naturalmente. Conforme a pes-quisa avançava, um panorama maisamplo foi revelado, o que me levou a

mudar seu foco, centrando-o na criseda psicanálise3.

O diretor e os coordenadores dosgrupos reconheciam a diminuição de pa-cientes interessados em análise eenfatizavam a importância de o Centrodivulgar a psicanálise na comunidade, demodo que ela não perdesse terreno paraoutras opções terapêuticas nem se res-tringisseà análise de formação. Sublinha-vam ainda a necessidade de captar paci-entes, para que os candidatos pudessemcompletar sua formação analítica.

Os colegas entrevistados expres-savam grande expectativa de receberem,por meio da triagem institucional, pacien-tes que quisessem e pudessem fazer aná-lise segundo o modelo aprendido na for-mação. Entretanto, na maior parte dasvezes, os pacientes não se adaptavam àscondições da clínica tradicional e abando-navam o atendimento. Havia, portanto,um frustrante descompasso entre o dese-jo de atender conforme as exigências daformação analítica e a realidade.

Por outro lado, quando traçavam operfil do paciente que preencheria asexigências da clínica-padrão, os entrevis-tados acabavam por descrever indivíduoscom características tão idealizadas que,

1 Essa investigação abrangeu o período de 2002 a 2005, ou seja, desde o início do funcionamento do Centro,do qual também faço parte, até a eleição de nova Diretoria da SBPSP, que instituiu diversas mudanças nosprocessos de atendimento. Realizei entrevistas e questionários com os participantes do CCP: o diretor,a secretária/assistente social, coordenadores e analistas participantes dos grupos, inclusive do meu.Também pesquisei os documentos que embasaram a criação do Centro, seus estatutos e documentoselaborados na 1ª Jornada de Avaliação de seu funcionamento.2 Este Centro está ligado, atualmente, à Diretoria da Comunidade, do organograma da SBPSP.3 Comecei por uma pesquisa bibliográfica que incluía a história da psicanálise em São Paulo e dos Centrosde Atendimento da SBPSP.

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Psicanálise: aspectos de uma crise anunciada

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no limite, não precisariam de atendimen-to, a não ser para expandir a própria vidamental, casos que sabemos serem raros.

Embora seja próprio do trabalhoanalítico analisar e não atender aos dese-jos dos pacientes, analistas formados eem formação também sentiam-sedesconfortáveis com as condições exigi-das pela clínica-padrão e viam necessida-de de mudar os modelos tradicionais deatendimento e transmissão da psicanálise.

Os profissionais do CCP depara-vam-se, portanto, com uma clínica emprocesso de transformação, para a qualprecisavam desenvolver novos recursosteóricos, técnicos e de personalidade. Essatarefa tornava-se ainda mais complexa,considerando que a formação analítica,apoiada sobre o tradicional tripé, análisepessoal, cursos teóricos e supervisões,baseava-se exclusivamente nas exigên-cias da clínica-padrão.

Ponderar se os critérios formais datécnica identificada com “A Psicanálise”continuavam colaborando para o desen-volvimento de um pensamento indepen-dente trazia dilemas intricados. Afinal, aocompletar o período de formação dentrodos moldes-padrão, poderia o analistaexercer uma clínica em outro formato eainda assim chamá-la de psicanalítica? Acrise que suscitou essas perguntas semantém.

Notas a respeito de uma crise

A psicanálise é um processo longoe requer investimentos que ultrapassam

as condições materiais. “Para falar clara-mente, a psicanálise é sempre questão delongos períodos de tempo, de meio-ano oude anos inteiros — de períodos maioresdo que o paciente espera” (Freud, 1919/1974, p. 179). Em busca de textos teóri-cos sobre a duração do processo analíti-co, encontrei somente um artigo de Jiménez(2006), no qual o autor constata que amaioria dos pacientes abandona as tera-pias analíticas depois de cinco a oitosessões. Ainda que seja verdadeiro, essedado não explica a significativa diminui-ção na procura por análise, constatadaaté pela própria IPA, conforme verifica-remos.

Alguns autores vêem esse fenô-meno como reflexo de mudanças cultu-rais e psicopatológicas. Ahumada (1997),por exemplo, identifica a crise da psicaná-lise com a cultura inerente à sociedadeglobal, que teria substituído a auto-refle-xão pelo uso da mente “como músculo” eexpulsado as excitações em vez de contê-las e elaborá-las. A eliminação do pensarreflexivo provocaria o que ele, citandoGaddini (1992), chama de psicopatolo-

gias de gratificação peremptória.

Seguindo a mesma linha de pensa-mento, Rocha Barros (1999) entende queas crises são necessárias, porque impe-dem a estagnação do saber psicanalítico.Mas assinala que, no mais das vezes,quando se fala em crise da psicanálise,está se falando de crise de mercado.Dentro desse recorte, a psicanálise preci-saria inovar-se para agradar aos pacien-tes consumidores. No caso, agradá-los

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seria oferecer-lhes alívio imediato. Eisporque o autor critica as tentativas demudar o settingpsicanalítico visando aten-der às pressões do mercado. Para ele, averdadeira inovação viria do questiona-mento dos fundamentos da psicanálise enão de sua adaptação às demandas domercado.

Assim, tanto Ahumada quantoRocha Barros rejeitam a divulgação defácil consumo, sob o argumento de que aexperiência psicanalítica só pode ser com-preendida se vivida na situação de análi-se. Caso contrário, corre ela o risco de setornar um conhecimento meramente teó-rico, distante de sua verdadeira natureza.O verdadeiro caminho para superar, deforma criativa, a crise da psicanálise seriaretomar o espírito investigativo de seuspioneiros.

Fabio Herrmann, em artigo sobreclínica extensa e psicanálise, corroboraessa posição ao frisar que a repetiçãomecânica de chavões esgota a clínica-padrão psicanalítica, porque a distanciado espírito inovador e investigativo de seucriador. A técnica psicanalítica padroni-zada — a livre associação do paciente, aatenção flutuante do analista, as interpre-tações transferenciais, a neutralidade —não é boa nem má em si mesma. Tudodepende se é usada “de modo aberto comoinspiração ou de modo fechado como umritual” (Herrmann, 2005a, p. 19).

Para Herrmann (2002), a crise dapsicanálise não se encontra somente nafalência da clínica-padrão ou na falta depacientes, mas no que ele denomina a

psicanálise como resistência à Psica-

nálise: o psicanalista que vê as teoriaspsicanalíticas como fato acabado e nãocomo hipóteses operativas. Sob essa pers-pectiva, a crise atual seria tanto da clíni-ca-padrão, quanto da teoria-padrão a elaligada. Ao ser reificada, transformada emsaber acabado, as teorias tornam-se umobstáculo ao desenvolvimento da psica-nálise enquanto ciência do homem mo-derno.

Histórico de uma crise

A pesquisa sobre a falta de perma-nência dos pacientes em análise descor-tinou uma crise de proporções mundiais. Nofinal dos anos 90, a IPA passou a pressionarseus institutos filiados para que deixassemde ser somente um local de transmissão dapsicanálise, encerrados em si mesmos, e seabrissem para a sociedade. Essa seria acondição para a sobrevivência da psicaná-lise como terapia.

Nesse sentido, constituiu, em 1997,um comitê de pesquisa, com a finalidade deconhecer a realidade das práticas psicana-líticas de todos os seus membros e tomar asmedidas necessárias para defender suaespecificidade dentre as diversas modali-dades terapêuticas. Para tanto, enviou umquestionário a todas as Sociedades e gruposde estudos a ela filiados. Nesses questioná-rios, todos os psicanalistas declararam tra-balhar com psicoterapia individual face aface. Com exceção de algumas variaçõesregionais, as terapias definidas como psica-nalíticas constituíam a parte principal da

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prática dos membros que não desempenha-vam função de formação.

Na América do Norte, a maioria dosmembros expressava interesse pela ampli-ação do espectro de indicações para otratamento psicanalítico e via um continuum

entre psicanálise e psicoterapia. Ao mesmotempo, porém, temiam que a perda delimites entre ambas levasse à dissolução daidentidade da psicanálise, especialmente daespecificidade do tratamento psicanalíticode pacientes neuróticos.

Na Europa, de maneira geral, asformações psicanalíticas e psicoterápicaseram feitas pela mesma instituição. DaNoruega, veio um dado muito significativo:embora as sessões de tratamento fossemreembolsadas integralmente pelos seguros-saúde, qualquer que fosse sua freqüência,poucos pacientes aceitavam comparecerquatro ou cinco vezes por semana. Outrodado interessante: a Sociedade Britânicanão enviou resposta ao questionário.

Na América Latina, psicoterapeu-tas e psicanalistas sofriam severos proble-mas de identidade. Formados como subpro-duto da psicanálise, os psicoterapeutas sen-tiam-se tratados como bastardos e, reuni-dos em associações, pressionavam a IPApara serem reconhecidos como psicana-listas.

Em 1999, a SBPSP, com o intuitode analisar as dimensões da crise, reali-

zou, em São Paulo, fóruns com o temaPsicanálise e Psicoterapia. No mesmoano, o Jornal de Psicanálise publicouvários artigos desses fóruns, entre osquais destaco Psicanálise, psicoterapia

e afins, de Eva (1999), e Psicanálise,

psicoterapia, crise e possibilidades da

psicanálise, de Castro (1999). Para es-ses autores, a psicanálise não se caracte-riza por critérios formais, como o uso dodivã ou o número de sessões semanais,mas pelo método de observação e pelatécnica de intervenção.

Em janeiro de 2006, a SociedadePsicanalítica de Paris promoveu um coló-quio, para discutir a diversidade das prá-ticas psicanalíticas no mundo. Seu organi-zador, André Green, expressou a neces-sidade de discutir esse assunto espinhosoe negado por muito tempo.

“Quoi qu’il en soit, s’il est difficile de dateravec exactitude le début d’une prise deconscience de la crise — cela peut remonterem effet très loin mais le milieu des années1950 parait une date raisonnable —,pendant longtemps, congrès aprèscongrès, on entendait soutenir desarguments venus des instances les plushautement responsables, insistant lourde-ment sur la dénégation d’une telle crise. Ilfallut attendre que l’API se decide àenquêter sur cet épineux sujet” (Green,2006, p. 232)4.

4“É difícil datar com exatidão o início da tomada de consciência da crise — isto pode remontar, com efeito,a um tempo bem grande para trás, mas meados dos anos 50 parece uma data razoável —, enfim, durantemuito tempo, Congresso após Congresso, escutávamos a argumentação, vinda de instâncias das maisresponsáveis, insistindo pesadamente na negação de tal crise. Foi preciso sensibilizar a IPA para que sedecidisse a investigar esse assunto espinhoso.” (Tradução da autora.)

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A história da psicanálise em SãoPaulo mostra as mudanças sofridas nasúltimas décadas. Nascida em nosso meiocomo atividade que garantia boa remune-ração e status social, a carreira atraíamuitos profissionais da saúde. Em mea-dos dos anos 70, quando a SBPSP perdeuo monopólio da formação psicanalítica,esse prestígio entrou em declínio e termi-nou no final dos anos 80. O mercado detrabalho tornou-se mais competitivo. Aproliferação de formações fora dos pa-drões da IPA atingiu em cheio a clínica-padrão sustentada pela SBPSP e exigidade seus candidatos. Concessões precisa-vam ser feitas, e eram, mas não podiamser consideradas oficialmente, pelo me-nos no que dizia respeito à formação.

Ao mesmo tempo, a partir de me-ados dos anos 80, a inserção feminina nomercado de trabalho mudou o perfil dospsicanalistas. Anteriormente, formadopredominantemente por médicos, o grupofoi incorporando, mesmo na SBPSP, umamaioria de mulheres e de não-médicos(basicamente psicólogos)5.

A história dos Ambulatórios e Cen-tros de Atendimento da SBPSP tambémsinaliza mudanças. Desde sua criação atémeados dos anos 90, esses espaços, guar-dadas as especificidades de cada época,tinham a finalidade de colaborar com oscandidatos, oferecendo pacientes para assupervisões oficiais, durante o período deformação. A partir dos anos 90, essas

entidades tornaram-se uma fonte de en-caminhamentos para candidatos e mem-bros da SBPSP. O CCP, criado em 2001,apresenta o mesmo perfil. Sinal de que ostempos estavam mudando?

Algumas considerações finais

Pode-se afirmar que, dada a con-corrência com as psicoterapias e outrasformas de abordagem dos problemasmentais, a crise da psicanálise profissio-nal, a princípio, com desdobramentos teóri-cos e culturais, e a despeito das caracterís-ticas locais, estende-se pelo mundo todo.Seu sintoma epidérmico — a diminuiçãodo volume de pacientes, em especial dosque aceitam submeter-se à clínica-pa-drão — tem uma camada mais profundae subjetiva. Ao que tudo indica, a clínicaadquiriu características diferentes das deoutrora. A mudança, porém, é percebidasem contornos definidos. Assemelha-sea um fantasma que incomoda e assusta,porque ameaça a viabilidade profissionaldos psicanalistas e sua identidade.

No fim das contas, esse quadrointimidador talvez não passe de uma novarealidade, um desafio à nossa capacidadede lidar com situações indefinidas e frus-trantes. Por isso, a crise deve ser aberta-mente discutida. Disso depende a sobre-vivência da própria psicanálise como prá-tica terapêutica e os novos rumos para aformação dos futuros analistas.

5 Em todas as pesquisas mensais de emprego e desemprego realizadas pela Fundação Seade, em parceriacom o Dieese, há um levantamento do nível de ocupação por gênero. Cf. www.seade.gov.br

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Maria Tereza Mantovanini

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psicanálise. Dissertação de mes-trado em Psicologia Clínica. Pontifí-cia Universidade Católica de SãoPaulo. São Paulo.

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SUMMARY

Psychoanalysis: aspects of a crisis foretold

In this paper, the author presents a research study about the crisis of psycho-

analysis, in both its epidermic symptoms — fewer patients, especially the ones willing

to go through the standard clinical approach — and its deeper and more subjective

manifestation — the current clinic presents different characteristics than before.

However, this change is perceived in a blurred way. It resembles a ghost that bothers

and scares, because it threatens the professional viability of psychoanalysts and also

their identity.

Key words: Psychoanalysys. Crisis. Standard clinical approach. Analytical formation.

RESUMEN

Psicoanálisis: aspectos de una crisis anunciada

En este artículo la autora presenta una investigación sobre la crisis del

psicoanálisis, su síntoma epidérmico — la disminución del número de pacientes,

especialmente de los que aceptan someterse a la clínica-padrón— y su manifestación

más profunda y subjetiva: la clínica actual presenta características diferentes de las de

otrora. Este cambio, sin embargo, es percibido sin contornos definidos. Se asemeja

a un fantasma que incomoda y asusta, porque amenaza la viabilidad profesional de los

psicoanalistas y su identidad.

Palabras-clave: Psicoanálisis. Crisis. Clínica-padrón. Formación analítica.

Maria Tereza MantovaniniR. Dr. Carlos Alberto do Espírito Santo, 88 — Pinheiros05429-100 São Paulo, SPFone: (11) 3032-5922E-mail: [email protected] em: 5/05/2008Aceito em: 20/06/2008