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    artigo originalPai DD, Lautert L, Krug JS. Psicodinmica e sade mental do trabalhador de enfermagem: ritmo acelerado e intensificao do fazer

    Psicodinmica e sade mental dotrabalhador de enfermagem: ritmo

    acelerado e intensificao do fazer*

    O presente estudo discute a psicodinmica do trabalho da enfermagem em urgncia e emergncia e sua repercusso na sade mental do trabalhador,

    a partir de pesquisa qualitativa que focou o labor da equipe de enfermagem de um servio pblico de pronto-socorro. Foram realizadas anlises de documentos,

    observaes no participantes e entrevistas semiestruturadas com os trabalhadores. Todos os preceitos ticos foram atendidos e as informaes coletadas, submetidas

    anlise de contedo. Os resultados apontam a presena de um ritmo de trabalho intensificado e caracterizado pela imprevisibilidade, gerando consequncias no

    cotidiano e na sade mental do trabalhador.

    Descritores:Sade do Trabalhador, Sade Mental, Condies de Trabalho, Enfermagem em Emergncia.

    Psychodynamics and mental health of nursing workers: pace and intensification of doing

    This study discusses the psychodynamics of work of nursing in emergency care and its impact on the mental health worker, from qualitative research that focused on

    the work of the nursing team of a public emergency room. It was carried out analysis of documents, non participating observations and semi structured interviews

    with workers. All ethical guidelines were met and the informations were collected were subjected to content analysis. The results indicate the presence of an intensified

    work pace and characterized by unpredictability, creating consequences in everyday life and the mental health worker.

    Descriptors:Occupational Health, Mental Health, Working Conditions, Emergency Nursing.

    La psicoterapia y la salud mental de los trabajadores de enfermera: incrementar el ritmo e intensificacin del hacer

    Este trabajo discute la psicodinmica del trabajo de enfermera en la atencin de emergencia y su impacto en la salud mental del trabajador, a partir de la investigacin

    cualitativa que se centr en el trabajo del equipo de enfermera de un servicio pblico de atencin de emergencia. Fueron realizadas anlisis de los documentos,

    observaciones no participantes y entrevistas semiestructuradas con los trabajadores. Todas las recomendaciones ticas fueron recibidas y las informaciones recogidas

    se sometieron a anlisis de contenido. Los resultados indican la presencia de un ritmo de trabajo intensificado y caracterizado por la imprevisibilidad, generando

    consecuencias en la vida cotidiana y en la salud mental del trabajador.

    Descriptores:Salud Ocupacional, Salud Mental, Las Condiciones de Trabajo, Emergencia de Enfermera.

    INTRODUO

    1Docente Assistente da Faculdade de Enfermagem da UFPel. Doutoranda do Programa de Ps-Graduao em Enfermagem (PPGEnf ) da UFRGS. Integrante do Giso/UFRGS.

    E-mail: [email protected].

    2Docente Associada da Escola de Enfermagem da UFRGS. Doutora e Docente Permanente do PPGEnf/UFRGS. Lder do Giso/UFRGS. E-mail: [email protected].

    3Docente e Coordenador do Curso de Psicologia das Faculdades Integradas de Taquara (Faccat). Doutorando do Programa de Ps-Graduao em Psicologia (PPGPsico) da

    UFRGS. E-mail: [email protected].

    * Elaborado a partir da dissertao de mestrado Enfermagem, Trabalho e Sade: Cenas e Atores de um Servio Pblico de Pronto-Socorro, apresentada ao programa

    de ps-graduao em enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre (RS), Brasil.

    Daiane Dal Pai1

    Liana Lautert2

    Jefferson Silva Krug3

    Os servios de pronto-socorro contemporneoscontm uma especificidade que os distingue dequaisquer outros servios de sade(1), uma vez quea organizao do trabalho se encontra baseada

    no agir imediato, dependente do tempo e guiado peloobjetivo de salvar a vida. Assim, no cotidiano dos servios

    de urgncia e emergncia, o ritmo de trabalho imprevisvelquanto ao nmero de pacientes que necessitam de cuidadosimediatos e, ainda, quanto acelerao exigida.

    Esses aspectos definem as caractersticas peculiaresda organizao no contexto das emergncias e,

    consequentemente, da repercusso dessa sade dostrabalhadores ali inseridos. Para a psicodinmica dotrabalho, pensar sobre a organizao requer considerara varivel distncia entre a organizao prescrita para otrabalho e sua real organizao, ou seja, o espao existenteentre aquilo que preconcebido para uma determinada

    atividade e as aes que configuram o trabalho em ato(2) .A partir desse direcionamento, a organizao e suas

    repercusses para a sade do trabalhador podem sercompreendidas tendo em vista o quanto seria difcilantecipar todas as situaes reais do universo do trabalho,

    Recebido em: 06/05/2010Aceito em: 09/12/2010

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    sendo impossvel prever o percurso exato da produoe, portanto, prescrever com exatido o trabalho nessarea. Dessa forma, o trabalho prescrito insuficiente pararesponder realidade da produo, j que essa resulta das

    relaes intersubjetivas e sociais nesse ambiente(3)

    . Assim,as relaes sociais ajustam o que prescrito para o trabalho,transformando-o em modos operatrios reais. Diante disso,acredita-se que o que est prescrito nunca suficiente etodo trabalho sempre de concepo. Assim, o trabalho humano por definio, j que sua existncia se encontraonde a ordem tecnolgica-maquinal insuficiente(3) .

    Pensar o trabalho dessa forma aponta a necessidadede considerarmos a busca constante do trabalhador poruma margem para a concepo em seu labor. Entretanto,o ajustamento entre aquilo que est previsto comotarefa a ser desempenhada e os modos operatrios reaisdepende do reconhecimento do direitodos trabalhadores de investir nesseespao como meio potencial para ouso da inteligncia na concepo dotrabalho(4) .

    Tendo isso em vista, o presenteestudo focaliza a psicodinmica dotrabalho da enfermagem em um ser viode urgncia e emergncia, a fim decompreender o trabalho real nesseespao e, consequentemente, a sademental dos trabalhadores.

    METODOLOGIATrata-se de um estudo descritivo, deabordagem qualitativa, realizado juntoa um hospital p blico de pronto-socorrode Porto Alegre, RS.

    As tcnicas de coleta de dados utilizadas foram,respectivamente: (a) anlise de documentos e registros dainstituio a fim de auxiliar na compreenso do contextoorganizacional no qual as atividades da enfermagemestiveram inseridas; (b) 14 perodos de observao no-participante sobre as interaes laborais da enfermagem,as quais foram registradas em dirios de campo, com

    durao mdia de duas horas em cada perodo, tendocomo objetivo apreender aspectos do trabalho em cena; e(c) 12 entrevistas semiestruturadas com trabalhadores deenfermagem (enfermeiros, tcnicos e auxiliares), as quaisalmejavam conhecer o sentido atribudo pelas vivnciasnesse mbito.

    Quanto seleo dos participantes, toda a equipede enfermagem foi contemplada na observao,sendo que, para as entrevistas, os sujeitos foramselecionados intencionalmente entre os profissionais querepresentassem os melhores informantes, de acordo comas exigncias do estudo. As entrevist as foram realizadas noprprio local de trabalho, mediante agendamento prvio

    e em local apropriado para a manuteno da privacidadedos envolvidos.

    As prerrogativas ticas foram atendidas com o uso doTermo de Consentimento Livre e Esclarecido e Termo

    de Responsabilidade pelo Uso dos Dados. Diante disso,assegurou-se a responsabilidade com as informaesrecebidas e o anonimato, atentando-se, ainda, para aautorizao para a gravao da entrevista em udio. Oprojeto de pesquisa foi avaliado e aprovado pelo Comit detica em Pesquisa da Instituio na qual a coleta de dadosfoi realizada, sob o nmero AC CP N.022/2005.

    As informaes oriundas da coleta foram reunidas,organizadas e analisadas com base no conjunto deinstrumentos metodolgicos da Anlise de Contedo(5) ,dando origem aos conjuntos interpretativos relacionadosao ritmo laboral acelerado e intensificao do trabalho e

    suas consequncias para a sade mentaldo trabalhador.

    APRESENTAO E DISCUSSO DOSRESULTADOSA fim de facilitar a apresentao dosresultados, esta seo foi subdivididaa partir dos conjuntos interpretativosmais significativos. Alm disso, soclassificados com a letra E os trechos dasentrevistas e com a letra O os trechosdas observaes, assim escolhidos paraexemplificar e significar a discusso.

    Ritmo laboral acelerado: o

    imprevisvel e a necessidade de fazer

    a coisa fluir

    Os resultados encontrados reafirmam, no ambienteestudado, o ritmo frentico da prtica de emergnciade estudo(1) que focou o cotidiano de profissionais daemergncia.

    um trabalho muito dinmico, tu trabalhas atendendo,olhando o que tu ests atendendo, sempre com o olhovoltado para trs, porque a porta de entrada est aberta eento tu no trabalhas com um ritmo fixo predeterminado;

    tem tantos leitos, tantos pacientes, e deu. Ento acontecetudo ao mesmo tempo. (E12) um trabalho que no tem uma rotina, no tem umasistemtica de dizer que funciona assim. Cada caso umcaso, cada dia um dia, cada planto mais diferenciadodo que o outro, tem plantes que s vezes so mais calmos,tem plantes que parece que vo ser calmos e viram umcaos! (E6)No trabalho em emergncia, o quadro temporal

    marcado pelo tempo do relgio, pelo ritmo da demandados usurios e pela jornada de trabalho. Alm da exignciade pontualidade e regularidade, existe uma presso pelarapidez na realizao das atividades que esto relacionadas

    Cada planto mais diferenciado

    do que o outro,tem plantes ques vezes so mais

    calmos, tem plantesque parece que

    vo ser calmos eviram um caos

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    alta demanda de trabalho e corrida em benefcio da vida(6).Lidar com o inesperado faz parte do cotidiano dos

    servios de pronto-socorro. Entretanto, em algunsmomentos, os trabalhadores podem permanecer, por

    exemplo, algumas horas sem que haja aten dimento na salade emergncia, o que caracteriz a o ritmo de trabalho comoimprevisvel, ou seja, a distribuio dos atendimentos, notempo, no constante.

    Na madrugada, o que que a gente faz? A gente sentaali, se a sala estiver vazia, tu ficas sentada, a qualquermomento aquela porta abre e a gente sai correndo paraatender o paciente. (E7)O que pode surgir daquela porta a questo que

    orienta a ateno permanente da equipe de enfermagem.A complexidade e a quantidade de casos que podem darentrada na sala so fatores que determinam a prioridadedada agilidade nas aes do cuidado. O objetivo doservio realizar o primeiro atendimento, ou seja, estabilizarhemodinamicamente o paciente e encaminh-lo aos setoresque deem a continuidade necessria ou ento liber-lo.

    Se tiver um tiroteio em algum lugar,eu estarei com trs baleados ao mesmotempo, pode acontecer, j teve [...]ento se tu sabes que tem isso, tu tensque fazer a coisa fluir! (E12)Se o fluxo no anda, se os pacientesno so liberados, se os pacientes quetm que ir para a cardio no vo, se ospaci entes que tm que faze r exames

    no vo, se os pacientes que tm que serinternados no vo, vai acumulandogente dentro da sala e vai acabar num ponto que tu noconsegues dar conta do servio, que tu no consegues veros outros pacientes, que tu no consegues saber quem o grave e quem no , entendeu? Tem muita gente paraobservar ao mesmo tempo! (E5)Fazer a coisa fluir representa a necessidade de agilizar

    as etapas que permitem o encaminhamento do paciente,ou seja, agilizar o suporte avanado de vida, os pedidosde exames e sua realizao, a avaliao dos mesmos ea tomada de deciso quanto ao destino do paciente. Por

    outro lado, esse fluir tambm pode ser entendido comoa necessidade do trabalhador de manter em trnsitoconstante as emoes despertadas pelo contato com acomplexidade das situaes vividas, no havendo espaopara representar essa coisa em sua mente, pois issoimpediria a ao teraputica emergencial exigida pelo caso.

    Embora todas essas aes tambm dependam daagilidade da enfermagem, nas mos do mdico que estoas decises quanto realizao de exames, procedimentose condutas teraputicas, assim como a permanncia dopaciente em observao, encaminhamento para uma UTIou enfermaria ou liberao. Dessa forma, na tentativa defazer a coisa fluir, a enfermagem, por vezes, confronta a

    hegemonia mdica nos servios de emergncia.Assim, pode-se dizer que questes como o ritmo de

    trabalho imprevisvel e necessidade de constante fluxode pacientes esto implicadas na configurao das redes

    estruturais que organizam e determinam a prtica daenfermagem nos servios de urgncia e emergncia. A fimde discuti-las, aborda-se as consequncias da intensificaodo trabalho.

    Intensificao do trabalho e suas consequncias para a

    sade mental do trabalhador

    Fazer a coisa fluir depende, tambm, da disponibilidade deleito para a transferncia do paciente para outras unidadesdo hospital ou mesmo outras instituies da cidade. Porisso, muitas vezes, os pacientes permanecem na sala deemergncia por longo tempo, o que modifica a organizaodo trabalho da enfermagem nesse setor.

    Ns somos, na verdade, socorristas de emergncia, que para dar o primeiro atendimento e passar adiante, sque isso no vem acontecendo. A gente d o primeiro

    atendimento, a gente prepara o pacientee a gente fica atendendo o paciente nasala, vai fazer o papel de intensivista,que o controle do paciente que estinternado ali! (E7)

    Diante da necessidade de atender ospacientes que precisam de cuidadoscontnuos, a enfermagem desenvolveuuma organizao prpria para incluir

    esses atendimentos. Faz-se uma escalacom horrios preestabelecidos para

    cada auxiliar/tcnica a fim de atender s necessidades decuidados intensivos ao paciente internado.

    Trata-se, portanto, de estratgia utilizada diante danecessidade instituda pela organizao e condies detrabalho, acabando por modificar o papel e a prescriooriginal do trabalho do profissional. Essa alterao defuno incide, ainda, sobre a identidade e a sade mentaldesses trabalhadores(7) , o que exige que os profissionaisenvolvidos redefinam laboralmente suas formas deoperar no trabalho e, portanto, de ser trabalhador de

    enfermagem.Acrescenta-se a isso o fato de que cada uma das funes(socorristas de emergncia e intensivistas) pressupediferentes disponibilidades psicolgicas do trabalhador.No atendimento intensivo, por exemplo, percebe-se aexigncia de vnculos mais duradouros e empticos entreo profissional e o paciente, inclusive entendendo essadisponibilidade como instrumento de cuidado por se tratarde um contato mais prolongado. Exigir de um socorristaessa mesma disponibilidade emocional, ao mesmo tempoque ele necessita exercer sua atividade de atender emergncia, passa a ser nocivo para a sade do trabalhador.Essa exigncia de outras finalidades para o trabalho em

    'Fazer a coisa fluir'representa a

    necessidade de agilizaras etapas que permitem

    o encaminhamento

    do paciente

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    servios de emergncia tambm foi apontada em outroestudo sob a perspectiva das consequncias disso para aqualidade do cuidado prestado(8) .

    Percebeu-se que a configurao do labor no servio

    estudado tem exigido a intensificao do trabalho daenfermagem, o que reflete negativamente na sadeemocional do trabalhador.

    Um dia eu cheguei, tinha trs pacientes internados, e eu queestava na escala de pacientes. Eu olhei para a enfermeirae disse assim: Enfermeira, eu estou com trs pacientesinternados entubados. Um auxiliar de enfermagem na CTIfica com trs pacientes entubados? (E7)A situao remete ao que descrito na literatura (9) sobre

    as formas de consumo da fora de trabalho. nesse nvelque esto implicadas as diversas formas de desgaste dotrabalhador, as quais podem ocorrer de duas maneiras:pela intensificao do trabalho ou pelo aumento daprodutividade, por meio de uma mudana na organizaodo trabalho.

    No caso estudado, trata-se daintensificao do trabalho derivada dafalta de suporte do prprio hospital edo sistema de sade do municpio paraabsorver a demanda que permanece nasala de emergncia por mais tempo doque o previsto. Alm disso, na percepodas participantes do estudo, a faltade protocolos para os atendimentostem feito com que haja intervenes

    desnecessrias, sobrecarregando ostrabalhadores.

    Tu ests vendo que o sistema noest funcionando... No tem protocolopara aten dim ento de AVC, no tem para paciente de IAM ,no tem nada, a cada mdico faz o que quer [...] examesso pedidos duas vezes, falta de comunicao, faltade ter um protocolo [...]. A situao bem desorganizada,acontece que um mdico no libera paciente do outro,fica acumulando, cada um tem uma maneira de trabalho,quando no tem rotina cada um faz da sua maneira, issogera transtornos e no libera os pacientes. (E8)

    Por meio da Poltica Nacional de Humanizao, oMinistrio da Sade tem incentivado mudanas estruturaisde gesto e ateno em sade a fim de avanar em proldo acolhimento e da resoluo com base em protocolosclnicos e estabelecimento de fluxos para que sejameliminadas as intervenes desnecessrias. Embora ohospital em questo esteja buscando a implementaodessa poltica, os atuais processos adotados desqualificama ateno prestada pelo servio e ainda contribuem para aintensificao do trabalho e o sofrimento dos profissionaisque atuam na promoo e recuperao da sade (10).

    Ainda foi possvel constatar que, mesmo que as salasestejam lotadas, o servio continua recebendo os pacientes,

    como pode ser visto no trecho que segue.Vai empilhando boletim e tu tens que atender! Tu sobrigado a dar conta! (E8)Estudo(1) de dois servios pblicos de emergncia do

    Rio de Janeiro trouxe tona a questo do sofrimentodos profissionais na intensificao do trabalho para darconta da lotao, que excede a capacidade do setor deemergncia. Assim, sob essas condies de trabalho,pode-se verificar que os funcionrios se veem impedidosde cumprir corretamente suas funes, o que pode gerarsofrimento. Isso chamado de presso para trabalharmal(4) e classificado como violncia(6) pela limitao emproporcionar assistncia de qualidade.

    Essa intensificao, porm, imprevista e inconstante, aopasso que a escala de trabalho obedece a uma distribuiouniforme dos profissionais, conforme pode ser constatadona anlise documental. No entanto, no decorrer do planto,a alternativa utilizada para dar conta da intensificao do

    trabalho a redistribuio das pessoasentre as salas do servio a fim de atenderao local que mais necessitar.

    Essa situao foi observada commaior frequncia na sala de emergncia,onde, entre os cinco trabalhadores denvel mdio escalados para cada turnode trabalho, exige pelo menos um paraatender os pacientes internados. Dessaforma, restaro quatro profissionaispara os atendimentos de emergncia, os

    quais precisam atuar simultaneamentenas manobras de suporte ao trauma.Um paciente trazido sala em umamaca empurrada por auxiliares de

    enfermagem do servio. A residente: tiro?. O auxiliardo transporte: Parece que uma overdose, ele foi trazidopela brigada. Trs auxili ares /tcnica s de enfermagem seaproximam. Logo detectada a parada cardiorrespiratria.A resi dent e solici ta a pres ena do outro residente e, almdesse, se aproximam a mdica, um interno, outra auxiliar/tcnica e a enfermeira. As manobras se iniciam com todosconcentrados na tarefa, enquanto apenas uma auxiliar/

    tcnica se ocupa em atividades que no se relacionam aoatendimento parada cardiorrespiratria. (O9)Constata-se, portanto, que a rotina de trabalho em

    emergncia exige um constante estado de tenso e vigliado trabalhador, uma vez que esse pode ser requisitado aqualquer momento a deixar a tarefa que est realizandopara ser inserido em um procedimento de cuidadoespecializado, que representa a vida ou a morte dopaciente. Frente a isso, os profissionais de enfermagemsofrem com sentimentos como cansao, esgotamento,angstia e revolta pela sobrecarga e limitaes dosrecursos frente s situaes que envolvem risco de morte.Dessa forma, pode-se inferir que essa realidade geradora

    Constata-se que arotina de trabalho

    em emergncia exigeum constante estadode tenso e viglia dotrabalhador, uma vez

    que esse pode ser

    requisitado a qualquermomento

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    de estados emocionais caracterizados pela vivnciaconstante de ansiedade, trazendo prejuzos sademental do trabalhador por meio do desgaste emocional ede transtornos mentais graves(11).

    Para se defender de situaes danosas, os profissionais

    adotam estratgias de enfrentamento. Essas, por sua vez,tm sido constitudas pelo distanciamento emocional frente morte e a despersonalizao do cuidado evidenciadaatravs da frieza ou humor em suasatitudes no trabalho(12,13).

    O trecho a seguir descreve uma dasinmeras situaes que mobilizam aequipe de sade para a tomada de decisesquanto s prioridades no atendimento, oque tambm contribui para a tenso a sermodulada a fim de no adoecer.

    Uma funcionria do Samu e mais umauxiliar de enfermagem do serviotrazem uma maca com uma vtimade trauma para dentro da sala deemergncia. So passadas informaespara o residente, enqu anto a mdica eos internos se aproximam. A avaliao mdica se inicia,enquanto um tcnico de enfermagem prepara materiaisnecessrios para verificar sinais vitais e complementara avaliao. Nesse momento, entra um novo caso,proveniente de acidente de trnsito e traz ido por outr oservio pr-hospitalar, que logo recebe a ateno da equipemdica e de enfermagem, que deixam o atendimentoanterior para dar ateno ao caso mais grave, o segundo

    a entrar. O paciente avaliado como de menor gravidade levado a outro setor. (O13)Levar o paciente para outra sala nem sempre possvel,

    pois a gravidade dos casos, por vezes, no permite essaopo, uma vez que somente a sala de emergncia estequipada para esses atendimentos. Nessas circunstncias,a enfermagem vivencia o dilema de escolher a quemprestar o atendimento.

    A enfermeira conve rsa com uma tcnica/ auxi lia r nasala de urgncias clnicas; elas falam sobre a sala deemergncia: Ontem no tinha mais nenhum lugar l, paranenhuma maca. Sorte que aquele cara morreu, porque ns

    no tnhamos mais respirador no hospital. (O4)As rotinas de trabalho em emergncia afetam tointensamente as emoes dos profissionais que esses, muitasvezes, chegam a relatar o desejo de morte de um paciente afim de poderem estar mais disponveis para os cuidados de umdoente com maiores chances de vida. Aspectos relacionadosa esse fenmeno tambm foram apontados em estudo (14)que discutiu a vivncia da escolha como um fator geradorde sofrimento por parte dos profissionais da emergncia.A mediao entre os mais variados dramas, a estrutura ea distribuio dos recursos e servios fazem com que essesprofissionais tenham de decidir, muitas vezes, quem devemorrer e quem deve viver(14:87).

    Outro aspecto relativo psicodinmica do trabalhoem emergncia observado durante a coleta de dados foique, alm da equipe mdica e de enfermagem, outraspersonagens participam do processo de trabalho. Nessesentido, contatou-se que o segurana permaneceu a

    maior parte de seu tempo dentro da sala de atendimentos,interagindo diretamente com a equipe de sade e ajudandoa fazer a coisa fluir. Essa personagem atua fazendo a

    interlocuo entre os que estavam forae os que permaneciam dentro da sala,ou seja, pacientes, familiares e equipede sade. Ele ainda realiza o controleda porta, avaliando a possibilidade deentrada de familiares, assim como aentrada dos prprios pacientes paraserem atendidos quando, a partir de suaavaliao, representarem casos que nopodem mais esperar.

    Como evidenciado pelapsicodinmica do trabalho, embora osofrimento seja da ordem do singular,sua soluo coletiva(15). Dessa forma, o

    segurana torna-se protagonista nas cenas decisivas para arapidez no atendimento prestado, ainda que, na avaliaoda enfermagem, ele tambm possa ser o culpado pelasuperlotao da sala, uma vez que sua atuao excederiaao que a ele fora prescrito.

    Um senhor entra na sala, acompanhado pelo segurana,e vai at um paciente que est sendo atendido. A auxiliarquestiona a presena daquele homem e o segurana

    jus tif ica que ele veio pegar um objeto com o paciente.Quando o segurana sai, a auxiliar comenta: Essesguardas... s botam gente para dentro e no ficam napor ta. (O6)Botar gente para dentro representa ter de intensificar a

    carga e o ritmo de trabalho para atender um maior nmerode pacientes e, por vezes, encontra-se na figura do guardaum culpado pela situao a fim de dar vazo tenso vivida.

    Alm disso, a situao interfere nos parmetros usadospara classificar a gravidade dos casos e, portanto, nasdecises sobre a ocupao ou no de uma vaga na sala deemergn cia. Surge, ento, o chamado caso frio, classif icado

    pelos trabalhadores como no urgente, ou o H, expressofrequentemente adotada para se referir a pacientes compretensos sintomas histricos.

    A cois a no anda ! Um mont e de paci ente... s vezes umpaci ente grave que est agua rdan do, por qu? Porqu e temum monte de paciente que no precisava estar aqui! (E8)s vezes tu tens... no meio da diversi dade, no meio daquantidade de pacientes, no meio de vrios casos, chegaunha encravada, H infectado com florzinhas, mas temaquele paciente que pode estar infartando [...]. s vezescento e poucos pacientes numa noite, e no meio de tantosum ou outro um caso especial. (E6)Esses relatos vo ao encontro de outro estudo(1) que

    Ontem no tinhamais nenhum lugar l[sala de emergncia],para nenhuma maca.Sorte que aquele caramorreu, porque nsno tnhamos mais

    respirador no hospital

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    emergncia [dissertao]. Rio de Janeiro (RJ): Escola Nacional de Sade Pblica

    da Fundao Osvaldo Cruz; 1997.

    15.Lancman S, Uchida S. Trabalho e subjetividade: o olhar da psicodinmica do

    trabalho. Cad Psicol Soc Trab. 2003;6(1):79-90.

    Referncias

    apontou o sentimento de contrariedade experimentado pelosprofissionais de enfermagem diante dos pacientes que noso de seu setor, pois se veem obrigados a se desdobrarema fim de atender tantos indivduos que no so casos deurgncia ou emergncia. Segundo o estudo(1:65), alm da

    evidente sobrecarga de trabalho, esses pacientes no motivamo profissional de enfermagem, uma vez que no exigem deleconhecimento especfico de urgncia/emergncia. Na mesmadireo, outra pesquisa(8)mostrou que aequipe de sade revela insatisfao coma procura excessiva de pacientes, cujasnecessidades no podem ser classificadascomo urgncia ou emergncia,apontando o nmero de atendimentoscomo justificativa para a resistncia emrealizar o trabalho e o descompromissocom a produo do cuidado.

    CONSIDERAES FINAISOs resultados do presente estudosugerem que a psicodinmica dotrabalho da enfermagem em setorde urgncia e emergncia caracterizada pelo ritmo detrabalho intensificado e pela imprevisibilidade, gerandoconsequncias no cotidiano e na sade mental do trabalhador.Alm disso, constatou-se que o trabalho prescrito diferedo real no cotidiano laboral desses profissionais, sendo os

    excessos ao que prescrito vivenciados com angstia einsegurana. Evidenciou-se, portanto, que so necessriasaos trabalhadores oportunidades para refletir sobre seutrabalho a fim de proteger sua sade mental e a qualidadedo servio ofertado.

    Sabe-se que o trabalho possui carter central naestruturao do sujeito e, por isso, cria-se a hiptese de quehaja ainda repercusses dessas vivncias de trabalho fora do

    ambiente laboral, fato no aprofundadono presente estudo. A organizao dotrabalho, dessa forma, poderia repercutirna sade mental do trabalhador demaneira a limitar a aproximao afetivacom as pessoas de suas relaes,empobrecendo a capacidade derepresentao das tenses vivenciadas,prejudicando, assim, sua condio de

    pensar seus sentimentos em vez de atu-los apenas com vistas a questes prticase emergenciais, como simples descargade tenso, fazendo a coisa fluir.

    Por fim, reitera que, como defendidona literatura, a psicodinmica do trabalho auxilia apreencher lacunas epistemolgicas importantes noconhecimento em sade e sua relao com o trabalho,permitindo ampliar o olhar e a escuta aos fenmenosligados sade mental dos trabalhadores.

    A equipe de saderevela insatisfao com

    a procura excessivade pacientes, cujasnecessidades no

    podem ser classificadascomo urgncia ou

    emergncia